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    A o l e ~ a o Contemporanea seprop6e a tratar de temas atuaisnas areas de Filosofia Literatura

    Artes. Participam dela nomesde destaque na p r o d u ~ a o culturalcontemporanea sempre coma finalidade de refletir sobreassuntos pensadores e correntesque de algum modo ajudam arever 0 mundo em tempos decultura planetaria. 0 enfoquee 0 de um pensamento originalem linguagem acessivel maspreservando a profundidade eo rigor da reflexao.

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    Neste volume, Santuza Cambraia Navespropoe urn recorte n hist6ria da musicafeita no Brasil a partir do seculo XX. Consciente de ser impossivel tra

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    Santuza Cambraia Naves

    C a n ~ a o popuLarno rasilORG NIZ DOR D C O L E ~ i i oEvando Nascimento

    I V I I I Z A ~ i l o BRASII f:IRA

    io de Janeiro2 1

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    BD1TORA AFLLIAl)/I.

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    Copyright Santuza Cambraia Naves, 2010PROjETO GRMICO DE MIOLO ECAPARegina errazCIPBRASIL CATALOGAc;AO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE UVROS, RJN243C Naves, Santuza Cambraia, 1952-

    Can

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    n t r o d u ~ a o

    Seria uma tarefa enciclopedica abordar todos os aspectos damusica que tomou forma no Brasil, a qual damos 0 nome depopular. Seguir por esse caminho exigiria que eu adotasseuma forma de escrita monognifica que nolo parece condizercom 0 can ter reflexivo desta serie. Optei entao por trabahar com uma modalidade de can.,ao que e veiculada atrayes da industria fonografica e dos meios de comunica.,ao demassa, principaimente 0 radio e a televisao e mais recentemente, por meio dos recursos oferecidos pela internet.

    A esco ha da can.,ao se deve a varios motivos. Um deles- e talvez 0 principal - e a posi.,ao hegemonica que essaforma musical adquiriu no cenario musical brasileiro em al-guns momentos do seculo xx estatuto que he foi as vezesconferido pelo publico e outras vezes pela critica. Quantoao publico, a audiencia da can.,ao popular foi calorosa - ede largo espectro - principaimente entre os anos 30 e osanos 60, epoca em que 0 radio predominava entre os meiosde comunica.,ao de massa. Nas decadas seguintes, a televisao suplantou radio como meio de comunica.,ao; no casod musica popular, esse processo sem duvida teve iniciocom os festivais da can.,ao da segunda metade dos anos 60.Ambos os meios, entretanto, continuaram divulgando estamodalidade musical para um publico amplo. Marc;ia TostaDias (em s donos d voz - industri fonogr fic br sileirmundi liz r o d cultur l chama a aten.,ao para a importancia do radio como difusor da musica popular, embora eletenh passado por mudan.,as significativas ao longo dosanos. Uma delas ocorreu em meados da decada de 1970,

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    com a c o n s o i d a ~ a o do sistema de transmissao em frequencia modulada (FM). 0 que levou as emissoras a se especializitr. difundindo repert6rios musicais para audiencias es-pedficas. Dias cita as emissoras que inauguraram 0 sistemaFM. como a Bandeirantes. nos anos 70. e outras e s t a ~ o e sque. a partir do final dessa decada. passaram a criar programas para as faixas jovens do mercado. culminando com aFluminense FM. que se especializou no rock nacional emergente. conhecido como "rock anos 80 .

    De fato. 0 mercado musical se segmentou principalmente a partir dos anos 1980. convergindo. de certo modo. como aparecimento de novos estilos musicais. como 0 "rock brasileiro dos anos 80". que despontou logo no inicio da de-cada. e as sonoridades derivadas da soul music norte-americana. como 0 funk carioca e 0 rap (ou 0 hip-hop) em sUasversoes brasileiras. que surgiram alguns anos depois. Voltando ao argumento de Marcia Dias. ela afirma (p. 164) que e"a pr6pria e g m e n t a ~ a o que revitaliza 0 radio. nos anos 90 .Quanto a televisiio. a autora menciona - alem dos programas de audit6rio. que s6 apresentam. entretanto. 0 "produto" musical que tern 0 selo de uma grande gravadora -urn fenomeno importante para 0 incremento d audienciade musica popular: 0 surgimento. em 1990. da MTV (MusicTelevision). canal dedicado exclusivamente a p r o g r a m a ~ i i omusical.

    Com r e l a ~ i i o a critica direcionada para a musica divulgada pelos meios de c o m u n i c a ~ i i o de massa. urn dos seusfundadores foi Cruz Cordeiro. cuja coluna jornalistica na revista Phono Arte teve inicio em 1928. Antes dele. de fato.grande parte da atividade critica se restringia a musica deconcerto. fundamentand6-se. num primeiro momento. nos

    preceitos do legado classico-romantico. e posteriormente. apartir do Modernismo. nos pressupostos que valorizavam apesquisa e it i n c o r p o r a ~ i i o dos sons "autenticamente populares". Esse e 0 caso. por exemplo. dos textos de Mario deAndrade escritos nos anos 1920 e no inicio da decada de 30e publicados tanto na coluna jornalistica "Mundo musical".da Folha da Manhii. quanto nos peri6dicos Iigados ao movimento modernista. como a Revista de Antropofagia e Ariel. Emtodas essas p u b l i c a ~ o e s . Mario de Andrade exercitava umacritica de cunho erudito em torno de um material diversificado. passando pela musica de concerto. pela folcl6rica e pelas c o m p o s i ~ o e s de autores que julgava comprometidos como "populario" musical. como Marcelo 1\Ipinamba e ErnestoNazareth. Mario criou a categoria "populario" para se referiras m a n i f e s t a ~ o e s culturais. sobretudo as folcl6ricas. oriundas de uma sintese das "tres r a ~ a s . Assim. enquanto conferia urn grande valor as expressoes artisticas identificadascom 0 "populario". Mario. por outro ado. fazia uma criticaveemente ao que concebia como "popularesco". ou seja. as

    c r i a ~ o e s culturais produzidas e veiculadas pelos meios dec o m u n i c a ~ i i o de massa. Em palestra proferida em 1934 nSociedade de Cultura Artistica. intitulada A musica populare a musica erudita". Mario enfatizou 0 carater descartavelda musica "popularesca . definindo-a como uma especie de

    submusica. came para alimento de radios e discos. elemento de namoro e interesse comercial com que fabricas, empresas e cantores se sustentam. atucanando a sensualidadefacil de urn pUblico em vi de transe.Enquanto vigorou esse postulado modernista. a critica

    musical enfatizou. principalmente. as c r i a ~ o e s musicais queconsiderava autenticas representantes da brasilidade. Foi.,.

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    aos poucos que as sonoridades consideradas "impuras", ouseja, contaminadas pelos meios de c o m u n i c a ~ a o de massa epor outras nacionalidades, passaram a ser objeto de comentario crftico nos jornais. Pode-se inclusive admitir que doiscriterios opostos tenham convivido durante urn born tempo e, as vezes, paradoxalmente, se interpenetrando: 0 quevalorizava as musicas divulgadas pelos meios de comunica

    ~ a o de massa e 0 que prezava os sons criados a maneira tradicional. seja atraves das c o m p o s i ~ o e s folcl6ricas de domfnio publico, seja atraves das c r i a ~ o e s musicais que, emboraautorais, buscam uma continuidade com a t r a d i ~ a o . Urnborn exemplo dessa convivencia do culto dos sons "puros"com a a p r e c i a ~ a o dos "impuros" (em termos de d i v u l g a ~ a o )e a Revista da MUsica Popular publicada no Rio de Janeiro entre 1954 e 1956 e editada por Lucio Rangel. A revista conciliava a crftica veemente a a m e r i c a n i z a ~ a o da musica brasileira com a a p r e c i a ~ a o de c a n ~ o e s que se ouviam no radioou se difundiam em a p r e s e n t a ~ o e s musicais de palco e outros redutos. Ao proceder dessa forma, a revista assumiauma r i e n t a ~ a o diferente da vertente modernis ta de Mariode Andrade, que se pautava pela ideia de que velar pela autenticidade do "populario" exigia nao s6 compromissocom a brasilidade, como tambem a recusa a d i v u 1 g a ~ a o mi-diatica. Se nos detivermos na e l a ~ a o das pessoas que escreveram para a revista, observaremos que textos (p6stumos,evidentemente) de Mario de Andrade conviviam com artigosde musicos bastante conhecidos atraves do radio, como e 0caso de ry Barroso. No primeiro numero da revista (setembro de 1954 , por'exemplo, prevalece a p r e o c u p a ~ a o com aintluencia estrangeira na musica brasileira. Pixinguinha eretratado na capa, com Chamada para a sua a t u a ~ a o como

    "autentico musico brasileiro, criador e verdadeiro quenunca se deixou intluenciar pelas modas eiemeras ou pelosritmos estranhos ao nosso populario". Claudio Murilo, emartigo acido contra 0 "espirito de m i t a ~ a o dos musicos brasileiros, critica principalmente aqueles que se poem a tocaro bebop norte-americano. E uma nota intitulada ':Antologiada Musica Brasileira" (nao assinada) argumenta que as musicas estrangeiras veiculadas pelo radio - 0 bolero, a rumbae, principalmente, 0 bebop - se misturam com a musicapopular, causando impacto negativo na nossa cultura.

    As opinioes crfticas se diversificaram mais ainda a partirdo final dos anos 50, com a entrada em cena da bossa nova,que resultou da e s t i l i z a ~ a o do samba atraves do usa de in

    f o r m a ~ o e s provenientes do cool jazz e de outros generosmusicais. Evidentemente, a bossa nova dividiu a crftica. Po-demos dizer que os defensores das t r a d i ~ o e s musicais populares e nacionais se alinharam em torno de Lucio Rangel,enquanto os amantes do jazz se colocaram ao lado de SilvioTUlio Cardoso e Ary Vasconcelos. A despeito de ser caracterizado pelo Dicionario Cravo Albin de MUsica Popular Braslleiracomo urn dos "mais intransigentes defensores da musicapopular brasileira tradiciona ", Lucio Rangel se notabilizou,alem de outros feitos, por ter apresentado Tom Jobim a Vi-nicius de Moraes, ambos considerados renovadores da musica popular, sobretudo por suas parcerias em c a n ~ o e s debossa nova. Lucio Rangel, alem de ter sido e d i t o ~ responsavel pela Revista d MUsica Popular colaborou com os jornaisA Manhii Jomal do Brasil Didrio de Sao Paulo e Estada de Minase com as revistas Manchete A Cigarra Senhor e Lady entreoutras. Sergio Cabral e urn dos pesquisadores de musicapopular que admitem ter tido a influencia de Rangel.

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    Silvio 1lliio Cardoso e My Vasconcelos, por outro lado,ficaram conhecidos por assumirem uma postura mais ecletica com e l a ~ i i o a musica. Alem de assinarem juntos algumas colunas sobre musica popular, como a s e ~ i i o Urn pouco de jazz , em a Globo (1943), os dois criaram juntos, em1966, Clube de Jazz e Bossa Nova. Por intermedio de Jorgi- Inho Guinle, urn amante do jazz, 0 pessoalligado ao Clubepas sou a fazer algumas a p r e s e n t a ~ e s de bossa nova no Co-pacabana Palace. Silvio 'Illiio e My iuiciaram em 1943 suastrajetorias como criticos na c r i a ~ i i o da pagina Swing Fanda revista enaMuda e, devido a preferencia deles por jazz,intitularam a sua coluna de Aqui Jazz .

    A bossa nova, como vimos, atuou como urn divisor deaguas na crftica musical, provocando clivagens profundasentre os defensores do estilo e seus adversanos. Urn dos quese notabilizaram como opositores foi 0 jornalista Jose Ra-mos TInhoriio, que c o m e ~ o u sua carreira de crftico musicalcom a coluna Primeiras l i ~ e s de samba , publicada no r-nal do Brasil no periodo de 1961 a 1966. Tinhoriio usava 0

    e s p ~ o dessa coluna para discutir, entre outras coisas, as origens do samba. tema das rafzes de determinadas mani

    f e s t a ~ o e s culturais estava em yoga no momento, marcado,alem do debate sobre a questiio social, pelo postulado nacionalista. Foi nesse momento que c o m e ~ r m a se tornarcada vez mais acirradas as discussoes sobre 0 que seria 0produto cultural que representava de modo autentico aidentidade nacional. Tinhoriio se tornou urn critico ferrenho da bossa nova por dois motivos: pela inautenticidade doestilo, misturado que estava com n f o r m a ~ o e s musicais norte-americanas; e pelo fato de a bossa nova ter sido criadapor jovens de classe media da Zona Sui do Rio de Janeiro.

    Amparado por postulados nacionalistas e marxistas, Tinhorao recusava, portanto, urn estilo musical que via comoinautentico em todos os sentidos, pois niio so era americanizado como tambem se mostrava distante das camadas po-pulares, as unicas que considerava genufnas representantesda cultura brasileira. Tinhoriio publicou seu primeiro livroMUsica popular um tema em debate (Rio de Janeiro, EditoraSaga) - em 1966, 0 primeiro de uma serie de trabalhos so-bre 0 tema, e ate hoje atua como crftico e historiador damusica popular brasileira em diversos jornais, revistas eemissoras de televisao.

    Em 1968, Augusto de Campos publicou Balanfo da bossa:antologia mtica da modema mUsica popular brasileira livro quereune urna serie de artigos seus e de musicos e musicologoscomprometidos com 0 projeto de r e n o v a ~ i i o da musica brasileira. Augusto de Campos aponta, nesse livro, convergencias entre a bossa nova e a poesia concreta, pelo fato deambas se pautarem pela e x p e r i m e n t ~ o formal e por fun-damentarem seu projeto estetico em princfpios objetivos,racionais e concisos. Tomando como base esse tipo de parametro, Joiio Gilberto e apontado como 0 artista que levaesse procedimento as Ultimas consequencias, ao adotar umamaneira de cantar que se pauta pela d i s c r i ~ i i o e pelo intimismo, diferenciando-se dos exageros vocais dos interpretes que seguem a linha do canto operistico.o teor moderno da critica de Augusto de Campos passou a ser questionado, de certa forma, por teoricos queveem com d e s c o n f i n ~ 0 discurso vanguardista direcionado para 0 futuro da arte e da cultura. A tendencia atual, queparece configurar-se no Brasil principaimente a partir dosanos 1980, e a de enfatizar 0 aqui e agora e de orientar-se.,.

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    por criterios mais relativistas do que valorativos. Assim, 0paideuma concretista que valoriza 0 que foi revolucionarioem sua propria epoca e substituldo por urn principio queleva em conta, principalmente, a a r t i c u l a ~ i i o da arte com avida. Ao que parece, 0 que se apIica a Iiteratura e as outrasartes tambem se apIica a musica. [Silviano Santiago, em A

    d e m o c r a t i z a ~ i i o no Brasil (1979-1981): cultura versus arte ,artigo incluldo em 0 cosmopolitismo do pobre.] 0 periodo queteve inlcio com a abertura politica no pais caracteriza-sepela incidencia de urn debate amplo e democratico que sedaria no mundo artistico, niio no ambito politico, e tampouco no intelectual-academico. A arte entiio, nesse momento,em vez de restringir-se ao dominio da alta cultura , configura-se como instrumento poderoso na c r i a ~ i i o de novasidentidades sociais. Assim, segundo Santiago, a arte desloca-se do Iivro - ou de outros suportes privilegiados - paraa vida.

    Embora niio possa ser identificado propriamente comocritico de musica popular, mas como urn artista-intelectualque estende a sua a t u a ~ i i o para 0 trabalho ensaistico e musical, Jose Miguel Wisnik talvez tenha desenvolvido, em 0som e 0 sentido a analise mais arguta das sonoridades contemporiineas. Wisnik niio se dedica, nesse Iivro, a comentara musica brasileira; seu argumento vai mais alem, acompanhando urn fenCimeno mais global de u d n ~ nos padroesde c o m p o s i ~ i i o e de escuta, desenvolvendo urn raciocinioque considero bastante relevante para 0 proposito deste Iivro: trata-se do retorno da musica modal no mundo contem-poriineo. Para expIicar esse fenCimeno, 0 autor opera estrategicamente com as c a t ~ g o r i a s mundo modal , mundotonal e mundo pos-tonal ; assim, alem de estabelecer a di-

    f e r e n ~ a musical entre os dois sistemas, Wisnik os articulacom registros culturais especificos.o sistema modal predominou no Ocidente ate 0 seculoXV e existe hoje em dia em sociedades niio ocidentais fortemente ancoradas nas suas t r a d i ~ 6 e s . Nessa especie de mundo, a musica opera no plano do sagrado, ou seja, do ritual.Em termos tecnicos, a musica modal se caracteriza pela for

    ~ a da u l s a ~ i i o ritmica. Wisnik des creve a musica modal (p.40) como alturas melodicas quase sempre a s e r v i ~ o do ritmo , que criam p u l s a ~ o e s complexas e urna experiencia dotempo vivido como descontinuidade continua, como repeti~ o permanente do diferente . Essa natureza de certa formacicIica da musica modal faz com que as p u l s a ~ o e s p r e ~ mestaticas , embora na verdade sejam exta:ticas e sejam experimentadas como urn tempo circular do qual e diffcil

    sair por ser infinito, ou por serem vivenciadas como urnaespecie de suspensiio do tempo .

    Outro aspecto tecnico que define a musica modal e a recorrencia aos instrumentos de percussiio, os quais, por suavez, se mostram mais proximos do mundo do ruido e, portanto, da natureza. 0 argumento de Wisnik e que 0 advento do canto gregoriano (cantochiio), na Igreja medieval, marca 0 momento, na experiencia ocidental, de supressiio doruido (0 som percussivo) em nome da sonoridade, significando a passagem da natureza para a cultura. 0 canto gregoriano teria inaugurado, portanto, a t r d i ~ o que, vai darna musica tonal dos seculos posteriores, por conta de doisaspectos. Urn deles e que, ao excluir a percussiio e privilegiar a melodia, 0 canto gregoriano substitui, neste tipo demusica modal, 0 domfnio do pulso pelo predomfnio das alturas, preparando 0 terreno, portanto, para 0 advento da

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    musica tonal. 0 segundo aspecto e relativo ao ascetismo docanto gregoriano, na medida em que se trata de uma musica que, de acordo com Wisnik p. 42), filtra 0 rufdo emnome de urna ordem sonora completamente livre da amea

    da violencia mortifera que esta na origem do som .Mas se esperamos que tudo se desenrole a partir de urnprocesso hist6rico linear e evolutivo, com 0 aprimoramen

    to cada vez maior dessa sonoridade sem interferencias, Wisnik nos apresenta, em vez disso, uma experiencia cfclica detempo, com 0 retorno do rufdo no mundo contemporaneo.Assim, se a musica tonal que surge no mundo modenio,particularmente a c1assica, da continuidade ao procedimento de exc1uir 0 rufdo (ou seja, a percussao) da musica, eisque 0 ruido volta triunfante na experiencia modernista doseculo xx em que se passa a postular a i n c o r p o r a ~ a o pelamusica, dos barullios urbanos e eventualmente do campo.Wisnik se ref re, assim p. 43), a explosao de ruidoso nasmusicas de Stravinski, Schoenberg, Satie e Varese. 0 autormenciona tambem as duas modalidades de musica que surgem no periodo p6s-Segunda Guerra Mundial, que utilizammaquinas sonoras para a r o d u ~ o de ruidos: a musica concreta, que grava ruidos reais e os traballia por mixagem, e aeletrilnica, que utiliza rufdos artificiais, produzidos por sintetizadores.

    Com r e l a ~ a o amusica de hoje, Wisnik p. 11) refere-se aoprocesso de s s i f i c ~ o dos sintetizadores, principalmentecom a tecnica do sampling, e i atuao decisiva que 0 pu1-so volta a ter em nossas sociedades a partir da segunda metade do seculo xx 0 que seria sinalizado pelo jazz, pelo rocke pela musica minimalista. Dando continuidade a isso, asmusicas popu1ares de hole teriam passado a fazer cada vez

    mais mixagens democraticas , misturando sons europeuscom os africanos desenvolvidos nas Americas. Assim, alemdo embaralhamento promovido pela nossa musica entreos registros erudito e popu1ar, ocorreria uma redescoberta,pela musica ocidental, de procedimentos relativos ao sistema modal, como os que levariam a e v a l o r i z a ~ a o do pu1so.Essas questiies levantadas por Jose Miguel Wisnik nos auxiliam a refletir sobre as sonoridades que entraram no Brasil, como 0 rock, a partir dos anos 50, e 0 funk e 0 hip-hop,a partir dos anos 80. Estes generos recorrem aos aparatoseletrilnicos e nasceram em redutos africanizados dos Estados Unidos da decada de 60.

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    1 A a n ~ a o critica

    1 1 compositor como intelectual da culturaEntre os fen6menos musicais do seculo no Brasil, a can~ a o se destaca. Everdade que a partir dos anos 80 algunsritmos estrangeiros - notadamente norte-americanos -entraram no pais, como 0 funk, 0 rap e 0 reggae jamaicano,alem de a g e r a ~ a o 80 ter desenvolvfdo urn rock com caracteristicas novas a que se credftou urna f e i ~ a o brasileira. Essas modalidades musicais destoaram das anteriores, como abossa nova e a MPH, principalmente por darem mais enfaseao ritmo do que it melodia ou it harmonia. Esse predomfniodo pulso deu margem ao debate sobre 0 un da a n ~ a o .

    A despeito da ocorrencia dessas novidades musicais, dasquais falarei no momenta oportuno, optei por analisar a

    c a n ~ a o devido a urn aspecto que considero importante: 0fato de ela ter desenvolvido urn componente critico, motivo pelo qual passei a operar com a categoria c a n ~ a o critica . Para definir essa modalidade de a n ~ a o recorri a urn recorte temporal, situando 0 seu aparecimento no final dosanos 50 e ao longo dos anos 60, epoca em que a c a n ~ a o popular tornou-se 0 16cus por excelencia dos debates esteticose culturais, suplantando 0 teatro, 0 cinema e as artes plasticas, que constituiam, ate entao, 0 foro privilegiad? dessasdiscussoes. Os compositores populares, de maneira seme hante aos miisicos modernistas, como e 0 caso de HeitorVilla-Lobos, passaram a comentar todos os aspectos da vida,do politico ao cultural. tornando-se "formadores de opimao". Esse novo estatuto a l c a n ~ a d o pela c a n ~ a o contribuiu

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    para que 0 compositor assumisse a identidade de intelectualnum sentido mais amplo do termo.

    Acredito que e importante deixar clara a a c e p ~ a o de intelectual adotada, que nao se confunde com 0 modelo concebido pelo senso comum do homem que acumula conhecimentos, ou seja, a figura do erudito. Opero, de maneiradiferente, com uma ideia tomada de emprestimo de GiulioCarlo Argan, em Arte e critica da arte - e que e possivel es-tender ao compositor critico ou a figura que tomo comointelectual : a ideia do artista modemo como critico da cul-

    tura. Argan ve a arte modema como aquela que pretendeser do seu tempo; assim, 0 artista participaria do cenmo po-litico e cultural, atitude que Ihe exigiria urn dialogo constante com a ciencia, a filosofia, a poesia e 0 teatro, entreoutras areas artisticas e culturais. Esta c o n c e p ~ a o de artistame leva a tomar urn certo cuidado e a esclarecer que naoparto do principio de que 0 homem que se envolve com asquestiies do seu tempo tenha que ser necessariamente urnativista politico, ou seja, aquele que atua no plano especifico do sistema politico-partidario para mante-Jo ou destrui-10 em nome da c o n s t r u ~ a o de uma nova ordem. Opero comuma c o n c e p ~ a o mais ampla de politica, que permite estender a possibilidade de a t u a ~ a o a outras areas, como a cultural. Nesse tipo de entendimento, Picasso atuaria politicamente tanto na r i a ~ a o de Guernica (uma demincia contra 0regime ditatorial de Franco, na Espanha) quanto no desenvolvimento do cubismo (uma transgressao as c o n v e n ~ i i e s daarte figurativa).

    Retomando 0 tema da c a n ~ a o critica, a musica populartomou-se, sobretudo a partir da bossa nova, 0 veiculo porexcelencia do debate intelectual, operando duplamente com

    o texto e com 0 contexto, com os pianos intemo e extemo.Internamente, a maneira do artista modemo, 0 compositorpassou a atuar como critico no proprio processo de compo

    s i ~ a o ; extemamente, a critica se dirigiu as questiies culturais e politicas do pais, fazendo com que os compositoresarticulassem arte e vida. 0 compositor popular passou aoperar criticamente no processo de c o m p o s i ~ a o , fazendouso da metalinguagem, da intertextualidade e de outrosprocedimentos que remetem a diversas formas de c i t a ~ a ocomo a parodia e 0 pastiche. E ao estender a atitude criticapara alem dos aspectos formais da c a n ~ a o , 0 compositor popular tomou-se urn pensador da cultura.

    Jose Miguel Wisnik revelou em entrevista (publicada emMP em discussiio entrevistas 0 motivo que 0 levou a desistir da carreira de pianista, para a qual se preparara desde

    menino na Baixada Santista, onde morava, e ingressar naFaculdade de Filosofia na USP. Ao chegar a Sao Paulo aos 18anos, em 1968, percebeu que nao so 0 entomo da universidade, mas tambem 0 mundo, fervilhava nas esferas da politica e da cultura. 0 momento era, portanto, de a r t i c i p a ~ a onos acontecimentos, 0 que seria impossivel para ele se abra

    ~ a s s e a musica de concerto. Tomar-se concertista, a epoca,significava se resguardar da vida publica, fechando-se numacamara escura . Chamou-Ihe entao a a t e n ~ a o a experiencia

    oposta por que passava a c a n ~ a o popular no final da decada sobretudo a a t u a ~ a o dos cancionistas na televisfio e nomeio estudantil, procurando intervir, poetica e musicalmente, nas discussiies esteticas, politicas e existenciais. Ao desempenhar uma serie de papeis antes reservados a veiculosda alta cultura , a c a n ~ a o passou a propiciar uma especiede e d u c a ~ o sentimental aos jovens de sua e r a ~ a o .

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    Ao que parece, 0 perfil do musico de concerto mudou dostempos do Modernismo para hoje em dia, Figuras como Reitor Villa-Lobos participaram intensamente da vida publicanos anos 1920 e 30, assumindo, entre outras f u n ~ o e s comoideologos da cultura, a missao de usar a musica como vei- Iculo para a f o r m ~ o do povo brasileiro e para a consti- ,

    t u i ~ a o da identidade nacional. E este tipo de pratica com-prometida com 0 mundo teve continuidade com musicosposteriores, como os que participaram do movimento Musica Viva. Criado em 1944 por Hans-Joachim Koellreutter,musico alemao aqui radicado e que ficou conhecido, entreoutras coisas, por ter introduzido a musica dodecafOnica nopais, e pelos brasileiros Claudio Santoro e Guerra Peixe, essemovimento levou as ultimas c o n s e q u ~ n c i s 0 postulado dev i n c u l a ~ a o da arte com a vida. Manifestos do Musica Vivase sucederam ao longo dos anos 40, e 0 movimento assumiucada vez mais p o s i ~ o e s de combate contra a t r a d i ~ a o musical - inclusive a do nacionalismo modernista - propondo, entre outras coisas, a i n s t a u r a ~ a o de urn mundo novo .As p o s i ~ o e s se radicalizaram ao longo da decada, provocando tensoes e p o l ~ m i c s no meio musical. Por exemplo, 0Manifesto de 1946, de claro teor socialista, criticava 0 postulado da arte pela arte e defendia 0 engajamento do musico na realidade social e cultural. Alguns movimentos musicais se sucederam ao Musica Viva, como 0 paulista MusicaNova, que n ~ o u em 1963 0 Manifesto Musica Nova , cujossignatarios - Damiano Cozzella, Rogerio Duprat, Regis Duprat, Sandino Hohagen, JUlio Medaglia, Gilberto Mendes,Willy Correia de Oliveira e Alexandre Pascoal postulavama retomada de procediInentos experimentais, como 0 atonalismo de Schoenberg, 0 serialismo de Webern e os processos eletroac1isticos de Cage.

    Passada a onda vanguardista, entretanto, principalmente a partir dos anos 60, os musicos de concerto se recolheram ao mundo musical e, no caso brasileiro, coube aos compositores populares a tarefa de articular a arte com a vida.Mario de Andrade, em discurso de paraninfo que proferiuem 1935 para alunos do Conservatorio Dramatico e Musicalde Sao Paulo (publicado em Aspectos da mtlsica brasileira , comentou a v o c ~ o para virtuose do musico de concerto noBrasil. Mario lamentava este tipo de t e n d ~ n c i a que representaria urn afastamento do seu ideal de musico completo , ou seja, aquele que evita a guinada especializante e aspraticas fundamentadas em valores burgueses. Carente decultura geral, 0 musico de concerto brasileiro, segundo Mario (p. 192), so se interessaria pela musica em si, revelandouma curteza de espirito assombrosa; urn afastamento desleal das outras artes, das c i ~ n c i a s da vida economica e politica do pais e do mundo .

    Em entrevista concedida aos pesquisadores do Nucleo deEstudos Musicais da Universidade Candido Mendes, da qualparticipei, Antonio Cicero afirmou que a c n ~ o se tornoureflexiva e, por esse motivo, passou a intervir historicamente na arte, quer dizer, e como se ela tivesse se incorporado as outras artes que sao consideradas eruditas . Issotambem teria acontecido nos Estados Unidos, embora Ja tivesse persistido a s e p r ~ o entre alta e baixa cultura,enquanto aqui a g e r ~ o de universitarios, como Chico eCaetano, desenvolveu uma c o n c e p ~ o de cultura que niiocria esse tipo de hierarquia. Na verdade, segundo Cicero,esse processo se daria a par tir da bossa nova, principahnente com Tom Jobim e Vinicius de Moraes, cujos trabalhosconvergiram com 0 Cinema Novo e a arquitetura de Brasilia. Esse tipo de t u ~ o teria propiciado 0 surgimento'de

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    urn novo perfil de compositor, como seria 0 caso de Caetano Veloso, que acabou canalizando para a musica 0 seu pendor original para a crftica, para 0 cinema e para a filosofia. iOutro aspecto importante ressaltado por Cicero e 0 fato deesses musicos trabalharem juntos com artistas de outras 'areas, exemplificando com a ligac;ao de Gilberto Gil e cae Itano Veloso com Helio Oiticica e com os irmaos Campos(Augusto e Haroldo).

    Chico Buarque de Holanda afirma (tambem em entrevista indufda em AMP em discussdo) que ele considera pr6-prio da musica brasileira a inexistencia de uma barreiraentre 0 erudito e 0 popular como ocorre na Europa, principalmente na Franc;a e na It

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    b a n i z a ~ i i o . mas tambem assumir uma atitude cosmopolita ie objetiva tanto no plano socioeconomico quanto no cultural. Assim. ser modemo. para os artistas. era sobretudo adotar a estetica do menos. do despojamento radical. e rejeitaras t r a d i ~ i i e s comprometidas com 0 excesso. E de maneira se-melhante aos mlisicos do cool jazz. que substitufram 0 aparato sinfOnico das grandes bandas de jazz por f o r m a ~ i i e scameristicas. optando por urn modelo mais enxuto. os bossa-novfstas rejeitaram 0 modelo da Radio Nacional. que consideravam desmedido tanto em termos musicais quanto performaticos. e adotaram uma estetica clean Os programas deauditorio da Radio Nacional contavam com a a t u a ~ i i o dasgrandes estrelas do radio: Marlene. Emilinha Borba. AngelaMaria. Dalva de Oliveira e Cauby Peixoto. entre outros. Osmlisicos da bossa nova criticavam nessa p r o g r a m a ~ i i o 0 repertorio dos cantores (que consistia em s a m b a s c a n ~ i i e s eoutros generos proximos do bolero mexicano. do tango argentino e das baladas norte-americanas. considerados melodramaticos). a o r q u e s t r a ~ i i o (que utilizava urn naipe excessivo de instrumentos) e 0 arranjo (que usava vfolinos aofundo e outros efeitos grandiosos). A n t e r p r e t a ~ i i o tambemrecebia criticas pela forma operistica de colocar a voz e pelouso do palco com e s t i c u l a ~ i i o exagerada e figurino de gala.Assim. os procedimentos esteticos uti1izados pela Radio Na-donal foram considerados excessivos e associados ao maugosto.

    A forma orquestral que pas sou a prevalecer na x e c u ~ i i oda mlisica popular a partir do final dos anos 30. institufdaprincipalmente por Radames Gnattali e Pfxinguinha comobase para os seus arranjos espetaculares - como e 0 casode Aquarela do Brasil '- e caracterizada pelo uso de urn

    grande conjunto de instrumentos. e substitufda por umaf o r m a ~ i i o cameristica de vfoliio. piano. percussiio e baixo. Eda mesma forma que a percussiio e discreta. sem nenhumapelo ostentatorio e suavfzada com 0 emprego da vassourinha. 0 usa da voz tambem se coloca de urna outra maneira.substituindo 0 modelo vfrtuosfstico da t r a d i ~ i i o operisticapelo procedimento de dialogar com 0 instrumento musical.

    Entre os artistas da bossa nova. Joiio Gilberto e quemmais encama esse espfrito modemo. Ninguem foi mais ob-sessivo do que Joiio na busca pelo novo. e. no seu caso. sernovo era niio so recriar a sonoridade tradicional do samba.como tambem encontrar uma forma totalmente diferentede usar a voz e 0 vfoliio. Neste sentido. Joiio Gilberto e modemo it maneira dos poetas concretos - Augusto de Cam-pos. Haroldo de Campos e Decio Pignatari. entre outros .quando l n ~ m as bases da poesia concreta no final dosanos 50. Em artigo publicado em Balanfo da bossa intituladoDa Jovem Guarda a Joiio Gilberto . Campos admitia fini-

    dades entre a poesia concreta e a bossa nova. principalmente pelo fato de ambas as esteticas operarem com a concisiio.com a objetivfdade e com a racionalidade. s p. 53 e 54. JoiioGilberto aparece como figura paradigmatica desse procedimento conciso por adotar uma i n t e r p r e t a ~ i i o discreta edireta. quase falada. que se opunha de todo em todo aos estertores sentimentais do bolero e aos campeonatos de agudos vocais - ao bel canto em surna. que desde muito, impregnou a mlisica popular ocidental . Campos afirma que. alemde raziies de ordem estetica - 0 exfbicionismo operisticoleva it r i a ~ i i o de zonas infuncionais e decorativas na estrutura melodica . a e v o l u ~ i i o dos meios eletroaclisticos teria criado novas c o n d i ~ i i e s para 0 cantor se comunicar com

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    o publico. ja que ele nao mais precisaria fazer muito esfor~ o fisico. 0 que teria contribuido para uma r e v o l u ~ a o interpretativa. tal como a promovida por Joao Gilberto.

    Retomemos 0 argumento recorrente da critica musical 1favoravel abossa nova de que a c a n ~ o se tornou um arte- Isanato fino por excelencia a partir de alguns procedimentos Iintroduzidos por esse estilo. Urn deles refere-se a maneirainusitada de Joao Gilberto usar 0 violao. 0 instrumento deixa de servir como acompanhamento vocal e passa a ocuparum plano tao importante quanto 0 da voz. resultando dessam u d n ~ um. embate tense e criativo entre voz e violiio. Eassim como voz e violao se equiparam. letra e musica ad-quirem 0 mesmo estatuto. Ao contrario. por exemplo. de al-gumas experiencias jazzisticas. em que a voz e usada comoinstrumento. OU da r a d i ~ a o operistica. em que a palavra sesubmete asonoridade de tal modo que a letra muitas vezesse torna incompreensivel para a plateia. na bossa nova letrae musica se complementam a e r f e i ~ a o .

    Quanto ao uso do violao. 0 musico Gabriel Improta. emmateria para a revista etencia oje n. 246. analisa 0 ritmo basico da bossa nova criado por Joao Gilberto para esse instrumento. conhecido popularmente como batida . Improtaafirma que esse ritmo e uma r e d u ~ o estiJizada. uma tra

    d u ~ o do samba executado por instrumentos de percussaode forte volume. como 0 surdo e 0 tamborim. para a instrumentaIidade mais intimista do violao . 0 interessante e queImprota estende a sua analise para 0 vinculo que Joao Gil-berto estabelece com a t r a d i ~ a o musical. dizendo que esseritmo representa mais uma ' m o d e r n i z a ~ a o ' do que umaruptura com 0 samba de entio. revisto sob uma nova perspectiva . Outro aspecto importante explorado por Gabriel

    Improta e relativo ao fato de que essa r e c r i a ~ a o do sambaveio acompanhada de maior o f i s t i c a ~ a o na harmonia comrela

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    creta que se revela na forma de vestir, de se sentar, de falar,de olhar. Varios COl-pOS, masculinos e femininos, foram mol-dados Brasil afora a partir do modele da bossa nova, que sepautava sobretudo pela recusa de qualquer excesso. A exem-plo de Joao Gilberto, a voz possante passou a ser domestica-da e trabalhada em prol de urn registro pequeno, tanto nopalco quanto na vida, tanto no canto quanto na fala. E na

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    experiencia de palco, os profissionais do canto, independen- Itemente da extensao da voz,exercitavam-se para trabalharurna interpreta.,ao despojada, sem adornos. 0 corpo criadopela bossa nova eurn significante que remete a uma interpreta.,ao do momento presente como 0 tempo que demanda objetividade, pragmatismo, funcionalidade, desenvolvendo uma sensibilidade parecida com ados arquitetos e poetasconstrutivistas, que, a exemplo de Oscar Niemeyer e dospoetas concretos, propunham formas modernas, fundamentadas no principio da forma e fun.,ao.

    Retomando 0 aspecto critico da bossa nova, poderiamosdizer que esobretudo atraves do procedimento metalinguistico adotado na cria.,ao de algumas can.,oes, fazendo comque musica e letra se comentem reciprocamente, que elarealiza a sua critica textual. Dois exemplos muito citadosdesse processo criativo sao as composi.,oes "Desafinado"(1958) e "Samba de urna nota so" (1960), ambas de Tom Jo-bim e Newton Mendon.,a. Um dos aspectos destacados nessas music:;as e 0 fato de permitirem frui.,oes diversificadas,atendendo tanto a uma escuta pop de can.,oes sentimentais- a despeito de 'sua elabora.,ao formal intimista e do seutom ironico - quanto a uma leitura mais familiarizada comos experimentos vanguardistas na musica, na literatura enas artes visuais.

    Em "Desafinado", por exemplo, a pronuncia da silaba tonica da palavra "desafino" e seguida de urn acorde imprevisto: a nota seguinte vem em um semitom abaixo do queseria de esperar. Assim, musica e letra comentam e realizam, no proprio processo de composi.,ao, 0 intuito de transgredir as conven.,oes musicais da musica popular. "Sambade uma nota so" opera no mesmo plano: musica e letra,eoneebidas minimalisticamente, beiram 0 nons ns ao alternarem discussoes amorosas com comentarios musicais.

    Outro parceiro importante de Tom Jobim na fase heroicade cria.,ao da bossa nova e Vinicius de Moraes, principalmente em sua atua.,ao como letrista de "Chega de saudade",de 1958. Essa musica se tornou emblematica da nova tendencia, aparecendo, segundo 0 relate de varios compositores, como Chico Buarque e Edu Lobo, como urn divisor deaguas em suas carreiras. Ambos afirmam reiteradamenteem entrevistas que passaram a reivindicar urn violao jun toaos seus pais depois de ouvirem no radio "Chega de saudade" interpretada por Joao Gilberto. Comparada com as le-tras experimentais de "Desafinado" e "Samba de uma notaso , de Newton Mendon.,a, a letra de "Chega de saudade"parece convencional, ao tomar como tema as situa.,oes amorosas recorrentes na musica popular. Mas se a letra de Vini-cius se mostra pobre em termos das ousadias formais quese espera de uma can.,ao da bossa nova, ela e convincente,por outro lado, na maneira como interage com a musica.Integrada a can.,ao, ela a torna compativel com 0 espfritoeritico de "Desafinado". As duas partes da can.,ao alternamo tema da tristeza com 0 da alegria. 0 primeiro tema, de-senvolvido na primeira parte da can.,ao, fala da ausencia doser amado e e estruturado em modo menor, tradicionahnt:.l).-

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    te associado Ii tristeza. Ja a segunda parte da canc;ao ao co-mentar pm tica e musicalmente a possibilidade de retornodo ser amado. e composta em modo maior. 0 que. em nossacultura. remete Ii alegria.

    Como vimos. no momento inicial de sua criac;ao no fi-nal da decada de 50 a bossa nova apareceu como urn estiloexperimental. razao pela qual teve urn publico reduzido.composto basicamente de aficionados. Ela se tornou maisconhecida a part ir da grava

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    aqui se instalou a partir de 1937. Logo que chegou ao Bra-sil. Koellreutter procurou dar continuidade aos procedimentos vanguardistas ja iniciados na Europa. entre eles a introdU

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    vez maior que 0 compositor passou a assumir com a constru

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    e miscigenados - sao equiparados aos bandeirantes - elite paulista de ascendencia portuguesa - pela sua praticadesbravadora. Ao revisitar determinadas tradic;oes culturais, Tom procede como os modernistas brasileiros que, emvez de romper radicalmente com 0 passado ou de correraceleradamente em direc;ao ao futuro, seguindo 0 exemplodas vanguardas europeias, tomam urn caminho pr6prio, incorporando determinadas tradic;oes que elegem como importantes.

    Se levarmos em conta a participac;ao de Tom na criac;aodo estilo bossa-nova, 0 qualitativo minimalista se tornaainda mais apropriado ao compositor, principalmente nafase inicial do movimento, em que ele fez parcerias comNewton Mendonc;a, com Desafinado (1958) e Samba deuma nota 56 (1960). Aiem dos seus componentes metalinguisticos citados, Desafinado e Samba de uma nota 56se estruturam de maneira convergente com os principios deforma e func;ao que orientam a arquitetura construtivista

    moderna. Em que pesem as polemicas criadas entre os artistas dessa tradic;ao sobre 0 que seria genuinamente construtivista, poderiamos afirmar que 0 espirito da bossanovae muito parecido com 0 dos projetos urbanisticos e arquitetllnicos de Lucio Costa e Oscar Niemeyer relativos acriac;aoda nova capital federal no final dos anos 1950.

    Assim, na produc;ao de Jobim encontramos tanto obraspautadas pelo excesso quanto outras caracterizadas pela estetica do'minimo. importante talvez seja reconhecer que,em se tratando de analisar 0 processo de composic;ao deTom Jobim, os te'rmos minimo e maximo nao devem seracionados para cristalizar urn estilo a partir da escolha deurn em detrimento do oiltro, no sentido de se configuraremcomo polos diametralmente opostos de convivencia impen-

    savel. Seria tambem empobrecedor considerar a obra e apostura de Tom Jobim a parti r de urna ou duas experienciasesteticas.

    TomJobim, sem duvida, mostrou-se afinado com estilomusical da bossa nova desde os seus prim6rdios, em 1958,passando a ser reconhecido como urn dos criadores do esti-10, principalmente com relac;ao aos aspectos harmonicas danova tendencia. Mas nao podemos nos esquecer que 0 compositor ja estava predisposto a inovar musicalmente no inicio da carreira, 0 que era de esperar de urn musico que fu-giu da formac;ao convencional de conservat6rio.

    Ao que parece, houve urna feliz coincidencia entre a as-pirac;ao de Joao Gilberto e os demais bossa-novistas por urnae s t t ~ t i c concisa e absolutamente nova e 0 procedimento minimalista e experimental de Tom, 0 que nos leva a afirmarque seria inadequado reduzir a trajet6ria de Tom Jobim asua experiencia com a bossa nova - urna vez que a bossanova optou pelo minimo, enquanto Tom sempre se colocouentre 0 minimo e 0 maximo, entre 0 moderno e 0 modernista, por vezes mobilizando as duas modalidades normalmente vistas como excludentes nurna mesma obra.

    1 4 AMP e 0 exercicio d critic contextu lFoi com 0 surgimento da canc;ao politizada, no inicio dosanos 60, e da MPB, em meados da decada, que a canc;ao passou a atender a apelos externos, tanto politicos quanto so-ciais. primeiro tipo de musica apareceu no bojo da experiencia do CPC (Centro Popular de Cultura), criado em 1961pela UNE (Uniao Nacional dos Estudantes), que se notabilizou no periodo pela proposic;ao de uma arte engajada e afinada com postulados nacionalistas. A canc;ao de feitio par-

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    ticipante teve prosseguimento ao longo da decada atraves .do espetaculo Opiniao que passou a se r realizado a par tir dofinal de 1964 no Teatro de Arena, e teve tambem como palco os festivais da c a n ~ o que se criaram em 1965 e tiveramgrande repercussilo ate 0 final da decada.

    Acredito, entretanto, que seria empobrecedor para a -lise pensar os formatos da c n ~ i l o da bossa nova e da can- '

    ~ i l o participante a partir de uma dicotomia entre texto econtexto, como se a bossa nova privilegiasse apenas a fol'-rna e a c a n ~ a o engajada, 0 conteudo. Se c n ~ i i e s como De-safinado" levam as ultimas consequt ncias a e x p e r i m e n t a ~ a oformal, isso nao significa que elas nao dialoguem com 0 entorno. "Desafinado" utiliza 0 recurso a metalinguagem paracomentar uma especie de conservadorismo cultural que levaria a urna escuta passiva, avessa a qualquer experit nciamusical que provocasse uma s e n s a ~ a o de estranhamento.Por outro lado, c n ~ i i e s politizadas que nao sao isentasde e l a b o r a ~ a o estetica, resultando de urn intense dialogoentre 0 politico e 0 estetico. Esse e 0 caso, por exemplo, de"Maria Moita", c n ~ i l o de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes(1964) que, a despeito da simplicidade estilistica, e representativa de esmero furmal, pOis a letra, que remete a s i t u ~ i i e stipicas da sociedade patriarcal brasileira, casa perfeitamente com a musica inspirada em cantigas de roda.

    Mas 0 tema proposto para esta s e ~ i l o e 0 desenvolvimento da ideia de MPB a partir de meados dos anos 60. Podedamos dizer, numa primeira tentativa de explicar essefentlmeno, que seus criadores, musicos de uma e r ~ i l o posterior a da bossa nova, procuraram conciliar a veia experimental de compositores e interpretes como Tom Jobim eJoilo Gilberto com as i r i f o r m ~ i i e s politicas e culturais deurn momenta marcado pela busca de igualitarismo social,

    de liberdade politica e pelo sentimento de brasilidade. Mes-mo que a i n s p i r ~ i l o musical viesse de Recife, como e 0 casode Edu Lobo, familiarizado com a cidade onde desde menino passava as ferias de verilo, nilo se tratava de urna proposta regionalista, mas da c r i ~ o de uma linguagem que expressasse 0 Brasil. E embora se d i f e r e n ~ s s e do intimismoda bossa nova e adotasse urn estilo mais exuberante, a cano emepebista, tal como a que a precedeu, nilo descnidoudo apuro formal. Assim, compositores como Chico Buarquede Holanda e Edu Lobo, a quem se costuma atribuir 0 papelde fundadores da MPB, levaram a serio a a d e q u a ~ i l o entremusica e letra e criaram n ~ i i e s consideradas magistrais

    A ideia de MPB (Musica Popular Brasileira) foi surgindoaos poucos, ao longo dos anos 60, acompanhando as transf o r m ~ i i e s ocorridas na perspectiva politica e na sensibilidade estetica da g e r ~ i l o que sucedeu a da bossa nova. Noinicio dos anos 60, os postulados que fundamentaram a estetica do menos c o m e ~ a v a m a perder a hegemonia, pois seas metas desenvolvimentistas e 0 interesse pelas questiiesnacionais tinham continuidade, elas se atualizavam. 0 momento agora era 0 de pensar 0 Brasil em todas as suas tacetas - 0 urbano, 0 rural e 0 sertanejo, 0 asfalto e 0 morro- sem se restringir a Zona SuI do Rio de Janeiro, 0 que passou a demandar uma r e p r e s e n t ~ i l o artistica diferente daforma minimalista da bossa nova. r a ~ a r musicalmente 0Brasil, entretanto, nilo siguificava exalta-Io discursivamente; os elementos musicais e poeticos da c n ~ i l o interagiamde maneira equilibrada no sentido de eriar urna imagem artistica do pais. Assim, musica e letra em plena correspondt ncia passaram a comentar determinados aspectos da nossa cultura, procedimento que por si s6 r e f o r ~ v a ideia debrasilidade. Urn born exemplo e "Arrastiio", c o m p o s i ~ i l o d e

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    Edu Lobo e Vinicius de Moraes de 1965 que, interpretadapor Elis Regina no I Festival de Musica Popular Brasileira daV Excelsior de Sao Paulo, ganhou 0 primeiro lugar e proje-

    tou nacionahuente 0 compositor. A letra fala da condi

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    promoveu urna t u l i z ~ o do imaginario desenvolvimentista no Brasil, passando-se a contemplar em nossa cultura naos6 os seus aspectos finos - encontraveis, por exemplo, naZona SuI do Rio de Janeiro e cantados pela bossa nova -como tambem aqueles que se definem pela c o n t m i n ~ oentre os diferentes e desiguais segmentos culturais do pais.De qualquer maneira, 0 conceito de MPB surge a partir de ' .1964 nao exatamente como decorrencia dos impasses criados com 0 golpe militar, mas sobretudo a partir das reflexoes dos compositores sobre a questiio da brasilidade.

    A meu ver, as apresenta

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    ra de loao Gilberto, 0 elemento basico a ser trabalhado, embora os dois tenham lidado com esse procedimento de maneiras diferentes. loao Gilberto realizou uma sintese com ossons pesquisados e criou, a partir desse procedimento, a formula musical da bossa nova. Chico operou nurna out ra chave, sem se prender a urn estilo definido, mas elegendo urnacerta t r a d i ~ a o do samba para ser recriada, como e casodo repertorio legado por Noel Rosa. Em A Rita" (LP ChicoBuarque de Hollanda 1966), musica do inicio de sua carreira,Chico incorpora poetica e musicalmente 0 espirito de Noel,tanto na coloquiaJidade da letra quanto no formato de samba que compoe, alem de citar explicitamente 0 nome docompositor de Vila Isabel, como na estrofe:

    ARita levou meu sorrisoNo sorriso delaMeu assuntoLevou junto com elaE 0 que me e de direitoArrancou-me do peitoEtemmaisLevou seu retrato, seu trapo, seu pratoQue papeUUma imagem de Sao FranciscoEurn born disco de NoelChico argumenta, na entrevista citada, que nao se consi

    dera 0 unico de sua g e r a ~ a o a adotar esse procedimentoincorporativo, apesar de ele pr6prio ter aderido, mesmocomo disc pulo, a at itude da bossa nova de romper radicalmente com grande parte do nosso legado musical. Essa atitude de ruptura, entretanto, nao teria durado mais do quetres anos, pois a lgum tempo depois alguns musicos ligadosa bossa nova, como Carlos Lyra e Nara Leao, c o m e ~ r m a

    retomar 0 contato com uma musica popular que tinha sidorenegada pela bossa nova. Segundo Chico, aquele tipo de neg a ~ i i O era estrategico, pois a bossa nova dependia disso parase afirmar. Assim, para que fosse possivel a existencia dabossa nova, era necessario que Noel Rosa fosse negado, adespeito de loao Gilberto fazer a sua releitura de dassicosdos anos 30, como as musicas de Ary Barroso. Chico tambem lembra a guinada de Nara Leao, que, de criadora dabossa nova, passa, no espetaculo Opiniiio ao se apresentar aoado de Ze Keti e loao do Vale, e ao gravar pouco depois Car

    tola e Nelson Cavaquinho, a se aproximar de uma musicalidade mais ligada as camadas populares. E, para conduir,Chico lembra 0 pr6prio Vinicius de Moraes, que, depois daparceria com Tom no primeiro momento da bossa nova,passou a compor com Carlos Lyra e Baden Powell c n ~ o e sque ja nao se poderiam considerar como bossa-novistas.Chico refere-se ao disco gravado por Maria Bethiinia em1965 Maria ethiinia canta Noel Rosa (RCA), que teria provocado urn certo impacto pelo fato de Noel ter sido colocado,naquela epoca, nurna especie de "index estetico". Chico entao argumenta que uma atitude mais conciliat6ria para como passado musical inevitavelmente viria mais cedo ou maistarde, e que ele e os musicos de sua g e r ~ o foram os promotores dessa abertura.

    A despeito da diversidade da obra musical de Chico Buarque e do reconhecido apuro formal de suas c a n ~ o e s ele setomou particularmente reconhecido por suas musicas politizadas. Tern mais samba" (1964), c n ~ o composta no inicio de sua carreira, parece compartilhar 0 espirito de urnide:irio de esquerda que se difundiu na epoca, caracterizadopor urn dialogo com 0 marxismo e com certas c o n c e p ~ o e scristas, como 0 elogio do despojamento e da h u m i l d a d ~ .

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    A ~ a o Popular (AP), por exemplo, grupo de esquerda quesurgiu em 1962 e transitou do cristianismo para 0 maoismo,se singularizou por valorizar os homens do povo, sobretudoos trabalhadores rurais. Tern mais samba" ida com a ideiade r e d e n ~ a o pela humildade, razao por que 0 denomino"samba ftanciscano". Segundo as narrativas sobre Sao Francisco de Assis, ele teria atualizado radicalmente em suaspraticas e na c o n s t i t u i ~ a o de sua identidade a figura deCristo, principalmente por abandonar a postura mfsticocontemplativa, recorrente na r a d i ~ a o crista, e assumir urnaatitude comprometida com 0 dia a dia e 0 popular. Em Ternmais samba" valoriza-se 0 pequeno, 0 homem comum eo cotidiano. Dignificar 0 cotidiano e as pessoas que se voltam para as pequenas coisas nao significa, entretanto, paraessa perspectiva neoftanciscana, fazer 0 elogio da banalidade ou se mostrar complacente para com 0 homem mediano, urna vez que ja se percebe nesse samba urna sensibilidade brechtiana que, se valoriza 0 homem comurn e 0 aquie agora, por outro lado faz 0 elogio da vitalidade, da mudan

    ~ a hist6rica. Amaneira de Bertolt Brecht, Chico Buarque rejeita, em "Tern mais samba", a subjetividade romantica centrada na placidez do olhar ou dos astros, os reffigios idilicosincompatlveis com a maneira de estar no mundo do homem moderno, e opta pela materialidade viva ( Tern maissamba no encontro que na esperaJ tern mais samba a maldade que a ferida"; ou "Tern mais samba nas maos do quenos olhosj tern mais samba no chao do que na lua"), pelomovimento do dia,a dia das cidades e a l o u v a ~ o do trabaIho ( Tern mais samba no homem que trabalhaJ tern maissamba no som que vern d ~ rua"). 0 ideal de despojamentoaparece tambem na musicalidade e na i n t e r p r e t a ~ a o de

    Tern mais samba". A c o m p o s i ~ a o e cantada pelo pr6prioChico, cuja voz pequena confere urn tom intimista a can

    ~ o e 0 acompanhamento faz uso apenas de flauta, violiioe uma discreta percussao. A s i t u a ~ a o muda no estribilho( Vern que passa teu softerj Se todo mundo sambasse seriatao faci1 viver"), quando a percussao se torua mais viva eentra urn coro de vozes femininas, como se reafirmando apromessa de felicidade atraves do samba.

    Tern mais samba" revela uma o m p e n s a ~ 1 i o para infortUnio no tempo presente. Se a atmosfera esta fechada, sombria, e possfvel reverter a s i t u a ~ a o com urna m u d a n ~ a depostura. "Sambar", neste caso, significa assumir uma posi~ a o de maior comprometimento com a vida. Esta c a n ~ a opode ser contraposta estrategicamente as c r i a ~ o e s musicaisde Chico do final da decada, principalmente porque se observa urna m u d a n ~ a de teor em suas c a n ~ o e s a partir de1968, quando foi editado 0 Ato Constitucional n 5 e a res

    t r i ~ a o as liberdades politicas se intensificou. Ao que parece,o AI-5 e 0 marco a partir do qual 0 compositor substitui aperspectiva de uma r e d e n ~ a o a ser realizada no presentepela utopia de urn futuro libertador. E e tambem a partirdai que a palavra "samba" aparece em sua obra como metafora de l i b e r t a ~ a o polftica, de urn amanha transformado,mais justo. Ao proceder desse modo, criando imagens deurna r e d e n ~ a o postergada para 0 futuro, Chico nao esta sozinho, pois comparti1ha com os companheiros de sua gera~ a o urna visao ut6pica e otimista com r e l ~ o ao que estapor vir. Chico entao se singulariza ao uti1izar em suas can

    ~ o e s metaforas recorrentes de urn dia futuro em que todomundo vai sambar, analogo, por sua vez, ao raiar do dia ououtras imagens de uma era solar de i b e r t a ~ a o opostas a vi-

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    sao do momenta politico como sotumo e notumo. AdeliaBezerra de Menezes, em Desenho mag/co: poesia e politica emChico Buarque acrescenta p. 67) mais urn dado para a com- .preensao da utopia de Chico: em c a n ~ o e s como ''Apesar de

    v o c ~ , Quando 0 camaval chegar e Cordao l ~ - s e que 0futuro, alem de liberador , e tambem vingativo . Apesarde v o c ~ inaugura em 1970 esse tipo de vies ut6pico e aomesmo tempo revanchista. Ao analisar esta c a n ~ a o . AdeliaBezerra de Menezes argumenta que Chico se refere ao presente como 0 imperio das f o r ~ s da e t e n ~ a o . do bloqueiodas expansoes vitais . da c o n t e n ~ a o . do aprisionamentoda energia , enfatizando nas letras 0 amor reprimido . 0grito contido . 0 samba no escuro . como vemos na letra

    de Apesar de o c ~ . c a n ~ a o de 1970:Hoje voce equem mandaFalou. ta faladoNao tern discus saoA minha gente hoje andaFalando de ladoE olhando pro chao. viuVoce que inventou esse estadoE inventou de inventarToda a escuridaoVoce que inventou 0 pecadoEsqueceu-se de inventaro perdiioPor outro lado. segundo a autora p. 75). 0 amanhii e vis

    to como a epoca das pulsoes da energia . da fecundidade .Assim 0 tempo presente e associado amorte. enquanto sereserva para 0 fuwro as metaforas da vida .

    Apesar de voceAmanha ta de serOutro dia

    Eu pergunto a voceOnde vai se esconderDa enorme euforiaComo vai proibirQuando 0 gala insistirEmcantarAgua nova brotandoE a gente se amandoSempararA promessa de revanche aparece sem sutileza na segun-

    da parte da a n ~ a o :Quando chegar 0 momentaEsse meu sofrimentoVou cobrar com juros. juroTodo esse amor reprimidoEsse grito contidoEste samba no escuroVoce que inventou a tristezaOra, tenha a finezaDe desinventarVoce vai pagar e edobradoCada lagrima roladaNesse meu penarSe a revanche e transferida para 0 futuro. trata-se. entre

    tanto. de uma revanche carnavalizada. Apresenta urn componente agonico. sem duvida. mas que e totalmente imersonuma x p e r i ~ n c i a carismatica. em que os jardins florescem.esbanja-se poesia e a alterniincia entre noite e dia se libertade constrangimentos de qualquer tipo. 0 carisma. portanto, alem de se traduzir numa e x p e r H ~ n c i a revolucionaria.apresenta tambem urn teor altamente criativo.

    Na decada seguinte. em 1984. Chico Buarque compos.em parceria com Francis Hime. Vai passar . uma c a n ~ ~ o

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    que teve impacto e ficou conhecida como "samba da abertura politica". Neste samba, os compositores reintroduzirama ideia de carisma e de camavaliza

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    pelo momenta pOlitico da ditadura militar e que contestayam 0 regime. Sao musicas que ele nao renega, na medidaem que foram feitas no calor do momento, mas que representam uma parte muito pequena de seu repertorio.

    Uma das caracteristicas de Chico e a sua sensibilidade de .dramaturgo, como ele proprio admitiu na entrevista citadaanteriormente:

    Acho que eu tenho eSSa marca. ( ..) E eu acho que t conse-quencia mesmo da minha f o r m a ~ a o . ( ..) Quando eu come-cei a fazer musica profissionaImente, meu primeiro trabaIho foi para teatro. Logo em seguida fiz musica para Gorki,para 0 espetaculo do Jose Celso. Eu comecei a compor can-~ o e s para teatro, escrever textos para teatro. ( ..) Mesmo queeu escreva hoje uma c a n ~ a o que nao tenha nada a ver como teatro, permaneceu algo dessa experiencia no meu proces-so de c r i a ~ oChico se notabilizou, de fato, com as c a n ~ 1 i e s cujas letras

    davam voz a alma feminina, ou mesmo a sensibilidade dotravesti, como e 0 caso de Geni , musica criada para a 6pe-ra do malandro. As c a n ~ 1 i e s do primeiro tipo sao varias, sendo que uma das primeiras, Com acar com afeto , Chicofez em 1967 a pedido de Nara Leao. Segundo ele, Nara queria uma musica sobre aquele tipo de mulher sofredora, quefica esperando . Outra c a n ~ a o a que ele se ref re e Olhosnos olhos , que fez em 1976 para Maria Bethania cantar,que ela gravou no LP Passaro proibido. Em Folhetim , c a n ~ a otambem mada para a 6pera do malandro quem fala e umaprostituta, como vemos na letra:

    Se acaso me quiseresSou dessas mulheresQue s6 dizem simPor uma coisa a oa

    Uma noitada boaUrn cinema, urn botequim

    1 6 Nara Lelio: da bossa nova TropicaliaA trajetoria de Nara Leao coincide exatamente com a trajet6ria da musica no Brasil da bossa nova aMPB, e dai aTeo-picalia e ap6s-Tropicalia. Nara Leao se projetou no cenarioartistico brasileiro por atuar em diversas frentes. Aiem decantora e eventualmente atriz - representando 0 unico papel feminino em Pobre menina rica musical de Carlos Lyra eVinicius de Moraes montado em 1963, e no legendario showOpiniiio que teve inicio em dezembro de 1964 - notabilizou-se como agitadora cultural e politica no Rio de Janeirodo final dos anos 50 e dos anos 60, assumindo atitudes inusitadas para a epoca, levando-se em conta a sua c o n d i ~ a ode mulher e de interprete de c o m p o s i ~ 1 i e s populares. Poderiamos aprofundar esta questao argumentando que Naraajudou a criar uma nova realidade no cenario musical, nosentido de atuar, assim como outros compositores de sua ge-

    r a ~ a o nao so como artista, mas tambem como intelectualse lidarmos com aquela c o n c e p ~ o mais ampla de intelec

    tual que vimos anteriormente).Se a o r m a ~ a o escolar de Nara nao foi exatamente a maisconvencional, na medida em que sua familia a teria deixado avontade para abandonar os estudos em 1958, com 16anos, ela, por outro lado, c o m e ~ o u desde cedo, com 2 anos,a estudar violao. Suas primeiras aulas de violao se deramcom Patricio Teixeira, reconhecido no meio musical comocantor e instrumentista, e posteriormente com 0 professorde violao classico S610n Ayala. Constam tambem na biografia de Nara as aulas de musica que teve com 0 maestro

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    Moacir Santos em 1959. A partir do momenta em que foi .liberada dos estudos formais, ela c o m e ~ o u a atuar na vidamusical do Rio de janeiro desde muito jovem, passando aconviver com musicos de varias faixas etarias que se notabilizaram por criar 0 estilo musical bossa-nova. 0 apartamento em que morava com os pais, na avenida AWintica,tornou-se lendario nas narrativas sobre a hist6ria da bossanova, exatamente por abrigar musicos que criaram 0 estiloem noitadas de viol1io entre os mais frequentes RobertoMenescal, Carlos Lyra Ronaldo Boscoli e joao Gilberto. Ser- .gio Cabral, bi6grafo de Nara Nara Ledo uma biograjia), afirma que, apesar de mais nova, ela sempre ocupava uma po

    s i ~ a o de destaque no grupo nao s6 por dominar 0 violao,como tambem por se mostrar uma critica arguta de questoes musicais.

    Nara teve uma p a r t i c i p a ~ a o intensa nos shows de bossanova que aconteceram no final da decada de 50, emboras6 tenha gravado um disco com c a n ~ 6 e s bossa-novistas em1971, razao pela qual 0 disco foi intitulado Dez anos depois.Sua estreia como cantora se deu em 13 de novembro de1959, em show na Escola Naval intitulado "Segundo comando da operao bossa nova". Em 1962, entretanto, movidapor p r e o c u p ~ o e s poifticas que passou a comungar comcompanheiros de gerao principalmente os cineastas Jigados ao Cinema Novo como Caca Diegues, com quem se casou, Nara deu uma guinada em sua carreira. Reaproximouse de Carlos Lyra seu antigo companheiro de bossa nova,de quem estava afastada, e pas sou a comungar com ele aideia de utilizar amusica para conscientizar as pessoas sobre as mazelas poifticas e sociais do pais. Assim, em 1963atuou como protagonista de Pobre menina rica, espetaculo

    IIlusicai de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes que estreou emm r ~ o na boate Au Bon Gourmet, em Copacabana.

    Em 1963, a cantora gravou pela Elenco 0 seu primeirodisco intitulado Nara. Algumas das c n ~ o e s interpretadasno disco, como "Maria Moita", de Carlos Lyra e Vinicius, e0 morro - feio nao e bonito", de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri, se tornaram paradigmaticas para a carac

    t e r i z a ~ a o da chamada "musica de protesto" que se criou noBrasil a epoca. Ha quem atribua a este disco, pelas novidades tematicas e musicais nele introduzidas, que 0 distinguem das musicas da bossa nova, a preeminencia na cria

    ~ a o de um estilo que passaria, a partir de meados da decadade 60, a ser chamado de MPB. Se a bossa nova refletia a sensibilidade da Zona Sui do Rio de janeiro, 0 repert6rio do priIIleiro disco de Nara, num movimento diferente, retrata a

    p r e o c u p ~ o de se falar do Brasil, em yoga no momento.Nara Leao portanto, atuou em seu primeiro disco como

    uma especie de agitadora cultural, 0 que e congruente coma sua guinada poi tica. Em 1964, por exemplo, as vesperasdo golpe militar, assinou documento de apoio ao Comando

    .dos Trabalhadores Intelectuais (Cl I) junto com artistas e inte1ectuais reconhecidos, como Di Cavalcanti, ~ n i o Silveira,Edison Carneiro, Barbosa Lima Sobrinho, Oscar Niemeyer ePaulo Mendes Campos. E logo ap6s 0 golpe, em abril, Naraparticipou do show a remedio ebossa, na Escola Paulista deMedicina, cantando "Opiniao", musica de Ze Keti q u ~ intencionalmente ou nao, aludia aos acontecimentos poifticos.Nesse mesmo contexto do show, Nara liderou um movimento antirracista contra 0 Hotel Danubio, que recusou a hospedagem dos musicos negros Dom Salvador e Dom Um.

    Fundamentada no esplrito da epoca de a l o r i z a ~ a o do popular, Nara passou a se interessar pela busca das raizes ia57

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    musica brasileira. Assim, em 1964, depois de uma viagem aBelem, onde visitou Luis da Camara Cascudo, procurandoinformar-se sobre a musica folcl6rica nordestina, resolveuvisitar varias capitals do Nordeste para pesquisar musicas 10-cais. Numa dessas viagens, conheceu em Salvador CaetanoVeloso, Gilberto Gil e Maria Bethania, que iniciavam, naepoca, suas carreiras.

    Nara viajou nesse mesmo ano para os Estados Unidos,onde teve contato com as c r i ~ o e s musicais de musicos engajados na luta pelos direitos civis, como Joan Baez, BobDylan e Pete Seeger. Ii interessante notar, quanto a este ponto, que as propostas culturais dos artistas de esquerda brasileiros e norte-americanos coincidiam, no sentido de valorizar as m n i f e s t ~ o e s artisticas populares, a que se atribulamvitalidade e autenticidade.

    Gravou tambem em 1964 seu segundo LP, Opinido de ara(Philips), cujo titulo foi extraido do samba do mesmo nomede Ze Keti. Este segundo disco em multo lembrava 0 primeiro pelo criterio da escolha do repert6rio, entremeando musicas de sambistas tradicionais, como Ze Keti, com compositores considerados modemos , que, no momento, criavama MPB, como Edu Lobo, Sergio Ricardo, Baden Powell e VJnicius de Moraes. Este disco significou urna guinada na trajet6ria da Nara, pois I sobretudo a parti r dele que ela troca aimagem de musa e mentora da bossa nova para a de cantora engajada, fazendo d e c l r ~ o e s de autocritica a mprensapor ter patticipado da bossa nova, uma estetica alienada ,que ignorava as ~ s s s populares e seus dilemas. Opiniao deara inspirou 0 dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, conhe

    cido como Vianinha, a criar 0 show Opiniao que estreou em11 de dezembro de 1964 no Teatro de Arena da rua SiqueiraCampos, em Copacabana.

    A p r t i c i p ~ o de Nara no show Opiniao foi urn capituloit parte em sua carreira. Os produtores do espetaculo -Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes -oriundos do Centro Popular de Cultura (CPC), vinculado itUniao Nacional dos Estudantes (UNE) e fechado pelo governo mili tar logo ap6s 0 golpe de Estado, eram ligados ao Partido Comunista Brasileiro. 0 diretor era Augusto Boal; 0diretor musical, Dori CaymJni; e 0 grupo musical era composto por Roberto Nascimento (violao), Alberto Hekel Tavares (flauta) e loao lorge Vargas (bateria). Nara Leao, Ze Keti eJoao do Vale eram dubles de musicos e atores, pois ao mesmo tempo que se mostravam como compositores e interpretes, atuavam como atores. Nara Leao representava umagarota tipica da Zona SuI carioca, Ze Keti, urn personagemperiferico, como 0 favelado tambem carioca, e Joao doVale, 0 nordestino despossuido e avassalado pelo agrestemaranhense.

    Ii importante registrar os varios momentos em que acantora, desde que assumiu p o s i ~ o e s politicas de esquerda,se viu m e ~ d por grupos que defendiam 0 regime militar. Sergio Cabral relata a prop6sito, na biografia de Nara(p. 89), 0 episOdio de 14 de janeiro de 1965, em que extremistas de direita emporcalharam a fachada do Teatro deArena com desenhos da foice e do martelo e com palavroes . E 0 Informe JB , coluna do ornal do Brasil, registrana mesma epoca a f o r m ~ o no Rio de Janeiro de uma esquerda narista .

    Nara se tomou conhecida em todo 0 pais ap6s gravarA banda (Philips) em 1966, de Chico Buarque. Ambos (can

    tora e compositor) passaram a contar, a parti r dai, com urnpublico bern mais amplo. E para espanto, talvez, de quemesperasse uma atitude dogmatica da cantora, Nara dol mos'::

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    tras de flexibilidade em varios momentos. Sergio Cabral informa, por exemplo (p. 137), que em julho de 1967 Nara assiste de urna janela do Hotel Danubio, em Siio Paulo, ao ladode Caetano Veloso, apasseata de compositores contra a gui-tarra eU trica, e se mostra critica com relac;iio a manifestac;iio, que pareceria, segundo ela, "passeata do Partido Integralista". Ja nessa epoca Nara admitia 0 seu aprec;o porRoberto Carlos, 0 que era urna atitude ousada num cenarioem que se criava forte polarizac;iio entre a MPB e a JovemGuarda. Tambem de maneira surpteendente para uma cantora alinhada com programas de esquerda desde a primeirametade da decada de 60, Nara participa do Tropicalismo,gravando em 1968 uma das faixas do Tropicalia ou Panis etCircensis, disco-manifesto do movimento. Nara interpretou,nesse LP, 0 bolero "Lindoneia", composic;iio de Caetano Ve- 1oso que dialogou com 0 quadro Lindoneia Gioconda do subUr- bio, de Rubens Gerchman.

    Nara Leiio deixou urna discografia nurnerosa, compreendendo urn reper t6rio niio s6 de generos musicais variados,como tambem vinculados a diferentes propostas esteticas.Da mesma forma que cantou canc;oes politizadas, principalmente na segunda metade dos anos 60 - periodo do showOpiniilo - Nara gravou em 1977 0 LP Meus amigos silo um barato em que em cada faixa interpretava uma composic;iio deurn amigo. Entre os amigos que participaram do disco estiioCaetano Veloso, Roberto Menescal, Ronaldo Btiscoli, Gilberto Gil, Edu Lobo, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Tom Jobime Chico Buarque. Como se ve, a escolha foi ecletica.

    2 Antecedentes da c n ~ o critica

    2 1 genese da c n ~ i i o brasileiraJairo Severiano, em Uma hist6ria d musica popular brasiJeira:das origens d modernidade afirma que a can iso. Domingos foi para Portugal na decada de 1770, onde setornou compositor de modinhas e lundus e se apresentavana corte de dona Maria I Severiano (p. 17) descreve urn processo curioso: Caldas Barbosa introduz a modinha em Portugal, que J a se modifica ao ser incorporada por musicos "deformac;iio emdita, que passaram a trata-la de forma requintada, sob nitida influencia da musica operistica italiana". Astransformac;oes nao param por ai, pOis, depois de passar poresse processo, a modinha teve contato com as arias portuguesas, tomando entiio a forma cameristica que pas sou acaracteriza-la. Com a vinda da corte de dom Joiio V I para 0Brasil, em 1808, a modinha retomou modificada, expressando como nenhuma outra musica a tematica amorosa.

    Mario de Andrade analisa esse genero em Modinhas imperiais (p. 6), citando, alem de Domingos Caldas Barbosa, ospoetas que foram "melodizados em modinhas", dos "mes-.

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    tres cia Escola Mineira aos poetas do Romantismo. Sobre asorigens da modinha, Mario de Andrade afirma:

    Os documentos e textos mais antigos se referindo a ela jadesigoam pe,as de saliio, e todos concordam em dar it modinha urna origem erudita, ou peJo menos da semiculturaburgoesa. Melo Morais Filho a fum como descendente emlinha reta da melodia italiana ( ..)jairo Severiano (p. 17) analisa de maneira sucinta a for

    ma musical cia modinha, afirmando que ela e composta gerahnente em duas partes, com 0 predominio do modo menor, das linhas mel6dicas descendentes e dos compassosbinario e quaternario .o lundu e outro genero que surge no periodo colonial eque, diferentemente das origens europeias da modinha, nasce, segundo Severiano (p. 19), da fusao de elementos musicals de origens branca e negra, tornando-se 0 primeiro genero afro-brasileiro da c a n ~ a o popular .

    Mario de Andrade, no idanano musical br sileiro (p. 291),define 0 lundu como Canto e d a n ~ a populares no Brasil durante 0 sec. XVIII, introduzidos provavelmente pelos escravos de Angola, em compasso 2/4 onde 0 primeiro tempo efrequentemente sincopado . De maneira semelhante amodinha, 0 lundu experimentou urn processo de e r u d i t i z a ~ a oao ter substituido 0 seu acompanhamento de instrumentosde cordas dedilhadas , segundo Mario de Andrade (p.291),pelo piano tpcado nos saloes. Quanto a esse aspecto, Severiano (p. 20) faz referencia ao fato de que 0 lundu passou aser composto de forma elitizada por musicos de escola,chegando aposteridade quase que apenas partituras editadas a partir dessa fase . Outra i n f o r m a ~ a o importante: 0lundu deixou de ser apenas uma a n ~ a nas ultimas decadas

    do seculo XVIII; assim, alem da coreografia, passou a se concretizar tambem em c a n ~ a o . Nesse caso, trata-se do lundude saliio . Mas alem desse subgenero mais elitizado que sedesenvolveu nos salOes, 0 lundu originou tambem formasmais populares, como e 0 caso do samba.

    Outro genero citado por jairo Severiano e a valsa brasileira, que, na virada do seculo XIX, transformou-se de musica instrumental em c a n ~ a o processo que contribuiu paraque ela se tornasse mais popular. A partir de entao se tornou a musica romantica por excelencia, s6 sendo suplantada muito mais tarde pelo s a m b a - c a n ~ a o que atingiu a plenitude no final dos anos 1940.

    Severiano reune num feixe os generos polca, mazurca,schottisch habanera e tango, que chegaram todos ao Brasilem meados do seculo XIX. Essas d a n ~ a s provenientes da Europa, se misturaram aqui a ritmos africanos, dando origem,na decada de 1870, ao tango brasileiro, ao maxixe e ao choroo Outro processo importante foi 0 abrasileiramento da maneira de executar os instrumentos musicais - no caso, 0violao, cavaquinho e piano. Severiano aponta que ostres generos tem em comum: 0 ritmo binario, a sincopeafro-brasileira e a polca C 1ll genero matriz. Quanto aotango brasileiro, Severiano (p. 29-30) atribui a sua c r i a ~ a ona decada de 1870, a Henrique Alves de Mesquita, ao misturar a habanera e 0 tango espanhol com elementos da polcae do lundu. Mas quem realmente deu uma e i ~ a o brasileiraao genero, segundo ele, teria sido Ernesto Nazareth, criando urn ritmo mais pr6ximo do batuque e do lundu.

    Essa caracteristica da obra de Nazareth explica, de certa forma, 0 enorme interesse que ele despertou em DariusMilhaud, 0 compositor frances Jigado ao Grupo dos Seis

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    (grupo modernista radicado em Paris). que viveu no Rio deJaneiro em 1917 e 1918 como adido de Paul Claudel. entaoembaixador da F r a n ~ a 0 p r e ~ o de Milhaud pela musicabrasileira. principalmente a popular. inspirou-o a comporduas obras: Ie bam sur e tott (1919) e Saudades do Brast1 (1921).A prime ra se estrutura a partir de c i t a ~ o e s de diferentesp e ~ s do repert6rio musical brasileiro. urbano e rural. ea segunda. Saudades do Brasil. num procedimento diferente.e criada como uma homenagem a Ernesto Nazareth. na medida em que Milhaud. em vez de citar 0 compositor brasileiro. tenta captar a sua sensibilidade. Em artigo de 1924para Ariel revista musical do Modernismo brasileiro. MiIhaud. a prop6sito. faz uma crftica contundente t influencia francesa no meio musical brasileiro. 0 que nos leva aentender por que ele valoriza muito mais as figuras de Ernesto Nazareth e Marcelo Thpinamba do que a de VillaLobos. Isso se explica pelo fato de que 0 compositor francestenderia a se interessar principahnente pela musica popular urbana. mostrando-se pouco afeito ao estilo de Villa-Lobos. que. segundo ele. seguiria a o r i e n t a ~ a o de Debussy. Vejamos trecho de artigo de Milhaud p. 264-266) paraAriel

    Ede lamentar que os trabalhos dos compositores brasileirosdesde as obras si:nf1\nicas ou de musica de camera. dos srs.Nepomuceno e Oswald. as Sonatas Impressionistas do sr.Guerra ou as obras de orquestra do sr. Villa-Lobos ( ..) sejamurn reflexo das diferentes fases que se sucederam na Europa; de Brhluns a Debussy. e que 0 elemento nacional naoseja expresso de urna maneira mais viva e mais original. Ainfluencia do foldore brasHeiro. tao rico de ritmos e de umalinha mel6dica tao particular. se faz raramente sentir nasobras dos compositores cariocas. ( ..)

    Seria de desejar que os musicos brasileiros compreendessem a importiincia dos compositores de tangos. de maxixes.

    de sambas e de cateretes. como Thpynamba ou 0 genial Nazareth. A riqueza ritrnica. a fantasia indefinidamente renovada. a verve. 0 "entrain". a i n v e n ~ o mel6dica de uma imag i n ~ o prodigiosa. que se encontram em cada obra destesdois mestres. fazem destes ultimos a gl6ria e 0 mimo daArte Brasileira. Milhaud. 1924. p. 264-266)

    2 2 Primeiros tempos do sambaQuando se fala dos primeiros tempos do samba. os pesquisadores de musica popular no Brasil referem-se t decada de1910 e invariavehnente a Tia Ciata. que teria reinado soberana em meio t classe media negra do Rio de Janeiro. TiaCiata se notabilizou por abrir as portas de sua casa aos musicos de samba e choro na p r ~ Onze. entre os quais sedestacavam Donga. Joao da Baiana. Sinhil e Pixinguinha.

    Carlos Sandroni. em e i t i ~ o decente - t r a n s f o r m a ~ i i e s do sam-ba no Rio deJaneiro (1917-1933). mostra como 0 samba e 0 choro se constituiram como generos musicais na mesma epoca- inicio do seculo XX - e compartilharam os mesmos es

    p a ~ o s Esse relacionamento pr6ximo se estendeu pelos anos1920. em que. segundo Sandroni p. 105). na maioria das

    g r a v a ~ o e s comerciais de samba. foram os musicos de choroque se responsabilizaram pelo suporte harmilnico e pela orn m e n t ~ o mel6dica de flauta. trombone etc. . Embora 0nosso tema seja a c n ~ o e 0 choro tenha assumido um carater instrumental. e mportante mencionar que e l ~ sempreaparece. nos relatos dos musicos que viveram aqueles primeiros tempos . relacionado ao samba. ainda que ocupandop o s i ~ o e s hierarquicas diferentes. Sandroni p. 105-106) fezuma sintese das diversas narrativas dos musicos sobre a divisao de e s p a ~ o s na casa de Tia Ciata. argumentando que la

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    o status "respeitavel" era afinnado na sala de visitas, com adan de par e n l ~ d o e a musica dos choros, baseada emgeneros de proveniencia europeia, como a polca, a valsa etc.:em resurno, a festa mais "civilizada", no dizer do pr6prio -xinguinha. Por p o s i ~ a o na sala de jantar, ficava a esfera In-tima, onde prevalecia, protegido por urn "biombo cultural",urn divertimento do tipo afro-brasileiro.Sandroni fez uma interpreta

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    Niio meu objetivo entrar no merito da questao, m sacredito que seria importante refietirmos sobre 0 epis6diodo registro do samba Pelo telefone por Donga, em 1916.Todas as i n t e r p r e t a ~ o e s feitas ate agora sobre 0 assunto siioconsensuais quanta ao seguinte ponto: 0 gesto de Dongateria sinalizado para urn momento de t r a n s i ~ o de padroesculturais de uma sociedade do tipo tradicional para rnmundo em processo de m o d e r n i z ~ i i o . Primeiro porque, ateaquele momento, era comum os sambas serem criados co-letivamente na casa de Tia Ciata, como teria sido 0 caso dePelo telefone , de acordo com relatos de musicos que fre..

    quentavam 0 local. Ao registr,l-io como seu, identificandose como autor, Donga assume uma atitude pr6pria de quemincorpora os valores do indivfduo moderno. Em segundo lugar, a partir do sucesso conquistado pela musica no carnaval de 1917 - Pelo telefone foi gravada pelo cantor Baia-no e editado pela Casa Edison - a palavra samba passa aser proferida regu1armente e adquire grande popularidade.E urn terceiro aspecto tern a ver com a pr6pria o m p o s i ~ i i o ,cuja letra mostra-se ainda indefinida entre 0 rural e 0 urbano. Na verdade. todas as circunstancias em torno do sambaPelo telefune indicam essa s i t u a ~ o de transitoriedade entre 0 tradicional e 0 moderno. entre 0 rural e 0 urbano.o carater folcl6rico da a n ~ i i o revela-se niio apenas emtrechos da letra, mas tambem no pr6prio processo de com

    p o s i ~ i i o Sandroni comenta, a prop6sito (p. 118), que umaparte significativa dessa c o m p o s i ~ i i o e fruto direto do samba fo1c16rico tal como praticado no Rio. nas salas de jantardas tias baianas, no infcio do seculo XX , assim como se r -fere a uma maneira folcl6rica de trabalhar trovas populares de domfnio pUblico, modificando-as de acordo com

    as conveniencias musicais. Aiem desse carater coletivo doprocesso de c o m p o s i ~ i i o , 0 autor faz uma analise detalhada(p. 130) das duas d i c ~ o e s poeticas da musica: uma folcl6-rica e outra autoral , uma vinculada a t r a d i ~ i i o , outra amodernidade .

    Com r e l a ~ i i o as novidades comportamentais, tanto ospesquisadores quanto os pr6prios atores envolvidos no processo de p r o d u ~ i i o musical do periodo enfatizam 0 surgimento de uma nova atitude entre os sambistas do final dosanos 1920, notadamente os do Estacio. Assim, de acordocom essas narrativas, se as duas modalidades de samba - ados anos 1910 e a do final da decada de 1920 - se criamsem duvida a partir dos elementos da cultura negra, uma eoutra e r ~ o lidariam com a h e r n ~ africana de maneirasdiferentes. Os musicos das comunidades baianas da CidadeNova e adjacencias tenderiam a adotar urn estilo de vidapequeno-burgues, na medida em que se orientariam por urnideal de respeitabilidade. Tia Ciata, casada com urn funciomirio publico ligado a pOlicia, tern a sua casa descrita niioapenas como urn abrigo para sambistas e choroes, mas tambern como urn e s p ~ o que abrigava pessoas importantes davida politica. SinhO, urn dos frequentadores da casa, e sempre mencionado como alguem que aspirava a uma p o s i ~ i i osuperior na hierarquia social. Assim, na o n d i ~ o de pianista do Clube Flor do Abacate, no Catete, teria se vinculado afiguras de destaque nos mundos das letras e da politica.

    Os sambistas que surgem nos anos 1920, pelo contrario,pouco afeitos a modelos burgueses, teriam se ligado so-bretudo a redutos associados a boemia e ao cotidiano dasp o p u l ~ o e s faveladas. Desenvolvendo uma sensibilidade di-ferente dos compositores da g e r a ~ i i o anterior, concentra-

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    vam-se na tematica da orgia , malandragem ou vadiagem . Urn exemplo recorrente de composi.;ao afinada comos valores boemios e A malandragem , samba de estreia deBide (Alceblades Barcelos), integrante da primeira g e r a ~ a ode musicos do Estacio. A letra desse samba (gravado porFrancisco Alves em 1927) consiste na fala ironica de urnmalandro anunciando que esta prestes a abandonar a vidade orgia e virar almofadinha . Ii interessante observar quese 0 personagem do malandro ja era familiar na literaturabrasileira desde 0 seculo XIX e no samba desenvolvido peloscompositores cariocas dos anos 1910, e a partir do final dosanos 1920 que malandro se torna sinonimo de sambista . E 0 lugar por excelencia da pratica da malandragem, segundo a maioria dos pesquisadores, seria 0 morro do Estacio, que abrigava sambistas importantes como os irmaosAlceblades (Bide) e Rubens Barcelos, Ismael Silva, Nilton Bastos, Baiaco e Brancura.

    As narrativas sobre a c o n s t i t u i ~ a o da identidade de sambista, a partir dos anos 1920, descrevem-no nao apenas como uma especie de subempregado, mas tambem como malandro , biscateiro e proxeneta. A proximidade do Estaciocom a zona de p r o s t i t u i ~ a o do Mangue teria em muito contribufdo para a sobrevivencia dos seus compositores, que sereuniriam nos bares f t o n t e i r i ~ o s entre a zona de meretrfcioe 0 largo do Estacio, local que Ihes permitia nao s6 exploraro jogo e a p r o s t i t u i ~ a o como tambem se dedicar it c r i a ~ a ode sambas. 'Bide, em depoimento para 0 Museu da Imageme do Som, refere-se a uma sinuca da p r a ~ a Tiradentes, bastante ftequentada'por ele e outros sambistas, e descrevetambem a maneira improvisada de se fazer os sambas nosbotequins, onde as melodias salam de c a b e ~ a . E depreen-

    de-se do seu relato que 0 sambista, neste universo, era urnduble de compositor e valentao, apto para a pratica de capoeira e habituado ao por te de armas. Bide e tambem recorrentemente citado como criador de novos parametros parao samba, alem de inventor nao s6 de instrumentos - 0 surdo, por exemplo - mas tambem do oficio de instrumentistao Bide e M a r ~ a l (outro musico importante do Estacio) ~ o r -naram-se parceiros constantes e, dentre varias de suas

    c o m p o s i ~ o e s destaca-se Agora e cinza , gravada original-mente por Mario Reis em 1933.

    Ismael Silva e outro compositor do Estacio que, de acordocom os relatos, s6 se ocupava com samba e jogo de cartas. Etanto Ismael quanto Bide desenvolveram, desde 0 inicio desuas carreiras, a tematica da malandragem. Ismael Silva seconsagrou, por exemplo, ao utilizar essa tematica na letraque escreveu para a c o m p o s i ~ a o Se voce jurar , de 1931, emparceria com Francisco Alves e Nilton Bastos. A letra tern inido com 0 segufnte recado do sambista para a sua musa:

    Se voce jurarQue me tem amorEu posso me regenerarMas se epara fingir, mulherAorgia assim niio vou deixarBide, por sua vez, compoe a figura do malandro no pr6-

    prio corpo, ao se vestir com os indefectfveis terno branco ecolarinho engomado. No caso de Cartola (Angenor de Oliveira), da Mangueira, 0 pr6prio apelido refere-se it corporalidade, isto e, ao chapeu que usava e que constitu la e ~ a indispensavel do figurino do malandro. Alias, entende-se melhoro tipo de indumentaria do malandro quando se leva em con-

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    ta que, ao mesmo tempo em que sinaliza para uma buscade respeitabilidade, ao copiar 0 modelo universal do ternoburgues, ela traduz a o p ~ o pelo inverso da c o n d i ~ o burguesa, na medida em que, ao fazer uso da cor branca, aciona 0 signo da i f e r e n ~ a Cartola, em suas narrativas, fala sobre 0 universo boemio da Mangueira do final dos anos 1920e refere-se aexistencia, na epoca, de dois tipos de blocos: osde sujo , aos quais ele pertencia, e os familiares, aos quaiso acesso lbe era interditado.

    Quanto ao estilo musical desenvolvido por esta segundag e r ~ o de sambistas, e curiosa observar que, apesar da linguagem debochada da tematica malandra, iniciaram-se, apartir do final dos anos 1920, os contatos entre os morros ea cidade. Noel Rosa e sempre citado como urn mediador entre os compositores dos morros e os musicos cariocas dasclasses media e alta. Noel teria sido urn dos primeiros musicos deste segmento branco e de classe media a subir os morros, como 0 da Mangueira e 0 do Estacio, e conviver com ossambistas desses redutos. Os sambistas do morro, em seusrelatos, costumam reclamar da e x p l o r a ~ a o a que foram submetidos no inicio de suas carreiras por compositores e interpretes ja conhecidos, como Francisco Alves e Mano Reis,negociando com eles a parceria de suas musicas. A despeitodessas s i t u a ~ o e s dificeis na trajetoria de compositores comoBide e Cartola, e a partir do final dos anos 1920 que 0 samba produzido nos morros c o m e ~ o u a ser valorizado comomercadoria e a ser apreciado por segmentos das classes altae media da cidade. caso de Cartola, porem, mostra queesse