Programação - 1ª Semestre/2014 - Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi
capítulo 4 as instituições e a prática institucional · nível do inconsciente do grupo. ......
Transcript of capítulo 4 as instituições e a prática institucional · nível do inconsciente do grupo. ......
Definição das instituições
Compreende-se por instituições: • grupos sociais oficiais: empresas, escolas, sindicatos; • sistemas de regras que determinam a vida desses
grupos. Até aqui, o estudo das instituições dizia essencialmen
te respeito aos sociólogos. No começo do século XX, Fauconnet e Mauss, no espírito de Durkheim, definem a sociologia como uma ciência das instituições. Eles escrevem: .. As instituições são um conjunto instituído de atos ou de idéias que os indivíduos encontram à sua frente e que se impõe mais ou menos a eles. Não há razão alguma para que se reserve exclusivamente, como em geral se faz, essa expressão aos arranjos sociais fundamentais. Entendemos, portanto, por essa palavra tanto os costumes, os modos, os preconceitos e as superstições, quanto as constituições políticas ou as organizações jurídicas essenciais; pois todos esses fenômenos são da mesma natureza, diferindo apenas em grau. A instituição é, em suma, na ordem social aquilo que a função é na ordem biológica, e, da mesma forma que a ciência da vida é a ciência das funções vitais, a ciência da sociedade é a ciência das instituições assim definidas"UI1 .
Em contraposição, um sociólogo contemporâneo, G. Gurvitch, esforça-se para eliminar o conceito de instituição
193 'NSToTU Tu •-. or;. 1 1
tiii8<.10Tf C" • p • c
do vocabulário sociológico: "Esse termo", diz ele, "foi empregado na França. em sentidos muito diversos, pela escola de Durkheim e na obra de Maurice Hauriou. Atualmente, os sociólogos americanos usam e abusam desse termo com uma alarmante profusão e falta de clareza . . . Compreender-se-á que a sociologia contemporânea tenh.a tudo a ganhar desembaraçando-se do conceito de instituição; isso, tanto mais que, recentemente, se começou nos Estados Unidos a comprometer o conceito, em si mesmo muito útil, de 'estrutura social' ligando-o com o de instituição''l6t.
O conceito de instituição é utilizado em setores mais ou menos próximos da pesquisa sociológica. Principalmente:
• em linguagem jurídica: M. Hauriou propõe que se separe, no conceito de instituição, a instituição grupo e a instituição coisa~. Sartre estabelece uma distinção e uma unificação análogas entre a instituição práxis e a instituição coisat6t;
• no vocabulário da antropologia, distinguem-se, com Kardiner, as instituições primárias e as instituições secundárias. As instituições primárias (modos de educação, formas de propriedade, etc ... ) influem sobre a personalidade de base, formam-na. As instituições secundárias são criadas pela personalidade de base de uma sociedade. A passagem de uma a outra efetua-se por mecanismos comparáveis ao mecanismo freudiano da projeção1a.
M. Dufrenne observa que: "quando Kardiner define a instituição como 'aquilo que os membros da sociedade sentem, pensam ou fazem'... não se sabe exatamente onde começa o social e onde termina o psicológico. Parece--nos que é preciso restituir à instituição o s~u peso de objetividade e a sua especificidade, e, em constqüência, ~azer uma distinção mais clara entre a instituição como fato social e a instituição como prática vivida"183.
A noção de instituição é utilizada igualmente pelos psicossociólogos, como o mostra J. Stoetzel: "As relações interpessoais não se produzem entre desconhecidos que se encontram no deserto; desenvolvem-se em contextos sociológicos, têm instituições como moldura, e dependem mesmo muito estreitamente da cultura particular em que aparecem. Um bom exemplo da maneira pela qual os estatutos e os papéis regem as relações entre as pessoas é o caso do doente e do médico tal como o analisa Parsons. . . Além disso, os próprios meios de comunicação são objetos de uma ins.-
194
titucionalização. É o que mostraria o estudo das modalidades segundo as quais funciona a troca verbaPG•-1116".
Desde 1942, o conceito de instituição assumiu um sentido novo com a terapêutica institucional: o movimento da p icoterapia institucional acentuou a possibilidade de conferir-se às "instituições" psiquiátricas uma função terap~utica, e não mais antiterapêutica. A institucionalização do meio pelos doentes (clubes, etc ... ) tem função tera-pêutica 166• •
A definição das Instituições e a utilização desse conc71-to na prática é de orientação sociologizante. Sem ne~~= ~~teiramente essa orientação, somos levados, em consequencta de observações de psiquatras e de analistas que pra~icam a terapêutica institucional, a ir mais longe na pesquts_a e a formular a hipótese de que a instituição tamb~m extste a() nível do inconsciente do grupo.
Para tornar mais clara essa orientação, é preciso partir da idéia, desenvolvida, em particular, por Levi-Strauss1G7 ,
de que o inconsciente individual pertence à ordem institucional, essa ordem que estrutura o parentesco. Levi-Strau s beneficiou-se com uma dupla herança: a descoberta etno· gráfica da proibição do incesto e a descoberta freudiana do complexo de ~dipo foram aproxifl\.adamente contemporâneas. Freud traChtziu pelo mito do parricídio original e o princ 'pio da repetição ontogenética da filogênese histórica essa idéia de que o inconsciente individual e tá ligado à ordem institucional, como se vê ainda na análise dos ritos de passagem e de entrada na vida.
Tornemos as coisa ainda mais preci as: o complexo é uma estrutura de origem institucional que organiza a vida e a hi tória individual. Da mesma forma, para Levi-Strauss, as estruturas elementares e in tituídas do parente co organizam as relações sociais concretas do parente co, estabeJe. cem a troca , determinam as orescricões e as interdições A universalidade do complexo de :Êdip~ significa que, naqui, lo que cada indivrduo vive, está presente a estrutura uni versal da instituição parentesco. O nosso inconsciente é instituído.
Ingressamos assim no problema do grupo e da instituição no grupo, em seu inconsciente: "A experiência do grupo" é o elemento vivido de uma ordem estruturante, institucional, que traduz, no grupo, a organização da sociedade, e principalmente a sua organização política, a da produção.
195
Outros tipos de organização da vida social, no entanto estão igualmente presentes nesse inconsciente de gru~ de que Freud revelou certos mecanismos, por exemplo, a identilicação. Qual é a gênese desse inconsciente social? Ela implica certas repressões sociais tais como a da "censura burocrática" com relação à palavra do grupo. Por exemplo: numa classe experimental em autogestão, os alunos produzem um jornal; a direção censura um artigo. Pode-se então estudar na classe a experiência vivida dessa censura ao nível consciente e inconsciente (expressão indireta da reação a essa repressão). A burocracia representa aqui um papel estrutural comparável ao superego.
Compreender-se-ão melhor por esse meio as diliculdades encontradas em colocar em prática no grupo, particularmente no T. Group, a análise institucional: dificuldades junto aos analisados (os estagiários), mas também junto aos analistas (monitores de grupos), e mesmo junto ~queles que aceitam hoje em dia as nossas hipóteses sobre a ordem institucional e se esforçam por aplicá-las em suas experiências.
Inversamente, e de maneira complementar, a análise institucional pode ser também uma resistência. É certo que não se pode aceitar tal e qual, sem analisá-la, a vontade de estabelecer a análise na "dimensão institucional".
A prática psicossociológica cuida de instituições, mas sempre através de grupos que falam: nesses grupos, a pala· vra da sociedade passa por palavra reprimida, tornada ideológica, censurada pelas instituições, como linguagem do desconhecimento; a dimensão politica mostra-se e encobre-se nessa alienação da palavra inacabada. Roland Barthes1M
destacou uma oposição entre o acabamento da língua e o caráter i.tlacabado da fala: "na linguagem, há uma desproporção muito grande entre a língua, conjunto acabado de regras, e ~ "falas" que se arrumam sob essas re_gras e são em número quase infinito". R. Barthes acentua igualmente, com Saussure, o caráter institucional da língua e a relação entre a fala e essa instituição: "Frente à línv.ua, inc:tituição e sistema, a fala é essencialmente um ato individual de selecão e de atualização". Diríamos antes, no nue se refere à fala, um ato interindividual, porque ele implica o Outro, a quem uma pes oa se dirige.
Esse modelo une-se ao de Saussure que faz di-;tincão entre língua (instituicão) e fala (lugar de relacão interindividual), provavelmente a partir de uma reflexão sobre o coo-
196
rtito entre Durkheim e Tarde, e, por meio desse conflito, sobre a separação entre sociologia e psicossociologia.
Se retenho aqui a dupla instituição-criação que reproduziria a dupla língua-fala é também lembrando-me de que essa dupla é, segundo R. Barthes, a do sistema finito das c truturas e a do sistema infinito da fala. Traduziremos pela oposição entre o acabado e o inacabado.
Resumamos essa evolução: O sentido do conceito de instituição modificou-se pro
fundamente de de mais ou menos um século. No tempo de Marx, quer dizer, no século XIX, entendia-se por instituições, essencialmente, os sistemas jurídicos, o direito, a lei. Para o marxismo, portanto, as "instituições" e as "ideologias" são as "superestruturas" d~ uma sociedade dada, cujas "infra-estruturas" são as forças produtivas e as relações de produção.
Depois, numa segunda fase, o conceito assume uma importância central em sociologia com a escola francesa. No começo do século XX, Durkheim e a sua escola defi· nem . a sociologia como uma ciência das instituições.
Hoje em dia, enfim, ingressamos, com o estruturalismo, numa nova fase que conduz a uma profunda reorganização do conceito, cm ligação com a práticas institucionais que se desenvolvem nos domínios da psiquiatria, da pedagogia e da psicos ociologia. Está sendo preparada uma nova definição. das instituições: P. Cardan consigna esse fato169 .
As instituições escolares
A escola é uma instituição social regida por normas que dizem respeito à obrigação escolar, aos horários, ao emprego do tempo etc . . _ Em conscq_üência, a intervenção pedagógica de um professor (ou de um grupo de professores) sobre alunos situa-~e sempre num quadro institucio· nal: a classe, a e cola, o liceu, a faculdade, o estágio.
A pesquisa pedagógica deveria, portanto, colocar claramente esse problema das instituições e de sua experiência vivida, em seu conjunto, fazendo distinção entre instituiçõe>
197
e~ternas à classe - aquelas de que já se ocupa a Sociologia da Educação - e instituições internas. . ~a pedagogia tra~cional, essas instituições, na classe, 1mpoem-.se como um. SIStema que não poderia ser discutido. ~ ? quadro necessário da formação, o seu suporte, julgado ~dis.~ensável. Em oposição a essa concepção das . "instituiçoes , nós propomos chamar de "pedagogia institucional" uma pedagogia em que as instituições são meios cuja estru!ur~ podemos alterar. Na autogestão pedagógica, os alunos mstJtuem ao nível das instituições internas.
Chamo de instituições pedagógicas internas: . • a dimensão estrutural e regulada das trocas peda
gógicas (com os seus limites; por exemplo, a hora de entrada e de saída da classe é um elemento externo à classe regulado pelo conjunto do grupo escolar); '
.. • o conjunto de técnicas institucionaistTo que se pode utilizar nas classes: o trabalho em equipes, o Conselho, etc.
Nós chamamos de instituições pedagógicas externas as estruturas pedagógicas exteriores à classe, o grupo escolar de que faz parte a classe, a Academia, os inspetores, o Direter da escola. Em todo estágio de formação (formação de. ~ucadores, de vendedores, de psicossociólogos), a institmçao externa é a organização que instituiu o est.ágio (tal estágio foi "instituído" por uma empresa, tal outro o foi por uma orga~ção de psicossociólogos, por exemplo). Os prog_rat,n~· as mstruções, os regulamentos são, igualmente, inshtwçoes externas.
Esses programas, essas instituições e esses regulamentos são objeto de decisão de cúpula da burocracia pedagógica. São em seguida difundidos, pela via hierárquica, até a base do sistema, até os professores e os alunos. O conhecimento do sistema institucional externo supõe, portanto, o conhecimento da organização burocrática da educação.
Chamo de burocracia pedagógica uma estrutura social na qual:
a. as decisões fundamentais (programas nomeações) são tomadas no sistema hierárquico, mas na cúpula (instruções e circulares ministeriais). Existe uma hierarquia de decisões, passando do Ministro ao professor e dispondo esse último de uma certa margem de decisão no quadro do sis-
198
tema de normas. Sob o aspecto das decisões fundamentais, -os diferentes graus da hierarquia garantem seja a sua transmis ão, seja a sua execução. Os professores não participam do sistema de autoridade, que estanca no nível da administraÇão.
A atividade de ensino é formadora; ela "transforma" objetos de intervenção (as crianças). A atividade burocrática nada transforma; ela controla a transformação. O modelo weberiano não convém mais ao último nível;
b. ao nível centrfll, a burocracia exerce um poder. Ao nível intermediário, ela é um sistema de ligações (com delegação de certos poderes);
c. os estatutos e os papéis, as obrigações e as sanções, as condições de ingresso na profissão pedagógica são definidos "de maneira fixa e impessoal" (Max Weber), mediante regras que a própria burocracia produz. Há regras de promoção, códigos para anotações, um anonimato nos exames;
d. esses estatutos e papéis, atrás dos quais se apaga a pessoa. situam-se segundo uma certa linha hierarquizada (a "via hierárquica", com, de baixo para cima, os instrutores e os professores, o Diretor, o Inspetor pnmáno, o ilnspetor da Academia, o Reitor, o Ministro); de cima para baixo dessa hierarquia efetua-se uma certa delegação de autori-dade. A hierarquia define, por outro lado, um sistema de -supervisão, de inspeção e de controle;
e. o "universo burocrático" exprime-se ao nível do "vivido", e }'ertence, por esse fato, ao campo da análise psicológica (ansiedade dos professores, por exemplo, quando das "dsitas" do Inspetor, encarado antes como um controlador e como um juiz do que como um conselheiro pedagógico). A burocracia é encarada como fonte de julgamento e de sanção (Kafka fez uma descrição literária dessa dimensão, pouco estudada pelos psicólogos).
Entre os níveis da burocracia pedagógica, é preciso distinguir:
a. um nível exterior à escola: burocracia do Ec;tado (Direções ministeriais, Inspetores Gerais) e ligacões burocráticas (Reitorias, Inspeções acadêmicas, Inspeções de ensino primário);
b. um nível interior à escola: Diretor de escola, Diretor de liceu, Fiscais, Censores.
Em língua corrente, a burocracia é chamada de "administração". O vocabulário sociológico rigoroso, a partir de
199
Max Weber, prefere o conceito de burocracia definido com~ um termo neutro, mas que implica os traços de racionalização e despersonalização que descrevemos. Essa ra., cionalidade é perturbada pela existência de subgrupos (clãs, "feudos").
Tal é, portanto, o modelo que deveria permitir a análise do sistema de ensino francês em termos de psicossociologia da organização. Michel Crozier esboçou uma análise desse sistema171• Nós o fizemos igualmente1~. Enfim, ~ mesmo problema foi retomado por Michel Lobrot num Manifesto inédito de que vamos citar agora as passagens. essenciais:
Para uma pedagogia institucional
O fenômeno burocrático
"É preciso insistir no caráter específico do fenômen~ burocrático, que se desenvolve hoje em dia a uma grande velocidade numa escala gigantesca, que invade Estados. imensos de cima a baixo, que serve de modelo para as re· lações humanas, que introduz um novo sistema de valores.
Alguns não vêem nele mais do que um avatar do capitalismo: a concentração das relações capitalistas de produção acarretaria uma hierarquização cada vez mais acentuada de funções e de responsabilidades, a criação e doqtínio· de uma tecnocracia intermediária que tiraria proveito dos benefícios capitalistas sem tomar diretamente posse dos mesmos, uma definição mais escrita dos estatutos, dos papéis, dos direitos e das obrigações. É certo que esse fenômeno existe e não deve ser negligenciado. No entanto, ele é tãosomente a manifestação, mais ou menos distorcida, de um fenômeno muito mais geral, que não é de essência capitalista, se bem que tenha parentesco com o capitalismo, quenão se pode explicar - desde que não nos queiramos con-
200
tentar apenas com sua descrição - a não ser por meio de análises psicossociológicas. Esse fenômeno introduz-se também atualmente nas estruturas capitalistas e traz consigo um espírito novo e novas tendências no velho sistema da economia liberal clássica, mas pode muito bem dissociar-se do capitalismo e constituir um novo modo de domínio no qual alguns gostam de encontrar o espírito do antigo capitalismo, mas cuja originalidade é preciso afirmar. Essa dissociação se produz, por exemplo, nos países do Leste.
O que há de novo no modo de produção e de domínio burocrático é, se podemos dizer, o seu "altruísmo", para usar um termo moral, ou ainda o seu caráter "social", ou, melhor ainda, o seu caráter "democrático". O capitalismo é um processo de apropriação dos recursos naturais, ou me., lhor, dos bens de outrem, dos frutos do trabalho de outrem, etc .. . ; é uma forma de parasitismo. O capitalista pode muito bem não trabalhar e viver de suas rendas, aparecendo então muito melhor em sua realidade profunda, com a sua inutilidade, a sua superficialidade, o seu caráter anti-social.
A burocracia, ao contrário, não apenas se apresenta como a serviço da coletividade, como a serve efetiva e realmente. O 'burocrata não é essa espécie de zangão ladrão e maléfico que constitui o capitalista, ele trabalha, sacrifica-se, administra, orienta, planifica, "serve". Não é coisa séria criticá-lo dizendo que recebe um salário alto: com freqüência o salário de um burocrata colocado em nível bastante alto não equivale, sequer, à receita de um pequeno comerciante, de um açougueiro, por exemplo. Toda crítica que visa a assimilar o burocrata a uma espécie de capitalista, quando aquele não conta nem com as vantagens nem com o estatuto desse (mesmo quando o serve), toma-se ridícula e passa à margem de um fenômeno importante.
O que é preciso reprovar na burocracia e nos burocratas é, antes de tudo, o fato de que alienam fundamentalmente os seres humanos. retirando-lhes o ooder de decisão, a iniciativa, a responsabilidade de seus atos, a comunicação; o que é preciso reprovar na burocracia e nos burocratas, dito de outra forma, é que privam os seres humanos de sua atividade propriamente humana. Essa apropriação no plano psicológico, essa, apropriação das faculdades humanas
201
<le outrem, essa colocação dos grupos soctats reais entre parênteses ultrapassa de longe em nocividade tudo o que possa ter feito, tudo o que jamais tenha feito o capitalismo. A conseqüência em relação à qual freqüentemente se insiste: desvios dos recursos coletivos para "assalariar" a categoria dirigente, empobrecimento da coletividade. O fato. de que as pessoas não se interessam mais no trabalho que fazem e não trabalham mais verdadeiramente, a rigidez dos processos econômicos são apenas conseqüências. É preciso chegar à origem: a mais total das servidões já concebida, porque é a servidão do homem enquanto homem.
Poder-se-ia perguntar como foi possível atingir esse ponto, por que razão os homens chegaram a conceber esse modo hipócrita de domínio que é, ao mesmo tempo, útil e invisível, que justifica a sua nocividade em termos de sua utilidade. É aqui que seria necessário praticar uma análise psicossociológica.
A burocracia nasceu - e nasce provavelmente em toda sociedade - do desenvolvimento dos instrumentos de relações humanas, da dependência de todos com relação a todos, na mobilidade maior. Isso é, por assim dizer, a sua base infra-estrutura!, que é naturalmente apenas uma condição. A partir do momento em que não recebo mais diretamente os meus recursos, os meus objetos de consumo, a minha segurança da natureza e de mim mesmo, mas os recebo de "outros", é claro que aparece uma angústia difusa com relação a esses outros que têin tanto poder sobre mim, que detêm a minha vida em suas mãos. A prova de que são perigosos é que me exploram, e não é por acaso que a burocracia desenvolveu-se precisamente nos países preocupados com suprimir os modos clássicos de exploração. O explorador é um perigo, da mesma forma que o é um exército estrangeiro, um país vizinho excessivamente expansivo, ou ainda o banditismo em todas as suas aparências.
A única maneira que existe de proteção contra a relação humana é suprimi-la, não se podendo permitir que outra pessoa continue a ser a origem de uma relação; é preciso que o outro não seja mais do que o término de uma relação.
O burocrata sabe perfeitamente que a verdadeira riqueza, a que nos traz segurança, conforto, prosperidade, independência não consiste - ou não consiste mais como consistia antigamente - na fortuna em dinheiro colocada no
202
banco, nos bens móveis ou imóveis, no "capital", mas no trabalho da coletividade, na competência dos outros, nos instrumentos coletivos de produção. O problema é tomar conta desse conjunto, controlando-o, fazendo-o servir em proveito própriO. Como é possível obter isso? Não, evidentemente, acumulando esse objeto de troca que é o dinheiro, cujo valor, cujas possibilidades de circulação, cujos modos de transmissão dependem da coletividade - se bem que uma tal acumulação possa ainda ser útil - mas tomandose a si mesmo a coletividade, estabelecendo sobre ela o próprio poder, arranjando-se para que ela faça convergir sobre a sua pessoa os frutos de seu trabalho. Tais frutos não precisam ser acumulados; é bastante que sejam encaminhados em certa direção, que sejam distribuídos de certa maneira. A riqueza real não consiste mais num objeto reconhecível e caracterizável, que se pode abrigar, retirar do circuito, tomar a si, mas num "objeto virtual" que é a própria coletividade com o seu trabalho, as suas forças, os seus recursos, a sua massa etc. . . O problema consiste em tomar conta da coletividade como tal, e não como suscetível de produzir bens que se concretizam em mais-valia, interesses, benefícios, propriedades, etc ...
Consideremos o utilitarismo da burocracia, de que falávamos há pouco. Esse utilitarismo explica-se muito bem, desde que se tenha em mente que uma "coletividade possuida" não apresenta interesse, se não trabalhar, se não funcionar, se não investir, ou dito de outra forma, se ela não realizar em si mesma uma certa riqueza e uma certa prosperidade. A exploração feita por alguns e chegando a empobrecer de tal forma os outros que os destrói, retirandolhes materialmente o que possuem, "roubando-os", não se justifica mais nos dias de hoje. Empobrecer os outros é empobrecer a coletividade, que é justamente a riqueza em que se quer botar a mão e tomar própria. É destruir a própria riqueza, é uma forma de suicídio.
De que modo procede, na prática, o burocrata para estabelecer esse novo modo de domínio, essa apropriação da coletividade como coletividade? Há vários processos:
1. O primeiro problema é a ascensão ao poder. Não se trata, no entanto, de um poder de exploração no sentido tradicional, trata-se, ao contrário, de um poder que consiste em "fazer trabalhar", em dirigir, em orientar, em utilizar informações, em ~ornar decisões, em planificar. Isso
203
supõe a aceitação pela coletividade. É preciso, portanto, provar as suas boas intenções, mostrar as suas competências, afirmar a sua hostilidade com relação aos exploradores (estilo antigo). Isso pode ser feito mediante uma revolução que leve ao poder homens que se dizem apaixonados pela prosperidade e segurança coletivas (como não o seriam?). O mais freqüentemente, isso se faz de uma outra maneira: pela exibição de diplomas, demonstração de conhecimentos (sai-se de escolas politécnicas), sobretudo pela justificação em termos de uma formação que se considera como própria a tornar uma pessoa apta ao desempenho de funções de direção.
2. O verdadeiro motor do domínio é a concepção, a formação e o estabelecimento de um estatuto aceito pela coletividade que garante de uma maneira definitiva, quer dizer, vitaliciamente, o direito de estabilidade nos postos aos que administram, assim como o direito de receber todas as vantagens ligados aos postos. Essas vantagens, medidas em salário mensal ou anual, são fracas. Medidas em segurança efetiva, em estabilidade no emprego, em direitos de toda natureza, em recompensas, honras, considerações, respeito, são imensas. Na realidade, são muito maiores do que as vantagens que resultam de uma fortuna pessoal ou familiar, sempre ameaçada pela coletividade, e utilizada em pedaços, o que implica sempre a diminuição do capital. O domínio é, portanto, sustentado pela rigidez, pela força, pela e tabilidade das instituições, por exemplo, das instituÍções administrativas.
3. Embora as instituições sejam aceitas pela coletividade, que se crê protegida, dirigida, sustentada, defendida por elas, é preci o, no entanto, uma defesa particular que garanta uma segurança ab. o luta ao sistema; é a polícia e tudo o que com ela se relaciona. Isso acarreta a intervenção da violência.
4. A instituição policial justifica-se pelo fato de que os administrados percebem sempre, num ou noutro momen to, que são roubados de seu poder de decisão. de colaboração, de criação. de comunicação, quer dizer. de sua liberdade real. A solidez do istema permite àqueles que dele fazem parte continuar a tomar decisões pelos outros, impor tais decisões, fazê-Ias respeitar.
5. Uma das forças do sistema consiste num argumento que parece irrefutável: "Vocês não são capazes de tomar
204
decisões, pois são excessivamente fracos, excessivamente mui informados, excessivamente mal situados, etc ... " Isso verdade objetivamente: pessoas que são tratadas como crian· ças não podem desenvolver em seu interior as aptidões que lhes permitiriam ser outra coisa. Encontramos novamente esse argumento no caso das verdadeiras crianças, cuja natureza - no sentído sartriano - de criança permite justificar a autoridade que lhes é imposta.
6. Se nos colocamos sob o aspecto do conteúdo das decisões da burocracia, é evidente aue essas decisões visam a permitir as trocas, a garantir o -funcionamento, a programar, a planüicar, a servir em princípio a coletividade. No entanto, o único objetivo explicitamente almejado é o crescimento material das riquezas (realizado ou não) e não o desenvolvimento psicológico dos indivíduos. Esse crescimento material, desde que se realize - e realiza-se de maneira relativamente mal nesse sistema, com relação às possibilida<ies tecnológicas que são oferecidas - termina, na realidade, por aumentar a massa dos bens, os quais cabem prioritariamente aos burocratas que, de uma certa maneira, pos'SUem-nos não no sentido capitalista, mas num novo sentido que ainda não foi definido. O diretor aue diz "a minha fábrica, a minha escola, etc ... " e que não passa na realidade de um gerente não diz alguma coisa despida de significação: ele quer significar uma identificação oue é real e estatutária, de sua pessoa com a realidade, ele-quer significar que ele administra, que ele possui a sua função, a qual, por sua vez, relaciona-se com as realidades sobre as quais é exercida.
Por outro lado, o burocrata que visa não apenas a administrar mas também a aumentar os instrumentos de produção, a provocar novos investimentos, a prever planos a longo prl\zo, não visa apenas a aumentar as possibilidades de trabalho. mas sobretudo a criar objetivos novos sobre os quais exercerá a sua administração; ele aumenta, portanto, em realidade, o seu poder. além de aumentar a Sua reputaç~o: orocfuz-se aqui um fenômeno de autocriação de poder mu1to comparável à auto-reprodução do capital de aue haviam falado os marxistas. Se, por exemplo, o buroeràta promete "g-randes trabalhos", não apenas ele se beneficia com a J!IMi~ ele tais trabalhos como ainda estende a influência da bnrocracia, oue será tanto mais forte quanto mais setores tiver para administrar.
205
O fenômeno burocrático não se oode oortanto assimilar a qualquer outro: é uma forma de domÍnio sui generis. Ele não aparece como uma forma de parasitismo como· o capitalismo, mas, ao contrário, como o motor, o núcleo central, o cérebro da ociedade, quer dizer, como o que há de mais útil. de mais nece sário, de mais essencial. Ele visa ao "Bem" de todos: isso aparece com uma enorme clareza. Ele vi a ao seu bem contra vocês mesmos, e apesar de vocês mesmos. Em caso de necessidade, ele vos obrigará a realizar esse bem, ele sabe melhor que vocês o que vocês querem. Ele é sua vontade, seu conhecimento, sua personalidade. Dele, vocês têm a vida e o ser. Ele é "O Pai", o poder paterno. Não se dizia de Stalin que era o "Pai dos povo "?
A pedagogia burocrática
Evocando esse aspecto "religioso" da burocracia, caímos, sem o querer, no problema pedagógico. O b~rocratasoberano é o Pai, não apenas porque age como Pa1, o que seria antes positivo do que negativo, mas sobretudo porque o Pai é muito freqüentemente um burocrata. O modelo de domínio pedagógico anuncia e contém o modelo d~ domínio burocrático, e é a justificação profunda do egumte: se os indivíduos não tivessem experimentado, durante toda a sua infância o modo de domínio pedagógico, eles jamais aceitariam 'o modo d~ domínio burocrático, tal dom ínio lhes pareceria a pior das alienações.
O que há de comum entre os modos de domínio pedagógico e burocrático é que um e outro pretendem "querer o bem" do sujeito dirigido ou administrado contra ~ -sua vontade; se for necessário, eles serão dirigidos em toda a medida do possível, sacrificados à causa comum. É verdade que esses domínios nada têm de ladrões-parasitas, que não tomam dos outros o que têm esses últimos, que não fazem os outros trabalhar em seu lugar, que não são exploradores no sentido marxista.
A sociedade renunciou, há muito tempo, a explorar as crianças. fazendo-as trabalhar, integrando-as muito cedo na produção, considerando-as como e~cravos. O que se quer é que as crianças "aprendam", adquiram hábitos, conhecimen-
206
tos, aptidões que lhes serão úteis mais tarde, que lhes darão a possibilidade de exercer uma profissão. Tanto o pai como. o professor dizem: "mais tarde você me agradecerá, compreenderá os sacrifícios que foram feitos por você, etc."
No entanto, essa vontade desmesurada do bem de outrem é acompanhada por uma vontade também desmesurada de não levar em consideração a vontade de outrem, seus desejos, suas aspirações, suas tendências. Em pedage>gia, tanto o Pai como o professor têm, em seu espírito, uma certa concepção dos objetivos desejáveis para uma criança. O problema consiste em fazer a criança executar os atos que correspondem a tais ol;>jetivos, que devem, em princípio, conduzir a tais objetivos. Por exemplo, eles pensam que é desejável que a criança tenha mais tarde certo saber, e disso tiram a conclusão, de forma quase matemática, que é necessário "impor" à criança tal saber, mesmo se a criança não o deseja. É preciso fazê-la executar um certo número de atos que acarretarão, pensam, que tal saber se introduza na criança. O único problema que se coloca consiste no seguinte: como obrigar a criança a essegênero de atos que não tem vontade de executar? Dispõese de um leque muito amplo de meios de pressão (punições, chantagem afetiva, etc.).
A crítica que se pode fazer a esse sistema consiste em que é ineficaz e que não alcança justamente obter aquil,? que almeja. Toda a psicologia contemporânea da aprendizagem e da formação mostram que o ser humano só aprende nos limites do interesse que tem em aprender. Um comportamento adquirido desaparece se não for "reforçado" e "confirmado". A criança que aprende a lição para recitála ou para passar no exame esquecerá o conteúdo da lição, uma vez recitada, e esquecerá tudo o que aprendeu para· o exame.
Se há coisas que se adquirem, real e definitivamente, nesse sistema, é porque o sistema comporta falhas; da mesma maneira, a prosperidade econômica introduz-se num sistema burocrático, porque se é obrigado, mais cedo ou mais tarde, a deixar que os indivlduos tomem decisões, se organizem por sua própria iniciativa, façam eles próprios pesquisas. Se não houvesse as horas vagas em que as crian• ças podem fazer o que lhes interessa, se não houvesse um certo não-conformismo de parte dos professores, que pro-
207
curam mais o contato humano do que respeitar o programa se não houvesse uma certa preocupação em atrair e em int;ressar, provavelmente nada seria transmitido.' Se_ al~ma coisa é transmitida, é porque o modo de dommaçao pedagógica não é absoluto e inteiramente coerente consigo mesmo. De toda maneira, toda aquisição verdadeira faz-se contra o modo de dominação pedagógica. Daí resulta, naturalmente, que a rentabilidade do sistema é pequena.
Origem da pedagog!a burocrática
Poder-se-ia objetar à nossa comparação entre dominação pedagógica e burocrática que não se percebe o interesse que o pedagogo possa ter nesse gênero de dominação, mas se percebe muito bem o interesse que o burocrata encontra no mesmo. O pedagogo, sobretudo se for apenas ~~ pai, não tem um estatuto que lhe confira vantagens soctats diversas e apreciáveis, como acontece no caso do burocrat~
Chegamos aqui ao centro do problema. Por que motivo 0 pedagogo preocupa-se t;mto com contar com um.a criança sábia, .. bem-educada", armada de numerosas apttdões, etc ... 7 Por que motivo sobretudo essa preocupação se toma para ele uma obsessão, ao ponto de. est~agar _ as suas relações com a criança, de carregá-la de mqutetaçoes, de criar tensões quase insustentáveis? Só há uma resposta para isso: o pedagogo iden~ifica-se mais ou Am.enos COf!l a criança, seja no presente, seJa no futuro. O ex•to da cnança é o seu êxito, o fracasso, é o seu fracasso. Por que motivo essa identificação? A criança terá fatalmente que separar-se dele, que ter a sua vida própria. Compreende-se a identificação do burocrata com a coletividade traba1hadora: a sua vida, as suas vantagens, a sua segurança dependem dela. E no caso do pedagogo? Colocar assim o problema já é responder: essa identificação não é nada mais do que uma identificação burocrática. O caso é claro para o professor: ele só justifica o seu lugar e só garante a sua carreira na hierarquia administrativa na medida ern que faz esse gênero de trabalho e o faz bem, em que se submete aos programas, em que satisfaz ao inspetor. Não é por acaso
208
I "•T.•
qu~ a ~dmini~tração da educação nacional é hoje em dia a ma1s hierarqUizada, depois do exército. . Tod~s as relações do ensino são, em realidade, relações
h1erárqu1cas que se justificam hipocritamente pelas exigências da formação e da cultura.
Por exemplo, o exame é um dos motores do ensino moderno. O exame não ~. de maneira alguma, uma medida das aptidões reais adquiridas; H. Pieron173 mostrou-o bem. É apenas uma . medida da eficiência da preparação para o e~ame, quer dtzer, uma medida dos conhecimentos adquindos para o exame, sem que haja preocupação em apurar se tais conhecimentos persistem depois e apesar do exame, e se eles trouxeram o gosto ou o desgosto do saber. g preciso, no entanto, ir mais longe: o exame é sobretudo o marco visível, o critério, o sistema de medidas do professor. Este17•, que é um burocrata, tem necessidade de conhecer as normas de seu trabalho, e essas não podem de forma alguma ser o desenvolvimento real dos seres que lhe são confiados. As normas em questão devem ser materiais e materializadas, elas devem exprimir-se em termos de quantidade, de conhecimentos oferecidos, em termos de respeito ou desrespeito ao programa, em porcentagem de êxitos nos exames. O burocrata professor deve poder dizer: eu .. cumpri" a totalidade de meu programa, eu obtive tantos êxitos nos exames. Pouco lhe importam, no fundo, os efeitos psicológicos reais do seu ensino. O que lhe é sobretudo necessário é .. provar" que preenche bem a função que lhe foi confiada, ·sobre a qual repousa a sua segurança e sua vida, assim como repousa a vida de sua família. A obsessão do pai da criança, obsessão do que falamos acima, é apenas, portanto, uma aparência, ou melhor, é. apenas o produto de uma identificação, pois o bem da criança é em realidade o bem do professor e o bem• do adulto, da mesma forma que o bem da coletividade trabalhadora é na realidade o bem do burocrata.
O mesmo se passa, de uma maneira mais móvel, no caso do pai. É certo que a sua função paternal não é uma função administrativa em sentido estrito. No entanto, a sua função de pai está ligada à sua situação sociológica e a seu papel · social; ele pertence a uma certa camada social, não digamos "classe", se não quisermos cair novamente nas categorias marxistas, se bem que haja nisso efetivamente um fenômeno de classe. :e muito importante para ele continuar
209 ,~-------,-N-S-T-I T_U_T_0---0-~~:·--,,--,C-,-,-----
W I • ._IQTECA ,.CS- <' ••
a pertencer a essa "camada social", e ele lhe pertence não apenas por si mesmo, mas por suas ligações familiares, pelas pessoas que freqüenta, por sua reputação. Supondo-se que ele tenha um filho que seja "mal-educado", que não trabalha, que não alcance êxito, isso significará inevitavelmente a queda desse filho numa camada social inferior que levará com ele, pouco ou muito, todos os que lhe são ligados: seu pai, sua mãe, seus irmãos e irmãs, etc. Essa decadência social por pessoa interposta não pode ser sequer imaginada pelo pai, que não pode aceitar a negação de seu estatuto e de sua função.
Também nesse caso, a identificação com a criança significa uma angústia para o pai com relação a si mesmo, camuflada em angústia com relação à criança.
Há, portanto, uma comunicação íntima entre a dominação burocrática e a dominação pedagógica. Esta última é apenas, no fim das contas, uma forma de dominação burocrática e, aliás, ela a prepara e a permjte, adaptando a criança a uma tal dominação.
,N? ponto de partida de uma e outra há, repitamo-lo, a angustia com relação ao Outro, e a vontade de defesa contra ele, ne~traliz~do-o . e pos uindo-o ao mesmo tempo; uma tal atllude nao sena possível se o Outro fosse concebido como uma possibilidade de comunicação e de relação, numa situação total de reciprocidade; se não é concebido d~ssa. maneira é porque precisamente a dominação pedagóg~ca Impede que se faça com ele uma exoeriência humana autêntica. -
Ao fazer essa colocação será que nós caímos num modo de explicação puramente psicológico, à maneira de Max Pages, o qual, na ótica da psicologia americana. vê na vontade de Poder um resultado da angústia no ·interior da relações interpessoais? É certo que isso se registra com freqüência na sede de Poder, ou nas reações face ao Poder: um professor pode ter medo de um inspetor que - como homem - pode ser despótico e incompreensivo. No entanto, o medo do inspetor é, o mais das vezes, como iá o dissemos, o medo da função, qualauer que eja a pes oa que a preenche. É uma função que inspira medo, de uma maneira objetiva. porque consi te em fiscalizar, em tomar notas, e sua carreira depende dela.
O processo de formação da dominação burocrática ou pedagógica não se explica por meio de relações interpes-
210
ouis. O indivíduo que, ao mesmo tempo, tem medo da wlctividade e quer apropriar-se dessa coletividade não rea .
face a indivíduos isolados, mas face a uma coletividade on-;titu da, por ele concebida como tal. Tratá-lo à parte
tlus instituições a que pertence constitui um erro. A instituição não é um epifenômeno que encobriria os mecanismos reais, ela é desejada como tal, com os seus atributos e os cus caracteres próprios, ele é objeto para aquele que de
. cja o Poder. A análise institucional é, portanto, indispensüvel para que se compreendam os fenômenos de dominac; o pedagógica ou burocrática.
O espírito da pedagogia instituci9nal
O movimento da pedagogia institucional que se desenvolve atualmente na França com a autogestão educativa é uma contestação da dominação pedagógica. Examinemos, de modo preciso, essa forma de contestação.
Analisar o fenômeno pedagógico-burocrático como acabamos de fazê-lo, mostrando os seus mecanismos secreto , não é suficiente; é apenas o primeiro momento; é necessário ir mais lon~e.
Tentar enfrentar a burocracia dominante por meio de 11ma ação reivindicativa que vi e seja a criticar os atos des~a burocracia, seja a obrigá-la a aceitar uma certa participação dos administrados e uma certa colaboração com o me mos não ignifica colocá-la fundamentalmente em que -tão. A burocracia não é, como o capitalismo, qualquer coi~a que se de trói fi icamente: colocar o admini trado no lu gar do burocrata pode nada alterar, se o administrado se torna, por sua e7. um burocrata, mesmo no interior de uma hierarauia sindical. Da mesma forma. denunciar a<; Insuficiências da burocracia, as suas injustiças, a sua ineficácia é ainda reconhecer e aceitar o seu poder. Dito i .. o de outra forma, a ação polílica clás ica, que era válida na luta contra o capitali mo, não o é mais contra a burocracia.
Nada pode ser feito, desde que não se destrua a relac;ão hierárquica efetivamente em todo lugar onde possa ser destruída. desde que não o substitua por uma nova relação. E'isa <;ubstituição. quando pode ser efetuada, tem o valor
2/1
de um modelo e inspira imediatamente seguidores. Em si mesmo ela é um ensinamento ou, desde que se o prefira, uma forma de propaganda.
O movimento da pedagogia institucional retoma, de uma certa maneira, o velho sonho de Fourier, que consiste em querer criar uma microssociedade - com novas instituições; é necessário, com efeito, que haja outras instituições, quaisquer que sejam a sua amplitude e a sua importância. A ideologia não-<liretiva, nascida na América, infelizmente chegou apenas a criar instituições passageiras e caducas, que só têm valor com relação aos indivíduos que dela fazem parte, como, por exemplo, a do Training Group1'1f>; é preciso fazer mais do que isso, inventar instituições verdadeiras, quer dizer, que interfiram realmente nas instituições da Sociedade-total. As "instituições externas" (exteriores ao grupo) continuam certamente a ser burocráticas; elas são postas em questão pelas "instituições internas" a tal ou tal grupo, que são como o bicho na fruta um princípio novo no velho sistema.
O movimento da pedagogia institucional procura difundir no interior da Escola real um novo modo de funcionamento e de relações humanas não burocráticas. A criança toma-se centro de decisão, ou melhor, o grupo assume a sua própria direção e caminha para a sua própria autogestão. O pedagogo, entronizado pela "Instituição externa" conserva naturalmente essa entronização, mas, efetivamente, deixa de representar o papel que corresponde a sua função. Ele se nega a si mesmo como poder e como burocrata. Ele se recusa a tomar decisões em lugar do grupo. Isso não quer dizer que ele se coloque fora do grupo, como na pedagogia chamada de anárquica por Lippit e White1741; bem .ao contrário, ele recebe um novo estatuto que lhe é conferido pelo grupo, e esse estatuto novo lhe permite realmente comunicar-se, dizer o que sabe, fornecer as informações que possui. Ele pode começar a entrar verdadeiramente em interação com os outros membros do grupo, o que não podia fazer antes, ele pode começar a dar uma formação.
É inútil sublinhar tudo o que tem de revolucionário essa pedagogia, tudo o que ela traz de novo mesmo com relação aos movimentos da "Escola ativa" ou da "Escola modema". Ela é uma concepção inteiramente nova e estruturada da pedagogia.
2/2
orno é natural, levantam-se - mesmo nos movimentos próximos dessa concepção - objeções de fundo à
~~~ ú nos é agora necessário responder. Diz-se, em primeiro lugar, que uma tal ação não é ver
dndcirnmente revolucionária, uma vez que não chega a destruir o sistema em .sua totalidade e em seu princípio. Reprova -se nela, por exemplo, o fato de que continua a "inslatuir" a partir do exterior e autoritariamente o grupo com u qual serão mantidas, em outros domínios, relações nãodarctivas. O grupo das crianças numa classe não se constitui a si mesmo. As crianças não têm a liberdade de ir ou de deixar de ir às aulas, etc. Isso é verdade, mas em nada retira à experiência o seu valor de contestação. A objeção rguida procede de um certo romantismo. De<Jejar-se-ia que
o profe · or pulverizasse de uma só vez e, por assim dizer,. d maneira mágica o conjunto de relações em q..te está int~grado, por exemplo, as suas relações com os s~us superiores hierárquico ou com a in tituição externa. Isso não pode er feito. O professor de que falamos faz o que pode co i ·so é, pelo menos no começo, muito limitado. Ele tem que reconhecer es a limitação. O movimento tem que aceitar fazer progressos "no tempo" e não se pode situar fora do tcmr>o.
Diz-se também que essa nova concepção, válida a ripor para adulto , não o é para crianças, as quais são, por definição, ercs ignorantes e não formados que tudo devem receber de um outro que po sui o que eles não possuem ainda. Insiste-se na diferença objetiva que exi. te entre a criança c o adulto, na desigualdade de fato. Não se quer admitir que crianças e adultos se encontrem no mesmo gru pn. cm it uação de total reciprocidade.
c;a insi tência nas diferença reais entre a criança l' os adultos. no entanto, só pode ter valor de objeção destk que se acredite que a competência fundamenta e ju<Jtifi l'a uma relação de dominação. É um argumento clássico da hurocracia. Ele eouivale a confundir a diver ·idade técnica da-; competências. das aptidões e das funções com a hierar · quitação social. Na verdade. diferencas objetivas e reais nlío podem entrar em relação, em colaboração, chegar a um lrahalho em comum e me mo a uma tranc;mis ão de saber 11 não ser quando há reciprocidade das pessoas, quer dizer, nan hierarquização. Se aquele que constitui o elemento fra{0 na relação de formação não se interessa por- essa rela-
2H
ção, desde que não se consiga ingressar no circuito de sua V'-'~tad: e de :u~ expectati~a~ nada se passa, a não ser uma aphcaçao mecamca das dectsoes tomadas pelo mais forte. A nqueza daquele que tem essa riqueza de nada mais serve não é mais _útil a ninguém, não ajuda mais ao grupo; el~ tem por eferto apenas provocar uma submissão aue mantém o fraco em sua fraqueza, a criança ern sua- infância. Pode-se então argumentar infinitamente com a fraqueza do fr~co e a força do forte, para conservar a relação hierárqmca. Toda a argumentação das pessoas de extrema direita contra a descolonização constitui sempre em proclamar q_u~ os po_:-os coloniais são povos crianças, incapazes de dingtr-se, nao formados. Esquece-se, no entanto, que é just~~~nte dando-lhe~ ~dependência que se lhes oferece a posSibilidade de adqumr essa maturidade que não possuem.
Uma outra objeção, de natureza mais tecnológica, apresentada, por exemplo, por M. Mouillaud em La Penséel11 consiste em apresentar a autogestão como uma fórmula Jon~ ga_, custosa,. ~ouco rentável, na qual a informação se transmite com dtfrculdade, enquanto ela poderia transmitir-se rapidamente num outro sistema. Insiste-se no fato de que o grupo deve, de uma certa maneira, redescobrir novamente o sa~er que é possuído por um outro, e que esse outro podena confiar...Jhe.
Essa objeção, sob a sua aparência técnica, une-se à precedente; é verdade que a passagem pela redescoberta constitui um caminho longo e custoso que seria desejável ''idealmente" substituir por um atalho. Isso é apenas infelizmente, um ideal. Pasteur, Claude Bernard, I. 'eurie, quat;tdo faziam as suas descobertas, estavam profundamente motlVados: elas procuravam alguma coisa, numa certa ótica, com relação a certos problemas colocados pela sua época. A criança que deve assimilar as suas conclusões pode naturalmente aprendê-Ias de cor. No entanto, mesmo nesse caso, ele deve ai_n~~ amar esse gênero de "recitação" para fazer uma aqu1s1çao durável. Se admitirmos que ele deve. compreender, não se pode evitar de pensar que ele deve partrr de um . problema que se coloca para ele, que corresponde a seus mteresses e a suas preocupações: mesmo aprender as etapas de uma demonstração não constitui ainda compre~nder. A com~r~ensão supõe uma certa opinião sobre a realidade, uma duVIda, uma surpresa, uma hipótese uma busca de solução. A criança de 6 anos que faz pergu~tas a
214
lorto e a direito parte de uma surpresa, da espera frustrada de hipóteses mais ou menos fantasistas. Essas perguntas poderiam constituir a base de uma compreensão. Prefere-se nüo levar isso em conta.
Todas as objeções apresentadas precedentemente resultam em reintroduzir-se a relação hierárquica, de maneira ·landestina, sem ter a aparência de fazê-lo, com argumenros de aspecto tecnológico; é, aliás, significativo que tais übjeções sejam apresentadas com freqüência por pessoas que, embora pertençaq~ a partidos revolucionários, aceitam integralmente uma concepção burocrática da sociedade. É o ca o, por exemplo, de Althuser, que se opôs violentamente a toda introdução da autogestãot78 na Universidade, na época em que a UNEF fazia propostas nesse sentido.
As teses da pedagogia institucional
Procuremos tornar precisas, de maneira mais con~reta, as teses apresentadas pelo movimento da pedagogia institucional.
Para melhor compreendê-las, pod~e compará-las às teses dos movimentos já antigos, que haviam progredido muito no mesmo sentido no começo do século, por exemplo, ao do ,plano Dalton ou do método Vinnetka.
O plano Daltof! é um ensaio generalizado de pedagogia nova posta erii prática tentativamente por Miss Parkhust em Dalton, no Massachusetts, a partir do método Montessori. O que esse método tem de original pode resumir-se em dois ~n~s: ·
1. Q_método do contrato: a criança aceita por contrato ligar-se à escola e aprender tal ou qual matéria. Há, portanto, de sua parte, uma opção inicial, uma "decisão".
2. O ensino é individualizado ao máximo. O plano Danton, antecipando-se ao sistema de "fichas autocorretivas" e do ensino programado, propõe-se dar à crianca progressões escritas extremamente fixas que a própria crianca pode controlar, fazendo-se ajudar pelo professor. Pode trabalhar com o seu próprio ritmo, organizando-se ela própria numa certa medida. Essa idéia de uma organização, mesmo restri -1 a. tornada a cargo do· aluno, é nova.
215
Há, no plano de Dalton, idéias interessantes mas que ficam em estado embrionário, mal formuladas, acompanhadas_ por erros. Restringir a decisão da criança a um primeuo tempo em que a criança nada conhece daquilo que é suscetível de aprender nio significa muita coisa. É ainda limitar a decisão e torná-la praticamente ineficaz. A decisão deve ser estendida a tudo, ou deve ser aliminada. Se ela for estendida ao conjunto das atividades instala-se uma dialética interna na dinâmica da progressão.' As decisões se sucedem. às experi~ncias que são, por sua vez, precedida por decisões.
f? ensino muito individualizado do plano Dalton, que pemute uma aut<HJrganização por parte do aluno, implica. no entanto, tais limitações à auto-organização que termina por suprimi-la Com efeito, a progressão não é apenas extremamente fixa, como também é recortada em "avaliações mensais", "porções hebdomadárias", etc... A iniciativa do aluno só intervém para estabelecer um certo ritmo no interior da semana. Por outro lado, e sobretudo, é um erro essa concepção de alunos isolados e separados. Não digamos que trabalho e~ equipe é uma panacéia, como já fo~ algumas vezes, aft.rmado. No entanto, a classe constituída é um "grupo", queira-se ou não, do qual há interferências ape!os, . re~e!ções, afmi~ades, etc .. : Ac~itar a auto-orgaW: zaçao Slgniftca necessanamente acettar a auto-organização da çlasse, e não a auto-organização do aluno, chegue esta ou nio à formação de equipes.
Sob certos aspectos, o sistema de Winnetka, preparado por C. Washbume num subúrbio de Chicago, vai mais longe do que o plano Dalton, na medida em que consiste em elaborar um "plano mínimo" de conhecimentos relativamente restrito, que o aluno deve necessariament; cumprir, mas fora do qual ele pode aprender o que quiser. · Isso resulta praticamente em colocar nas mãos do aluno a iniciativa da maior parte de suas aquisições. A decisão do aluno ocupa uma parte mais importante do que no plano Dalton. No entanto, pode-se acusar esse sistema de cair numa espécie de liberalismo vago, sem aceitar as exigências reais da aquisição e da elaboraçjo do saber. Não basta dizer que se coloca entre as mãos ~o aluno a iniciativa de seu aprendizado; é preciso ainda aceitar manter com ele
216
um certo tipo de relação, de que é preciso fazer-se alguma idéia
Os movimentos pedagógicos que apareceram entre as duas guerras andaram "de marcha à ré" com relação aos movimentos pedagógicos anteriores, extremamente audaciosos. O movimento Freinet é, em realidade, um prolongllmento e uma coroação dos métodos ativos que nasceram no século XIX. A idéia principal desse· método é que urge tornar ativa a criança, permitir-lhe expressar-se. Introduz-se o "texto-livre", o "desenho livre", a "imprensa na escola", a "correspondência escolar", etc., atividades no interior das quais o aluno não é dirigido, mas nas quais ele é "livre", nas quais, ao mesmo tempo, ele adquire uma certa técnica, ele próprio fazendo as experiências.
O aluno tem liberdade para tomar iniciativas no conteúdo da atividade, mas a própria atividade não é livre, nem objeto da decisão do aluno. Isso não quer dizer que ela lhe seja imposta como uma obrigação, ou apenas proposta, ou qualquer outra coisa. Não; isso não está previsto; não há interesse em tomo desse problema A classe não é concebida como um campo de decisões, mas como um lugar em que se fazem certas atividades privilegiadas que têm uma "virtude" em si próprias. O movimento Freinet é sobretudo um movimento que propôs técnicas.
Todos esses movimentos ignoravam fundamentalmente a dimensão psicossociológica do problema pedagógico , a ~ber, o fa~o de que: 1) existe uma realidade chamada cla:s~. que se distingue do "aluno" abstrato e anônimo situado fora de todo contexto sociológico. Essa classe é uma realidade institucional; ela é organizada a partir do exterior por uma administração burocrática; 2) essa classe constitui, quer se queira quer n'ão, um "grupo" que recebe habitualmente as suas "instituições internas" de um "administrador" que é o professor, o qual toma decisões quanto a uma organização, uma progressão, leis, uma disciplina, etc. Desde que se queira, a qualquer preço, restituir aos seus alunos o seu poder de decisão, não se pode ignorar a existência de um tal grupo e o fato de que, por um lado, produzem-se numerosas interações entre os membros desse grupo, e que, por outro lado, as decisões não podem ser tomadas (de facto) por indivíduos isolados considerados como liberdades independentes. Isso dito de outra forma, há uma dimensão "social" do problema pedagógico. O professor é institucional-
217
mente um "burocrata" em sua classe, porque é encarregado de tomar decisões e de impor a sua concepção pedagógica. Se quiser ele próprio alterar o seu estatuto e tornar-se nãodiretivo, deve tomar precauções, pois permanece institucionalmente (pela instituição externa) ligado a um outro estatuto. Ele não pode permitir-se a inocência de agir "como se" o antigo estatuto não existisse. É preciso que ele próprio destrua a sua autoridade, que ele negue a si próprio -como burocrata. Isso não é fácil, pois exi te entre os próprios alunos a tendência a considerá-lo como tal, e esperam que se comporte como tal (mesmo se; com isso, sofrem). Há portanto uma ação "negativa" necessária, de que falaremos de forma mai concreta, mais tarde.
Por outro lado, os próprios alunos têm relações "sociais". Abandonar-lhes a iniciativa não resulta em transformar a classe em indivíduos separados que vão, cada um, viver a sua própria vida. É provocar novos fenômenos "sociais" bem conhecidos em psicossociologia (a tomada do po.<Jer, as frações, os clãs, as manipulações etc.). O professor deve saber como comportar-se frente a esses fenômenos. Sobretudo, não deve esperar que sejam tomadas decisões válidas, antes que se solucione um certo número de problemas. O que significa que é necessário aceitar que o grupo passe por um certo número de etapas, etc.
Os problemas que colocamos aqui são imensos e resultam da decisão de "desalienar" os alunos e os futuros adultos. A pedagogia dita "moderna" inclinava-se a negligenciálos, e é por isso que ela chegou a um certo fracasso e provocou, como reação, respostas conservadoras na Europa e na América. Se tentássemos resumir esses problemas, diríamos que eles colocam a questão das relações humanas na Escola e não, apenas, o problema de vagos arranjos ou de uma mudança nas técnicas pedagógicas.
A técnica da autogestão
. A prática que alguns dentre nós pouco a pouco aperfeiçoam, confrontando-se com a experiência, varia natural-
218
mente em função dos indivíduos e do trabalho que têm a fazer. Existe, no entanto, um certo número de pontos a respeito dos quais, pouco a pouco, chega-se a acordos:
1. Há um problema de progressão: uma classe que se submete à "autogestão" não pode ser bruscamente entregue a si mesma, sem precauções; é preciso começar por lembrar à classe as exigências da instituição externa - que se espera um dia modificar, mas que não foi ainda modificada - quer dizer, os programas, os exames, a hierarquia administrativa, as notas, etc. O grupo fará com essas exigências o que quiser. É sua responsabilidade. Por outro lado, não seria honesto deixar de informá-lo quanto à natureza do método que se quer empregar, e aos motivos pelos quais se o emprega. É sempre desejável o máximo de informações sobre a situação. Enfim, o pedagogo encarregado da classe deve definir as suas atitudes e os limites de sua intervenção. Ele espera que a própria classe se organize, defina os seus objetivos, a sua maneira de trabalhar, os seus sistemas de regras. No entanto, ele aceita participar do trabalho na medida em que isso lhe é pedido. O princípio do "pedido" é essencial. Isso significa praticamente que ele pode fazer propostas de organizar, fazer exposições, informar, guiar na medida em que lhe é pedido.
2. Pode o pedagogo intervir, sem que haja pedido específico de parte do grupo? Pode o pedagogo, !)Or exemplo, fazer propostas de organização? Isso é peri2o:o, porque
<> grupo, .confrontado com problemas difíceis, tem uma tendência excessiva a confiá-los a alguém mais experiente para que, em seu lugar, tome as decisões, segundo um hábito velho e enraizado no mais fundo da psicologia dos interessados. É indispensável, em nossa opinião, que o pedagogo mantenha-se estritamente fiel ao princípio do pedido, quer dizer, que não intervenha, antes de que o grupo tenha entrado em combinação para formular um pedido explícito. Isso cria uma angústia e um certo pânico entre os indivíduos. A angústia e o pânico não são necessariamente desfavoráveis. O psicanalista, assim como o monitor do training group. os aceitam e mesmo os consideram como uma etapa necessária.
3. O l!rupo passa, na realidade, de uma condicão inteiramente informal a uma estruturação que, progressivamente, se aperfeiçoa. Sobretudo nos orimeiros temoos de sua vida, e ainda depois,• mas de maneira menos dramática, o
219
grupo coloca para si mesmo problemas de funcionamentoelementa~es <presidente,. etc.) e deve solucionar e regular os co~fhtos mterpessorus. A solução desses problemas é s~bmehda à tomad_a ~o!etiva de decisões, quer dizer, a um mvel e~ ~~e o md1v1duo não se situam com relação a outros md1v1duo ·, ma com relação à coletividade tomada como tal, e ao trabalho dessa coletividade. O pedagogo não pode verdadeiramente intervir nes e n ível elementar. Ele pode apenas fazer um trabalho de facilitação, que consiste, por exemplo, em fazer um reflexo rogeriano ou análi es como no training group, ou ainda em propor análi es do grupo por ele mesmo. _ 4. As p_:opost~~ do pedagogo com relação à organiza
çao, se lhe sao ohcJtada_ , . devem ser, verdadeiramente, propost~s. Elas devem cons1st1r em propor opções, fórmulas de fun_cwnamento pos ívei~. É preciso evitar fazer propostas mrus ou menos valonzadas ou apoiadas emocionalmente por que parecerão automaticamente "ordens" ou ameaças:
. 5. A inter:venção do pedagogo no "conteúdo", quer d1zer, no própno trabalho de ensino deve er tão discreta tão precisa quanto possível. É muita vezes útil dar instru: ~e~tos d_e trabalho (exposiçõe mimeografadas, referências b1bhográf1cas, material, ficha autocorretivas), em vez de fazer discur os orais improvi ado<>. Estes correm com efeitoo risco de ocupar um lugar de tal importância que paralisam o trabalho do grupo. É preciso uma grande experiên. cia ~e parte ~o pe~agogo para sahcr quando deve parar em sua mtervençoes d1retas, e como fazê-lo. Seriam neci!. sários estágios de formação, para permitir aos pedagogos experimentar as fórmulas de intervenção.
Todas es as práticas incluem-se num dinamismo de grupo com uma certa evolução. Pod - e re umir como e segue as etapas pelas quais passa geralmente uma tal evolução:
Num primeiro tempo, os alunos, surpreendidos com· a novidade da experiência, permaneceram imóveis, mudos, mais ou menos inertes, esperando que o pedagogo "a<;suma a direção das coisas". ou, ainda, desejo os de chegar rapidamen te a alguma coisa, atiram-se a qualquer tarefa. os mais ativos . a~redindo aqueles que não querem particir>ar ou que part1c1pam fracamente. De toda maneira, o probLma, nessa primeira etapa, é o da não participação. Pessoas pouco habituadas a falar e a comunicar-se sentem-se traumatizadas, quando se trata de expressar-se; ou bem aprovei-
220
tam a "palavra" que lhes é oferecida para liquidar tendências escondidas, ou bem, ao contrário, deixam de intervir e recolhem-se ao mutismo. O traumatismo principal decorre, nessa primeira fase, do silêncio do pedagogo, que se contenta em exprimir o que se passa, em facilitar a comunicação, sem intervir. Os passivos desejariam que ele tomasse, em lugar deles, as decisões, os muitos ativos desejariam que se colocasse a seu serviço para obrigar os outros a participar.
Essa etapa pode prolongar-se muito. Ela é a mais penosa, pois assiste-se ao nascimento e à morte de projetas impossíveis ou mal formulados, a divergências de funções que não parecem poder ser superadas, à expressão de angústias vagas com relação ao exame, à· realização do programa, etc... É preciso um certo tempo antes de que os alunos encarem calma e racionalmente modos válidos de organização, e que deixem, seja de pedir a volta ao sistema tradicional, seja de lançar-se numa organização qualquer que satisfaça a sua necessidade de atividade e acalme a sua ani\Ístia.
A segunda etapa vê aparecer discussões sobre uma or-• ganização possível que possa contentar os desejos de todo
o mundo. A prática do voto, muito utilizada no começo para sustentar as decisões de uma maioria, muitas vezes artificial, vai pouco a pouco caindo em desuso; procura-se a unanimidade, quer dizer, não de um modo de funcionamento que todos aceitem, mas um modo de funcionamento suficieptemente diversüicado para que cada um se contente. Só então podem aparecer pedidos precisos ao pedagogo com relação a uma organização possível. O pedagogo responde de uma maneira curta e discreta, como um técnico de organização.
A terceira etapa é a do trabalho propriamente dito, que pode assumir formas extremamente diversas: em equipes especializadas e funcionais, em equipes homogêneas, sem equipes, etc. O pedagogo encontra, enfim, com os membros do grupo o diálogo que era impossível no sistema tradicional. Ele pode dizer o que tem a dizer, trazer as informações úteis, comunicar o seu saber e a sua experiência, de tal maneira que isso seja percebido e não fique sendo uma palavra no deserto, mecanicamente registrada por alunos que se contentam com "tomar notas". Todo o tempo perdido aparentemente nas etapas precedentes é muito rapidamente recuperado, no plano das aquisições. Poderíamos aqui ofe-
221
recer exemplos preciso . Nós vimos alguns grupos executar trabalhos extraordinários, que jamais teriam feito em outras circunstâncias. Coisas que eram ditas pelo pedagogo no sistema antigo, e que não eram sequer ouvidas, são agora compreendidas e assimiladas. É preciso observar aq,ui, empre de acordo com a nossa experiência, que a crítica das idéias ou das funções do pedagogo é muito mais freqüente do que no antigo sistema. Ela deveria, aliás, poder ser muito mais freqüente ainda.
Isso equivale a dizer que a intervenção do pedagogo estrutura-se em três níveis:
1. o de monitor de training group que se entrega a atividade de "reflexo" ou de análise;
2. o de técnico de organização; 3. o de sábio ou de pesquisador que pos ui um ·aber
e procura comunicá-lo. Em cada um desses níveis, o pedagogo permite uma
"formação" que era impossível no antigo sistema, por exemplo, uma formação em relações sociais, em interrogações, em colaboração, etc ...
Em resumo, os objetivos procurados pelo pedagogo inspirado pela "pedagogia institucional" são:
1. Fazer um trabalho interessante "aqui e agora", apaixonante, não aborrecido, com alunos. Lembremos o tédio inevitável que acompanha o en ino tradicional e que dá ao professor a nostalgia das férias (ainda mais forte, em nossa opinião, no caso do professor do que no caso dos alunos). Há também, nesse gênero de experiência, um conta to humano único e que constitui uma verdadeira aventura.
2. Propiciar uma formação cem vezes superior à do sistema tradicional, uma vez que ela não é fortuita, mas é sistemática. Ela é, ao mesmo tempo, mais rica, uma vez que ela também se situa no plano da personalidade e da vida social, em vez de permanecer no nlano intelectual. Mesmo o exame é, em -realidade, melho~ preparado num si tema do que em outro, e bem que não seja explicitamente almejado (ao menos, pelo pedagogo).
3. Preparar os seus alunos para contestar o sistema social em que vivem, quer dizer, o sistema burocrático. Essa contestação faz-se com freqüência no próprio momento em que se desenvolve a experiência cuja significação profunda é percebida pelos alunos.
222
4. Criar, sem o querer, um campo de contestação, pois a experiência é conhecida pela administração, pelós. outros pedagogos, pelo público. Ele toma-se, de certa maneua, um aeitador.
S. Criar "modelos" que serão válidos em outros pla-nos, numa sociedade transformada. Os problemas com que se choca em sua ação são problemas políticos: vontade do grupo de "alienar-se", tom~da do poder P'?r elementos d~ grupo que procuram seduzu o poder con~htuído; c:orrelattvamente, fraqueza de um tal pôder que nao se apó1a numa hierarquia institucional, emergência e concepção de novas instituições internas ao grupo, etc.
Atingem-se realmente esses objetivos? :e. o que a experiência mostrará. O esfo.rço da pedagogia . ~titucio~al constitui, de qualquer maneua, a empres~ maiS .Slste!Dátie& e mais estruturada para colocar em questão, no mtenor da escola, o domínio burocrático.
22J
" "~ ,., , ..