Capitalismo e Escravidão No Brasil Meridional

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     pela influência construtiva que exerce no desenvolvimento da sociologia no Brasil

    com reconhecimento e amizade

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    •ÍPOuC-tto t " TÍ *nS*tt .

    1 ' i / t / l s u . t l / V / * *

    “ . . . dois tipos contrários, © no fundo osmesmos: o escravo e o senhor.”

    Joaquim NABUCOj O mandato da raça  negra.

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    pela segunda parte da Introdução, que, como o resto do livro,refere-se a questões concretas, passíveis de serem explicadas deforma mais simples e clara.

    I

    Em primeiro lugar, é necessário precisar a significação metodológica implícita na afirmação de que é possível reconstruir inter-pretativamente, através do método dialético, uma “ totalidade con

    creta” . Os propósitos teóricos sintisticamente defin idos nestestêrmos possuem uma série de implicações metodológicas que devemser explicitados para que se delimitem, sucintamente, as possibilidades e o alcance da interpretação dialética na socio logia. Essadiscussão se impõe porque, graças a motivos que não cabe esclarecer aqui, a sociologia constituiu-se, como ciência, a partir detrabalhos de investigação e de esforços de elaboração teórica que,em regra, aproveitaram muito pouco da contribuição de Marx ede outros autores que tentaram utilizar o método dialético naanálise dos fenômenos sociais. Antes ao contrário, nos círculosacadêmicos mais conspícuos formou-se a convicção de que ainterpretação dialética, por estar imediatamente vinculada a umponto de vista filosófico e a uma atitude definida diante dosproblemas sociais, não é capaz de adequar-se aos cânones da explicação científica que impõem a ausência de juízos de valor nasanálises sociológicas.

    Entretanto, nos trabalhos de Marx, como em algumas obrasde exegese e em certos trabalhos de investigação (principalmentede história) e mesmo de elaboração teórica (basta citar Freyer eMannheim), a análise dialética não se confunde com a crítica dasociedade a partir de posições valorativas previamente assumidas,nem se reduz à técnica do desmascaramento ideológico. Do pontode vista científico, portanto, o problema para a utilização dainterpretação dialética estaria na determinação dos procedimentosmetodológicos requeridos por êsse tipo de abordagem e na discussãoda compatibilidade dêsses procedimentos com a problemática sociológica . Tentarei discutir êsses problemas em suas implicações mais

    gerais partindo da análise do conceito de totalidade. Para êssefim, recorri, comparativamente, a outras modalidades de interpretação sociológica que também lançam mão de procedimentostotalizadores. procurando ressaltar a especificidade e as condiçõesde utilização legítima da interpretação dialética na sociologia.

    0 conceito de totalidade não se refere, ou pelo menos não seresume, na dialética, à reprodução de tôdas as condições, fatores,

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    mecanismos e efeitos sociais que interferem na produção de umfenômeno, processo ou situação social. Na explicação dialética oconceito de totalidade é utilizado como um recurso interpretativopeio qual se visa compreender, como Marx escrerveu explicitamenteno posfácio da Contribuição  à Crítica da Economia Política,  nãoa identidade,  o padrão de invariância, mas as diferenças em umaunidade, tal como são engendradas numa totalidade determinada.Dêsse ângulo, portanto, a importância metodológica do conceito

    de totalidade não diz respeito apenas à necessidade que êle supõeda retenção e explicação de situações sociais globais; a abordagemtotalizadora transforma-se numa  perspect iva de interpretação  paraa análise de cada um e de todos os fenômenos sociais. A totalidadeassim entendida pressupõe, não apenas a existência de diferençasnuma unidade, mas também a existência de “ conexõe s orgânicas”que explicam, ao mesmo tempo, o modo de inter-relacionamentoexistente entre as determinações que constituem as totalidades eo próprio processo de constituição  das totalidades. Noutros têrmos,quando se afirma que a análise dialética na sociologia assume umaperspectiva totalizadora, diz-se, implicitamente, que ela visa descobrir as determinações essenciais,  capazes de explicar tanto a formação dos padrões que regem as formas de interação social quantoas condições e os efeitos de sua manifestação.

     A perspectiva totalizadora tem, portanto, na interpretação dialética, uma intenção heurística. Por certo, também noutras modalidades de explicação sociológica, recorre-se à noção de totalidade,e. em algumas delas, isso é feito com propósitos  explicativos   enão meramente descritivos. Entretanto, o problema não está emsaber se a dialética, como a interpretação funcionalista ou aabordagem “ estruturalista” etc., utiliza a noção de todo,  mas estáem determinar como,  ou seja, mediante que requisitos metodológicose com que intenções cognitivas constroem-se as totalidades nasdiversas formas de interpretação. Como o obje tivo da presentediscussão se restringe à caracterização do procedimento totalizadorna interpretação dialética, resumir-se-á a análise à comparaçãodêsse procedimento com uma ou outra técnica diversa de inter

    pretação, para salientar a peculiaridade dessa forma de concebere explicar teoricamente a realidade social.

     Assim, também na análise funcionalista a noção de “ todo ”desempenha um papel de primeira importância. Para muitos fun-cionalistas as análises ao nível dos sistemas sociais globais oudas unidades funcionais totais, transformaram-se mesmo em postulado para a determinação das funções sociais. Os autores que

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    redefiniram os procedimentos interpretativos da análise funcional,querendo evitar as associações imediatas entre a análise doafunções sociais, necessárias para a manutenção de uma totalidadesocial, com os pressupostos conservadores de  equilíbrio natural do sistema e de necessidade mecânica,  tanto dos componentes dosistema^ como de suas funções, não deixaram de sublinhar aimportancia da defini ção precisa das diversas totalidades ou “ unidades funcionais” :

    . " £ ? ? studo crItico d5£,te postulado ("postu lado da unidade fun-^ ®C*rreJque Uma teoria de análise funcional precisa começar pela. definição das unidades sociais servidas por funções sociais aaaas e reconhecer aos elementos culturais a possibilidade depossuir múltiplas conseqüências, algumas as "totalidades soo oúe í “ !. graus variáveis de integração social,o que evita anoção conssrvadora de sistemas em equilíbrio

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    com que as totalidades requeridas pela análise funcionalista, mesmoquando a investigação não seja de orientação empiricista, caracterizem-se pela tentativa He reter as condições empíricas de produção dos fenômenos sociais.

    Procedimentos globalizadores têm sido empregados, por outrolado, em grande parte nas tentativas de investigação sistemáticade situações, processos ou fenômenos sociais, sejam funcionalistasou não os autores. Uma das preocupações dominantes nasinvestigações de campo nas ciências sociais tem sido exatamentea descrição de situações globais, seja através da análise de umsistema social inclusivo (como em grande parte dos “estudos decomunidade” ), seja na explanação descritiva de processos sociais,instituições ou grupos determinados. A antropologia social inglesa, por exemplo, desenvolveu uma série de trabalhos clássicossôbre grupos tribais, como The Andaman Is lande rs,  de Hadcliffe-Brown, em que são reproduzidas as condições globais de existência social, descritas e empiricamente explicadas na sua comple*xidade, unidade e diversidade. Noutras obras, como em  Argonauts  of the Western Pacific  de Malinowski, são discutidos todos osefeitos de uma determinada instituição sôbre o conjunto de cadaum dos aspectos particulares da cultura e da organização social

    de um povo (2 ), Entretanto, a preocupação de explicar a realidade social nas condições de suas manifestações empíricas é,em geral, dominante nesse tipo de trabalho.

     Na  interpretação dialética, as relações que se procura determinar numa totalidade também estão referidas de maneira imediata aos processos sociais reais, e também existe o escopo dereproduzir o real como concreto. Porém, neste caso, o concretoaparece como o resultado de um processo de conhecimento marcado por um movimento da razão que implica numa elaboraçãomuito mais complexa do que a abstração dos padrões gerais, aindaque essenciais, que regulam a interação nas condições empíricasde sua manifestação. Mesmo a descoberta que se obtém nasexplorações descritivas das condições e fatores cujos efeitos resultamna produção , numa determinada “ordem” , de um sistema integrado

    ou de uma situação social dada, é insuficiente para os propósitoscognitivos da intepretação dialética. Nesse último tipo de expli-

    (2) Sôbre o grau de generalização que ee   obtém neste tipo deinvestigação, ver Florestan Fernandes, " A reconstrução da Realidade nas Ciências Sociais", Fu nd am entos Emp ír icos da Expl ica ção Soc io lóg i ca  , op. c i t . ,  págs. 33-34.

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    caçao, para que «s relações que se procuro determinar numa totalidade assumam sentido heurístico, não devem scr retidas concep-tualmente como simples reprodução no pensamento de relaçõesempíricas, nem basta que a teoria seja capaz de descobrir 09padrões que regem as conexões entre essas relações. 0 ponto departida imediato, o real, transfigura-se na análise dialética, numasérie de mediaçõe3 pelas quais as determinações imediatas e simples(e por isso mesmo parciais, abstratas)  alcançam inteligibilidade,

    ao circunscreverem-se em constelações globais (concretas). Porisso o concreto foi definido em conhecida frase de Marx, como“a síntese de muitas determinações, a unidade do diverso” . Masa operação intelectual pela qual se obtém a “ totalidade concreta”implica em que o movimento da razão c o movimento da realidadesejam vistos através de relações recíprocas, e determinados emsua conexão total. Por isso, a interpretação totalizadora nadialética faz-se através da elaboração de categorias capazes dereter, ao mesmo tempo, as contradições do real em têrmos dosfatores histórko-sociais efetivos de sua prod ução (e, neste sentido,categorias “saturadas històricamentc” , empíricas) e de categoriasnão definidas empiricamente, capazes de desvendar as relaçõesessenciais que aparecem de imediato , como afirmava Marx, “ misti-fiçadas” (3) .

    Sociologicamente isso significa que a interpretação dialéticaopera com relações que se manifestam em dois planos. Existemmotivos, fins e condições sociais que os agentes sociais se representam em função das manifestações que assumem empiricamente.É evidente que, tanto como representações sociais quanto comoresultados efetivos de representações, êsses fenômenos se exprimematravés de regularidades objetivas que podem ser verificadas eexplicadas sociologicamente (em têrmos de conexões estruturais,funcionais ou de sentid o). Porém, a explicação científica devepassar da análise dêsse plano para a descoberta das conexõesque as regularidades empíricas mantêm com as condições, fatores,e efeitos  essenciais  que determinam realmente a dinâmica e osentido do processo social. É óbvio que os motivos e fatores que

    (3) Estas explanaçSes fundam-se noa seguintes trabalhos de Marx:

    a) El Cap i t a l , cr i t i ca d e Ia economi a po lít i ca ,   trad. de Wen-  ceslao Roces, Fondo de Cultura Econômica, México, 1946, 3 tomos.

    b) Crít ica, da Econ om ia Polít i ca,   trad. Florestan Fernandes, EditOra Flama, S. Paulo, 1946.

    c) M isèr e de   Ia Ph i l osoph iC j   Êditlons Sociales, Paris, 1947.

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    operam no plano das relações essenciais r.ão caem necessariamenteno nível de consciência social, ou aparecem deformados.

    Entretanto, os dois planos da totalidade concreta não sãoconcebidos teoricamente como se um fôsse a conseqüência irreversível ou mecânica do outro, nem, muito menos, como se os processosEociais tal qual os agentes sociais os representam se constituíssemcomo meros “ invólucros” sem eficácia sôbre as condições quedeterminam verdadeiramente o processo social. Ao contrário, as

    relações entre os dois planos são dialéticas, e, na construção dastotalidades sociais, é necessário elucidar as conexões recíprocasque os mantêm como uma unidade entre pólos opostos, diversos,mas integrados.

    Êsse procedimento metodológico explicita-se na análise da sociedade capitalista em O Capital.  Por um lado, há um movimentoda razão para a determinação das relações essenciais e a revelaçãoconseqüente da forma imediata que essas relações assumem narealid ade:' determina-se a mais-valia como conceito básico d osistema capitalista e ipso fado   desvenda-se sua aparência empírica«ob a forma de lucro, o mesmo sucedendo no que diz respeito àtaxa de mais-valia e à taxa de lucro:

    “ainda, que a taxa de lucro difira numèricamente da taxa de  

    mais-valia, enquanto mais-valia e lucro sâo realmente o mesmo e iguais numèricamente, o lucrc  é,  contudo, uma forma transfigurada de mais-valia, forma na qual se delineiam e se obscurecem sua  origem e o segrêdo de sua existência. Na realidade o lucro n&o 6 outra coisa senão a forma sob a qual se manifesta a mais-valia, 

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     A mais-valia não se inscreve como um dado da realidade empírica, como o lucro . Entretanto, só a partir daquele conceito   épossível entender o sistema capitalista como uma totalidade concreta'.  corno num movimento de determinações essenciais (classecapitalista e classe proletária produzindo mais-valia em condiçõesdeterminadas de organização das forças produtivas) que se objetivam sob formas que ao mesmo tempo as negam e exprimem(o lucro, o mercado, a circulação e distribuição de mercadoriasetc.).

    Por outro lado, o real fetiomênico nao possui a significaçãode uma construção do espírito destituída de conteúdo, sentido eeficácia. Ao contrário, êle é um modo de ser determinado queexprime um dos níveis da totalidade concreta, e mantém relaçõesdialéticas com as relações essenciais que não se objetivam empiri-camente. Por isso, a concorrência e as leis do mercado no sistemacapitalista não sao analisadas como simples formas mistificadas deexistir e de ter consciência da vida capitalista, mas como formasreais,  que surgem num dos níveis do movimento do capital considerado como um processo total:

    “Aqui, no Livro III, não se trata de formular reflexões gerais sôbre esta unidade (a unidade do processo de produção e do processo de circulação), mas, pele contrário, de descobrir e expor as formas concretas que surgem do processo de movimento do capital  

    considerado como um todo. Em seu movimento real os capitais se enfrentam sob estas formas concretas, nas quais tanto o perfil do capital no processo direto de produção como seu perfil no processo de circulação não são mais do que dois momentos específicos e determinados. As manifestações do capital, tal como se desenvolvem neste livro, vão-se aproximando, pois, gradualmente, da forma  sob a qual se apresentam na própria superfície da sociedade, através da ação mútua dos diversos capitai3, através da concorrência e tal como se refletem na consciência habitual dos agentes da produção" (5). = 1

    O movimento da razão ao elevar-se do particular para o geralpercorre, pois, um circuito nc qual se desenvolve uma dialética

    assume como realidade mistificada: “Partindo de uma taxa demais-valia dada e de uma magnitude desta taxa, a taxa de mais-  -valia não expressa senão o que em realidade é; uma medida distinta da mais-valia na qual se toma como base o valor do capital em seu conjunto e não simplesmente o valor da parte do capital  d© que nasce diretamente (o capital variável — F. H.) mediante a troca com o trabalho. Mas na realidade (quer dizer, no mundo aos fenômenos) as coisas ocorrem inversamente pág. 78.

    (5) Marx, E l C a p i t a l ,   tomo III, vol. I, pág. 57.

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    entre o abstrato e o concreto. É assim, e não pelo recurso a umprocedimento metodológico empirista, que se constitui uma totalidade concreta. Por isso Marx diz que o concreto aparece comoo ponto c!e chegada quando é o verdadeiro ponto de partida: nãoha mediação sem o imediato e vice-versa. Entretanto, se o real,como imediato, reaparece, mediatizado pela teoria, na totalidadeque o circunscreve, e se as categorias são expressões de relaçõeshistóricas (6), disso não decorre que o ponto de partida e o ponto

    de chegada definem-se por relações de identidade, ou que sejapossível pensar o objeto independente dateoria. Com efeito, amercadoria que é o ponto de partida para a análise docapitalismoe tambem o ponto de chegada. Mas, no primeiro momento, ela é,como a  forma elementar  de riqueza nassociedades capitalistas,um objeto exterior, uma coisa apta para satisfazer qualquer tipode necessidade humana'’ (7 ); percorrido o circuito de constituição e explicitação do “ sistema capitalista”, a mercadoria rede-Ime-se como categoria iiistórico-social, nega a forma inicial queassumira e se revela, depois de explicitados os elos que a vinculama totalidade ao sistema, como uma forma de manifestação damais-valia:

     j ™erüadoria ae apresenta à primeira vista como um valori  j   ' como um conjunto de propriedades desfrutáveis. Em

    sua serventia social, entra um jôgo de trocas, adqul-rtl I?™ ~ - T ,n°Vas propriedades e uma nova forma de valortituMo V ^ ° ori înário é negado no fenômeno constituído por êle Essa substância, chamada valor, não é ngdnd!T tr J^eSma‘ maS é pel° contrário constituída pela própria relaçãomrnítada ^ m° Um S6r- autônomo-

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    meta fisicamente, razão e realidade, de forma estanque, t l e é   dado,como representação, através de um esquema de significações que,por sua vez, só tem sentido com referência a uma realidade determinada (5).

    Em certo sentido, portanto, a análise das totalidades na dialética possui uin ponto de contacto com as correntes “ estruturalistasque procuram elaborar, através do conceito de estrutura concebidocomo um modelo,  um instrumento conneptual-metodulógico para a

    determinação (e conseqüente explicação) das condições básicasou nucleares que definem as possibilidades de interação numa sociedade dada. O procedimento metódico para a análise estrutural,tal como é entendida, por exemplo, por Lévi-Strauss e Nadei, levaà construção de uma matriz,  pela qual são ordenados teoricamenteos padrões e combinações possíveis de padrões de comportamento(1 0) . Entretanto, a semelhança no procedimento é form al: nume noutro caso os requisitos metodológicos para a generalizaçãodependem *da elaboração interpretativa d e1categorias capazes deexprimir determinações gerais. Nisso, .contudo, cessa a ana ogia.Na verdade, a técnica de elaboração e representação das totah-dades através do método dialético difere da técnica utilizada pelosestruturalistas. Êstes elaboram modelos que exprimem relações

    (9) "A própria ciência histórica burguesa visa, é verdade, estudos concretos; ela acusa mesmo o materialismo h i s t ó r i c o de violar

    - a unicidace concreta dos acontecimentos históricos. Seu « r o esta em pretender encontrar êsse concreto no indivíduo histórico em pirico ttrate-se de um homem, de uma classe ou de umc na consciência que é dada empiricamente (quer dl£er- P?**psicologia individual ou pela psicologia das massas ). Porém, ela crê ter encontrado o que há cie mais concreto está o mais  longe possível desse concreto: a soctcdade como totaUdade COn- cre ta ,   a organização da produção num nlvel detemunado ^ desenvolvimento social e a divts&o em classes que ela oper.a na ® ° ^ ad®u Lukacs, G., His to i re e t Consc iencc de Classe .   Les Êditlons du Minuit Paris 1960. O trabalho de Lukacs aqui r e f e r i d o , especialmente o artigo sôbre consciência de classe do - e s m o Uvro são fundamentais para a análise de conceito de totalidade na dialética.

    (10) Lévi-Strauas, Claude, “La notion de ^trueture en Eth-nologie”, An t r o p o l o g i e S t r u c t u r a l e ,  Librairie Plon, Pari|-Nadei, S. F., The Th eor y o f Soc i a l S t r i i c t u r e,  Cohen &   West, London, 1957. Existem diferenças, que nao cabe an al is^ aqui,na maneira como êstes autores caracterizam o conceito de estatura  e quanto ao valor heurístico e metodológico da abordagem eatru turallsta” . Sôbre o conceito de estrutura em geral, ver Firtn, Raymond, "The meaning of Social Anthropology”, E l eme n t s of s o - cia l Orga ni zãHon,   Watts & Co., London, 1961.

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    vazias de conteúdo significativo, pnra assim reter interpretativa-mente, como  padrões,   quaisquer tipos dc ação social concreta. Jáa análise dialética procura sintetizar com seu procedimento tota-lizador tanlo o que Marx chamava de determinações gerais  (osprocessos sociais recorrentes) como as determinações particulares (os processos emergentes), vislumbrando nestas o elemento explicativo do sentido das totalidades sociais O 1)-

    Graças a êsse procedimento é possível explicar os fenômenos

    sociais nas condições reais de sua produção sem que, ao mesmotempo, a técnica interpretativa imponha, como condição de validade, que a análise se circunscreva de maneira estreita àscondições sociais empiricamente dadas. Com efeito, a  explicação  dialética é obtida quando, no mesmo movimento da razão, osfenômenos são concebidos e analisados com referência ao singulare ao geral, com relação ao qual o particular nãc é senão suadiferencia ção. Noutras palavras, ao mesmo tempo que a interpretação dialética na sociologia visa explicar os fenômenos sociaisem têrmos de hic et nunc,  só alcança êste tipo de conhecimentodialèticamente quando é capaz de ultrapassar, através da razão, aslimitações do  fato,  compreendendo-o através de um  padrão.  Istoé feito, porém, sem que a vexpl icaçã o se resuma à pesquisa dasdi-terminações gerais e sem que, muito menos, se transformem os

    fatos em conseqüências  de padrões gerais.Tal técnica interpretativa não deixa, é certo, de limitar as

    possibilidades de generalização do conhecimento obtido àquelas■ situações ■ que tendam a reproduzir o mesmo tipo de v inculaçãoconcreta entre as determinações essenciais (particulares) e as determinações gerais, e, por outro lado, não deixa de infletir o focod'i análise para os processos de diferenciação dos sistemas sociais,puis é nas determinações particulares que o método vai buscar onuxo explicativo das totalidades concretas. Não obstante, essaslimitações garantem a possibilidade de alcançar-se, ao mesmo tempo,uma explicação que transcenda os limites do conhecimento factual,

    (11) Sôbre as determinações gerais e as determinações particulares que operam nas totalidades, bem como sôbre a explicação  a partir destas últimas ver. especialmente, Marx, Con tr ib ui ção   d Crít i ca da Econ omia Po lít i ca ,  trad. P. Fernandes, Editôra FJama, S. Paulo, 1946, págs. 203-204. Ver ainda O Cap i t a l ,  já citado, tomo H, capítulos 1 a 4, e F. Fernandes, “Os Problemas da Indução na Sociologia", Fun da men t os Emp ír i cos da E xp l i cação So- cio lóg i ca , op . d t . j    cap. VI, esp. pá.g. 136.

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    sem apelar para formas de análise que implicam logicamente naeliminação das condições efetivas de produção das atividades sociais.

    Chega-se, dessa forma, ao resultado fundamental sôbre aspossibilidades de aplicação do método dialético na sociologia.

     Através dêle é possível lidar com os fenômenos sociais tanto emfunção do que possuem de singular e concreto como em funçãodas normas gerais que se exprimem, como diferenças, nas singularidades. Por isso, o m éto d o d ia léti co per m i te a análi s

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    na interpretação dialética. Na abordagem eslruturalista  e  entreos funcionalistas que apelam para a noção de desequilíbrio funcional ou para a idéia de “ disfunção” para explicar o processode mudança, êste acabou sendo visto em têrmos rnecanicistas ouatravés do artifício metodológico que consiste na representação daestática e da dinâmica social como dois estados do fluxo social(12 ). Na interpretação dialética, ao contrário, o fluxo socialé representado como um continuo.  Sociologicamente o contínuo pode ser explicado porque a ação é vista ao mesmo lempo comoresultado motivado por condições exteriores  e como praxis   ( 13),e porque os sistemas sociais não são concebidos como “ sistemasfechados”, mas com o “ sistemas abertos”. O curso das modifi caçõessociais, na medida em que a ação também é  praxis,   vai dependerdos propósitos socialmente definidos pelos grupos sociais e dacapacidade de organização e de modificação que os agentes sociaisforem capazes de dest-nvolver. A mudança estruturai não e representada, pois, como um momento dc desequilíbrio de um sistemadado na direção da recuperação do equilíbrio em outro tipo desistema. Contrariamente, ela decorre da tensão entre ações humanas criadoras e das contradições que se formam no interiorda própria estrutura social. Essa é sempre encarada, dessa forma,como estrutura que está em modificação graças às contradições

    sôbre as quais repousa e graças à ação humana criadora.Os processos de mudança são diali>ticamente analisados, portanto, como resultantes da própria , atividade humana concreta que,no processo incessante de realizar os padrões estruturais e fun-

     j cionais de integração, nega-os, provocando tensões c contradiçõessociais cuja resolução (superação) consiste na criação de novasformas de existência social.

    II

    No presente trabalho procurei guiar-me por êstes cânonesgerais da dialética marxista. Apenas, como o livro diz respeitoà análise de um processo histórico-social, a estrutura do trabalho

    (12) Para a crttica, do ponto de vista do próprio método funcionalista, dessa representaç&o da dinâmica social, ver P. Fernandes, "O   método de interpretação funcionalista na sociologia , Já citado.

    (13) Sôbre o conceito de prcwis ver KarI Marx, "Thèses sur Feunerbach”,

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    de váiias encarnações históricas do comportamento senhorial, mascomo o resultado variável e específico de constelações histórico--soeiais determinadas.  Por isso, esboça-se nesse capitulo umaanálise que é, ao mesino tempo, diacrônica. A noção de momento passa a ser decisiva nélc para a caracterização sociológica: as categorias sao válidas para constelações histórico-^ociais precisas (1 +).

    Entretanto, só rios capítulos terceiro e quarto alcança-se realmente a perspectiva totalizadora. No capítulo terceiro { “ Senhores

    e escravos na ordem escravocrata gaúcha” ) procura-se definir asrelações entre os senhores e os escravos tanto em função de suasdeterminações gerais (abstratas), como em função das determinações particulares que eram engendradas pelos modos concretosde interação entre ambos nas diversas condições particulares deprodução social da sociedade rio-grandense. Neste capítulo, aanálise é, simultaneamente, particular e geral: a caracterizaçãoformal das relações entre senhores e escravos (com o relações deviolência e de alienação mantida pelos efeitos da violência ) exprime-se de forma particular em cada situação singular, e cadasituação singular (a estância, a família, a charqueada, o mercadourbano) revela, em sua unicidade, as determinações gerais media-tizadas pelas formas particulares de existência. Nenhum dos doispólos, contudo, dissolve-se um no outro.

    No capítulo quarto (“ Estrutura Econômica e Política da Sociedade Escravocrata” ), por fim, o sentido da escravidão na sociedade- gaúcha define-se em sua totalidade. A  praxis  escravocrataque aparecia nos dois primeiros capítulos como um conjunto deações- operando num sistema composto por padrões já constituídosde comportamento, e no terceiro capítulo começou a delinear-secomo relações de tensão entre sêres humanos, é vista em funçãode uma situação histórico-social determinada de produção da existência. A sociedade escravocrata gaúcha constituiu-se como uinatentativa para organizar a produção mercantil capitalista numaárea onde havia escassez de mão-de-obra. Desde o início, contudo,o sistema assim constituído trazia em seu bôjo um conjunto de con-

    (14) No primeiro capítulo a análise  ê h i st ór i ca ,  no sentido de que se ordenam os eventos conforme sua sucessão temporal. Começa-se a distinguir,  ê certo, um "tempo social” (como, por exemplo, quando se relacionam, como um momento, as formas de  ocupação e exploração econômica com a quantidade de mão-de-otra escrava utilizada), mas êsse só se concretiza como passo metodológico no segundo capitulo.

     24

    tradições que definiam o travejamento básico de suas possibilidades de existência. A cscravidão fôra o recurso escolhido paraorganizar a produção em grande escala visando o mercado e olucro (formação do sistema capitalista), mas o desenvolvimentopleno do capitalismo (a exploração da mais-valia relativa) era,em si mesmo. incompatível com a utilização da mão-de-obra escravaatravés da qual não é possível organizar técnica e socialmente aprodução para obter a intensificação da exploração da mais-valiarelativa, Essas contradições se aguçaram e evidenciaram, desdeo momento em que a produção escravocrata gaúcha entrou emrelações de competição com a produção assalariada platina, queacelerou sua desagregação. A partir dêsse momento torna-se possível descrever e  explicar  a sociedade escravocrata gaúcha na suadiversidade c unidade, como sistema  e como  praxis  objetivada.

     A ação social, em sua singularidade e criatividade, passa a ser compreensível porque se explicitaram as condições gerais de possibilidade da ação, e as condições gerais (o sistema escravista deprodução e a sociedade escravocrata), por sua vez, podem ser teoricamente analisados como resultantes de tensões, contradições eopções humanas concretas, historicamente situadas. 0 jô go dialéticodo particular e do geral (mediatizado pelo movimento da razão quedeterminou as categorias essenciais de sistema capitalista  e  escra

    vidão)  permite a compreensão da totalidade como concreto. Porisso, neste e nos dois capítulos subseqüentes, a análise passa donível da discussão das condições funcionais e estruturais de manutenção do sistema escravocrata para a análise da atividade socialconcreta, vista a um tempo, como resultado social e como procedimento de invenção da história.

    Com efeito, a partir do quarto capítulo, e, principalmente,no quinto (“ A desagregação da ordem escravocrata” ) e no sexto(“ 0 negro na sociedade de classes em formação” ), o andamentoda exposi ção se altera: a história é vista “en se faisant” . A problemática se enriquece graças à discussão das questões relativasà “ consciência da situação7’, que se torna indispensável para explicar,

     já agora sem o risco de ser mera análise mistificadora, as condições particulares pelas quais a situação social se apresenta historicamente aos agentes sociais e para determinar as linhas dealternativas possíveis que se abriam para a ação, entendida como

     praxis.

    No quinto capítulo analisam-se tanto os requisitos de funcionamento do sistema servil como o processo de desagregação da ordemescravocrata (em têrmos dos interesses sociais em jôg o e da

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    consciência da situaç ão) . Retoma-se a discussão sôbre o sistemaescravocrata porque só na desagregação do sistema revelam-se deforma nítida as condições, fatores, processos e mecanismos queinterferem no seu funcionamento: a violência como vínculo básicoda relação escravista aparece claramente na antiviolência, tambémviolenta, do escravo que se rebela; e, por outro lado, a consciênciadas condições de funcionamento do sistema evidenciam-se, paraos coevos, nos momentos de sua desagregação: a impraticabilidadede o capitalismo expandir-se além dc certos limiles através da es

    cravidão demonstra-se no esforço ingente de criação de formasde retribuição pecuniária aos escravos no período de dissoluçãodo regime. A discussão sôbre a desagregação do sistema foifeita através da análise dos dois processos que diretamente abalaram a escravidão no sul: a imigração e a abolição.

    No quinto capítulo e no capítulo final a exposição se desenvolve de forma a lidar com os vários níveis da totalidade concreta:analisam-se, simultaneamente, as condições da a ção (estruturais eorganizatórias), a consciência real e possível da1situação social, e aação como  praxis. Vêem-se, a um tempo,'os efeitos sôbre o comportamento do negro livre exercidos pela escravidão e pelas representações dos brancos sôbre os escravos (a socialização parcial doescravo, as expectativas assimétricas nas relações entre brancos e

    negros etc., resultando na anomia c na desmoralização do gruponegro), e as possibilidades abertas pela consciência possível eefetiva dêste estado de coisas e pela ação do negro para a transformação da situação histórico-soc ial. Paralelamente, os problemasdiscutidos deixam de ser relativos às condições gerais da  praxis do negro para circunscreverem-se à temática da transformação dessascondições pela  praxis  do homem-negro. Chega-se assim ao teimo,tendo partido da análise do escravo como mercadoria com a análisedo negro enquanto homem, evidenciando-se com isso o propósitomais geral do presente trabalho, que é o de estudar um momentoda história da luta do homem contra a alienação.

     A indicação sumária da temática e da perspectiva de abordagem dêste trabalho sugere, pois, que a sociedade escravocratagaúcha foí analisada, simultâneamentc, tanto em têrmos das condições de coexistência e de mudança, como em têrmos da  praxis social  e da objetívação desta  praxis   num conjunto de regras relativamente estáveis e integradas de interação. Entretanto, a análisenão pode ser qualificada nem de  estrutural,  nem de  funcionalista,  e isto se evidencia ao explicitar-sc a historicidadc suposta pelanoção dialética de totalidade social.

     26.

    Em certo sentido seria possível, sem dúvida, analisar processos sociais históricos ou diacrônicos do ponto de vista estrutu-talista e do ponto de vista funcionalista. Sabe-se que Lévi-Strauss,por exemplo, acredita que “o método histórico não é incomp atível, de forma alguma, com a atitude estrutural” , apesar de osfenômenos sincrônicos oferecerem uma homogeneidade relativa queos torna mais fáceis de estudar que os fenômenos diacrônicos (15 ).Por outro lado, graças aos esforços de investigação e de sistema-tização teórica de autores como Merton, Florestan Fernandes e

    Talcott Parsons, a moderna teoria funcionalista redefiniu os procedimentos de análise e interpretação utilizados por seus precursores,riue a haviam constituído como um meio de investigaçao adequado;tpenas para a análise de fenômenos sincrônicos (16), sendo capaz,modernamente, de analisar, dentro de certos limites (17), fenômenos

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    Noutros têrmos, a análise funcionalista e a análise estrutural,tanto ao definir a integração estrutural e funcional, quanto ao lidarcom os proceasos de alteração de uma ordem social qualquer,acabam por tornar a ação sociai (de indivíduos ou de grupos)isenta de tensões dialéticas. É-Ihes estranha a idéia de uma açãoque se faz a si mesma” , através da negatividade, em condi ções

    concretas e determinadas, e, ípso fa ct o,  não cabe a discussão, naquelas perspectivas, sôbre o sentido das ações e sôbre as transformações de sentido. Os estruturalistas mais lúcidos, como Lcvi-Strauss, sabem que, “ em mitolog ia com o em lingüística, a análiseformal coloca imediatamente uma questão: se n t i d o  ” (19). Mas,neste caso, há uma cisão metodológica entre o momento da análiseformal e o momento da análise de sentido. Da mesma forma, osfuncionalistas, pretendendo escapar às críticas que tornam o funcionalismo solidário com uma visão conservadora do mundo, estabeleceram categorias capazes de redefinir a noção de equilíbrio atravésdo recurso à idéia de funções que se neutralizam por disfunções.Porém, umas e outras são concebidas com o “ fôrças” , externas àatividade negadora do homem, de cujo jôgo aparece uma resultante :

     "E m qualquer caso, um elemento pode ter, ao mesmo tempo, conseqüências funcionais e disfunci onais; isto dá lugar ao apareci

    mento do problema importante e difícil de estabelecer o padrão de resultado liquido do feixe- de conseqüências.” (20)

    Na análise dialética, ao contrário, 03  requisitos metodológicospermitem, como é óbvio, explicar a atividade social em têrmosde conexões de sentido. Além disso, neste tipo de interpretação nãohá necessidade, logicamente, de operar em têrmos de processosestanques ou mecânicos quando se trata da passagem de fenômenossincrônicos para diacronicos. De fato, a sincronia e a diacroitiainserem-se, na dialética, como pólos cujo circuito incessantementerefeito produz, ao mesmo tempo, a simultaneidade e a sucessão:

    lidar com significações dadas:  “ela toma sociedades já constituídas como objeto de investigação e as estuda de modo a reter como se processa atualmente (ou seja, no lapso de tempo considerado) o exercício das atividades vitais para a existência das coletividades humanas” (pág. 272).

    (19) Lévi-Strauss, Claude, "Magie et Religion”, A n t h r o p o   l og i e S t ruc tu ra l e j op . c i t . ,  pág. 266.

    (20) Merton, R. K., op. c i t . ,  pág. 51.

     "Considerando em seu conjunto, o capital aparece, pois, simultaneamente e coexistindo no espaço em suas diferentes fases. Mas  cada uma de suas partes passa constantemente, e por turno, de uma  fase a outra, de uma a outra forma funcional, funcionando sucessivamente através de tôdas. Estas formas são portanto formas fluidas, cuja simultaneidade acha-se determinadaa por .sua sucessão ( . . . ) “êstcs processos especiais não são mais do que momentos simultâneos e sucessivos do processo total. É a unidade dos três ciclos, e não a interrupção de que falamos acima, que realiza a  continuidade do processo total. O capital global da sociedade possui sempre esta continuidade e seu processo representa sempre a unidade 

    dos três ciclos” (21).

    É a reprodução das formas de interação que leva à transformação (basta pensar no ciclo do capital total em conexão comas crises ). Isto fica evidente quando se relembra que o circuitodialético não se resolve numa identidade e quando se pensa amudança não em função de fôrças opostas que produzem umaresultante,  mas em função de “ tensões” entre determinações humanas que, ao permutarem incessantemente e simultaneamente osentido que possuem, transformam reciprocamente suas qualidades,recriando-se. Por isso. a análise das condições de coexistênciaatravés do método dialético é, ao mesmo tempo, a análise dascondições de sucessão.

    Diante dessas possibilidades, o artifício metodológico funcio-nalista parece pobre para interpretar as conexões funcionais quese estabelecem na mesma sociedade quando esta sociedade se configura em constelações sociais diversas em momentos distintos.Êle se resume à pesquisa de grupos de conexões válidos paraca d a f a se    histórico-socia l, vistas descontinuamente. Entre um padrãoestrutural ou organizatório e outro há um hiato: o método funcionalista é cego para compreender a transformação em suas implicações globais. Supõe requisitos para a elaboração metodológica,que retiram a historicidade peculiar do comportamento humano(a negatividade), e não c capaz de representar as vinculações reciprocas e contraditórias entre a simultaneidade e a sucessão, queexprimem o movimento da história.

    Finalmente, procurou-se reconstruir as totalidades sociais nestetrabalho como totalidades singulares:

    "O   marxismo aborda 0  processo histórico com esquemas univer- salizantes e totalizadores ( . . . ) Mas em nenhum caso, nos trabalhos

    (21) Marx, Karl, El Cap i t a l , op . c i t . ,  tomo H, pág. 112.

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    de Marx, esta perspectiva pretende impedir ou tomar Inútil a apreciação do processo como totalidade sínjtííar. Quando êle estuda, por exemplo, a breve e trágica história da República de 1848, nâo  se limita — como far-se- ia hoje — a declarar que a pequena burguesia republicana traiu o proletariado, seu aliado. Ao contrário, éle tenta mostrar esta tragédia no pormenor e no conjunto. Se êle subordina os fatos anecótlccs à totalida.de (de um movimento, de uma atitude), é através daqueles que pretende descobrir esta. Noutros têrmos, o marxismo empresta a cada acontecimento, além  do sua significação particular, um papel de revelador: como o princípio que domina a pesquisa é c da procura do conjunto sintético,  

    cada fato, uma vez estabelecido, 6   interrogado e decifrado como parte de um todo; é sôbr e êl e,  pelo estudo de suas falhas e de suas "sflbre-significações" que se determina, a titulo de hipótese, a totalidade no interior da qual êle reencontra sua verdade. Assim, o marxismo vivo é heu r íst i co :   com relação à pesquisa concreta, seus princípios e seu saber anterior aparecem como regu lado res .  Jamais, em Marx, encontram-se en t i dades:   as totalidades (porexemplo, “a pequena burguesia” em O 18 B r um ár i o  ) são vivas; definem-se por elas mesmas, nos quadros da pesquisa” (22) .

     As implicações dêsse procedimento no presente trabalho atingemdesde a forma expositiva adotada até as -modalidades de investigação utilizadas e as técnicas interpretativas empregadas. Emtêrmos simples, a partir desta perspcctiva é possível a utilizaçãodo método dialético de forma heurística porque o real não é dadoa priori,  mas constitui-se pelo esforço analítico da investigação.

    Com isso evita-se a criação de novos  Franksteins  que, em casocontrário, acabariam sendo criados, como muitas vêzes foram, emnome de um método que desejava acabar com êles. Nesse pontoo paradigma pode ser tanto Marx quanto Max Weber na  Ética 

     Protestante e o Espírito do Capitalismo.  Em qualquer dos doiscasos, o método não é empiricista, mas em ambos a interpretaçãoprende-se a um momento analítico, que condiciona as possibilidadesde globalização. Sem sólida base empírica a análise dialética nasociologia desfaz-se, enquanto análise criadora, num formalismoabstrato tão lastimável quanto qualquer tipo de escolástica, e acabapor transformar “a significação em intenção, o resultado em ob

     jetivo realmente visado” .

    Fica patente portanto que, se por um lado a interpretação

    dialética na sociologia parte de uma atitude totalizadora e univer-salizante, por outro lado, em nome dêsses princípios nada justificaas tentativas de muitos marxistas dc transformar o processo de

    (22) Sartre, J.-F ., "Quest ion de Méthode”, Cr i t i que âe la  Ra ison Dia l ec t i quo ,   Libralrie Gallimard, Paris, 1960, pág. 27.

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    conhecimento em mera procura dc fatos e situações empíricas capazes de provar a ve r d a d e   contida nos esquemas abstratos dedeterminações gerais. É claro que existem determinações comunsc elas desempenham funções definidas na análise dialética. Forem,o conhecimento dos processos históricos sociais depende, como eE a b i d o , não dessas determinações em si mesmas ou de sua verificação particular (que suporia a identidade entre o comum e osingular), mas das relações entre o geral e o particular numatotalidade concreta. Neste processo dialét ico são exatamente as

    determinações específicas que, na medida em que diferenciam astotalidades, constituem-se como chave da interpretação.

     "Para atingir êsse fim explicativo, precisa o especialista pôr om evidência o "cará ter essencial" do fenômeno investigado. (. .. .)  O essencial,  numa pesquisa de relações que operam causalmente  mas que se alteram continuamente em sua configuração e atividade, em determinados períodos de tempo, é naturalmente algo que permita explicar como  e  por que  se produzem determinadas alterações da ordem social. Precisa ser, forçosamente, um fator construtivo e operativo, que contenha aquilo que Marx chamava de determinações comuns” (na linguagem sociológica moderna: as condiçoes elementares e os processos sociais que se repetem ou «correntes) e aquilo que êle entendia como as determinações particulares (e oue nós chamamos, atualmente, de condições sociais emergentes e processos sociais in  flu x).   de maneira tal que as segundas possibilitem uma elaboração interpretativa causai” (23).

    Por êsses motivos, procurei encarar os eventos particularesatravés de uma perspectiva capaz de torná-los fatores criadores nainterpretação sociológic a. Não tentei iluminar exteriormente osprocessos histórico-sociais analisados com a utilização de esquemasinterpretativos elaborados sôbre o negro, a sociedade escravocrata,t. capitalismo ou a sociedade de classes a partir de situações concretas de outras áreas. É evidente que qualquer dessas categoriaspossui determinações comuns e que essas, nesta qualidade, nãoforam relegadas a segundo plano. Não obstante, no esforço defazer análises concretas, as referências sôbre os escravos, os negrosi; a sociedade escravocrata do Brasil em geral não ^contaram paraa reconstrução da sociedade escravocrata gaúcha, não havendo no

    texto qualquer referência empírica que não diga respeito expressamente à região considerada, e era nenhum caso as interpretações

    (23) Fernandes, F., "Os problemas da indução na sociologia”, Fun dam en tos Empír i cos da Exp l i cação Soc io lóg i ca , op . d t „ pagina 124.

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    são analógicas. A comparação foi utilizada, porém como recurso inlerpretativo,   para res3altar a3 características diferenciais da áreaestudada, como, por exemplo, na discussão sôbre a produção mercantil nas charqueadas ou na análise das condições particularespelas quais se fêz no sul a Abo lição . É óbvio que muitos processos sociais e econômicos que operavam no Rio Grande do Sulnão podem ser explicados ;endo-se em vista apenas a situaçãolocal; neste caso, indiquei cs limites impostos à explicação pelanatureza do fenômeno, e a interpretação só foi tentada quando

    se dispunha de evidências gerais suficientes para compreender oprocesso em causa como uma totalidade.

    O cuidado na determinação precisa dos fatos ou situações ena construção “ analítica” (24) das totalidades sociais permitiu queos requisitos de aplicação do método dialético relativos à naturezadessas totalidades como “ totalidades em processo de pro dução ” ,constituídas através da  praxis  social, íôssem preenchidos nas descrições e interpretações levadas a efeito. Tentei explicar os processos sociais, as situações e os sistemas sociais não do ponío devista da história já decorrida, quando tudo parece ter-se dirigidona direção de finalidades engendradas por condições dadas, mas dopoiito de vista da história como realização da atividade humanacoletiva.^ Realização, é certo, na qual os fins visados e os resultados

    conseguidos não são coincidentes, e onde a necessidade  criada ]>elosfatos ja estabelecidos indica, nas grandes linhas, o curso provávelda açao, mas que sem a referência direta à atividade signifi. antedos homens agindo em comum torna-se opaca para a compreensãocientífica.

    Devo advertir, ainda, que não se tentou explicar a relaçãoentre fms desejados, condições de realização das ações e resultados obtidos, como uma sucessão de fatores externos uns aos outros,ou opostos pela própria natureza (como condições subjetivas individuais, por um lado, ê fatores independentes da açao humana particular, por out ro) . Dêsses equívocos procurei guardar-me nas interpretações, graças à utilização do conceito de  praxis,  que nadamais é, com efeito, senão:

    iíh Íh í   E/ tá ,Cl?r ° que a referência à construção "analítica” dastacão on do a' -T°d ° 0 Procedilnent° dialético de interpre-lá indinL?, r   ]1S6 supoe a realização do circuito abstrato-coneretoa ^ aPenas a° procedimento heurístico que evitaa  pri £ f a Partir de tot£Üidades abstratas, definidas

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    “uma passagem de objetivo a objetivo pela interiorização; oprojeto, como superação subjetiva da objetividade na direção daobjetividade, enlaçado cnlro as condições objetivas do meio e asestruturas objetivas do campo dos possiveis. representa,  em  si mesmo, a unidade em movimento da subjetividade e da objetividade, determinações cardeais da atividade. O subjetivo aparece, então, comoum momento necessário do processo objetivo. Para tomarem-secondições reais da  praxis,  as condições materiais que governam asrelações humanas devem ser vividas na particularidade das situaçõeaparticulares (25).

    (25) Sartre, J.-P., op. cit,,  pág. 66.

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    V

     A DESINTEGRAÇÃO DA ORDEM 

    ESCRAVOCRATA ■

    Neste capítulo analisa-se um conjunto complexo de questõesque, direta ou indiretamente, são essenciais para a compreensãoda sociedade escravocrata gaúcha e para a avaliação dos efeitosde sua desagregação tanto sôbre o destino do homem negro comosôbre as possibilidades, abertas pela Abolição, de redefinição dasrepresentações que os brancos mantinham sôbre os negros e dasformas de consciência e de comportamento dos escravos. O capítulofoi dividido em dois tópicos nos quais são analisados os processosbásicos que aceleraram o fim do “antigo regime” no Rio Grandedo Sul, a saber, a imig ração e a abo liçã o. Os resultados alcançados com a discussão das condições e efeitos dêsses processospermitem completar o conhecim ento da sociedade escravocrata. Istoporque alguns aspectos das regularidades funcionais e das condiçõesestruturais que garantiam a exeqüibilidade do sistema escravocratarevelam-se melhor através da análise dos momentos de dissoluçãodo sistema: nêles aguçaram-se as contradições sôbre as quais seassentava a escravidão.

    Paralelamente, procurou-se mostrar, na discussão da Imigraçãoe da Abolição, como a análise científica dos processos sociais sóalcança inteligibilidade plena quando são consideradas, simultaneamente, as condições estruturais e funcionais subjacentes à praxis  humana, o sentido emprestado socialmente à ação e o graude consciência do processo social que historicamente é possívelatingir. A partir dessa perspectiva suponho ter determinado a

    dialética que existia entre as exigências da situação social, osobjetivos e projetos que orientavam a ação e a consciência da situação que podia ser socialmente alcançada no período de desagregação da ordem escravocrata gaúcha. As contradi ções entre êssesníveis do real, o desencontro entre os objetivos visados e os resultados finais atingidos, a inexeqüibilidade, em têrmos das condições

     206

    objetivas, de muitas das soluçxes propostas e objetivos perseguidos,e, finalmente, os limites impostos à ação, em muitas circunstâncias,pela impossibilidade do desenvolvimento de formas de consciênciaadequada da situação real, não foram obscurecidos pela análise.Da mesma maneira, o processo histórico não foi interpretado apartir da realidade já constituída, como se as soluções encontradasnão pudessem ter sido diferentes ou como se as exigências dasituação tivessem conduzido necessariamente a ação humana aoresultado histórico obtido. Numa palavra, procurei, na mesma

    medida em que determinava as condições para a ação, inclusiveas que permitiam a consciência da situação, compreender essascondições como, ao menos em parte, frutos da ação e dcs desígnioshumanos.

    1.  A Imigração e a Escravidão

    O sistema escravocrata', por condições inerentes a si mesmo,constituía, como vimos, um obstáculo para o desenvolvimento dasfôrças produtivas e para a formação plena do sistema capitalistade prod ução no Rio Grande. As conseqüências dêste processo naeconomia gaúcha agravaram-se consideràvelmente desde o momentoem que se interrompeu o suprimento regular de mão-de-obra com

    a cessação do tráfico. 0 êxodo de braços para as “Provínciasdo Norte” acelerou, mais ainda, o processo de desorganização daordem servil no Sul. Desde 1850 os Presidentes da Província sequeixavam da evasão dos escravos e da pequena entrada de“ peças” para substituírem as que eram exportadas. O movimentomigratório da mão-de-obra escrava afetava diretamente as rendasda Província, por causa da taxa de 32$000 paga por cada nôvoescravo introduzido no Rio Grande. Por isso, a preocupaçãoinicial dos Presidentes foi corrigir o desequilíbrio fiscal ocasionado pela suspensão do tráfico e pela demanda crescente deescravos pelas fazendas do “norte” : “ Decresceu este imposto(sobre os escravos introduzidos na Provincia) no ultimo anno, porque é sabido que houve affluencia de exportação de escravos, e

    não de importação, o que obrigou a tomar medidas a tal respeitona lei do orçamento em vig or” , dizia Patrício Corrêa da Câmaraem 1857 (1) . Por essa época, o preço de cada escravo já orçava

    (1)  Re latór io  já citado, pág. 69.

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    em mais de um conto de réis (2 ). Contudo, apesar das indica çõesrelativas à evasão de escravos desde a década de 50, os efeitosreais da cessação do tráfico só se manifestaram no Rio Grandedepois de 1865 e, de forma crescente, nos anos posteriores a1870 (3).

    Tanto a extinção do tráfico como a contínua desvantagemdos produtos básicos do Rio Grande do Sul em face dos produtosdo Prata acabaram por refletir-se de alguma forma nas preocupações

    dos responsáveis pelo governo e dos beneficiários da economiario-grandense. Efetivamente, a partir de meados do século àsantigas queixas contra os Poderes Centrais por causa da tributação,os charqueadores, exportadores e administradores da Província acrescentavam, como um dos males da economia gaúcha, a “ escassezde braços” .

    Foi, portanto, sob a forma de “ problema de mão-de-obra” ,que a questão servil se colocou, inicialmente, nas cogitações dosgaúcho. E, nesta qualidade, apresentou-se de forma ambígua,porque, como vimos, o mal era a escravidão e não a falta deescravos, e porque, na realidade, não deixava de existir mão-de-obra potencialmente disponível, havendo na realidade má distribuição da mão-de-obra e, sobretudo, desperdício no seu empregograças à ociosidade gerada pela própria escravidão, como indicao texto de Soares Andréa já citado. De fato, o segmento dapopulação que vivia errante, ou que estava à margem da economiade mercado, deveria ser grande, sem contar a população indígenaque, variando de período para período, chegou a ser considerável.

    (2) No mesmo relatório citado acima, à pág. 67, o Presidentese queixa de que, apesar dos escravos venderem-se por mais de1.000$000rs., o crescimento de impôsto de meia sisa, de 1854 a1856, não fôr a acentuado. Isto aconteceu porque havia, evasãode renda, pois as vendas se faziam através de “e scriptos pa rticula res” .Sem escritura pública o movimento real de venda de escravos eraincontrolável.

    (3) Com efeito, segundo dados contidos no  Re lat ór io   BarrosPimentel de 1864, pág-, 47, a relação entre entradas e saídas deescravos pela barra da Província acusava ligeira vantagem a favordo número dos que ingressavam na Província isto no período compreendido entre 1859 e 1863. Acre ditava o Presidente que êsseaeram os únicos registros seguros sôbre movimentos de população.Durante o mesmo período houve um aumento de 5.829 escravos napopulação da Província. Mas isso se explica porque, nessa época,houve expansão na produção de charque, conforme se pode ver pelatabela anexa ao cap. I.

     208

     A crer-se na escassa documentação disponível sôbre o assunto, parteponderável da população liberta regredia, do ponto de vista econômico , à condição de produtora da própria subsistência {4 ).Entretanto, não só o sistema de trabalho escravo tendia a tornar-sea forma de trabalho por excelência e, nesta medida, impedia odesenvolvimento do trabalho livre, como existiam razões sócio--culturais que tornavam o escravo fôrro e seus descendentes livrespraticamente inaproveitáveis para o trabalho regular. Smith analisou essa questão a partir de um ângulo preconceituoso, mas

    sugestivo para a compreensão dos motivos pelos quais a fôrçade trabalho disponível apresentava-se como inaproveitável do pontode vista dos produtores do século dezenove. Diante do que observarana vida da família de um pescador mulato que habitava uma ilhafronteiriça a Pôrto Alegre, disse o viajante americano: “ Ha umaclasse como esta em todos os paizes, extrato inferior da civilização,mais apparente talvez na America do Sul, porque é facil vivern’estas plagas ubertosas, e . porque as raças mestiças, tão comunsaqui, herdaram os hábitos inertes e descuidadosos de seus antepassados indios e africos; apenas alguns têm a ambição deerguer-se da vida animal. Augmentaram as listas da população,mas para o estado são verdadeiro zerOj não fazendo bem nemmal; quase nada trazem ao mercado e ainda menos levam para

    casa; vivem ao deus dará, satisfeitos quando têm provisão paraum dia e palhoça que os abrigue. Hão de desapparecer em grandeparte, à medida que da terra se forem apossando gentes maisindustriosas; hão de submergir-se e morrer diante da onda deimigração européia, Pois que morram! Ê o unico serviço quepodem prestar ao paiz, e a lei inexorável do progresso determinousua extineção, Não lhes contesto sua felicidade presente, e seuviver pittoresco têm certo encanto, não ha duvida. Tambem umaarvore morta é pittoresca, mas prefiro a viva” (5) . É certo que,apesar do descaso com que se olhava o aproveitamento dessapopulação ociosa para a produção mercantil, sua existência nãodeixou de provocar reação nas cogitações sôbre o problema dainão-de-obra, mesmo antes da supressão do tráfico, como se infere

    (4)  Ver , para exe mp lo, os te xt os em que Sa lnt -Hila ire se re fer e anegros e mulatos que viviam nos campos, transcritos no cap. I.Sôbre a existência errante, na campanha, de amplos segmentosda população rural, há referências em alguns outros relatórios. Ve r, p. ex.,  Re lat óri o  de 1856 do Barão de Muritíba, pág. 7.

    (5) Smith, op. cit.j pág. 43.

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    dc texto do Relatório de Caxias (6) de 1846: “ É uma grandedeshumanidade o deixarmos vagar por esses desertos invios semos socorros da Religião c da civilização esses restos dos primeiroshabitantes de nosso Paíz, que tão uteis podiam ser, como muitosdelles nos tem sido, emquanto que a custa de tantos perigos edesprezos vamos buscar braços africanos que nos ajudem” .

    Porém, também desde antes do fim do tráfico havia preocupação não apenas com a mão-de-obra livre, mas com a mão-de-obra que seria, por assim dizer, regeneraâora  e civilizaãora. 

    Por èsse motivo, a mão-de-obra livre eventualmente disponível nãoera a mão-de-obra capaz de operar o milagre desejado: a radicaçãono país de uma população “ industriosa” e “ civilizadora” . Esta éuma questão central para a compreensão menos simplista dosimpulsos ideológicos do abolicionismo e de todo o processo deconsciencialização do problema da mão-de-obra. Seria óbv io etentador, em face da análise final do capítulo precedente, relacionarescassez de braços, escravidão, imigração e abolicionismo numahipótese de explicação que se resumiria no esquema aparente peloqual esses processos se ligam de forma automática e seqüente.Com efeito, em face da escassez da mão-de-obra (real em têrmosda densidade demográfica ou por causa das condições sociais queregulavam o aproveitamento dos braços), os esforços pela imigração gauham imediatamente sentido e a abolição aparece como

     jum imperativo das condições econômicas de produção . Isto tantoporque não havia braços suficientes depois do término do tráfico,como porque a concorrência nas charqueadas entre a mão-de-obralivre e a escrava, resolvia-se de forma desfavorável para estaúltima. Entretanto, apesar destas relações, terem operado de form aregular como condição propiciadora para a transformação dotrabalho escravo, seu encadeamento não foi mecânico nem elasbastam para explicar a formação de atitudes antiescravistas, osesforços pela imigração e o movimento abolicionista.

     Acredito que isso seja verdadeiro em vários sentidos. Pr imeiro, porque, em têrmos objetivos, os interesses envolvidos naqueles processos não eram coincidentes e unívocos. Segundo, porque a consciência da situação de interesses não chegou a se

    definir como consciência adequada senão de forma muito limitada.Terceiro, porque a crítica à escravidão realizou-se através de pessoase grupos que não possuíam interesses imediatos na abolição. E,

    (6)  Re lat ór io   do Conde de Caxias, 1846, fôlhas 45-46.

    finalmente, porque tanto a percepção dos problemas reais criadospelo trabalho escravo foi muito parcial pelos que fizeram a críticada escravidão, como porque o movimento abolicionista mostraque as atitudes inconformistas polarizaram-se sobretudo em tôrnode valores e objetivos externos à dinâmica da sociedade escravista (7 ). Entretanto, mesmo independentemente dêstes aspectosdo problema, que fornecem a contraprova da argumentação, torna-se patente, em face da análise do material disponível, que se omovimento em prol da imigração implicou na crítica indireta da

    escravidão, foi mais em função da crença abstrata na validade enas virtudes do trabalho livre do que por causa da crítica diretadas condições concretas do trabalho escravo, da economia escravistae da situação do escravo. Além disso, os partidários da imigraçãoraramente formaram as convicções e orientaram a atuação emfunção do grande problema imediato do regime servil na fasede desagregação da sociedade escravocrata, a saber, a falta ■ debraços. ,

    Em 1847, antes da supressão do tráfico e da evasão de braçosescravos para o norte, o Presidente da Província já dizia emseu relatório: “ Na opinião geral é considerada a Colonização anecessidade mais palpitante do Império: a vastidão das terrasdesertas, que não quereis sem dúvida povoar com negros e quenão é possível igualmente povoar pelo lento e gradual crescimentoda população ( . . , ) ” (8).

    O que se desejava, por volta dos meados do século, era,mais do que povoar, ou dispor de mão-de-obra, renovar os processos e as relações de trabalho (9 ). Com efeito, não passa despercebido aos que conhecem os problemas da época que nessa fase

    (7) Essas questões serão retomadas adiante e esclarecidas nodecorrer dêste capítulo.

    (8) Manuscrito da Biblioteca da Assembléia Legislativa, jácitado, fôlha 74,

    (9) Mesmo antes da cessação do tráfico, já se desejava proibirque os imigrantes possuíssem escravos, para não deturpar o sentidoesperado da imigração, isto é, a reabilitação do trabalho: "A segxmda (idéia do Presidente sôbre as Colônias) he que na mesmaley, ou em outra se declare, que ningném possa possuir Escravosdentro das Colônias já existentes, ou das que para o futuro sederem, e que todo o Colono que dentro de trez dias, depois deavisado não puzer fóra da Colonia quantos escravos tiver, sejaelle com tudo quanto lhe pertence posto fóra da Colonia; e estadada a outro”. (Relatório  Soares Andréa 1849, pág. 33.)

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    os anseios pela “renovação” das atividades econômica s do salcomeçaram a impor-se (If i) . A partir de então, os relatórios dospresidentes da Província referem-se amiúde à Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional,  à qual, não raro, pertenciam. Emalguns relatórios, entre as preocupações centrais com a produção,incluíam-se os problemas relativos à técnica  agrária ou industrial (H ) . Assim, por exemplo, o Relatório Moniz Ferraz de1858 insiste em mais de uma passagem sôbre a precariedade dosmeios técnicos utilizados na agricultura e sôbre a necessidade da

    difusão de conhecimentos básicos das ciências agronômicas:“ Força é n’este passo chamar a vossa attenção sobre a necessidadede implantar-se entre nós o ensino de sciencias indispensáveis aomelhoramento de nossa agricultura, e igualmente da criação d’a-quelles estabelecimentos, que tendem a aperfeiçoal-a” (1 2) . No anoseguinte, o Presidente Fernandes Leão retomou o tema, relacionando-o com a escassez de escravos. Preconizava “a introdução deprocessos agrarios mais aperfeiçoados, e machinarias, e instrumentosque facilitem o trabalho do braço humano. Em uma provinciacomo esta, em que ha falta de braços escravos, todos os dias se

    (10) O mesmo é verdadeiro para Santa Catarina, como sepode comprovar no trabalho que escrevi sôbre a história econômicadessa área no cap. I do livro Côr e Mobilidade Social em Florianó poli s e,  segundo suponho, para tôda a região de Minas Gerais,Estado do Rio, São Paulo e Paraná.

    (11) Contrastando com essa atitude, na prime ira metade doséculo quase se poderia dizer que havia um conformismo oficialdiante das precárias condições técnicas da produção gaúcha, raramente superado, como, por exemplo, o foi através de uma Representação enviada pelo Conselho Geral da Província ao Imperador,pedindo modelos de instrumentos agrícolas e homens que ensinassemoa  agricultores a utilizar êsses instrumentos, já que a agricultura“nesta Provincia está atrazada, pois que não se conhecem outrosinstrumentos alem do simples arado, e a enxada, tendo por isso,oa Lavradores a necessidade de manterem mais "braços, que lheserião poupados por instrumentos proprios, mas que não tem conhecimento ( . . . ) ” , in Livro de Propostas do Conselho Geral da Provincia do R io Grand e do S u 1. manuscrito da Biblioteca da Assem

    bléia Legislativa, pág. 18, sessão de 9-1-1829. Op. cit.,  pág. 36,(12) No mesmo relatório reclama o presidente contra o fatode não haver a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional remetidosementes de trigo que lhe haviam sido encomendadas, demonstrando assim os esforços que "efetivamente se fazião para melhorartecnicamente as culturas”. Já o relatório do ano anterior, de Patrício Corrêa da Câmara, mostrara preocupação com a importaçãodas sementes de trigo (op. cit.,  pág. 64).

    sente a urgência do emprego de instrumentos agrícolas, que facilitando o trabalho, desenvolvão as forças productivas da terra coma multiplicada vantagem, que se não pode esperar da forçabruta” (13).

    Os problemas que a economia gaúcha enfrentava não eram,por certo, derivados fundamentalmente da utilização de tecnologiainadequada, nem as soluções dêsse tipo, muitas vêzes propostas,chegaram a exercer qualquer influência ponderável sôbre o comportamento dos agricultores e criadores. Tanto assim que, dezanos depois do Relatório Moniz Ferraz, o presidente Barros Pi-mentel voltava a insistir nos mesmos problemas, setn indicarprogresso algum (14) . Tratava-se de um falso equacionamento dasituação econômica. A mesma perspectiva parcia l e inadequadaserviu para explicar os problemas da economia do charque, cujomalogro ora era atribuído às pastagens precárias do Brasil, ora àscondições insatisfatórias da técnica dos charqueadores, como queriao mesmo presidente Pimentel, achando que, enquanto “ não sedescobrir um meio de preparação ao ar livre, que conserve agra-daveis o aspecto e gosto da substancia alimentícia, afim de sertransportada em quantidade correspondente à sua producção, eprovocar a sua procura nos mercados estrangeiros, nada se teráconseguido de satisfatorio” (15) . As causas fundamentais dos

    insucessos eram outras, como vimos no capítulo anterior, Nem porser uma perspectiva falsa, contudo, essa tendência deixou derefletir as modificações que realmente se verificaram na economiae de espelhar uma atitude geral relevante para a compreensão dasesperanças depositadas no século dezenove nas virtudes renovadorasda imigração, Com efeito, à escassez de braços úteis tentava-seresponder com “ a máquina” ou com a “ técnica avançada”, umae outra impossíveis diante das condições econômicas, sociais e

    (13)  Re lat óri o  Antão Fernandes Leão, 1859, pág. 75.(14) O presidente enumerava entre as razõ es que impediam

    o maior progresso das culturas as seguintes: “Io, os processos atéaqui usados no amanho das terras, na colheita e preparação dos

    productos da lavoura;  2°,  a falta do emprêgo de machinarias eoutros instrumentos aratorios que supprindo e multiplicando o trabalho do homem, e utilizando as forças da natureza, concorrãopara augmentar a producção com economia de tempo e capitais( . . . ) 3\ a falta de instrução profissional” Op. cit.,  pág. 50. Damesma forma, Moniz Ferraz, insiste, à pág. 54 sôbre a exploraçãopredatória das hervaes.

    (15) Barros Pimentel, op. cit.,  pág. 63.

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     A imigração não era representada, pois, como solução paraos problemas dos proprietários de escravos, mas como salvaçãopara os problemas da região. Tanto assim que, como atitudeprudente, tra cabível ser favorável à imigração e à emancipaçaogradual, para que o progresso obtido com o trabalho livre nãofôsse prejudicado pela desorganização das “ velhas indústrias'5 (istoé, do charque), que o açodamento na libertação dos escravostornaria irremediável, com ou sem novos i m i g r a n t e s ( 2 0 ) . Osproprietários de escravos aferravam-se à emancipação gradual ,

    interessando-se pouco pela imigração. A tal ponto que os defensores desta última viam os escravocratas como vítimas de preconceitos retrógrados. Por isso, os imigracionistas achavam necessário“profligar o prejuizo dos lavradores, que vêm no immigrante nãonm elemento de trabalho, porquanto estão natural e inconscientemente aguerridos ao feudalismo escravista, mas sim um objectode temor, um comparticipante de seus proveitos ( . . . ) . Portanto,não é para admirar, que se proclame que a imigração custa aprosperidade da lavoura”   (21).

    Compreendem-se facilmente as duas posições. Por certo, ganharia com a imigração a lavoura.  Mas que significação possuíauma totalidade abstrata como essa para proprietários de escravos,cuja prática diária se resumia às suas charqueadas, particulares e

    concretas? Essa diferença marca, na verdade, a distância quevai do pensamento utópico ao pensamento conservador. Êste último,aferrado ao que é imediato, fruto e condição da experiência vividano dia a dia, não vê nas totalidades abstratas, deformadas edeformadoras do real, a mediação necessária no processo da constituição de novas formas de existência. Às ousadias que negamo presente, responde o conservador com a palavra sabia de prudência. Que poderia importar para um senhor de escravos, quevia o encarecimento de suas “peças” e o desejo crescente deliberdade que a propaganda pelo trabalho livre acabava por incutir nos cativos, tôda a argumentação capaz de provar as virtudes

    (20) No artigo em questão, apesar da ênfase posta na reno

    vação, defende-se uma posição de compromisso no que diz respeitoà questão servil: “Mas essa revolução do trabalho não deve operar-se de ehofre, mas sim paulatinamente, attendendo ãs circunstancias do paiz, afim de manter-se sempre em verdadeiro pé deigualdade o equilibrio. Po r isso entendemos que a questão abolicionista e a de immigração devem caminhar por linhas paralelas”.

    (21) "Supremacia da imigração sôbre a colonização” ,  A Di scussão,  Pelotas, 19-9-1884, pág. 1.

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    da imigraç ão? Talvez o “ colonato” ou qualquer outra forma decontrato que garantisse aquilo que, afinal, contava porque erareal,  a necessidade de levar adiante a empresa, pudesse interessar-lhe. Em vez disso, os utopistas apegados à idéia de liberdade no trabalho ofereciam projetos de bem-estar coletivo futuro:

    * “ Quando mesmo fosse possível asseverar-se isso (que a imigraçãopode beneficiar as cidades, porém não à lavoura, cujo trabalhorude só pode ser mantido através da importação de braços comprévios contratos de trabalho), teríamos que somente ganharia a

    lavoura, porquanto o assentamento dos imigrantes nos focos civilizados importaria concurrência inevitável aos ociosos e nacionais

    * que ahi permanecessem, os quais vexados por aquelles competidores,retirar-se-hiam para o interior, a cata de empregos na profissãorural” (22). '

    Os que defendiam a imigração nesses têrmos diante da ob jeção dos proprietários de escravos não queriam, pois, implic itamente, e não podiam, mesmo, resolver o problema concreto detal ou qual senhor de escravos. Apegavam-se e defendiam a“ implantação de novas indústrias”, a “ nova mentalidade” , o “ princípio da liberdade no trabalho e de trabalho” e assim por diante.Respondiam sempre aos proprietários de escravos, que desejavamresolver o problema da sua  empresa, com argumentos em prol da

    “ civilização” , do “progresso” do país: “precisamos de circulação,de capitais, de novas industrias que tragam novos hábitos, quenão se alcançam senão pela assimilação” (23).

    Finalmente, o problema da mão-de-obra, tal como era percebido e como efetivamente se colocava para o proprietário e paraa empresa escravocrata, de forma alguma poderia ser resolvidoatravés da “im igração” , nos moldes preconizados pelos que seinteressavam pela “ libertação do trabalho” (24) . Com efeito, êstes

    (22) “ Supremacia da immigraç ão sôbre a colonização” ,  A   Di scus sã o,  Pelotas, 19-9-1884, pág. 1.

    (23) "Supremacia da immigração sôbre a colonização”,  A   Di scus sã o,   Pelotas, 19-9-1884, pág. 1.

    (24) No relatório de 1889, o Barã o de Santa Thecla, quandoo grosso da corrente migratória dirigia-se para São Paulo e nãomais para o Sul, defendia as virtudes da “imigração” contra o"colonato”, atribuindo o êxito dêsse último apenas ao empenho eà deliberação dos paulistas de recrutar e amparar a mão-de-obraestrangeira: “fi necessário ter bem em vista que não são ascondições agrícolas da província de São Paulo e o seu actual systemade cultura por meio de jornaleiros que chama agora para lá. forte

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    viam na entrada de imigrantes uma condição para a radicaçãono país da liberdade, jungida a seu esteio fundamental em têrmosda concepção liberal do inundo, a propriedade individual: “ ASociedade Central de Imigração,  além de quanto já tem dito nessesentido pronunciando-se, de modo conhecido, contra todo e qualquer contrato de locação de serviços com o emigrante na Europa, assim como contra todo e qualquer systema que não consagrea posse, no presente ou no futuro, do lote de terra pelo colono,e contra todo e qualquer systema de adiantamento de capitais quenão lhe permitta a mais plena liberdade de acção e de locomoçãoou mudança, se reserva ainda para a discussão plena desse as-sumpto ( . . . ) ” (25).

    Ideólogos do liberalismo, levavam às últimas conseqüênciasos princípios, esquecendo-se de que, no jôgo complexo dos compromissos entre os ideais e a prática, a liberdade de trabalhoque construiu o capitalismo moderno repudiou dentre seus componentes básicos a posse dos instrumentos de prod ução . A mão-de-obra livre que poderia servir, eventualmente, aos interêsses dosantigos proprietários de escravos teria de ser livre  num sentidobem diverso: livre da posse da terra e dos instrumentos detrabalho.

    De resto, mão-de-obra livre e proprietária já existia no Rio

    Grande há muito, sem resolver o problema da escassez de braços. A partir de meados do século, a atividade econômica da “ zonacolonial” passou a contribuir de forma marcante e crescente naprodução gaúcha. Moniz Ferraz comentando e verif icando a justezadas afirmações de Soares de Andreia sôbre a economia da Província em 1849 — quando Andreia afirmava que a agriculturaera “ um ramo quase desconhecido na Provincia” — retificava,passados nove anos, o quadro esboçado por seu antecessor: “ Defato, os documentos dos annos anteriores a essa épocha demonstraoque esta provincia recebia de differentes portos como sejao os do

    corrente imigratória. A colonização pelo systema da pequena propriedade foi e sempre ha de ser preferida pelos immigrantes; em

    toda parte e em todos os tempos os servos querem passar a senhoresou emancipar-se e os jornaleiros aspiram a tomar-se proprietários."A corrente immigratoria tem-se desviado para aquella pro

    vincia engrossando consideravelmente, por esforços poderosos e effi-cazes. Empregarem os esforços idênticos. (pág. 19).

    (25) “Imigra ção e Colonização — IV” ,  A Di scu ssã o,   Pelotas,30-9-84, pág. 1.

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    Rio de Janeiro, da Bahia, de Santa Catharina, e de Paranaguádiversos cereais, e principalmente a farinha de mandioca, cuja importação annual nos 7 annos decorridos de 1816 a 1822 reguloutermo medio 143,295 alqueires. Em menos de 9 annos conseguioa colonização, como o referido meo antecessor o previo, collo-car-nos em uma posição contraria. Hoje esta provincia é essencialmente agricola. Além dos differentes produetos com que saoabastecidos nossos mercados, annualmente exporta uma não mesquinha quantidade de cereais para differentes partes do

    Império” (26).Embora a afirmação de que a Província era essencialmenteagrícola possa ser contestada, como o foi em outros relatóriosde Presidentes da Província (27), o texto de Moniz Ferraz indicaalgo muito importante para a análise das condições subjacentesà maneira como a questão servil e o problema da imigraçãose apresentaram no Rio Grande do Sul. A partir dos fins dadécada de 1850, havia na Província uma próspera economia agrícola organizada à base de pequenos proprietários livres e independentes (23) . A expansão da cultura do café nas antigas plantações das regiões do “ Norte” propiciou êste processo. A escra-varia antes ocupada no cultivo de cereais e gêneros alimentíciosconcentrou-se, a partir de meados do século, no cultivo do produtoque, por destinar-se ao mercado mundial, dava maior margem delucro, compensando o alto custo da mão-de-obra ocasionado pelaextinção do tráfico. Havendo menor quantidade de produtos alimentícios exportáveis na zona tradicionalmente produtora, o RioGrande pôde não só produzir para o consumo local como exportarpara o resto do Império. Ainda uma vez, portanto, verifica-se ocaráter de  economia complementar  do setor exportador da eco-

    (26)  Re latór io  de 1850,  já citado, pág. 32.(27) O  Re lat óri o  Barros Pimentel de 1864 í taxativo nesse

    pont o: "Principal ramo da sua indústria, a criação do gadooecupa e absorve a maior parte dos "braços da Provincia, em prejuizode outros ramos da agricultura, especialmente o da lavoura” (pág.54). Êsse presidente atribuía ao papel preponderante da eco

    nomia criatória as dificuldades por que passava a Província, umavez que o preço dos produtos bovinos decaíra muito.(28) Não cabe aqui fazer a análise do movimento de colo

    niza ção no Rio Grande. O material para isso é abundante. Restringindo-me ao essencial, além dos Relatórios dos Presidentes daProvíncia, parecem de fundamental importância os trabalhos dosviajantes, especialmente os de Isabelle e Lallemant.

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    nomia nacional, que caracterizava a produção gaúcha. A importância relativa dos núcleos coloniais e da produção artesanal esemi-industrial, instaurada pelos imigrantes nos núcleos urbanos,aumentou incessantemente durante a segunda metade do século.Êsse processo, no conjunto, repercutiu tanto sôbre as avaliações eexpectativas que se formaram quanto ao trabalho livre e quantoàs vantagens do trabalhador independente, como sôbre as basesreais nas quais se assentava a prosperidade gaúcha.

     A colônia simboliza va o Canaã do trabalho livre. Era omilagre desejado, que se materializava nas estatísticas de produçãoe exportação, numa crítica viva às velhas formas de produçãoescravocrata. O êxito do imigrante era, ao mesmo tempo, a condenação da escravidão e a revalorização do trabalho: “ Dificilmenteem qualquer outra parte da Europa, tem o trabalho, mais do quen o Rio Grande, o seu direito, o seu crédito, a sua estima e o seuêxito. Não o embaraça nenhuma conveniência , nenhuma classe,nenhuma posição, nascimento e passado, nenhum espírito de castado antigo Egito ou dos hindus. Só se emigra pelo trabalho, pelotrabalho honrado, pelo trabalho capaz e só por êle!'\ escreveuL a l l e m a n t ( 2 9 ) . Há, por certo, algum exagero nessas afirmações.Elas exprimem mais a avaliação de um europeu do que o reconhecimento do valor do trabalho que os brasileiros do sul, nessa

    época, teriam desenvolvido. Não obstante, havia a prosperidadecrescente a desafiar os preconceitos tradicionais e a desmoralizaçãodo trabalho imposta pelo regime servil. A crer-se em Lallemant,até em Pelotas — baluarte da economia escravista — a esperançade prosperidade estava voltada mais para as colônias do que paraas charqueadas: “ Os pelotenses, porém, cujas condições de vida,de um modo geral, parecem piorar, desejam ansiosamente que sedesenvolvam colônias em sua vizinhança, para com isso hauriremsuas fôrças vitais e terem umaa vida local mais importante.

     Assim, pois, o governo provincial pretende instalar em Pelotasuma extensa colônia, notadamente de alemães” (30).

     A mística do progresso encarnara nos braços livres doscolonos-proprietárioa. fazendo a imigração surgir como a grande

    (29) Ave-Lallemant, op. cit.j pág.  362.(30)  Idem,, idem ,  pág. 390. E, mais adiante: “ Se todos

    os imigrantes que chegam e ae dirigem a Pelotas e às regiõesdistantes, ao Uruguai, ao norte e ao nordeste da Província foremajudados na mesma proporção em que se deseja a sua vinda, comisso ambas as partes serão servidas” (pág. 290).

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    alavanca que impulsionava a região para o futuro. Por volta dadécada de 70 e, principalmente em 80, a imigração constituíaum êxito estrondoso diante do marasmo da economia escravocrata.Em 1866 Homem de Mello, cotejando a produção dazona colonialcom a economia criatória. assim se expressava: “ Os habitantesda campanha guardão ainda uma instinctiva repugnancia aos trabalhos agrícolas, que felizmente n’esta provincia, progridem obedecendo ao impulso vigoroso e energico do trabalho livre ^dalabor iosa população estrangeira que colonisa as ferteis reg iões

    banhadas pelos rios Jacuhy, Taquary, Sinos, Cahy, e que já seextende pelas serras centrais” (31),

    Com o êxito da economia das áreas de imigração a escravidãoe a sociedade senhorial que lhe era correlata ficaram postas emxeque duplamente: porque não eram capazes de competir com odinamismo da área colonial e por constituírem-se em obstáculosà intensificação desejada da imigração. Resultou que o movimentopela imigração, se não constituiu uma critica direta a escravidao,impl icou em sua condenação prática. Assim, antes de constituírem-se no sul as comissões de libertação dos escravos, organizaram-secomissões de proteção aos imigrantes. Os presidentes da Provínciaeram peremptórios a respeito dessas questões: “ é a colo nizaçãoo problema de cuja solução depende essencialmente a grandeza,

    riqueza e poder de nossa patria ( . . . ) . É uma dessas necessidadessociais que se não pode acudir de prompto: depende de modificações profundas nas condições da sociedade brasileira ( . . . ) .Elles (os imigrantes) lutara com a nossa ignorancia, com ^osnossos escravos, com os nossos costumes, com as nossas moléstias,com as necessidades, com as nossas instituições” ( 3 2 ) .

    Para aliviar as dificuldades encontradas pelos colonos, reclamava o Poder Provincial a colabora ção das populações: no intuito de auxiliar a administração nos esforços que empenha paraattrahir a immigração, esse elemento de prosperidade e riquezade que tanto necessitamos, proporcionando aos immigrantes osprimcipais recursos para o seu estabelecimento nas colonias, officieiem 24 de março ultimo às câmaras municipais de São Sebastião

    do Cahi, Rio Pardo e Cachoeira, invocando o seu patriotismo para

    (31)  Re lat óri o  Homem de Mello de 1866, pág. 78.(32)  Fa lia   Joaquim Pedro Soares de 7-3-1881, pág. 43. Nos

     jor na is da épo ca, da me sm a man eira , a im igr ação ap ar ec ia co m o ogrande plano salvador.

     221

    UELMBJOTECACalíBAL

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