Capítulo 5 - Práticas de Autoatenção Relativas ao Parto...

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros DIAS-SCOPEL, R.P. Práticas de Autoatenção Relativas ao Parto: pluralidade de sistemas médicos, articulação e autonomia relativa. In: A Cosmopolítica da gestação, do parto e do pós-parto: autoatenção e medicalização entre os índios Munduruku [online]. 2nd ed. rev. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2018, pp. 137-154. Saúde dos Povos Indígenas collection. ISBN: 978-65-5708-014-6. https://doi.org/10.7476/9786557080146.0009. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. Capítulo 5 - Práticas de Autoatenção Relativas ao Parto pluralidade de sistemas médicos, articulação e autonomia relativa Raquel Paiva Dias-Scopel

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DIAS-SCOPEL, R.P. Práticas de Autoatenção Relativas ao Parto: pluralidade de sistemas médicos, articulação e autonomia relativa. In: A Cosmopolítica da gestação, do parto e do pós-parto: autoatenção e medicalização entre os índios Munduruku [online]. 2nd ed. rev. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2018, pp. 137-154. Saúde dos Povos Indígenas collection. ISBN: 978-65-5708-014-6. https://doi.org/10.7476/9786557080146.0009.

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Capítulo 5 - Práticas de Autoatenção Relativas ao Parto pluralidade de sistemas médicos, articulação e autonomia

relativa

Raquel Paiva Dias-Scopel

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As práticas de autoatenção ao parto entre os Munduruku permitem enfa-tizar diferentes abordagens médicas sobre o ato de parir e também identificar dife-rentes formas de atenção às mães e aos pais gestantes. De modo semelhante ao que ocorre em outras partes do mundo, os saberes compartilhados entre os Munduruku sobre a fisiologia e a anatomia do parto diferem daqueles que embasam o modelo biomédico (Belaunde, 2005; Conklin & Morgan, 1996; Newman, 1972; Platt, 2002; Sesia, 1996). Apesar das diferenças de abordagem entre as formas biomédicas e as indígenas de atenção à gestação e ao parto, como vimos no capítulo anterior, as mulheres Munduruku as têm articulado em suas práticas de autoatenção realizadas ao longo da gestação, que incluem desde o uso de remédios caseiros, banhos, dietas alimentares e comportamentais, “pegar barriga”, entre outros, até os serviços de atenção primária para controle do pré-natal.

Desde a ampliação da cobertura e do acesso aos serviços de saúde bio-médicos, o parto hospitalar também se tornou um recurso considerado como opção pelas mulheres indígenas no Brasil. No contexto da Terra Indígena Kwatá-Laranjal (TIKL), em certa medida, a escolha do local apropriado para o parto – em casa, na aldeia, ou no hospital, na cidade – refletiu decisões tomadas a partir das interações com os diversos atores sociais intencionalmente contatados ao longo da gestação. Entre os Munduruku, as mulheres gestantes procuraram tanto profissionais da equipe biomédica quanto pajés, “parteiras” e, principalmente, as mulheres mais velhas da família extensa.

Apesar de o parto hospitalar ser um recurso biomédico recente no contexto da TIKL, seguramente já figura como um direito conquistado do qual não se quer abrir mão, ainda que repleto de controvérsias devido às especificidades das formas de atenção munduruku ao parto e ao pós-parto, as quais se defrontam com o con-texto hospitalar e biomédico também de atenção ao parto e ao pós-parto. Todavia, muitas mulheres Munduruku optaram por parir em casa, na aldeia Kwatá, durante o período do trabalho de campo. Para as mulheres e os homens Munduruku, os cuidados com o parto antecedem o momento do trabalho de parto, do ato de parir. Assim, as causas de um parto bem-sucedido englobam o cumprimento das ações

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prescritas ou proibidas aos pais ao longo da gestação. Daí decorre que os riscos envolvidos em um trabalho de parto incluem os efeitos advindos do descumprimento dessas prescrições. Há, ainda, outras causas consideradas como variáveis de risco para o parto, como, por exemplo, faixa etária, pressão alta, infecções de malária e a posição do feto, as quais emergiram a partir do uso dos serviços biomédicos e implicaram mesmo a escolha do local do parto.

Se por um lado é inquestionável que o parto hospitalar constitui um recurso biomédico, por outro cumpre questionar que fatores interagem na escolha do local e do tipo de parto. Como veremos, no contexto de pluralidade de formas de atenção ao nascimento, as decisões foram tomadas no interior de relações sociais marcadas por poder. Isto é, a coexistência de diferentes saberes, infelizmente, não está isenta de assimetrias nas relações; ao contrário, os sujeitos, coletivos e individuais, justa-põem os saberes, valorizando alguns em detrimento de outros. Assim, a autonomia do casal Munduruku na decisão sobre o local e o tipo de parto é relativa, pois tal processo é mediado pela interação com os profissionais de saúde da biomedicina e com outros indígenas contatados ao longo da gestação. As práticas de autoatenção relativas ao parto das mulheres Munduruku permitem destacar que os indígenas promovem a complementaridade e a articulação entre os diferentes saberes, indí-genas e biomédicos, quando disponíveis.

Atividades cotidianas que incidem sobre a qualidade do parto

Em capítulo anterior, apresentei exemplos de práticas de autoatenção à gestação realizadas por mulheres e homens Munduruku para sintetizar a constru-ção social do corpo do bebê, em que sobressaíram as relações afetivas no interior da família extensa e, principalmente, as interações maritais e dos pais com o bebê. Agora, quero destacar as práticas de autoatenção à gestação diretamente relacionadas ao parto. Do ponto de vista dos Munduruku, tanto a gestante como o pai da criança são responsáveis por facilitar ou dificultar o trabalho de parto. As atividades exercidas pelos pais ao longo da gestação, conforme apresento a seguir, foram orientadas visando ao momento do parto. O tempo e a dor envolvidos no ato de parir constituíram as expectativas que orientaram as motivações das práticas de autoatenção ao parto.

Era uma quarta-feira ensolarada de setembro de 2010 e o jovem casal Naná e Moacir se preparava para torrar farinha quando cheguei, por volta das 8 horas da manhã. Naná lavava a goma para tirar a “fortidão do tucupi” que estava em uma grande bacia verde de plástico no chão da casa de farinha ou rancho, e seu marido, Moacir, havia saído em busca de mais água à beira do rio, agora um

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pouco mais distante, pois na estação da vazante dos rios já apareciam longas faixas de terra, antes cobertas pelas águas do Canumã. Já havia mandioca umedecida e ralada colocada no tipiti para ser escorrida e logo misturada com a mandioca seca ralada para ser peneirada e, então, torrada no forno. Moacir, um homem jovem, de aproximadamente 25 anos, foi quem tirou o tipiti da vara onde estava pen-durado e despejou a massa de mandioca úmida e ralada na canoa de uso próprio para o fabrico da farinha. Naná, com cerca de 25 anos também, passou a misturar e peneirar as mandiocas raladas. Moacir, assim que tirou a massa de mandioca do tipiti, imediatamente o encheu com uma nova leva de massa e foi ajudar Naná a peneirar. Ela me explicou que é nessa etapa que se separa a crueira, um amon-toado de mandioca que não passa na peneira e serve para fazer mingau, depois de misturado com água ou leite, e para fazer “fritinho”, se misturado com um pouco de farinha e água, e frita. Moacir já havia coletado e arrumado a lenha para fazer fogo no forno antes que eu chegasse. Pouco antes de terem uma quantidade suficiente de farinha peneirada para fazer a primeira fornada, ele acendeu o fogo, enquanto Naná continuou a atividade de peneirar. Com o fogo no ponto para tor-rar a farinha, ela preparou o tacho para iniciar a torra. Jogou um pouco de óleo e o espalhou com um pano por toda a superfície do tacho. Explicou-me que nesse momento era preciso ter cuidado e jogar somente um pouco de óleo, para evitar que pegasse fogo com o calor do tacho. Feito isso, Naná começou a jogar a farinha no tacho quente enquanto Moacir mexia de um lado para outro com um remo, também utilizado apenas para torrar a farinha. Depois disso, foram ainda quase três horas jogando farinha no tacho e retirando as porções que já estavam bem amarelas, torradas ao gosto do casal. Naquele dia eles torraram uma quantidade de quase “50 litros”. Durante todo o tempo é preciso ficar mexendo a farinha para que ela torre uniformemente e não queime. Embora Moacir fosse o responsável por mexê-la, houve um momento em que Naná assumiu essa função para que seu esposo fosse buscar mais água e lenha. Ela assumiu a atividade de jogar e retirar a farinha do tacho, contando, em alguns momentos, com a ajuda dele para reti-rá-la e colocá-la na saca. Durante todo o trabalho, o casal esteve acompanhado de seu filho mais novo, Bimbo, de pouco mais de 1 ano de idade. Ele ficou por ali, distraindo-se com gravetos, comendo um pouco da farinha já torrada e tucumã com o auxílio de sua mãe, e chegou a dormir. A filha mais velha, de 3 anos, estava na casa dos tios de Moacir, que era próxima, e aparecia algumas vezes na casa de farinha para brincar.

De fato, Moacir e Naná estavam torrando farinha no rancho dos tios dele, que ficava, naquela época, a poucos metros da casa em direção à beira do rio. Naquele dia, a refeição foi um peixe frito que Naná havia trazido de casa, acompanhado com a farinha ainda quentinha, recém-saída do tacho. Naná também levou uma garrafa térmica de café preto já adoçado.

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Seis meses depois, na última semana de março de 2011, Naná e Moacir estavam terminando de construir sua própria casa de farinha/rancho, ao lado da roça que haviam plantado poucos meses antes, no início do ano. E Naná estava grávida de sete meses. Em certa medida, a construção do primeiro rancho dessa família elementar consolidava a maturidade da relação marital do jovem casal, agora à espera do terceiro filho. Outras duas famílias elementares, de casais já maduros dessa família extensa e segmento residencial – uma delas com dez filhos – tam-bém estavam (re)construindo seus ranchos/casas de farinha. Todos contavam com incentivos do governo estadual, desde financeiros a insumos (inclusive o tacho), para a construção do novo rancho. Todavia, esse incentivo não era suficiente para um jovem casal construir seu próprio rancho. Outros casais jovens dessa família extensa continuavam utilizando o rancho dos pais da esposa. Até aquele momento, Naná e Moacir utilizavam o rancho da tia dele, pois os pais de ambos não moravam na aldeia. No entanto, em 2011, ao construírem seu próprio rancho para torrar a farinha, a posição social do jovem casal mudaria perante os demais membros da família extensa.

De fato, Moacir estava finalizando a cobertura de palha da casa de farinha e contou com a ajuda de Jô, marido de sua tia Ivana, para tecer o jacaré (cumeeira feita com palha) posto na base do telhado. Naquele momento não dei a devida importância ao fato de Moacir solicitar ao tio que tecesse o jacaré. Ingenuamente, interpretei o fato como consequência da falta de habilidade do jovem rapaz.

Figura 23 – Jacaré, artefato de palha trançada utilizado como cumeeira

Foto Daniel Scopel.

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Só dois meses depois fui compreender o motivo para isso. Ivana, tia de Moacir, comentou que não era adequado mulher tecer ou fazer crochê durante a gestação porque o cordão umbilical poderia se enrolar no pescoço do bebê, o que dificultaria o parto. Ela contou isso durante uma conversa com Ceci, avó de Moacir, denunciando a atitude da irmã Iara, filha de criação de Ceci, que mesmo grávida de sete meses teceu o novo jacaré para colocar no telhado de casa naquela semana. Ivana afirmou que Iara deveria ter pedido ao cunhado, Jô, tio de Moacir, para tecê-lo.

Quando Jô teceu o jacaré para Moacir, Naná estava grávida de sete meses. Não posso afirmar que o motivo pelo qual seu tio teceu o jacaré tenha sido o mesmo comentado por Ivana ao recriminar sua irmã Iara. Todavia, não há razão para desconsiderar a possibilidade de que as ações do pai afetem diretamente as características físicas e morais de seus futuros filhos, conforme sugerido em capítulo anterior. E, ao que parece, as interferências decorrentes das atividades exercidas pelo marido/pai também têm impactos no momento do trabalho de parto. Logo, podemos inferir que Moacir não tenha tecido o jacaré para evitar que o cordão umbilical se enrolasse no pescoço do bebê, criando dificuldades ao parto da esposa. Assim, a motivação do marido/pai para não tecer estaria orientada pela expecta-tiva da qualidade do parto de sua esposa. Aliás, Moacir e Naná já haviam passado pela experiência de ver a filha mais velha sofrer as consequências da quebra de um tabu por parte do pai durante a gestação. Moacir matara uma cobra na roça e Jacy nasceu com o corpo muito mole, tanto que aprendeu a engatinhar de barriga, como se rastejasse. Somente após “baterem” com a ponta do tipiti novo na nuca da menina é que seu corpo passou a ter força, ser mais firme, e ela passou, então, a engatinhar. A ação do pai afetou a formação do bebê ainda no ventre da mãe, e as consequências se fizeram sentir após o nascimento e só foram revertidas com a terapêutica adequada; caso contrário, talvez Jacy sequer tivesse aprendido a andar. Em termos pragmáticos, não havia motivos para arriscar. Embora o parto seja interpretado como um processo saudável, existem alguns riscos que os Munduruku intencionam controlar, visando a garantir um parto eficaz, isto é, que resulte de forma rápida, sem prejuízos para a mãe e o bebê.

O parto domiciliar

Além da construção da casa de farinha, Moacir e Naná também estavam trabalhando na roça durante aquela semana de março de 2011. Naná, ao final do sétimo mês de gestação, estava replantando algumas manivas. Apenas um dia observei que ela contava com o auxílio da tia e do primo de Moacir para replantar. De fato, eu a vi seguir com as atividades diárias de trabalho até dois dias antes do parto. Ela trabalhou na roça, capinando; carregou sobre a cabeça baldes com roupas

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para lavar no rio, trazendo-as de volta para estender no terreno da casa; deu banho no filho mais novo, com pouco mais de 2 anos, que ainda não sabia se banhar e estava começando a aprender a nadar; auxiliava também sua filha mais velha, à época com 4 anos, na hora do banho; carregava sobre a cabeça baldes com louças e panelas da casa para lavá-las também no rio, além de cozinhar e cuidar da casa.

Naná pariu em casa no dia 4 de maio, uma quarta-feira, às 7 horas da manhã. Onze dias após o parto, ela ainda permanecia a maior parte do tempo dentro de casa, e seus afazeres diários eram cuidar do bebê recém-nascido, amamentá--lo, banhá-lo e cuidar dos outros filhos. Raramente saía de casa, e quando o fazia, permanecia no terreno ao redor da casa. Fui visitá-la 11 dias após o parto e pedi que me contasse como havia sido. Estávamos na sala da casa, sentadas no chão. O bebê estava dormindo na rede, no quarto da família, e sua filha mais velha nos acompanhava. O marido havia ido pescar, levando consigo o menino. Ela me contou:

Estava sentindo dor desde domingo de madrugada, desde segunda-feira, ainda fomos arrancar mandioca, só que eu não falei nada pro Moacir [marido] não, só eu mesmo. Diz que quando a gente sente dor, logo a gente avisar o pai, diz que a gente sofre mais, diz que o filho fica... [breve pausa], diz que fica dengoso, fica tolo, diz que custa a nascer. Aí demora mais. Avisei já quando não aguentei mais. Passou segunda, terça. Terça à noite foi que apertou a dor, lá pra madrugada já, eu não estava mais aguentando a dor. Se tivesse nascido à noite, tinha tido ele aí só eu e o Moacir [risos]. Eu falei pra ele de madrugada. Ele ficou aí, foi ver o pessoal, Araci, estavam tudo dormindo. Foi 6 horas da manhã eu mandei chamar a Araci, mandei chamar a Araci pra pegar minha barriga que estava muito doído. Ele foi pegar a parteira lá pro Cajual. Aí a dona Araci mandou a Mari chamar o José [técnico de enfermagem que estava no polo-base]. Só o José chegar, ele nasceu. Ele nasceu às 7 horas da manhã, na quarta. Nasceu rapidinho, agora a placenta custou. O resto dele nasceu só às 9 horas, já estava preocupada. O Moacir que enterrou a placenta, não sei nem pra onde. Quando tá direito não custa a nascer, não. Nasceu com três quilos e trezentos, [é provável que o técnico de enfermagem o tenha pesado]. (Naná, narrativa gravada no dia 14 de maio de 2011)60

A dor é uma sensação muito mencionada na fala das mulheres Munduruku sobre o ato de parir. Não é tanto a intensidade da dor que focalizam, mas a ati-tude da mulher diante da dor do parto. Araci, esposa de Itamar, mãe de 13 filhos, que sabia “pegar barriga” e “puxar a mãe do corpo”, isto é, dominava os saberes relativos à gestação e ao parto, com experiência em partejar, também assinalou o comportamento da mulher diante da dor do parto como um fator que podia facili-tar ou dificultar o tempo que o bebê levaria para nascer. As mulheres Munduruku que relataram suas experiências enfatizaram a importância de aguentar sozinhas a dor. De certo modo, não dizer que está sentindo dor e aguentar em silêncio até o momento do trabalho de parto era um valor e uma prática para aquelas mulhe-

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res. Um valor que demonstrava sua força e constituía uma prática de autoatenção ao parto, diretamente voltada para o fim pragmático do nascimento, da expulsão do bebê. Conforme explicou Lara, outra indígena que pariu todos os seis filhos na aldeia, é importante a mulher esperar o momento certo de avisar o marido sobre a dor, “porque diz que isso pode dificultar tudo na hora do parto”.61

Entre os Munduruku, o parto é, primeiramente, um acontecimento do âmbito familiar, do foro íntimo da família elementar, do qual participam as mulheres mais velhas da família extensa que têm experiência de “pegar barriga”, isto é, de partejar. Conforme os relatos de jovens e velhas mulheres Munduruku sobre expe-riências de parto, os maridos, quando presentes, participavam ativamente na hora do parto, seja chamando as mulheres expertas em partejar ou buscando aquelas identificadas como “parteiras”, seja segurando a esposa no momento da expulsão, levando água ou cortando lenha.

Na família extensa e no segmento residencial em que morei, das sete mulheres que pariram durante o período do trabalho de campo, quatro fizeram o parto em casa, na aldeia. Todas mandaram chamar Araci para auxiliar no parto. Em alguns casos também chamaram uma “parteira”. Araci era uma das mulheres mais velhas daquela família extensa e tinha “o dom de puxar a mãe do corpo” e de “pegar barriga”, práticas centrais nas formas de atenção indígena munduruku ao parto. Detalharei essas práticas adiante. Por ora, pretendo esclarecer as dificul-dades que encontrei em campo para situar a categoria “parteira”, um dos recursos utilizados pelas mulheres Munduruku nas práticas de autoatenção ao parto feito em casa, na aldeia.

Atuação das mulheres da família extensa e das “parteiras” no parto domiciliar

Quando perguntei aos agentes indígenas de saúde (AISs) e aos homens e mulheres da aldeia Kwatá quem eram as parteiras, Araci não foi identificada como tal. Aliás, ela própria sequer se identificou como parteira, apesar de ser uma interlo-cutora com quem conversei todos os dias durante o trabalho de campo e com quem participei em inúmeras atividades de lazer e trabalho. O resultado que obtive com minha pergunta foi a indicação de cinco mulheres. Duas delas confirmaram que eram parteiras e que haviam feito um curso oferecido pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) muitos anos antes. As outras três também foram citadas como par-teiras que teriam feito o mesmo curso.62

Nas visitas a outras aldeias da TIKL, encontrei também “parteiras” que haviam participado desse curso “na época da Funasa”, as quais se lembravam de temas centrais como a questão da higiene na hora do parto, os cuidados com o mate-

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rial para cortar o cordão umbilical e para assear a mãe. Não obtive informações mais precisas sobre onde ou quando o curso fora realizado, quem o ministrara e se fora exclusivo ou não para os indígenas da TIKL. Todavia, o tema do curso foi lembrado pelas “parteiras” com quem conversei. Aliás, algumas delas pareciam fazer uma analogia entre as instruções de assepsia biomédica e as práticas de cuidado com os panos de sangue do parto, lembrando a importância de não os lavar à beira do rio, como uma prática de higiene relativa ao parto, pois isso poderia atrair os botos malignos. Adiante, veremos outra justificativa pragmática para essa prática em que o sangue aparece como mediador da perigosa relação entre humanos e não humanos, segundo a cosmografia munduruku.

A “parteira” Gioconda morava na parte central da aldeia Kwatá e era popular, mesmo afirmando que já não fazia mais partos, pois estava velha demais para isso. Segundo ela, já lhe faltavam a agilidade e a força necessárias para pegar a criança e os problemas de visão advindos da catarata dificultavam seu trabalho.63 Todavia, lembrou que havia partejado “um bocado até entrar o polo-base”. Apesar do ingresso dos profissionais da saúde no interior da aldeia para prestar atenção primária, lembrou que poucos dias antes, naquele ano de 2011, a enfermeira a havia chamado para fazer um parto. Gioconda alertou-a que não fazia parto há muito tempo, mas ao se sentir encorajada pela própria enfermeira o fez, cortando o umbigo e cuidando da criança. A enfermeira cuidou da parturiente, que teve bebê em março de 2011. Gioconda é popular como “parteira” não porque fez um curso para tal, mas porque é reconhecida por ter “o dom”. As outras quatro “parteiras” citadas pelos indígenas também eram reconhecidas por terem o dom de partejar.

Ao conversar com Araci, que tem mais de 60 anos de idade, e com outras sete mulheres de diferentes famílias extensas, todas com mais de 40 anos, cujos partos foram feitos em casa, na aldeia, ficou evidente a participação das mulhe-res mais velhas da família extensa, às vezes mães, avós, sogras ou cunhadas da parturiente na hora do parto. Embora essas mulheres pudessem ter suas práticas legitimadas pelo dom, suas falas evidenciavam que seus espaços de atuação eram limitados ao interior da família extensa. Exatamente o oposto da atuação das par-teiras nomeadas por diferentes indígenas da aldeia Kwatá e que fizeram um curso para parteiras “na época da Funasa”. Essas “parteiras” atuavam transitando entre diferentes famílias extensas. Foi o caso do parto feito por Gioconda junto com a enfermeira do polo-base, mencionado acima, no início de 2011. Vemos também o trânsito das “parteiras” no parto relatado por Naná, que mandou chamar, além de Araci, uma parteira que, por morar em uma parte distante da aldeia Kwatá, chamada Cajual, não chegou a tempo para fazer o parto.

Araci contou-me em detalhes como fora o parto de Naná três dias após o ocorrido, enquanto estávamos na cozinha de Ceci, junto com Iara, que também auxiliou na hora do parto. Ceci é a avó de Moacir e Iara, sua tia. Perguntei quem havia ajudado a Naná:

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Eu, a Iara, Rita e o José, o rapaz, o técnico de enfermagem do polo-base. Aí, quando ela tava agoniada, né, nós ajudando ela, né? Aí a gente viu que não ia descer a criança, assim, de cócoras como ela queria ter, né? Aí, mesmo, acho que ela tava nervosa também, atacou um nervoso nas pernas dela, que ela ficou assim [Araci balança as pernas como se estivesse tremendo]. Não sei se é porque ela não tinha se alimentado bem antes, né? Aí, nós fizemos a cama e colocamos ela. Aí, ela se deitou. Aí, veio logo depois. Até que a criança veio rapidinho, não custou não. Agora, como eu tô dizendo, o que custou foi a placenta que ela teve 7 horas [o bebê], foi ter 9 horas [a placenta]. Aí, a gente ajeitou, ajeitou, ajeitou [talvez estivesse fazendo referência a massagens abdominais]. Aí, tem uma planta aqui que a senhora conhece, cubiu, né? Uma planta assim que dá uma fruta que a gente faz doce. Ali em casa tem, com uma folha larga [complementa Ceci]. Aí, essa folha aí, a gente pega a folha, a gente pila ela, tira assim dois dedos de sumo, do sumo dela, a gente pega põe uma pitadinha de sal e amônia e dá pra pessoa beber. Aí, eu peguei e dei pra ela, né? Dei duas vezes pra ela, né? Aí, eu olhava no relógio e dizia: ai, ai, ai, Senhor, nada de descer! Aí, eu lembrei a oração da Santa Margarida. Aí, eu fiquei atrás das costas dela. Aí eu fui falando: vou falar uma oração e quero que tu fale comigo, eu disse pra ela. Aí eu falava: Santa Margaria, Santa Margaria... daí, eu ia dizendo, daí, ela ia falando. Eu rezei três vezes atrás das costas dela. Foi terminando a oração e aquilo foi arriando. Ela teve rapidinho.

Ceci interveio e disse para Araci:

– Fala as palavras!

Perguntei se ela podia falar. Araci respondeu que sim, riu e pronunciou a oração de Santa Margaria:

Santa Margaria, Santa Margarida, não tô prenha nem parida Tirai essa carne podre de dentro da minha barriga Santa Margaria, Santa Margarida, não tô prenha nem parida Tirai essa carne podre de dentro da minha barriga.

Araci contou que após arriar a placenta, foi José, o técnico de enfermagem, que “asseou ela, né? Tudo direitinho”. Depois disso, Naná foi para a rede, o técnico pediu que preparassem um copo de leite para ela e foi embora. Perguntei se haviam feito mais alguma coisa para a Naná e Araci falou que “puxou a mãe do corpo” dela:

Eu puxei, eu puxei porque quando nasce, a mãe do corpo tá fora do lugar. Aí, a gente tem que ajuntar, ajeitar. Puxa dos braços, das costas, tudinho. Dos braços puxa pra cima. Puxa, balança a barriga, faz assim com a mão [demonstra nela mesma, como se estivesse fazendo uma massagem e ajeitando algo logo abaixo do umbigo] e sente a palpitação. Tem que fazer isso pra mulher não ficar assim com aquela cólica.

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Na hora do parto da Naná, uma mulher ficou por trás, com os braços ao redor da cintura dela. Maria disse que ela tinha um “puxo comprido”. Perguntei o que era isso e Araci e Ceci explicaram:

Araci. Isso é a dor pra descer a criança. Quando vinha a dor, né, ela botava a roupa do filhinho dela na boca e ela mordia, né? Quando dá a dor pra nascer a criança, a gente ajuda também, ajuda pouco, mas ajuda a criança.

Ceci. A dor dá, passa e depois volta e demora mais e dói mais, assim vai até dar aquela dor de nascer a criança. Aí, desce aquela secreção, já é da criança, aí, quando vem o puxo, a gente faz força junto. Aí para aquela dor. Aí, quando vem de novo aquela dor, a gente faz força. Porque tem pausa, né? Aí, quando vem de novo, que a criança já tá perto de nascer, aí que vem mesmo, toda hora aquela dor. Aí, a gente ajuda, aí, quando ele para, a gente para também.

Apresentei essas falas porque sintetizam elementos presentes em diversos relatos que obtive sobre experiências de parto em casa, na aldeia, os quais permi-tem delinear um modelo de atenção munduruku ao parto em casa. Segundo propõe Menéndez (2009), o modelo é sempre uma abstração construída pelo pesquisador. Nesse sentido, o modelo de atenção ao parto que apresento deve ser lido como um esforço analítico produzido com base na fala das mulheres indígenas sobre suas experiências de parir ou de partejar. Ao todo, foram 22 mulheres que relataram suas experiências, sendo que algumas falaram sobre mais de um parto.

Entre os Munduruku, o parto é feito em interação entre a parturiente e as mulheres que a auxiliam. Não houve nenhum caso relatado de mulheres que tenham parido sozinhas, como descrito em outros grupos indígenas (Langdon, 2013; Pérez-Gil, 2007a). As experiências relatadas indicam uma diversidade de posições no ato: de joelhos, com as mãos apoiadas na rede; parcialmente deitada ou sentada no chão, com alguém segurando pelas costas com os braços ao redor da parturiente; ou “sentada” em um banquinho (um banco de altura pequena, talvez 10 cm), usado especialmente para o parto, com alguém apoiando pelas costas (Sco-pel, Dias-Scopel & Wiik, 2012). Esta última postura – sentada em um banquinho, quase de cócoras – era a preferida entre as mulheres Munduruku, dada a pequena distância entre a mulher e o chão.

Entre os Munduruku, o parto não aparece como um evento cercado por cerimônias; implica apenas a quebra da rotina cotidiana para a família elementar, sem impacto no andamento diário dos demais membros da família extensa, embora algumas pessoas sejam mobilizadas durante o trabalho de parto. Como visto aqui, mulheres com mais de 40 anos que pariram na aldeia contaram com o auxílio das mulheres mais velhas da família extensa. Eventualmente, em casos de complicações, algumas mulheres relataram a participação do pajé.64 Cumpre esclarecer que entre os Munduruku da TIKL encontramos tanto homens quanto mulheres, ainda em idade

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fértil, atuando como pajés (Scopel, Dias-Scopel & Wiik, 2012; Scopel, 2013). As parteiras que transitam por entre diversas famílias extensas podem ser vistas como um recurso recente, resultado talvez da interação com os serviços biomédicos.65

A atuação da Equipe Multiprofissional de Saúde Indígena no parto domiciliar em um contexto

de pluralidade de formas de atenção

Não posso deixar de mencionar a atuação dos técnicos de enfermagem, da enfermeira e do médico que, em determinados momentos, participaram na realização de partos na aldeia, sempre junto com outras mulheres, isso durante o tempo de minha pesquisa de campo.

Nesse modelo de atenção ao parto, quero sublinhar a participação de diver-sos atores de diferentes formas de atenção à saúde e às enfermidades a partir de decisões tomadas pela própria mulher parturiente e seu marido. Além das mulheres mais velhas da família extensa, as “parteiras”, as profissionais da saúde e os pajés também podem ser chamados pelo casal. Todavia, estamos falando do contexto de uma aldeia que dispõe de um polo-base, uma unidade de atendimento primário à saúde e conta com a presença de profissionais que estão sempre se revezando em escalas de trabalho. Por esse motivo, Lara contou com a participação do marido, que a segurou pelas costas, da “parteira” Gioconda e do médico no nascimento do sexto filho, na noite de 15 de novembro de 2011, em casa, na aldeia Kwatá. No terceiro dia após o parto, Lara permanecia dentro de casa e decidi visitá-la, após notar que outras mulheres da família extensa estavam fazendo o mesmo. Lara contou que a “parteira”, além de preparar o banquinho para o trabalho com muitos panos em volta e por cima, o fez com a ajuda do médico. Após o parto, o médico a asseou e foi embora. A “parteira” “puxou a mãe do corpo” e permaneceu na casa de Lara até domingo, auxiliando-a nos afazeres da casa. Lara sentiu-se reconfortada com a presença do médico justamente porque o bebê havia nascido com o cordão umbilical enrolado no pescoço e na cabeça.

Nas demais aldeias, a presença da equipe biomédica é esporádica, e em geral são os indígenas que se deslocam até o polo-base, e não a equipe de saúde

até a aldeia. Embora façam visitas periódicas para campanhas de vacinação e

atendimento médico, na maior parte do tempo os AISs são os únicos membros da

equipe de saúde presentes nas aldeias (Scopel, 2013). Nelas, as mulheres que deci-

dem parir em casa são auxiliadas por outras mulheres mais velhas de sua família

extensa, podendo ou não contar com uma “parteira” ou pajé. Aliás, a participação

de “parteiras”, até mesmo na aldeia Kwatá, embora requisitada, nem sempre ocor-

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ria, dada a distância da casa da parturiente e da “parteira”. Mas isso não foi um problema para os Munduruku, pois, conforme dito anteriormente, o parto é, antes de tudo, um acontecimento do âmbito familiar, de foro íntimo da família elementar, do qual as mulheres mais velhas da família extensa são chamadas a participar. No caso apresentado, inclusive, a mulher chamada para auxiliar no parto das jovens de sua família extensa era experiente na realização de partos e em determinadas práticas xamânicas, como rezas e ervas, específicas para facilitar o trabalho de parto. As “parteiras” e os pajés apareceram nos relatos das mulheres Munduruku como coadjuvantes dessas mulheres mais velhas somente nos casos de complicação na hora do trabalho de parto.

Cosmografia e parto: a importância da “mãe do corpo” nos cuidados com o parto

De certo modo, “pegar barriga” e “puxar a mãe do corpo”, práticas centrais nas formas de atenção munduruku ao parto, são conhecimentos que não se concen-tram nas mãos de especialistas. Embora entre os Munduruku os pajés possam pres-tar auxílio à mulher gestante, assim como as “parteiras”, muitas outras mulheres, com idade acima de 50 anos, sabiam “pegar barriga” para identificar a situação do feto, a sua posição e ajeitá-lo no “nascedouro” da mulher. Como vimos no capítulo anterior, a identificação do sexo do bebê é feita a partir das interpretações que as mães fazem sobre os movimentos fetais, mas também a partir das intervenções executadas por uma mulher que sabe “pegar barriga”. De modo semelhante ao que Platt (2002: 127) encontrou entre os Macha, grupo falante de quéchua, na Bolívia, sugiro que, entre os Munduruku, as mulheres que também sabem “pegar barriga”, as quais podem ou não ser parteiras, têm habilidades de apalpar e manusear o ventre materno, reposicionando uma imagem cultural do feto dentro do corpo da mãe.66

Do mesmo modo, os saberes relativos à “mãe do corpo” estão horizon-talmente distribuídos entre homens e mulheres Munduruku. Durante a segunda etapa da pesquisa de campo, quando Naná ainda não estava grávida, conversamos sobre a “mãe do corpo”. No dia 1o de novembro de 2010, após o almoço, vi que Naná estava na casa de Rita e decidi ir lá passar aquelas horas de muito calor à sombra da varanda da casa. Naná comentou que havia ido “pegar a mãe do corpo”.

Ela tocou seu umbigo e me mostrou que a “mãe do corpo” ficava bem abaixo dele.

Afirmou que a mulher fica doente quando a “mãe do corpo” se espalha pelo corpo.

Ivana já havia me falado que somente as mulheres têm “mãe do corpo”.Foi muito comum ouvir as mulheres falarem sobre a “mãe do corpo”,

pois saber se ela estava ou não no lugar constitui uma das primeiras práticas de

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autoatenção das mulheres Munduruku na vida adulta (Scopel, Dias-Scopel & Wiik, 2012). Ao sinal de qualquer mal-estar – dor de cabeça, febre, enjoo, dor abdominal ou cólica – a primeira ação das mulheres Munduruku é “puxar a mãe do corpo”. Em geral, fazem também uso de remédio caseiro, como chás. Todavia, o deslocamento da “mãe do corpo” é nitidamente uma preocupação na vida das mulheres adultas Munduruku, e as medidas necessárias para o realojamento são uma das primeiras práticas de autoatenção.

Certa vez, durante a segunda etapa da pesquisa de campo, comentei que estava com mal-estar, enjoada e com a sensação de estômago pesado, como se não estivesse conseguindo fazer a digestão. Iara me recomendou que fosse ver Araci para ela “puxar a minha mãe do corpo”, pois o que eu estava sentindo poderia ser sinal de seu deslocamento. Fui, então, até a casa de Araci, contei-lhe o que sentia e disse que Iara sugeriu que eu a procurasse para examinar a minha “mãe do corpo”. Araci me levou até o seu quarto, orientou-me a deitar na cama e solicitou que eu abaixasse um pouco a bermuda e levantasse a blusa. Pediu à sua filha, que estava ali observando tudo, para alcançar um óleo. Ela trouxe um óleo corporal, desses produtos estéticos comprados no supermercado ou na farmácia. Araci passou o óleo nas mãos, pingou algumas gotas sobre minha barriga e passou a massagear com seus dedos toda essa área, fazendo uma leve pressão na região entre o umbigo e a pélvis. Massageou e apalpou por alguns minutos, não mais que dez minutos, e concluiu que minha “mãe do corpo” estava no lugar. Indicou-me um chá para ajudar na digestão.

A “mãe do corpo” é uma força importante para a saúde da mulher Mun-duruku no dia a dia, e foram especialmente as práticas de autoatenção ao parto que me fizeram notar sua centralidade na vida dessas mulheres. “Puxar a mãe do corpo” é fundamental para realizar um bom parto. Na hora do parto é preciso estar atenta para fatos não previstos, mas que podem alterar uma situação inicialmente normal e saudável, como, por exemplo, a “mãe do corpo nascer antes da criança”, ou seja, sair do corpo da mulher. Conforme explicou Araci, que já havia visto isso acontecer, “é perigoso, a mulher pode morrer”. Ela estava costurando enquanto me relatava as experiências de parto dos seus 13 filhos e “outros partos que vi”, como ela própria disse. Naquele momento seu marido Itamar chegou e participou da conversa, tentando fazer-me entender o que era a “mãe do corpo”. Eu perguntava se era o útero, ou a placenta, e a resposta, nos dois casos, era negativa. Itamar explicou que “a mãe do corpo é uma espécie de saúde da mulher. Se sai antes da criança, a mãe pode morrer”. Araci explicou que durante a gravidez, conforme a criança vai crescendo, “a mãe do corpo vai descendo”. É parte das práticas de autoatenção no parto “agasalhar a mãe do corpo”, isto é, colocá-la de volta no lugar após o parto. Do contrário, a mulher sofrerá problemas de saúde, desde mal-estares leves, como cólicas, até casos mais sérios, que podem levar à morte.

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Em outro momento, Araci compartilhou com mais detalhes seus saberes sobre a “mãe do corpo”. Confirmou que esta se localiza abaixo do umbigo. Afirmou que toda mulher a tem e que febre e dor são sinais de que a “mãe do corpo saiu do lugar”. Quando a “mãe do corpo” sai do lugar, “entra embaixo da costela, do estô-mago”, e isso causa “diarreia, febre, dor de cabeça, dor no corpo”. A mãe do corpo costuma se deslocar mais quando a mulher não se alimenta bem e quando “entra vento embaixo da gente”. Para saber se a “mãe do corpo” está no lugar é preciso puxar todo o corpo, inclusive os dedos, até estalar. Se não estalar, é sinal de que está fora do lugar. É por meio de massagens que se coloca a “mãe do corpo” novamente em seu lugar e também se confirma sua localização. Filó, matriarca de outra família extensa na aldeia Kwatá, explicou que a “mãe do corpo” era a força da mulher.67

Outras práticas de autoatenção relativas ao parto são os banhos. Eu mesma tomei banhos preparados por Araci para facilitar o meu trabalho de parto. O pro-pósito dos banhos é abreviar o tempo do trabalho de parto, ou, como disse Araci, “para não custar a ter filho, para nascer logo”. O banho consistia em um preparado de folhas classificadas como lisas e oleosas, entre as quais, graviola, “ariticum” e cacau. Essas folhas são maceradas, quebradas em alguns pedaços, misturadas com água e deixadas ao sol para esquentar. Araci aconselhou-me a tomar o banho dentro de casa após banhar-me no rio, dizendo que eu poderia beber um pouco daquela água. Note-se que o banho não se confunde com a limpeza higiênica diária do banho no rio ou na cacimba. Fiz exatamente como ela me havia aconselhado: após me lavar no rio, ainda na parte da manhã, subi para casa, peguei a bacia de metal onde estava meu banho, levei-a para o quarto e, com o auxílio de um caneco, joguei a água do banho sobre minha cabeça e meu peito, deixando que escorresse sobre minha barriga. Fiz apenas dois banhos.

No entanto, as mulheres Munduruku relataram fazer muitos banhos ao longo da gestação, de três a quatro vezes, sobretudo no último trimestre. Os banhos feitos para os partos atendiam ainda a outros objetivos com vistas a contribuir para o posicionamento correto das crianças, isto é, com a cabeça encai-xada no “nascedouro” da mulher. Ceci, uma senhora de 92 anos, lembrou que seu primeiro parto foi muito difícil e que foi preciso chamar o pajé, pois a criança custou a nascer porque “estava de pé”. O pajé a benzeu e a criança nasceu pelo braço. Após o parto, ele ensinou-lhe um banho para fazer durante as gestações seguintes para prevenir que seus futuros filhos nascessem de pé e assim facilitar o parto e ela sentir menos dor. Nesse caso, a água do banho devia ser jogada sobre a barriga com a ponta de uma flecha virada para baixo, a qual deveria ser jogada na direção “onde nasce o sol”, após o último banho. Ceci conta que fez três vezes o banho e todos os seus outros 11 filhos nasceram “pela cabeça”. Foi citado também o banho com tipiti novo “pra não custar a ter filho”, conforme relatou Iza, uma senhora experiente em partejar mulheres jovens de sua família extensa. Araci também disse

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que banho de tipiti novo ajuda na hora do parto, pois “nada segura ele [o bebê]” na hora de nascer e também “para não sentir muita dor, pra nascer logo”. Embora os banhos possam ser feitos com diversas folhas ou apenas com água jogada sobre o corpo com objetos específicos (tipiti ou flecha), o que constitui sua unidade é o uso de modo preventivo com o objetivo de facilitar o trabalho de parto, em que se destaca a busca pela brevidade e pela diminuição da dor.

Conforme dito anteriormente, “pegar barriga”, “puxar a mãe do corpo” e preparar banhos não são saberes que se concentravam nas mãos de especialistas entre os Munduruku da TIKL (Scopel, Dias-Scopel & Wiik, 2012; Scopel, 2013). Além das “parteiras” e pajés, as mulheres mais velhas da família extensa também realizavam partos na aldeia Kwatá. Aliás, a participação das mulheres mais velhas da família extensa, fossem mães, sogras ou cunhadas da parturiente, apareceu com mais frequência não só no período do trabalho de campo, mas também nos relatos sobre experiências passadas. A atuação dos pajés apareceu exclusivamente em situações de complicação na hora do parto ou durante a gestação, quando eram procurados para “pegar barriga”. Portanto, muitas mulheres já partejaram e, em alguns casos, o fizeram sem ter o saber adquirido pelo dom e muito menos em um curso de capacitação. A partir dos relatos, podemos dizer que a parteira é aquela que preparava o local adequado para o trabalho de parto, “pegava criança”, cortava o cordão umbilical e “puxava a mãe do corpo”. E que sua área de atuação se res-tringia ao interior da família extensa. Não ignoro, contudo, que algumas mulheres fossem reconhecidas por terem o dom de partejar e, por isso, pudessem circular entre as famílias extensas, auxiliando-as. Todavia, seria um equívoco supor que os saberes necessários para partejar constituíssem categorias de mulheres ou homens especializados. Por esse motivo, apenas parcialmente, e muito superficialmente, a “parteira” Munduruku pode ser caracterizada como especialista ou pessoa deten-tora de saberes esotéricos, mesmo que algumas mulheres tenham legitimidade social para atuar em casos complicados fora do âmbito da própria família extensa.68

Há muito, as categorias pajé, cacique e parteira indígenas foram analisadas como um efeito da relação com a sociedade ocidental (Gow, 1996; Oliveira Filho, 1998; Pérez-Gil, 2004, 2007a).69 Todavia, se a emergência de tais categorias pode ser entendida como uma reinvenção cultural em função do contato interétnico, por outro lado ela não se explica pela simples oposição entre conceitos de hegemonia/subalternidade (Sahlins, 1997a, 1997b).

Scopel (2013), ao descrever as formas de atenção aos processos de saúde- doença-enfermidade entre os Munduruku da TIKL, destacou a importância de se considerar a pluralidade de atores sociais que atuam como especialistas nesses processos, entre os quais se destacavam indígenas Munduruku, de outras etnias, curadores ribeirinhos, curadores citadinos, além dos profissionais da saúde bio-médicos e religiosos de diversas ordens (católicos, protestantes, espíritas, can-

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domblecistas e umbandistas). Ao situar a pluralidade de especialistas indígenas Munduruku (pegadores de desmentidura e rasgadura, benzedores, pessoas que sabem como “pegar barriga” e “curadores pajés”), o autor sublinhou que de modo algum as práticas e diversidades de técnicas observadas poderiam ser restritas a competências específicas. Os pegadores de desmentidura sabiam benzer. Os ben-zedores sabiam pegar desmentidura e rasgadura. Como vimos, as mulheres que sabiam pegar barriga também benziam e preparavam banhos. A única exceção, neste caso, foi a atuação dos “curadores pajés”, cujas práticas incluíam o dom para receber caboclos e transitar no mundo subaquático. Entretanto, conforme assinala Scopel (2013), embora somente os curadores pajés trabalhassem com “espíritos do fundo” e com caboclos, as práticas xamânicas eram parte dos saberes cotidianos dos indígenas na vida da aldeia. Homens e mulheres Munduruku conheciam as plantas que afastavam os bichos do fundo, os encantados, sabiam preparar remédios caseiros para uma diversidade de enfermidades e infortúnios, entre tantos outros saberes de uso pragmático, fosse para tratar doenças, infortúnios ou mal-estares, fosse para prevenção, isto é, para manter a saúde e o bem-estar individual ou familiar.

Cabe sublinhar que, embora seja possível identificar uma diversidade de especialistas Munduruku, seus saberes não constituem algo similar às categorias profissionais biomédicas nem suas práticas se limitam a competências específicas. Isso é central para evitar equívocos nas estratégias de articulação de seus saberes com os serviços de saúde biomédicos e uma medicalização desnecessária da saúde indígena, em especial do parto domiciliar, feito na aldeia.

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Notas

60 Fala editada para efeito de fluência.

61 Murphy e Murphy (2004: 189) mencionam que entre as mulheres Munduruku do rio Cururu, afluente do rio Tapajós, o trabalho de parto parecia ser mais rápido e as dores menos intensas do que entre as mulheres europeias. Talvez a percepção do casal estivesse relacionada à prática de autoatenção ao parto, tal como encontrei entre as mulheres Munduruku da TIKL, no Amazonas.

62 Por estar interessada nas práticas de autoatenção à gestação, parto e pós-parto, isto é, nas práticas que os sujeitos intencionalmente realizam de maneira bastante autônoma em relação aos especialistas, não fiz esforços para contatar os especialistas Munduruku, como, por exemplo, as “parteiras”, para promover uma investigação sobre suas práticas e histórias de vida, com entrevistas, como fizeram Sargent e Bascope (1996), Tornquist (2004) e Ferreira (2013). No entanto, ao longo da pesquisa de campo, encontrei algu-mas “parteiras” de diferentes aldeias e conversamos sobre partos.

63 Pérez-Gil e Wakanã (2007) encontraram também entre as parteiras Kairiri-Xukuru, Gerinpakó e Karuazu, dos estados de Alagoas e Pernambuco, queixas semelhantes àque-las das parteiras Munduruku quanto à idade avançada como motivação para não realizar partos. Contudo, as autoras propõem que a negativa das parteiras resultava não somente das dificuldades advindas com a idade, mas também da relação com o sistema biomédico e os profissionais da saúde que incentivavam o parto hospitalar e desestimulavam o tra-balho das parteiras.

64 O casal Murphy (2004: 189-190) também encontrou uma situação semelhante entre as mulheres Munduruku em trabalho de parto nas aldeias do rio Cururú, Tapajós. Segundo os autores, o parto reunia as mulheres da família, a parturiente era auxiliada por uma mulher mais velha, preferencialmente sua mãe, e nos casos mais complicados o pajé também participava.

65 Pérez-Gil (2007a: 34), ao analisar os dados obtidos em três reuniões realizadas com par-teiras, pajés, agentes indígenas de saúde, lideranças indígenas e mulheres do movimento indígena, que congregavam 17 populações indígenas do Acre, pertencentes a três troncos linguísticos diferentes (pano, arawak e arawá), também sugere que o “conceito de par-teira (...) [é] uma noção alheia [às populações indígenas] e que foi introduzida através do contato com a sociedade envolvente”. Tornquist (2004) afirmou que a atuação médica e as iniciativas profissionalizantes de formação de parteiras, a partir dos séculos XIX e XX, envolvia resistências internas e externas ao campo médico. Apesar dessas resistências, a assistência hospitalar ao parto e o aumento do parto cirúrgico no Brasil, em proporções criticadas pela Organização Mundial da Saúde, convergem para um cenário de medica-lização crescente da gestação, do parto e do pós-parto, até mesmo entre as populações indígenas.

66 É preciso esclarecer que as semelhanças terminam por aqui, pois os relatos das mulheres Munduruku permitem afirmar que a imagem cultural do parto não é a de luta entre mãe e bebê, como ocorria entre os Macha. Ao contrário, entre os Munduruku essa imagem

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parece estar mais ligada à cooperação entre mãe e bebê na hora do trabalho de parto, que juntos se esforçariam para levar a cabo o nascimento.

67 Uma pesquisa sobre os cuidados no pós-parto, feita por meio de entrevistas semies-truturadas com parturientes e familiares em Ribeirão Preto (SP), também menciona a centralidade da “mãe do corpo” para a saúde da mulher (Stefanello, Nakano & Gomes, 2008). Todavia, cumpre esclarecer que encontrei diferenças significativas na leitura do texto quanto à compreensão munduruku sobre a “mãe do corpo”. Apesar de, em ambos os contextos, a “mãe do corpo” ter a característica de se deslocar no interior do corpo da mulher, podendo sair do corpo, para as mulheres de Ribeirão Preto a “mãe do corpo” aparece, às vezes, associada ao útero, e seu deslocamento após o parto é motivado pela falta do calor do corpo do bebê recém-nascido. Isto é, a mãe do corpo é dotada de uma agência que não aparece na vida munduruku. Para as mulheres Munduruku, o desloca-mento da “mãe do corpo” provocava sofrimentos e doenças. Mas, como vimos, a causa estaria nas ações da própria mulher, ainda que ela não tenha controle direto sobre as razões que a levaram a não se alimentar direito ou a não se cuidar para evitar pegar frio etc.

68 Outros autores também refletiram sobre as dificuldades em situar as pessoas (mulheres ou homens) que auxiliavam no parto como especialistas indígenas, mesmo nos contex-tos onde era possível identificar a legitimação de alguns para atuar nos partos difíceis (Langdon, 2013; Pérez-Gil, 2007a; Platt, 2002; Sargent & Bascope, 1996).

69 Quanto à figura do xamã, por exemplo, Peter Gow (1996) sugeriu que o xamanismo curativo ayahuasqueiro seria o resultado do contato entre os povos indígenas e a população mestiça na região do Peru. Laura Pérez-Gil (2004) também sugeriu que, entre os Yaminawa e Yawanawa (Pano), a emergência do papel de xamã como especialista em cura é resultado de um processo histórico de contato. Segundo a autora, a prática do xamanismo, antes do contato, não seria exclusividade de especialistas em cura, mas sim prerrogativa de todos os homens em fase adulta. A autora apoia seu argumento nas narrativas indígenas sobre o processo de aprendizado que seria comum a todo jovem ou homem em fase de puberdade, ou seja, todos tinham algum conhecimento sobre práticas xamânicas. De modo diferente, entre os Munduruku, do Tapajós, Murphy (1958) observou que o aprendizado do xamanismo era restrito aos filhos de homens xamãs. Entre os Munduruku, segundo o autor, a iniciação no xamanismo envolvia uma questão de filiação paterna e não era aberta a todo indígena. Murphy comenta que, embora toda criança fosse capaz de imitar a atuação do xamã apenas por observação, a prática do xamanismo era exclusiva dos descendentes de xamãs, tal como o conhecimento esotérico. Scopel (2013) encontrou uma situação diferente para os Munduruku da TIKL, onde a prerrogativa para ser um pajé curador era o reconhecimento de um dom nato, e não uma questão de herança familiar, e a habilidade para o “trabalho” como resultado de um longo processo de cura.

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