casa e poesia - Universidade de Coimbra

10
A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso. A casa e poesia Autor(es): Ribeirete, João Publicado por: Associação Internacional de Lusitanistas URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/34422 Accessed : 30-Apr-2022 09:34:44 digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

Transcript of casa e poesia - Universidade de Coimbra

Page 1: casa e poesia - Universidade de Coimbra

A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis,

UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e

Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos.

Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de

acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s)

documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença.

Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s)

título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do

respetivo autor ou editor da obra.

Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito

de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste

documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por

este aviso.

A casa e poesia

Autor(es): Ribeirete, João

Publicado por: Associação Internacional de Lusitanistas

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/34422

Accessed : 30-Apr-2022 09:34:44

digitalis.uc.ptimpactum.uc.pt

Page 2: casa e poesia - Universidade de Coimbra
Page 3: casa e poesia - Universidade de Coimbra

VEREDAS 5 (Porto Alegre. 2002) 81-88

A casa e poesiaUma leitura dos contos

"Praia", "0 silencio" e "A casa do mar"de Sophia de Mello Breyner Andresen

JoAo RIBEIRETEUniversidade de Lisboa, Portugal

[A] poesia e a minha expiicacao com 0 universo,a minha convivencia com as coisas,

a minha participacao no real,o meu encontro com as oozes e as imaqens.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Arte Poetica II. 1

La poesie eveUle l'apparition de I'irree!et du reveface a la realite bruyante

et palpable dans laquelle nous nous croyons chez nous.Et pourtant, c'est, tout au coniraire.

ce que le poete dit et ce qu'U assume d'etre.qui est le reel.

Martin Heidegger, Holderlin et l'essence de lapo€Sie.2

1 ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Arte poetica II. In: Obra poetica. Lisboa: Ca­

nnnho,1999.v.3.p.95.2 HEIDEGGER, Martin. Holderlm et l'essence de la poeste. In: Approche de Holderlin.

Paris: Gallimard, 1973.

Page 4: casa e poesia - Universidade de Coimbra

82 J oao Ribeirete

Nenhum poeta, para 0 ser. precisa de explicar a sua maneira defazer poesia. No entanto, Sophia de Mello Breyner Andresen explica 0

seu modo de (vi)ver a poesia, num esforco continuado de tomar a suapoetica, a urn tempo, transparente e disciplinada, porque coerente.

Para Heidegger e para Sophia, 0 poeta e 0 que surpreende 0 Realpor meio de uma rigtda disciplina (afastando-se assim a nocao de poe­sia como logo ou como ornamento'i, que extge 0 envolvimento de urnsujeito (conlcentrado desde 0 fundo do seu ser de modo a aceder aquietude em que assenta a inquietude de todas as coisas. Trata-se,nos dois autores citados, de fundar 0 Real, de revelar urn momenta dedesvelamento da essencia das coisas.

Seguindo ainda uma linha heideggeriana, a palavra para Sophiadel existencia ao Real, "a relacao da palavra e da coisa, da poesia e doreal e (con)substancial [... ] nao apenas necessaria, como ainda motiva­da". 4 Nomear e "restituir aos objectos a sua realidade, a sua pureza oua sua forca magtca", recuperando-se, assim, a ltgacao primordial dapalavra "ao pensamento reltgioso e mittco". 5 0 poeta seria aquele querepresentaria, por meio do poema, a Verdade.

Sophia, no entanto, leva a proposta heideggeriana mais longe: 0

poema surge nao apenas para revelar e representar 0 Real, mas parafundir 0 poeta no Real:

Nao podendo fundir totalmente a sua vida com a existencia das cotsas, 0 poetacrta urn objecto em que as coisas the aparecem transformadas em extstencia sua.

Nao podendo fundir-se com 0 mar e com 0 vento, crta urn poema onde as pala­vras sao simultaneamente palavras, mar e vento.6

Para Sophia, 0 poeta funda 0 Real, para em seguida se fundircom ele. 0 poema surge, assim, como "medianetro", como meio deultrapassar a lacuna que impossibilita a fusao / religacao do homemcom a Poesia do Universo. A finalidade do poeta e, parafraseando apropria autora, a (reluniao com a Poesia das coisas e nao 0 poema.'

3 Heidegger discute 0 conceito de poesia como jogo, Idem, Ibidem, p. 43-61; Sophia, domesmo modo, contesta a tdeta de omamento associada a poesia: ANDRESEN, Sophia de MelloBreyneI' Poesia e Realidade. Col6quw - Revista de Aries e Letras, n. 8, abril de 1960. p. 53.

SEIXO, Maria Alzira. A arte poettca de Sophia de Mello Breyner Andresen (do elogtoda ascese e da nostalgia do stgno). In: (Org.) Poeticas do seculo XX. Lisboa: Livros Hortzonte,1984. ~. 213.

ROCHA, Clara. A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen ou 0 culto magico deOrfeu. Revista Biblos, n. 55, Coimbra, 1977.

6 ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Poesia e realidade. Coloquio - Revista de Artese LetrCl;f' n. 8, abril de 1960, p. 54.

Idem.

Page 5: casa e poesia - Universidade de Coimbra

A casa e poesta, Uma leitura dos contos Praia, 0 silencio e A casa do mar... 83

Neste contexto, 0 conceito de casa, enquanto lugar do poeta, ad­quire uma grande tmportancia, uma vez que, "Inlo prtncipio", antesde tudo ter sido "ordenado e dividido", "a casa foi habitada / nao sopor homens e por vivos / mas tambem por mortos e por deuses" e aiainda "a poesia permanece / como se a divisao nao tivesse aconteci­do" .8 A casa e 0 local de encontro com a Poesia, que dorme no seu"silencio intacto".9

Os tres contos, dispostos pela sua ordem cronologtca." "Praia","0 silencio" e "A casa do mar", analisados em mats pormenor, pare­cern-me constituir uma expltcacao, cada vez mais clara, do significa­do deste espaco para 0 poeta - 0 ultimo texto, "A casa do mar", esta,na minha opintao, muito proximo de ser mais uma arte poettca deSophia. Verifica-se, pois, urn progressivo domiruo do espaco em rela­Gao ao humano: muitas personagens no "clube", em "Praia"; apenasJoana, em "0 silencio": tres figuras fantasmaticas - quem ve, a "pe­quena mulher temivel" e a "mulher de olhos verdes", lmaginada, masnem por isso menos real que as outras duas - em "A casa do mar".De qualquer modo, sao casas que justiftcam 0 conto: os tres contosterminam quando 0 espaco da casa deixa de ser percorrido (por per­sonagens ou por urn grito).

"Praia"

o Clube de Verao, em "Praia", nao e apresentado como 0 espacode urn sujeito, mas de urn coletivo geractonal, do qual faz parte 0

narrador.Assim, esta casa e urn espaco aberto ao exterior (logo nadescricao de abertura do conto surge "uma grande porta que estavasempre aberta" 11): nao so 0 exterior invade 0 interior da casa - "[0

exterior] envolvia 0 clube e as suas paredes, e as suas mesas e cadei­ras"12 -, como 0 contrarto - "Pelas janelas abertas a musica saia e ia

8 ANDRESEN. Sophia de Mello Breyner. Habttacao, In: Obra poetica. Lisboa: Caminho,1999.v.3,p.31l.

9 Idem, Casa branca. In: Obra poetica. Lisboa: Caminho, 1999. v. 1, p. 3l.10 Dos tres contos referidos apenas 0 primeiro nao se encontra datado, embora seja

seguramente anterior a 1962, data da primeira edtcao de Contos exemplares. "0 stlencto" ede 1966, e "A casa do mar", de 1970.

11 ANDRESEN. Sophia de Mello Breyner. Praia. In: Contos exemplares. Porto: Ftguei­rtnhas, 1983. p. 135.

12 Idem.

Page 6: casa e poesia - Universidade de Coimbra

84 .Joao Ribeirete

perder-se la fora por entre as ramagens dos platanos". 13 Esta indis­tincao, na fronteira dos espacos, refletia-se no conjunto de jovens,assemelhados a elementos do exterior: "Havla urn leve rumor deamores adolescentes. Era como 0 rumor da brisa". 14 De urn modosemelhante, 0 ambiente antigo (decoracao de 1920, roupagens velhasdos mustcos, os "grupos escuros de homens", os "grupos claros desenhoras de uma certa idade" 15) contagia esta geracao jovem, que"esperava vagamente 0 futuro", "como se esperasse nao 0 futuro, massim 0 passado"!" e que reconhecia "[a]s vezes [... ] no fundo dos espe­lhos [... ] urn brilho que era 0 brilho de uma hora anttga"." Existe,claramente, uma tndtsttncao nas fronteiras espaco-temporats, nouniverso desta casa, que torna as personagens permeavets a / dis­ponivets para 0 conhecimento, como veremos.

Este conjunto de jovens espera - "a espera suspensa dum re­gresso?" - 0 impossivel da comunhao com 0 Real, sem ser atraves daescrita - 0 Real e ingerido, como 0 mostra 0 gesto de arrancar dosramos uma folha, descrita como cheia "de gestos", que era trincada"devagar entre os dentes". 19 0 Homem do Bar - que "falava misturan­do as suas palavras com 0 tempo, com a noite, com 0 barulho domar, com 0 respirar da brisa nas folhagens"." ou se]a, que atraves deurn discurso-fusao-com-o-existentente (poema), entrava em contactocom a Realidade em si - mostra-lhes 0 processo de "fazer nascertmagens das palavras"." Caracterizado como aquele que sinaliza urnlimite para 0 que pode ser conhecido - "urn marco que dissesse: "Da­qui em diante 0 mar nao e mais navegavel?" -, 0 Homem do Bar pre­para-os para 0 confronto com a violencia - violencta humana (relatode guerra escutado na telefonia) e vtolencta universal (0 nevoeiro quevolta e transflgura tudo," 0 nevoeiro da opacidade das coisas em silo

13 Ibidem, p. 137..

14 Ibidem, p. 138.

15 Ibidem, p. 136.

16 Ibidem, p. 139.17 Idem.

IB Ibidem, p. 140.

19 Ibidem, p. 138.

20 Ibidem, p. 142.21 Idem.

22 Ibidem, p. 143.

23 Ibidem, p. 146.

Page 7: casa e poesia - Universidade de Coimbra

A casa e poesia. Uma leitura dos contos Praia, 0 sUencio e A casa do mar... 85

Este conto relata, assim, a aprendizagem de uma "escuta" do realpor entre 0 nevoeiro das aparenctas - 0 conto termina: "So a voz domar se ouvia, espantosamente real [...] [e] parecia que os grandes [...]espacos marinhos, como sendo 0 nosso proprio destino, nos chama­vam"."

"0 silencio"

No segundo conto do conjunto selecionado, "0 silencto", tam­bern se trata de uma aprendizagem, embora violenta, destruidora.A protagonista feminina, Joana, habitava a sua casa como se naoexisttsse mais do que a sua "casa, as estrelas e ela", Reconhecia umaaltanca estabelecida entre estes tres elementos e "habitava essa uni­dade"," "como se 0 peso da sua consciencia fosse necessarto ao equi­lfbrto das constelacoes", 26 Se no caso do primeiro conto analisado,tinhamos uma casa de fronteiras em transgressao, 0 que permitiuque a vtolencia do relato de guerra pela telefonia ou do nevoeiro finalnao tivessem uma consequencla devastadora, neste caso, aconteceprecisamente 0 contrario: 0 isolamento da personagem, quando que­brado violentamente, leva-a ao desconhecimento de tudo. Alias, 0

recurso a ~ma luz artificial no interior da casa, que resgata aquelemicrocosmos a escuridao - "Os quartos desapareciam no escuro esurgiam do escuro na clartdade?" - pode ser visto como simb6lico (0

grito trara uma outra luz, a conscie~cia do Real) e como Ironico (euma luz que nao ilumina verdadeiramente, nao traz "clartdade", co­nhecimento). Esta personagem e ironizada, precisamente, porquetgnorava 0 exterior da casa, apenas "conhecta as suas coisas" ­"0 muro, a porta, 0 espelho [... ] - a sua beleza e serenldade"."

Com efeito, apesar de ter as janelas abertas a noite de verao,Joana apenas presta atencao ao seu jardim e ao ceu noturno, queenvolve a casa. It no momenta em que a sua atencao se distancia dacasa - "[n]o rio, rouca, apitou uma sereia. Na torre 0 sino bateu duas

24 Ibidem. p. 146.

25 ANDRESEN. Sophia de Mello Breyner. 0 stlencto. In: --- . Histottas da terra e

do mar. Lisboa: Texto, 1998. p. 50.26 Idem.

27 Ibidem. p. 48.28 Idem.

Page 8: casa e poesia - Universidade de Coimbra

86 J oao Ribeirete

badaladas'?" - que escuta os gritos destruidores da sua ordem. Alias,e signtflcativo serem estes primeiros sons escutados flguracoes dadeslocacao espacial e da deslocacao temporal, respectivamente.

as gritos daquela mulher, em frente a prtsao, rasgam a incons­ciencia da protagonista e "0 terror, a desordem, a dlvisao, 0 panico[penetram] no interior da casa, do mundo, da noite". 30 as gritos naoeram de loucura (outra forma de altenacao), mas de conhecimento:"[para aquela mulher que gritava] a terra e a vida tinham despido osseus veus, 0 seu pudor e mostravam 0 seu abismo, revelavam a suadesordem, a sua treva"." Essa mulher conhecia algo que Joana des­conhecia e aquilo a que assistimos aqui e a uma aprendizagem "gri­tada": a mulher "Iglrttava como se quisesse atingir urn ausente, acor­dar urn adormecido, abalar uma consctencia Impassivel"." Joana veno exterior da sua casa uma mulher, que e em tudo a sua imageminvertida (os gestos das duas personagens chegam mesmo a ser as­simetrtcos: Joana, "[clom as maos tocando a parede branca, respir[a]docemente"," a mulher que grita "bat[e] com os punhos na parede daprisao como se quisesse forcar a pedra a responder':") e conhece 0

lado "escuro", violento da existencta.Exatamente 0 que distingue Joana do sujeito narrativo de "Praia" e

a sua indisponibilidade para escutar. A vtolencla das coisas que foiensinada pelo Homem do Bar, aqui, tern de ser gritada para ser com­preendida. Joana conhece a vtolencia, apercebe-se da ilusao do seuuniverso e atravessa "como estrangeira a sua casa"."

"A casa do mar"

Se em "0 silencio" encontramos uma mulher que ve no exteriorda sua casa a sua propria imagem invertida, imagem de terror, por­que os espacos nao comunicavam entre si como comunicavam em"Praia", em "A casa do mar", vamos encontrar uma casa que "nao e

29 Ibidem, p. 50.

30 Ibidem, p. 5l.

31 Ibidem, p. 52.

32 Ibidem, p. 54.

33 Ibidem, p. 49.

34 Ibidem, p. 54.

35 Ibidem, p. 55.

Page 9: casa e poesia - Universidade de Coimbra

A casa e poesta. Uma leitura dos contos Praia, 0 silencio e A casa do mar... 87

margem mas antes convergencia, encontro, centro":" e que faz partedo todo em que esta inserida, espelhando no seu interior 0 exterior:"Os espelhos refletem demoradamente os dias. E em frente das jane­las 0 mar brilha como Inumeraveis espelhos quebrados"." Alias, estacasa excepcional surge isolada e destacada das outras casas, "[ne]sseisolamento [que] crta nela uma unidade":" e uma atencao "a cadacotsa"." Contudo, apesar de nos serem dadas a conhecer as frontet­ras entre a casa e 0 que, de fato, a rodeia, 0 jardim, a duna e a praia,estas nao limitam e estao sempre abertas na unidade referida - "0

jardim avanca pela duna e confunde-se com a praia, apesar dos pila­res que marcam os seus limttes". 40 Para alem destes espacos naodelimitados, esta casa contem espacos externos e internos no seuinterior: "Cercadas pelas molduras de prata, ora ovais ora redondas,ora retangulares, as fotografias estabelecem, dentro do tempo, outrotempo, e dentro da casa, outras casas e lugares e jardins"."

Por outro lado, se nos primeiros contos analisados tinhamos flgu­ra(s) humana(s) associada(s) a casa, neste caso 0 sujeito esta diluidono espaco, 0 espaco e 0 sujeito, a casa e protagonista (quem ve apenasuma vez protagoniza uma acao para logo se dissolver no descrito:"Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia, como urnmolho de algas?"). Apesar disso, conseguimos entrever alguns vesti­gtos do humano: "0 vento [... ] faz voar em frente dos olhos 0 loiro doscabelos":" "cigarro poisado no cinzeiro arde sozinho"." "frasco [... ] quealguern deixou destapado"." "0 anel esquecido, a echarpe caida"."

Ao contrarto do que acontecia com 0 microcosmos de "0 silen­cio", esta casa contem em si os contrartos, nao apenas 0 claro e lu­minoso, mas tambern 0 terror e a vtolencia. Deste modo, encontra­mos, no interior desta casa, espacos de terror - como a cozinha,

36 Ibidem, p. 71.

37 ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. A casa do mar. In: --- . Histotias da ter-

ra e do mar. Lisboa: Texto, 1998. p. 62.38 Ibidem, p. 59.

39 Ibidem, p. 62.

40 Ibidem. p. 61.41 Ibidem, p. 64.

42 Ibidem, p. 62.43 Ibidem, p. 61.

44 Ibidem, p. 64.

45 Ibidem, p. 67.46 Ibidem, p. 69.

Page 10: casa e poesia - Universidade de Coimbra

88 J oao Rtbetrete

"0 antro da casa", 47 que "tern algo de inquietante que acornpanha 0

longo catalogo de maleflctos, desgracas, acidentes, doencas, pertgos,prenuncios e ameacas suspensas que a pequena mulher temivel con­tinuarnente recorda em frente do fogo" e onde "as chaleiras gernem esolucam como se sofressern?" - e espa~os luminosos - como 0 quartono centro da casa, "como urn jardirn Zen, [... ] urn lugar de contem­placao?" e de escrita.

Sophia, neste conto, faz a proposta ousada de fazer conter numacasa tudo 0 que existe, urn universo intemo que espelhe 0 universoextemo, Real Igual dentro do Real. De resto, como 0 poema em relacaoa poesia do universo, ja que "0 poema e [...] uma realidade entre reali­dades"."

Nos tres contos analisados, encontramos casas que flguram edesdobram 0 sujeito (este plural em "Praia"). Deste modo, encontramosem "Praia" uma casa que comunica com 0 Real e urn sujeito coletivoque inicia a sua propria comunicacao com 0 Real; ja em "0 silencto"acontece 0 oposto - uma casa e urn sujeito, em comuntcacao apenasentre st, sao invadidos por urn lado do Real que desconhecem; por flm,em "A casa da praia", sujeito e casa ja fazem parte do Real, unidos e(con)fundidos com ele. Os dais primeiros contos relatam urn contato erevelacao do Real. 0 ultimo propoe a fase seguinte defendida por So­phia: a fusao do sujeito com as coisas - a habitacao para 0 Real e noReal.

o jardim e a casa

Nao se perdeu nenhuma coisa em mimContinuam as noiies e os poentesQue escorregam na casa e nojardimContinuam as vozes diferentesQue intactas no meu ser estao suspensas.Trago 0 terror e trago a claridade,E airaoes de todas as presencesCaminho para a unica unidade.

5 1

47 Ibidem, p. 63.48 Idem.49 Ibidem, p. 71.50 ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Poesia e realidade. Col6quio - Revista de Ar­

tes e ~f'"as, n. 8, abr. 1960, p. 54.ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. 0 jardtm e a casa. In: ---. Obra poetica,

Lisboa:Cannnho, 1999.v. l.p.46.