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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE EDUCAODOUTORADO EM CINCIAS SOCIAIS APLICADAS

    EDUCAO

    CAPOEIRA ANGOLA: CULTURA POPULAR E OJOGO DOS SABERES NA RODA

    Pedro Rodolpho Jungers Abib

    CAMPINAS SO PAULOBRASIL

    2004

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASFACULDADE DE EDUCAO

    DOUTORADO EM CINCIAS SOCIAIS APLICADAS EDUCAO

    CAPOEIRA ANGOLA: CULTURA POPULAR E OJOGO DOS SABERES NA RODA

    Banca Examinadora:

    Neusa Maria Mendes de Gusmo (orientadora)

    Carlos Rodrigues Brando

    Jocimar Daolio

    Luiz Renato Vieira

    Olga Rodrigues de Moraes von Simson

    Suplentes:

    Jos Luiz Cirqueira Falco

    Elisa Angotti Kosovitch

    Campinas So Paulo2004

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    RESUMO

    Esse trabalho prope-se a investigar as formas com as quais a cultura popular

    articula todo um vasto campo de conhecimentos e saberes, bem com as formas detransmisso desses saberes atravs de algumas categorias, que elegemos como base para

    essa tarefa, quais sejam a memria, a oralidade, a ancestralidade, a ritualidade e a

    temporalidade, na perspectiva daquilo que denominamos aqui de uma lgica diferenciada

    que prevalece nesse universo, diferente daquela lgica que a racionalidade ocidental

    moderna determina.

    Trazemos tambm reflexo, a partir de algumas teorias emergentes no campo das

    cincias sociais, a necessidade de constituio de uma nova racionalidade que seja capaz de

    interpretar e validar os saberes ocultos e silenciados, presentes no universo da cultura

    popular, como forma de ampliao das possibilidades de um dilogo frutfero entre os

    saberes provenientes das vrias tradies, presentes tanto no mbito da academia quanto no

    da cultura popular, sem hierarquias e discriminaes.

    Para realizarmos tal tarefa, elegemos a capoeira angola, manifestao da cultura

    afro-brasileira das mais significativas, como campo privilegiado de estudo, na tentativa de

    buscar os seus sentidos e significados, esforando-nos para constituir elementos de anlise

    que dem conta de interpretar sua simbologia, ritualidade e ancestralidade, como parte de

    elementos da cosmogonia africana, enquanto sistema religioso/simblico que influencia

    consideravelmente essa manifestao.

    Buscamos, ainda, analisar as experincias educacionais contidas nos processos

    envolvendo a transmisso de saberes no universo da capoeira angola, e tambm como se

    articulam no mbito da cultura popular, esses processos educacionais no-formais. Essas

    experincias envolvendo os saberes populares so, ento, a partir de nossa anlise,

    confrontadas com a perspectiva desenvolvida pelos processos formais de educao existentesem nossa sociedade, sobre os quais buscamos estabelecer uma crtica.

    Palavras-chave: cultura popular, capoeira angola, educao no-formal

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    SUMMARY

    The objective of this paper is to evaluate the forms in which popular culture

    articulates a vast field of knowledge and wisdom, as well as the ways this knowledge istransmitted through categories we selected as a base for this evaluation, specifically

    memory, orality, ancestrality, rituality and temporality. This was done in the perspective of

    what we have chosen to call differentiated logic, which prevails in this universe, a form

    of logic different from that espoused by modern Western rationality.

    Based on some emerging theories in the field of social sciences, we also reflect

    upon the need to formulate a new rationality capable of interpreting and validating the

    hidden and silenced knowledge present in the universe of popular culture. Our aim was to

    increase the possibilities for a useful dialogue between knowledge from a variety of

    traditions, present both in the academic arena and in popular culture, without hierarchy or

    discrimination.

    To carry out this task, we chose as our field of study Angola capoeira, an Afro-

    Brazilian martial art and highly significant cultural manifestation, in an attempt to find its

    essence and meaning. We did our utmost to identify analytical instruments that would

    allow us to interpret the symbology, rituality and ancestrality of Angola capoeira in terms

    of African cosmogony, since this religious/symbolic system has influenced it considerably.

    In addition, we sought to analyze the educational experiences embodied in the

    processes involving the transmission of knowledge in the universe of Angola capoeira and

    how these non-formal educational processes are articulated in the realm of popular culture. In

    our study, the experiences involving popular knowledge are contrasted with the perspective

    developed by the formal educational processes that exist in our society, which we are

    attempting to analyze from a critical point of view.

    Key words: Popular Culture, Angola Capoeira, Non-Formal Education

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    DEDICATRIA

    A Joo Pereira dos Santos, o mestre Joo Pequeno de Pastinha, e a todos os verdadeiros

    mestres da cultura popular do Brasil, guardies da memria, dignidade e sabedoria

    ancestral de um povo.

    A meus pais Abib e Dorothy, pela presena sbia e iluminada em minha vida.

    minha companheira Carol, pela pacincia, carinho, inspirao e fundamental auxlio

    nessa caminhada.

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    AGRADECIMENTOS

    Universidade Federal da Bahia e CAPES, que permitiram as condies financeiras e

    materiais para a realizao dessa pesquisa.

    minha orientadora Neusinha, pela forma delicada, sensvel e profundamente humana

    com que me auxiliou a encontrar caminhos.

    Aos professores integrantes da banca: Carlos Rodrigues Brando, Olga Rodrigues de

    Moraes von Simson, Jocimar Daolio, Luiz Renato Vieira, Jos Luiz Cirqueira Falco e

    Elisa Angotti Kosovitch, pela ateno e disponibilidade em contribuir para esse trabalho.

    Ao grande amigo e profundo conhecedor das artes da capoeiragem, Frede Abreu, pelos

    valiosos conselhos e sbias orientaes durante toda a jornada.

    A todos os camaradas capoeiras, parceiros no jogo da vida, especialmente Vtor,

    Eletricista e Zoinho, pelas muitas experincias e ensinamentos compartilhados ao longo

    desses anos.

    A todos os amigos do samba e da boemia, pelo companheirismo e parceria que enriquecem

    nossa experincia com as coisas simples e belas da vida.

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    SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................. 08CAPTULO I PROCESSOS GLOBALIZANTES E CULTURA POPULAR: ODEBATE NO CAMPO DAS CINCIAS SOCIAIS.................................... .. 16

    1.1.O descentramento dos sujeitos e a questo da identidade.................... 161.2. Problematizando o conceito de cultura ................................................ 231.3. Cultura Popular: um conceito em evoluo ........................................ 28

    1.3.1. Cultura Popular e o romantismo da dcada de 60...................... 281.3.2. Cultura Popular e as transformaes das dcadas de 70 e 80.... 331.3.3. Cultura Popular: novas possibilidades de abordagens............... 37

    1.3.4.1.Capoeira Angola: primeiras aproximaes.............................. 421.3.4.2. Samba: algumas consideraes sobre cultura popular e

    aprendizagem social..................................................................................... 451.3.4. Cultura Popular, indstria cultural e a retomada das tradies. 51

    CAPTULO II - OS DIVERSOS SENTIDOS DA CULTURA POPULAR E ASPOSSIBILIDADES DE SUA INTERPRETAO: O MUNDO DA CAPOEIRA............................................................................................................................. 57

    2.1. Breves consideraes sobre a racionalidade moderna.......................... 582.2. Cultura Popular e sua lgica diferenciada ............................................ 60

    2.2.1. Memria, oralidade e ritualidade .................................................... 602.2.2. A perspectiva da temporalidade no-linear ................................... 72

    2.3. Por uma nova racionalidade em gestao.............................................. 78

    CAPTULO III ENTRE CAPOEIRAS: O JOGO NA RODA DA VIDA..893.1. Origens de uma tradio ........................................................................... 92

    3.1.1. A capoeira e os escravos no Rio de Janeiro do sc. XIX .................. 973.1.2. A capoeira baiana: a frica que vem se mostrar ............................. 103

    3.2. Vadios, desordeiros e valentes: a luta social .......................................... 117

    CAPTULO IV CAPOEIRA ANGOLA: UM JEITO DE ENSINAR EAPRENDER... A VIDA ........................................................................................ 126

    4.1. Da roda de capoeira ao aprendizado da vida ........................................... 1274.2. A mandinga e seu componente mtico-religioso ....................................... 1384.3. A esttica da capoeira angola e outras formas de aprendizagem............ 1444.4. Cultura Popular, escola e educao .......................................................... 149

    CONSIDERAES FINAIS............................................................................... 160

    BIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 163

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    INTRODUO

    Uma sensao nos aflora ao iniciarmos a escrita desse trabalho: a tentativa de tocar

    o intangvel. Explico. Ao buscarmos penetrar o universo da cultura popular, aproximando-

    nos da ancestralidade que rege os modos de ser e estar no mundo, de pessoas simples,

    humildes, na maioria das vezes marginalizadas, analfabetas ou quase, em boa parte pessoas

    expropriadas de seus direitos fundamentais, mas que trazem consigo a fora de seu passado,

    como um elixir que permite que a ritualidade, a simbologia e a alegria da vida cotidiana

    sejam sua caracterstica mais marcante, sentimo-nos diante de um enorme desafio, que

    percebemos apontar desde j, para os possveis limites de um trabalho acadmico no qual a

    escrita e a racionalidade devem ocupar um lugar privilegiado.

    Nossa trajetria pessoal sempre foi marcada por profundas ligaes com o universo

    da cultura popular, pois crescemos ouvindo os tambores das congadas e moambiques e

    acompanhando os cortejos da Festa do Divino com suas folias e bandeiras. Temos buscado

    ao longo dos anos, nos aproximar de personagens sbios que criam e recriam essa cultura

    nas mais variadas regies de nosso pas, e com eles temos aprendido muitos dos mais

    significativos ensinamentos que guardamos conosco. Nos ltimos anos, temos nos

    envolvido mais organicamente com a capoeira angola e com o samba, o que tem nos

    propiciado ampliar nosso entendimento sobre as formas como esses sujeitos lidam com seu

    cotidiano, seu passado e suas tradies, bem como suas estratgias de resistncia ao

    manterem vivas duas dessas mais importantes manifestaes da nossa cultura popular.

    O samba sempre fez parte de nossa experincia com a cultura popular, pois desde

    cedo, ouvamos Noel, Cartola, Ataulpho, Adoniram, e mais tarde, j em companhia do

    violo, fomos nos aprofundando nesse fantstico mundo de ritmo e poesia, e nos nutrindodo contato com sambistas de boa cepa, que muito tm enriquecido nossa experincia

    pessoal, vinda de parcerias que frutificaram em algumas composies espalhadas pelo

    mundo, e de memorveis rodas de samba regadas boa cachaa, pelos botequins desse

    nosso pas, um dos mais ricos espaos de aprendizagem social e talvez um dos locais mais

    representativos de nossa identidade brasileira, se que podemos falar de uma.

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    Em nossa trajetria pessoal, h um momento de transio muito importante, que

    quando deixamos Mogi das Cruzes, no Estado de So Paulo, lugar onde nascemos, em

    direo Bahia de todos os santos e orixs, e l nos fixamos. L tomamos contato com todo

    o universo da cultura afro-brasileira, e mais precisamente com a capoeira angola do mestre

    Joo Pequeno de Pastinha, um velho senhor analfabeto, hoje com 86 anos de idade,

    referenciado como o maior smbolo vivo da capoeira, e que muito tem nos ensinado nesses

    dez anos de convvio e aprendizado humano.

    Algum disse, uma vez, que a capoeira entra no sangue da gente, e depois disso,

    ela nunca mais sai de sua vida. Somos levados a concordar ! Nesses anos de

    capoeiragem, temos sido aprendizes de ensinamentos to significativos e profundos,

    quanto recheados de simplicidade e beleza, caracterstica dos personagens populares que

    so os protagonistas maiores dessa manifestao cultural. Colocamo-nos, ns prprios,como frutos de um rico processo de educao levado a cabo pela cultura popular, dentro de

    sua forma muito peculiar de lidar com os saberes que remetem tradio e ancestralidade

    de um povo. Somos eternos aprendizes daquilo que a cultura popular tem a nos ensinar. E

    disso, muito nos orgulhamos.

    Em nossa trajetria acadmica, temos buscado atravs das aulas que ministramos e

    das produes cientficas realizadas num perodo mais recente, estabelecer um dilogo

    entre o saber popular e o saber proveniente da academia, a partir de algumas experincias e

    aproximaes iniciais. Partindo dessa perspectiva que buscamos situar para o leitor, a

    tarefa a que esse investigao se prope, ou seja, a tentativa de ampliar e aprofundar as

    possibilidades desse dilogo entre saberes de diferentes tradies a acadmica e a popular

    , como uma premente necessidade das abordagens que incluem os temas relacionados

    educao em nosso pas.

    O universo da cultura popular sempre nos exerceu um fascnio muito grande,

    atravs dos ritos, festas, crenas, enfim, toda a simbologia que compe a cotidianidade do

    povo simples do nosso pas. Esse longo processo de escuta sensvel e aprendizado que

    temos levado a cabo nos ltimos anos, vem nos propiciando realizar algumas reflexes

    sobre esse universo, to rico em diversidade, to ligado tradio e ao passado, que vem

    resistindo s transformaes impostas pela modernidade, sem no entanto, deixar de tambm

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    se transformar. Um universo muitas vezes hermtico aos no iniciados porque guarda

    mistrios e segredos.

    Essas reflexes tm nos permitido ficar atentos e intuir a existncia de uma outra

    lgica, diferente da lgica determinada pela racionalidade moderna, mas que parece

    prevalecer nesse universo da cultura popular, cada vez que um caboclo de lana doMaracatu

    de Baque Solto sacode suas pesadas vestimentas, no ritmo contagiante que vem dos rurais de

    Pernambuco; cada vez que o estampido agudo das matracas do Bumba-Meu-Boi, restitui o

    passado indgena e escravo em terras maranhenses; cada vez que os versos de inspirao

    medieval dos Repentistas Nordestinos revelam a poesia e a sagacidade do homem sertanejo;

    cada vez que os sulcos esculpidos pelo tempo nos rostos das centenrias Baianas vestidas de

    negro na Festa de N.S. da Boa Morte, trazem os mistrios ancestrais do Recncavo Baiano;

    cada vez que os passos lpidos dos danarinos doJongo presentificam as origens africanas nosamba do Rio de Janeiro; cada vez que o ponteado de uma Viola Caipira traz a dolncia

    matreira do caboclo do interior paulista, ou cada vez que os acordes de um berimbau ecoam

    como navalha cortando o ar, durante o cantar da ladainha numaRoda de Capoeira.

    O prprio conceito de cultura popular sofreu um significativo desgaste nas ltimas

    dcadas, em funo das modificaes no contexto terico, a partir de um predomnio de

    abordagens que desestabilizaram as noes de identidadee cultura. Na linha dessa crtica,

    pretendemos nessa investigao, analisar os contextos que influenciaram a concepo de

    cultura popular a partir da dcada de 60 no Brasil, e por conseguinte, tentar restabelecer a

    discusso sobre o tema no atual contexto da sociedade brasileira, procurando evitar

    anacronismos e buscando uma abordagem sobre cultura popular, que leve em conta os novos

    pressupostos tericos presentes no debate no campo das cincias sociais.

    Entendemos que o conceito de cultura popular traz consigo toda uma carga de

    subjetividade, traduzida pelas festas, crenas, ritos e sonhos, em torno dos quais se organiza a

    vida do povo simples de nosso pas. Por isso acreditamos que ele ainda deva ser significativo

    no contexto em que pretendemos utiliz-lo, o que, em nossa opinio, justifica o empenho de

    reformul-lo e atualiz-lo, como uma das tarefas a ser empreendida por essa investigao.

    A lgica que parece prevalecer no universo da cultura popular se caracteriza por uma

    outra concepo de tempo, que difere da concepo linear inaugurada pela metafsica, pois

    concebe passado, presente e futuro dentro de uma unidade temporal, aquilo que o filsofo

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    alemo Martin Heiddegger1, a partir de uma retomada do pensamento pr-socrtico, define

    como noo circular do tempo. A partir dessa perspectiva, o passado no algo que se

    esgotou e est fossilizado mas, algo vigente que tensiona com o presente, projetando

    possibilidades futuras. O passado visto como uma dimenso temporal que vigora, que

    guarda e aguarda um sentido. Segundo este filsofo, a metafsica que nasce com Plato e

    Aristteles aniquila essa noo da circularidade do tempo, ao impor a lgica linear como

    nica possibilidade de pens-lo e conceb-lo.

    No mbito da cultura popular, a memria um outro conceito que tem lugar

    fundamental. A memria, enquanto patrimnio de saberes e conhecimentos, cuidadosamente

    armazenados e organizados, atravs de um processo ativo de seleo de fatos considerados

    importantes para a histria social de um coletivo, exerce a funo de amlgama do grupo,

    atravs do fortalecimento dos vnculos sociais, de afirmao da identidade coletiva e dadefinio de um ethos que constitudo em razo da importncia que o passado em vigor e a

    ancestralidade assumem no imaginrio do grupo.

    Dentro desse contexto, a oralidade tambm possui papel importante, mesmo

    convivendo com as inovaes tecnolgicas que a modernidade oferece (e que acabam tambm

    se incorporando ao cotidiano desses grupos). Mas a grande maioria das tradies populares

    ainda tem, na oralidade, o seu meio mais importante de transmisso, j que a escrita

    juntamente com os meios formais de aprendizado, como a escola, por exemplo no tem um

    papel central nos processos de ensino-aprendizagem desenvolvidos pelos sujeitos

    protagonistas dessas tradies. Nesse universo, a oralidade ainda prevalece resistindo aos

    avanos da modernidade.

    A ritualidade presente na cultura popular mais um fator que, em nossa opinio,

    exerce funo essencial, j que atravs dela que se estabelece a conexo com esse tempo

    primordial, onde tudo se originou, onde se encontram os antepassados, que retornam cada vez

    que o rito e a celebrao assim o solicitam. A ritualidade adquire, no universo da cultura

    popular, o aspecto de culto, onde sagrado e profano se entrecruzam, atribuindo um outro

    sentido ao religioso e religiosidade.

    A partir dessas consideraes iniciais, entendemos que os processos de transmisso de

    saberes presentes no universo da cultura popular, pautados por uma lgica diferenciada,

    1Ser e Tempo.Trad. e notas: Mrcia de S Cavalcanti. Petrpolis: Vozes, 1995.

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    pressupem prticas pedaggicas tambm diferenciadas, baseadas numa outra concepo de

    tempo e espao, que priorizam um outro tipo de relao entre o mestre e o aprendiz (ou entre

    o educador e o educando), que enfatizam formas diferenciadas de sociabilidade, em que as

    formas simblicas, a ritualidade e a ancestralidade tm papel fundamental, e que assim

    privilegiam nesse processo pedaggico, outro sistema de valores, que no aquele presente na

    prtica educacional corrente em nossa sociedade. As prticas pedaggicas presentes na cultura

    popular parecem pressupor o estabelecimento de novas formas de racionalidade, que sejam

    capazes de apreender a lgica diferenciada que lhe prpria e dar-lhe significado.

    Na tentativa de investigarmos os pressupostos que orientam essas novas formas de

    racionalidade, capazes de interpretar essa lgica diferenciada presente no universo da cultura

    popular, pisamos num terreno um tanto movedio e cheio de armadilhas, por onde, no

    entanto, estamos dispostos a nos aventurar. Caminho cheio de percalos que, porm, nospermite a companhia de Walter Benjamim, Boaventura de Souza Santos, Nestor Canclini,

    Renato Ortiz, Paul Ricouer, Muniz Sodr, Homi Bhabha, Marilena Chau, Michel de

    Certeau, Carlos Rodrigues Brando, entre outros.

    Analisamos, no primeiro captulo, o contexto em que se d o processo que

    denominamos de reconstruo de razes, a partir dos exemplos envolvendo a capoeira angola,

    o samba e outras manifestaes populares tradicionais, luz das novas elaboraes tericas

    provenientes do campo das cincias sociais. Buscamos contribuir para um novo alcance da

    utilizao do conceito de cultura popular, embora compreendamos a complexidade em que ele

    est atrelado, pois trata-se de um termo que busca dar significado a um processo extremamente

    contraditrio, impreciso e ambivalente que est presente nas sociedades globalizadas.

    Reconhecemos os limites que a utilizao do conceito de cultura popular nos impe,

    sobretudo em funo da complexidade de seus pressupostos tericos. Porm devemos reafirmar

    que o esforo que aqui empreendemos, no sentido de reformul-lo diante do recente debate no

    campo das cincias sociais, deve-se nossa compreenso e convico de que esse conceito

    ainda vlido, pois carrega consigo a fora e a vitalidade presentes nas crenas, ritos e

    tradies populares, e quando utilizado dentro do mbito de atualizao que proposto nessa

    investigao, ganha flego e nos permite analisar e interpretar, com todo o vigor e com a

    profundidade que essa tarefa terica exige, as formas com as quais as camadas populares lidam

    com seu cotidiano e seu passado.

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    Contudo, a partir da aproximao ao universo da cultura popular, temos percebido que

    nela predominam outras temporalidades, outras formas de conceber o divino, outras formas de

    transmisso de saberes, outras formas de se relacionar com a natureza, enfim, outras

    racionalidades. Temos a sensao de que algo nos escapa. A tarefa acadmica de compreender

    e dar significado a esse universo carece ento, ainda, de um instrumental terico-metodolgico

    que seja mais aberto captao dessa realidade. Os parmetros tericos construdos pela

    academia, parecem no dar conta de interpretar esse complexo conjunto de significados

    presentes na cultura popular, em toda sua totalidade.

    Em funo disso, acreditamos que para compreender esse sentido que procuramos

    atribuir ao conceito de cultura popular, quando analisamos suas manifestaes mais

    tradicionais, como a capoeira angola, por exemplo, seja necessrio estabelecer novas categorias

    de anlise que no se encontram disponveis no mbito da racionalidade que predomina nasociedade moderna, pois para apreend-la na totalidade dos seus significados, preciso que a

    cultura popular seja vislumbrada a partir de outra lgica, que s poder existir a partir da

    utilizao de uma racionalidade mais alargada.

    Apontar para as possibilidades de construo de uma racionalidade, que seja capaz de

    atribuir sentido e significado s experincias constitudas no universo da cultura popular, o

    desafio e a tarefa que nos propomos a desenvolver no segundo captulo. Valemo-nos para tal

    tarefa, da ampla reflexo que comea a ser feita no campo das cincias sociais, sobre a

    necessidade de sua abertura para um novo paradigma, capaz de apreender e compreender essas

    experincias que escapam da racionalidade inaugurada pelo pensamento moderno. Nossa tarefa

    ento trazer esse debate, no sentido de ampliar nossas possibilidades de melhor compreender

    os significados presentes nesse universo to rico e to complexo, como o da cultura popular.

    No terceiro captulo, elegemos ento, a capoeira angola como campo privilegiado de

    estudo, no qual procuramos realizar um mergulho, buscando os sentidos e os significados

    dessa manifestao afro-brasileira, esforando-nos para estabelecer elementos de anlise que

    dem conta de interpretar sua simbologia, ritualidade e ancestralidade, como parte de

    elementos da Cosmogonia Africana, enquanto sistema religioso/simblico que influencia

    consideravelmente essa manifestao.

    Finalmente, no quarto captulo, buscamos analisar as experincias educacionais

    contidas nos processos envolvendo a transmisso de saberes no universo da capoeira angola, e

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    tambm como se articulam no mbito da cultura popular, esses processos educacionais no-

    formais. Essas experincias envolvendo os saberes populares so ento, a partir de nossa

    anlise, confrontadas com a perspectiva desenvolvida pelos processos formais de educao

    existentes em nossa sociedade, a respeito dos quais buscamos estabelecer uma crtica.

    No aspecto metodolgico, contamos com a privilegiada contribuio de alguns dos

    velhos mestres de capoeira da Bahia, que vm emprestar suas vozes, sua sabedoria e suas

    vises de mundo, e amparar-nos nessa delicada tarefa de interpretar os sentidos e os

    significados dessa manifestao, to expressiva de nossa cultura popular, to intimamente

    ligada ao prprio processo civilizatrio brasileiro. Valemo-nos, portanto, dos depoimentos

    orais de alguns velhos mestres vivos e ainda ativos no cenrio da capoeiragem 2 baiana, e da

    anlise de manuscritos, e depoimentos de outros velhos mestres j falecidos, agora

    repousando em terras deAruanda, lugar mtico, destino daqueles que daqui partiram, mas queainda retornam, pelo chamado solene do berimbau.

    Alm da bibliografia especfica, recorremos tambm literatura, poesia, msica e

    s lendas e histrias correntes no mundo da capoeiragem, como forma de aproximao mais

    subjetiva e sensvel a esse universo de malandros, vadios e heris, herdeiros de uma

    tradio que se mantm viva, graas s estratgias de resistncia de um povo oprimido e

    subjugado que traz ...o sorriso no rosto, a ginga no corpo e o samba no p...3

    A deciso de eleger a Capoeira Angola como campo privilegiado de estudo, no

    universo da cultura popular , como j dissemos, decorrente de uma vivncia pessoal de mais

    de dez anos no mundo da capoeiragem baiana, onde temos tido a oportunidade de conviver

    com os velhos mestres, iniciar-nos nos preceitos rituais e simblicos e entrarmos em contato

    com os cdigos dessa manifestao afro-brasileira, alm de presenciar e vivenciar as

    estratgias de dissimulao, astcia e sagacidade utilizadas pelos capoeiras4 como forma de

    sobrevivncia. Sujeitos esses, ainda hoje, em grande parte marginalizados e oprimidos por um

    sistema excludente. Sujeitos esses, cujas estratgias desenvolvidas na capoeiragem,

    extrapolam em muito sua atuao nas rodas de capoeira. A roda do mundo o cenrio no

    2 Refere-se prtica da capoeira.3 Cantiga de capoeira (d.p.)4Termo utilizado para referir-se tanto ao praticante quanto prpria manifestao.

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    qual o capoeira utiliza todo seu repertrio, sua ginga e sua malcia para lidar com as

    situaes adversas do seu cotidiano.

    Sabemos que a deciso, enquanto pesquisadores, de eleger como campo privilegiado

    de estudo uma manifestao da cultura popular, com a qual estamos organicamente

    envolvidos, nos traz tanto uma posio privilegiada de aproximao ao objeto de estudo,

    como tambm o risco de no sermos capazes de um distanciamento necessrio para uma

    anlise menos parcial. Porm, decidimos correr riscos, mesmo porque no acreditamos na

    neutralidade do pesquisador, e assumimos a intencionalidade dessa investigao, que pelas

    caractersticas do objeto, exige uma aproximao com grandes doses de subjetividade, em que

    a sensibilidade, a experincia e a emoo devem se fazer presentes, sem as quais no teramos

    qualquer chance de ter algo significativo a dizer sobre esse universo to rico que a cultura

    popular.

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    CAPITULO I

    PROCESSOS GLOBALIZANTES E CULTURA POPULAR: O DEBATE NO

    CAMPO DAS CINCIAS SOCIAIS

    O debate no campo das Cincias Sociais que problematiza os conceitos de cultura e

    identidade frente s transformaes impostas pelo processo de globalizao, atinge sua maior

    profundidade e efervescncia nos anos 90, embora tenham iniciado em anos anteriores, e so

    responsveis pela constituio de um novo arcabouo terico que d novo flego s anlises

    dos contextos onde so estabelecidas as relaes sociais.

    No presente captulo retoma-se esse debate, buscando esclarecer seus pontos principais,

    e, assim, apontar para uma definio do que sejam os conceitos de identidade e cultura diante

    dos processos de globalizao vigentes.

    Busca-se a anlise da evoluo do conceito de cultura popular atravs das quatro ltimas

    dcadas, procurando identificar os limites e avanos das diferentes abordagens, bem como anecessidade de reformular e atualizar esse conceito, atravs de uma problematizao que leve

    em conta o novo campo terico aberto pelas recentes formulaes das cincias sociais.

    Procuramos, dessa forma, um novo alcance e uma ampliao das possibilidades de utilizar o

    conceito de cultura popular no contexto das sociedades atuais.

    1.1. O descentramento dos sujeitos e a questo da identidade

    Poucos so aqueles que ousam no incluir em suas anlises sobre a realidade social, os

    termos globalizao, mundializao ou processos globalizantes. De fato vivemos um perodo

    histrico totalmente absorvido pela idia de globalizao. Estamos imersos nesse processo, e

    em que pese o esforo terico de compreend-lo de forma mais abrangente, ainda so muitas as

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    questes e dvidas sobre o real significado e as futuras conseqncias desse perodo de ruptura

    histrica em que vivemos, representado pelo processo de globalizao. Esse processo tem,

    invariavelmente, alterado e influenciado os conceitos de cultura e identidade.

    Segundo Otvio Ianni (1992), a verdade que, a globalizao no jamais um processo

    histrico-social de homogeneizao, embora sempre estejam presentes foras empenhadas na

    busca de tal fim; ou que buscam equalizar interesses, acomodar alianas, criar e reforar

    estruturas de apropriao econmica e dominao poltica. Sob o capitalismo global, conforme

    o autor: ...as contradies sociais agravam-se nos pases dependentes, perifricos, atrasados

    (...) porm simultaneamente, as mesmas populaes (pauperizadas por esse processo)

    apropriam-se de padres, valores, ideais, signos, smbolos, formas de pensar e imaginar, com

    as quais se armam para se defender, resistir, lutar, emancipar(p.144). O processo de

    globalizao sob a gide do capitalismo parece ser um processo hegemnico e avassalador,porm as contradies que encerra, como diz Ianni, permitem-nos refletir sobre possveis

    formas de encarar essa realidade sob outras perspectivas.

    Boaventura de Sousa Santos (1995) alerta que, antes de mais nada, h que se ter em

    conta que o que designamos por globalizao um conjunto de relaes sociais. Isto significa

    em primeiro lugar que no h globalizao, mas globalizaes, diferentes modos de produo

    de globalizao. Significa tambm, diz ele, que todos esses modos de produo so conflituais,

    constitudos em luta. Esses processos constituem-se tanto a partir de cima, dos grandes re-

    arranjos transnacionais envolvendo grupos de empresas multinacionais, como a partir de baixo,

    ao que designa de novas formas de cosmopolitismo, movimentos contra-hegemnicos de

    carter social, ecolgico, defesa de direitos de minorias, etc.

    A idia fundamental que a globalizao envolve a gnese e o desenvolvimento de uma

    vasta totalidade geo-histrica, simultaneamente complexa, contraditria e abrangente, e que,

    conforme Anthony McGrew (1992), atravessa fronteiras nacionais, integrando e conectando

    comunidades e organizaes em novas combinaes de espao-tempo, tornando o mundo, em

    realidade e experincia, mais interconectado. Ressalta Ianni (2000), que esse processo ... tende

    a articular, impregnar ou mais propriamente determinar, s vezes decisivamente, indivduos e

    coletividades, grupos e classes sociais, governos e regimes, territrios e fronteiras, modos de

    vida e trabalho (p.8).

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    Tudo e todos, afirma Ianni, parecem continuar no mesmo lugar, como dantes, mas uns e

    outros, as coisas, as gentes e as idias esto sendo um tanto dinamizados e recriados como

    transfigurados ou dissolvidos. O indivduo pode ser o cidado do mundo, continua o autor, sem

    prejuzo de ser, ao mesmo tempo, membro de uma coletividade local e regional, alm de sua

    condio de membro desta ou daquela classe social. O Estado-Nao continua a ser Estado-

    Nao, mas so outras as condies e as possibilidades da soberania, pois a sociedade nacional

    perde seus contornos mais objetivos.

    Esse contexto acaba determinando que as identidades dos sujeitos, imersos nesse

    processo de globalizao, passem por profundas transformaes, perdendo a estabilidade que

    outrora se entendia como sendo sua marca. Ou seja, esse processo est mudando as

    caractersticas das identidades pessoais, o que segundo Stuart Hall (1999), acaba abalando a

    idia que temos de ns prprios, como sujeitos integrados. Esta perda de um sentido de siestvel, chamada pelo autor, de deslocamento ou descentrao do sujeito. Esse duplo

    deslocamento descentrao dos indivduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural,

    quanto de si mesmos constitui uma crise de identidade para o indivduo.

    Ernest Laclau (1985), afirma que uma estrutura deslocada aquela cujo centro

    deslocado, no sendo substitudo por outro, mas por uma "pluralidade de centros de poder".

    Entretanto, argumenta o autor que essa concepo perturbadora e provisria de identidade no

    deveria nos desencorajar, pois o deslocamento possui caractersticas positivas: ele desarticula

    as identidades fixas e estveis do passado, porm abre perspectivas para novas articulaes que

    permitem a criao de novas identidades e a produo de novos sujeitos que se recompem em

    torno de pontos nodais particulares de articulao.

    A identidade, para J. Rutherford (1990), nunca ocupa um lugar esttico, ela contm

    traos de seu passado e do que se tornar. Identidades so formadas em dilogo aberto,

    portanto, carregado de tenses, como diz Charles Taylor (1989), e vo sendo formadas e

    deformadas de acordo com as imposies e depreciaes que vm limitar o ideal de

    autenticidade.

    Partindo dessa mirada, podemos analisar esse contexto sob a perspectiva da dinmica

    social que ele proporciona, permitindo o surgimento daquilo que Peter McLaren (1999)

    denomina por identidades de fronteira, que para ele, so narrativas e contra-narrativas que

    escolhemos para atuarmos (mas, como Marx nos lembra, no em condies de nossa prpria

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    escolha) no contexto de nossa mundana e prtica existncia cotidiana. As identidades de

    fronteira, segundo McLaren, ...esto ancoradas e so tambm o resultado daquelas prticas

    sociais que configuram a experincia e do forma aos investimentos afetivos em tal

    experincia. Esto relacionadas tambm s narrativas de libertao que desafiam as

    identidades de mercado produzidas pelas narrativas da Nova Direita de cidadania do consumo

    (p.193).

    O autor afirma que: Identidade de fronteira requer o que Ramon Saldivar chama de

    dialtica da diferena, que se refere formao de subjetividades de resistncia, ou seja,

    subjetividades que so capazes de resistir s tendncias absolutizantes de um mundo burgus,

    patriarcal, classista e racista que se funda na noo de identidade fixa e positiva e em papis

    especificados de gnero, baseados nessas fixaes positivas (p.195).

    Engajar-se ao projeto de criao de identidades de fronteira , segundo McLaren, ummeio de desconstruo e de tomada de controle de narrativas do eu em contato com o outro.

    Com efeito, um dilogo consigo mesmo e com o outro, um dilogo que contesta e rompe com

    a estrutura narrativa monotpica e unidimensional de textos sociais dominantes, baseados em

    incentivos de mercado e na lgica de consumo. Construir identidades de fronteira recusar a

    adoo de uma nica perspectiva relacionada dominao cultural, subverter a racionalidade

    que institui o discurso monocultural.

    A noo de identidades de fronteira, desenvolvida por McLaren, serve-nos muito bem

    para ampliar nossa viso e nossa interpretao dos processos de identificao em curso nas

    sociedades globalizadas, porm, no bojo dessa discusso, o autor defende um projeto o

    multiculturalismo crtico que revela, desde sua gnese, problemas e limites muito claros na

    tarefa que se prope, qual seja a de formular uma poltica cultural que privilegie as diferenas

    sem a existncia de hierarquias.

    McLaren adota uma perspectiva em que os processos que envolvem identidades de

    fronteira, pressupem que as relaes de poder sejam substitudas por relaes em que

    prevalea o direito diferena. Ora, o autor parece minimizar o conflito determinado pelas

    relaes de poder que se estabelecem entre grupos que defendem interesses particulares

    distintos. Esse conflito inevitvel e vai ser sempre determinado pelas relaes de poder que

    determinados grupos exercem sobre outros. Nada garante, portanto, que esse pretenso projeto

    que ele define por multiculturalismo crtico possa, por si s, realmente contribuir com a

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    diminuio das desigualdades, da discriminao e da violncia contra as minorias que habitam

    as sociedades modernas.

    O multiculturalismo, embora no represente um movimento social coeso, tem sido

    utilizado com propriedade por alguns autores, na problematizao dos temas referentes aos

    direitos de grupos e minorias excludas, e da sua insero nos processos sociais, numa

    perspectiva de igualdade em relao a outros grupos majoritrios. Porm, os pressupostos que

    o sustentam, e as formas como o multiculturalismo foi se caracterizando em alguns pases da

    Europa e nos EUA, apresentam problemas que lhe dificultam atingir o cerne da questo central

    que se prope a abordar.

    Na linha da crtica ao multiculturalismo, Danilo Martucelli (1996) define que a noo

    de identidade multicultural, dependendo da de diferena, supe que o sentido se constri em

    contraste com seu oposto, e at mesmo negando-o ou reprimindo-o. Toda identidade seestabelece em oposio explcita a uma outra identidade . A oposio nada mais do que um

    contraste socialmente estabelecido e a maior parte das interdependncias so hierrquicas: no

    seio de cada dupla binria, um tem a primazia e o outro negado (p.29). A luta social

    justamente definida pela capacidade de desfazer essa equao. Para o autor, esse processo

    acaba suscitando uma preocupao de autonomizao por parte de cada grupo identitrio, que

    logo encontra dificuldades devido ao carter intrnseco da identidade, que no pode pressupor

    autonomia quando atrelada complexa teia das relaes sociais.

    O apaziguamento identitrio pode, ento, ser acionado pelo processo do

    multiculturalismo, a partir de polticas que visam a aumentar a participao das minorias na

    vida social, mas esse , segundo Martucelli, um processo que implica muitos riscos.

    O autor se refere ao que se passa do lado subjetivo e que permanece alm, ou aqum

    desses processos ...a percepo individual cotidiana da alteridade, as emoes da negao de

    si mesmo, sempre percebidas mesmo que no sejam inteiramente reais, o sentimento de

    ser...(p.30) Em outras palavras, devido prpria natureza, as identidades podem ser

    produzidas negativamente: ...a fora do racismo vem da sua capacidade de produzir

    identidades impostas, de encerrar qualquer um num esteretipo, de, afinal, negar sua

    humanidade (ibidem).

    Para Martucelli, a instabilidade central da utopia multicultural encontra-se justamente

    aqui: na contradio da dinmica identitria. A ausncia de uma verdadeira equidade,

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    especialmente a existncia de discriminaes ligadas aos particularismos, tendem a traduzir-se

    em apelos e reivindicaes identitrias. Porm, e eis o ponto mais importante: ...quanto mais

    uma sociedade se envolve em programas de equidade, tanto mais existem (seja por depresso

    identitria, seja por essencializao das identidades) reivindicaes identitrias (p.30). O

    desafio e talvez o principal problema do multiculturalismo, diz o autor, provm do carter

    irreprimvel das demandas de identidade, enquanto elas participam do processo de

    modernizao, e sobretudo, das conseqncias de sua vitria sobre os princpios mais

    importantes da democracia.

    A discusso envolvendo o multiculturalismo proveniente dos chamados estudos

    culturais, dos quais McLaren um dos representantes. Os estudos culturais so responsveis

    por uma contribuio importante ao debate envolvendo os conceitos de identidade e cultura,

    pois se amparam na discusso inaugurada pela ps-modernidade, responsvel por um maiorarejamento na teoria das cincias sociais, ao buscar um olhar mais refinado sobre a

    complexidade das relaes humanas, identificando suas particularidades, e questionando a

    ortodoxia dos determinismos macro-econmicos sobre a realidade social. Essa uma

    contribuio inegvel do pensamento ps-moderno nova teoria social.

    Porm, concordamos com Ianni (1993), quando ele afirma que precisamente quando se

    imagina que o pensamento entrou na poca da ps-modernidade, a histria se pe em

    movimento, a mquina do mundo volta a funcionar, as grandes propores se infiltram nas

    singularidades, as totalidades abrangentes ressurgem no horizonte do pensamento cientfico,

    filosfico, e artstico. Para o autor, a modernidade no terminou, apenas continua sob outras

    formas. Recria-se e desenvolve-se em outras e novas linguagens. Inclusive absorve

    criativamente algumas das lies da ps-modernidade.

    Vrias das criaes da ps-modernidade, diz Ianni, fundam-se nas conquistas da

    modernidade. Em ltima instncia, a mesma razo que funda a modernidade est na base dos

    exerccios e criaes da ps-modernidade. Ressalta o autor: Este o horizonte no qual se

    torna possvel imaginar a morte do sujeito, o real como sistema de signos, o simulacro como

    forma do mundo (1993, p.181).

    Nesta altura da histria, acrescenta Ianni, o singular e o universal tanto se impregnam

    de outras e novas mediaes como encontram outras e novas possibilidades de se expressar,

    realizar, desenvolver, florescer. A as relaes, processos e estruturas de dominao e

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    apropriao, integrao e antagonismo podem manifestar-se em outros espaos e tempos.

    Agora, tudo e todos se acham mais atrelados e ativos na mquina do mundo: indivduo e

    sociedade, grupo e classe, etnia e minoria, movimento social, partido poltico e corrente de

    opinio pblica, ideologia e utopia (p.182).

    A exemplo de Horkheimer (1976), lembremo-nos da razo ...enquanto convico de

    que se pode descobrir uma estrutura fundamental ou totalmente abrangente do ser e de que

    disso pode derivar uma concepo do destino humano (p.26). E aliarmo-nos a sistemas

    filosficos que se opem ...a qualquer epistemologia que reduza a base objetiva do nosso

    entendimento a um caos de dados no coordenados e identifique nosso trabalho como mera

    organizao, classificao ou computao de tais dados (id.).

    O multiculturalismo e os estudos culturais, que se caracterizam como construes

    derivadas do pensamento ps-moderno, tm que ser, em nossa opinio, analisados com muitocuidado, j que, como vimos, apresentam algumas contradies importantes, que reduzem e

    limitam seu potencial enquanto estratgia de formulao de polticas que sejam eficazes contra

    o preconceito e a discriminao presentes nas sociedades modernas.

    Adam Kuper (2002) afirma que ainda que a cultura no seja exatamente o mesmo que

    ideologia, com certeza existe um lugar para o relato crtico dos mercadores de cultura, tal qual

    afirmam as proposies centrais dos estudos culturais. No obstante, diz ele: muitos

    antroplogos se sentiro ludibriados pelo programa de estudos culturais. A objeo bvia de

    que, quando a cultura restringida s artes, mdia e ao sistema educacional, ela lida apenas

    com alguns aspectos do que os antroplogos entendem por cultura, e de uma maneira bastante

    peculiar (p.293).

    Tendo em vista a discusso aqui realizada, que apontam para um novo sentido a ser

    atribudo dinmica social nas sociedades globalizadas, buscaremos nessa pesquisa, abordar o

    conceito de identidade a partir da perspectiva definida por processos identitrios, que ao

    nosso ver, se configura num termo mais abrangente, j que permite uma maior mobilidade do

    conceito, proporcionando um campo mais amplo tarefa que estamos buscando desenvolver,

    qual seja, a de analisar os processos envolvendo a retomada de tradies culturais por parte de

    grupos populares, vinculando esses processos a uma reformulao e atualizao do conceito de

    cultura popular.

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    Os processos identitrios tm, assim, uma profunda imbricao com o conceito de

    cultura, sem no entanto, com ele se confundir. Nessa perspectiva, analisamos o conceito de

    cultura, a partir das recentes formulaes desenvolvidas no campo das cincias sociais,

    buscando uma problematizao que nos permita avanar na compreenso do conceito de

    cultura popular e de sua abrangncia nos dias atuais.

    1.2. Problematizando o conceito de cultura

    O conceito de cultura tem sofrido, a exemplo do conceito de identidade, um processo de

    desestabilizao, em funo do amplo debate que se tem estabelecido no s no campo da

    Antropologia, nascedouro desse conceito, como tambm no campo das cincias sociais, como

    um todo, a partir das transformaes ocorridas nas sociedades atuais.Ulf Hannerz (1997) defende que, medida que o conceito de cultura vem se

    popularizando em crculos cada vez mais amplos, ressurge uma forte tendncia para focalizar a

    ateno na cultura unicamente como um marcador de grupos. Afirma o autor que:

    Na poltica de identidade, nos debates sobre multiculturalismo, em muitos contextos de estudos culturais,o termo tem se tornado basicamente um fundamento para a formao e a mobilizao de grupos,geralmente implicando pertencimentos atribudos. Ou, por outro lado, se transforma num instrumento deexcluso social por parte das maiorias dominantes (...) com freqncia essa retrica da cultura est

    estreitamente associada tanto ao poder quanto aos recursos materiais (p.16).

    Proveniente das formulaes tericas desenvolvidas pelos estudos culturais, conforme

    j discutimos acima, essa posio de Hannerz combatida por Marshall Sahlins (1997). Ao

    estabelecer uma crtica s teorias que insistem na diluio do conceito de cultura, ao que

    chama de "pessimismo sentimental", Sahlins defende que a "cultura" - ao contrrio do que

    apregoam muitos trabalhos recentes sobre o tema - no tem a menor possibilidade de

    desaparecer enquanto objeto principal da antropologia, e estende essa afirmao s cincias

    humanas como um todo. Sahlins ressalta que a cultura no pode ser abandonada, sob pena dedeixarmos de compreender o fenmeno nico que ela nomeia e distingue: a organizao da

    experincia e da ao humanas por meios simblicos. A "cultura" est sob suspeita, porque

    marcaria diferenas de costume entre povos e grupos, sobretudo quando visa a populaes

    subordinadas dentro de regimes polticos opressivos.

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    Opondo-se viso de Hannerz, Marshall Sahlins critica o postulado de que a "cultura"

    seria ento, o tropo ideolgico do colonialismo. Segundo esse postulado, a cultura seria um

    modo intelectual de controle que teria como efeito a demarcao dos povos perifricos,

    isolando-os em seus espaos prprios, o que contribuiria para a estabilizao da diferena,

    legitimando dessa forma, as mltiplas desigualdades caractersticas de uma sociedade

    capitalista.

    O conceito de cultura, gestado no interior das relaes de produo da Europa Ocidental

    no incio da poca moderna, carrega os estigmas do capitalismo, repetindo e manifestando os

    conflitos estruturais do sistema de classes que a produziu, e de fato, o conceito de cultura serviu

    para justificar de certa forma, os processos gestados pelo colonialismo desde ento. Porm,

    Sahlins afirma ser essa uma interpretao limitada, pois "...d-se alegada funo de 'cultura'

    uma histria conjetural. Interpretado como inteno originria, seu efeito discriminatrio setorna sua causa histrica. Esse o terrorismo intelectual corrente " (1997, p.45).

    Defende Sahlins que a noo de cultura elaborada primeiramente por Johann Gottfried

    von Herder, antevia relaes entre o imperialismo e a antropologia e se opunha portanto,

    misso colonizadora que hoje se costuma atribuir ao conceito. Pois o fato, diz o autor , "...

    que, em si mesma, a diferena cultural no tem nenhum valor. Tudo depende de quem a est

    tematizando, em relao a que situao histrica mundial.(...)Vrios povos do planeta tm

    contraposto conscientemente sua cultura s foras do imperialismo ocidental que os vm

    afligindo h muito tempo" (1997, p.45). A cultura aparece aqui como a anttese de um projeto

    colonialista de estabilizao, uma vez que os povos a utilizam no apenas para marcar sua

    identidade, como para retomar a autonomia sobre o prprio destino.

    O debate atual em torno do conceito de cultura , assim, caracterizado por uma

    complexidade muito grande. A transformao das dinmicas sociais influenciadas pelo

    fenmeno da globalizao e pelas contribuies do pensamento ps-moderno aqui j descritas,

    o torna um conceito um tanto fluido, o que exige o esforo terico de situ-lo num contexto em

    que a conotao poltica inerente a esse conceito, possa ser explicitada mais concretamente e

    delimitada com maior clareza.

    Nessa direo, Homi Bhabha (1998) afirma que toda uma gama de teorias crticas

    contemporneas sugere que com aqueles que sofreram o sentenciamento da histria -

    subjugao, dominao, dispora, deslocamento - que aprendemos nossas lies mais

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    duradouras da vida e pensamento. A experincia afetiva da marginalidade social transforma

    nossas estratgias crticas e nos fora a encarar o conceito de cultura para alm da canonizao

    da "idia" de esttica, e lidar com a cultura como produo irregular e incompleta de sentido de

    valor, freqentemente composta de demandas e prticas incomensurveis, produzidas no ato de

    sobrevivncia social. A cultura, como estratgia de sobrevivncia tanto transnacional como

    tradutria no sentido de que cada vez mais, as culturas nacionais esto sendo produzidas a

    partir da perspectiva de minorias destitudas, ou como diz Bhabha, traduzidas a partir do

    ponto de vista, da experincia, e da capacidade de organizao dessas minorias. Tendo como

    referncia o lugar hbrido do valor cultural, diz o autor, que o intelectual ps-colonial tenta

    elaborar um projeto histrico e literrio.

    Segundo Bhabha, o espao de negociao que envolve interesse comunitrio ou valor

    cultural, surge na emergncia dos interstcios a sobreposio e o deslocamento de domniosda diferena. A partir dessa formulao ele apresenta questes referentes ao modo de formao

    dos sujeitos nos entre-lugares que so esses espaos de diferenciao e negociao entre

    grupos e culturas, caractersticos das sociedades contemporneas em que o intercmbio de

    valores, significados e prioridades pode nem sempre ser colaborativo e dialgico, podendo ser

    profundamente antagnico, conflituoso e at incomensurvel, quando se trata de estratgias de

    representao ou aquisio de poder.

    Cultura sempre definida em oposio a algo mais, diz Adam Kuper (2002). Trata-se

    da forma local autntica de ser diferente que resiste sua inimiga implacvel: uma civilizao

    material globalizante. A conscincia cultural que se desenvolveu entre as antigas vtimas do

    imperialismo, no final do sculo 20, constitui um dos fenmenos mais notveis da histria

    mundial(p.36). Assim, as diferenas culturais persistem nesse mundo em constante

    transformao, e podem ficar ainda mais acentuadas.

    Afirmava James Clifford (1988), que modos distintos de vida que antes estavam

    destinados a fundir-se com o mundo moderno, reafirmam, no presente, suas diferenas de

    vrias maneiras. Uma guerra cultural csmica est em curso, mas o Ocidente no tem

    garantias de vitria em seus prprios termos. cedo demais, ressalta o autor, para dizer se

    esses processos de mudana vo resultar em homogeneizao global ou em uma nova ordem de

    diversidade. Parece que a dvida de Clifford, expressa ao final da dcada de oitenta, mostra

    indcios claros de ter sido esclarecida, a partir da multiplicao dos movimentos

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    reivindicatrios de carter cultural e identitrio espalhados por todo o mundo atual, ou seja,

    hoje impera, como previa o autor, uma nova ordem de diversidade.

    O debate sobre os temas cultura e diversidade cultural no mais privilgio nem

    est circunscrito aos meios acadmicos. Ganhou tal expressividade, que aparece nos noticirios,

    nos programas poltico-partidrios, no marketing empresarial, nas propostas educacionais, nas

    polticas pblicas, no turismo, no lazer, enfim, adquiriu popularidade e despertou uma certa

    conscincia por parte do pblico comum, sobre a sua importncia e sobre a necessidade de

    trat-lo como um componente fundamental de qualquer iniciativa que vise melhoria das

    condies de vida no mundo atual. A cultura talvez, atualmente, o locus mais significativo

    para se pensar, analisar, vivenciar, experimentar, imaginar, compreender e mesmo definir as

    sociedades contemporneas.

    O carter poltico do conceito de cultura est intimamente ligado s questes referentesao poder, luta de classes, desigualdade e ao sofrimento que foram o motor da histria. E

    concordamos com George Marcus (1991), quando ele afirma que:

    ... as estratgias modernistas, voltadas para os problemas da descrio da formao das identidadescontemporneas onde se realiza a pesquisa etnogrfica, esto, de fato, to claramente direcionadas para osprocessos de contestao, luta, etc. entre discursos oriundos de circunstncias polticas e econmicasobjetivas, que esse processo no precisaria ser descrito mais detalhadamente (...) Longe de ignorar ascondies objetivas tais como processos de coero, o jogo de interesses e a formao de classes, oenfoque da etnografia modernista no experimental e no acesso experincia atravs da linguagem em

    contexto, d a ela condies para um engajamento direto e para a explorao de tais condies, sem quetenha que recorrer a abordagens preexistentes nas cincias sociais para discuti-las (p.217).

    Uma viso que nos auxilia no entendimento dessa questo aquela defendida por

    alguns autores que consideram o conceito de classe social diretamente ligado ao conceito de

    experincia. Classe, como experincia, significa considerar esse conceito como um processo

    subjetivo, vinculado s estratgias de vida, ou s prticas cotidianas de resistncia, que

    segundo Marilda Menezes (2000), no so to visveis como eventos formais e coletivos,

    havendo dificuldades metodolgicas em identific-las assim como compreend-las num quadro

    terico sistemtico5. Harries (1994) contribui para essa discusso, ao afirmar que:

    Proletarizao um processo objetivo, significando uma dependncia crescente da venda da fora-de-trabalho para a sobrevivncia; mas tambm um processo subjetivo, uma experincia que construdapelas pessoas de uma forma especfica a qual expressa em formas diversas e concretas. Conscincia de

    5 Abordaremos a questo envolvendo as noes de experincia e cotidiano no captulo que segue.

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    classe no foi apenas estruturalmente determinada pela economia poltica, mas foi tambm herdada,construda e adaptada pelos indivduos que desejam dar um significado e ordem s suas vidas (p.223).

    Portanto, estamos aqui considerando a teoria marxista e as categorias dela provenientes,

    como instrumentos imprescindveis para a anlise dos processos sociais atuais, e por isso,concordamos com Edward P. Thompson (1981), sobre a atualidade dessa teoria, que no

    entanto, nos desafia para novas possveis interpretaes. Diz Thompson que, o que nos cabe

    fazer, ... interrogar os silncios reais, atravs do dilogo do conhecimento, e medida que

    esses silncios so penetrados, no cosermos apenas um conceito novo ao pano velho, mas

    reordenarmos todo o conjunto de conceitos(p.185). Ao apregoar uma reviso na teoria

    marxista, afirma o autor que ... no h nenhum altar mais oculto que seja sacrossanto de modo

    a impedir a indagao e a reviso (idem).

    Thompson ressalta que Marx partilha com outros grandes e fecundos pensadores (e cita

    Hobbes, Maquiavel, Milton, Pascal, Vico, Rousseau) uma ambigidade inerente ao rigor e

    abertura de seu pensamento. E abrilhanta:

    Fazendo-nos atravessar um umbral, deixa-nos porta; abandonamos velhos problemas para trs, eganhamos, exatamente, uma viso do novo campo de problemas nossa frente, alguns dos quais ele[Marx] pde ver, mas poucos dos quais pde (antecipadamente) resolver. Ele nos situa num novo espaoterico, a partir do qual novos desenvolvimentos alternativos levam frente. Um nome para esse espao ambigidade, o outro possibilidade (p.187).

    O marxismo foi para Thompsom apenas uma evoluo possvel, embora tendo apenas

    uma dbil relao com Marx. Mas a tradio marxista aberta, exploratria, autocrtica foi

    tambm um outro desenvolvimento. Sua presena pode ser encontrada em todas as disciplinas,

    em muitas prticas polticas, e em todas as partes do mundo (p.187).

    A cultura passa a ser, a partir desse vis, um campo de significao e um terreno de luta,

    nos quais os processos de identificao se do de acordo com as necessidades histricas dos

    sujeitos que compem os grupos protagonistas desses processos. A concepo de culturaexpressa no debate aqui apresentado parece-nos, portanto, ser a mais adequada para a

    argumentao que estamos propondo desenvolver nesse trabalho, na tentativa de ampliar as

    possibilidades de compreenso do termo cultura popular, em referncia aos processos em que

    grupos populares buscam retomar suas tradies culturais, e a partir da, analisar os sentidos e

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    significados que constituem esse universo cultural pautado por uma lgica e por saberes

    diferenciados, tarefa de nossa investigao.

    1.3. Cultura popular: um conceito em evoluo

    A cultura popular so as formas que o povo tem de sonharAntonio Nbrega6

    1. 3.1. Cultura Popular e o Romantismo da dcada de 60

    A temtica envolvendo a cultura popular, teve o auge da sua produo terica no Brasil,

    durante a dcada de 60, integrando um amplo movimento que envolveu diversos setores dasociedade: intelectualidade, movimento estudantil, partidos polticos progressistas, movimento

    operrio e campons, classe artstica em geral entre outros, e que aspiravam por mudanas na

    arcaica estrutura social, articuladas em torno de um projeto de democratizao da sociedade

    brasileira.

    Para situarmos, porm, a discusso sobre a cultura no contexto da dcada de 60, temos

    que recuar alguns anos, e trazer as contribuies do ISEB (Instituto Superior de Estudos

    Brasileiros), que na dcada de 50 foi responsvel, atravs dos intelectuais que o integravam,por uma remodelao do conceito de cultura, analisada dentro de um quadro filosfico e

    sociolgico. Ao trazerem a discusso sobre cultura no Brasil, os conceitos de "cultura

    alienada" , "cultura autntica", "situao colonial" e "desenvolvimento", e ao discutirem as

    questes envolvendo o "nacional" e o "popular", esses intelectuais, baseados em autores como

    Hegel, Marx, Gramsci e Fanon, entre outros, foram responsveis pela construo de um

    arcabouo terico que, segundo Renato Ortiz (1994), constituiu-se como matriz de um tipo de

    pensamento que baliza a discusso cultural no Brasil dos anos 60, at bem recentemente.

    A inquietao que orientava os intelectuais do ISEB estaria em definir dois traos

    fundamentais da sociologia brasileira: alienao e inautenticidade. Ao discutir a situao

    colonial de dominao, inspirada em Fanon, os intelectuais do ISEB se propem tarefa de

    6 Epgrafe de prospecto do show de Antonio Nbrega: Cultura Popular no Folclore. So Paulo: SescPompia, setembro de 2002

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    estruturar a "conscincia nacional" . Um exemplo muito claro a publicao de dois volumes

    intitulados Conscincia e Realidade Nacional: o primeiro, dedicado conscincia ingnua,

    alienada, e o segundo, conscincia crtica, desalienada, e que aceleraria o processo de

    desalienao nacional.

    Ortiz considera, porm, que no momento em que os intelectuais do ISEB escrevem, o

    passado brasileiro caracterizado pela ausncia de um "povo". Afirmam a existncia de uma

    sociedade civil que ainda no possui a devida expresso poltica. Ao se colocarem como

    representantes legtimos do "povo", Ortiz entende que: "...o que eles estavam de fato

    procurando realizar, era dar s classes mdias um papel poltico que elas no possuam at

    ento. Neste sentido, a proposta poltica s podia ser reformista, nunca revolucionria" (p.64).

    No havia utopia: a realizao do Ser nacional era uma questo de tempo, cabendo burguesia

    progressista comandar esse processo. Ortiz comenta: "No por acaso que os isebianos seautodefiniam como idelogos, eles estavam presos realidade histrica brasileira e s

    poderiam elaborar uma ideologia que fosse conforme hegemonia da classe dirigente que

    queria modernizar o pas" (1994, p.65).

    Ao estabelecerem que os intelectuais teriam um papel fundamental na elaborao e na

    concretizao de uma ideologia, os isebianos recuperaram, segundo Ortiz, sob os auspcios do

    pensamento mannheimiano, uma concepo leninista de vanguarda. Isto permitiu que o

    movimento pela democratizao da sociedade brasileira, na efervescncia dos acontecimentos

    polticos do final da dcada de 50 e incio da dcada de 60, desenvolvesse toda uma ideologia a

    respeito da vanguarda artstica, e compreendesse o tema da tomada de conscincia dentro de

    uma ao politicamente orientada esquerda.

    Dentre as inmeras experincias ocorridas nesse perodo histrico no Brasil, talvez a

    mais emblemtica tenha sido a do Centro Popular de Cultura - o CPC - que mantinha vnculos

    com a Unio Nacional dos Estudantes. O CPC tinha a compreenso de que o artista que

    praticava sua arte situando seu pensamento e sua atividade criadora exclusivamente em funo

    da prpria arte - ou com objetivos apenas estticos - seria apenas uma pobre vtima de um logro

    tanto histrico quanto existencial. Dizia o anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de

    Cultura, redigido em maro de 1962, que " ...o que distingue os artistas e intelectuais do CPC

    dos demais grupos e movimentos existentes no pas, a convico de que toda e qualquer

    manifestao cultural s pode ser adequadamente compreendida quando colocada sob a luz de

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    suas relaes com a base material, sobre a qual se erigem os processos culturais de

    superestrutura" (Hollanda: 1980, p.123). Essa postura poltica engajada do CPC, claramente

    definida por uma ideologia situada no campo da esquerda, explica o caminho escolhido como

    sendo o da "arte popular revolucionria" . Afirmavam os integrantes desse movimento que

    "...em nosso pas e em nossa poca, fora da arte poltica no h arte popular" (ibidem, p.135).

    Um exemplo dessa produo artstica, engajada politicamente, foi o livro Violo de Rua:

    Poemas para a Liberdade organizado pelo poeta Moacyr Flix (1963) e produzido pelo CPC-

    UNE, que trazia em sua nota introdutria, o seguinte texto:

    Os poetas, ao nosso ver, so os homens da negao, que se revoltam contra a fatalidade traada pelos

    deuses em nome de um destino a ser criado e desenvolvido pelos homens: Prometeu. Da sua ntima

    afinidade com aquele impulso ou projeto de desalienao existente na histria dos homens, sempre marcada

    pelas revolues que o distanciam do ensombreado cho da Necessidade (grifo do autor), para aproxim-lo

    mais e mais do azulado reino da Liberdade (ibidem). Violo de Rua um livro que se coloca, portanto, ao

    lado do proletariado e do campesinato, das suas lutas, das suas aspiraes (p.7).

    Outro exemplo, era uma iniciativa do CPC denominada UNE Volante que percorria o

    pas, levando at as pequenas cidades do interior, peas de teatro, shows, mostras de filmes e

    artes plsticas, organizando debates e discusses com a populao sobre a situao poltica do

    pas, com o objetivo de levar essa arte engajada, e tambm a conscientizao para as pessoas

    que compunham a parte alienada do povo.

    Atravs de uma linguagem essencialista, o CPC assumiu a partir de sua ao cultural,

    uma postura vanguardista de dizer o que o povo e como deve ser, o que deve fazere o que

    deve pensar para que se cumpram as "leis objetivas da histria", trazidas para a conscincia

    popular atravs da "vanguarda revolucionria" e viabilizada atravs da arte e da cultura: mas

    uma arte e uma cultura pensada e elaborada apenas por essa vanguarda intelectual, que teria a

    tarefa de organizar e "conscientizar" o povo com o objetivo de tomar o poder do Estado para

    criar um "verdadeiro Estado nacional" porque "Estado popular".O movimento poltico-cultural que tinha no CPC sua maior expresso - mas no a nica -

    mobilizava boa parte dos artistas e intelectuais ligados a um pensamento de esquerda,

    baseando-se justamente numa busca de elementos da tradio e do passado tendo como

    referncia a cultura das classes populares como uma alternativa para a desumanizao, o

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    consumismo exacerbado e o imprio do fetichismo da mercadoria e do dinheiro reinantes na

    sociedade. Essa volta ao passado, tal qual preconizava esse movimento que causou uma

    efervescncia cultural no pas, durante mais de uma dcada, foi caracterizado por Marcelo

    Ridenti (2000) como "Romantismo Revolucionrio" e seria a inspirao para construir o

    homem novo, uma utopia de futuro, e no seria pois, um romantismo no sentido da perspectiva

    anticapitalista prisioneira do passado, geradora de uma utopia irrealizvel na prtica. Tratava-se

    de romantismo sim, mas revolucionrio. Um poema do livro Violo de Rua ilustra essa

    anlise:

    Mais devagar, meus senhores,Isto um processo histrico.Modstia, meus caros, modstiaE um pouco de conscincia

    Em no se chamarem de autoresPalradoresDe que h milhares de anos de vidaCustou sangue, morte e muitas dores

    (...)Mais devagar, meus senhores,Isto um processo histrico:Vocs no inventaram coisa alguma !Assim como a terra inventa o verdeNa hora marcada pelo cho,A praaA praa que inventa a cidade

    A tristeza dos homens, sua cano.A curva emocionada de suas lutas- A sua revoluo ! (p.101)

    O romantismo seria, segundo Ridenti, uma forma especfica de crtica modernidade,

    caracterizada - em termos weberianos pelo esprito de clculo, o desencantamento do mundo,

    a racionalidade instrumental e a dominao burocrtica, inseparveis do advento do esprito do

    capitalismo. A crtica a partir de uma viso romntica de mundo incidiria sobre a modernidade

    enquanto totalidade complexa, que envolveria as relaes de produo, os meios de produo e

    o Estado. Ortiz (1992) entende que podemos considerar o Romantismo como uma concepo

    revalorizadora da individualidade e do processo de criao. Nesse sentido, corresponderia a

    uma sensibilidade esttica que redimensiona as tcnicas e o gosto artstico. J a compreenso

    de Lwy & Sayre (1995) que esse tipo de romantismo seria uma autocrtica da modernidade,

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    isto , uma reao formulada de dentro dela prpria, no do exterior, caracterizada pela

    convico dolorosa e melanclica de que o presente carece de certos valores humanos

    essenciais que foram alienados. Dizem os autores:

    A viso romntica apodera-se de um momento do passado real no qual as caractersticas nefastas damodernidade ainda no existiam e os valores humanos, sufocados por esta, continuavam a prevalecer -,transforma-o em utopia e vai model-lo como encarnao das aspiraes romnticas. nesse aspecto quese explica o paradoxo aparente: o passadismo romntico pode ser tambm um olhar voltado para ofuturo; a imagem de um futuro sonhado para alm do mundo em que o sonhador inscreve-se, ento naevocao de uma era pr-capitalista (Lwy & Sayre, p.44).

    Boa parte dos integrantes desses movimentos artsticos e intelectuais tinha o marxismo

    como referncia e por isso, no admitia ser classificada como iluminista, muito menos como

    romntica. Mas, para Ridenti, embora tentando superar essas perspectivas, eles em certa

    medida apenas as fundiam de diversas formas, ao buscar no passado uma cultura popular

    autntica para construir uma nova nao, ao mesmo tempo moderna e desalienada. Nesse

    sentido, Marilena Chau (1989) chama a ateno para essa contradio, comparando o que ela

    chamou de perspectivas romntica e ilustrada:

    A perspectiva Romntica supe a autonomia da Cultura Popular, a idia de que, para alm da culturailustrada dominante, existiria uma outra cultura, autntica, sem contaminao e sem contato com acultura oficial e suscetvel de ser resgatada por um Estado novo e por uma Nao nova. A perspectivaIlustrada, por seu turno, v a cultura como resduo morto, como museu e arquivo, como o tradicional

    que ser desfeito pela modernidade, sem interferir no prprio processo de modernizao. Romnticose Ilustrados pensam a Cultura Popular como totalidade orgnica, fechada sobre si mesma, e perdem oessencial: as diferenas culturais postas pelo movimento histrico-social de uma sociedade de classes(p.23)

    Chau tece ainda uma crtica a essa postura afirmando que essa vanguarda "popular"

    representada por artistas e intelectuais militantes da dcada de 60, definia a cultura por trs

    divises: a cultura alienada (a da classe dominante); a cultura do povo (tosca, desajeitada,

    atrasada, trivial, ingnua, sem dignidade artstica nem intelectual, conformista); e a cultura

    popular-revolucionria (produzida pela vanguarda que v o povo como heri, combatente doexrcito revolucionrio de libertao nacional e popular). A cultura popular seria aquela

    produzida por artistas e intelectuais que "optaram por ser povo" e se dedicam

    "conscientizao do povo". Existiam ento, segundo a autora, dois povos ou duas culturas

    populares: o povo atrasado, inconsciente, e sua cultura trivial e inculta; e o "bom povo",

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    consciente, culto, avanado, e a cultura vanguardista que o far realizar as "leis objetivas da

    histria".

    Essencialista, normativo, prescritivo e pedaggico, na opinio de Chau, esse discurso

    populista uma das formas exemplares do autoritarismo da sociedade brasileira, em particular

    dos intelectuais. Essas caractersticas foram as que mais marcaram os anos 60.

    1.3.2. Cultura Popular e as transformaes da dcada de 70 e 80

    Os anos 70 e 80 no Brasil so marcados por uma ampla movimentao da sociedade no

    sentido da luta pela sua democratizao. Sobretudo no final da dcada de 70, a partir de umcerto afrouxamento da ditadura militar, comeam a surgir iniciativas de mobilizao popular,

    sobretudo nos grandes centros, onde a reivindicao por direitos polticos e sociais, aliada a

    uma determinada abertura do regime, permitiram a organizao de um nmero muito grande de

    movimentos sociais, que iam desde a articulao de novos partidos polticos, at a criao de

    associaes de donas de casa, passando pela organizao de movimentos como o MST

    (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), rearticulao de sindicatos, associaes de

    bairros, movimento estudantil e ecolgico, entre muitos outros, contando inclusive com uma

    participao importante da igreja catlica, atravs da sua vertente progressista conhecida como

    Teologia da Libertao7.

    Boa parte desses movimentos sociais nutre-se da experincia, das vivncias, das formas

    de organizao e das vises de mundo provenientes da cultura popular, j que os sujeitos

    protagonistas dessas novas formas de organizao social, so em grande parte oriundos das

    camadas da populao diretamente envolvidas com esse universo em que as tradies, a

    ritualidade, a simbologia e a ancestralidade so as referncias mais importantes. o

    aprendizado cultural, desenvolvido em comunidade, sendo utilizado agora de forma mais

    7 A Teologia da Libertao desenvolvida a partir da dcada de 60, por uma srie de telogos e intelectuaiscomprometidos com situao de misria e opresso vivenciada no terceiro mundo - sobretudo na AmricaLatina e frica - utilizando como fundamentao terica, o campo do materialismo histrico-dialtico. Ofrade brasileiro Leonardo Boff um dos seus maiores expoentes. A Teologia da Libertao acabouinfluenciando o surgimento de um grande nmero de movimentos populares em boa parte dos pasesconsiderados perifricos.

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    sistematizada, organizado em funo de uma reivindicao especfica e objetiva, pragmtica, de

    resultado mais imediato, sem contudo, se distanciar do ethos que determina essa coeso social

    em torno das reivindicaes que originam tais movimentos.

    As transformaes ocorridas na sociedade brasileira nesse perodo so acompanhadas

    tambm por um desenvolvimento muito grande do capitalismo, em nosso pas, reestruturando

    as relaes polticas, sociais e econmicas, favorecendo o surgimento de uma indstria cultural

    com uma capacidade cada vez mais ampliada de impor modelos e padres de consumo,

    criando, segundo Carlos Guilherme Mota (1990), (....) uma rede ampla de comunicao em

    que o potencial crtico da cultura popular foi neutralizado e mobilizado para os quadros de

    massificao realizada, agora, em escala massiva, sombra da ideologia da cultura brasileira

    (p.285). Na verdade, segue o autor, numa era do capitalismo monopolista, em rea perifrica, a

    massificao possui o papel de elemento desintegrador e nivelador das variadas formas deproduo cultural, realizando essa tarefa, paradoxalmente, em nome da cultura nacional.

    Com a finalidade de integrar as classes populares ao desenvolvimento capitalista, as

    classes dominantes, afirma Nestor Canclini (1983), desestruturam mediante procedimentos

    distintos, mas que so subordinados a uma lgica comum as culturas tnicas, nacionais e de

    classe, reorganizando-as num sistema unificado de produo simblica

    Esse fenmeno, na verdade, ocorre em escala mundial, ocasionando o que Marcelo

    Ridenti (2000) denomina de enfraquecimento da arte poltica, em que o capitalismo

    inviabilizaria as possibilidades de criao coletiva de uma arte engajada politicamente, em

    funo de uma ocupao desse espao de criao cultural por uma lgica predominantemente

    mercantil.

    Se por um lado, ento, o surgimento dos Movimentos Sociais organizados como forma

    de uma reivindicao especfica, se vale da experincia e dos conhecimentos oriundos da

    cultura popular como combustvel para desenvolver sua prtica social, por outro lado, a

    indstria cultural, em franco desenvolvimento, em funo do capitalismo que se estabelece

    cada vez com mais fora no pas, se apropria dessa cultura popular, massificando-a e

    estabelecendo as condies de transform-la em mero entretenimento, objeto de consumo fcil,

    superficial e ligeiro por parte de parcelas cada vez maiores e menos crticas da populao

    brasileira.

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    Nesse sentido, Marilena Chau (1989) avana em relao compreenso da cultura

    popular, trazendo a noo de ambiguidade, ao definir dialeticamente as categorias de

    conformismo e resistncia como caractersticas que se completam numa totalidade complexa e

    contraditria do que ela entende ser possvel definir como cultura popular. Argumenta ela que o

    termo ambiguidade no supe falha, defeito, carncia de um sentido rigoroso se fosse unvoco,

    mas sim, " ... a forma de existncia dos objetos da percepo e da cultura, percepo e cultura

    sendo elas tambm ambguas, constitudas no de elementos ou de partes separveis, mas de

    dimenses simultneas que somente sero alcanadas por uma racionalidade alargada, para

    alm do intelectualismo e do empirismo" (1989, p.123).

    Afirma a autora que, freqentemente, encontramos no Brasil uma atitude ambivalente e

    dicotmica diante do popular. Este encarado ora como ignorncia, ora como saber autntico,

    ora como atraso, ora como fonte de emancipao. Talvez seja mais interessante consider-loambguo, "... tecido de ignorncia e de saber, de atraso e de desejo de emancipao, capaz de

    conformismo ao resistir, capaz de resistncia ao se conformar. Ambigidade que o determina

    radicalmente como lgica e prtica que se desenvolvem sob a dominao" (p.124).

    Argumenta Chau que o mais importante no momento, perceber que as interpretaes

    ambguas, paradoxais, contraditrias que coexistem no mesmo sujeito, criando a aparncia de

    incoerncia, na verdade exprimem um processo de conhecimento, a criao de uma cultura ou

    de um saber a partir de ambiguidades que no esto na conscincia dessa populao, mas na

    realidade em que vivem. essa relao com o conhecimento ou com a cultura enquanto

    conjunto de idias (tanto quanto de prticas) que ela concebe como uma relao entre

    conhecimento e poltica.

    Tanto a resistncia quanto o conformismo so categorias construdas por Chau num

    cenrio que explicita as relaes de poder na sociedade de classes, sob o ponto de vista da

    dominao econmica, poltica e cultural. O poder hegemnico representado pelo Estado,

    insiste em controlar e ordenar segundo seus critrios, a disperso e a fragmentao que

    caracterizam a multiplicidade e a pluralidade das manifestaes populares no Brasil, no sentido

    de uma integrao homogeneizadora desse "popular". Essa estratgia de controle trata, atravs

    do prisma "regionalista", de converter o popular em patrimnio nacional e assim esvaziar o

    sentido de transgresso, rebeldia, insubordinao, subverso e autonomia que essas

    manifestaes incorporam. A resistncia e o conformismo combinados, alternados ou

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    dissimulados, referem-se pois forma ambgua pela qual as classes populares enfrentam a

    situao de dominao e a tentativa de controle por parte do poder representado pelo Estado ou,

    pela classe hegemnica que lhe d sustentao.

    Embora Chau leve em considerao o cotidiano e as aes especficas, prprias e

    localizadas de cada sujeito ou grupo social, de acordo com cada situao particularizada que

    enfrentam nos contextos os mais diferenciados possveis - e reside a, a nosso ver, a principal

    contribuio da autora que avana e muito, em relao concepo de cultura popular

    predominante at ento no Brasil - pensamos que as categorias sociolgicas com as quais opera

    nessa obra escrita na dcada de oitenta, na difcil tarefa de discorrer sobre a noo de cultura,

    ainda carecem de um refinamento maior, pois acabam caindo nas armadilhas generalizantes a

    partir das oposies dominante/dominado, opressor/oprimido, etc..., que, se por um lado no

    deixam de ser legtimas como referncias para uma anlise sociolgica mais global, por outrolado, no do conta da complexidade presente nas sociedades contemporneas, onde as

    particularidades e as especificidades das relaes sociais somente podem ser captadas por um

    olhar mais refinado e menos dicotomizado, que, somente a partir da problematizao dos

    conceitos de identidade e cultura, pode ser alcanado, conforme j tratamos anteriormente.

    No se trata aqui, portanto, de negar as relaes de poder e hegemonia entre as classes

    sociais, nem a ideologia que determina e sustenta essa dominao, a partir de uma leitura

    sociolgica desse processo, pois o opressor no deixou de existir, nem muito menos o

    oprimido. Para isso, como afirmamos anteriormente, as categorias de anlise provenientes das

    teorias marxistas ainda so muito vlidas e imprescindveis para o momento atual, e na nossa

    viso, no podem, em hiptese alguma, ser substitudas por categorias ps-modernas que

    negam essas anlises estruturais de sociedade.

    Entendemos porm que, ao recuperarmos a discusso sobre cultura popular no Brasil,

    alm das categorias materialistas histrico-dialticas nas quais esse trabalho se apia,

    necessitamos de um instrumental de anlise mais amplo que possa ter condies de estabelecer

    o dilogo e a comunicao entre os vrios campos do saber e as vrias racionalidades

    existentes, a partir de uma elaborao conceitual que possa se valer da contribuio da

    interdisciplinaridade presente nas Cincias Sociais, sem cair na armadilha da oposio entre

    universalismo e particularismo, ainda predominante nessa rea, a qual Immanuel Walerstein

    (1996) critica com propriedade como sendo um falso dilema, mas, na tentativa de superar essa

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    dicotomia a partir da busca de um universalismo pluralista, que segundo o autor, ...s assim

    nos permitir captar a riqueza das realidades sociais em que temos vivido e vivemos ainda

    (p.90) e dizendo mais, afirma que ....para l do argumento bvio de que preciso dar mostras

    de que so hoje, finalmente, ouvidas as vozes dos grupos dominados (ou o mesmo que dizer,

    daqueles que at agora se viram quase totalmente ignorados), h que enfrentar a tarefa, mais

    rdua, de demonstrar como que a incorporao das experincias destes grupos fundamental

    para se chegar a um conhecimento objetivo dos processos sociais (p.126).

    Por que sobrevivem e proliferam estes universos fictcios num mundo que

    reiteradamente se submete racionalidade da eficincia ? (1983, p.16), perguntaria Nestor

    Canclini ao se referir s tradies culturais de forma geral. E continua o autor: A nossa

    capacidade em transcender as necessidades materiais e projetar-nos rumo a um futuro que no

    deriva automaticamente do desenvolvimento econmico, ainda que no deva ser encarada, maneira do idealismo, como o componente fundamental e distintivo do homem, merece lugar

    numa interpretao da cultura(idem). Fato com o qual concordamos e que assumimos na

    presente anlise.

    1.3.3. Cultura popular: novas possibilidades de abordagens

    A discusso sobre o conceito de cultura popular, ao incluir a modernidade8 como marco

    terico-metodolgico, segundo Edson Farias (1997), leva a um novo fronte de distines

    fronteirias na esfera cultural, interseccionando campos e fazeres, ainda que permanea a

    nfase na diversidade scio-simblica. Para o que interessa aqui, diz o autor, a viso

    essencialista sobre a cultura popular, a meio caminho entre a "resistncia" e a "manipulao",

    perde o sentido, conforme j dissemos, com o advento das massas urbanas, assimtricas e

    heterogneas. Vale considerar que o deslocamento terico vem conjuntamente com aquilo que

    Farias define como sendo a premissa de que:

    ... os elementos de circulao e fluxos informativos-comunicacionais redefinem na base a categoriamesma de cultura popular, fazendo-a interagir num contexto espesso dos relacionamentos sociais

    8 O advento da modernidade e suas conseqncias para a constituio do paradigma que prevalece no campodas cincias sociais, sero abordados com maior profundidade no captulo seguinte.

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    globalizados e transculturais. Isso no significa a eliminao dos arranjos populares-nacionais, mesmoporque os Estados-Naes constituem ainda agentes decisivos na cena mundial. Conquanto percebe-seque as transformaes no conceito, do margem a introduzir no debate outras armadilhas identitrias noredutveis matriz romntica que circun