Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz ETICO

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    1. Biobibliografia

    Carlos Drummond de Andrade nasceu na pequena cidade de Itabira, interior mineiro, em 1902. Viveu gran-de parte da sua vida na cidade do Rio de Janeiro, onde morreu aos 85 anos de idade, em 1987.

    Formado em farmcia, Drummond optou pelo fun-cionalismo pblico, transferindo-se, em 1934, para o Rio de Janeiro, onde foi trabalhar no Ministrio da Educa-o. Trabalhou tambm como codiretor do jornal Tribu-na Popular.

    A partir da dcada de 1950, passou a dedicar-se uni-camente produo literria, intensificando o seu tra-balho de cronista.

    Embora tenha produzido muito como cronista, Car-los Drummond de Andrade visto como o maior nome da poesia contempornea brasileira.

    ObrasPoesiasAlguma poesia (1930); Brejo das almas (1934); Senti-

    mento do mundo (1940); A rosa do povo (1945); Claro enig-ma (1951); Viola de bolso (1952); Fazendeiro do ar (1955); A vida passada a limpo (1959); Lio de coisas (1962); Boi-tempo (1968); Menino antigo (1973); Corpo (1984).

    CrnicasConfisses de Minas (1944); Passeios na ilha (1952);

    Fala, amendoeira (1957); A bolsa e a vida (1962); Cadei-ra de balano (1966); Caminhos de Joo Brando (1970);O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso (1972); De notcias e no notcias faz-se a crnica (1974); Os dias lindos (1977); Boca de luar (1971);

    ContosContos de aprendiz (1953); 70 historinhas (1978); Con-

    tos plausveis (1981).

    2. A segunda gerao modernista

    A segunda fase do Modernismo brasileiro estende-se de 1930 a 1945, perodo em que, historicamente, talvez

    tenham ocorrido as maiores transformaes do sculo XX. No plano internacional, a dcada inicia-se com a de-presso econmica que se seguiu quebra da Bolsa de Valores de Nova York, o avano do nazifascismo e a eclo-so da Segunda Guerra Mundial, quando Hitler invade a Polnia, em 1939.

    No Brasil, Getlio Vargas, levado ao poder pela Re-voluo de 1930, consolida-se como ditador, no Estado Novo. Inconformados com a perda do poder, os pau-listas desencadeiam a Revoluo Constitucionalista de 1932. Ainda nesta poca, crescia a ideologia fascista, manifestada pelos seguidores de Plnio Salgado (que havia participado da Semana de Arte Moderna em 1922), fundador da Aliana Nacional Libertadora (ANL). Agindo clandestinamente, aps ter sido fechada pelo governo federal, a ANL tenta uma revoluo que, em 1936, acompanhada por revoltas populares, que ser-viam de pretexto para consolidar o regime. Em novem-bro de 1937, h o fechamento do Congresso Nacional e a decretao do chamado Estado Novo. Esse foi um perodo antidemocrtico, anticomunista, em que Vargas exercia um poder ditatorial e centralizador, at que, em 29 de outubro de 1945, pressionado, renuncia.

    No cenrio mundial, a Segunda Guerra termina tragi-camente com a rendio alem, expondo ao mundo as atrocidades do governo nazista contra os judeus.

    3. Contos de aprendiz

    Nos Contos de aprendiz, Carlos Drummond de Andra-de exerce no s a sua grande capacidade como pro-sador, mas tambm como poeta, deixando escapar em vrios momentos o lirismo e tambm o seu antilirismo que o fizeram conhecido como o poetamaior. Assim iro-nia, humor, comicidade, tragicidade, romantismo, antir-romantismo, enfim, situaes cotidianas transformadas em fico, desfilam aos olhos do leitor, confirmando a sua exmia tcnica de contador de histrias.

    a salvaO da almaFoco narrativo: 1a pessoa.Tema: briga de irmos.

    Carlos Drummond de AndradeContos De AprenDiz

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    Augusto tem quatro irmos: Miguel, o mais velho; Edison, Ester e Tito, com quem Augusto tem muitas bri-gas de irmos. Tito, mais velho que Augusto um ano, era o que mais batia no caula, mas tambm o defendia contra os assaltos dos meninos do grupo escolar. No en-tanto, quando chegavam em casa, Tito se revoltava con-tra Augusto, dizendo-lhe que no deveria ter provocado briga se no tinha fora para sustent-la. No fosse Tito, Augusto Novais Jnior, de nove anos, apanharia em p-blico, para satisfao dos Teixeira, dos Andrada, dos Gui-mares e dos outros cls rivais. Um dia, Ester apareceu com a notcia de que chegariam por ali uns padres que ouviriam toda a gente em confisso e tambm fariam pregaes. Tendo ido confessar Augusto e Tito, este, to-mado por um desejo de pacificar-se e atingir a bondade e a compreenso, prope ao irmo no mais brigarem e que, a partir daquele momento, Augusto poderia hu-milh-lo o quanto quisesse e, ainda assim, ele no mais revidaria:

    Tito ps-se de quatro, eu montei-o, segurando nos ombro, e l fomos rua acima, ele salvando a sua alma e eu sem querer tirando a minha desforra. Ai, anos de humilhao e derrota, de gengivas sangrando e de braos roxos na poeira!

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos de aprendiz. 12. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975. p. 18.

    Augusto, para estimular Tito, sem calcular bem, re-corre a um golpe duplo de calcanhares, atingindo em cheio a virilha do irmo, que urra de dor e parte para cima dele:

    Toma, desgraado! Toma, cachorro! Toma! Era as-sim que voc queria ajudar a salvar a minha alma? Toma, bandido!

    No pudemos comungar no dia seguinte.ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 19.

    O sOrvETEFoco narrativo: 1a pessoa.Tema: universo infantil (ingenuidade dos meninos

    do interior).

    Dois amigos chegam ao colgio no Rio de Janeiro, em 1916. O narrador, filho do coronel Juca, tinha onze anos, e seu amigo Joel, treze. Vinham de uma cidade pe-quena e aos domingos saam do colgio para irem ao cinema, ao circo, almoarem em casa de parentes, em confeitarias... Claro que, para desfrutarem de todos es-ses prazeres, precisavam ter tido, durante a semana, um

    comportamento exemplar. O oramento infantil para os gastos com lazer eram exguos, j que os pais eram orientados a deixar dinheiro para os meninos apenas para pequenas despesas. Ento, volta e meia, tinham de fazer escolhas, abrindo mo de um prazer em prol de outro. Certa vez, os dois jovens, a caminho do cinema, depararam-se com uma placa anunciando um delicioso sorvete de abacaxi. Como nunca haviam experimenta-do tal delcia, acabaram deixando o filme pela metade e correndo ao sorvete:

    [...] e j ouo um leitor maduro que me interrompe: Afinal este sujeito quer transformar o ato de tomar sor-vete numa cena histrica? Leitor irritado, no bem isso. Peo apenas que te debruces sobre esta mesa a cuja roda h dois meninos do mais longe serto. Eles nunca haviam sentido na boca o frio de uma pedra de gelo, e, como todos os meninos de todos os pases, se travavam conhecimen-to com uma coisa de que s conhecessem antes a repre-sentao grfica ou oral, dela se aproximavam no raro atribuindo-lhe um valor mgico...

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 28.

    Para os meninos, o sorvete foi detestvel, muito gela-do, agressivo aos dentes, de abacaxi no tinha gosto, um horror, uma dor, um total sofrimento. Joel, percebendo que o amigo tambm estava desconfortvel com a si-tuao, e no direito de mais velho, baixou uma ordem, exigindo que o amigo acabasse logo com o sorvete, do contrrio ficaria desmoralizado:

    [...] Mas restava um dever do sorvete a cumprir, um de-ver miservel. Refreando as lgrimas, o desapontamento, a dor que um filho de boa famlia no pode sentir em p-blico, mastiguei as ltimas pores daquela matria atroz.

    Joel olhou-me de novo, j agora aprobativo e cordial. Ele tambm sofrera bastante, mas a vida um combate. O garom aproximou-se. Joel ps a mo no bolso, pergun-tou quanto era.

    O dinheiro no chegava.ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 31.

    a dOIdaFoco narrativo: 3a pessoa.Temas: loucura e compaixo.

    Uma doida habitava um chalezinho em uma rua cheia de capim que descia para um crrego. Corria a histria de que aquela mulher, que contava mais de sessenta anos, fora noiva de um fazendeiro. Tiveram uma festa estron-dosa de casamento, mas, na prpria noite de npcias, o

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    marido a repudiara e, no calor do bate-boca, ele a em-purrou escada abaixo. Ela arrebentou-se toda e os dois nunca mais se viram. J outros diziam que no havia sido o marido, mas o pai que a expulsara de casa certo dia, sus-peitando de que a moa pretendia envenen-lo para ficar com o seu dinheiro. Seja como for, o fato que a mulher fechou-se naquele chal, perdendo o juzo:

    Vinte anos de tal existncia, e a legenda est feita. Qua-renta, e no h mud-la. O sentimento de que a doida car-regava uma culpa, que sua prpria doidice era uma falta grave, uma coisa aberrante, instalou-se no esprito das crianas. E assim, geraes sucessivas de moleques passa-vam pela porta, fixavam cuidadosamente a vidraa e las-cavam uma pedra. A princpio, com justa penalidade. De-pois, por prazer. Finalmente, e j havia muito tempo, por hbito. Como a doida respondesse sempre furiosa, criara- -se na mente infantil a ideia de um equilbrio por compen-sao, que afogava o remorso.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 34.

    Trs garotos que desciam a rua para banhar-se e pe-gar passarinhos passaram pela casa da doida para pro-voc-la, apesar de suas mes insistirem que isso era um ato horrvel, um pecado muito grande. Os meninos, ten-do verificado que no tinha mais graa apedrejar a casa, comearam a jogar calhaus lisos, de ferro, pela chamin. A doida, porm, naquele dia no reagia. O menino de onze anos, mais audacioso, resolveu penetrar o jardim, pisando firme e com cautela, enquanto os outros dois sumiram, amedrontados. Ele acabou entrando na casa e chegando ao quarto daquela velha pequenininha, que se escondia com medo atrs de uma barricada de m-veis. Todo desejo daquele menino em maltratar aquela velhinha se dissipou. Ela pediu-lhe gua e parecia estar morrendo:

    Foi tropeando nos mveis, arrastou com esforo o pe-sado armrio da janela, desembaraou a cortina, e a luz invadiu o depsito onde a mulher morria. Com o ar fino veio uma deciso. No deixaria a mulher para chamar nin-gum. Sabia que no poderia fazer nada para ajud-la, a no ser sentar-se beira da cama, pegar-lhe nas mos e esperar o que ia acontecer.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 40.

    PrEsPIOFoco narrativo: 3a pessoa.Tema: conflito (devoo religiosa versus prazeres

    carnais).

    Dasdores era moa de numerosas obrigaes. Os pais exigiam-lhe o mximo, no porque fosse pobre, mas porque o primeiro mandamento da educao fe-minina : trabalhars dia e noite. Naquele dia, a moa estava dividida entre encontrar o namorado Abelardo na missa do galo ou montar o prespio antes da meia- -noite, j que s ela conhecia o lugar de cada pea, cada musgo, cada bicho no nascimento do menino Jesus. E o relgio no lhe dava trgua:

    [...] Saber que a vida parou seria reconfortante para Dasdores, que assim lograria folga para localizar con-dignamente os trs reis na estrada, levantar os muros de Belm. Comea a faz-lo, e o tempo dispara de novo. Agarra-me! Agarra-me! Nas cabeas que espiam pela porta entreaberta, no estouvamento dos irmos, que querem se debruar sobre o caminho de areia antes que esteja espalhada, na muda interrogao da me, no sentimento de que a vida variada demais para ca-ber em instantes to curtos, no calor que comea fazer apesar das janelas escancaradas h uma previso de malogro iminente. Pronto, este ano no haver Natal. Nem namorado. E a noite se fundir num largo pranto sobre o travesseiro.

    Mas Dasdores continua, calma e preocupada, cisma-renta e repartida, juntando na imaginao os dois deuses, colocando os pastores na posio devida e peculiar ado-rao, decifrando os olhos de Abelardo, as mos de Abelar-do, o mistrio prestigioso do ser de Abelardo, a aurola que os caminhantes descobriram em torno dos cabelos macios de Abelardo, a pele morena de Jesus, e aquele cigarro quem botou! ardendo na areia do prespio, e que Abe-lardo fumava na outra rua.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 45-46.

    Cmara E CadEIaFoco narrativo: 3a pessoa.Tema: indignao poltico-social.

    Os vereadores daquele municpio pobre encontra-vam-se reunidos na Cmara Municipal, discutindo o or-amento para 1920. Valdemar, irritado, levanta-se e se pergunta por que o povo elege nove representantes, mas apenas cinco se dispunham a comparecer s ses-ses. Atravessa a sala e vai at os fundos do prdio para respirar um ar menos oficial. A cadeia pblica ficava no mesmo prdio no andar de baixo. Valdemar fica obser-vando os presos distrados, jogando restos de comida e pequenas coisas s galinhas atravs das grades que os separavam do terreno vizinho:

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    E j no tinha gosto para sorver o ar da serra nem per-der os olhos na mata. Uma simples tbua o separava de meia dzia de criaturas embrutecidas, pisadas, que co-miam, dormiam e faziam necessidades juntas, sobre o cho atijolado que no se lavava nunca. O ar pareceu-lhe empestado, como se de repente subisse at as alturas da Cmara o cheiro de mofo e de urina que pairava na parte baixa do edifcio.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 51.

    Ouvindo um barulho l dentro na sala, Valdemar dei-xa a sacada e corre para ver o que acontecia. Para a sua surpresa, um dos presos havia escapado e invadido a sala de sesses, assustando os vereadores, que faziam exclamaes e murmrios:

    O coronel procurava impor-se: O senhor est preso, repito! Vamos, renda-se au-

    toridade! Preso? disse o criminoso. Preso eu j estou h dois

    anos. O senhor no pode me prender outra vez, Coronel. Afinal eu no fugi, apenas subi a escada...

    [...] Como foi que chegou at aqui? perguntou Valde-

    mar, em tom sereno. A porta estava aberta, ou por outra, eu abri a porta.

    L embaixo fazia muito calor... E os outros? Os outros ficaram, respondeu calmamente o preso.

    A maioria est doente por causa da comida ( uma lava-gem de porcos) e por falta de exerccio. No quiseram me acompanhar. E eu no teimei com eles.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 53.

    J que aquele preso conseguira livrar-se do cadeado, poderia ter fugido logo dali, mas pretendera zombar an-tes daqueles homens importantes:

    Foi saindo de costas, muito gil, mo erguida e fecha-da, e sumiu, literalmente sumiu, como evaporado no calor. Valdemar ainda quis persegui-lo, num gesto mais formal do que instintivo, mas o farmacutico travou-lhe o brao: Est doido?! e da, ele simpatizara tanto com o preso, a cadeia l embaixo era to repugnante... A polcia que se arranjasse. Chegando sacada, viu ainda o homem, que desaparecia no beco.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 56.

    bEIra-rIOFoco narrativo: 3a pessoa.Tema: crtica ao autoritarismo (explorao e abuso

    de poder).

    Em uma cidade improvisada, de nome Capito Bor-ges, viviam operrios, tcnicos e diretores de uma gran-de Companhia que ali estava para iniciar as obras de ins-talao de uma indstria. Essa Companhia tinha pressa na execuo do programa e com isso os operrios ti-nham que se esforar ainda mais sem garantia nenhuma de pagamento do servio suplementar, alm do que, acabavam no recebendo nenhuma remunerao no dia do acerto, j que deviam todo o valor do salrio ao armazm, que pertencia tambm mesma Companhia. Existe um rio que corta a cidade e, certo dia, chega de balsa Simplcio da Costa, homem digno e trabalhador, com o propsito de montar ali, beira do rio, um varejo de cigarros, pastis e aguardente, com a devida licena do governo. O balseiro previne o comerciante de que a Companhia no iria facilitar-lhe as coisas, j que era ela que dava as ordens por aquelas bandas:

    Mas os vigias da Companhia participam em frao. Um negro, vindo do Norte, sob pretexto de negociar com cigar-ros e coisas de comer, na realidade est vendendo uma cachaa perturbadora. De sorte que toda essa disposio para o trabalho vem simplesmente do lcool.

    O subdiretor chama dois homens de confiana. Eles tm a misso de policiar disfaradamente os colegas e, quando preciso, descer-lhes a lenha sem dar impresso de que por ordem superior. Recebem instrues para enten-der-se com o negro e convid-lo a remover sua tralha da beira do rio.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 63.

    Soldados invadiram a vendinha de Simplcio e joga-ram todo o estoque no rio, agredindo o homem e expul-sando-o dali:

    Agora, negro, finca o p na estrada e vai olhando sempre para a frente. Se no...

    Empurraram-no, mas Vosso Criado no quer correr. Caminha natural, num passo pesado, de ps chatos, sem pressa.

    Eta negro safado, at parece que ele tem costume...Para assust-lo, os soldados atiram a esmo. Detidos a

    distncia pelas sentinelas, apontador e balseiro contem-plam as runas.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 65.

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    mEU COmPaNHEIrOFoco narrativo: 1a pessoa.Tema: autocrtica.

    Motinha comprou um cachorrinho: o Pirolito. En-quanto se dirigia a casa, pensava preocupado que teria de convencer sua mulher Margarida a aceitar o animalzi-nho, j que era contrria a existncia de animais doms-ticos em casa, por zelo pela sade das crianas e amor limpeza. Certa vez, um gato apareceu por l, desapare-cendo dois dias depois, Deus sabe de que maneira. Mas com Pirolito foi diferente, Margarida encantou-se logo com ele. O cachorrinho foi dado oficialmente ao Juqui-nha, j que era o caula. Pirolito era um cozinho alegre, querido por todos da casa. Sempre que passava pela sala de estar, parava diante do enorme retrato do av de Mo-tinha, como para farejar o mistrio de suas barbas negras:

    Adquiri logo de hbito de conversar com Pirolito. Conver-svamos horas e horas, sua e minha maneira. Abanar o rabo, lamber, levantar ou descer as orelhas, contemplar-me de boca aberta, resfolegando eram outras tantas ma-neiras de exprimir seus conceitos sobre as coisas do tempo, que eu traduzia para a limitada linguagem humana, como se me fosse necessrio comunic-los a outro homem que s compreendesse portugus. Geralmente ele me tratava por esse diminutivo com que na cidade todos me conheciam: Motinha, e o fazia sempre na terceira pessoa: Motinha est pensando que vai ganhar na loteria? Que esperana! Trate de dar suas aulas no ginsio, se no quer tirar o leite dos garotos. Era assim, sarcstico e positivo. Se me perce-bia derivando para o sonho, experimentava as armas do realismo. No deixava entretanto de sugerir-me um cami-nho menos suave, toda vez que me via disposto a qualquer grande transigncia com os poderes materiais, represen-tados pelo prefeito e sua camarilha. Estou com pena de Motinha, dizia-me o focinho mido; ele quer vender a alma ao Coronel Dutra. Para chegar talvez a diretor do ginsio... Se fizer isso, no conte mais comigo. E o projeto de ir para a Capital? Comea bajulando o prefeito e acaba enterrado nestes cafunds, como o Dr. Macedo... o Dr. Laurindo... Hoje no estou satisfeito com Motinha, no.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 70-71.

    Um dia no viram mais o amigo. Procuraram por toda parte e nada. Pirolito era para Motinha um companhei-ro, um confidente, um crtico e um cmplice:

    [...] Aqui me vem uma suspeita miservel, que eu repilo. O gato apareceu e sumiu dois dias depois; Pirolito durou mais tempo, mas tambm despareceu. Margarida to

    boa, to afetuosa no gostava de animais, por causa dos meninos, segundo diria. Cime de mim nunca teve. Seria possvel?... No. Muitas pessoas tambm somem de repente, sem a menor explicao, e nunca se sabe.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 74.

    FlOr, TElEFONE, mOaFoco narrativo: 1a pessoa.Tema: realismo fantstico (sobrenatural).

    Drummond narra a histria que uma amiga lhe con-tou, asseverando que era mesmo verdadeira e que ele podia acreditar: uma moa que morava perto do ce-mitrio So Joo Batista, e que por isso no teria como no tomar conhecimento da morte constantemente, acabou achando que ver enterro era melhor do que no ver nada. Acostumou-se na distrao de passear pelo cemitrio tarde. E em um dos seus passeios vesperti-nos apanhou uma flor de uma cova bem modesta e no prestou ateno ao nome inscrito na sepultura. Amas-sou a flor e jogou-a por algum lugar, do qual no se lem-brava apesar do esforo:

    [...] O certo que j tinha voltado, estava em casa bem quietinha havia poucos minutos, quando o telefone tocou, ela atendeu.

    Alooo... Quede a flor que voc tirou de minha sepultura?

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 77.

    No incio, a moa pensou tratar-se de um trote, por isso riu, retrucou, debochou, mas depois a perseguio telefnica no parava. Sempre mesma hora, no mes-mo tom:

    Isso durante quinze dias, um ms, acaba por desespe-rar um santo. A famlia no queria escndalos, mas teve de queixar-se polcia. Ou a polcia estava muito ocupada em prender comunista, ou investigaes telefnicas no eram sua especialidade o fato que no se apurou nada...

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 81.

    O pai da moa tentou saber alguma coisa na compa-nhia telefnica, mas nada conseguiu. A me, desespe-rada, rezava, mandava rezar missas, plantava flores nos tmulos do lado do cemitrio onde a moa havia pas-seado naquela tarde. Nada adiantava, a voz continua-va a atormentar aquela famlia. At que o pai, no mais suportando a situao, resolveu recorrer ao espiritismo, e era grande a sua f de emergncia, mas tambm nada se esclareceu:

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    [...] Algum pede continuamente uma certa flor, e essa flor no existe mais para lhe ser dada. Voc no acha intei-ramente sem esperana?

    Mas, e a moa? Carlos, eu preveni que meu caso de flor era muito

    triste. A moa morreu no fim de alguns meses, exausta. Mas sossegue, para tudo h esperana: a voz nunca mais pediu.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 84.

    a barONEsaFoco narrativo: 3a pessoa.Tema: cobia.

    Lus, um hspede no apartamento da baronesa Ana Clementina de Soromenho Pinheiro Lobo e Figueiredo Moutinho a qual acabara de falecer, ficara incumbido de avisar do falecimento o sobrinho-neto da baronesa, Re-nato. Outros parentes j tinham sido avisados e j esta-vam no apartamento quando Lus e Renato chegaram. Todos interessados nos bens que a baronesa deixara. Nas palavras de Renato, ela era uma boa velha, mas um pouco chata...

    Eram o sonho da famlia, essas joias de um sculo mor-to, que poderiam ser convertidas em bom dinheiro, caso no se preferisse transform-las em alguma coisa de mo-derno. As joias escorriam da baronesa. Seus vestidos ofi-ciais j se tinham desvanecido h muito, mas deles restava a lembrana de corpetes bordados a ouro e guarnecidos com brilhantes fingindo gotas de orvalho. Joias de cabe-a e pescoo, de busto, cintura e brao, de dedo e orelha; joias de sapato, e quem sabe at se outras joias... Algumas tinham sido distribudas pela baronesa como presentes de casamento e batizado; outras (inexplicavelmente) de-sapareceram. Com a memria fraca, Ana Clementina era incapaz de dar relao de tudo, e s vezes se encontrava um anel rolando no cho; alm do que, famlias de trato em geral desconfiam de arrumadeiras.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 89-90.

    O sobrinho aproxima-se do corpo sem vida da mu-lher sobre a cama e percebe que alguns parentes j de-viam ter passado por ali, pois os seus braos estavam nus e os dedos vazios. Para Renato, restaram os brincos que ele tratou de arrancar das orelhas da mulher. Con-versou um pouco mais com Lus e antes de ir-se dali partilhou com honestidade os brincos que conseguira surrupiar do cadver.

    O GErENTEFoco narrativo: 3a pessoa.Tema: comportamento inslito.

    Samuel viera novo e inexperiente de Sergipe para o Rio de Janeiro. Teve um emprego modesto e estudava contabilidade at chegar a gerente de banco. Tornou- -se um cidado bem posto, de maneiras muito discre-tas e suaves. Apesar de ser considerado pelas moas um timo partido, no se casou. Interessava-se por futebol, cinema, corridas, jantares e recepes. Principalmente, recepes, onde acontecia uma coisa muito desagrad-vel: vrias mulheres, quando tinham a mo beijada por Samuel, sentiam faltar-lhes um pedao de dedo. Essa barbrie se repetiu vrias vezes com as mais diferentes senhoras, nunca senhoritas, das relaes de Samuel. O impressionante era que tudo acontecia to rpido que jamais se conseguiu provar que quem praticava o canibalismo era mesmo Samuel:

    Mas sucede uma coisa desagradvel, que aborrece muito Samuel; o rosto da senhora, que tambm sorria, contrai-se um instante, seus dentes se apertam. Ela baixa os olhos, enquanto sua mo enluvada se ergue. O tecido rendado sbito se tinge em um dos dedos. A senhora olha atnita para a mancha que se alastra. Instintivamente a mo se fecha, procurando ocultar o dedo indiscreto, que escolheu para sangrar logo este momento, vista de to-dos. Samuel a princpio no compreende, mas a realidade se lhe oferece, evidente.

    Feriu-se? Mas que horror; sua mo est ensopada de sangue! Como foi que aconteceu? Espere a, vou arranjar um pouco de iodo, algodo....

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 98.

    Os mdicos declaravam dentada humana como a causa dos acidentes com as mulheres. A polcia inves-tigava, acolhia depoimentos, mas no foi realmente provado nada contra Samuel. Depois de vinte anos de servios prestados, acabou sendo afastado do banco por determinao do seu presidente, sugerindo-lhe que tirasse umas frias em Buenos Aires. Como o caso havia sido arquivado, Samuel resolveu que iria uns tempos a So Paulo, onde ningum o conhecia, mas, depois de oito anos vivendo longe dos conhecidos do Rio, acaba tendo que retornar cidade para tratar de uns negcios de exportao com o presidente do banco. Instalado no hotel, recebe surpreendentemente um telefonema de D. Deolinda, que estava com o brao amputado por cau-sa de complicaes poca do episdio do seu dedo mordido. Havia tomado conhecimento da chegada de

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    Samuel e pretendia encontr-lo para conversarem. En-contraram-se e a mulher demonstrou interesse por Sa-muel e explicou-lhe que por essa razo havia prestado depoimento polcia, inocentando-o:

    engraado como as coisas acontecem, Samuel. Sempre achei voc um homem simptico. Gostava de suas maneiras to finas. Quando fui ao banco pela primeira vez e o conheci, disse para mim mesma: Este homem um en-canto, e ningum o descobre. Est escondido numa sala escura, no meio de mquinas. Se sasse rua... Depois, soube que voc frequentava muito a sociedade, e fiquei imaginando um encontro casual, fora do banco. Mas eu estava viva de pouco tempo, no podia ir a festas. Voc se lembra? Ora, se lembra nada. Depois, foi aquele encontro na confeitaria...

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 117.

    Saram os dois pelos bares, bebendo at no mais poder. Aquela mulher jamais teria certeza de que fora Samuel que lhe arrancara a ponta do dedo, no encontro na confeitaria, culminando na amputao de seu brao:

    Escute, Deolinda. Voc est completamente enga-nada. O que se passou naquela tarde de fato foi uma coisa horrorosa. E isso o que aconteceu depois, e de que s ago-ra eu estou sabendo, foi pior ainda. Mas como voc podia pensar um minuto apenas que eu...? absurdo, veja bem. Seria preciso que eu fosse um indivduo anormal, um des-ses casos de cinema, de romance. Eu admito que no mo-mento a dor no lhe permitisse ver bem. Mas depois que tudo passou, diga, neste momento, agora, voc acredita mesmo que eu...?

    Acredito (sua voz era indecisa, a certeza se dilua em angstia).

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 121.

    D. Deolinda soluava muito e ameaava vomitar, efeitos do exagero na bebida. Samuel descobriu o seu endereo, remexendo sua bolsa, e levou-a de txi at a sua casa, deixando-a dormindo em sua cama, e foi-se. Na manh seguinte, retornava a So Paulo par aliquidar o negcio.

    NOssa amIGaFoco narrativo: 3a pessoa.Tema: universo infantil.

    Luci Machado da Silva uma menina de trs anos que adora ser mimada e cortejada. Anda pela rua de

    uma residncia para outra, ela tem duas casas. Catarina e Pepino foram inventados s pressas s para mostrar Luci que ela precisava ser mais obediente, menos mima-da e mexedeira:

    Voc est vendo aquela bruxa ali? Catarina. Que Catarina? Uma menina de sua idade, igualzinha a voc, talvez

    at mais bonita. Muito mexedeira, mas tanto, tanto! Um dia foi brincar com o cachorrinho de vidro, a me no que-ria que ela brincasse. Catarina teimou, mexeu e quebrou o cachorrinho. Ento, de castigo, Catarina virou aquela bru-xinha preta, horrorosa. Para o resto da vida.

    [...]Pepino tem existncia mais positiva. Circula na rua

    a rua o espao entre as duas quadras, repleto de surpre-sas geralmente tarde. Vem bbedo, curvado, expondo em frases incoerentes seus problemas ntimos. Pegador de crianas.

    Vou embora para minha casa. Voc vai me levar. Mas voc mora to pertinho... E Pepino? Pepino no pega ningum. Ele camarada. Pega, sim. Eu sei.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 127.

    Para que Luci tome banho e vista-se sem reclamar, preciso dizer a ela que ter uma festa, que na verdade no acontece, mas isso exerce sobre a menina verdadei-ra fascinao. Na imaginao, a pequena pode ser tudo e nas brincadeiras que se realiza, imitando gente gran-de: a boneca a filhinha que tem dodi na barriga e vai tomar injeo, a amiga a comadre... Sua criao de partes iguais de vida e de sonhos.

    mIGUEl E sEU FUrTOFoco narrativo: 3a pessoa.Tema: a dura realidade transformada em poesia.

    Miguel vivia da simpatia coletiva, no aprendera ne-nhum ofcio, tampouco tinha profisso liberal, era sus-tentado por um rico tio contrabandista e por um irmo jogador. Quando o tio perdeu tudo, Miguel viu-se sozi-nho e s duas horas da tarde, sem almoo, provavelmen-te sem jantar, pensou at em suicdio. Ento, imaginou que ele furtaria o mar e ficaria muito rico. Era a primeira vez que se furtava o mar e Miguel permanecia indelevel-mente simptico e vivia a arar as terras verdes do mar:

    Miguel inteirou-se de tudo, calma e decorosamente, com a compostura que era mais um de seus atributos depois de

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    rico, ele que os possua tantos. Ningum cogitou de prend-lo, e como? e por qu? De alegria, todos se davam as mos, confraternizando. Miguel no se confessou derrotado. E no fora derrotado mesmo. Depositou em bancos slidos boa parte de sua fortuna, e passou a dedicar-se coleo de conchinhas, lembrana indiscreta e nostlgica de sua propriedade ocenica.

    As conchinhas da praia, que apresentamA cor das nuvens, quando nasce o dia.

    Como disse Cames.ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 138.

    CONvErsa dE vElHO COm CrIaNaFoco narrativo: 1a pessoa.Tema: amizade.

    Um senhor idoso chamado Ferreira subiu no bonde, segurando vrios pacotes e acompanhado da menina Maria de Lurdes Guimares Almeida Xavier, que trazia consigo um pacote de balas. O homem e a menina eram ntimos, mas no se soube se tratava de av e neta ou se eram simplesmente amigos:

    Ferreira... Chega aqui.Ferreira inclinou-se, ps a velha orelha, coberta de pe-

    los, junto boca lambuzada. A menina, vermelha, bai-xou os olhos com infinito pudor. Num sussurro, o segredo grave passou de boca orelha, introduziu-se em Ferreira, ocupou-o inteiro. Ele disse apenas: Ah!... Depois, retirou do estribo o guarda-chuva e alou-o altura do cordo. O bonde parou. Ferreira, Maria de Lurdes, guarda-chuva e embrulhos desceram pausadamente, atravessaram a rua, entraram pela primeira porta aberta...

    Meu pai dizia que os amigos so para as ocasies.ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 144.

    EXTraOrdINrIa CONvErsa COm Uma sENHOra dE mINHas rElaEsFoco narrativo: 1a pessoa.Temas: encantamento e beleza feminina.

    O homem subiu no nibus repleto, agarrou-se a uma argola, smbolo da moderna escravido urbana, e dei-xei que as rodas rodassem (p. 146). Uma senhora muito sensual cumprimenta-o sorrindo, mas ele no consegue lembrar-se de onde poderia conhec-la:

    Um simples vestido a, demasiado simples! na dupla funo de recolher e desvendar, pode ser ponto de

    partida de meditao infindvel e celeste, para a qual no me sentia habilitado em circunstncias to mesquinhas, tanto mais quanto qualquer olhar de mais aguda percep-o, que me sentisse inclinado a emitir, podia muito bem ser tomado como impertinente pela digna senhora que ali estava, dona de todo o meu sincero respeito.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 148-149.

    Conversaram durante o trajeto, mas o homem con-tinuava sem lembrar de onde a conhecia, tampouco lembrava-se do que haviam conversado do bairro at o centro, s pensava em como aquela senhora era fina, graciosa e respeitvel:

    [...] Mas confesso que esta lhe pareceu a conversa mais extraordinria de quantas, at o dia presente, hei tido com senhoras de minhas relaes. Desculpai-me, se no a con-siderais sequer uma conversa.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 152.

    Um EsCrITOr NasCE E mOrrEFoco narrativo: 1a pessoa.Temas: solido, vaidade, indignao, sucesso, angs-

    tia (na trajetria de um escritor).

    O escritor (no o homem) nasceu numa tarde de julho, quando escreveu na escola uma narrao de uma viagem de Turmalinas (a sua cidade) ao polo norte. A professora elogiou o menino Juquita, dizendo-lhe que ainda seria um grande escritor. Tudo o que ele conhecia de um gran-de escritor era de Rui Barbosa, homem pequenininho, de cabea enorme, inteligentssimo. Quando deixou Turma-linas, ingressando num internato, tornou-se redator da Aurora Ginasial. Mais tarde, teve os seus textos publicados na Fon-Fon!, Para Todos, Careta e Revista da Semana, s vezes, publicaes simultneas, o que o deixavam muito orgulhoso. Ganhou evidente notoriedade:

    No houve resgate, e a cidade esqueceu-me. Nunca mais voltei l. De l ningum me escreveu; pedindo para fazer uma pgina sobre o Pico do Amor ou a Fonte das Sempre-Vivas. Meus parentes espalharam-se ou morre-ram. O escritor tornou-se urbano.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 156.

    Tornou-se um homem que sofria por saber-se litera-to. Era ferozmente solitrio. No parava de escrever e era vaidoso, um artista puro:

    Eu perseguia o mito literrio, implacavelmente, mas sem f. Nunca meus poemas foram mais belos, meus

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    esprito que se decompunham... Tudo ia escurecendo... escurecendo... Mas eu andava, eu continuava, eu no queria acreditar...

    Risquei um fsforo, j sob a escurido absoluta, e na lmpada que minhas mos em concha formavam, percebi que tinha feito trinta anos. Ento, morri. Dou minha pala-vra de honra que morri, estou morto, bem morto.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 160.

    4. BIBLIOGRAFIA

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos de aprendiz. 12. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975.

    contos e crnicas mais fascinantes do que nesse tem-po de crescente solido, Solido, solido... Era s o que havia em torno a mim, dentro em mim. Era como se eu morasse numa cidade que, pouco a pouco, fosse ficando deserta. Algum tempo mais, no haveria ningum para dirigir os sinais luminosos nas esquinas, dar corda aos relgios, velocidade aos bondes, carne, po e fruta s casas. De resto, para que bondes, relgios?... J no ha-via ningum, todos se haviam mudado para as cidades em frente, ao norte, ao sul, e eu passeava lugubremen-te minha solido nas ruas que ressoavam a meu passo, ruas que outrora me eram familiares, e agora pareciam escurecer, mudar de forma, de cheiro; de tal modo esta-vam ligadas a uma poca, uma gerao, um estado de

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    1 No trecho adiante, do conto O sorvete, retirado da obra Contos de aprendiz, de Drummond, tem-se um exemplo de um recurso muito utilizado por autores como Manuel Antnio de Almeida e Machado de Assis. Que recurso esse?

    (...) e j ouo o leitor maduro, que me interrompe: Afinal este sujeito quer transformar o ato de tomar sorvete numa cena histrica? Leitor irritado, no bem isso. Peo ape-nas que te debruces sobre esta mesa a cuja roda h dois meninos do mais longe serto. Eles nunca haviam sentido na boca o frio de uma pedra de gelo, e, como todos os me-ninos de todos os pases, se travavam conhecimento com uma coisa de que s conhecessem antes a representao grfica ou oral, dela se aproximavam no raro atribuindo- -lhe um valor mgico... (p. 28).

    2 Nos Contos de aprendiz, de Drummond, h passa-gens extremamente lricas, lembrando os seus mais be-los momentos poticos. Cite um dos contos em que o lirismo chega a fazer com que o conto se torne um poe-ma em prosa.

    3 No conto Cmara e cadeia, de Contos de aprendiz, Drummond situa o momento histrico-poltico de uma determinada poca no Brasil. Qual o perodo e quem era o presidente do Pas?

    4 No conto O gerente, de Contos de aprendiz, de Drummond, por que a personagem d. Deolinda prestou depoimento polcia, inocentando Samuel?

    5 No conto Um escritor nasce e morre, de Contos de aprendiz, de Drummond, como o escritor considera que tenha iniciado sua carreira literria?

    6 Em que conto, de Contos de aprendiz, Drummond aparece como o prprio narrador da histria?a) A salvao da almab) Meu companheiroc) A baronesad) A doidae) Flor, telefone, moa

    7 Num dos contos de Contos de aprendiz, de Drum-mond, h uma referncia a um perodo de perseguies polticas no Brasil, principalmente aos comunistas. De que conto se trata?

    8 Um dos representantes a seguir no pertence mesma gerao a que pertenceu Carlos Drummond de Andrade:a) Ceclia Meirelesb) Vinicius de Moraesc) Jos Lins do Regod) Mrio de Andradee) Rachel de Queiroz

    9 No trecho a seguir, retirado do conto Um escritor nasce e morre, de Contos de aprendiz, Drummond se faz valer de uma figura de estilo que o notabilizou, no s em sua prosa, mas tambm em sua poesia. De que figu-ra se trata?

    [...] O fato de terem quase todos mais de 45 anos ape-nas adoava esse sentimento de repulsa, para introduzir nele um gro de piedade triste. Em verdade, ter mais de 45 anos era no somente absurdo, como prova de extre-ma infelicidade. At certo ponto, os acadmicos mereciam simpatia. Como, por exemplo, os dromedrios, animais es-tranhos que no podem ser responsabilizados pelo gnero de vida que lhes impe o vcio de nascena. (p. 158).

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    1. Trata-se do recurso da metalinguagem, isto , uma conversa travada entre o autor e o leitor, sobre a prpria histria que est sendo narrada.

    2. Em Miguel e seu furto, o lirismo potico est marcadamente presente, como, por exemplo, neste trecho: De-positou em bancos slidos boa parte de sua fortuna, e passou a dedicar-se coleo de conchinhas, lembrana indiscreta e nostlgica de sua propriedade ocenica. Podemos citar tambm os contos Extraordinria conversa com uma senhora de minhas relaes e Prespio.

    3. Incio da dcada de 20 do sculo XX, cujo presidente do Brasil era Epitcio Pessoa.

    4. Porque, apesar de ter sido uma das vtimas de Samuel, declarou-se atrada e apaixonada por ele.

    5. Para ele, o seu nascimento como escritor foi na escola, ao escrever uma narrao de uma viagem de Turmalinas ao polo norte.

    6. e

    7. Trata-se do conto Flor, telefone, moa.

    8. Com exceo de Mrio de Andrade, que pertenceu gerao de 1922 do Modernismo, todos os outros perten-ceram gerao de 1930, ou na prosa ou na poesia.

    9. A figura de linguagem evidente a ironia.