Cardoso,Ruth-cultura Brasileira Uma Nocao Ambigua

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  • CULTURA BRASILEIRA: UMA NOAO AMBfGUA

    Ruth C. L. Cardoso *

    As referncias laudatrias ou crticas a aspectos trpicos de uma pretensa "cultura brasileira" so to freqentes quanto ambguas. Re-metem vagamente s criaes populares que ficaram preservadas das influncias cosmopolitas e servem como smbolos de nosso carter na-cional. Entretanto, no simples esta tarefa de sobrepor caractersti-cas culturais a fronteiras nacionais.

    Sempre que os antroplogos procuraram qualificar culturas es-pecficas definindo seus limites, enfrentaram problemas dif(ceis. Entre a reao de um conjunto abstrato de costumes, valores e comportamen-tos herdados e as realidades histricas com que se deparam os investi-gadores, esto todas as sobreposies, semelhanas e diferenas que apa-gam limites e testemunham contatos. S uma sociedade completamen-

    * Departamento de Cincias Sociais, Faculdade de Filosofia, letras e Cin-cias Humanas - U.S.P.

    Cadernos CERU n9 17 I set. 82 15

  • te isolada e homognea poderia ostentar uma cultura exclusivamente sua e inteiramente no diferenciada.

    Por essa razo, o conceito de cultura, mesmo quando aplicado s sociedades primitivas, descreve uma realidade no homognea. Os antroplogos comeam a dar uma ateno maior para a convivncia de grupos que, no interior de uma mesma sociedade, mantm diferentes identidades cult4rais. Leach1 , em seu livro sobre Burma, j criticava a definio tradicional de cultura porque supunha um sistema harmni-co e integrado de valores e prticas sociais. Interessado em recuperar a dinmica social e o processo contnuo de refazer as normas e os sig-nificados, renova o conceito de ritual dando-lhe um novo contedo. Retirando a conotao de repetitividade sempre associada prtica ritual, prope uma relao de novo tipo entre o conjunto das tradi-es e os ~mportamentos concretos. A vida social vista como um jogo (ritual) que tem regras prescritas mas que, em cada partida, per-mite novos lances e novas emoes.

    A cultura, nesta concepo, sem dvida um sistema mas no um conjunto integrado e constitu do. Pelo contrrio, est sempre sendo construda.

    A contribuio essencial do trabalho de Leach sobre os sistemas pol ticos est na demonstrao de que, dentro dos limites tradicionais de uma cultura, podemos encontrar diferentes sistemas de comunica-o que se sobrepem e competem. Deixando as terras altas de Burma e olhando em nosso volta, encontramos tambm situaes que sero melhor explicadas se recorrermos a um conceito de cultura mais ma-level e menos esttico.

    Tratando com sociedades identificadas a Estados nacionais e divididas, em classes, a antropologia tem esbarrado em crescentes difi-

    culdad~~ quando pretende delimitar grupos sociais e caractersticas culturais. Entretanto, se para a cincia esta falta de preciso incomo-da, para o discurso poltiCO ela , muitas vezes, vantajosa. E, na ver-dade, encontramos com freqncia referncias positivas ou negativas

    1. Leach, E. - Poltical Systems of Highland Burma.

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  • cultura brasileira, ou aos valores prprios de nosso povo, sem que a falta de clareza desoriente os interlocutores.

    No sabemos se a cultura popular a cultura de todo o povo e se sinnimo de cultura brasileira. E o que fazer com as diferenas entre o sul e o norte ou, ainda, por onde passar a linha que demarca o territ-rio cultural das elites e do povo?

    De qualquer modo, se estas noes no so precisas, devem trans-mitir alguma (ou algumas) significao, pois no ser s por capricho que nos reunimos para discut-Ias.

    Certamente h uma razo para que, de tempos em tempos, o interesse pela produo do povo retome impulso e ganhe espao nas discusses acadmicas. Em geral, as revitalizaes dos temas nacionais e populares esto associadas a perspectivas pol iticas e cumprem a fun-o de legitimar alguma forma de unificao ou disjuno simblica en-tre o povo e as elites.

    As produes culturais de origem popular so fontes de smbolos diferenciadores que podem dar especificidade nao e unidade entre as classes que a constituem. Entretanto, preciso lembrar que a lingua-gem dos smbolos no unvoca e, por isso mesmo, permite combina-es e composies diversas e contraditrias.

    Bem sabemos a variedade de conotaes que podem ser atribu i-das aos smbolos nacionais e as diferentes formas de valorizar os costu-mes populares. Peter Fry, em seu artigo "Feijoada e soul food"2, nos d um timo exemplo da composio de diferentes linguagens utilizan-do patrimnios comuns. Mostra que no Brasil a feijoada, prato criado pelos negros, smbolo nacional incorporado pela elite branca enquan-to, nos E.E.U.U., a mesma receita produz um "soul food", isto , co-mida diferenciadora dos negros. Aqui, expresso de todo o povo e l apoio para uma identidade grupal que denuncia a discriminao.

    I: tambm um esforo de criao de uma linguagem prpria que foi feito pela elite nordestina, desde o comeo deste sculo quando, valorizando as manifestaes populares regionais, procuram identificar

    2. Fry, P. - Feijoada e Soul Food - Ensaios de opinio 2 + 2.

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    nelas o esprito da brasilidade. Este grupo dominante regional desco-briu e divulgou as falas populares tornando-se, com isto, guardi de um patrimnio cultural que devia representar a nao, dando-lhe carter e especificidade3 Como diz Mauro B. Almeida - "apesar de toda a evi-dente manipulao, o resultado lquido dessa assimilao, pelas elites locais, de 'idias do lugar', a fim de formular seus prprios interesses, foi uma visibilidade cultural do 'povo' em escala nacional. Falar do po-vo, ainda que seja falando por ele, coloca em cena um novo e legtimo ator que no pode ser posto de lado porque parte constituinte da na-o ( ... to ponto a reter, ao pensar como a regio e a nao falam do 'povo', "que falar de um outro, e mesmo falar a linguagem dele, tradu-zir uma linguagem noutra, no jamais um ato puramente cognitivo, quando h uma separao prvia entre uns e outros. e antes um ato que envolve poder. Nas sociedades de classe, diferenas entre 'ns' e 'outros' so marcadas por diferenas de poder ( ... ) O controle dessas fronteiras, desses espaos de manifestaes da palavra do outro o controle dos meios de produo e circulao de signos, dos espaos legais de mani-festao da palavra, dos repertrios de smbolos j acumulados na expe-rincia social."4

    J vemos melhor porque tantas vezes e tantos grupos falaram e falam em nome do povo e defendem a pureza da cultura brasileira. Pa-ra tomar apenas um outro exemplo, no muito distante, lembramos como o Manifesto do Centro Popular de Cultura, redigido em maro de 1962, trata da relao entre arte popular e arte erudita e afirma seu pa-pei como grupo dirigente do processo de liberao popular: "Tanto a arte do povo, em sua ingnua inconscincia, quanto a arte popular co-mo arte da distrao vital, no podem ser aceitas pelo Centro Popular de Cultura como mtodos vlidos de comunicao com as massas, pois tais forn:tas artsticas expressam o povo apenas em suas manifestaes fenomnicas e no em sua essncia ( ... ) A prova do carter alienado dessas formas artsticas destinadas ao povo est em que no assumem

    3. Barbosa de Almeida, M. - "Linguagem Regional e Fala Popular". Revis ta de Cincias Sociais, v. 8, n9 1 e 2,1977.

    4. Idem, idem, p. 175-6.

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  • posio radical diante das condies de sua prpria existncia ( ... ) Nes-se conformismo revela-se sua negao do povo e sua convivncia com o ponto de vista daqueles cujo interesse dividir em partes a sociedade (. .. ) Os artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura escolheram para si outro caminho, o da arte popular revolucionria. Para ns tudo come-a pela essncia do povo e entendemos que esta essncia s pode ser vi-venciada pelo artista quando ele se defronta a fundo com o fato nu da posse do poder pela classe dirigente (. .. )5.

    Este grupo, manifestamente aceita que tomar o partido do povo assumir uma postura poltica mas definem uma nica via para faz-lo. Existe uma essncia para ser captada e s quem a alcana entra no reino dos bem-aventurados defensores dos interesses nacionais e popu-lares.

    So os representantes do povo e falando em seu nome vo retir-lo de sua passividade "inconsciente". Outros discursos ficam imediata-mente desqualificados assim como as manifestaes da vontade popular, pois a falta de gosto e a ingenuidade fazem com que as massas no re-conheam seus interesses e as virtudes de suas prprias criaes.

    O resultado desta tomada de posio estabelecer uma determi-nada (e positiva) relao entre um setor da elite intelectual e poltica do pas e as classes subalternas. Estabeleceu-se o contorno das alianas e das excluses, pois todos aque!es que divergirem sero tidos por "alie-nados", se fizerem parte do povo, e "alienantes" se falarem em nome de outros grupos de elite ..

    * Chegamos a um ponto importante: por diversos caminhos, tanto os discursos pol ticos quanto os trabalhos acadmicos (se que pode-mos distingui-los) qualificam, com freqncia, aspectos positivos ou ne-gativos da cultura nacional-popular. A avaliao pode ser explcita ou disfarada por uma linguagem tcnica que recorre a termos tais como: alienao, autenticidade ou tradicionalismo (que se ope ao no aliena-

    5. Estevam, C. - A questo da cultura popular - Tempo brasileiro, parte 2, p. 91 e 92.

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    do, inautntico ou moderno), mas que mal encobrem, critrios exterio-res anlise cultural. So exteriores porque no so postos em causa, no so objeto de reflexo enquanto se est estudando os aspectos cul-turais que eles qualificam de antemo. Usando tais critrios, quer os discursos polticos, quer os acadmicos, se transformam em discursos fechados que pouco acrescentam ao conhecimento e ao. Essas an-lises classificatrias perdem, tanto a dinmica real da sociedade, quanto as ambigidades inerentes s linguagens simblicas. Em geral, os crit-rios classificatrios derivam de uma teoria simplista da relao entre estrutura scio-econmica e cultura.

    ~ imprescind vel estabelecer uma relao entre o sistema produ-tivo e o simblico, mas tambm fundamental que esta relao no se-ja mecnica. O trabalho que relaciona manifestaes culturais e posi-es na estrutura scio-econmica deve ser feito, sem que se perca de vista as contradies da sociedade e a ambigidade dos smbolos que as expressam.

    Algumas interpretaes das mudanas ocorridas nos pa(ses de-pendentes, que passaram por rpidos processos de industrializao e urbanizao, colocam como contrapartida destas transformaes o poder quase absoluto da ideologia das classes dominantes sobre as ma-nifestaes dos dominados, condenadas a desaparecer. Por outro ca-minho, recuperamos a passividade das massas, incapazes seno de fa-zer sobreviver como fantasmas algumas formas expressivas de sua cul-tura, ameaadas constantemente, pelos acrscimos esprios de uma "cultura cosmopolita".

    No seria o caso de classificar menos e questionar mais a corres-pondncia entre processos econmicos e paradigmas culturais? E, es-pecialmef,lte no esquecer que todos os movimentos das sociedades ge-ram contradies e abrem mltiplos caminhos que a histria vai trilhan-do e fechando ao mesmo tempo.

    Voltando ao nosso tema inicial - a cultura brasileira - sabemos que indispensvel, para recoloc-Io, considerar as condies do de-senvolvimento brasileiro nestes ltimos anos. Os meios de comunica-o de massa tm uma atuao to poderosa que, praticamente, no'

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  • encontramos mais grupos sociais estranhos a sua influncia. Entretan-to, bom estar atento s diferenas culturais mesmo constatando o imenso poder homogeneizador das ondas transmitidas via EMBRATEL.

    Se nos lembrarmos de Leach e deixarmos de lado a noo de cu 1-tura como um todo harmnico, fica mais fcil interpretar este duplo movimento de comunicao e isolamento que faz eco s transmisses massivas e igualizadoras e s experincias particularizantes de grupos em diferentes posies sociais.

    Estas consideraes deveriam nos levar a evitar as oposies sim-plificadoras que estabelecem como resultado da indstria cultural a im-posio indesejada do cosmopolitismo e o desaparecimento das formas autenticamente nacionais.

    Mesmo quando esta formulao vem embutida numa anlise dita poltica, porque denuncia o uso (ou abuso) do poder pela classe domi-nante que distila sua ideologia atravs dos seus aparelhos de comunica-o, preciso desconfiar desta oposio simples entre imposio ideol-gica e a expresso cultural verdadeira, nascida da convivncia imediata.

    Tem razo Althusser quando mostra que os aparelhos ideolgicos das classes dominantes incluem, desde as emisses controladas pelo Es-tado, at a fam(lja que, supostamente, o dom(nio absoluto do priva-do. Exagera, entretanto, quando enfatiza exclusivamente o lado coerci-tivo desses aparelhos e desconsidera os vrios lugares, a partir dos quais se fala e se responde numa sociedade to complexa quanto a nossa. Se recorrermos a uma viso menos rgida da sociedade e aceitarmos sua fragmentao relativa, poderemos acreditar numa eficcia menor (ain-da que grande) dos meios de comunicao e poderemos ouvir (ainda que sem grande fora) vozes resistentes. E esta distino entre mensa-gens de massa e manifestaes populares no deve ser entendida como uma nova oposio que, com outro nome, entraria na mesma lista das anteriores:

    cosmopolitismo x nacionalismo ideologia x expresso cultural autntica

    falso x autntico alienado x no alienado.

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    J: a passividade do pblico que est sendo posta em causa para que possamos constatar que as "ideologias cosmopolitas alienadas" no se impem num campo virgem, mas so incorporadas de modo diversificado e conflitivo. S por este caminho poderemos ter esperan-a de que Gramsci tenha razo quando admite que os dominados pos-sam impor sua hegemonia cultural antes mesmo de chegarem ao poder. Se a ideologia dominante toda-poderosa e o povo "ingnt'o e incons-ciente", como queria o manifesto do Centro Popular de Cultura, a histria chegou ao seu fim com a ditadura dos meios de comunicao de masS: Acredito ainda que hajam falhas, no s no terreno rochoso da ideorOgia, mas tambm no mecanismo produtivo que freqentemen-te necessita ser azeitado.

    E a cultura brasileira? Guarda suas especificidades, resistindo aos enlatados da indstria cultural? Parece que sim, mas para v-Ia preci-so que no procuremos sempre a mesma face, mas justamente o cami-nho de sua transformao. O que vamos chamar de "nacional" o mo-do especfico pelo qual vivemos as imposies do progresso e marcamos nossa identidade, mesmo quando convivemos com influncias externas.

    Este esforo de explorar a produo simblica popular, justamen-te naquilo que ela tem de dinmico, cria um tecido variado, dentro do qual se pode distinguir alguma lgica. O nosso passado est presente, mais como um cdigo que trabalha e classifica novas informaes do que como produtos prontos e acabados que devem ser preservados. So, pois, as chaves, para decifrar o cdigo, que nos interessam.

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