Capítulo 2Sentido pelo instinto, não na mente, Vil metafísica do horror da carne, Medo do amor......

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95 Capítulo 2 À noite, o sonho

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Capítulo 2

À noite, o sonho

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Ó vestidas razões! Dor que é vergonha

E por vergonha de si própria cala

A si mesma o seu nexo! Ó vil e baixa Porca animalidade do animal, Que se diz metafísica por medo A saber-se só baixa e a si dá nomes De (...) Ó horror metafísico de ti! Sentido pelo instinto, não na mente, Vil metafísica do horror da carne, Medo do amor... Entre o seu corpo e meu desejo dele Stá o abismo de seres consciente; Pudesse-te eu amar sem que existisses E possuir-te sem ali estivesses! Ah, que hábito recluso de pensar Tão desterra o animal, que ousar não ouso O que a mais vil besta do mundo vil Obra por maquinismo. Tanto fechei à chave aos olhos de outros Quanto em mim é instinto, que não sei Com que gestos ou modos revelar Um só instinto meu a olhos que olhem, Ser testemunhados no meu corpo E no meu natural! Ó olhos de outrem Se fosseis cegos e também o tacto! Nem nudez de alma ou corpo sei haver Para outro! Ser sozinho eternamente... Ah! que tão caro eu paguei o pensamento Que nada compensou! Que tão tristes (...) Deus pessoal, deus gente deixa que creiam, Existe para que eu te possa odiar! Quero alguém a quem possa a maldição Lançar da minha vida que /morri/, E não o vácuo só da noite muda Que me não ouve, e o espaço sem mais nada Que, se eu cuspir para ele, deixará O que cuspi cair em mim. (PESSOA/Fausto, 1991, p. 105)

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Elegemos, nesta parte, a idéia de noite, vinculando a esta o estado ilusório

a que, não se desprendendo de certa tradição — a do Fausto de Goethe, a do

Hamlet de Shakespeare, a do Paraíso Perdido de John Milton, a da Divina

Comédia de Dante, a genealogia teogônica de Hesíodo e a obra de Homero —, o

Fausto de Pessoa procura dar trato. Não faremos, nesta parte, nenhum trabalho de

natureza exegética em relação a esses poetas e à poesia de Fernando Pessoa;

valorizaremos, não o âmbito empírico, mas sim as afinidades eletivas entre estes

poetas. Manifesta-se, nestas diversas humanidades, também, o estado poético,

alcançado, em equilíbrio, ora pelos aspectos interiores de vago, sutil e

complexidade ora pelos aspectos exteriores de nitidez (epigramático), plasticidade

e imaginação. Como cada um destes, assim também Pessoa, de acordo com seu

temperamento, no seu Fausto, procura responder — a partir de ideações — ao

estado de síntese, trazido pela inconsciência de uma “noite” expressa ou ao estado

analítico, composto pela consciência de uma noite sentida.

No Fausto, de Fernando Pessoa, é a noite uma condição que provoca um

estado que turva, a partir de uma ilusória apreensão da natureza, as percepções de

quem acolhe em si ou se encontra acolhido nela. Neste movimento de eterna

substituição (entre receber e ser acolhido), diríamos, sem dúvida, que se encontra

a natureza de cunho criador da noite, como uma das manifestações metafísicas da

condição que ultrapassa o estado do humano.

A apreensão metafísica da noite (noite muda/ que me não houve)

configura-se junto às forças da privação e da negação na vida, mas é nesta

antinomia — ser e não-ser — que encontra o seu fundamento, pois, ao mesmo

tempo em que ela se priva, na obscuridade de um ser negativo, gera em si a luz. A

noite não é uma antinomia de opiniões, mas sim uma não concordância nela

mesma. “A vida não concorda consigo própria, porque morre” (PESSOA, 1998, p.

38).

Por isso que se diz que a noite é criadora porque é interdito entre a

descrença e o erro e, neste movimento, não concorda consigo mesma; eis a sua

verdade. Não concordando consigo própria, substitui-se e não se compreende.

Quando cria na efetividade da ação, desacredita-se; quando pensa na solidão da

mente, erra. Foi com esta solidão que Milton adornou, na voz de Satã, um dos

mais inquietantes versos no seu Paraíso Perdido:

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Infernal world, and thou profundest hell/ Receive thy new possessor: one who brings/ A mind not be changed by place or time./ The mind is its own place, and in itself/ Can make heaven of hell, a hell of heaven [Mundo Infernal, e tu profundo inferno/ Recebe o novo dono, o que traz/ Mente por tempo ou espaço não trocável./ A mente é em si mesma o seu lugar,/ Faz do inferno Céu, faz do Céu inferno]

(MILTON, Paraíso Perdido, 2006, p. 19.) .

Nesta esteira, Goethe, que admirava profundamente a arte dos gregos e

reconhecia também a importância da obra de Shakespeare e Milton, marca, tanto

no Primeiro Fausto quanto no Segundo Fausto, intitulando com a palavra noite,

os cantos que representam os caminhos insólitos percorridos pelo seu herói. Desta

obra, além de outras, retiramos duas manifestações importantes: a “Noite de

Valpúrgis”, no Primeiro Fausto, e a “Noite de Valpúrgis Clássica”, do Segundo

Fausto. No Primeiro Fausto, o teor deste canto é marcado pelo misticismo

nórdico medieval, numa atmosfera orgiástica e demoníaca. O elemento satânico-

mefistofélico tem lugar de destaque, além de todas as conotações sexuais que

consagram o ouro, o falo e a vagina. Tal elemento satânico como centro das

atenções pode ser notado no diálogo entre Mefistófeles e o Fogo-Fátuo, antes de

subirem o monte:

Ich merke wohl, Ihr seid der Herr vom Haus,/ Und will mich gern nach Euch bequemen./ Allein bedenkt! Der Berg ist heute zaubertoll,/ Und wenn ein Irrlicht Euch die Wege weisen soll,/ So müßt Ihr’s so genau nicht nehmen [Percebo-o bem, sois o patrão da casa,/ E com prazer presto serviço./ Mas, vede! Hoje no morro, impera a bruxaria, E se indicar um fogo-fátuo a via,/ Terá de ser sem compromisso] (GOETHE, Fausto, primeira parte, 2004, p. 438-439.

Fausto é conduzido por Mefistófeles, através do sonho e da magia, para o

monte Brocken, ou Blockesberg, lugar situado no Harz, norte da Alemanha, onde

a lenda se originou. Goethe situa a cena entre o dia trinta e o dia primeiro, data em

que a igreja católica comemora o dia de Santa Valpúrgis, nascida na Inglaterra em

710 e falecida na Alemanha, em 779. No intervalo entre estes mesmos dias, 30 de

abril e 1º de maio, as feiticeiras praticavam seus trabalhos, no monte Brocken,

antes do alvorecer do dia 1º, dia da Santa. Já no Segundo Fausto, A Noite de

Valpúrgis é conhecida como Clássica e, ao invés das conotações orgiásticas do

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Primeiro Fausto, essa celebra a apoteose do Belo, de Eros e também da gênese da

vida. Localiza-se na Tessália, aos pés do monte Olimpo, numa atmosfera

meridional e serena. A data em que Goethe situa a cena é a de 9 de agosto,

aniversário da Batalha travada entre Cesar e Pompeu, nos campos da Farsália, no

ano de 48 a.C. . A cena é antes povoada por figuras mitológicas pré-clássicas

(arcaicas) do que por heróis e deuses homéricos. Goethe destina-se a remontar

uma Grécia para antes de Homero e Hesíodo, mas mantendo destes o ideal de

equilíbrio e beleza em seus versos. Ao contrário da noite orgiástica, o elemento

satânico-mefistofélico já não encontra nesta cena o seu afã, porque o diabo nada

significa para os gregos, é constantemente zombado e rejeitado pelas figuras

mitológicas contidas na cena. Mefistófeles é feio e possuidor de pés de cavalo,

antípoda a todo ideal grego de beleza. Um exemplo disto, entre outros, é a cena

em que Mefistófeles, os Grifos e a Esfinge travam uma conversa:

Sphinx (milde): Du magst nur immer bleiden,/ Wird dich’s doch selbst aus unsrer Mitte treiben;/ In deinem Lande tust dir was zugutte./ Doch, irr’ ich nich, hier ist dir schlecht zumute. (Esfinge (brandamente): Fica aqui, se isso te apraz,/ Logo a ti mesmo te afugentarás./ Em tua terra podes ser Alguém,/ Mas aqui, creio, não te sentes bem) Mephistopheles: Dus bist recht appetitlich oben anzuschauen,/ Doch untenhin die Bestie macht mir Grauen (Mefistófeles: Ao ver-te no alto, apetitosa te acho,/ Mas fera horrenda és da cintura abaixo) Sphinx: Du Falscher kommst zu deiner bittern Buße,/ Denn unsre Tatzen sind gesund;/ Dir mit verschrumpftem Pferdefuße/ Behagt es nicht in userem Bund [Esfinge1: Hipócrita, entre nós te sentes roto,/ Pois nossas garras são sadias;/Tu, com pé de cavalo boto,/ Pecados teus aqui expias] (GOETHE, Fausto, segunda parte, 2007, p. 368-369)

Confirmam-se as palavras da Esfinge, através da fala de Mefisto, sobre o

incômodo que ele sentiria entre os seres mitológicos gregos, demonstrando isto no

tom nostálgico sobre o qual fala das bruxas nórdicas do Blocksberg:

1 No original, segundo notas da edição utilizada, a esfinge ameaça Mefisto com suas

patas, afirmando que estas são superiores as do demônio nórdico.

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Mephistopheles: Die nordischen Hexen wußt’ich wohl zu meistern,/ Mir Wirds’s nicht Just mit diesen fremden Geistern./ Der Blocksberg bleibt ein gar bequem Lokal,/ Wo man auch sei, mas findet sich zumal [Mefistófeles: Amestro as bruxas nórdicas sem custo,/ Mas com estas estrangeiras não me ajusto./ É o Blocksberg sítio em que conforto há;/ Ande onde for, sabe a gente onde está] (GOETHE, Fausto,

segunda parte, 2007, p. 436-437).

As diferenças que vão do Primeiro Fausto, digamos assim, ao Segundo

Fausto são bastante sensíveis, sobretudo em relação aos dois episódios que aqui

escolhemos para melhor expor a nossa argumentação. As duas Noites de

Valpúrgis são riquíssimas em recursos poéticos; as sonoridades provocadas pelos

versos da noite do primeiro Fausto revelam a atmosfera obscura e, ao mesmo

tempo, movimentada, da festa amaldiçoada das feiticeiras. No Segundo Fausto, a

noite de Valpúrgis Clássica inicia-se a partir do monólogo de Ericto. A sua fala,

marcada pelo verso jâmbico de três pés não rimado, ou trímetro jâmbico branco,

anuncia a espectral festa desta noite. E é neste ponto que procuramos ressaltar, —

embora as duas “noites” representem atmosferas e locais diferentes; uma, brumosa

e nórdica; outra, banhada pela claridade da lua tessálica — que estas duas

passagens dão-se à noite. Sobre o temperamento da sombria Ericto a noite inicia-

se. Diz-se que Goethe preferiu a luminosidade da lua à luminosidade do sol para

não fazer referência ao Iluminismo, mas várias destas passagens continuam

fechadas nelas mesmas, tais como fenômenos que requerem para si apenas os

sentidos que o observam.

Zum Schauderfeste dieser Nacht, wie öfter schon,/ Tret’ich einher, Erichtho, ich, die düstere;/ Nicht so abscheulich, wie die leidigen Dichter mich/ Im Übermaß verlästern... [Na espectral festa desta noite, eu, a sombria/ Ericto, surjo como tantas vezes já./ Não tão sinistras como os malfadados poetas/ Costumam difamar-me...] (GOETHE, Fausto, segunda parte, 2007, p. 350-351)

É Dante um dos malfadados poetas (os outros dois são Lucano e Virgílio),

mas é ao primeiro que atentamos. Aproximamo-nos de Virgílio por meio de

Dante, quando este, guiado por aquele, ao Círculo de Judas chega. Estampa-se na

face de Dante a palidez trazida pelo medo, porque, diante de tanta turbação, seus

olhos vislumbram nada mais do que uma espessa névoa. Encontra em Virgílio o

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gesto seguro, o gesto de quem, privado de ver além, pára atento e escuta, retorna e

a Dante fala: Pur a noi converrà vincer La punga [A luta teremos de vencê-la]

(DANTE, A Divina Comédia, 2005, p. 94-95). Diante da Porta de “Dite”, Dante

afasta o pavor e deixa-se conduzir por quem lá antes já estivera. Tinha sido

Virgílio enviado outrora por Ericto que, antes da batalha de Farsália, cantada por

Lucano, havia sido invocada por Sexto Pompeu para saber do resultado desta.

Virgílio falecera antes desta batalha travada entre Cesar e Pompeu, o que é

testemunhado no seguinte verso:

Di poço era di me la carne nuda,/ ch’ella mi fece intrar dentr’a quel muro,/ per trarne um spirto del cerchio di Giuda [Era inda há pouco a minha carne nua,/ e ela me fez passar aquele muro,/ té Judas, por uma alma à esfera sua]

((DANTE, A Divina Comédia, 2005, p. 94-95)

A fama de Ericto alastrava-se devido ao seu poder em ligar espíritos a

corpos, daí o fato de Virgílio atender, por ela, a tarefa de sondar o inferno em

busca do resultado da guerra. Daí, também, o traço característico da obra de

Goethe ao mencionar os malfadados poetas, que cantaram as aparições da

feiticeira e o seu poder nigromântico. No entanto, o que nos atrai é o medo de

Dante frente à coragem de Virgílio, isto é, o que este a Dante pôde ensinar.

***

Ó metafísico de ti! Sentido pelo instinto, não na mente, Vil metafísica do horror da carne, Medo do amor... (PESSOA/Fausto, 1991, p. 105)

O homem acredita ser o medo o cicerone para todos os abismos. Pode o

medo conduzir o homem a isto? Não, o medo só leva o homem a sentir mais medo

e a criar uma ilusão sobre a idéia de abismo, pois se medo Milton sentisse nunca

teria escrito o Paraíso Perdido, nem Dante, a Divina Comédia e muito menos

Shakespeare, o seu Hamlet. Ora, dirão alguns homens curiosos que o Fausto de

Goethe contém um pouco do Livro de Jó, influenciado pelas idéias de tentação e

provação que por sua vez ganharam maiores contornos na epopéia de Milton, e

encontraram todos os abismos fáustico em Shakespeare. Não sabem, porém, essas

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personalidades curiosas, que cada palavra, posta nas obras destes mestres citados,

não passa de um invólucro cujas extremidades estão abertas, e que por elas passa

a divina emoção ou a sensibilidade (que é demais para todas as palavras).

Ó vestidas razões, que fundamento podeis vós dar a isso? O fundamento

de que os olhos que avistam o fenômeno das árvores, que verdejam nas pradarias,

e que se sacodem, tangidas pelos ventos, produzindo eólicos sons, junto ao céu

azul, não podem dar à metafísica nenhuma resposta. Por que? Porque nenhuma

metafísica há nelas, mas sim a beleza de ali estarem. E o que foge a isso se torna

contingente à pureza desta visão, espanta-a e, assim, dissolve-se, permitindo que

se volte a respirar aquele ar pesado da razão.

Fausto sabe que há inteligência demais nas linhas das mãos dos homens

(que nem linhas são) e que escapam sempre aos lapsos racionais. Quando, ao

despertar de Fausto, deixarem de ser mãos, passarão a ser somente linhas, que

deixarão de sê-las e voltarão a ser mãos; passarão a ser telas, esboços, som:

palavra. Será nos vil toda metafísica que dar resposta isso pretende? Talvez, vil

não por ser metafísica, mas porque resposta não haja, pois a metafísica poderá

também ser bela, se arte ela for; se voltar a assumir que arte ela sempre foi e para

tal fato não há explicação que o comporte.

São tortuosos demais os caminhos que tentam ligar os dois extremos do

invólucro que pode ser a representação de cada palavra. Assim, a transcendência

torna-se estéril e sem uma fenda sequer por onde possa sair; ali, no espaço

claustrofóbico e letárgico, ela vem a perecer. Perguntamos: para que isso

acontece? Em verdade, essa não é a pergunta, mas sim esta: porque deixamos que

isso acontecesse? As vestes da razão nunca chegaram sequer a representar um

único adorno da Verdade ou da pura emoção. O ritmo ao qual a emoção se une

são quase indecifráveis à inteligência. E, no entanto, eles nos perpassam e os

conduzimos, quando possível, à idéia. No momento em que o ritmo por nós passa,

tanto faz que sejamos homens ou animais, já que essa emoção só poderá ser

suportada pelo instinto: no instinto, tudo é um.

Ó vestida razões! Dor que é vergonha E por vergonha de si própria cala A si mesma o seu nexo! Ó vil e baixa Porca animalidade do animal, Que se diz metafísica por medo

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A saber-se só baixa e a si dá nomes [...] (PESSOA/Fausto, 1991, p. 105)

A razão nos torna sempre insuficientes e há nisso um reconhecimento: o de

que a nossa condição nos é mórbida. A originalidade de cada grande descoberta

aponta para o lugar de onde “o original” parte sempre como algo que nos é antigo.

Isso demonstra que ainda não aprendemos nada e, deste modo, o antigo se repete,

pois, ao cabo, torna-se sempre latente a limitação das nossas empresas. Revela-se

ao gênio a verdade do fogo dos deuses e, deste modo, pelos deuses o gênio é

amado, mas esse amor é tão diferente daquela forma de amar dos homens simples,

que o tomamos logo por maldito.

O pensamento que é individual, raramente, para poucos, revela como são

parcas as falsas descobertas aparentemente originais. Alguém, por exemplo,

levanta a voz e diz: “como é démodé a frase do Fernando Pessoa: o que em mim

sente está pensando”. Isto não é digno de espanto, porque, assim, corrobora-se o

que já sabemos: por quantas Odisséias e por quantas Ilíadas ainda teremos que

passar para que, definitivamente, possamos aprender? O mesmo alguém que diz

isto também está pronto para dizer: “como essa teoria engloba tão bem esse

romance”, ou ainda, “esse jovem contista é a nova promessa para literatura”.

Estão sempre a eleger, sob a capa invisível (como a de um rei nu) da

mediocridade que lhes é cabível, homenzinhos candidatos a uma apoteose de

vigésima categoria. Assim como a Providência vem sempre auxiliada pelo

testemunho de poucos, a mediocridade enlaça-se sempre à inanição das suas

criações. Importa reconhecer o que da “aurora” dos tempos remotos há na excelsa

frase do Pessoa, iluminada sempre por uma apoteose de primeira ordem,

autorizada, — tal como ele falou de muitos daqueles que amava — pela

inteligência e pela emoção. Enfim reconhecer na frase pessoana (o que em mim

sente está pensando) uma harmonia sem par, fiel aos mais célebres ensinamentos.

Frases como essa precisam se repetir, porque ainda não a aprendemos. O que não

importa são as faíscas, poucas muito poucas, de alguém que contra uma frase

desta procura levantar sua voz; o melhor seria ter nascido mudo, pois ainda nada

aprendeu sobre a arte (metafísica) do antigo, além de nada servir esta sua inválida

hesitação mental, pois, apesar dela, a frase continua intacta. São meras

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celebridades seus eleitos, homenzinhos que nem direito à ilusão sonhada de serem

gênios conseguiram ter: suas obras são sempre rebentos natimortos.

A grande obra Fausto é perfeita e suficiente à imperfeição insuficiente da

vida. O que vem a ser isto? Não há perfeição que não gere em si a sua

imperfeição, se assim não fosse implodiria, e nada iria restar para que no Tempo

ela sobrevivesse. É preciso ser imperfeito para viver, ao passo que a perfeição do

mito só é possível ao Tempo, mas, dizia Píndaro, que homens e deuses são frutos

de uma mesma raça, e Pessoa também reconhece isso. Mas que espécie de

homem? Ora, quando uma celebridade é aclamada pela mediocridade de seus

agenciadores, dizem estes: “eis o novo”! Na verdade, o que se tem é o velho que,

diga-se de passagem, não é o Antigo. O Antigo é aquela força que nos alerta,

afirmando: do novo nada houve nas obras destes que agora chegam, pois, se o

novo realmente aparecesse, sem margem de dúvida, eles não gostariam, porque

este novo lhes seria incomum.

Não sabemos de que modo se poderia conduzir o “poder do gênio” ao

“poder prático” e tendemos a achar que o primeiro talvez nunca se dê no mundo

da ação de modo efetivo. Isso requer de nós uma grande envergadura sobre o

conhecimento do que realmente somos; requer o desejo de nos conquistarmos a

partir daquilo que não se conhece. No entanto, essa procura nos tem sido cara e,

ao mesmo tempo, curiosa. O resultado disso são sempre os vícios sobre os quais

incorremos ao longo dos anos, a irresponsabilidade que se reflete a partir do modo

pelo qual procuramos conhecer. Uma pergunta deste gênero, por exemplo: “do

que somos capazes”, leva-nos sempre ao desconhecimento sobre nós mesmos,

pois é sempre colocada da “boca para fora”, e deveria ser justamente o contrário,

deveria ser conduzida para dentro e retornar segura para fora. Aí se encontra a

confusão, pois tudo que se objetiva, quando por interesses é guiado a se objetivar,

deflagra, quase sempre, o ridículo. A essência das coisas não nos foi dada a

conhecer. É cômico quando um homem, acreditando ser um homem de vontade, e

sobre a suspeita desta, pronuncia: “com sensibilidade governarei esta nação”. Não

tardaríamos a dizer que, com sensibilidade, este político não chegaria a lugar

nenhum e nada iria governar. É nesse erro grosseiro que nossos governantes

tropeçam, pois “agem” sempre em nome da “sensibilidade”, no lugar no qual

deveria estar radiante a “vontade”. Lembremos como Milton inicia o seu escrito

“A tenência de reis e magistrados”:

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Se dentro de si os homens desejassem se governar pela razão e, em geral, não abandonassem o entendimento a uma dupla tirania, a do costume externo e a dos cegos afetos internos, eles discerniriam melhor o que é favorecer e amparar o tirano de uma nação. (MILTON, 2005, p. 5)

Pois bem, a ameaça niilista surge e nos cobre com a sua sombra, tentando

nos convencer, principalmente, sob a suspeita de que não há equilíbrio para isso

que Milton chama de “dupla tirania” e Fernando Pessoa reconhece como o desejo

à harmonia entre a “inteligência” e a “emoção”. Sem hesitar, podemos dizer: para

o criador de uma nação, a sensibilidade, no sonho, lhe basta, mas, para aquele que

herdará a nação deixada pelo sonhador, somente a vontade lhe é amiga. O certo

seria que em todo governante houvesse, em equilíbrio, a essência volitiva e a

essência emotiva e que sob estas pudesse, enfim, governar. No Renascimento de

Milton, embora também difícil, era possível dizer isto, mas nos nossos dias, a

razão não conhece a si própria. Os seus efeitos sobre a condição externa, onde

aparentemente somos iguais, são devastadores.

É-nos lícito mencionar que a consciência não sabe nada sobre ela mesma.

Quando na vigília, o vigilante escravo torna-se, viverá sobre fortes ataques e, a

sua percepção, mais que a sua própria vida, estará demasiadamente abalada. Os

dias, paulatinamente, se tornam mais noturnos e, sobre a noite, nada se sabe; sabe-

se apenas que é noite e nela somos abandonados. Supomos que algum dia o

homem, ostentando a inocuidade de suas considerações, julgou ter encontrado a

verdade. Se assim for, esta só poderá ter saído de sua mente e poderia ser dada a

todos a partir do seguinte axioma fáustico: a Verdade, aquela que julguei saber,

consumiu-me, quando sobre quatro pés, tornei-a lúdica, sobre dois pés a carreguei

— senhor de mim em meus braços — e, ao fim da vida, sobre três pés, tomei-a

como divina. Assim, a mim fui-me indigno.

***

Estes gregos que ainda nos governam de além dos próprios túmulos desfeitos, figuraram em dois deuses a produção da arte, cujas formas todas lhes devemos, e de que só não criaram a necessidade e a imperfeição. Figuraram em o deus Apolo a liga instintiva da sensibilidade com o

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entendimento, em cuja ação a arte tem origem como beleza. Figuraram em a deusa Athena a união da arte e da ciência, em cujo efeito a arte (como também ciência) tem origem como perfeição. Sob o influxo do deus nasce o poeta, entendendo nós por poesia, como outros, o princípio animador de todas as artes; com o auxílio da deusa se forma o artista. (PESSOA, 1998, p.251)

O nascitur do poeta é ter nascido poeta; o do artista é compreender-se,

formando-se, como artista; já o da obra de arte, sendo primeiro obra e depois obra

de arte, é existir. O instinto de formação dos gregos, figurado nos deuses Apolo e

Athena, indica que os ideais gregos são todos pensados exaustivamente, um

perfeito equilíbrio, sendo-lhes adversativa a direção inconsciente para

compreendê-los. Diz Nietzsche ter sido o primeiro filósofo trágico. No entanto,

como alguém pode dizer ser algo sem ao menos ter compreendido este algo? Não

existe, também, aquela sensível relação, diferenciada — como os modernos

gostam de mencionar — entre o que é a tragédia e o que é um pensamento

trágico, porque não existe esta relação. O que há, diga-se logo, é a tragédia; o

outro é fruto de um anti-intelectualismo, pois desde que o pensamento é

pensamento avulta-se em sua manifestação uma incompletude sem par. Para

Fernando Pessoa, Nietzsche compreendeu mal este princípio, fez a partir da

figuração de Apolo e Dioniso, uma metafísica estropiada do artista, reconhecendo

no “deus do sonho” a individualidade como marca do princípio formal e, de

Dioniso a comunhão no todo, o rosto sem face, mergulhado na embriaguez em

que resplandece como máscara a figuração do Apolíneo. Apolo, para os gregos,

nunca foi o resultado, mas sim o princípio. É ingênua aquela acepção sobre o

princípio formal exterior atribuída a este sob a chancela do apolíneo. Irrisória

também é a falsa relação entre arte apolínea e arte dionisíaca. Reconhecer na

figuração apolínea o agon como combate individual é uma coisa, dizer que pelo

agon o indivíduo dá brilho a sua existência é outra coisa bem diferente, mais

diferente ainda é mencionar que a epopéia, através da competição e da glória

(kleos), cria o indivíduo. Agora, chamar tudo isso de arte apolínea é algo

imponderável.

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Tem duas formas, ou modos, a que chamamos cultura. Não é a cultura senão o aperfeiçoamento subjetivo da vida. Esse aperfeiçoamento é direto ou indireto; ao primeiro se chama arte, ciência o segundo. Pela arte nos aperfeiçoamos a nós; pela ciência aperfeiçoamos em nós o nosso conceito, ou ilusão, do mundo. (PESSOA, 1998, p.251)

Nietzsche não compreendeu aquilo que seu professor, brilhantemente,

durante anos, buscou entender: o principium individuationis. Este termo é

apropriado por Nietzsche a partir da obra de Schopenhauer, e este, por

conseguinte, serviu-se da antiga escolástica para utilizá-lo em sua obra. Foi tal

termo, entre os escolásticos — e acreditamos que também hoje através de outras

atribuições — objeto de tantas sutilidades e conflitos. O problema não se encontra

no reconhecimento da particularidade do termo, entre um pensador e outro, mas

sim na atribuição desta particularidade à figuração de Apolo. O deus não pode

personificar a idéia de indivíduo, por ser justamente uma idéia, pois a figuração

do deus não é a sua idéia. Se Apolo é a idéia, encontra-se esta idéia fora do tempo

e do espaço, isto é, fora do principium individuationis. É no tempo e no espaço

que a pluralidade das coisas aparece como representação daquilo que é uno e igual

conforme a essência. E, visto deste modo, segundo as diversas considerações

pessoana sobre arte, Apolo é uma idéia.

A idéia para Schopenhauer é uma representação, mas não uma

representação no tempo e no espaço, a sua representação não se encontra na

objetividade do principium individuationis. Como representação fora do tempo e

do espaço a idéia é aquilo que Schopenhauer denomina, através de um

neologismo, que traduzido para o português, podemos chamar de objetidade. Isto

é a Idéia como representação mais próxima da Vontade, para Schopenhauer.

A Idéia, ao contrário, não se submete a esse princípio [princípio de razão]; por conseguinte não lhe cabem pluralidade nem mudança. Enquanto os indivíduos, nos quais a Idéia se expõe, são inumeráveis e irrefreavelmente vêm-a-ser e perecem, ela permanece imutável, única, a mesma, o princípio de razão não tendo significação alguma para ela. Por outro lado, se este princípio é a forma sob a qual se encontra todo conhecimento do sujeito, quando ele conhece como INDIVÍDUO, as Idéias, ao contrário, residem completamente fora da esfera de conhecimento do indivíduo. Entretanto, caso as Idéias devam se tornar objeto de conhecimento, isso só pode ocorrer pela supressão da

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individualidade no sujeito cognoscente. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 236)

Apolo é uma representação sim, mas uma representação, não como

imagem, mas como idéia. A idéia não perece, mas universaliza-se, não se submete

aos modos de conhecimento pertencentes aos fenômenos aos quais estes se

submetem. Em sua juventude, comenta-se que o jovem Nietzsche teve como

influência basilar o pensamento de Kant e, sobretudo, de Schopenhauer. Do

primeiro, estruturou sua argumentação, influenciado pelas denominações de

fenômeno e coisa-em-si, já do segundo utilizou-se das denominações de

representação e vontade, mas atribui-se, também, uma forte influência do

pensamento de Platão nele, sobretudo em relação à aparência e à essência.

Atribui-se, também, a originalidade do Nascimento da Tragédia ao modo pelo

qual tratou os diversos paradoxos já contidos na filosofia destes pensadores,

convertendo-os e interpretando-os a partir da figuração dos deuses míticos. Ao

nos filiarmos, de certo modo, ao pensamento pessoano podemos, então, afirmar

que, se alguma vez Nietzsche tivesse realmente compreendido e entendido a

doutrina dos dois grandes filósofos do ocidente, nunca teria oposto aquele Dioniso

a Apolo. Muitos são os seguidores de Nietzsche no Brasil e no mundo, mas

poucos os leram, e se o leram não o compreenderam. É o que leva Pessoa a

também comentar:

Em Nietzsche a contradição de si-próprio é a única coerência fundamental, e a sua verdadeira inovação é o não se poder saber o que foi que ele inovou. [...] A maioria aceita de Nietzsche o que está apenas neles, o que de resto, acontece com todos os discípulos de todos os filósofos. A minoria não compreendeu Nietzsche, e são esses poucos que seguem fielmente a doutrina dele. (PESSOA, 1998, p. 542)

Por que passa longe em Nietzsche o significado de Apolo como idéia?

Porque, para Nietzsche, Apolo não é uma idéia, mas sim uma imagem, e que

tende a ser expressão.

Apolo, a imagem divina e esplêndida do princípio de individuação, cujos gestos e olhares nos falam de toda sabedoria e de toda alegria da “aparência”, ao mesmo tempo que nos falam da sua beleza. (NIETZSCHE, p.22)

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A Idéia, como resultado de um aparato crítico, elaborado por

Schopenhauer entre a filosofia de Platão e Kant, é apenas uma objetidade

imediata, mais adequada à Vontade, na medida em que, como Idéia, esta ainda

não se objetivou. No entanto, manteve a forma mais universal de todo fenômeno,

que é o de ser objeto para um sujeito, uma representação. A Idéia é destituída de

todas as formas vinculadas ao conhecimento, inclusive a mais geral de todas: o

principium individuationis. Porque enquanto Idéia esta apenas “se despiu das

formas subordinadas do fenômeno concebidas sob o princípio de razão; ou, antes,

ainda não entrou em tais formas” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 242).

Sobre a mesma matéria, Kant afirma:

O tempo e o espaço são, portanto, duas fontes de conhecimento das quais se podem extrair a priori diversos conhecimentos sintéticos, do que nos dá brilhante exemplo, sobretudo, a matemática pura, no que se refere ao conhecimento do espaço e das suas relações. Tomados conjuntamente são formas puras de toda a intuição sensível, possibilitando assim proposições sintéticas a priori. Mas estas fontes de conhecimento a priori determinam os seus limites precisamente por isso (por serem simples condições da sensibilidade); é que eles dirigem-se somente aos objetos enquanto são considerados como fenômenos, mas não representam coisa em si. Só os fenômenos constituem o campo da sua validade; saindo deste campo já

não se pode fazer uso objetivo destas fontes. (KANT,

2001, p. 76)

Não se pode fazer uso objetivo destas fontes porque tempo e espaço não

são definições da coisa em si, mas antes pertencem apenas ao conhecimento dos

fenômenos, e o conhecimento destes como formas do nosso princípio de razão. As

leis dos fenômenos não podem ser válidas para a coisa-em-si kantiana, sendo

assim toda experiência é apenas conhecimento dos fenômenos e não da coisa-em-

si.

Platão, por sua vez, argumenta:

Então – prosseguiu Sócrates – minha esperança de chegar a conhecer os seres começava a esvair-se. Pareceu-me que deveria acautelar-me, a fim de não vir ter a mesma sorte daqueles que observam e estudam um eclipse do sol. Algumas pessoas que assim fazem estragam os olhos por não tomarem a precaução de observar a imagem do sol

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refletida na água ou em matéria semelhante. Lembrei-me disso e receei que minha alma viesse a ficar completamente cega se eu continuasse a olhar com os olhos para os objetos e tentasse compreendê-los através de cada um de meus sentidos. Refleti que devia buscar refúgio nas idéias e procurar nelas a verdade das coisas. É possível, todavia, que esta comparação não seja perfeitamente exata, pois nem mesmo eu aceito sem reservas que a observação ideal dos objetos – que é uma observação por imagens – seja melhor do que aquela que deriva de uma experiência dos fenômenos. Entretanto, será sempre para o lado daquela que me inclinarei. Assim, depois de haver tomado como base, em cada caso, a idéia, que é, ao meu juízo, a mais sólida, tudo aquilo que lhe seja consoante eu o considero como sendo verdadeiro, quer se trate de uma causa ou de outra qualquer coisa, e aquilo que não lhe é consoante, eu o rejeito como erro. (PLATÃO, 1987, p. 106)

E um pouco mais adiante é comentado:

Para mim é evidente: quando, além do belo em si, existe um outro belo, este é belo porque participa daquele apenas por isso e por nenhuma outra causa. O mesmo afirmo a propósito de tudo mais. (...) Se alguém me diz por que razão um objeto é belo, e afirma que é porque tem cor e forma, ou devido a qualquer coisa desse gênero – afasto-me sem discutir, pois todos estes argumentos me causam unicamente perturbação. Quanto a mim, estou firmemente convencido, de um modo simples e natural, e talvez até ingênuo, que o que faz belo um objeto é a existência daquele belo em si, de qualquer modo que se faça a sua comunicação com este. (PLATÃO, 1987, p. 106)

Dentre o aparato crítico trazido à tona, por Schopenhauer — entre a

filosofia do sábio grego e a de Kant — uma coisa parece aproximar, segundo ele,

as doutrinas de ambos: “o sentido íntimo de ambas as doutrinas é exatamente o

mesmo, que ambos os filósofos declaram o mundo visível com um fenômeno”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 238). No entanto, a crítica sobre certo „desvio‟ do

pensamento de Kant, estabelecida por Schopenhauer, finca-se como ponto

nevrálgico de nossa análise. Tal ponto seria o fato de Kant de ter deixado com que

a coisa-em-si se aproximasse do ser-objeto. “A Idéia platônica, ao contrário, é

necessariamente objeto, algo conhecido, uma representação e justamente por isso,

e apenas por isso, diferente da coisa-em-si” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 238).

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Sobre ser cognoscível a Idéia, Fernando Pessoa comenta em relação a

Platão:

Quando Platão diz que somente a Beleza é Bela, que só a Brancura é verdadeiramente branca, erra. Pois ser belo significa “participar da Beleza” e ser branco significa “participar da brancura”, possuir brancura em certo grau. Mas a beleza não possui Beleza, nem a Brancura é branca. Cometemos o mesmo erro de Platão quando, vendo que o infinito contém todos os números, é o único número verdadeiro, ao passo que o infinito não é verdadeiramente um número, mas duma natureza inteiramente diversa. A origem deste erro é facilmente vista quando consideramos uma série. Aqui estamos prontos para dizer que o infinito é superior a qualquer número. Aqui é que está o erro de Platão. O infinito não é superior nem inferior a qualquer número; porque a superioridade e a inferioridade dependem do número, do grau. Mas o Infinito nem mesmo é diferente do número. Pois o princípio da diferença é o grau; o grau é numérico; o infinito não é número. (PESSOA, 1998, p. 541)

O principium individuationis, entendido por Nietzsche, atribui, na

figuração de Apolo, a forma como representação exterior, isto é, na pluralidade.

No entanto, como dar forma aquilo cuja matéria não possui conteúdo formal? A

matéria que não possui forma, antes mesmo da figuração do deus, é a

sensibilidade e o entendimento, como aludida por Pessoa: “Figuraram em o deus

Apolo a liga instintiva da sensibilidade com o entendimento, em cuja ação a arte

tem origem como beleza” (PESSOA, 1998, p. 252). O que deve ser retido disto é:

por que Apolo é contraposto a Dioniso por Nietzsche, se já no deus da luz o

paradoxo se encontra reinante? Justamente por não ser apenas luz, mas também

noite, uma espécie de liga instintiva entre a ausência de forma da sensibilidade

(antes de se tornar conceito) e o aparato conceitual do entendimento como

representação da sensibilidade. Nunca houve ocultação da atividade do destino,

sobretudo na epopéia, porque lá o trágico como insuficiência humana perante os

deuses já despontava. Ítaca, sem a presença de seu soberano, na Odisséia, fica

entregue, durante anos, à atividade ilícita, movida pela volúpia, pela inveja e a

ganância. Como não verificar nisto o poder aterrador da necessidade de

existência? Ao ressaltar o caráter pedagógico da epopéia, Nietzsche a menciona,

quase sempre, como um espelho cujo reflexo nos mostra o contrário das

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atrocidades presente na vida. Para o autor português, isto não é bem assim. Se a

epopéia possui como esplendor simbólico a referência que ele faz a Apolo, esta já

traz a marca do paradoxo, pois a beleza nunca, em sua essência, tem por

representada a sua totalidade. O caótico e o informe sempre estiveram presentes

nos textos homéricos, não como conteúdo formal, mas como matéria em que se

ligam a sensibilidade e o entendimento. A obra homérica criou uma nação que a

sucedeu, Roma, e, como herança, formou toda a literatura da Europa.

No princípio, na Grécia – e depois em Roma, essa América da Grécia – reinou o Objeto, a Cousa, o Definido. Existia, de um lado, a Cousa; do outro, existia, em bloco, a Sensação, a sensação imediata e vivida. E assim, quando a arte era do Objeto, o objeto surgia perfeito e nítido na realização. E, como o espírito concebe sempre o sujeito à semelhança do objeto, as sensações (quando a sensação se tornava sensação da sensação, introspectiva, auto-analítica) eram concebidas como concretas, definidas, separadas uma das outras. Por isso não havia vago, indeciso, penumbra na poesia de alma dos gregos e dos romanos. Tudo está detalhado e detalhada em plena luz. (PESSOA, 1998, p. 424)

O mundo ao qual pertence Apolo é o mundo que não lhe dá rosto. Sob sua

atividade nasce o poeta. O resultado do que se organiza no mundo do “deus do

sonho” é a beleza como construção, como obra e não propriamente o deus em si

nem o apolíneo, mas sim, a arte. Há tanta poesia no mundo, no entanto

pouquíssimos são os poemas. Poesia, é claro, entendida como princípio animador

das artes. Arte é uma palavra a qual os gregos, segundo Pessoa, desconheceram,

pelo menos do jeito que a conhecemos hoje. O vocábulo “arte” está mais próximo

da raiz latina ars do que a do vocábulo grego techné. O seu significado representa

uma gama de atividades em que a produção se dá pela técnica, daí a idéia de

construção como síntese daquilo que o poeta colheu e expressou a partir da idéia.

Pessoa teoriza que, em arte, a idéia manifestar-se-á pela técnica (talento) ou pela

genialidade. O talento, segundo ele, é a sedimentação dos materiais a partir da

técnica, o modo com que, paulatinamente, o homem organiza seu conhecimento e

o transforma a fim de produzir arte; talento, para Pessoa é a habilidade construtiva

e a capacidade filosófica.

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O gênio é de um só tipo: originalidade. Este conceito é importantíssimo ao

longo dos textos “teóricos” de Fernando Pessoa, pois para ele o talento não é uma

condição a priori no indivíduo, mas sim, o contrário.

Com tal assiduidade e estudo se empregam os sumos artistas no conhecimento das matérias, de que hão de servir-se, que antes parecem sábios do que imaginam, que aprendizes da sua imaginação. Nem escasseiam, assim nas obras como nos dizeres dos grandes sabedores, lucilações lógicas do sublime; em a lição deles se inventou o dito, o belo é o esplendor do vero, que a tradição, exemplarmente errônea, atribui a Platão. E na ação mais perfeita que nos figuramos – a dos que chamamos deuses – a unamos por instinto as duas formas de cultura: figuramo-los criando como artistas, sabendo como sábios, porém em um só ato, pois o que criam, o criam inteiramente, como verdade, que não como criação; e o que sabem, o sabem inteiramente, por que o não descobriram, mas criaram. (PESSOA, 1998, p. 252)

As duas formas de cultura, unidas pelo instinto são a figuração dos deuses

Apolo e Athena, como já mencionado em períodos anteriores. Em Apolo, a arte

tem origem como beleza na união instintiva da sensibilidade e do entendimento;

em Athena, a arte (como também a ciência) tem origem como perfeição na união

da arte com a ciência. Ao mesmo tempo, segundo os gregos, tudo é estranho e

alheio ao nosso entendimento e, a nossa vontade, pois o homem dorme com

sonhos servis à liberdade que nem nos sonhos tem. Assim, diz, Pessoa:

A arte é a interpretação individual dos sentimentos gerais. Se é a interpretação de sentimentos só individuais, não tem base na compreensão alheia. E deixa de ter um limite. Porque sendo sem número os sentimentos individuais, não se pode nunca definir o que é arte, ou o que não é arte, dado que cada qual traz a sua arte consigo. (PESSOA, 1998, p. 239)

Na mesma esteira, dirá:

Por isso o nascitur que se diz do poeta, se aplica também a metade do artista. Não se aprende a ser artista; aprende-se porém a saber selo. Em certo modo, contudo, quanto maior o artista nato, maior a sua capacidade para ser mais que o

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artista nato. Cada um tem o Apolo que busca, e terá a Athena que buscar. (PESSOA, 1998, p. 252)

A que diz respeito a figuração destes deuses? “Os Deuses são o primeiro

grau de abstração” (PESSOA, 1998, p. 203). A abstração ascende no modo pelo qual

a evolução se dá, isto é, das idéias concretas para as idéias abstratas. Especula-se

que, para se chegar às idéias abstratas, passou o homem por um período

intermediário. E este estádio intermediário é a própria capacidade em que ele

elabora a hipótese sobre a condição abstrata da idéia. O estádio hipotético já

marca como característica que o homem já havia ultrapassado o conceito concreto

das coisas presentes na physis, mas não tinha ainda alcançado o conceito abstrato:

“E aqui a expressão faz com que nos perguntemos se a coisa-em-si de Kant não

seria uma mera concretização da abstração.” (PESSOA, 1998, p. 204). De que

maneira, então, a manifestação de Apolo, como deus da luz, deixa de ser concreta

e passa para o conceito abstrato? Ou nunca houve manifestação de Apolo como

um algo concreto e a sua realização nunca foi alcançada, nem pela abstração

conceitual nem pela idéia? Para Pessoa, o conceito abstrato do deus Apolo ainda

não é uma idéia, visto que é um conceito e não uma idéia e, sendo um conceito,

revela-se tortuosamente pelo princípio de razão como condição universal para o

conhecimento dos fenômenos:

É o gênero de hipótese que um homem civilizado forma quando desleixadamente, para fazer idéia de como um selvagem chegaria às idéias abstratas, abusivamente concebe que ele, civilizado, as não tenha, e a si próprio pergunta como as obteria se as não tivesse. Como não elimina de sua idéia, de seu espírito, as idéias abstratas, naturalmente supõe que as obteria por um modo que pressupõe que ele já as tenha. (PESSOA, 1998, p. 541)

Não é a pré-existência da abstração, através da hipótese, que parece ser o

processo mental que o homem seguiu, na especulação do conceito concreto para o

abstrato, na tentativa de alçar à idéia, mas sim na transitoriedade e na estaticidade

do mundo fenomênico em que se encontra como causalidade e, também, como

fenômeno deste mesmo mundo. É na busca pelo o incorruptível do corpo e no não

perecimento do corpo que o homem percebe que houve uma mudança evolutiva

do conceito concreto para o abstrato. Mas, consoante ao pensamento pessoano

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(junto com seu heterônimo Reis), esta mudança realmente se efetiva através do

constante aperfeiçoamento da emoção, isto é, do modo pelo qual a vida é sentida:

Temos, como único dado sintético da experiência, a realidade exterior como realidade concreta; o espírito, embora possa ser real, não nos é dado como realidade, mas apenas como meio de conhecer a realidade. Não temos o direito de afirmar que é realmente real o que é, não a realidade, mas apenas o meio de a conhecermos. (PESSOA, 1998, p. 207)

O exemplo melhor das idéias abstratas e do para que servem são os números, a matemática. Nada mais útil, mas, em si, nada mais falso. Só um louco julga que o nº 5, por exemplo, é uma coisa: mas o nº 5 é útil, como os outros números, porque é um meio de compreendermos a realidade, não em si-mesma, mas tem utilidade, em relação

apenas a nós, e à nossa imperfeição. (REIS, 2003, p. 74)

É através do corpo que lhe nasce a noção de utilidade e, desta noção, a

idéia sobre o que lhe é útil. É, também, através da elaboração lógica, que é dado o

modo pelo qual se conhece algo, mas o que é conhecido é a síntese do que foi

permitido ao conhecimento conhecer, não a realidade em si. E, se por um desvio

qualquer, chamam o que é conhecido, através da síntese, de realidade, é

necessário, segundo Pessoa, que se faça logo uma ressalva: não é o corpo que nos

é real nem o modo pelo qual se acham as semelhanças entre os corpos; o divino

como origem é real, pois, como observado, embora o espírito nos seja real, o

mesmo não nos é dado como realidade, mas apenas como meio de conhecer a

realidade. O que cai sobre o terreno da dúvida não é a natureza (physis), mas sim

o modo utilizado pelo espírito para se conhecer a natureza: o pensamento. Este

modo — entre muitos — ao longo dos tempos, chamou-se: razão, princípio de

razão, principium individuationis, pensamento. Para Fernando Pessoa, da união

do ente com a sensação temos o pensamento: “Pensamento ainda não distante da

imaginação”. (PESSOA, 1998, p. 251)

Cada ente, visto que é o que é por natureza, e por natureza sente que o é, tende a sentir-se o que é o mais completamente possível; e, como o que se sente, o sente através de distinguir-se dos outros, e, portanto, de estar em

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relação com outros, para sentir-se o que é o mais completamente possível, deve sentir-se o que é o mais relativamente, ou relacionadamente, possível. (PESSOA, 1998, p. 529)

Visto desta forma, o pensamento que, ao mesmo tempo, a partir de

abstrações elevadas, deveria unir os homens em suas mais recônditas diferenças,

age também de modo contrário, separando-os. No entanto, como dito, a

imperfeição encontra-se na máquina lógica pela qual conhecemos o mundo, é o

que nos une e nos entrega à pluralidade ao mesmo tempo. A visão, dentre os

diversos sentidos, é o que nos mais apraz, já afirmava Aristóteles em sua

Metafísica. Mas, para o heterônimo pessoano, Ricardo Reis, os sentidos não são

perfeitos, pois “se os nossos sentidos fossem perfeitos não precisávamos de

inteligência; nem as idéias abstratas de nada nos serviriam” (REIS, 2003, p. 74).

A imperfeição dos nossos sentidos faz com que não concordemos nunca em absoluto sobre um objeto ou um fato do exterior. Nas idéias abstratas concordamos em absoluto. Dois homens não vêem uma mesa da mesma maneira, mas ambos entendem a palavra “mesa!” da mesma maneira. Só querendo visualizar uma coisa é que divergirão; isso, porém, não é a idéia abstrata da mesa. (REIS, 2003, p. 75)

A concordância sobre um determinado objeto não se encontra na

visualização do mesmo, porque “um néscio não vê a mesma árvore que um

sábio”, tal como dizia Willian Blake. A concordância encontra-se somente na

idéia abstrata do que é uma árvore. É perigoso o modo — ou os modos — como o

mundo nos é dado, já que, pelos sentidos, a realidade em si, isto é, em sua

totalidade, não a compreendemos. Se disserem, por exemplo, que um conceito, em

seu modo abstrato, é incompatível com a pluralidade, é porque, então, não há

conceito abstrato. Pelo impulso ao desejo do conhecimento encontra-se o homem

(e o Fausto que lhe cabe), pelos sentidos, encontra a divergência. Mas o que isto

quer dizer afinal? Que não haverá identidade? Que só haverá distinção?

A premissa pessoana é a seguinte: a identidade não se diferencia da

distinção, em seus característicos próprios, diz: “a Identidade é a mesma coisa que

a Distinção.” (PESSOA, 1998, p.530). “Um ente, ou Eu, qualquer existe

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essencialmente porque se sente, e sente-se porque se sente distinto de outro, ou de

outros.” (PESSOA, 1998, p. 529).

A existência deste ente dá-se pelo que sente de si e isto só é possível

através da relação com outros entes. Desta forma o seu eu, ou ente, sabe-se

completo. É através da relação em que o ente se reconhece como completo, que

este se relativiza com os outros entes para que se compreenda como eu.

Para se sentir o que é o mais relativamente possível, força é que seja o mais relativo ou relacionado que pode ser, e que seja assim relativo ou relacionado com a maior perfeição, ou intensidade, possível. Quer isto dizer que, para um ente se sentir o mais possível a si-próprio (o que quer dizer, para ser o mais possível ele-próprio) tem que sentir o mais absoluta e puramente possível a sua Relação. Ora a Relação só é absoluta quando é com o Todo o relacionável, e só é inteira ou pura quando com cada relacionável é o mais possível, e o mais possível será mais puramente possível. (PESSOA, 1998, p. 529)

A relação mais profunda é aquela que busca identificar-se; é a relação de

identidade. Mas a perfeição, ou intensidade, encontra-se em modo absoluto com o

Todo: “Por isso, para se sentir puramente si-próprio, cada ente tem que se sentir

todos os outros, e absolutamente consubstanciado como todos os outros.”

(PESSOA,1998, p. 529). Um ente e os outros compartilham de uma única e

mesma coisa que é a Relação, deste modo eles se entre-são. Assim o ente se

distingue de si-mesmo. Esta relação de altivez metafísica, para o autor português,

chama-se Identidade.

Ora isto não pode implicar fusão (de qualquer espécie) com os outros, pois assim o ente não se sentiria a si-próprio: sentir-se-á não-si-próprio, e não si-próprios-outros. Para não deixar de ser si-próprio, tem que continuar a ser distinto dos outros. Como, porém, nesta altura do relacionar-se, os outros são outros-ele, para ser distinto dos outros, ele tem que ser distinto dos outros-eles. Ser distinto dos outros-ele só pode dar-se sendo ele distinto de si-mesmo. (PESSOA, 1998, p. 529)

O ente não pode esquecer-se de si-próprio, pois esta é uma das parcelas

daquilo que é chamado de Relação, nem poderá anular os outros-ele, por que

assim não se ligaria a segunda parte da Relação, formando, em seu conjunto, isto

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é, neste entreser-se, a Identidade. Porém, é aludido por Pessoa outro critério da

Identidade: a Distinção.

Para ser distinto de si-mesmo sem ser outros, porque nesse caso não seria ele-mesmo, nem ser ele-mesmo, pois então não se distinguiria, ele tem que ser nem outros nem ele-mesmo, ele tem que ser a Essência de outros e de ele-mesmo, porque assim, sendo essência d’ele mesmo, de si-mesmo se distingue – como as próprias palavras, em que isto se diz, distinguem -, e sendo essência comum d’ele e de outros não se distingue dos outros, ou antes se indistingue dos outros pelo próprio processo por que se distingue de si-mesmo. (PESSOA, 1998, p. 529)

Distinguir-se de si mesmo e dos outros é manter-se na Essência do que é.

E esta é a condição que faz de si próprio a identidade mais pura e abstrata da

identidade. A pura identificação é a mais pura relação de um ser consigo mesmo e

isto não implica identificação absoluta, pois seria esta a pura não-relação. A

essência deste ente consiste em ser Relação Abstrata e, por isso, Relação Pura.

A Relação pura puramente distinta de si-mesma será uma pura distinção puramente distinta de si-mesma. A distinção pura, porém, é já, por o que é, puramente distinta, visto que é a distinção pura. Por isso a Relação Pura, só por ser a Relação Pura, é pura distinção. Mas se é por isso que é pura distinção, segue que é pura distinção por ser pura identidade, pois que é pura distinção por ser puramente aquilo que é (que é Relação Pura). De aqui se conclui que pura identidade e pura distinção são a mesma coisa; isto é, que a Identidade é a mesma coisa que a Distinção. (PESSOA, 1998, p. 529)

***

Ah, que hábito recluso de pensar

(PESSOA/Fausto, 1991, p.105)

O verdadeiro poeta está sempre voltando ao estado que lhe é peculiar: a

sua solidão. Não lhe importa os beneplácitos e meritórios atos que durante os dias

e os anos lhe sejam proporcionados, pois todos são frutos de um ardil irrefreável

do seu estado mais natural.

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E no meu natural! Ó olhos de outrem Se fosseis cegos e também o tacto! Nem nudez de alma ou corpo sei haver Para outro! Ser sozinho eternamente... (PESSOA/Fausto, 1991, p.105)

Várias são as promessas que, sobre si, pesam. E, no entanto, apenas uma é

o obstáculo que precisa ultrapassar: si-mesmo. Fausto sofre deste infortúnio; é

demais ele mesmo, não importa onde, mesmo nos mais belos encontros cheios de

fulgurante volúpia até as horas em que, pela solidão em que já se encontra,

caminha para aquela outra solidão que o Destino achou de pôr. Acena-se sempre

para coisas e nada parece o despertar, pois a esquece e, num gesto de adeus, a

perde. Aprende com tudo, mas nada fica. A liberdade que os homens conhecem,

para Fausto, é fruto da vulgaridade. É-nos imprescindível saber que o coração

precisa sempre se recompor quando se descobre que o arbítrio não passa de um

invento. O que é criado é criado verdadeiramente como criação; não como

descoberta, não como invenção, porque são merecedoramente dadas.

O que é um deus, não a sua existência, mas o que verdadeiramente é?

Perguntar sobre a existência de um deus é dar causa externa aquilo que vemos

como realidade, como ilusão. E, no entanto, os feitos multiplicam-se diante dos

olhos, e estes negativam-se para o entendimento, porque a compreensão sempre

deixa com rachaduras o paradigma criado. Não é a embriaguez, que pelo

despedaçamento, pela fragmentação, nos entrega ao todo unitário. Por que haveria

de ser assim? Não há despedaçamento pela embriaguez, isto é uma falácia, tanto

pelo sentido prático quanto pelo metafórico: pelo prático, é péssima visão; pelo

metafórico, é péssima metáfora. Para que criar mais ilusão? Já não basta o mundo,

para os sentidos, como realidade, que de realidade nada possui?

Nietzsche, ao citar o quadro de Rafael, Transfiguração, aplica-lhe uma má

interpretação. Diz que Rafael, pela “ingenuidade”, ou gênio, — embora ele não dê

a Rafael este traço — representa em tal obra a redução da aparência em aparência

e que este fator é a marca principal da cultura apolínea. Acompanhando, no

entanto, as observações pessoanas, podemos inferir que a interpretação é má, pois,

em seus escritos, ele diz que:

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[...] a sensibilidade conduz normalmente à ação, o entendimento à contemplação. A arte, em que estes dois elementos se fundem, é uma contemplação ativa, uma ação parada. É esta fusão, composta em sua origem, simples em seu resultado, que os gregos figuraram em Apolo, cuja ação é a melodia. Não tem, porém, valia como arte essa dupla unidade senão como seus elementos não só unidos, mas equivalentes. (PESSOA, 1998, p. 253)

E, tendo como lugar teórico o pensamento pessoano, podemos inferir,

também, que o escapa a Nietzsche é justamente isto:

O homem da renascença olha para as coisas como os gregos, e olha para as almas como o grego; mas, ao passo que o grego olhava primeiro para as coisas exteriores, e para as almas depois, moldando seu conceito primordial de realidade sobre a matéria, sobre os objetos exteriores, o homem da Renascença olhava primeiro para a alma e depois para as cousas exteriores, moldando as cousas exteriores pelo seu conceito de alma. Esse conceito da alma, como era ainda em parte o conceito antigo, era ainda nítido, porque ainda tinha qualquer cousa das suas origens e tinha sido moldado sobre a noção dos contornos das cousas exteriores. De modo que era relativamente ligeira a deformação que as cousas sofriam, porque pequena era a deformação que o conceito de alma havia sofrido. Mas havia-se dado o fato capital de a alma passar a ser o centro da atenção dirigida. (PESSOA, 1998, p. 427)

Como visto, a identidade é uma forma de distinção e vice versa, em que

não há redução dos dois princípios, mas apenas Relação destes: “A arte é uma

matemática sem verdade.” (PESSOA, 1998, p.253). Nasce da identidade a visão

que o indivíduo atribui ao mundo, mas sobrevive da estranheza que, como

universal, não pertence a indivíduo algum. O trabalho do verdadeiro artista é

eliminar a individualidade, assim ele busca a Athena que julga querer, tornando o

resultado do trabalho universal, isto é, aperfeiçoando-o. A constância do

aperfeiçoamento dá-se pelos estímulos e estes são advindos do exterior, “serão

tanto mais exteriores, quanto mais físicos e concretos” (PESSOA, 1998, p. 254).

A arte apolínea, se assim podemos chamar, só é da exterioridade, para os

gregos, por princípio, pois se olha primeiro para o exterior, de onde lhe advém o

estímulo e depois, para o interior. Assevera-se neste ponto o domínio estético,

como primeira imediatidade através do estímulo, mas isto não quer dizer que o

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mundo só se justifique através do domínio estético, tal como mencionara

Nietzsche. Como estímulo, a exterioridade nos é mais contundente, e isso também

não significa que, por ser assim, possa ser menos falsa ou menos enganadora aos

nossos olhos. O estético contará sempre com o anteparo com o qual seus

estímulos colidem: nós. E aí, sob o seu véu, podemos encontrar a comédia.

Os cálculos sofísticos da razão ajudam no falseamento, encobre a condição

imediata a qual as coisas se destinam. O Destino, na tragédia, não pode ser

falseado, encoberto. Apolo encontra-se na mesma esfera em que o resultado de

seu princípio animador lhe é contundentemente estranho e isso não tem nada a ver

com Dioniso. Ao contrário do que pensava Nietzsche, segundo a reflexão

pessoana, Apolo sempre esteve mais próximo, em grau, da origem em que se

encontra o mistério. Não é Apolo que revela o fundo oculto sem rosto em que se

encontra Dioniso porque Apolo só consegue revelar a si mesmo; a origem do seu

brilho é um ponto escuro cujo princípio é o ato devorador de si:

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O aperfeiçoamento permanente não pode dar-se senão por aquilo que no homem é já mais permanente e mais aperfeiçoado. Operando e animando nesse elemento do espírito se fará o homem viver cada vez mais nele, se o fará viver uma vida cada vez mais perfeita. É a abstração o último efeito da evolução do cérebro, a última revelação que em nós o destino fez de si mesmo. É ainda a abstração substancialmente permanente; nela, e na operação dela a que chamamos razão, não vive o homem servo de si, como na sensibilidade, nem pensa superficial do ambiente, como o entendimento: vive e pensa sub specie aeternitatis, desprendido e profundo. Nela, pois, e por ela, se deve efetuar o aperfeiçoamento permanente do homem. As artes que por natureza ministram tal aperfeiçoamento são as artes superiores abstratas – a música e a literatura, e ainda a filosofia, que abusivamente se coloca entre as ciências, como se ela fora mais que o exercício do espírito em se figurar mundos impossíveis. (PESSOA, 1998, p. 254)

É importante ressaltar que é a abstração a manifestação do Destino em nós,

mas esta se alcança pelo equilíbrio e pela harmonia, tanto da arte, propriamente

dita, como da ciência que, como arte também, não foge à abstração que é o

princípio do seu único fim.

A mesma abstração é também o estádio supremo da ciência. Tende esta para ser matemática, isto é, abstrata, à medida que se eleve e se aperfeiçoa. É pois no nível da abstração que a arte e a ciência, ambas se alçando, se conjugam, como dois caminhos no píncaro para que ambos tendam. É este o império de Athena, cuja ação é a harmonia. (PESSOA, 1998, p. 254)

A individualidade — entendida como o modo pelo qual se conhece as

coisas, entendida como o modo pelo qual, através da razão, pensamentos podem

dialogar entre si (mas não se igualar) — forma-se a partir das idéias abstratas

como elemento de uma individualidade. Esta individualidade, assim

compreendida, forma-se no entendimento através do pragmatismo de seus

elementos: “Erigir essas idéias em coisas (como fez Platão) é transformar um

elemento pragmático em uma entidade concreta.” (PESSOA, 1998, p. 541).

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Decorre daí que a categoria, para Antônio Mora — heterônimo pessoano,

autor das chamadas idéias abstratas — pertencem à Matemática e à ciência

matemática. Ele menciona:

Platão caiu no erro em que cairia um matemático que, após servir-se de um x e de um y para a solução de um problema prático, erigisse esses sinais úteis mas irreais (var.: irrepresentados) em coisas, só porque tinham representado sem erro o seu papel pragmático de lhe servirem para um fim determinado. A matemática é então “falsa”? Não nem falsa nem verdadeira? É simplesmente útil. (PESSOA, 1998, p. 541)

A contradição encontra-se na forma com que transformamos a

interpretação das coisas de modo a serem úteis, no conteúdo em que repousa a

utilidade da coisa interpretada. Quando, a título de ilustração, é dito que Apolo

mantém-se como ícone da perfeição individual ou que Homero é um poeta da

exterioridade, deve-se procurar o conteúdo, pois é lá que reside o verdadeiro ou o

falso. A arte em si não sabe nada sobre a utilidade, mas o útil poderá reconhecer-

se na arte. E disto decorre que, de uma grande arte, poder-se-á retirar, como

resultado do conteúdo de uma interpretação apenas, uma metafísica, uma ética e

uma estética. Faz-se, pois, a substituição de um conceito do universo ao outro

interpretado, representando assim um conceito útil. Todo saber, antes de tudo,

precisa tender à perfeição, reconhecendo, antes, o fundo obscuro do qual emerge.

Ao ler as reflexões de Pessoa, em Reis, podemos dizer que este fundo obscuro não

é Dioniso, mas o fatum, o Destino.

Não era em nome do paganismo greco-romano que ele [Nietzsche] erguia o seu grito, embora o cresse; era em nome do paganismo nórdico dos seus maiores. E aquele Diónisos, que contrapõe a Apolo, nada tem com a Grécia. É um Baco alemão. (REIS, 2003, p. 81)

Nietzsche não foi, como você imagina, o Pascal do paganismo. Foi a falta de Pascal do paganismo. Não pode haver um Pascal do sistema pagão, porque não há sistema pagão; e um Pascal precisa de um sistema de que seja o Pascal. Pascal era um teólogo em verso, que escreveu em prosa. No paganismo não houve teologia, sendo essa a segunda vantagem dele, porque a primeira foi o não poder havê-la. (PESSOA, 1998, p. 542)

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A frase de Malebranche, que diz que somos trevas para nós mesmos, cabe

perfeitamente a este espírito tortuoso. A sensibilidade, como observada por

Pessoa, nos leva à ação, mas o resultado do ato nem sempre está em plena

consonância com o que o gerou. Há sempre algo de letárgico no fim das grandes

aspirações, todavia o percurso é sempre de muito trabalho. A palavra trabalho,

aqui, segue aquela particular distinção que Goethe lhe dava. Principalmente,

quando mencionou que a genialidade de Victor Hugo caberia em apenas uma

página. Dizia, então, o autor alemão do Fausto que o poeta francês deveria

escrever menos e trabalhar mais. Não diríamos, tendo como pano de fundo a

influência que o pensamento pessoano exerce sob nossas conclusões, que a obra

de Nietzsche é o resultado daquele sutil desvio sobre o qual comentou Goethe, em

relação V. Hugo. Não esquecemos, contudo, que um ensaísta sério, Maurice

Blanchot, foi mordaz quando mencionou que Nietzsche “não deveria ter

economizado à fogueira parte de seus escritos, para que eles não voltassem em

número maior contra ele mesmo”.

Há um fundo imóvel, em que a evolução não governa cuja base é base para

toda e qualquer metafísica. Não temos dúvida de que lá, depois de ter direcionado

os olhos e ter se cegado, Nietzsche pôs os ouvidos e o silêncio que lá escutou, em

sua totalidade, negou-se a participar dos meandros ruidosos da sua escrita. A

coragem é reconhecida pela exigência da questão.

No paganismo não houve teologia, sendo essa a segunda vantagem dele,

porque a primeira foi o não poder havê-la. Mas o que cumpre o papel do

sentimento religioso?

O papel intelectual do sentimento religioso é, em primeiro lugar, o de estabilizador e disciplinador da inteligência. Não o é no errado sentido em que certa escola francesa recente, emanada do triste sistema chamado positivismo, procura dar-lhe; essa escola aplica a religião como um remédio, quando a religião, se a frase se permite, é, antes, uma saúde. Pelo menos, ela é uma grande pândega metafísica, um divertimento transcendente, no teatro iluminado a estrelas do extraordinário universo. A religião é disciplinadora da inteligência no sentido de que lhe dá uma base, sobre que confiadamente assente. Pode argüir-se que tal função implica uma restrição do

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pensamento, uma coarctação da sua liberdade. (PESSOA, 1998, p. 544)

A base na qual um temperamento religioso se assenta é, antes de tudo, uma

base metafísica. A compreensão a qual se busca da metafísica é a seguinte:

dependendo do temperamento do indivíduo, a metafísica, assim entendida, isto é,

como um modo de sentir as coisas, poderá transformar-se num caráter religioso. O

fundo no qual a metafísica se baseia não é um fundo ambíguo, não há certeza a ser

respondida, não há nome a ser chamado. É nesta condição que o espírito assume

para si a especulação diante da vida. E é sob o ato de especular que se alude — ao

falar do papel intelectual do sentimento religioso — ao aspecto norteador

representado pela disciplina. E este modo de sentir reflete-se no indivíduo trágico

(pois a religião encontra-se também num espírito que se encontra pronto a

revoltar-se contra ela). Mas antes de sancionar à religião um caráter utilitário,

revoga-se este juízo alegando que a liberdade de pensamento poderá sofrer perdas

devido a tal sentimento.

A liberdade de pensamento tem dois sentidos: a liberdade exterior do pensamento, e a liberdade interior. Por a primeira entende-se a de cada indivíduo poder expor as suas opiniões sem que por isso sofra do estado. Por a segunda entende-se a liberdade de pensar o que quiser, a sós consigo, ou declaradamente, sem que de dentro do seu espírito se sinta com isso constrangido ou violando qualquer regra ou lei. (PESSOA, 1998, p. 544)

Como reconhecer o aspecto utilitário da religião, principalmente sob a

condição de que, no passado, a liberdade exterior esteve comprometida devido à

opressão causada pela religião, isto é, a religião enquanto instituição. Reconhece-

se isto ao mesmo tempo em que se pergunta sobre o segundo aspecto, a liberdade

interior, vinculada ao pensamento:

Não será um dique ao progresso do espírito humano, que a religião domine de dentro o pensamento, que lhe imponha determinadas bases? Há a esta objeção duas respostas. A primeira é que o progresso não é senão a evolução duma forma sem que um conteúdo mude; senão, haveria, não evolução, mas já salto, descontinuidade, e o que sabemos da natureza não nos permite pôr essa tese. De modo que a religião neste ponto está de acordo com a natureza, ou

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melhor dizendo, com Deus, como não podia deixar de ser. Mas a base que a religião fornece qual é? A base metafísica, a base do investigável, a base do vago, do indefinido. (PESSOA, 1998, p. 544)

Aqui precisamos atentar para a seguinte condição: a metafísica, entendida

como aquilo que é dado a ser investigado é, como tal, anterior a qualquer ciência

da Natureza, a qualquer teologia e também a qualquer ontologia. Metafísica há

várias, pois como dito esta é apenas um modo de sentir a vida, mas a vida

encontra-se ausente do resultado pelo qual resposta à metafísica não pode dar, mas

apenas indicar o que se investiga.

Ora, se repararmos bem, veremos que esta é a verdadeira base do progresso. Se um elemento do progresso tem de ser estável, para que outro possa ser progressivo, sem que seja aéreo e extranatural, o lógico é que o elemento estável seja aquele onde não pode haver evolução, onde não pode haver concreção, onde não pode haver determinação. Esse elemento é o elemento metafísico. Na metafísica não há evolução, porque a metafísica não é uma ciência, não se pode obter a certeza na metafísica; há sistemas que se revezam, sob formas diferentes, mas eles, no fundo, são poucos, um número certo, não passam desses; cada época interpreta essas hipóteses com as luzes que tem, e a mentalidade que criou. E é inútil dizer que a metafísica não há concreção, não há determinação, porque do que é incerto não pode haver certeza. (PESSOA, 1998, p. 544)

Não se obtém a certeza do que é incerto, mas investiga-se reconhecendo

isto. O resultado a que se chega de uma determinada investida neste “mundo”,

digamos, inominável, pertence ao outro lado onde nunca podemos compreender,

em sua totalidade, em sua causa, se assim pode-se dizer, infinita. Nada nos é

familiar, nada evolui, porque não pertence a causa do esforço humano que é o ato

de conhecer o que nos espanta. O quê científico procurado não responde, através

do pensamento, à necessidade que se busca sanar, porque a necessidade é apenas

um nome e os nomes lá não encontram significação. Deduz-se disso, então, que

não há nomeação para aquilo que ultrapassa a si próprio. Se assim é, o elemento

no qual a evolução não age é, por assim dizer, um elemento estável. O

conhecimento evolui, leva o homem a inventar, as invenções podem ser

condenadas ao fracasso das experiências ou não e isto é, também, uma evolução,

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porque faz parte do modo pelo qual se encara a ciência na modernidade. Os

inventos perecem ao evoluir, deixam de “ser” para se tornarem outros mesmos.

Esta é a base em que a religião se apóia, oferece aos homens uma certa tese

metafísica para apoiar teses evolutivas de matérias extrametafísicas. Esse é o

modo pelo qual a religião impõe algo. A respeito disso, Pessoa irá afirmar:

Se a religião não assentasse numa base metafísica, certa estável, teríamos uma inversão das condições de todo progresso, porque haveria uma instabilização do próprio fundo. A ausência de sentimento religioso tem isto de péssimo: que é a ausência de todo progresso, porque é a ausência de toda base, de todo ponto de apoio para se progredir. (PESSOA, 1998, p. 545)

Não há união da Metafísica ou do sentimento metafísico com o “fundo”

que a torne estável. Por isso, é vulgar atribuir-lhe concreção, pois lhe damos, deste

modo, uma causa, um sentido, tornando este fundo instável. O sentido buscado no

movimento dito transcendente, advindo do sentimento metafísico, dá-lhe uma

adequação ao fundo que não se adéqua. A instabilidade nasce das certezas

adquiridas pelo conhecimento, quando, que por um ou outro aspecto, as diversas

teorias do conhecimento aspiram ao status de verdade. A inversão leviana desta

condição torna finita a base estável na qual o infinito estável, a inadequação a

qualquer finitude, reside. Invertendo o fundo estável pela instabilidade dos

resultados a que se chega, o conhecimento humano, inibe, aniquilando, o essencial

em que se baseia a metafísica. Um possível exemplo deste resultado, entre outros,

é a crítica que Pessoa faz, numa passagem, ao comunismo:

Ao contrário do catolicismo, o comunismo não tem uma doutrina. Enganam-se os que supõe que ele tem. O catolicismo é um sistema dogmático perfeitamente definido e compreensível, quer teologicamente, quer sociologicamente. O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema – o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução. Se o que há de lixo moral e mental em todos os cérebros pudesse ser varrido e reunido, e como ele se formar um figura gigantesca, tal seria a figura do comunismo, inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo que dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós. (PESSOA, 1998, p. 545)

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De todos os sistemas filosóficos conhecidos como falsos, o sistema cristão é o mais coerente. Pela base cai num momento – golpe de raciocínio o derruba. Mas ainda não existe na terra o homem que derrote Tomás de Aquino, seu grande expositor, em todos os pontos. (PESSOA, 1998, p. 5s4)

As citações se referem às fissuras que a lógica pode deixar esvair em

sistemas propostos. A base metafísica não é da ordem do sistema, embora teses

extrametafísica sejam construídas a partir de tal condição. Esta base, que recusa a

imanência e está em constante vigília a sua possível transcendência, é da ordem

do inefável. E assim presta-se mal a qualquer exposição que, por fins vários, se

pretende didaticamente justificar-se.

É vulgar já a constatação que uma teoria científica às vezes, sendo falsa, vale pelas descobertas a que leva. É que constitui uma base, sobre a qual, aceitando-a, se trabalhou. Mas depois, dirá o leitor, a teoria, reconhecida falsa, abandona-se... Está muito bem. Neste mundo como nada sabemos de essencial, não sabemos se a religião será falsa, não sabemos mesmo o que é ser falso; mas depois do Universo veremos ou não se se deve abandonar a religião. A religião é uma teoria científica para durar o universo [sic]. (PESSOA, 1998, p. 545)

Se a religião é uma teoria científica, como se pode reconhecer o

paganismo, por exemplo, como religião natural aos homens? Pergunta-se assim

porque, segundo a citação, o conhecimento essencial das coisas é algo que nos

escapa. Neste caso, por uma questão primordial, alude-se à condição de que o

paganismo, como manifestação natural religiosa, organiza-se aposteriori em

teoria. E organizando-se, através de um modus operandi, se mantém ou, como

dito por Pessoa, faz durar o Universo. É manifesto também que se pergunte o que

se entende por religião, já que, pela inacessibilidade das coisas em sua essência,

podemos nos equivocar. Sendo assim, a conotação religiosa parece ultrapassar

todos os artigos de fé e qualquer espécie de credo professado, em que a

pluralidade dos deuses — ou o deus uno — em suas representações sensíveis,

abandona os homens, sobretudo Fausto, em seus rumos ao verdadeiro Mistério da

vida.

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A religião é a manifestação de uma unidade de pensamento. É a fixação externa daquele fundo em que todos concordam que estão submetidos a condições civilizacionais idênticas. A religião exprime este fundo comum supremamente. Pode exprimi-lo porque é vaga sempre, por isso que não é um fenômeno intelectual direto, porque é comum a todas as camadas sociais; porque abrange todas as manifestações da vida social. (PESSOA, 1998, p. 165)

A religião como manifestação de uma unidade de pensamento é a ação do

resultado deste mesmo pensamento. E, se a exterioridade deste fundo inefável, em

sua exterioridade, corrompe-se, devido ao pensamento que o gerou como causa

unitária, somos, então, responsáveis pela condição sintética deste invisível,

transformado na objetividade concreta do pensamento. Se o pensamento unitário

liga-se à síntese, tal como conceito, uma religião, assim também como uma

corrente literária ou uma obra de arte, para Fernando Pessoa, manifestar-se-á à

análise tal como uma metafísica.

Uma religião manifesta-se primordialmente, à análise, como uma metafísica, da qual, como de todas as metafísicas, instintivas ou conscientes, decorre uma ética, uma estética e uma sociologia, assim como, coexistindo com as realidades da vida social, dela decorra uma determinada prática social. (PESSOA, 1998, p. 165)

A prática é um modo de interpretação do fenômeno que a metafísica toma

por base. A prática é o modo pelo qual o pensamento entrou em ação, objetivou-

se, tornou-se exterior a si próprio, passou a coexistir com outras pluralidades,

angariou significações, subverteu-se, esquecendo de si mesmo e de seu

fundamento. Uma obra de arte é uma manifestação estética, eis aí a sua

exterioridade, a sua parcela sensível; é estética não por ser um acúmulo

preceituoso de como proceder em arte, ou melhor, de como fazer arte, mas sim

pelo modo com que o pensamento se exterioriza. Uma religião manifesta-se tal

como uma estética, isto é, dá-se à análise, porque se torna uma objetivação

concreta do pensamento, vem a ser uma parcela sensível do estado, do

temperamento que a gerou. Ao olhar para uma obra de arte pergunta-se pela real

originalidade, por aquilo que verdadeiramente nos espanta na alma. O autor que se

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dispõe a produzir tal obra é secundário ao que produz, pois o fundo do qual retirou

a sua matéria não lhe é peculiar, pertence também aos seus pares, irmãos em suas

diversas genialidades.

Quando olhamos para uma obra e nos silenciamos diante dela, não

sabemos, pois perguntamos, embora sem verbalizar, sobre o comprometimento

desta obra com fundo indiscernível do qual emergiu: eis aí a sua condição ética. O

que nos religa é justamente o equilíbrio da concreção, da objetivação com este

fundo. Assim fundamenta-se a metafísica, assim fundamenta-se a poesia; ambas

bebem da mesma fonte, realizam-se através da individualidade e da pluralidade,

pois toda obra de arte já é, em sua condição objetivada, uma prática, coexistindo

com as realidades de vida social. Toda metafísica, contudo, traz o sim e o não da

totalidade que a envolve, nega-se se construindo, comparando-se e, em sua mais

altiva empreitada, procurando tornar-se una. Através dela podemos nos perguntar

sobre a essência de tudo, não somente do Bem e do Belo; podemos nos perguntar

sobre a trivialidade dos nossos movimentos e reconhecê-los como altamente

complexos e desconhecê-los também.

Ora, toda a ordinariedade de nossos dias é complexa como tudo, como as

mais altivas das filosofias, como as mais excelsas das artes. Uma metafísica é um

modo de se espantar; uma poesia, representada num poema, é a maneira pela qual

tornamos este espanto constante, e assim nos reunimos. Este é o fundamento de

toda arte: reunir homens. Reuni-los, paradoxalmente, pela individualidade que um

dia poderá levá-los à verdadeira constituição da comunidade. Isto é estranho, mas

o universo é constituído de estranhezas, de individualidades estranhas.

Quando, diante de um poema, reconhecendo de sobreaviso que nele há

poesia, deixamo-nos de silenciar e a ele direcionamos o dito, julgando-o,

colocamos em prática a mais antiga das manifestações: não respondemos a este ou

aquele filósofo, mas trazemos, em tal gesto, toda metafísica conosco. É assim que

o pensamento se alimenta: apenas de coisas estranhas. Um pensamento ocorre

quando trazemos, num único espanto, toda a filosofia. E, neste sentido, se sentido

houver, a metafísica, associada à poesia, é a mais antiga de todas as artes.

Comenta a sabedoria pessoana: “se tiveres algo a dizer com palavras, faça

uma escultura; se tiveres algo a dizer com a alma, faça uma poesia.” É o limite

que nos sustenta, mas o limite é em si paradoxal. A nossa natureza só compreende

o infinito transformando-o em finito. Os gregos, através da sua estatuária, nos

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mostraram bem esta condição, somos o que eles esculpiram: eis o ideal. O ideal é

a vida contida neste fundo inefável no qual a poesia e a metafísica retiram o seu

“sopro”. Este ideal, em nossas mãos, torna-se sempre insuficiente, por isso a vida

não basta. Esta é a condição trágica avultada antes mesmo da tragédia, seja esta

tragédia o que for. O paganismo grego tem dessa tristeza, ao mesmo tempo em

que reconhece — como dizia Pindaro — que os homens e os deuses são frutos de

uma mesma raça. O paganismo grego reconhece o limite, o herói amado pelos

deuses não entra em diálogo com a divindade: eis o seu caráter ético. Esse

paganismo, hoje, nos é estranho e, quando não engraçado, é totalmente inviável.

Manifestação notória de toda confusão que se alastrou sobre o seio da vida.

Somos dele completamente incrédulos, mas tudo isso nos pertence, não importam

os anos e os séculos. Não conhecemos nada de essencial, ou melhor, no seu estado

essencial. Como podemos então nos questionar sobre o caráter natural, do

paganismo, aos homens? Vejamos a questão em Pessoa:

Se formos ver em que se manifesta a metafísica nas religiões, nós veremos o seguinte: o sujeito, para cada sujeito, é dado como um só, porque cada qual, de diretamente subjetivo, conhece apenas o seu próprio espírito; e que o objeto é dado pela multiplicidade das cousas externas. Eu sou um; o mundo é muitos; eis a forma fundamental do pensamento. Por isso vemos que uma mentalidade coletiva de tipo subjetivista exprimir-se-á pelo monoteísmo, ao passo que o politeísmo será a expressão natural de uma mentalidade coletiva de tipo objetivista. Como nascem, porém estas mentalidades coletivas diferentes? O que faz ser subjetivistas uma, objetivista outra, mentalidade popular ou geral? (PESSOA, 1998, p. 168)

Seguindo as caracterizações feitas ao longo do texto, principalmente

àquelas onde a palavra metafísica veio tornar-se manifesta, verifica-se que é

atribuída a tal palavra, como caracterização, uma espécie de dualismo e um

monismo. A constatação vem a ser pertinente pela condição de que o autor

pretende, antes de tudo, ressaltar uma condição inicial de investigação das

religiões, dando relevo, principalmente, a sua elaboração técnica. A possibilidade

do questionamento metafísico é esta espécie propulsora de conhecimento. Através

de sua análise, pode-se tornar nítido três campos onde é possível encarar estes

monismo e dualismo da metafísica.

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A metafísica um monismo e um dualismo, dualismo pelo ponto de partida, monismo pela direção, pelo próprio sentido íntimo de ser uma metafísica. São três as maneiras de encarar o dualismo monisticamente: colocar a Realidade em um dos pontos, sendo o outro real mais inferior; colocá-la em um ponto em que está fora de qualquer dos dois. (PESSOA, 1998, p. 168)

O primeiro deles leva em consideração a doutrina que toma o exterior

como uma ilusão e atribui a qualidade real apenas ao sujeito: apresenta-se, assim,

o idealismo em suas diversas formas; a outra doutrina, ainda no primeiro campo,

afirma o sujeito como irreal: este é o materialismo, em sua generalidade.

O segundo campo afirma que ambos os pontos são reais, o exterior e o

interior, mas o exterior como um real efêmero: é este, então, o dualismo

subjetivista; a doutrina contrária afirma o sujeito real — não de modo perene —

com a realidade do objeto: trata-se do dualismo subjetivista.

O terceiro campo, portanto, é a doutrina que afirma tanto o sujeito quanto

o objeto como irreais. Encontra-se, assim, a realidade verdadeira fora deles: é este

o transcendentalismo.

É a partir desta caracterização sumariada que se começa a formar uma

necessidade de conceituação, partindo daquele fundamento sobre o inefável até as

caracterizações lógicas entre o sujeito e o objeto, como determinações do nosso

entendimento. Perguntamos, juntamente com Pessoa:

Partamos do nosso próprio estado de espírito: em que ocasiões é que somos subjetivistas, em que objetivistas, naturalmente? Somo objetivistas, é claro, quando aplicamos aquelas faculdades do espírito que nos relacionam com a realidade externa; somos subjetivistas quando não empregamos essas faculdades, o que dá, pois a paragem cerebral não existe na vida, a concentração sobre o nosso próprio espírito. (PESSOA, 1998, p. 168, grifo nosso)

Do mesmo modo que fizemos, um pouco acima, um sumário das

doutrinas, é importante marcar a movimentação destas faculdades aludidas, em

suas significações, principalmente, aos seus movimentos. Dois são os grupos

delas: há as que dizem respeito à interioridade e as que dizem respeito à

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exterioridade; estes grupos subdividem-se, cada um, segundo Pessoa, em três

pontos característicos.

As faculdades que atuam no exterior são: a observação, a atenção e a

vontade (entendida esta como alvedrio). A faculdade de observação é aquela pela

qual conhecemos o mundo; a atenção é aquela que pela qual conhecemos este

mundo de modo competente; a vontade é como agimos sobre ele.

As faculdades que atuam no interior são: a imaginação, a meditação e a

inibição. A faculdade de imaginação é aquela em que substituímos o exterior por

um falso exterior, a suposição das coisas à realidade delas; a meditação é a

faculdade em que substituímos pensamentos por coisas competentemente

observadas na atenção; a inibição é onde se dá a substituição da ação sobre o

mundo pela ação sobre nós, impedindo assim o contato exterior.

Estas considerações embasam os diversos textos sobre a reflexão do

paganismo em que se busca o equilíbrio entre a objetividade e a interioridade,

entre um modo competente ou não em observar ambas. Por exemplo:

O monoteísmo é uma religião da decadência, porque, conquanto um indivíduo possa ser grande mal ser introvertido, um povo todo não o pode ser sem perder a noção verdadeira do mundo e da vida, a noção correta deles, o que dá, como é de ver, a desadaptação e a decadência. (PESSOA, 1998, p. 168)

E um heterônimo comentando o ortônimo diz o seguinte:

[...] o movimento cristista não foi senão uma interiorização do paganismo [...]. Fernando Pessoa crê que o erro e a morbidez do cristismo não derivam do fato de ele ter interiorizado o paganismo, mas sim de o não ter sabido interiorizar, de ter errado o caminho para alma. Em outras palavras, o que havia a fazer ao paganismo para o interiorizar, era descobrir qual o sentido interior do politeísmo, o que era na sua essência subjetiva, o politeísmo. (PESSOA, 1998, p. 170)

Ao lado da busca por uma fundamentação metafísica para religião surge,

também, uma caracterização de sua prática social como necessidade humana para

disciplina e orientação das sociedades. Essa religião, segundo Antônio Mora,

requer colocar-se mais próxima da Natureza, pois somente assim pode agir mais

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diretamente nos homens, orientando-os, por não desviá-los das próprias leis

naturais que se encontram e que regem a vida humana. A religião pagã é a mais

natural. Três são as considerações quer o leva a considera esta religião como tal.

Primeiro, a religião pagã é politeísta; segundo, a religião pagã é humana; terceiro,

a religião pagã é política.

David Hume colocava a questão sobre a origem da religião na natureza

humana, que já não era uma questão tão fácil de ser respondida, a outra ainda

maior: a crença num poder invisível e inteligente entre a raça humana que

permeava todos os lugares e todas as épocas. Questionava-se também sobre a

uniformidade desta condição, que talvez não tivesse sido sempre assim:

A acreditar nos viajantes e nos historiadores, foram descobertas algumas nações que não mantém quaisquer sentimentos religiosos; e não há duas nações, e dificilmente dois homens, que concordem com exatidão sobre os mesmos sentimentos. Parece, portanto, que esse preconceito não surge de um instinto original ou de uma impressão primária da natureza humana, como a que dá nascimento ao amor-próprio, à atração entre os sexos, ao amor pelos filhos, à gratidão ou ao ressentimento, pois constatou-se que todo instinto desta espécie é absolutamente universal em todas as nações e em todas as épocas, tem sempre um objeto preciso e determinado que inflexivelmente persegue. Os primeiros princípios religiosos devem ser secundários, a tal ponto que facilmente podem ser pervertidos por diversos acidentes e causas, e, em certos casos, até sua operação pode ser completamente impedida por um extraordinário concurso de circunstâncias. (HUME, 2005, p. 21.)

O princípio, que para Pessoa não se formaliza, é aquele fundo que a

metafísica e a poesia tomam como instância maior de suas manifestações. A

causa, para Pessoa, é o modo pelo qual este princípio será expresso: o politeísmo e

o monoteísmo. Atentemos, entretanto, para o alerta feito pelos que se dedicam a

estudar os escritos do filósofo escocês D. Hume. Eles chamam a atenção para a

relação entre as obras História natural da Religião e Diálogos sobre a religião

natural e os dois pontos, que marcam a verve cética do autor, nesses dois livros,

que são: a prova racional da existência de Deus e a sutil negação desta condição

que parece pairar como uma sombra em algumas passagens. A própria natureza

dos Diálogos coaduna este fundo velado, quando transfere o alvo de seus

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comentários para outra época, em que a weltanschauung aludida funciona como

metáfora do seu presente.

A causa natural da religião pagã é facilmente demonstrável, como dito, a

partir de três princípios: o primeiro deles é o caráter politeísta da religião pagã. A

argumentação dá-se sob a condição de que a natureza é plural, e esta não surge

como um conjunto, mas como uma diversidade de coisas. Não se pode afirmar

que haja um conjunto chamado Universo sem a intervenção da inteligência para

que se corrobore tal coisa. Eis aí, num sentido, certa contaminação daquela

unidade que, através de um raciocínio interveniente, tenta por se estabelecer como

princípio uniforme. Como dito a realidade manifesta-se plural em sua

generalidade, ao contrário disto, quando as sensações perpassam por uma

consciência individual, isto é, quando a pluralidade das coisas busca referência

unificada através desta consciência individual, é que nos advém uma concepção

falsa, excedendo-nos. A religião apresenta-se de modo plural, tal como a

Natureza, e assim precisa se estabelecer de acordo com as características que

engendram a realidade exterior. A pluralidade de deuses é o traço mais distintivo

desta religião.

A segunda causa é a de que a religião pagã é a mais humana. O que se

verifica é que os deuses agem através de atos humanos magnificados, não há a

rejeição da humanidade, não há uma anti-humanidade, mas sim excesso de

humanidade. O que resulta no equilíbrio da natureza como o mundo exterior e

com a própria natureza da humanidade.

Portanto, a religião pagã é política. O ponto mais característico é o de que

esta religião faz parte da cidade e do Estado. Não procura como fundamento a

imposição a outros povos, é adverso dela o caráter universalizante.

Está assim de acordo com o princípio essencial da civilização que é a síntese em uma nação de todas as possíveis influências de todas as outras nações – critérios que só divergem os critérios estreitamente nacionalistas, que são o provincianismo da política, e os critérios imperialistas, que são da decadência. Nunca se viu nação forte ser conservadora, nem nação sã ser imperialista. Quer impor-se quem não pode mais transformar-se. Quer dar quem já não pode receber. Mas que não pode transformar-se, na verdade estagnou; e quem não pode receber, estagnou também. (PESSOA, 1998, p. 175)

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Estes critérios auxiliam no reconhecimento da possível harmonia tocante à

humanidade: a essência experimental da natureza inteira, a essência da natureza

humana e a essência humana em marcha social, isto é, a própria civilização. É

claro que tal comentário não poderia passar despercebido ao assunto “civilização”,

quando tratado por Pessoa. A sua crítica recai justamente sobre a concepção do

que se acostumou chamar de civilização. Ao distinguir o indivíduo, a Humanidade

e a Nação como realidades sociais, alude também à condição ficcional, ou virtual,

daquilo que compõe a Família, a Religião, a Classe, o Estado e a Civilização.

O indivíduo, a Nação, a Humanidade são realidades porque são perfeitamente definidos. Têm contorno e forma. O indivíduo é a realidade suprema porque tem um contorno material e mental – é um corpo vivo e uma alma viva. (PESSOA, 1998, p. 71)

Segundo Pessoa, a continuidade histórica, o idioma e a nação são

elementos que juntos ou separados constituem a nação. Nem sempre as fronteiras

das nações são as que deveriam ser:

Quer lingüisticamente, porque largas distâncias no espaço separam países de igual idioma e que naturalmente deveriam formar uma só nação; quer historicamente, porque, por uma parte, critérios diferentes do passado nacional quebram, ou tendem para o quebrar, o vasículo nacional, e, por outra, a continuidade histórica opera diferentemente sobre camadas da população, diferentes por índole, costumes ou cultura. (PESSOA, 1998, p. 165)

A Humanidade comparada à Nação é também uma realidade social, tão

potente como o indivíduo, mas mais forte que a nação, por ser mais definida:

O indivíduo é, no fundo, um conceito biológico; a humanidade é, no fundo, um conceito zoológico – nem mais nem menos do que a espécie animal formada de todos os indivíduos de forma humana. Uma e outra são realizadas como raiz. A Nação, sendo uma realidade social, não o é material: é mais um tronco que uma raiz. O indivíduo e a Humanidade são lugares, a Nação o caminho entre eles. É através da fraternidade patriótica, fácil de sentir a quem não seja degenerado, que gradualmente nos sublimamos, ou sublimaremos, até a fraternidade com todos os homens. (PESSOA, 1998, p. 71)

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A civilização, ao mesmo tempo em que é vista a partir dos resultados

decadentes do que se acostumou chamar de civilização, tal como aludida por

Spengler, via Stanley Cavell, é também reconhecida, como na passagem acima,

como um estágio essencial de fundo originário a qualquer tentativa perfeita de

sermos civilizados, o que, por sua vez, não poderia deixar de ser contemplado.

Spengler afirma que:

Cada cultura tem sua própria civilização. Nesta obra, pela primeira vez, essas duas palavras, até agora usadas para expressar uma distinção indefinida, mais ou menos ética, são usadas em um sentido periódico, para expressar uma sucessão orgânica e necessária. A civilização é o destino inevitável da cultura *...+ “O declínio do Ocidente” contém nada menos que o problema da Civilização. (SPENGLER, apud. CAVELL, 1997, p. 56)

O espírito, tal como a humanidade, precisa elevar-se gradualmente, mas de

modo concomitante, reconhecendo as superfícies mais óbvias e os meandros mais

complexos de ambos. Esta elevação poderia se mimetizar numa certa ação

evolutiva, mas seria isto inviável, pois aquilo a que estamos submetidos não

evolui, e as causas externas aplicam-se de modo decadente, quando a pureza da

abstração, trazida pela idéia abstrata que se compôs, não suporta em si a sua

própria solidão. A idéia de Cultura parece se aproximar da idéia de Natureza, de

modo tangencial, em oposição a uma série de convenções. Resulta-se disso, então,

uma objetividade concreta, limitando-se entre seus pares em toda pluralidade.

Nesta condição, poderá haver uma crítica da assimilação nefasta das sínteses mal

sucedidas que, reconhecendo o infortúnio, apontam, quase sempre, ad infinitum, à

possibilidade para fora da natureza dualística do homem. Deste modo, o sentido

de humanidade parece ser negado em sua significação, digamos, “zoológica”, pois

as determinações que prezam a unidade na sua forma mais problemática, que é a

da concreção na exterioridade, tendem facilmente sobrepor-se ao humano, além

de envelhecer-se ao excesso transcendente. Segue a seguinte consideração

pessoana:

O panteísta, para quem cada cousa vale pela sua participação no todo, por igual ver uma cousa para pensar

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noutra, por igual olha para não ver. Não pensa nela, mas na continuidade dela com o resto do mundo. Como pode amar uma cousa quem a ama por um princípio externo a ela? A primeira regra do amor, e a última, é que a cousa amada seja amada por ser essa cousa e não outra, e amada por ser objeto de amor, não por haver “razão” para amá-la. (PESSOA, 1998, p. 177)

E mais essa:

Por isso nunca um materialista fez arte, nunca materialista, ou um racionalista, olhou para o mundo. Entre ele e o mundo o misticismo da ciência interpôs o seu véu, o microscópio, e ele caiu na realidade como num poço. Para ele cada cousa se tornou [...] uma grade, por onde espreita a sua atenção íntima; como para o panteísta ela é uma grade ou janela para o Todo; e apara o criacionista uma grade através da qual ele olha para Deus [...] Místicos cristãos, sonhador panteísta, materialista e homem da “razão”, para eles todos, o mundo é apenas o seu pensamento. (PESSOA, 1998, p. 178)

O pensamento não é um postulado, e a sua analogia ao significado lúcido e

sóbrio é um desvio; o pensamento é, sim, um corolário:

Há idéias, por exemplo, as vagas, que não comportam uma apresentação lúcida. Há sentimentos, por exemplo, os desmarcados, que não admitem uma manifestação sóbria. Há pontos que nem é útil, nem possível ser conciso, como aqueles em que a explanação é de um assunto complexo, ou a demonstração de um assunto controverso, onde as objeções hão de ser previstas e respondidas, e as diversas formas da interpretação revistas e classificadas. (PESSOA, 1998, p. 78)

Evoluir é aumentar e o que se vê como evolução, muitas das vezes, é a

diferença. Do mesmo modo que a diferença não é — ou significa — evolução. A

celebridade não se aplica ao gênio. O conhecimento é passivo de evolução, porque

a busca para este leva-nos ao um acúmulo deste, isto é, a um aumento daquilo que

foi conhecido. Daí aquela afirmação de que a inteligência sozinha só fica nos

acessórios, daí também aquele dito mirífico sobre o verdadeiro poeta: nascitur

non fit. O poeta não confunde a Vida com a explicação da vida.

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A ciência, para existir, tem de se apoiar numa metafísica: a admissão da realidade do mundo exterior. Pode um homem de ciência dizer que tanto não admite; se é um homem de ciência, se faz investigações, procura leis, obtém resultados, crê praticamente na realidade do mundo, porque crê na possibilidade da investigação científica, visto que investiga cientificamente. O que a ciência faz para ser possível, fá-lo a religião; somente como uma extensão maior e uma superior missão humana. (PESSOA, 1998, p. 545)

É reconhecido nesta passagem, como já antes mencionado, o critério de

utilidade tanto da religião como da ciência. Tornam-se ambas possíveis porque

tomam aquele fundo como fundamento. E, antes de constituir uma espécie de

entrave, é a religião um canal, uma disciplina do pensamento. A disciplina, para

Pessoa, impõe-se a partir da condição de que a religião reivindica que um

indivíduo se subordine a uma realidade exterior a ele e também superior a ele.

Mas há subordinação e subordinação. Há a do escravo, há a do trabalhador pago, há a do soldado que se alistou. Para ser uma educação do pensamento, a subordinação ensinada ao indivíduo tem de ser a dele a uma realidade que ele não possa propriamente explicar-se, porque então cairia sob o pensamento; a de uma realidade que ele conceba como moralmente superior, porque se assim não for ela é concebida como inferior em certo aspecto, por isso que, sendo entes morais, os homens hão de sempre avaliar moralmente, e o amoral redunda em imoral; a de uma realidade, enfim, que seja ao mesmo tempo uma orientação, e esta palavra define tudo. Ora a ciência é uma subordinação à natureza, que é uma realidade, mas não uma orientação. (PESSOA, 1998, p. 547)

Ao se tornarem possíveis, tanto a religião quanto a ciência reconheceram

para si nós metafísicos, donde a origem não é nem duvidável nem indubitável.

Mas a condição moral no homem alude sempre, tal como uma sombra a esta

condição moral que possa se transformar radicalmente em imoral, passando,

rapidamente, pela amoralidade. A análise última é a de que a religião conduz-nos

pela orientação. A religião é uma ação, e como já dito por Goethe, é assim um

consolo para tudo, deste modo atribui-se a ela aquele característico de “tônico da

vontade”, capaz mesmo de diminuir aquela hesitação diante da vida.

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Comte teve uma justa intuição quando viu que a ciência positiva, de per si, não bastava para orientar a sociedade, e quis, portanto, tornar esta ciência uma religião. Filho, porém, do seu tempo e oriundo, sem que o soubesse, do próprio ventre maculado contra o qual se revoltou, que fez ele, que quis fazer? Construir, para a forma vital da ciência, uma religião da humanidade, patente descendente da religião humanitária da Revolução Francesa. Memores de tanta cousa que não viu mal, relevemos ao pobre alienado os desvios que herdou da sua época. (PESSOA, 1998, p. 200)

Investindo num critério utilitário sobre alguma coisa é notório — se sobre

esta coisa se elabora uma crítica — que se pergunte em que consiste o útil desta

coisa. Pode-se perguntar sobre o critério utilitário da religião, da arte, da ciência,

mas também é plausível perguntar-se em que consiste o útil destes critérios.

Por outras palavras: o que há de fundamental na natureza é a idéia de utilidade, de perseverar no ser; o que há de distintivo no homem é a inteligência; o que há, portanto, de fundamental no homem, como ser ao mesmo tempo instintivo e inteligente, é a religião. (PESSOA, 1998, p. 546)

Em consonância com Spinoza, este texto reconhece que aquilo que faz o

ser perseverar em ser, quando aplicado de modo racional, justifica plenamente a

religião. No entanto, se Pessoa põe em questão o caráter útil, perguntando sobre a

sua causa primeira, que é aquela que diz “o ser perseverar em ser”; o autor

português pergunta-se também sobre a verdade:

Ora a palavra verdade comporta apenas um sentido possível. Ser verdadeiro é existir; isto, e mais nada. Não é ser lógico; não é ser moral; não é ser compatível com isto ou com aquilo. Verdade é igual à existência. (PESSOA, 1998, p.547)

Os predicados não garantem a existência. Quando se pode dizer, então, que

há existência, isto é, que algo existe, já que a moral e a lógica não garantem a

medida exata da veracidade das coisas que realmente existem? Somente quando

há liberdade. E a liberdade é a não possibilidade da lógica, é a não possibilidade

da moral, para conduzir à Verdade. A existência é possível quando nos cegamos

para o que age, através do estímulo, e avistamos a imediatidade do verdadeiro, do

que realmente existe. E o que existe é a verdade como instinto de conservação.

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Ora o que existe fundamentalmente, na nossa experiência da natureza é o instinto de conservação. Ele é o fenômeno que percorre do reino mineral até ao homem, a tendência, como disse Spinoza, do ser para perseverar em ser. O instinto de conservação é, portanto, a Verdade. A interpretação dele através da inteligência é a interpretação intelectual da verdade. Ora a interpretação dele através da inteligência vimos que é a religião. A religião, portanto, é a forma humana (porque inteligente) da verdade. (PESSOA, 1998, p. 547)

Entre “fenômeno” e “interpretação” encontra-se uma ressalva, é

justamente aquela que coloca — num reductio absurdum — a condição de que ser

verdadeiro é existir.

Suponha-se que a verdade não é a existência. Nesse caso teremos que encarar duas hipóteses possíveis: que há verdade que não existem, e nesse caso não são verdades; e que há coisas que existem e não são verdadeiras. Poder-se-á dizer que, para haver o erro, deve com efeito haver coisas que existem sem ser verdadeiras; senão não haveria o erro. O erro existe, com efeito. Mas o que implica a noção do erro? (a noção do erro é muito mais complexa que a de verdade) Que há fenômenos que se dão, e estão errados? Não: tal idéia é impensável. Apenas, pois, que há fenômenos que se dão e não são bem interpretados. Portanto, que há opiniões a respeito de fenômenos que não correspondem aos fenômenos como eles se deram. Portanto, que há opiniões que implicam que existe uma coisa que não existe. Erro, portanto, é uma afirmação de que existe o que não existe. Verdade é, pois, existência. (PESSOA, 1998, p. 547)

Vejamos, então, aquela frase: o ser perseverar em ser. Supomos que ela

seja uma interpretação, que esteja próxima ao fenômeno que é em si único, isto é,

o fenômeno que, tratado como tal, não evolui, mantém-se o mesmo. Pergunta-se,

então: é esta interpretação segura? O pensamento fáustico, assinalado por Pessoa,

é sempre forçado a achar que não, ao mesmo tempo, que acredita na disciplina do

pensamento. No entanto, qualquer que seja o juízo que venha sobre isso ter,

parece que opta, sempre, por adiá-lo. Alguns poderão dizer que tal adiamento trata

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de um posicionamento cético, talvez sim, desde que, atentos à leitura dos versos

fáusticos, não sejam confundidos o ceticismo com pirronismo. O ceticismo é uma

forma de adiamento contra as más interpretações e não a morte do ato de pensar.

Aliás, como tudo parece se institucionalizar — às vezes, até mesmo a ingenuidade

— sabe-se lá se é plausível ou não chamar ao adiamento, como visto, de

ceticismo. Mas estabilizar o pensamento, isto é, discipliná-lo, significa pô-lo sobre

uma base que nada sabe deste pensamento. Lembremos, aqui, do comentário que

Pessoa faz sobre Hegel: “Hegel parece ter construído uma catedral sobre as

nuvens.”

Olhemos, então, mais uma vez, em direção a esta frase: o ser perseverar

em ser. E lancemos a questão: que idéia pode Fausto (em seu si-mesmo

exacerbado) construir de si ? Não gostaríamos de que esta frase fosse tomada

como uma tolice teatral, como “jogo”, como um artifício do artifício. Na

intimidade interpretativa desta questão, parece haver o desejo de levar algo ao seu

lugar originário e não sucumbir à originalidade deste lugar de começo indeciso.

Infalivelmente, duas coisas parecem ganhar relevo: a artificialidade do mundo que

se coloca sempre posterior ao nosso nascimento e a antinaturalidade (que é logo

tomada como natural) do mundo que nos está anterior. A esta condição algo

parece invadi-la, objetivando as palavras que, em tons suaves, e não menos

intensos, estão sempre querendo tomar para si o frescor de uma certa manhã

orvalhada. A isto, então, algo se interpõe, como ríspido, pesado, antinatural à

própria língua portuguesa: weltanschauung. A imagem falsa que turva a verdade.

Alude-se ao fato de que, tal como necessidade, as coisas precisam mudar, mas não

sabemos se todas as mentalidades do mundo entendem o que significa mudança,

porque a “necessidade” transformou a unidade do que precisa mudar em miríades

de coisas abjetas e verdadeiramente sem sentido. Particularmente — como se

tivéssemos o direito de sê-lo — entramos, uma vez mais, em consonância com

aquele Pessoa do Mensagem, que diz:

Ninguém sabe que coisa quer Ninguém conhece que alma tem, Nem que é mal nem o que é bem. (Que ânsia distante perto chora?) Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso e nada é inteiro. Ó Portugal hoje és nevoeiro...

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É a Hora! Valete, Fratres! (PESSOA, 2004, p.91)

Ou em consonância com Emerson, quando diz: “Que importa o ridículo,

que importa a derrota; novamente de pé, velho coração!” (EMERSON, apud.

CAVELL 1997, p. 148). Fazemos nossas as palavras de Emerson que, em sua

solidão, parece voltar ainda mais adiante, a uma solidão cada vez maior que a sua

própria e infere: “há ainda uma vitória para toda a justiça; e o verdadeiro romance

que a existência do mundo tem por fim realizar será a transformação do gênio em

poder prático.” (EMERSON, apud. CAVELL 1997, p. 148).

Ora, não há nada mais aterrorizante quando se descobre que o poder

prático não corresponde essencialmente ao poder do gênio. Deve-se então, sem

demora, adiar o juízo. E vem-nos aquela contundente frase de Pessoa: “um grande

dano tem sido causado a muitos gênios: não lhes cuspiram na cara.” (PESSOA,

1998). Entre o gênio e o indivíduo parece haver um abismo maior do que aquele

que separa o “povo” da nação, a classe e a sociedade. Quando um francês diz que

o “autor” é uma espécie de virtualidade, grosso modo, deve-se ter em mente os

ecos daquela frase: cuspiram-lhe na cara? Quando, em desassossego, a tentativa

de distinção dos processos lógicos não consegue mais tornar distinta a cultura da

religião, surge, de imediato, a pergunta: do que se fala afinal? Quando as medidas

do corpo proporcionalizam-se aos limites da pátria, outra pergunta é inelutável: a

que nação se almeja? Quando um jornalista, vislumbrando algo mais do que ser

apenas um jornalista, empenha-se por fazer valer o título bastardo de intelectual,

de conhecedor dos fatos e da verdade, sem ao menos utilizar de modo vigoroso o

intelecto, o que quase sempre acontece, deve-se dizer: basta! Quando um cientista

faz valer o materialismo do conhecimento ao espírito científico, pode-se constatar

que o universo dado é uma armadilha. Não há um tempo para cada indivíduo, o

que há é um único Tempo.

T.S. Eliot olha com coragem em direção as palavras cultura e religião,

observa nelas as suas reciprocidades significativas. Ele reconhece que, segundo

um ponto de vista, religião é cultura, e, segundo outro ponto de vista, cultura é

religião. Acredita que refletir deste jeito pode ser bastante perturbador e Observa

que a cultura de um indivíduo está estritamente ligada a da classe e a desta a da

sociedade. O indivíduo, a classe ou o grupo e a sociedade, dão-lhe a possibilidade

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de mapear um “sentido” mais profundo de cultura. Vai dizer ele que é a cultura da

sociedade que é fundamental, e é o significado do termo “cultura”, em relação a

toda a sociedade, que se devia examinar primeiro.

Pessoa aborda o assunto por outro viés. As suas considerações iniciam-se

por aquilo que possibilita o homem a ter cultura: a inteligência. E, neste caso, a

inteligência é a do indivíduo e não a da sociedade, pelo menos não neste início.

Os elementos vindos do exterior, elaborados pela inteligência, possibilitam o

indivíduo a ter cultura, pois ela trabalha os dados dos sentidos, que são: as

sensações sobre dados diretos dos sentidos, as sensações e impressões alheias do

convívio social e os dados que resultam de influências indiretas (livros, museus e

laboratórios). Reconhece perfeitamente que apenas as sensações sobre os dados

diretos dos sentidos são insuficientes em relação à elaboração dos elementos

vindos do exterior, pois cada um é só quem é: não vê senão com os próprios

olhos, não ouve senão com os próprios ouvidos. É a inteligência que, segundo ele,

auxilia-nos na elaboração dos elementos da exterioridade, ver e ouvir

profundamente, no sentido de mais completa e interessantemente, depende apenas

dela, e de seu modo insensível de “operar”. As impressões, colhidas do convívio

social, são chamadas vulgarmente de experiência; as impressões colhidas

indiretamente são elas cultura.

A cultura, porém, não é um resultado inevitável; não existe se não houver no indivíduo a capacidade de cultura e existe no indivíduo, como resultado, na proporção em que existe essa capacidade. A cultura é um alimento mental, e o alimento, para que nutra, tem que ser assimilado. Assim o a que chamamos um homem culto é aquele que tem capacidade de assimilar cultura, de transmudar as influências culturais em matéria própria do seu espírito, e o que de fato adquire essas influências. De resto, a capacidade de cultura leva o indivíduo inevitavelmente a procurar cultura. (PESSOA, 1998, p.266)

A cultura do indivíduo, como resultado dos materiais colhidos pela

inteligência — e elaborados por esta — verificada nesta dimensão individual, dá-

se a partir de três condições: a que resulta da erudição, a que resulta da

experiência translata e a que resulta da multiplicidade de interesses intelectuais. A

cada resultado deste cabe uma explicação: o primeiro tipo, reciprocamente, é

produzido pelo estudo paciente e dedicado, e pela assimilação sistemática dos

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resultados deste estudo; a segunda é produzida pela ultra-assimilação, ou rapidez,

profunda do aproveitamento do que se lê ou ouve; e a terceira, com dito, é o

resultado da multiplicidade de interesses intelectuais. A cada tipo, e à sua

respectiva explicação, cabem também três exemplos de individualidade, são elas:

John Milton, W. Shakespeare e Goethe. A erudição é um daqueles tipos de cultura

que ao poeta John Milton auxilia, porque a obra deste poeta é uma obra da

maturidade. Milton preparou-se pacientemente para ela - mesmo sem saber que

obra seria esta — pela posse do grego, do latim, do hebraico e do italiano, idiomas

que, não só o possibilitava a ler, mas também escrever; a experiência translata é

acolhida pela ultra-assimilação, e não menos profunda, de Shakespeare, era ele

intenso e profundo em tudo que via e ouvia, a ponto de simular uma erudição; a

multiplicidade de interesses intelectuais resultava na universalidade dos temas das

diversas obras de Goethe, não tinha a erudição de Milton nem a ultra-assimilação

de Shakespeare, mas a variedade de interesses compensava-lhe em universalidade,

o que perdia em profundeza e absorção.

A inteligência opera sobre os dados vindos do exterior e, como analisado,

estes dados são trazidos pelos sentidos, mas a caracterização que se seguiu não

tratou da inteligência somente, mas dos resultados obtidos a partir do modo de

operar desta, dados estes que vão dos mais diretos e imediatos aos mais indiretos.

Voltando seus olhos, mais uma vez, para inteligência, chegaria a outro ponto, que

é o modo pelo qual o sentido vê a si mesmo.

A inteligência, para Pessoa, apresenta três formas: gênio, talento e espírito,

estas formas de inteligência não são graus ou degraus de uma única faculdade, e

nem contínuos também de uma única faculdade ou função:

O gênio é a inteligência abstrata individualizada – a corporização concreta, temperamental e (...) de uma faculdade abstrata. O talento é a inteligência concreta tornada abstrata; não se limita, como o gênio, ao indivíduo, exceto na medida em que cada coisas que acontece no indivíduo é adstrita a ele porque dele. O espírito é a inteligência concreta individualizada, tem a aparência e os gestos do gênio. Por isso é tão fácil confundir grande espírito como gênio positivo. O talento, por outro lado, está entre ambos e se opõe por natureza a ambos. (PESSOA, 1998, p.475-476)

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O que move o gênio não é nítido a ele mesmo; o talento é a técnica

assimilada através da disciplina, parte da aceitação ou negação de materiais,

constituídos a partir da inteligência concreta, e que pode ser comum a todos que a

estes materiais se dispuser. Então, isto que há — a concretude da inteligência —

torna-se abstrato no indivíduo; O que move o espírito é nítido a ele mesmo e

individualizado nele a partir do modo com que assimila dados exteriores, aprende

não pelo talento, mas pela rapidez, não menos profunda, do seu alvedrio.

O gênio é a insanidade tornada sã pela diluição no abstrato, como um veneno convertido em remédio mediante mistura. Seu produto próprio é a novidade abstrata – isto é, uma novidade que, no fundo, se conforma com as leis gerais da inteligência humana e não com as leis particulares da doença mental. A essência do gênio é a inadaptação ao ambiente; é por isso que o gênio (a menos que seja acompanhado de talento e de espírito) é em geral incompreendido pelo seu ambiente; e eu digo “em geral” e não “universalmente” porque muito depende do ambiente. Não é a mesma coisa ser um gênio na antiga Grécia e na moderna Europa ou no mundo moderno. (PESSOA, 1998, p.475-476)

Um gênio na antiga Grécia, por exemplo, constata que o movimento da

ode grega não é o reconhecimento de uma teoria artística, é sim a de um fato

científico, de uma lei da inteligência:

O movimento da ode grega – strofe, atístrofe, epodo – não representa uma invenção dos Gregos, mas uma descoberta sua. Não é um postulado da inteligência grega; é um axioma da inteligência humana, que aos gregos foi dado a encontrar. (PESSOA, 1998, p.290)

O juízo que se faz a uma humanidade supostamente interessante, na

moderna Europa, corre o risco de não ser uma genialidade e, talvez, nem uma

celebridade, e sim uma morbidez neurastênica tornada falsamente interessante.

Para Pessoa, o papel da inteligência no romantismo e no classicismo francês do

século XVII, por exemplo, é muito adverso ao da antiga Grécia:

O papel da inteligência, no romantismo, é apenas representativo; serve apenas para exprimir a emoção que inspirou o poema. Nos pseudoclássicos dos séculos

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anteriores, o papel da inteligência é outro – é criar a emoção; não cria nenhuma, é claro, porque esse papel é anti-humano, ao passo que dos românticos é apenas inferiormente humano. (PESSOA, 1998, p.291)

Os modos da inteligência — gênio, talento e espírito — são contemplados

à luz de três poetas que Pessoa toma como exemplo, dois deles foram utilizados

nas considerações anteriores — J. Milton e W. Shakespeare — o terceiro não é

Goethe, como antes, mas sim, Wordsworth. Vejamos o que ele pensa dos três:

Shakespeare:

Shakespeare foi desconhecido como um gênio no seu tempo, pois os altos louvores, embora póstumos, de Ben Jonson não são mais do que a alta linguagem do tempo, destituída de significado e aplicada pelo mesmo Jonson a homens de quem hoje ninguém sabe coisa alguma – aquele Lord Mounteagle de quem diz ele “avultava como espírito dominante” (...). Shakespeare foi admirado em seu tempo como um homem de espírito, não como um homem de gênio. Como poderia ser admirado como um homem de gênio? Era o criador de Falstaff que podia ser compreendido; o criador de Hamlet não poderia sê-lo. Shakespeare é o exemplo do grande gênio e do grande espírito ligados à insuficiência do talento. É tão supremo na intuição que constitui o gênio e na rapidez da esquisitice que constitui a espirituosidade quando deficiente na construtividade e na coordenação que constitui o talento. (PESSOA, 1998, p.476)

John Milton:

Milton é o exemplo de união do grande gênio e do grande talento. Tem a intuição do gênio e o poder formativo do talento. Não tem espirituosidade; foi, de fato, um pedante. Mas possuía do pedante a firma, embora pesada, vontade. (PESSOA, 1998, p.476)

Wordsworth:

Wordsworth, por exemplo, representa o puro gênio, gênio sem aliança como o talento ou com o espírito. Enquanto que Shakespeare, por imperfeita que sejam no seu “todo” algumas de suas obras, nunca é tedioso e nunca mesquinho; enquanto que Milton, por mais monótono que seja, nunca é baixo, Wordsworth, quando o seu gênio o

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abandona, cai sob a mesquinhez e mais baixo do que a monotonia [...](PESSOA, 1998, p.476)

Estes elementos da inteligência não são contínuos, porque se encontram

misturados no homem, coexistem deste modo. Se assim fosse, isto é, se esses

elementos pudessem ser encontrados de modo contínuo, o veneno do gênio, isto é,

a insanidade tornada sã — aquela espécie de veneno, convertido em remédio a

base de mistura, destruiria o talento, como também o espírito. A adaptabilidade

do espírito ao meio de maneira imediata desintegrar-se-ia diante da falta de

adaptação do gênio ao ambiente.

“As coisas que coexistem na mente coexistem por interfusão e não por

mera continuidade.” (PESSOA, 1998, p.476). A cultura é o aperfeiçoamento

subjetivo da vida. O aperfeiçoamento direto chama-se arte, o indireto chama-se

ciência.

O claustro da subjetividade não é o corpo do indivíduo no qual esta

subjetividade faz parte, mas sim a exterioridade com seus diversos outros corpos.

A civilização que primeiro tentou “domar” isto foi a civilização grega, e é por ela

que se retorna. Todas as vezes que o esquecimento das civilizações modernas

resolveu jogar seu manto remendado sobre o “racionalismo individualista” dos

gregos perdeu-se nos imperialismos de ordem cada vez mais letárgica. O conceito

do mundo compreende o que fazemos de nós. Para Pessoa, esta espécie de

racionalismo encontrou em Apolo o equilíbrio entre o subjetivo e o objetivo, e em

Athena a harmonia do concreto e do abstrato.

O efeito trágico formado pela figuração centrada nestas duas formas de

cultura para os gregos, segundo Pessoa, revela o modo pelo qual a vida é sentida

por eles. A prova máxima disso encontra-se na expressão segura da arte helênica,

isto é, na apreensão de uma Natureza que põe em evidência as rachaduras de sua

conceituação, revelando um sentido ingênuo e, ao mesmo tempo, triste. No

Fausto, esta ingenuidade dá-se através de uma apreensão cerceada por uma

atmosfera mais interiorizada do que plástica. Nos diversos textos “teóricos”, que

nos auxiliaram a compor e expor um “pensamento fáustico”, o matiz revelador

desta natureza é a crise como expressão triste de um pensamento falhado em sua

intenção.

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Ao longo do capítulo procuramos reconhecer isto através da noção de

identidade e individualidade, verticalizando, assim, o tema proposto. Esta relação

caótica, segundo o pensamento fáustico, levou-nos a procurar, nos meandros da

obra em prosa pessoana, uma resposta que explicitasse este tipo de apreensão

deste modo de religiosidade (re-ligação). Neste sentido, procuramos adentrar nos

círculos mais íntimos da discussão pessoana acerca da religião e das suas formas

de religiosidade, isto é, procuramos valorizar a sua crítica feita ao paganismo e a

sua falsa apreensão teórica dada pela modernidade — ou pelos modernos como

gostava de mencionar. Para Pessoa, o conteúdo de verdade, em que isto poderia

ser encontrado e analisado, era a própria obra de arte, assim, reconhecia que os

gregos eram os pais humanos dela e eram, ao mesmo tempo, um povo infantil e

triste, pois a intensidade em que sentiam a vida carecia daquilo que bastava para

que esta fosse realmente chamada de vida: a forma eterna e segura da própria

existência. Nesta esfera, reconheciam que sobre esta real existência só poderiam

captar pequenas cintilações que, através da emoção e da inteligência de sua arte,

por mais fugaz que fosse tal contemplação, procuravam objetivar. E, ao longo de

sua reflexão sobre os gregos, Pessoa reconhecia que a arte, em sua forma

suprema, nada mais era do que “a infância triste de um deus futuro”, portanto, a

desolação humana da imortalidade pressentida; para Fausto: “o véu e a capa de

uma outra coisa”, apenas...noite.

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Cap. 3. CONCLUSÃO

Esta conclusão não conclui. Aquilo que parece ser um contra-senso pode,

no entanto, inaugura novas questões. “[...] a maior viagem que se pode fazer é a

circum-navegação que tem por fim voltar ao mesmo sítio” (PESSOA, 2003, p.

360).

A grande obra pessoana, como já havia falado, é um organismo que se

organiza, de modo diferente, a cada questão que a ela se faz. Seguindo isto,

podemos valorizar que a sua grande descoberta era, na verdade, uma exigência:

“se eu não for a minha própria epopéia, terei vivido em vão” (PESSOA, 2003, p.

193). A nota essencial, exalada de suas palavras, deixa singelamente passar o

aroma da eternidade por onde se possa sentir e ouvir o timbre inefável de seus

versos. Há sempre uma exigência a ser cumprida, uma honestidade intelectual a

ser deflagrada e uma tolerância a ser requerida: “Se em todos os meus versos não

houver timbres da eternidade, terei desperdiçado o tempo dos deuses” (PESSOA,

2003, p. 193); “a ciência do homem é grande, mas a sua ignorância é imensa”

(PESSOA, 2003, p. 349); “Sê tolerante, porque não tens a certeza de nada”

(PESSOA, 2003, p. 357).

Tenho uma grande dívida com Fernando Pessoa e, ao mesmo tempo, nutro

em mim um sentimento de eterna gratidão. Aprendi a perceber a complexidade

das coisas triviais, pôr sob suspeita as diversas teorias que ao mundo resposta

procura dar, reconhecendo, assim, a distância intransponível entre a “vida teórica”

e a “vida prática”: “Entre a vida teórica e a vida prática há um abismo, sobre o

qual alguns, mais individuais, são ponte” (PESSOA, 2003, p. 358). Também,

aprendi que “é inútil argumentar com um filósofo, pois a sua filosofia não

depende do seu intelecto, mas sim do seu caráter” (PESSOA, 2003, p. 362). Mas

logo me contradigo, e passo a acreditar, também, que é possível um trabalho em

conjunto, valorizando, cada vez mais, a especulação diante da vida e, de uma vez

por todas, afastando do verdadeiro trabalho os ressentimentos estranhos à

honestidade intelectual.

Há um trabalho a ser feito e esta espécie de exigência, velada e desvelada,

em Pessoa, tende a cumprir o seu próprio designo. Reconheço, de modo mais

básico, quero dizer, numa observação bem inicial, que o trabalho de Pessoa — e

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isto inclui toda a sua obra (editada ou não) — transforma os ecos do primeiro

romantismo num trabalho original, porque, mais do que reconhecer o liame sutil

entre a verve “clássica” e a verve “romântica” na obra pessoana, deve-se por os

olhos primeiro no modo como ele resolve isto em sua obra, reconhecendo que

resolver, pelo menos aqui, não significa dar fim, mas cumprir, observando, através

do seu modo escolhido, a realização de sua arte: “Todo indivíduo que funda uma

cousa funda sempre outra cousa” (PESSOA, 2003, p. 361).

***

“A glória [...] é um nome e não basta” (PESSOA, 2003, p. 360). A batalha,

nos versos que escolhi para esse trabalho, é de término infinito. Este é o modo

pelo qual se cumpre a glória deste poeta.

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