CARDIM de CARVALHO. Equilíbrio Fiscal e Política Econômica Keynesiana.

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7 Carvalho, F. J.C. de. Equilíbrio fiscal e política econômica keynesiana Equilíbrio fiscal e política econômica keynesiana Fernando J. Cardim de Carvalho * Resumo: Críticos conservadores do keynesianismo sempre focalizaram suas restrições na suposta carta branca que Keynes teria dado ao estado para aban- donar qualquer regra de disciplina sobre seus gastos, despreocupando-se com os possíveis impactos de persistentes déficits fiscais. Keynes realmente centrou suas preocupações na geração de níveis de demanda agregada que pudessem levar empresários a decidir oferecer o volume de empregos correspondente ao pleno emprego da força de trabalho da economia. Sua estratégia de política macroeconômica, porém, era muito mais sutil do que a simples aprovação da realização de déficits fiscais. A visão de Keynes é apoiada, na verdade, em dois pilares: o primeiro, de que uma política de gastos expansionista não é necessa- riamente deficitária porque o próprio crescimento da renda leva a um aumento da arrecadação de impostos. Alem disso, o crescimento da renda leva também a um crescimento da poupança e, com ela, ao aumento da demanda por títulos, inclusive os de dívida pública, financiando-se assim de forma não inflacionária o déficit restante. O segundo pilar é o efeito sobre expectativas empresariais do ativismo estatal que sinalizaria a manutenção de elevada demanda agregada e estimularia investimentos privados que poderiam mesmo tornar desnecessária a realização de gastos públicos mais amplos. Déficits fiscais emergeriam apenas quando esses impactos sobre expectativas, por alguma razão, não se materializassem. Palavras-chave: Keynes, Macroeconomia Keynesiana, Política Fiscal. Abstract: Conservative critics of Keynesianism always centered their critiques on the comfort Keynes supposedly gave to irresponsible governments, justifying the persistent occurrence of fiscal deficits. Keynes was in fact concerned with the inability of entrepreneurial economies to spontaneously generate adequate levels of aggregate demand. His policy strategy, however, was much subtler than that described by critics. The strategy relied on two pillars. The first was that expansionary fiscal policy operated through increasing public spending, not increasing deficits. Increased spending would expand income and, as a result, increase tax revenues. Besides, increasing income means also increasing savings and increasing demand for securities, including those issued by governments to finance residual deficits. The second pillar of his policy strategy was that the existence of activist governments, concerned with maintaining full employment would positively impact businessmen’s expectations, inducing them to increase private investments, reducing thereby the need for actual fiscal spending. Deficits would result only in situations where this effect on expectations, for some reason, did not materialize. * Professor Titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O apoio do CNPq e da Faperj (projeto Pronex) são aqui reconhecidos.

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CARDIM DE CARVALHO. Equilíbrio fiscal e política econômica keynesiana.

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  • 7Carvalho, F. J.C. de. Equilbrio fiscal e poltica econmica keynesiana

    Equilbrio fiscal e poltica econmica keynesiana

    Fernando J. Cardim de Carvalho*

    Resumo: Crticos conservadores do keynesianismo sempre focalizaram suasrestries na suposta carta branca que Keynes teria dado ao estado para aban-donar qualquer regra de disciplina sobre seus gastos, despreocupando-se comos possveis impactos de persistentes dficits fiscais. Keynes realmente centrousuas preocupaes na gerao de nveis de demanda agregada que pudessemlevar empresrios a decidir oferecer o volume de empregos correspondenteao pleno emprego da fora de trabalho da economia. Sua estratgia de polticamacroeconmica, porm, era muito mais sutil do que a simples aprovao darealizao de dficits fiscais. A viso de Keynes apoiada, na verdade, em doispilares: o primeiro, de que uma poltica de gastos expansionista no necessa-riamente deficitria porque o prprio crescimento da renda leva a um aumentoda arrecadao de impostos. Alem disso, o crescimento da renda leva tambm aum crescimento da poupana e, com ela, ao aumento da demanda por ttulos,inclusive os de dvida pblica, financiando-se assim de forma no inflacionria odficit restante. O segundo pilar o efeito sobre expectativas empresariais do ativismoestatal que sinalizaria a manuteno de elevada demanda agregada e estimulariainvestimentos privados que poderiam mesmo tornar desnecessria a realizaode gastos pblicos mais amplos. Dficits fiscais emergeriam apenas quando essesimpactos sobre expectativas, por alguma razo, no se materializassem.

    Palavras-chave: Keynes, Macroeconomia Keynesiana, Poltica Fiscal.

    Abstract: Conservative critics of Keynesianism always centered their critiqueson the comfort Keynes supposedly gave to irresponsible governments, justifyingthe persistent occurrence of fiscal deficits. Keynes was in fact concerned withthe inability of entrepreneurial economies to spontaneously generate adequatelevels of aggregate demand. His policy strategy, however, was much subtlerthan that described by critics. The strategy relied on two pillars. The first wasthat expansionary fiscal policy operated through increasing public spending,not increasing deficits. Increased spending would expand income and, as aresult, increase tax revenues. Besides, increasing income means also increasingsavings and increasing demand for securities, including those issued bygovernments to finance residual deficits. The second pillar of his policy strategywas that the existence of activist governments, concerned with maintaining fullemployment would positively impact businessmens expectations, inducing themto increase private investments, reducing thereby the need for actual fiscalspending. Deficits would result only in situations where this effect on expectations,for some reason, did not materialize.

    * Professor Titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Oapoio do CNPq e da Faperj (projeto Pronex) so aqui reconhecidos.

  • 8 Revista Anlise Econmica, Porto Alegre, ano 26, n. 50, p. 7-25, setembro de 2008.

    Keywords: Keynes, Keynesian Macroeconomics, Fiscal Policy.

    JEL Classification: E12; H30.

    1 IntroduoA utilizao do termo keynesianismo como identificador de uma

    certa doutrina com relao ao papel do estado na economia h muitoultrapassou as fronteiras do mundo acadmico para ser incorporadoao vocabulrio cotidiano de polticos, jornalistas, empresrios, etc.Crculos acadmicos, no entanto, identificam como cerne do keyne-sianismo algo diferente do que pensam jornalistas e lderes polticos.Para os primeiros, o keynesianismo (ou modelo keynesiano) umaviso de economia que se apia na idia de preos (e salrios) rgidos.Modelos keynesianos, portanto, seriam aqueles que descrevem aforma pela qual uma economia de mercado se ajusta a choquesatravs de mudanas de quantidades ao invs de mudanas depreos, como as preconizadas pelas chamadas correntes clssicas(como os monetaristas de Milton Friedman ou, ainda mais notada-mente, os novos clssicos de Robert Lucas).

    O debate poltico-jornalstico menos sutil. De fato, nas suasformas mais vulgares, o keynesianismo identificado com uma ati-tude de completa permissividade com relao interveno doEstado na economia. O keynesianismo daria ao Estado, virtualmente,uma permisso para matar, como nas novelas do agente 007. Estatizaode empresas, elevados gastos pblicos, elevados dficits pblicos (oque no a mesma coisa), excesso de regulao da atividade privada,estados de bem-estar excessivamente generosos, etc, seriam todosmanifestaes especficas de uma obscura filosofia subversiva, o keyne-sianismo, que se oporia s virtudes da ideologia liberal, que enfatizariao esforo e a responsabilidade individuais, a auto-realizao, a auste-ridade, a disciplina, etc. Alguns dos crticos mais precoces e maisinsistentes do keynesianismo no se prenderam efetivamente a idi-as ou proposies especificas de Keynes ou de seus seguidores. Paraaqueles, a perversidade do keynesianismo estaria na legitimao daao do Estado na economia, da idia de interveno. Assim, umproeminente economista conservador escreveu:

    Em todos os tpicos ... a influncia do keynesianismo sobre as polticaspblicas foi lamentvel. Polticas pblicas identificaram incorretamente abarreira ao progresso econmico como sendo uma demanda agregadainadequada ou mal-estruturada, quando as prprias polticas definidas

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    para resolver essa inadequao impuseram frequentemente impactos ad-versos sobre os cursos e recompensas de prover os insumos de que ocrescimento econmico depende. A perseguio dessas polticas, alemdisso, foi associada a uma presena sempre crescente do governo na eco-nomia, uma preseno que muito frequentemente ocultou ou distorceu ossinais de mercado e prejudicou as funes do mercado (TURE, 1985, p. 52).

    Mesmo crticos menos ambiciosos (ou, talvez, melhor informados)tenderam a identificar o keynesianismo com uma proposio acimade todas as outras: a legitimidade do uso constante de dficits fiscaiscomo arma de promoo da prosperidade econmica. Para essescomentaristas, a essncia da poltica econmica keynesiana estariana despreocupao com a gerao continuada de dficits fiscais e,assim, na corroso da noo de que a indisciplina fiscal possa terqualquer efeito danoso sobre uma economia de mercado.

    uma curiosidade interessante da histria das idias contem-porneas verificar como ambas as noes de keynesianismo referidas,tanto a acadmica quanto a poltico-jornalstica, esto distantes doseu verdadeiro objeto. A crtica da identificao da abordagem deKeynes com a hiptese de rigidez de preos j foi feita de modoconclusivo na dcada dos 60. Apenas o amplo desconhecimentode grande parcela de economistas da histria de sua prpria disci-plina mantm viva essa identificao. Mais compreensvel, por outrolado, a impropriedade da caracterizao poltico-jornalstica, por serdifundida entre grupos que no tm, geralmente, qualquer familia-ridade com a obra de Keynes ou um conhecimento mais adequadoda evoluo da teoria e poltica macroeconmicas. No que se se-gue, apenas nos interessa esclarecer do que trata a poltica econmicakeynesiana.1 Keynes, sem dvida, acreditava na possibilidade doEstado cumprir um papel construtivo na promoo da prosperidadede economias de mercado. A sua abordagem da operao de umaeconomia capitalista, no entanto, era muito mais sofisticada e sutil doque a maioria de seus comentaristas (crticos ou simpticos) pareceter percebido. Em particular, poucos perceberam que Keynes tratade gastos pblicos, ao invs de dficits pblicos, como instrumentode poltica macroeconmica. Poucos perceberam tambm suas pre-ocupaes, por um lado, com o estado da economia quando gastosfossem realizados (se em pleno emprego ou com desemprego e capa-cidade ociosa), ou com a capacidade dos mercados financeiros definanciar esses mesmos gastos pblicos. O esclarecimento desses

    1 A critica dos modelos chamados de keynesianos, baseados na hiptese de preos rgidos facilmente encontrvel. Pioneiros so os trabalhos de Leijonhufvud (1968) e Davidson(1972).

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    aspectos e da noo de poltica econmica keynesiana o intuitodeste trabalho. Para tanto, alm desta introduo, partiremos, naseo seguinte, da caracterizao do problema a ser resolvido pelainterveno poltica, na viso de Keynes, qual seja, a possibilidade deque a demanda agregada seja insuficiente para induzir a ocupaoda capacidade produtiva existente e a promoo do pleno emprego.Na seo 3 mostraremos como operaria a poltica fiscal na promooda prosperidade econmica. A seo 4 explora os limites e oscondicionantes da poltica fiscal. A seo 5 conclui o artigo.

    2 O ProblemaNo ltimo captulo de sua obra mais importante, A Teoria Geral

    do Emprego, Juros e Moeda (de agora em diante TG), Keynes afirmaque h dois problemas centrais no capitalismo moderno. Um deles a excessiva concentrao de renda e riqueza que separa as classessociais. A concentrao excessiva contribua para a dificuldade emsustentar o pleno emprego nas economias modernas, porque osricos, que se beneficiavam da concentrao, consumiam relativa-mente pouco em proporo sua renda, enquanto os pobres, queconsumiriam proporcionalmente mais, eram privados dessa possi-bilidade. O resultado era uma demanda total por bens de consumomais fraca, que desestimulava a produo de bens de consumo e,indiretamente, a de bens de investimento. Alem disso, a concentraode renda excessiva solapava a legitimidade do capitalismo, pois criavagrupos sociais que usufruam da riqueza social sem terem contribudopara sua criao.2 A soluo para esse problema, argumentava Keynes,repousava principalmente na promoo de mudanas institucionais,como a introduo de impostos progressivos, o imposto sobre capitale, especialmente, sobre heranas, etc. A poltica econmica poderiaajudar, mas no era particularmente potente para esse fim.3

    O outro problema do capitalismo moderno era sua incapaci-dade de gerar continuamente o nvel de demanda agregada capazde alcanar ou, mais adequadamente, de sustentar o pleno empregoe a plena utilizao da capacidade produtiva existente. Foi exatamentepara explicar porque emergiam deficincias de demanda agregadaque a GT foi escrita. Para Keynes, o combate ao desemprego exigiriauma postura ativa do Estado. Apenas a disposio do Estado emintervir sempre que houvesse a perspectiva de insuficincia de demanda

    2 Keynes j manifestava preocupao com a legitimidade da ordem social capitalista em TheEconomic Consequences of Peace, Keynes (1920).

    3 Na verdade, a melhor contribuio da poltica macroeconmica ao bem estar social seriajustamente sustentar o pleno emprego. Veja, por exemplo, Carvalho (2006).

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    agregada poderia garantir a sustentao do pleno emprego. nestecontexto que emerge uma estratgia de poltica econmica caracte-risticamente keynesiana.

    importante ressaltar a novidade que esta abordagem constituaquando concebida, nos anos 30 do sculo passado. O grande debateem torno s possibilidades de interveno do Estado na economiaat ento voltava-se para a capacidade que governos teriam (ouno) de substituir os mercados privados na sua funo alocativa.Esse era o debate conhecido como o do clculo econmico em eco-nomias socialistas, que reuniu, em diferentes perodos, economistascomo von Mises, Barone, Hayek, Lange, dentre outros. O ponto cen-tral desse debate era a capacidade de outros mecanismos, que noo mercado privado, organizarem de modo eficiente a atividade pro-dutiva. A questo central era a de se um ministrio da produoem uma economia socialista poderia gerar e processar o mesmovolume de informao que os mercados o fazem numa economiacapitalista. Este debate levou a um quase-consenso em torno da idiade que, embora fosse concebvel teoricamente algum mecanismoque reunisse todas as informaes necessrias para a deciso eco-nmica eficiente, na prtica no haveria qualquer possibilidade realde desenvolv-lo. Deste modo, estabelecia-se a concluso de queera melhor permitir que mercados operassem da forma mais livrepossvel (ressalvados, naturalmente, os casos de falhas de mercado)do que abrir espao para a interveno do Estado.

    O problema de Keynes era completamente diferente. Em suasprprias palavras:

    Se nossos controles centrais tiverem sucesso em estabelecer um volumede produto agregado que corresponda ao pleno emprego tanto quantopraticvel, a teoria clssica volta a valer a partir desse ponto. Se supomosque o volume de produto dado, isto , determinado por foras que nofazem parte do esquema clssico de pensamento, ento no haver objeoa ser levantada contra a anlise clssica da maneira em que o auto-inte-resse privado determinar em particular o que ser produzido, em quepropores os fatores de produo sero combinados para produzi-lo, e comoo valor do produto final ser distribudo entre eles. [...] na determinaodo volume, no da direo, do emprego corrente que o sistema existenteentrou em colapso (KEYNES, 1964, p. 378-9).4

    4 A interveno direta no sistema produtivo, portanto, essencialmente estranha ao pensa-mento de Keynes, que abordava o problema de forma bastante pragmtica. Como em suasdiscusses sobre o problema do carvo na Inglaterra dos anos 20, Keynes no alimentavaposies apriorsticas a respeito da nacionalizao de empresas. Seu programa de polticaeconmica certamente nada tem a ver com iniciativas amplas de estatizao ou naciona-lizao de empresas. Veja, para tanto, Carvalho (1997).

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    Porque uma economia moderna no seria capaz de utilizar ple-namente seus recursos disponveis? Certamente no seria porquetodas as necessidades humanas estivessem satisfeitas. O desempregoque preocupava Keynes no era o concebido por economistas comoLucas, para quem ele nada mais representa que uma antecipaopara o presente do lazer que os trabalhadores estariam usufruindo nofuturo. Os desempregados de Lucas (e de Milton Friedman) abando-nam os seus empregos porque preferem o lazer. Os desempregados deKeynes so demitidos pelos empregadores e para enfatizar este as-pecto, Keynes denominou o fenmeno de desemprego involuntrio.5Se h necessidades a serem satisfeitas, porque recursos so deixa-dos ociosos?

    A resposta de Keynes relativamente simples: porque uma eco-nomia empresarial (ou economia monetria, ambos os termos sendopreferidos por Keynes expresso economia capitalista) no se orga-niza para satisfazer necessidades mas para atender demandas de mer-cado, isto demandas que se apiam em poder de compra. Umaeconomia empresarial, como a denominao sugere, organizadapor empresrios, que criam empresas para reunir fatores de produ-o e desempenhar a atividade produtiva. Estas empresas, por suavez, no existem para satisfazer as demandas de consumo de seusproprietrios. Elas so arranjos criados para obter lucros, mvel ecausa de sua existncia. Empresas so mquinas de ampliao deriqueza, absorvendo valores (de insumos) para produzir valores (deprodutos) ainda maiores.6

    A produo de uma empresa s tem utilidade para ela, no en-tanto, quando vendida e, assim, transformada em dinheiro, de modo apermitir empresa reiniciar o processo de produo de riquezas. Umafirma tecnicamente eficiente, mas incapaz de colocar no mercado suaproduo a preos remuneradores ir falir tanto quanto uma empresaincapaz de produzir de uma maneira eficiente. O critrio para mediro sucesso de uma empresa, portanto, sua capacidade de obter lucroe este, por sua vez, depende da capacidade do empresrio prever,o mais precisamente possvel, que produtos sero demandados pelomercado de modo a produzir aquilo que vendvel, no o que redundante ou indesejado por compradores. O critrio essencial asatisfao da demanda solvvel, isto , o desejo por um bem, apoiado

    5 Sobre a taxa natural de desemprego, veja, por exemplo, Tobin (1987, p. 315-6) e (2003, p.153-5).

    6 Sobre as caractersticas definidoras de uma economia monetria, veja Carvalho (1992,captulo 3).

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    na disponibilidade de poder de compra (isto , de meios de paga-mento com que pagar pelo produto).

    Nestes termos, em uma economia empresarial o nvel de ativi-dades depender da expectativa de demanda dos empresrios. Seessa expectativa favorvel, empresrios empregaro trabalhadorespara produzir e podero, mesmo, adquirir novos equipamentos paraampliar a capacidade produtiva se a expectativa de demanda futurafor forte (e durvel) o suficiente para justificar a deciso de investir.

    Esse arranjo produtivo mostrou-se extremamente poderoso. Nosseus melhores perodos, economias empresariais exibem uma capa-cidade de crescimento e de inovao inigualvel por qualquer outraforma de organizao da produo, como a disputa entre economiascentralizadas e economias capitalistas no sculo XX demonstrou. Noentanto, economias empresariais tm tambm um calcanhar deAquiles. Elas liberam as energias dos empreendedores para perseguirseus objetivos de lucro e, com isso, promoverem a expanso dariqueza social. Esses mesmos empreendedores, porm, devem su-portar as perdas que resultem dos erros de deciso que porventuracometerem. Frente incerteza das demandas futuras, o empresrioque for capaz de prever com sucesso a evoluo das demandas dosclientes ser bem recompensado, mas aqueles que no forem igual-mente capazes (ou afortunados) pagaro o preo da perda e, talvez,da falncia. No momento da deciso, o futuro incerto, no h comosaber quem ser e quem no ser bem sucedido. Aqueles indivduosdotados de animal spirits se arriscaro em novos empreendimentos,mas os tmidos e cautelosos preferiro manter sua riqueza em formasmais seguras. Dentre essas formas mais seguras, est a deteno deativos lquidos e, em especial, a moeda. aqui que reside o problemada demanda efetiva, segundo Keynes. Os empresrios que se arriscam,criam empregos e riquezas para a sociedade. Os que se defendemna demanda de ativos lquidos, contribuem para a reduo doemprego e para a recesso econmica. Do mesmo modo, quandoconsumidores temerosos do futuro abstm-se de consumir, retendomoeda, eles contribuem para o mesmo problema. Quando se demandaativos lquidos como a moeda, nega-se emprego aos trabalhadores quepoderiam estar produzindo as outras formas de riqueza. Nos termosde Keynes, quando a demanda se volta para itens no-reprodutveis(pelo emprego de trabalho) ao invs de bens e servios, a demandaagregada se contrai e o desemprego se impe. Se empresrios es-peram que a demanda futura ser insuficiente para absorver suaproduo, eles simplesmente no produziro e os fatores de produocorrespondentes ficaro desempregados.

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    neste quadro que se define a interveno do Estado na viso deKeynes. Economias empresariais dependem da disposio de empre-srios de produzir (e investir). Esta disposio diminuir sempre quehouver razes para temer-se que a demanda agregada ser insu-ficiente para absorver a produo ou quando o futuro se tornar exces-sivamente opaco para permitir que se faa previses de demandacom algum grau de confiana. Nesse caso, ao invs de converterseus recursos monetrios em fatores de produo, eles preferiroret-los na forma de moeda. O temor da demanda futura reduzidareduz o emprego no presente e os empresrios vero suas pioresexpectativas confirmadas. De acordo com Keynes, isto ocorre porquese trata de uma economia monetria: uma economia em que a moeda uma forma de riqueza, alternativa a outros ativos, inclusive bensde capital e fatores de produo. Quando o rendimento esperadodestes ltimos no for adequado ou for muito incerto, muitos empre-srios buscaro refgio na acumulao de dinheiro, e o emprego e onvel de atividades declinaro.

    neste sentido que o problema do capitalismo, segundo Keynes,no a alocao, mas a mobilizao de recursos. Aquela parcela dosfatores de produo que for empregada, pode estar sendo empregadada melhor forma possvel. com os fatores ociosos que se preocupouKeynes. A poltica econmica keynesiana no uma poltica alocativa,mas uma poltica de mobilizao, uma poltica macroeconmica,portanto, visando a administrar a demanda agregada de modo a mant-la no nvel adequado sustentao do pleno emprego. Idealmente,a poltica econmica keynesiana seria aquela que estimularia empre-srios a utilizar os fatores de produo disponveis, deixando intei-ramente a seu cargo a deciso de onde empreg-los.7

    Grosso modo, as polticas de administrao de demanda seriamduas: a poltica monetria, por onde os agentes econmicos so indu-zidos a ajustar suas demandas por movimentos de preos relativos dosativos (taxas de juros); e a poltica fiscal, em que o governo age sobrea demanda diretamente atravs de seus gastos, ou indiretamente,atravs da imposio de tributos sobre os agentes privados. Segundoa teoria keynesiana, a poltica monetria tende a ter efeitos maioressobre a deciso de investir, porque os movimentos das taxas de jurosresultantes da ao de poltica monetria afetam principalmente osmercados de ativos, inclusive os de ativos reais, como equipamentos

    7 Ressalvando a necessidade de enfrentar os casos de falha de mercado. Aqui, como sempre,Keynes pragmtico. Como escreveu a Marcus Fleming, em 1944, [e]u no [lhe] disseque voc no deveria ter apego pelo sistema de preos (eu compartilho do seu apego). Eudisse que voc no deveria ser iludido por ele. (CWJMK, 26, p. 297).

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    e construes.8 J a poltica fiscal atuaria mais sobre as despesas deconsumo, pois tanto o gasto pblico quanto os impostos incidiriamdiretamente sobre a renda dos agentes econmicos, impactando suasdespesas de consumo.9 A escolha de instrumentos (ou da combi-nao deles) deveria levar em conta, assim, as caractersticas decada situao, que podem afetar a sensibilidade do comportamentoprivado aos estmulos de poltica, mas tambm os objetivos maisgerais da sociedade, que podem depender da nfase diferenciadaem investimentos ou em consumo.

    3 A Operao da Poltica FiscalA poltica fiscal opera, como visto, seja induzindo variaes no

    gasto privado (atravs de variaes na renda disponvel dos agenteseconmicos resultantes de variaes na imposio de tributos), sejaatravs da complementao direta de gastos, atravs das despesasdo governo. Assim, se, em face, por exemplo, de um clima de incertezamais intensa, os agentes privados recuam de seus planos de dispn-dio em consumo ou investimento, o governo pode compensar essareduo ampliando a sua prpria demanda por bens e servios, man-tendo a demanda agregada inalterada e, com ela, os estmulos manuteno do nvel de emprego e de utilizao de capacidade.

    O impacto do gasto pblico sobre a demanda agregada e sobreo nvel de atividades semelhante, na teoria keynesiana, ao do gastocom investimentos privados. Cada real gasto pelo governo se trans-forma em renda para o agente privado que lhe fornece bens e ser-vios. Com sua renda aumentada pelo valor do gasto pblico, o agenteprivado amplia os seus prprios gastos de consumo, de acordo comsua propenso marginal a consumir,10 aumentando, deste modo, a rendadaqueles que atendem sua demanda de consumo. Tambm essesltimos consumiro parte da renda que receberam, poupando o res-tante, transmitindo o impulso de aumento de demanda para os seus

    8 Em economias modernas com cmbio flutuante, a poltica monetria agiria tambm forte-mente sobre as exportaes liquidas em funo de seu impacto sobre taxas de cmbio.

    9 A preocupao com a combinao de polticas econmicas sempre esteve presente nopensamento Keynesiano. Richard Kahn temia que o uso de polticas fiscais expansivascontra recesses e de polticas monetrias contracionistas contra a inflao criaria um visanti-investimento. Veja Kahn (1972, captulo 7) e, tambm, Tobin (2003, captulo 16, espe-cialmente a pgina 127).

    10 Isto a proporo em que acrscimos de renda se convertem em acrscimos de gastos deconsumo. Essa proporo menor do que a unidade, dado que o consumidor reserva partede seu acrscimo de renda para uso futuro, ou, em outras palavras, poupa parte de seuacrscimo de renda.

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    prprios fornecedores. Este processo pelo qual a despesa inicial, nocaso o gasto pblico, induz gastos de consumo adicionais o queKeynes chamou na GT de multiplicador.11

    Como um gasto original do setor pblico induz uma srie degastos adicionais em consumo, em face de uma deficincia de de-manda agregada o gasto pblico necessrio para alcanar ou mantero pleno emprego ser inferior deficincia observada, j que se podercontar tambm com um aumento da demanda de consumo.12

    Note-se que a poltica fiscal definida pela fixao de um nveladequado de gastos pblicos, no de dficit pblico. Na verdade,no h qualquer necessidade de que esses gastos no possam serfinanciados por impostos, evitando o surgimento de dficits fiscais.Dada a sensibilidade da receita de impostos a variaes da renda, jque a imensa maioria dos impostos em uma economia moderna sodireta ou indiretamente proporcionais ao nvel de renda, o aumentode gastos pblicos induzir aumentos tambm da receita de impostos.Note-se ainda que perfeitamente possvel que o total de impostosseja igual ao de gastos pblicos, evitando o surgimento de qualquerdficit, mas nem por isso tornando a poltica ineficaz.13, 14

    Em condies excepcionalmente favorveis, a poltica fiscal podeser eficaz at mesmo por um efeito puramente informacional. Keynescontemplou a possibilidade de que o simples anncio sociedadede que o Estado estaria preparado para suprir qualquer deficincia

    11 O multiplicador apenas o resultado do fato de que o gasto de um individuo em bens eservios aumenta a renda do provedor desses mesmos bens e servios, colocando esteltimo em posio de reajustar seus prprios gastos de consumo, impactando, assim, arenda de um terceiro agente e assim sucessivamente. Note-se, porm, que o multiplicadorno infinito, porque a cada rodada o gasto passado frente menor que o recebido, j quecada agente poupa (isto , deixa de demandar bens e servios) parte da renda recebida.

    12 Segundo Keynes, a teoria do consumo e do multiplicador, juntamente com a percepo dopapel da incerteza na dinmica de uma economia monetria, eram as principais inova-es tericas da GTl. Conforme CWJMK, 14, p.109.

    13 Dada a teoria do multiplicador, o gasto pblico menor que o gap de demanda, mas areceita de impostos proporcional variao do gasto total (isto , gasto pblico maisgastos de consumo induzido). Nada impede que o balano entre gastos pblicos e impostosse mostre equilibrado no final do processo, ou at mesmo superavitrio, dependendo dovalor do multiplicador e da sensibilidade da receita de impostos variao da renda.Assim, em um quadro simplificado, se notarmos o multiplicador de renda por k, e a proporoda renda que se converte em impostos por a, teremos que Y = kG e T = aY, portanto T = akG.Para G = T preciso que ak=1. Se, digamos, k = 3 e a participao dos impostos na rendafor de 1/3, o oramento fiscal se equilibrar automaticamente, com a realizao de G.

    14 A eficcia aqui referida tambm no depende da operao do teorema do oramentoequilibrado, de Haavelmo, pelo qual a realizao de um gasto pblico igual a uma elevaode impostos de mesmo valor eleva a renda com um multiplicador igual unidade. A elevaode impostos considerada no texto refere-se apenas resultante da elevao da renda. O quese explora no texto so noes do que ficou conhecido como finanas funcionais.

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    de demanda agregada pela mobilizao de um pacote compensa-trio de investimentos pblicos poderia ser suficiente para recupe-rar a expectativa favorvel de empresrios privados que os levassea decidir recuperar o nvel de produo e de investimentos consis-tente com o pleno emprego. Neste caso, paradoxalmente, a polticafiscal ativista no se manifestaria em nenhum item concreto do or-amento pblico, operando diretamente sobre as expectativas dosempresrios privados.

    Keynes, porm, era suficientemente realista para assumir queeste funcionamento ideal da poltica fiscal seria, de qualquer modo,relativamente improvvel. Assim, sua ateno voltou-se para o im-pacto do gasto pblico realizado sobre a renda. Dficits pblicosseriam, de fato, a soluo de default quanto tudo o mais tivesse fa-lhado.15 Dficits fiscais s emergeriam em valor significativo se o gastopblico por si falhasse em expandir o nvel de atividades, como nocaso de uma economia em depresso, por exemplo. Nessas circuns-tncias, o dficit poderia resultar da combinao de um amplo pro-grama de gasto pblico com um multiplicador relativamente reduzido(que pode ocorrer se os agentes privados esto assolados por talincerteza sobre o futuro que no se animam sequer a gastar a pro-poro normal de sua renda acrescida pelo gasto pblico). Um gas-to pblico elevado, com baixo multiplicador e baixa sensibilidade dasreceitas de impostos a variaes da renda agregada (se, por exemplo,uma expanso dos gastos for acoplada a uma reduo de impostos)poderia conduzir a um dficit pblico mais amplo. Este no seria uminstrumento normal de poltica fiscal, contudo, mas o resultado douso dessa poltica em condies especialmente adversas.

    Como tudo na teoria keynesiana, a ordem dos eventos neste pro-cesso de fundamental importncia para entender sua natureza epotencialidades.16 A seqncia de eventos que permitiria polticafiscal ter o maior impacto expansivo possvel sobre o nvel de ativi-dades seria a implementao de uma deciso de expanso de gastos

    15 Sobre o papel do investimento publico na regularizao do ciclo, conforme CWJMK, 27,p. 122 e 322. Sobre o surgimento de um dficit fiscal como sinal de insuficincia da poltica,veja-se, no mesmo volume, p. 352-3.

    16 Frequentemente, a oposio entre a abordagem keynesiana e a abordagem convencionalneo-clssica obscurecida pelo fato de que a especificao de condies de equilbrio muitas vezes semelhante entre elas. O caso da relao entre poupana e investimento uma delas. A oposio se define pelos mecanismos que conduzem (ou no) as variveis aosvalores de equilbrio, mais do que a descrio do estado terminal. O processo que ligainvestimento e poupana em Keynes o mesmo que conecta gastos pblicos renda e receita de impostos. a concepo desse processo que ope Keynes ortodoxia, no adefinio do equilbrio.

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    pblicos financiada pela colocao no mercado de papis de curtoprazo de modo a aproveitar os saldos monetrios ociosos mantidospelo pblico como reserva de liquidez. Alternativamente, a colocaodesses papis poderia se iniciar pelo sistema bancrio, oferecendoa esses trocar suas reservas monetrias por reservas secundrias,em papeis pblicos de curto prazo, com reduzido impacto sobre astaxas de juros de curto prazo.17

    Como no caso dos gastos de investidores privados, nesse estgiodo processo de poltica fiscal, o que o Estado precisa de meios depagamento que lhe permitam implementar seu plano de gastos. Esse um problema monetrio, a ser resolvido no mercado monetrio, naslinhas descritas no pargrafo anterior. essencial, segundo Keynes,que no se recorra a aumentos de impostos nesta fase, porque elesdeprimiro a renda antes que o gasto pblico possa ter tido a chancede exercer sua influncia expansiva. Por razes similares, o Estado nodeve buscar financiar seu gasto nesta fase pela colocao de papis delongo prazo porque, no tendo ainda o nvel de atividades se expan-dido, a renda ainda no ter crescido, nem, portanto, a poupanaque deve resultar do acrscimo de renda estar disponvel. Assim, nohaver ainda a demanda adicional por parte dos poupadores porpapis de longo prazo, que, se colocados no mercado, pressionaroas taxas de juros para cima, e causaro a reduo (crowding out) deinvestimentos privados. V-se, assim, porque a seqncia de eventos essencial na abordagem keynesiana: o processo de expanso darenda no instantneo e, por isso mesmo, no se pode contar emseu incio com condies de financiamento do setor pblico queresultaro da concluso do processo.

    Quando o processo multiplicador tiver completado o essencialdo ciclo de expanso secundria das despesas de consumo, e a rendativer se expandido na medida prevista, haver uma poupana adi-cional na economia de valor igual ao do gasto pblico que iniciou esteciclo. Parte dessa poupana existiria j sob a forma de aumentoda receita de impostos resultantes da expanso da economia. Seesses recursos forem insuficientes para cobrir a despesa pblica,haver ainda nas mos do setor privado poupana suficiente paraabsorver os ttulos de longo prazo que o governo poder agora co-locar no mercado, sem pressionar a taxa de juros de longo prazo (esem, portanto, prejudicar outras despesas dependentes dela, como osinvestimentos produtivos privados). Esse ser o momento, portanto,

    17 A deciso de recorrer ao mercado monetrio para o financiamento inicial do gastopblico mostra que a separao entre polticas fiscal e monetria principalmente umartifcio didtico.

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    da consolidao do passivo pblico, colocando-se papis de longoprazo junto aos poupadores privados (que estaro demandandoativos no mercado no valor do acrscimo de sua poupana apspagos os impostos). Com a receita da colocao dos ttulos pblicos(e dos impostos recolhidos) o governo poder saldar suas dvidasde curto prazo, recompondo sua capacidade para re-iniciar todo oprocesso caso fosse necessrio.

    Os familiarizados com a teoria de Keynes reconhecero nadescrio oferecida acima do processo de poltica fiscal uma ana-logia imediata com o problema do financiamento e da consolidao(finance e funding) de investimentos privados, que Keynes analisouem sua polmica com Ohlin, no Economic Journal em 1937. O reco-nhecimento absolutamente correto. A analogia foi, na verdade,explorada pelo prprio Keynes ao discutir o financiamento dos gastosblicos da Inglaterra durante a segunda guerra mundial. Emborano se tratasse de combater uma deficincia de demanda agregada,muito pelo contrrio, Keynes se utiliza do mesmo esquema de finan-ciamento e consolidao para discutir as formas adequadas de finan-ciamento pblico que minimizassem os impactos do gasto pblicosobre a taxa de juros e, assim, sobre os investimentos privados.18

    Em suma, a teoria keynesiana no prope a irrelevncia doequilbrio fiscal. Ao contrrio, Keynes preconizava uma poltica fiscalque, na sua forma mais benigna, prescindiria mesmo do prpriogasto pblico efetivo, caso as expectativas do setor privado respon-dessem favoravelmente ao anncio da disposio (e da capacidade)do setor pblico de intervir caso a economia estivesse sub-utilizandoseus recursos. Se esse efeito, digamos, psicolgico, fosse insuficiente,os gastos deveriam realmente ser realizados, mas de modo a minimizarseus impactos colaterais sobre a economia, especialmente sobre ataxa de juros, caso formas inadequadas de financiamento fossemadotadas. Seguindo-se a seqncia implcita no modelo de determi-nao da renda agregada proposto por Keynes, o oramento poderiaser equilibrado ao final da expanso do nvel de atividades, ou finan-ciado pela colocao de ttulos de longo prazo no momento em queisto j no pudesse mais perturbar o mercado de capitais.

    4 Dificuldades e LimitaesA operao da poltica fiscal como descrita na seo anterior se

    apia na validade de certas premissas que devem ser explicitadas,porque a sua ausncia pode comprometer a eficcia da poltica como

    18 Conforme CWJMK, 22, pp. 158.

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    instrumento de administrao de demanda agregada. Essas premis-sas referem-se a: (i) o estado de expectativas dos agentes privados;(ii) o grau de utilizao da capacidade produtiva; e (iii) o estado dosmercados de capitais.

    poca em que Keynes escreveu a GT pouco se poderia assumirquanto s expectativas do pblico em relao eficcia da polticafiscal. De fato, o tamanho do Estado, em termos de participao narenda nacional, no lhe dava qualquer possibilidade de influir deforma mais decisiva na vida econmica. Apenas durante guerras oEstado assumia dimenses mais significativas como comprador debens e servios ou como coletor de impostos. Assim, Keynes poderiaassumir expectativas praticamente neutras em relao ao ativismofiscal. Na ausncia de experincias mais duradouras de poltica fiscale seus efeitos, no era despropositado assumir que as expectativasdo pblico com relao ao seu impacto seriam muito dispersas.

    A considerao das expectativas muito importante para se evitaro mecanicismo caracterstico do que veio a se chamar de keynesia-nismo hidrulico, em que a poltica econmica operaria como o moverde alavancas ou o apertar de botes em engenhos mecnicos. O im-pacto da poltica econmica se d atravs dos comportamentos queinduz, mas estes, por sua vez, dependem de como os agentes econ-micos interpretam os estmulos recebidos. Se expectativas so muitodispersas, as reaes sero variadas, de modo a dar aos estmulosexperimentados de modo mais imediato um peso relativamente maissignificativo na tomada de decises. Assim, se no h experinciaprvia com relao ampliao do gasto pblico, pode-se esperarque o pblico reaja ao aumento de sua renda exatamente do modoesperado pela teoria do multiplicador.

    Esta recepo benigna deve ser contrastada com o clima franca-mente adverso que se criou nos anos 80, por exemplo. A experinciadas dcadas imediatamente anteriores, at pelo menos os anos 60,foi, corretamente ou no, interpretada como indicando os malefcioscriados pela irresponsabilidade fiscal. A gerao de dficits fiscais foiresponsabilizada pela emergncia de intensas presses inflacionriascujo controle, atravs de polticas monetrias contracionistas, impspesados custos s sociedades que sofreram o problema. Em grandeparte, as expectativas a respeito da poltica fiscal passaram a ser regidaspela conveno de que governos eram intrinsecamente irrespons-veis, incapazes de controlar seus gastos e evitar dficits fiscais gera-dores de presses inflacionrias. As expectativas formadas nesse am-biente seriam as de que o desequilbrio fiscal do presente fatalmenteimplicaria a austeridade monetria de amanh, com elevao de jurose desaquecimento da economia. Nessas circunstncias, com padres

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    de expectativas to adversos, a poltica fiscal perde eficcia. O gastopblico, ao invs de induzir a expanso dos gastos privados, podeacabar induzindo a formao de uma poupana precaucionria porparte dos atentes privados, temerosos da recesso que a autoridademonetria fatalmente teria que gerar em seguida.

    Assim, o primeiro condicionante a ser considerado na formu-lao da poltica fiscal o estado de expectativas dos agentes privados.Se o gasto realizado em ambiente marcado pela expectativa deque o governo propenso a gerar dficits permanentes, sua eficciapoder diminuir drasticamente pela antecipao de elevaes dastaxas de juros que induzir, modificando de forma perversa os pre-os dos ativos, inclusive os ativos reais. A preocupao com o equil-brio fiscal, assim, pode ser instrumental para permitir que a polticafiscal tenha efeitos positivos, quando for necessria.19

    A segunda condio provavelmente mais familiar, por serexplorada mesmo pelo keynesianismo mais convencional. A polticafiscal keynesiana um instrumento de regularizao da demandaagregada de modo a sustentar o pleno emprego. Assim, ela no deveser ativada se a economia j estiver em pleno emprego, porque nessascircunstncias a soma das demandas privadas e pblica ultrapassara capacidade produtiva do pas e presses inflacionrias realmenteemergiro.20

    Esta condio pode parecer bvia, mas envolve algumas difi-culdades importantes quando se lembra que gastos pblicos noservem apenas como reguladores de demanda agregada. De fato, oEstado deve efetuar gastos primariamente para ofertar bens pblicos,como segurana pblica e nacional, educao, sade, etc. A ofertade bens pblicos deve ser permanente, havendo, portanto, nveisde despesa que so relativamente fixos, independentes do nvel deatividades da economia. Em paralelo a essas despesas esto aquelasvoltadas, primariamente, para a regularizao da demanda agregada.

    A considerao desses dois deveres do Estado, prover perma-nentemente bens pblicos e regularizar, quando necessrio, a de-manda agregada, exige que a poltica de gastos seja abordada deforma mais flexvel, para evitar que os dois objetivos entrem em con-flito. A sada proposta por Keynes passava pela elaborao de doisoramentos fiscais, o de gastos correntes e o de gastos de capital. O

    19 Ao que indicam as evidncias, este teria sido o caso da Irlanda e Dinamarca recentemente.

    20 Excetuando-se naturalmente as situaes excepcionais onde a poltica fiscal no estsubordinada manuteno do pleno emprego mas visa a acomodao de demandas doEstado, como se d durante perodos de conflito blico. Keynes examinou esta ltimasituao em seu famoso panfleto How to Pay for the War, CWJMK, 9.

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    primeiro cobriria as despesas rgidas, inadiveis do governo, destina-das a garantir a oferta de bens pblicos na medida necessria. Ooramento corrente, segundo Keynes, teria de estar equilibrado todoo tempo. J o oramento de capital seria ativado quando a demandaagregada se afastasse do nvel de pleno emprego, acima ou abaixodesse nvel.21

    A separao entre os dois oramentos se destinaria precisamentea separar aquelas funes de Estado que no podem ser adiadas ousuprimidas, nem mesmo temporariamente, daquelas cuja funo seriaanti-cclica. Ao exigir que o oramento corrente estivesse equilibradotodo o tempo, o que Keynes busca exatamente neutralizar estes gastoscomo fonte de presso de demanda quando a economia j estivesseem seu limite de pleno emprego. Neste caso, a rigor, a poltica fiscalcomo instrumento de administrao de demanda seria confinada aooramento de capital que, por sua natureza discricionria, poderiater o seu ritmo de implementao variado conforme a conjuntura.

    O debate em torno dessa proposta afastou-se freqentementedo seu alvo. Muitos discutiram at onde seria possvel separar-se gastoscorrentes de gastos de capital, levando o debate para um campoconceitual inadequado para solucionar um problema de naturezainteiramente prtica. Na verdade, o que Keynes busca ao propor aelaborao de dois oramentos a separao entre o cumprimentodas funes rotineiras do Estado e a realizao de seus gastos discri-cionrios. A diferenciao que importa reside na possibilidade deadiamento dos gastos de forma a contra-restar as foras cclicas daeconomia. Economias menos desenvolvidas, onde um certo nvelde investimento pblico obedece a demandas permanentes, pode-riam incluir esses investimentos no oramento de rotina, e proversuas fontes de financiamento de modo a evitar dficits em qualquerperodo. Por outro lado, a criao de instrumentos como os estabi-lizadores endgenos pode agilizar a entrada em operao de gastosanti-cclicos.22

    21 Conforme CWJMK, 27, p. 225.

    22 Uma variante da distino proposta por Keynes foi a contraposio entre o oramento depleno emprego e o oramento corrente, pelos economistas keynesianos do Conselho deAssessores Econmicos do Presidente Kennedy. O oramento de pleno emprego, como ooramento corrente de Keynes, deveria estar sempre equilibrado precisamente para evitarque a demanda agregada ultrapassasse o nvel de renda de pleno emprego. J o oramentocorrente variaria com o ciclo, sendo deficitrio quando houvesse desemprego involuntrioe equilibrado ou superavitrio quando os nveis de desemprego se aproximassem do plenoemprego. Note-se que o termo corrente tem um significado completamente diferente aquido que tem no uso feito por Keynes. Veja, para tanto, Tobin e Weidenbaum (1988, parte 1).

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    Finalmente, h o problema da consolidao (funding) da dvidapblica em caso de surgimento de dficits fiscais, isto , da colocaode ttulos de dvida de longo prazo no mercado. Como j visto, a teoriado multiplicador garante que a demanda total por ativos corres-pondente poupana gerada pelo gasto pblico que permanecessea descoberto (isto , descontado o aumento de impostos causado peloprprio gasto pblico) seria exatamente igual ao valor dos ttulos aserem colocados no mercado pelo Tesouro. O que a teoria do multipli-cador no garante, porm, que esses poupadores queiram adquirirprecisamente os papis emitidos pelo Tesouro. Esses poupadorespodem, por exemplo, exibir forte preferncia pela liquidez e preferirreter moeda. Alternativamente, eles podem decidir reter outras classesde ativos por razes, por exemplo, de diversificao de carteiras.

    Na medida em que o mercado resista a absorver o acrscimo dettulos pblicos em uma funo de uma preferncia pela liquidez, aexistncia de intermedirios financeiros pode, at certo ponto, resol-ver o problema. Bancos, por exemplo, podem absorver esses ttulos,com recursos colhidos pela aceitao de depsitos a prazo ou depoupana, por exemplo. Esta soluo, naturalmente, tambm enfrentalimites, especialmente na necessidade de instituies financeirasmanterem, elas prprias, algum grau de diversificao de suas cartei-ras de ativos. Esta busca de diversificao pode ser caracterstica dademanda mais geral por ativos por parte do pblico, impondo, pelolado do financiamento, tambm limites poltica fiscal.

    5 Consideraes FinaisA poltica econmica keynesiana instrumentaliza a necessidade

    de regulao da demanda agregada de modo a manter a economiaem nveis de atividade to prximos do pleno emprego quanto asociedade deseje. Assim, a poltica fiscal no consiste necessaria-mente em manter gastos pblicos elevados, nem, muito menos, emmanter dficits fiscais faa chuva ou faa sol. Dficits permanentes(ou estruturais, como chamariam alguns) so causas de desequilbriona economia, tanto quanto a deficincia de algum componente dademanda privada. Os desequilbrios sero tanto de natureza real,para usar a velha dicotomia dos modelos macroeconmicos conven-cionais, entre demanda agregada excessiva e capacidade produtiva,quanto financeiros, entre colocao de ttulos de dvida pblica edemandas privadas por ativos mais diversificados. Em condiesmodernas, h ainda que se considerar o impacto de uma poltica

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    fiscal desregrada sobre expectativas, que pode engendrar um me-canismo perverso, pelo qual a expanso fiscal acabe mesmo porlevar a uma contrao da economia.

    O ativismo fiscal e monetrio de Keynes nada tem de irrespon-svel. Na verdade, como os memorandos escritos por ele ao Tesourobritnico durante a guerra demonstram, Keynes insistiu na necessi-dade de se planejar cuidadosamente a poltica fiscal como um pro-cesso, de modo precisamente a evitar a emergncia de desequilbriosque prejudicassem a operao da economia. De qualquer forma, apoltica fiscal proposta por Keynes se desenhava em termos de gastospblicos, no de dficits fiscais. Estes eram instrumentos de ltimorecurso, a serem utilizados se e quando os mecanismos mais ade-quados falhassem na sustentao da demanda agregada.

    Mas o cuidado com a gerao de dficits fiscais no a nica,nem talvez a mais importante das lies propostas por Keynes. Ateoria do multiplicador mostrava que o equilbrio fiscal um objetivomeritrio mas mais factvel quando a economia se expande. Se aeconomia no estiver em pleno emprego, o equilbrio fiscal deveser buscado de modo a promover a expanso da economia. Para-doxalmente, o equilbrio fiscal pode ser obtido quando os gastospblicos se expandem, se isto levar a um crescimento da renda queresulte no crescimento necessrio da receita de impostos. A busca doequilbrio fiscal pelo aumento dos impostos, ou pelo corte de gastos,quando a economia j se encontra abaixo do pleno emprego podeacabar sendo desastroso, como as muitas experincias de ajuste fiscalpatrocinadas pelo FMI ao longo dos anos mostraram. O corte degastos numa economia com desemprego leva contrao da ren-da e, com ela, a reduo das receitas de impostos, forando novoscortes de gastos, numa espiral descendente at o ponto em que umequilbrio seja eventualmente encontrado a nveis de renda inaceita-velmente baixos. Numa economia empresarial, preciso manter ademanda atraente para que empresrios decidam produzir, e com issoexpandir a renda e pagar impostos. O nico equilbrio fiscal susten-tvel aquele que se atinge quando a economia utiliza plenamenteseus recursos.

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