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O CHAPÉU VALDIR ROCHA

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O CHAPÉU

VALDIR ROCHA

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ISBN 978-85-62402-24-1

9 7 8 8 5 6 2 4 0 2 2 4 1

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São Paulo - 2015

O CHAPÉU

VALDIR ROCHA

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© Valdir Rocha

é marca deOliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda.

Todos os direitos desta edição reservados aOliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda.

Rua Sena Madureira, 34CEP 04021-000 - São Paulo - SPe-mail: [email protected]/Fax (11) 5084-4544

www.pantemporaneo.com.br

ISBN nº 978-85-62402-24-1

Projeto gráfi co: Nelson Mitsuhashi

Impressão e acabamento: Digital Page

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Rocha, ValdirO chapéu / Valdir Rocha. -- São Paulo :

Pantemporâneo, 2015.

1. Peças de teatro 2. Teatro - Roteiros3. Teatro - Textos 4. Teatro brasileiro I. Título.

15-07220 CDD-869.92

Índices para catálogo sistemático:

1. Peças teatrais : Literatura brasileira 869.92

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O ChapéuValdir Rocha

Cenário

Espaço todo branco - teto, piso e paredes (laterais e de fundo) Há apenas uma porta (muito estreita), na parede lateral direita.

O mobiliário compõe-se apenas de duas cadeiras, como se acham descritas ao longo do texto, e um espelho de cerca de 250 cm de largura x 150 cm de altura (com molduras brancas).

Personagens

São dois os personagens: Indivíduo 99 (Ind. 99) e Pessoa número 1 (P. n. 1).

As pessoas da platéia alcançadas e vistas através do espelho afixado na parede do fundo do palco constituem o corpo de jurados.

O texto

P. n. 1- Por que está com seu chapéu na cabeça?

Ind. 99- Não é meu; tomei-o emprestado de um conhecido.

P. n. 1- Se alguém o emprestou, é seu. Isso não importa: por que está com ele na cabeça?

Ind. 99- Há dias, vi o aviso “Ao entrar, tire o chapéu”, afixado na porta. Não tinha um chapéu, tomei-o emprestado para vir até aqui, porque seu uso é exigido neste local.

P. n. 1- Não conhece a lei nacional?

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Ind. 99- Qual? Aquela que proíbe o uso de chapéu? Conheço, sim, e observo-a rigorosamente.

P. n. 1- E por que está usando um?

Ind. 99- Tenho respeito maior pelas leis privadas, que, bem sei, prevalecem sobre todas as outras.

P. n. 1- Como conseguiu emprestar um chapéu, se o seu uso está proibido?

Ind. 99- De fato, não foi fácil: paguei a um intérprete muito qualificado. Garantiu-me que usar era estritamente proibido; no entanto, poderia ter um, se dele não fizesse qualquer uso.

P. n. 1- Então, não se pode colocá-lo na cabeça.

Ind. 99- Isso mesmo. Não se pode também usá-lo como sacola para carregar coisas, nem para enfeitar ambientes, nem...

P. n. 1- Objetivamente, sabe que infringiu a lei nacional.

Ind. 99- Em favor da lei privada.

P. n. 1- A que lei privada se refere?

Ind. 99- À deste local. Essa que exige o uso de chapéu aqui.

P. n. 1- Ora, o aviso diz simplesmente “Ao entrar, tire o chapéu”. Isso reforça a lei nacional.

Ind. 99- Depende de como se lê ou se ouve isso.

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P. n. 1- Não há dúvida quanto a se prestigiar a lei nacional.

Ind. 99- Aparentemente. Só aparentemente. Ninguém coloca esse aviso por aí. Nunca vi outro.

P. n. 1- Deveriam colocar, para que todos conheçam o sentido da lei nacional.

Ind. 99- Ora, todos já a conhecem.

P. n. 1- Então, deveria observá-la.

Ind. 99- Certo. Lá fora.

P. n. 1- O que quer dizer com “lá fora”?

Ind. 99- Sim, lá fora, observo a proibição.

P. n. 1- E aqui dentro?

Ind. 99- Para estar, permanecer, devo usar um chapéu.

P. n. 1- Como assim?

Ind. 99- Óbvio: se não podia usar um chapéu, porque proibido, o seu aviso seria inútil. Se não podia usar um chapéu, como tirá-lo da cabeça para entrar?

P. n. 1- Raciocina a partir de enganos. Se não podia usar um chapéu, porque a lei nacional proíbe fazê-lo, nem teria o que tirar. Isso é tão claro.

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Ind. 99- Não concordo quanto à alegada clareza.

P. n. 1- Veja bem. Ao tomar o chapéu emprestado, negociou com um infrator da lei nacional. Ou o empréstimo não é uso?

Ind. 99- Sem dúvida, o empréstimo é uma forma de uso do chapéu. Na verdade verdadeira, não emprestei. Meu caráter não admite que eu negocie com infratores de qualquer espécie.

P. n. 1- Como não emprestou? Não inventei o seu empréstimo. Ouvi essa informação de sua boca.

Ind. 99- Foi sim. Informação da boca para fora. Mentirinha.

P. n. 1- E agora me vem com essa.

Ind. 99- Mentirinha virtuosa.

P. n. 1- Não existe mentira virtuosa.

Ind. 99- Existe sim. Os médicos sabem bem que existe e os pacientes incuráveis também.

P. n. 1- Não me consta que seja médico e eu seu paciente.

Ind. 99- A lei nacional não proíbe que se minta: logo, admite as falsas verdades.

P. n. 1- Confesse que o chapéu era seu e mantinha-o para deleite pessoal - o que é uma forma de uso.

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Ind. 99- Esclareço: este chapéu, que tenho sobre minha cabeça, é meu. Não o tinha, nem mesmo guardado numa caixa fechada. Não me serviria para nada, talvez nem me afeiçoasse a seu côncavo, com boca demasiadamente larga, como objeto de fetiche.

P. n. 1- Como não o tinha? Diz que é seu, está com ele sobre a cabeça e diz que não o tinha.

Ind. 99- Se tiver um pouquinho de paciência, posso explicar. Este lugar tem um portão junto à rua, não é mesmo? Esse portão fica fechado, mas sem tranca - assim os cães são afastados e as pessoas de bem podem entrar. Entre o portão e a porta há uma escada, que, aliás, é boa para nela se sentar. Sentei-me nela e em pouco tempo fiz este chapéu que está sobre a minha cabeça.

P. n. 1- De todo modo, se funcionasse o seu raciocínio, que é inteiramente falso, não poderia usar um chapéu entre o portão e a porta.

Ind. 99- Quando me sentei na escada, notei, por uma fresta, que a porta estava entreaberta. Confeccionei rapidamente o chapéu. Coloquei-o sobre a cabeça. Abri a porta o suficiente para entrar, mas antes de entrar, tirei o chapéu. Entrei, pus o chapéu. Tive o cuidado de fechar a porta. O mais difícil para mim foi memorizar direitinho essa sequência de põe, tira, põe. Tenho muita afeição pelos rituais.

P. n. 1- Fechou a porta...

Ind. 99- Exatamente. Como já disse, tive o devido cuidado de fechar a porta, após entrar.

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P. n. 1- Você mesmo fechou a porta. Naquele instante, quando a porta se abriu e pôs o chapéu na cabeça, infringiu a lei.

Ind. 99- Certifiquei-me de que ninguém me olhava ou passava pela rua.

P. n. 1- Infringiu a lei nacional. Sou testemunha qualificada disso. Além do mais, há olhos e câmeras de vídeo por toda parte, inclusive aqui.

Ind. 99- Eu sabia disso. Pensei: quando alguém me vir, pela câmera, com um chapéu nas mãos, há de ficar à minha espera, então coloco o chapéu, tiro o chapéu, entro, fecho ou fecham-me a porta e coloco o chapéu.

P. n. 1- Você mesmo fechou a porta atrás de si. Usou o chapéu para obter algo imaginado.

Ind. 99- Obter o quê?

P. n. 1- O ingresso definitivo neste local.

Ind. 99- Deu certo.

P. n. 1- E infringiu a lei. Eu bem vi e tenho essas imagens bem gravadas.

Ind. 99- Tão pouco tempo - coisa à toa - que nem deve ser considerada infração. Vejo que fiquei em suas mãos, mas não há qualquer probleminha, pois noto que também tem um chapéu sobre a sua cabeça. Estranho apenas que o seu chapéu seja do modelo usado por cozinheiros. Para cozinhar o quê?

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P. n. 1- Cada qual cuide de si. Aqui dentro não há câmeras nem olhos que me vejam como infrator. Os olhos dos presentes proclamarão sempre que não há chapéu que me seja proibido. No devido tempo, verá o que cozinho.

Ind. 99- Entendi: aqui não há lei que proíba o uso de chapéu.

P. n. 1- Admitindo-se que estivesse certo em suas conjecturas, não poderia recolocar o chapéu sobre a cabeça logo após ultrapassar a porta.

Ind. 99- Ora, estar dentro vem depois de “ao entrar”. Eu mesmo fechei a porta.

P. n. 1- Errado. Só poderia se considerar dentro depois de soar o aviso. A circunstância de ter fechado a porta não leva à conclusão de que estava dentro. Ainda não está dentro. Ainda não está. Ainda não. Ainda.

Ind. 99- Quer dizer que eu deveria aguardar algo como uma gravação de voz, por exemplo, que me diria algo como “pronto, Você já está dentro”?

P. n. 1- Nada de voz nem de gravação: um mero som de gongo ou impressão de ouvir um.

Ind. 99- E como saberia o significado?

P. n. 1- Fácil: perguntaria o que tal som significa e seria informado de que estava dentro.

Ind. 99- Fantasioso demais.

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P. n. 1- Nem um pouco fantasioso. Vejo que não conhece o significado do verbo entrar. O que significa “ao entrar”? Responda.

Ind. 99- Pergunta boba. “Ao entrar” significa “ao entrar”; colocar-se dentro.

P. n. 1- Sabia que Você não sabia. As coisas nunca são tão simples como parecem ser. Não revelarei; não conte com facilidades. Tire o chapéu da cabeça, Você ainda não está dentro do que conta.

Ind. 99- “Tire o chapéu da cabeça.” O que quer dizer com isso? Afinal, estou proibido de usar o meu chapéu ou estou obrigado a não usar? Posso usá-lo?

P. n. 1- Ocupe-se menos de perguntas; pense mais nas respostas. Calcule o peso exato de cada palavra. Comece por responder a suas próprias indagações.

Ind. 99- Estou na dúvida: o que manda aqui é outra ou a mesma lei? Vejamos: o chapéu na sua cabeça poderia indicar que a lei é outra que não a nacional. Por outro lado, Você pode ser um infrator.

P. n. 1- Seu chapéu é marrom.

Ind. 99- O que há de estranho?

P. n. 1- Aposto que não sabe do seu significado.

Ind. 99- Tudo precisa ter um significado?

P. n. 1- Tudo tem um significado ou muitos.

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Ind. 99- Exemplifique.

P. n. 1- Não necessito, nem quero. Chapéu marrom.

Ind. 99- Simplesmente era a cor do feltro que estava disponível.

P. n. 1- Chapéu marrom e cônico, de feltro, sem aba e com um furo circular no topo. Parece um funil invertido.

Ind. 99- É o bastante para cobrir a cabeça.

P. n. 1- E embaçar a reflexão.

Ind. 99- O que se tem aqui? Um estúdio de moda ou um ponto de encontros filosóficos?

P. n. 1- Tudo e nada.

Ind. 99- Isso é muito vago. Tudo e nada compreende até coisas díspares: templo e bordel, matadouro e hospital, zoológico e museu, parque de diversões, teatro, mercado, circo, escola, tribunal, casa transitória, cárcere, cemitério, céu e inferno.

P. n. 1- Isso mesmo: tudo isso e muito mais. Cada indivíduo faz de um lugar coisa diversa, de acordo com o seu olhar, seu modo de agir e seu caráter pessoal. Chame-se a isso de invenção, criação ou destruição.

Ind. 99- Você quis dizer que cada indivíduo pode fazer - destaco o “pode” - de um lugar coisa diversa.

P. n. 1- Isso é Você quem o diz. Eu disse apenas “faz”.

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Ind. 99- Pura filosofia das esquinas e dos bares. Estou ficando muito interessado neste tolo diálogo. Qual é o seu nome?

P. n. 1- Aqui não se revelam nomes. Se acha que é melhor tê-los, invente um nome para mim.

Ind. 99- Está bem. Vou chamá-lo de Pessoa número 1. Quanto a meu nome é...

P. n. 1- Não diga. É desnecessário, Indivíduo 99.

Ind. 99- Simpático esse modo de referência.

P. n. 1- É bom que se sinta confortável, Indivíduo 99. Os números são úteis para qualificar e igualar absolutamente a todos na hora da inscrição, ingresso, matrícula ou indiciamento. Os nomes das coisas e os títulos prestam-se quase sempre a levar a enganos quanto às suas respectivas naturezas. Sente-se; rememore sua ficha pessoal.

Ind. 99- Sentar-me onde? Aqui só vejo esta cadeira, que tem as duas pernas da frente com a metade da altura das traseiras; assento desnivelado a 45 graus e encosto que segue a falta de prumo das pernas.

P. n. 1- Seu olhar distorceu, mas admito que fez descrição muito minuciosa. Por outro lado, faltam os necessários nexos. Fique à vontade. Se quiser, pode sentar-se no chão.

Ind. 99- Chão que está pleno de água. Isto aqui parece uma banheira. Precisarei tomar um banho, logo mais.

P. n. 1- Que água? Está vendo água aqui? Ilusão de óptica ou... Pode ficar em pé, se quiser.

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Ind. 99- Troquemos de lugar. Você poderia descer um pouco desse cadeirão em que se encontra. Por que o assento de seu cadeirão é tão alto? Por que na altura da minha cabeça?

P. n. 1- O assento da minha cadeira não tem nada de anormalmente alto. Você é quem resolveu diminuir sua estatura ao entrar aqui. Mais uma ilusão de óptica.

Ind. 99- Está querendo me deixar confuso para ver se respondo bem a eventuais surpresas...

P. n. 1- Sem surpresas. Continuemos a rememorar sua ficha pessoal. Qual é a sua profissão?

Ind. 99- Há dez anos sou biógrafo peculiar do Museu Provinciano.

P. n. 1- Biógrafo peculiar... O que faz um?

Ind. 99- Descubro fatos relevantes - escândalos, por exemplo -, que possam dinamizar a obra de certos artistas e criar grande curiosidade e interesse nela.

P. n. 1- Certos artistas?

Ind. 99- Sim, só alguns escolhidos.

P. n. 1- E quem os escolhe?

Ind. 99- Isso faz parte da lista de segredos. Tal como os mágicos, também os tenho.

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P. n. 1- Seus segredos nada valem aqui. Devo lembrar que está sob juramento. Nada poderá omitir. Responda à questão: como procede quando não descobre total falta de fato relevante na vida pessoal desses artistas escolhidos?

Ind. 99- Sou suficientemente hábil; logo é muito raro que isso aconteça. As obras dos santos não vão para os museus. Na vida dos artistas sempre há algum homicidiozinho, suicídio, induzimento a suicídio, um ou outro estupro, roubos, lesões corporais ou, no mínimo, uma automutilação, estelionatos de toda ordem, envenenamentos, vadiagem, atos de corrupção e coisinhas desses gêneros, sempre fáceis de serem descobertas por um profissional com a minha capacidade, inclusive o proibido uso de chapéu, lá fora.

P. n. 1- Volto a indagar: e quando não descobre nada de escandalosamente relevante na vida pessoal deles?

Ind. 99- Não há dificuldade: invento, ou melhor, revelo fatos verossímeis; algo assim como atitude que não tomaram por falta de ocasião; coisas que poderiam ou gostariam de ter feito. Fico muito íntimo deles.

P. n. 1- Inventa fatos? Com que propósito?

Ind. 99- Com o melhor dos propósitos. Resposta óbvia para uma pergunta ingênua: para valorizar as obras criadas pelos ditos cujos, e com isso aumentar o interesse por eles mesmos e, consequentemente, pelas obras que criaram. Artistas com vidinha banal são iguais a um zero à esquerda. Nos artistas mortos, os vícios e as maldades são virtudes. Logo, estou muito convencido de que faço grande bem a muitos artistas. Diria que os ressuscito um pouco. Trata-se de profissão muito ética. Por isso, muitos dos museus do mundo empregam colegas meus em

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seus corpos permanentes. É uma profissão muito exigente, embora nunca suficientemente reconhecida. A rigor, meus colegas de profissão deveriam lutar comigo para obtermos, pelo menos, o reconhecimento de coautoria nas obras daqueles pobres coitados, mortos, sepultados, ressuscitados por um instante, e com dívida eterna e tão elevada para conosco. Com mais rigor ainda, um bom biógrafo peculiar vale mais do que qualquer artista.

P. n. 1- Compreendo melhor agora de onde vem sua experiência em inventar fatos.

Ind. 99- Agradeço o elogio.

P. n. 1- Não elogiei. Trata-se apenas de uma conclusão preliminar. O que pensa dos objetos que decoram este local?

Ind. 99- Você quer se referir a essas paredes monotonamente brancas, Pessoa número 1?

P. n. 1- Sim, as paredes são brancas. Refiro-me, no entanto, às obras de arte que elas contêm e às esculturas que se encontram neste salão.

Ind. 99- Está brincando comigo. Bem se vê que nada há aqui além desse seu cadeirão, deste espelho com moldura vulgar que reflete a parede oposta e branca e desta minha cadeira imprestável.

P. n. 1- Ali, onde aponta um espelho emoldurado, não consegue ver os jurados?

Ind. 99- Você está brincando. Não vejo qualquer pessoa.

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P. n. 1- Confirme o que disse para que não fique dúvida quanto à sua afirmação. Os jurados poderão tomar isso como eventual desconsideração.

Ind. 99- Você ouviu bem. Permita-me uma perguntinha: por que este salão não tem qualquer janela nem outra porta senão aquela por onde entrei?

P. n. 1- Não posso crer que não as vê.

Ind. 99- O que não vejo não existe.

P. n. 1- Deixe-me anotar o que acaba de dizer: “o que não vejo não existe”. Anotem isso, senhores jurados.

Ind. 99- Não sabia dessa verdade, então?

P. n. 1- Ilude-se e quer iludir. Ilude-se e quer iludir. Ilude-se e quer iludir.

Ind. 99- Pessoa número 1, pare de repetir, feito eco.

P. n. 1- Sou o eco de tudo e de todos. Fale de sua cadeira.

Ind. 99- Minha inútil cadeira... Eureka! Agora reconheço que fui muito lento, mas, em tempo, compreendo o seu chamado. Atendo-o, sem pensar muito, para não quebrar a espontaneidade e a autenticidade da análise, mas ciente de que farei mera introdução que nunca dispensará intensa pesquisa e estudo cuidadoso e detalhado ao qual dedicarei, ao longo de muito tempo, tanto quanto a saúde me permitir, o melhor de meus esforços, sem medir sacrifícios pessoais.

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Esta cadeira, que Você, Pessoa número 1, diz ser minha, não é minha. Não é minha nem será minha mesmo que Você queira doá-la a mim. Não aceitaria porque seria gesto de pessoa sem juízo tanto o doar como o aceitar doação desse porte. Quisera que eu fosse dela o autor, mas isso está muito além do meu mérito.

Consola-me a constatação de que minha será - se é que posso dizer assim, porque disso não tenho certeza - a modesta interpretação que dela posso apresentar, num jato, neste instante, contemplando-a. Gozo do privilégio de poder fazer essa singular interpretação.

P. n. 1- Recomendo extremo cuidado com as interpretações.

Ind. 99- Esta cadeira não é um artefato de uso. Seu valor não pode ser medido pela utilidade, pois utilidade não tem e isso não está no propósito de quem a criou. Tem, no entanto, a grande serventia, de se prestar à mais alta fruição estética. Se, inadvertidamente, alguém nela se sentasse, mostraria de maneira plena que o desconforto causado pelo escorregadio do desnível onde a bunda poderia descansar, forçado pela lei da gravidade e desaprumo da coluna vertebral provocado pelo espaldar em ângulo de 90º com o assento inclinado, não permitiria a concretização daquele intento mundano. Aquele alguém seria posto de joelhos, pronto a rezar e penitenciar-se, prostrado, com o corpo direcionado para o chão e olhos voltados para tudo menos para o objeto ultrajado, porque em tudo desmerecedor de admirá-lo. Para se fruir desta cadeira não se pode ousar tomá-la como cadeira.

P. n. 1- Advirto que esse objeto tem estudada utilidade, como haverá de ver.

Ind. 99- Ponho luvas limpas de alvo algodão para cuidadosa e respeitosamente tocá-la. Busco uma assinatura que identifique a autoria. Não a encontro. Duas alternativas:

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modéstia do autor ou desnecessidade de assinatura porque seu autor será celebrado, se já não é, em todos os pontos da Terra. Em se tratando de obra de autor consagrado, que tenha produção extensa e conhecida, só posso atribuir o gesto de escondê-la neste recinto a um gesto de extrema humildade como só os grandes são capazes de proceder. Se, por outro lado, por hipótese remota, for obra de artista menos conhecido, deu-se por satisfeito com a glória de simplesmente realizá-la.

Com certeza, trata-se de criação de pessoa muito espiritualizada. Referindo a autoria de pessoa espiritualizada, quero registrar a minha convicção de que o resultado obtido não poderia surgir do nada, ou melhor, de ninguém menos do que uma pessoa digna, proba, demiurgo privilegiado, imune a vícios e de ficha policial 100% limpa. Nem simples infração de trânsito jamais terá cometido.

Não me permito deixar de dizer alguma coisa sobre a presença de inspiração. Aqueles que negam a inspiração como sopro dirigido ao artista criador desta obra terão muita dificuldade para negá-la. O autor possivelmente não inscreveu seu nome no objeto - essa é outra hipótese a aprofundar - porque não terá ousado dar esta criação como sua e não sabedor da divindade que o escolhera para bafejá-lo não se viu autorizado a indicá-la. Conclusivamente, a inspiração existe.

Também não há um título, inscrito nesta obra, que a identifique. Como denominá-la, então? “Cadeira”? Nome instrumental e pobre para algo que não tem utilidade como objetivo. “Cadeira para purgar delitos”? Não; falta força de expressão. Agora tenho isso mais claro: “A Cadeira”. Ouça bem: Cadeira, substantivo feminino precedido do artigo definido, feminino, singular “A”. Portanto, objeto feminino, definido e singularíssimo. “A Cadeira”.

Esta não é mera obra tridimensional; trata-se de expressiva escultura, genialmente concebida e criada. Só

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para os apressados, superficiais e fúteis, “A Cadeira” seria uma simples cadeira. Um dos seus méritos é apresentar-se como objeto de larga referência pessoal a qualquer pessoa. No evolver dos tempos, dois momentos de imensa relevância funcional apontaram os rumos da História: o primeiro quando o homem se pôs em pé, ereto; o segundo, quando se sentou. Talvez tenha sido o contrário: sentou-se e, depois, ergueu-se. Sentar é uma das delícias do homem. Qualquer cadeira deveria ser diariamente venerada. Só os iluminados hão de compreender isso na plenitude de seu encanto. “A Cadeira”, esta aqui, põe às claras esse fato incontestável e tantas vezes esquecido.

“A Cadeira” tem desenho absolutamente simples. De bronze castanho escuro, ela é firme, rígida, dura, densa, trabalhada com limpeza de corte e sem qualquer entalhe que desvie o olhar. Nela, não fica faltando nada; nada sobra.

Estou sincera e profundamente encantado. “A Cadeira” valeu meu ingresso neste local.

P. n. 1- Muito interessante tudo isso.

Ind. 99- Aguarde um pouco mais. Direi agora sobre seu cadeirão, que é...

P. n. 1- Poupe as palavras.

Ind. 99- E sobre estas paredes brancas que - vejo lucidamente agora - encerram tantos relatos, grafismos e cores; quero dizer...

P. n. 1- Poupe as palavras.

Ind. 99- Um momento: pegarei na mochila o meu batedor de palmas.

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P. n. 1- Duas desempenadeiras de madeira, para alisar reboco de parede...

Ind. 99- Uso-as para substituir o nu bater de palmas. São mais eficientes e confortáveis. Ouça. Aplausos para “A Cadeira”.

P. n. 1- Já é o suficiente. Mais uma conclusão preliminar: seus aplausos não foram dirigidos para a “A Cadeira”. Aplaudiu a interpretação a que procedera. Melhor dizendo, louvou a interpretação que, no caso, se confunde com a própria criação.

Ind. 99- Sobre as paredes... Quanta sutileza gestual do pintor...

P. n. 1-Diga sobre o chapéu que traz sobre a cabeça.

Ind. 99- Não seja tão autoritário.

P. n. 1- É inerente e esperado da autoridade que seja autoritária. Diga sobre o chapéu que traz sobre a cabeça.

Ind. 99- Obedientemente e com muito prazer, descreverei.

P. n. 1- Esqueça o prazer. Todo prazer é transitório. Limite-se a falar sobre o chapéu que traz sobre a cabeça.

Ind. 99- Inicialmente, quero lembrar algumas de suas palavras: “Chapéu marrom e cônico, de feltro, sem aba e com um furo circular no topo. Parece um funil invertido.”

P. n. 1- Mais uma conclusão preliminar: o indiciado goza de excelente memória.

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Ind. 99- Retribuo seu elogio, para afirmar a excelência de sua sintética e objetiva descrição feita do meu chapéu.

O marrom do meu chapéu resulta de 70 partes de cyan, 75 partes de magenta e de 100 partes de yellow. A cor marrom diz com a estabilidade e tem imediata relação com a terra; cor de coisas definitivas, perenes, duradouras e originárias. O homem é pó.

Meu chapéu é cônico, sim. Não premeditei essa forma e, no entanto, constato que é utilíssimo para captar as luzes de todo o universo. Passei a ser uma pessoa especialmente dotada. Essa é uma experiência notável. Com certeza tem propriedades curativas.

P. n. 1- Curativas de quê?

Ind. 99- De todos e quaisquer males, físicos e espirituais. Além disso, aumenta o apetite dos que têm pouco e diminui o dos comilões viciados.

Feltro é o material de que se fez o meu chapéu. O feltro é macio; molda-se bem à cabeça; é muito confortável. Material quente que, colocado sobre a cabeça, aquece-a para maturar as ideias, os gestos e os pensamentos. No verão, confere certa e conveniente umidade ao couro cabeludo. Gosto muito das partes úmidas do corpo. O feltro aquece no inverno e refresca no verão.

Sem aba. De aba, não ouso falar. Isso vai além de meu atrevimento. Uma coisa é certa: meu modelo de chapéu não tem nem pode ter aba.

Meu chapéu tem um furo circular no topo. Este é um grande avanço no estado da técnica. O furo é muito importante para a eliminação de excesso de calores e de eventual fumaça resultante da queima de neurônios. Posso dizer que se trata de utilíssimo dispositivo de segurança, em prol dos usuários. A propriedade mais importante desse furo, no entanto, é a de centralizar a

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plena captação dos melhores fluídos universais.

Continuo: meu chapéu - o único e jamais inventado com um furo no topo - tem a propriedade de ser o único a funcionar como um verdadeiro funil invertido. O furo no topo não é obra do mero acaso. Trata-se de uma particularidade altruísta, pois, da mesma forma como recebe, para acentuar os conhecimentos, a inteligência, os talentos etc. etc., devolve ao cosmos os frutos multiplicados e produzidos em função daqueles recebimentos.

O furo no topo tem propriedades elevatórias, isto é, tudo o que recebe vem do alto e tudo o que devolve vai ao alto. Consequência lógica e inafastável: tudo o que colhe e proporciona diz com o bem e com o bom.

Acrescento a tudo o que disse - e faço-o sem medo de errar, porque parto desta experiência singular - que o meu chapéu marrom, cônico, de feltro, sem aba e com um furo circular no topo, que parece e é o único e verdadeiro funil invertido, acentua extremamente a percepção, a lucidez e o raciocínio, sem qualquer um dos incontáveis inconvenientes dos alucinógenos naturais ou sintéticos, porque, de fato, não é um alucinógeno. Em poucas palavras, é inigualável melhorador da percepção.

Quanto antes possível, registrarei universalmente a patente e o desenho deste que denominarei simplesmente de “O Chapéu” (assim mesmo, com o artigo definido, masculino “O”). Merecerei enriquecer mais do que toda a humanidade enriquecerá com meu utilíssimo invento.

Hei de ter longa vida para propagar a excelência do meu chapéu marrom e cônico, de feltro, sem aba e com um furo circular no topo.

Estou orgulhoso e sem qualquer vaidade; muito entusiasmado, como deveria estar: é muitíssimo para um homem só e quase tudo para a humanidade.

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P. n. 1- Parabéns. Empreste-me seu confortável batedor de palmas.

Ind. 99- Ei-lo. Muito grato pelo reconhecimento.

P. n. 1- Relaxe um pouco.

Ind. 99- Relaxei.

P. n. 1- Ótimo. Abra a sua mortalha.

Ind. 99- Você quis se referir à minha túnica.

P. n. 1- Entenda como quiser. Apresente-me o símbolo nacional que está obrigado a trazer junto ao seu tronco.

Ind. 99- Não posso. Tenho vergonha de me despir. Ficarei devendo.

P. n. 1- Conhece o símbolo nacional que está obrigado a trazer permanentemente junto ao corpo?

Ind. 99- Sim, claro. Todos os cidadãos o conhecem.

P. n. 1- Está com o seu?

Ind. 99- Com certeza.

P. n. 1- Descreva-o.

Ind. 99- Para quê? Também deve conhecê-lo. Não o conhece?

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P. n. 1- Sim, eu o conheço. Eu desenhei-o. Eu descrevi seu significado. Eu obriguei o seu uso por todos os cidadãos. Descreva-o - esta é uma ordem irrevogável.

Ind. 99- O símbolo nacional é um círculo marrom..., de feltro..., com um pequeno círculo central vazado.

P. n. 1- Por que todos os cidadãos estão obrigados ao seu uso permanente, exceto durante a estrita hora do banho ou quando mortos?

Ind. 99- Porque a lei obriga.

P. n. 1- Quem outorgou a lei?

Ind. 99- A autoridade.

P. n. 1- Qual é o significado da sua cor?

Ind. 99- A cor marrom diz com a estabilidade e a inalteração; tem imediata relação com a terra; cor de coisas definitivas, perenes, duradouras e originárias. Lembra que o homem é pó.

P. n. 1- O que significa o círculo?

Ind. 99- Significa que o nosso país é uma ilha perfeita, de felicidade plena, sem arestas, em permanente e perfeita ordem.

P. n. 1- Quais suas dimensões?

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Ind. 99- Exatos 41 centímetros de diâmetro. O círculo menor tem três centímetros de diâmetro.

P. n. 1- O que significa o círculo menor vazado no centro?

Ind. 99- Significado oficial? O povo diz, na intimidade dos bares, que é o... Deixemos isso para lá. Já é tarde, vou para a minha casa.

P. n. 1- Sim, desde que consiga abrir a porta que Você mesmo fechou.

Ind. 99- Não consigo. Trouxe-me à arapuca.

P. n. 1- Você ignorou o aviso; veio por livre e espontânea vontade. Apresente o seu símbolo de uso obrigatório e permanente.

Ind. 99- Está aqui.

P. n. 1- Onde?

Ind. 99- Na minha cabeça. Tracei um raio. Cortei-o com meu estilete. Trespassei as duas partes que restaram cortadas. Alinhavei-as. Cheguei a este cone que me enfeita a cabeça.

P. n. 1- Algo mais a dizer em sua defesa?

Ind. 99- Sim. Sua lei, Pessoa número 1, não prevê qualquer pena a quem não a observar. Logo, nenhuma pena me poderá ser aplicada.

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P. n. 1- Sua lógica é falaciosa. Você bem sabe que, não prevista penalidade na lei, tenho a faculdade ilimitada de aplicar a que eu quiser.

Ind. 99- Está coberto de razão - reconheço. Tenho direito a uma ordália.

P. n. 1- De pleno acordo. Concedo-lhe o direito a duas. Primeira, se Você for inocente, que um raio caia imediatamente sobre o seu chapéu. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez. Nada. Segunda: se Você for inocente, há de se manter sentado em sua cadeira para purgar delitos, sem tocar os pés no chão. Um, dois. Você está com os pés no chão. Perdeu direito a suas ordálias. Prostrou-se para quê? Não está previsto direito a perdão.

Ind. 99- Agradeço, de todo modo, sua boa vontade. Não consegue ver que sou um inocente útil?

P. n. 1- Não consigo ver isso e “o que não vejo não existe”. Permaneça de joelhos. Colocarei a máscara da justiça sobre meus olhos.

Ind. 99- Preta? Com olhos vazados?

P. n. 1- Sim, para poder ler as três sentenças que redigirei. Pronto: as sentenças estão prontas.

Ind. 99- Tão rápido.

P. n. 1- Foi só substituir o número, Indivíduo 99, nas que eu tinha em arquivo.

Ind. 99- Compreensível.

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P. n. 1- Senhores jurados, quem estiver de acordo com as minhas três sentenças permaneça como está. Um, dois, três segundos: aprovadas. Indivíduo 99, Você tem a faculdade constitucional de escolher uma dentre as três sentenças.

Ind. 99- O que diz cada uma delas?

P. n. 1- Isso faz parte da lista de segredos. Tal como os mágicos, também os tenho.

Ind. 99- Já ouvi isso em algum lugar.

P. n. 1- Sentença número 1, 2 ou 3?

Ind. 99- Tenho maior simpatia pelo número 2. Não sei dizer por quê.

P. n. 1- Essa é a sua escolha?

Ind. 99- Pode publicar que escolhi isso.

P. n. 1- Escolheu bem. Ponha-se em pé e ouça:Considerando as confissões descaradas, as presunções inafastáveis e até mesmo algumas adivinhações de pensamento torpe e, mais ainda, que

Você, Indivíduo 99, atreveu-se a vir até aqui sem ser convocado e sem ter sido conduzido sob vara;

não cumprimentou a autoridade com um “bom dia”, nem lhe prestou a devida reverência;

mentiu sobre ter tomado empréstimo;

ousou despir-se do símbolo nacional, afastando-o do tronco;

vilipendiou o símbolo nacional, rasurando-o;

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achincalhou o círculo vazado no meio do símbolo nacional, a pretexto de dizer algo impróprio ouvido do povo, nos bares, como se bares tivéssemos em nosso país;

com o símbolo nacional, confeccionou chapéu;

usou o chapéu sobre a cabeça;

deleitou-se continuadamente com ele;

entrou com ele nesta augusta sala;

enalteceu o seu uso;

destacou falsas virtudes do seu chapéu cônico;

prometeu registro do chapéu cônico que inventou;

deu receita para sua confecção clandestina;

ameaçou a autoridade, dirigindo a ela o furo do topo do seu chapéu, usando-o como arma de tiro de maus fluídos;

revelou-se biógrafo mentiroso;

procedeu a interpretações;

propôs troca de cadeira com Autoridade;

ignorou a presença dos jurados; etc., etc.,

DECIDO que deve, inicialmente, se deitar para ouvir a sentença.

Ind. 99- Pronto; estou deitado. E reconheço que nem há água neste chão.

P. n. 1- Use seu estilete.

Ind. 99- Ai.

P. n. 1- Pronto. Apostaria que quase nem doeu.

[A porta abre por si só. A Pessoa número 1 desce de sua cadeira e com o pé toca o corpo]

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P. n. 1- Você está oficialmente morto. Agora, sim, está dentro do que conta.

[A Pessoa número 1 apanha uma jarra de vidro transparente; tira o chapéu do Indivíduo 99; e despeja um pouco de água pelo seu funil sobre a cabeça do morto. Este recolhe as pernas lentamente, flexionando os joelhos; senta-se, ainda lentamente; põe-se ereto em pé, também lentamente; e, mais lentamente do que antes, abaixa o corpo em reverência à Pessoa número 1 e aos jurados]

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O mundo dentro e fora do chapéuFloriano Martins*

Ao concluir a insidiosa rota de navegação de O chapéu des-cobri que desde os primeiros instantes era acompanhado por uma observação de Eugene Ionesco: “Somos ao mesmo tempo livres e sujeitos a um determinismo”.

A originalidade manifesta da dramatização da ironia em Valdir Rocha começa por despir o cenário de praticamente todo mobiliário. Seria possível entender porta, espelho e duas cadei-ras, como coadjuvantes, muito mais do que simples elementos inanimados constitutivos da cena. O quarteto ganha surpreen-dente vida sempre que convocado. O espelho, por exemplo, as-sume o perfil de um coro trágico silencioso, que se expressa apenas a partir da suspeita do que diria a plateia – esta conver-tida em jurado – nele refletida. Um truque que mal disfarça a indução posta em cena por um dos protagonistas, Pessoa núme-ro 1 [P. n. 1]. Truque que nos traz outra observação valiosa, desta feita de Milan Kundera: “enquanto a realidade não tem nenhuma vergonha de se repetir, o pensamento, em face da re-petição da realidade, acaba sempre se calando”.

Pois não é outra a subversão que instaura P. n. 1 na condu-ção do diálogo que trava com Indivíduo 99 [Ind. 99]. O encon-tro entre ambos averigua as incontáveis razões de se estar den-tro ou fora de uma dada situação.

O diálogo é risível na exata proporção em que o tema acaba por inquirir uma perspectiva de ambiguidade entre alienação e sadismo. O domínio é uma simples questão de embaralhar as regras. As tábuas da lei são regidas por um sofisma.

Sob o argumento de uma benevolente liberdade de inter-pretação a lei nos aprisiona em seus ângulos premeditados. O mesmo truque que Valdir Rocha tem por fiança do livre curso de ambiguidade de O chapéu. Poderíamos nos referir ali a traços de Beckett, Harold Pinter, do próprio Ionesco, é certo. Porém não se trata de identificar suas pistas falsas.

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O autor, exímio embaralhador de feições, revelador de tra-ços ocultos, seja como escultor, pintor, desenhista, gravador, arrisca-se agora, através de outra goiva, do roteiro teatral, a es-crever – mais do que descrever – uma fuga que suscita o humor, o patético, a forma risível com que a realidade se apronta para confundir a todos.

A moral é elíptica e jamais contesta a si mesma, pois sempre remete a outra versão do mesmo tema. A lei nos impede de de-nunciar quaisquer delitos previstos em sua escrita.

O que este texto de Valdir Rocha mais nos diz é que não há vida possível sem que recorramos à cortina teatral.

Certa vez eu mesmo escrevi a respeito de uma escultura de Valdir, assim finalizando o poema: A verdade é a arte mais per-feita, / e o homem só a suporta no palco. O que ele faz agora em O chapéu é socavar as bases em que verdade e mentira disputam um lugar dentro e fora da realidade.

A verdadeira arte suspeita de toda e qualquer manifestação da certeza. Uma coisa é a arte, outra é a lei. O homem não tem necessariamente que escolher entre uma e outra. Mas tem que desconfiar das razões de ambas.

* Floriano Martins é poeta, ensaísta e editor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e a ARC Edições.

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A Raiz da QuestãoJorge Anthonio e Silva*

O que pode um prosaico chapéu na realidade, além de pro-teger a cabeça ou servir de elemento estético? Muito pouco. Contudo, simbolicamente pode ter sentidos que ultrapassam uma mera contagem matemática. No texto de Valdir Rocha, um mero chapéu cônico, recortado no topo, expressa seu caráter sígnico e político. Os símbolos, que não deixam de ser signos, atendem as indicações da mitologia no complexo mundo que hoje se amplia da psicanálise à publicidade e propaganda; seja comercial seja política, também presentificando-se nas ciências, além das artes e da sua crítica. Porque é linguagem mítica a ser decifrada, como a esfinge de Édipo.

O campo da mitologia subjaz a muito das nossas ações em sua singularidade, ampliando saberes sobre culturas e sinais do mundo em rede, para expandir a ansiedade do conhecimento humano.

Na liturgia humana, o chapéu indicia distinção e traz lem-branças de um mundo cortês. Um antiquado dândi jamais se esquece de tirar o chapéu para uma moçoila em trânsito. Para algumas religiões, como no cristianismo, a cabeça é a parte mais alta do corpo, órgão de faculdades do saber e do entendimento que conduzem o homem à espiritualidade. Não se entra de cha-péu em uma igreja, mas o barrete cerimonial do sacerdote indica respeitável autoridade de intermediador entre Deus e os ho-mens.

Neste texto coloquial de Valdir Rocha, pronto para o teatro com dois personagens - Indivíduo 99 (Ind. 99) e Pessoa número 1 (P. 1) - sem um nome que se justifique como de um sujeito habitual, os atores inquirem-se, sem enfrentamento de forma densa e com nuanças surreais. São sábios na utilização do signo linguístico com ele articulando um discurso de convencimento e de defesa, encaminhado para argumentos capciosos até chegar a conclusões paradoxais. A forma de indução utilizada em O Cha-péu é ágil revelando, com frases curtas e ritmo retórico, conclu-

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sões sequenciais que justificam o erro. Enganar é o mote articu-lado na falácia que quer ludibriar ainda que com raciocínio de aparente sentido.

“Eu não crio verdades, eu invento razões” lema de conven-cimento do sofista Protágoras, dito em discursos na ágora não tinha compromisso com a procura da verdade para o convenci-mento de seus interlocutores. A palavra guardava um sentido em si.

Em O Chapéu não há um mote que mantenha a dinâmica cênica, uma vez que o texto revela um confronto aberto entre o acusador e o acusado, que tenta desvencilhar-se de uma trama de sentidos obscuros para ele.

A Ética é outro aspecto evidente. Entre o erro e o acerto, entre o vício e a virtude reside a certeza de que o bem é o fim último para o bom andamento dos destinos do homem.

Para os personagens sem rosto de O Chapéu, tudo isso se desconsidera porque a trama se desenvolve de maneira ilógica com arranjos silogísticos, certezas que transcendem a realidade compreensível. Assim, subverte a lógica consciente do entendi-mento em exercício de abolição do real e do ético que deve ser imposto como única razoabilidade de conduta.

Solução dos impasses deletérios apresentados nesse texto fluido e divertido, só se daria dentro de um verdadeiro tribunal onde se aplicassem leis que se pretendem justas, interpretadas subjetivamente e aplicadas por um juiz na plenitude do entendi-mento. Aí a “palavra” imperaria como recurso humano oposto a O Chapéu que, ao gosto dos políticos manipulam o verbo, se valem das palavras, de frases de efeito apresentadas na ágora cibernética, ilustradas por um gestual de força, dinamismo e verdade. Eleitos, outra coisa se verifica.

* Jorge Anthonio e Silva é Doutor em Artes pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, ensaísta e crítico de arte.

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A ilusão ocasional das cartolas e a confusão proposital do chapéu

Mantovanni Colares*

“Na véspera de seu trigésimo primeiro aniversário, por volta das nove horas da noite, a hora do silêncio nas ruas, dois se-nhores chegaram à moradia de K. De sobrecasada, pálidos e gordos, com cartolas aparentemente irremovíveis. (...).

– Então quer dizer que os senhores estão destinados a mim? – ele perguntou.

Os dois assentiram com a cabeça, um deles apontou para o outro com a cartola na mão. (...).

‘Mandaram atores velhos e subalternos para se ocupar de mim’, disse K. a si mesmo (...).

E de repente K. voltou-se para eles e perguntou:

– Em que teatro os senhores estão trabalhando?

– Teatro? – perguntou um dos senhores, pedindo conselho ao outro com uma comissura no canto da boca. (...).

‘Eles não estão preparados para responder perguntas’, disse K. a si mesmo, e foi pegar seu chapéu.”

(O Processo. Franz Kafka. trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2012. pp. 256/257)

A força do quase centenário livro “O Processo”, de Kafka, ainda hoje gravita em torno de discussões a respeito do senti-mento de injustiça e da irracionalidade de um sistema punitivo burocrático. Oficialmente a obra é de 1925, eis que publicada somente após a morte do escritor (1924), e ela reflete o pensa-mento jurídico ocidental do inicio do século XX, ancorado em solo aparentemente firme de uma estrutura de Poder fincada em solenes códigos, superfície essa revelada por Kafka como areno-sa, numa extraordinária antevisão da fragilidade do sistema ju-dicial pós-moderno: a segunda guerra mundial confirmaria essa “ilusão ocasional das cartolas” (explico o termo mais adiante).

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O filósofo Albert Camus, ao ressaltar que Kafka nos conduz à “estranheza da vida de um homem e a simplicidade com que esse homem a aceita”, resume magnificamente O Processo: “Jo-seph K. é acusado. Mas não sabe de quê. Ele por certo quer se defender, mas ignora por quê. Os advogados acham sua causa difícil. Enquanto isso, não deixa de amar, de se alimentar ou de ler seu jornal. Depois é julgado. Mas a sala do tribunal é som-bria. Ele não entende grande coisa. Só supõe que foi condena-do, mas se pergunta a quê. Algumas vezes também duvida disso e continua vivendo. Muito tempo depois, dois senhores bem-vestidos e educados vêm buscá-lo e o convidam a segui-los. Com a maior cortesia o levam a um subúrbio desesperado, põem sua cabeça sobre uma pedra e o degolam. Antes de morrer, o conde-nado diz somente: ‘como um cachorro’.” (“A esperança e o ab-surdo na obra de Franz Kafka”. O mito de Sísifo. trad. Ari Roit-man e Paulina Wach. 2a. ed. Rio de Janeiro : BestBolso, 2012. pp. 127/128).

Irresistível, pois, fazer um cotejo do romance kafkaniano com a peça “O Chapéu”, de Valdir Rocha. Afinal, nos dois textos as personagens que justificam a trama são sentenciadas de modo aparentemente injusto, e ao final degoladas. As semelhanças, en-tretanto, param por aí; e à medida em que se mergulha no diálo-go nascido da atrevida pena de Valdir Rocha, se percebe uma evidente antinomia em relação ao universo de “O processo”.

Senão vejamos.

A sala sombria onde é selado o destino da personagem Jose-ph K. é totalmente distinta da sala branca e iluminada na qual se desenrola o aparentemente surreal diálogo entre o “Pessoa nú-mero 1” e o “Indivíduo 99”.

Joseph K. não entende o que lhe acontece, e nem se esforça por isso; simplesmente aceita seu destino. “Indivíduo 99” pro-cura entender, escorado na lógica, o desenrolar dos aconteci-mentos, e considera inalienável seu direito de argumentar, esta-belecendo uma dialeticidade em busca da compreensão de seu fado. Possivelmente “Indivíduo 99” antevê o fecho do julga-mento, e dele não se mostra arredio, mas lhe parece que com-preender é mais importante do que viver. A sua ânsia por se re-

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velar um animal hermenêutico ultrapassa a condição nada hu-mana de viver sem interpretar.

O lampejo de uma de suas falas há de ser enfeixado como seu lema de vida: “tudo tem um significado ou muitos”, no que é reforçado pela contundente fala discursiva do “Pessoa número 1”, aguçada na amoladeira do conforto por ser um agente da lei, ao rasgar o tecido da liberdade, dizendo: “a interpretação con-funde com a própria criação”.

Joseph K. morre “como um cachorro”, porque não inter-preta. “Indivíduo 99” morrerá como homem, um ser hermenêu-tico, pois lhe foi dado o privilégio do diálogo, embora vencido desde o início.

Bem se vê que a peça “O Chapéu” se propõe a instigar a audiência com diversas possibilidades de interpretação das re-gras destinadas à inalcançável busca pela ordem na convivência social, na roupagem do que costumamos chamar de “Direito”. E assim vamos angariando simpatia e antipatia pelas persona-gens no aparentemente manso diálogo que se estabelece entre o julgador, que é pessoa, e o julgado, que é indivíduo, a destacar de pronto que existe sim a diferença entre o cidadão e o Estado-julgador, pois se este assume a feição de persona (a máscara a justificar sua existência), o indivíduo, indiviso (que não pode se desmembrado), nos alerta para o fato de que nós, integrantes sociedade, pertencemos a cada um de nós, e nos diluímos nesse caldeirão onde se depositam as ferventes águas da lei para for-mar o caldo social da obediência.

Em “O Chapéu” temos a quase imperceptível náusea por sabermos as dores e as delícias de uma civilização do século XXI predestinada à ilusão da liberdade, porque se é possível um diá-logo, se os argumentos são receptivos, se o “Indivíduo 99” tem a condição de tentar convencer ao “Pessoa número 1” que seu chapéu não carrega qualquer ilegalidade – mesmo sendo ilegal o seu uso naquele recinto alcunhado de tribunal –, então a liber-dade seria aparentemente um valor conquistado e de pleno uso.

Cada um há de concluir, à sua maneira, a respeito das van-tagens e desvantagens desse campo branco e iluminado de uma sala onde civilizadamente se chega ao destino de alguém, dentro

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de regras frouxas e passíveis de inúmeras concepções; afinal, tudo pode ser interpretado, até a peça teatral que fala sobre in-terpretação.

Um detalhe ronda minha cabeça desde a primeira leitura de “O Chapéu” e a imediata conexão que fiz naquela ocasião com o romance “O Processo”: a existência de adornos destinados a cobrir as cabeças dos que vivenciam ambos dramas. Em Kafka, a cartola dos acusadores; em Valdir, o chapéu do acusado.

Sigo esse caminho. Atrai-me a sutileza dos símbolos, os si-nais que atravessam séculos e, quase desapercebidos, nos legam mensagem subliminares e inquietantes, infiltrados nos mean-dros do inconsciente. É o caso da cartola e do chapéu.

A cartola pertence ao início do século passado, embora re-presente herança tênue do final do século XIX. Chapéu mascu-lino de aba estreita, em seu formato cilíndrico e alto, preto e brilhante, o adorno era reservado a ocasiões solenes. Por isso, a cartola é algo muito adequado em época onde a solenidade era hábito. O jurista do início do século XX sentia essa necessidade do uso solene das leis, dos códigos, como sinônimo não só de segurança, mas também de conforto de se saber protegido por um sistema de regras imutáveis, com a denominada visão positi-vista do Direito. A cartola, de tão solene, causa essa impressão de ser irremovível, como chama a atenção Kafka na simbologia dos agentes do Poder e suas copas elevadas. Mas é só uma ilusão, e ocasional, desfeita na primeira grande tragédia do século das grandes guerras. As atrocidades do nazismo forçaram os juristas a repensar o verdadeiro papel do Direito na civilização ociden-tal, já que o conforto de leis solenes não foi suficiente para evitar uma das mais terríveis páginas de nossa história, escrita com san-gue de milhões de judeus barbaramente ceifados de suas vidas por um monstro, igualmente solene, chamado Hitler.

A segunda metade do século XX acena para o abandono da cartola, e prevalece a informalidade do chapéu, enfeite livre de cerimônias, com sua multiplicidade de desenhos, feitios inesgo-táveis, armações tão livres que se revela exaustivo catalogar os milhares de tipos de chapéus criados desde então até hoje.

Caminhamos a passos largos desde a adoção do chapéu até a aurora deste século XXI a pensar que o Direito deve ficar livre

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das amarras dos solenes legisladores, atribuindo ao julgador a liberdade de uma interpretação onde há de vencer a imaginação.

Desligamo-nos da cartola do chapeleiro maluco de Lewis Carroll e nos inclinamos ao chapéu de mil possibilidades do pequeno príncipe de Saint-Exupéry.

O chapeleiro maluco, condenado a viver para sempre na hora do chá (seis da tarde), como punição pela tentativa de “ma-tar o tempo”, ou seja, ante a postura de transgressão de quem busca alterar a ordem natural das coisas, é um notável símbolo do final do século XIX e início do século XX, a era da cartola e sua ilusão ocasional (Alice’s adventures in wonderland. Lewis Carroll. New York : Calla Editions, 2011. p. 133. First publi-shed by Thomas Nelson & Sons, London, 1901).

O pequeno príncipe, por sua vez, acena para a liberdade dos símbolos, pois o aparente desenho de um chapéu não era um chapéu, e sim “uma jiboia digerindo um elefante”, daí por-que indagava às pessoas grandes se aquele rabisco lhes dava medo, ao que retrucavam os adultos: “porque um chapéu daria medo?”, a merecer o suspiro do pequeno hermeneuta: “meu chapéu não representava um chapéu”, forçando-o ao novo dese-nho com os detalhes do que imaginara ao fazer o primeiro cha-péu, firmando então a sentença tipicamente aplicável à nova era da interpretação: “Elas (as pessoas grandes) têm sempre necessi-dade de explicações detalhadas” (O pequeno príncipe. Antoine de Saint-Exupéry. 49a. ed. Rio de Janeiro : Agir, 2009. p. 8).

Por isso a peça de Valdir Rocha diz respeito a esse emblemá-tico objeto. O chapéu é a retórica do Direito. O chapéu é o ativismo judicial, a liberdade máxima de interpretação. A socie-dade moderna estaria patologicamente retórica. Saímos da ilu-são ocasional das cartolas para adentramos na confusão propo-sital do chapéu. O texto de Valdir mostra exatamente isso. A interpretação é a liberdade às avessas. Parte-se de um argumen-to, aparentemente livre, para se chegar ao real motivo da fatali-dade de um sistema que ignora as peculiaridades de cada um e que sentencia: somos todos números, e teremos destinos seme-lhantes. Basta ver o trecho da peça onde o “Pessoa número 1” elabora de modo instantâneo três sentenças que recairão sobre

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o “Indivíduo 99”, que de modo sintomático externa sua indig-nação: “tão rápido” (timidamente, sem exclamação), ao que re-truca o julgador: “foi só substituir o número, Indivíduo 99, nas que eu tinha em arquivo”. Tão assustador quanto esse método, é a resposta do réu: “compreensível”.

O termo “compreensível” é uma navalha. O acusado não diz: “concordo...”, ou mesmo, “discordo!”, ou então “por que é assim?”. Nada disso. Fala simplesmente ser compreensível. Eis a apatia do homem moderno ante à massificação dos métodos de julgamento, a aparente liberdade adornada por um tempo não solene, sem cartolas.

E a era do chapéu finalmente mostra seu lado mais insultuo-so, com a cena da violência do autoflagelo a que se submete “Indivíduo 99” após a condenação, inclusive com o cinismo de “Pessoa número 1” a estabelecer o modo como o apenado daria fim à sua existência: “use seu estilete”...

A cena mais agressiva, porém, parece ser a da reverência que o réu faz aos jurados, ou seja, a própria plateia, que se mira no espelho desde o início, advertida por estar ali não como teste-munha, e sim como julgadora plural. A audiência é mais do que cúmplice; ela é responsável pelo fecho da história, ao aceitar o veredicto com passividade, e sem perceber a simbologia na iden-tificação do condenado, pois não é desarrazoado presumir que, antes do “Indivíduo 99”, foram julgados “Indivíduo 98”, “Indi-víduo 97”, e por aí vai no sentido decrescente. Daí o alerta: qualquer um do público é, potencialmente, o “Indivíduo 100”. Eis a realidade cortante e proposital de “O Chapéu”.

* Mantovanni Colares Cavalcante é Professor e Juiz de Direito.

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Da possível arte do impossívelMarco Vasques*

Ainda que o próprio Eugène Ionesco tenha dito que absur-do era nomear o teatro que ele fazia de Teatro do Absurdo, as-sim foi nomeado. Martin Esslin, crítico húngaro infiltrado em solo inglês, seguramente cunhou o termo para criar um referen-te, isto é, uma possibilidade na impossibilidade “não-racional”, “não-naturalista”, de se ler as obras de Samuel Beckett, Fernan-do Arrabal, Eugène Ionesco, Arthur Adamov e tantos outros autores filiados à noção de esgotamento do humano, de esgota-mento da linguagem e, sobretudo, de esgotamento de um mode-lo de teatro que não mais traduzia a dimensão humana nos pal-cos após a ressaca de duas guerras mundiais.

De lá para cá, muitas especulações, quase todas acadêmicas, feitas por meio de caudalosos textos, já assassinaram o texto teatral e a arte de um modo geral. Desde Platão, tem-se decreta-do a morte da arte. É um hospício a esfaquear as palavras, satu-rando seus significados. No entanto, é a própria arte que se im-põe e contesta sua propalada implosão. Como? Resistindo aos anúncios catastróficos e reinventando novas formas de existên-cia. Ressignificada, reinventada, a arte se mostra, muitas vezes, por meios e fazeres quase imperceptíveis, que impõem necessi-dade de novos olhares, de novas leituras. Daí ser preciso erigir novos conceitos para ser cotejada, apreciada, porque o simples decreto de sua inexistência já se mostrou falível.

É certo e evidente que a arte não morreu. Contudo, é pre-ciso operar uma crítica aos modos e modelos dos circuitos de arte e instaurar, também, a distinção necessária entre arte e cul-tura. E isso não é restrito às artes visuais, lugar do qual Valdir Rocha é oriundo, mas cabe à literatura, ao teatro, ao cinema, enfim, ao grande circo que se monta em torno da economia - pública e privada - da cultura/arte rever criticamente seus mode-los operativos. A peça teatral O Chapéu apresenta uma crítica ácida ao malabarismo de alguns para flutuar na crista da onda a qualquer custo e à eleição de feitos artísticos inexpressivos - às

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vezes até mesmo inexistentes - à categoria de biscoito fino a ser recheado com o olhar, quase sempre embrutecido, de uma corte marcial que determina o que apreciar, como ver e o que com-prar em termos de arte.

Ao se ler O Chapéu, não há como não se reportar à Alice no País das Maravilhas e suas implicâncias com a linguagem dada, com o mundo torpemente congelado que impossibilita o uso da fantasia e da invenção. Também não há, pelo menos a este leitor, como não mergulhar no indiciamento de Joseph K., figura cen-tral do romance O Processo, de Franz Kafka. Há igualmente a referência explícita ao ready-made de Duchamp, que desloca o modo de ver e perceber a arte e instaura uma tradição de perce-ber o ato artístico em si, mais que o resultado do ato propria-mente dito. Mas Valdir Rocha não se rende a aproximações, a encostamentos e a relações de parentesco. Porque O Chapéu é uma obra arquitetada por um artista que sabe manejar o verbo, manejar os personagens e, sobretudo, construir uma dramatur-gia capaz de teatralidade. As referências, na peça, estão conecta-das à crítica, aos padrões que nos são impostos na arte e na vida.

Homem culto e artista pleno, Valdir Rocha sabe que a arte contemporânea, tal qual se apresenta hoje, necessita ser obser-vada e “lida” a partir de outros parâmetros. Talvez nem tão so-bejo aos hermeneutas e sem tanta predileção aos estetas, aqui pensando em Deleuze e toda a sua teoria da sensação. Talvez um piano intervalar, entre uma coisa e outra, respirando sonata on-dulante, que possa fruir um olhar mais poroso e menos autori-tário sobre o discurso que se faz sobre o ato artístico e sobre as amarras de vida cotidiana.

Poderíamos aqui ressaltar o efeito político implícito no diá-logo das personagens; também o posicionamento das estruturas de poder, seja na arte, seja na mais simples ação cotidiana. É que em O Chapéu o político não precede a arte, problema quase generalizado nos dias correntes. Primeiro, aparece o artífice, o inventor, que constrói personagens capazes de apontar para to-das as direções do que somos, do que estamos nos tornando. É assim que “P. n. 1” se insurge ao “Ind. 99”:”Isso mesmo: tudo isso e muito mais. Cada indivíduo faz de um lugar coisa diversa,

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de acordo com o seu olhar, seu modo de agir e seu caráter pes-soal. Chame-se a isso de invenção, criação ou destruição.”

Por fim, o que está em jogo nesta peça não é a fábula possí-vel, mas o rasgo de impossível que os grandes textos possuem. O que move esses personagens é aquela dimensão de teatralida-de presente em textos como A Tempestade, de Shakespeare, O Arquiteto e Imperador da Assíria, de Arrabal, e, para ficarmos em poucos exemplos, Dias Felizes e Esperando Godot, de Bec-kett. É o esgotamento da dimensão humana restituído pela fic-ção e pela linguagem o maior mérito de O Chapéu. Se faz neces-sário encontrar atores impossíveis para encenar as possibilida-des aqui inventadas. A teatralidade presente, contrapondo-nos à afirmativa de Roland Barthes de que a teatralidade é o teatro menos o texto, começa efetivamente no texto e se expande ao leitor. Seguramente se prolongará aos palcos. Não cabe filiar O Chapéu ao chamado Teatro do Absurdo, ou mesmo ao Surrea-lismo, porque a peça é portadora de teor poético e humano ca-paz de fazê-la ultrapassar os modismos erigidos para categorizar a arte e o ato artístico. A peça O Chapéu é carregada de força poética, que é o fundamento primeiro da arte. É invenção que suplanta o real inócuo. É a via possível da arte fundada na im-possibilidade.

* Marco Vasques é poeta, crítico teatral, editor do jornal brasileiro de teatro Caixa de Pont[o] e doutorando em Teatro no Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina.

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