TATIT, Luiz. O Século Da Cancao

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  • Copyright 2004 bv Luiz Tatit

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    Picha catalografica elaborada pelo Departamento Tecnico do

    Sistema Integrado de Bibliotecas da USP

    Tatit, Luiz, 1951 o seculo da cano;:a6 I Luiz Tatit. Cotia:

    Atelie Editorial, 2004.

    251 p.

    Este trabalho foi realizado com bolsa de Inclui bibliografia. produtividade em Pesquisa concedida pelo CNPq.ISBN 85-7480-227-1

    1. Cans:ao (Brasil). 1. Titulo.

    CDD 780.98).

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    Direitos reservados a ATELl EDITORIAL Rua Manoe! Pereira Leite, 15 06709-280 - Granja Viana - Cotia - SP TeJefax ell) 4612-9666 www.atelie.com.br/[email protected] 2004

    Printed in Brazil Foi feito dep6sito legal

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  • o SECULO DA CAN
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    melhor forma possivel e convocamos as melodias entoativas apenas para produzir enfases aqui e ali no fluxo discursivo, sem outro tratamento especial que nao 0 exigido pe10 texto verbal. Nao deixa de haver, mesmo nessa fase, algumas regras de condu

  • o SECULO DA CA N
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    dutiva incursao pela cans:ao popular, concebendo arranjos orquestrais antologicos para 0 movimento tropicalista. Mas depois tambern se decepcionaram com 0 rumo seguido pela produs:ao de mercado. A Musica Eletroacustica, desenvolvida especialmente pelo carioca Jorge Antunes, beneficiou-se das espetaculares conquistas eletronicas das ultimas decadas do seculo e manteve boa evolus:ao nos trabalhos de Tato Taborda, Livio tragtenberg, Flo Menezes e outros.

    De todo modo, 0 divorcio entre 0 mundo musical erudito e 0 mundo cancional so se aprofundou no decorrer desse perlodo, ate que, no final dos anos noventa, surgiram algumas iniciativas de reintegras:ao de ambas as sonoridades em projetos envolvendo a orquestra Jazz Sinfonica de Sao Paulo. Mas urn fato tornou-se entao mundialmente incontestavel: quando se falava em musica brasileira, pensava-se logo em cans:ao.

    GRAU ZERO E GRAU DEZ DA SONORIDADE BRASILElRA

    Vimos que nos anos trinta a cans:ao se consolidou como a manifestas:ao mais representativa da sonoridade brasileira. Atentas ao fenomeno de massa, as autoridades do Estado Novo tentaram envolver alguns compositores e interpretes nas campanhas de civismo e de regeneras:ao dos costumes, chegando a extrair alguns sucessos ("0 Bonde de Sao Janu

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    rodas de samba. Dissolveu a influencia do cool jazz nos acordes percussivos estritamente programados para 0 acompanhamento

    '.

    da canyao, sem dar espayo aimprovisayao. E, acima de tudo, pela requintada elaborayao sonora do resultado final, desmantelou a ideia dominante de que "musica artistica" so existe no campo erudito. Mesmo com todasessas neutralizayoes, a canyao apresentada pelo musico baiano manteve-se intata, tanto do ponto de vista tecnico como perante 0 ouvinte, que nao teve dificuldade alguma em reconhecer e prestigiar a versao totalmente despojada. Nesse sentido, a bossa nova de Joao Gilberto atingiu uma especie de grau zero da sonoridade brasileira34

    Ao mesmo tempo, os aspectos emocionais da canyao ficaram a cargo das novas direyoes melodicas sugeridas pelos desengates e engates dos acordes dissonantes (esse tipo de harmonia permite que as melodias ad qui ram outros sentidos ou direyoes - mesmo reiterando as mesmas alturas). 0 canto passou a depender

  • o SECULO DA CANyXO

    em loao Gilberto. Nesse sentido, recebeu 0 grau dez da sonoridade brasileira.

    Ainda retomaremos esse tema no sexto capitulo.

    ERA TELEVISIVA

    Depois da celebre apresentas:ao dos artistas da bossa nova no Carnegie Hall (1962), em Nova York, Tom lobim e loao Gilberto, ou seja, a espinha dorsal da bossa nova, passaram a residir nos

    Nara Leao, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Ronaldo Boscoli e outros importantes representantes do movimento que ficaram por aqui ainda fizeram boa parte de suas obras no estilo lirico e elaborado dos anos heroicos. Gradativamente, porem, foram levados a responder aos embates da epoca: golpe militar e fechamento parcial do regime politico em 1964. Nara Leao, simbolo da

    r

    abastada zona suI carioca fez alians:a com seu conterraneo do suburbio de Piedade, Ze Keti (com quem, alias, Carlos Lyra fez uma parceria no "Samba da Ilegalidade"), e com 0 maranhense loao do Vale para a realizas:ao do show Opiniao, que tinha urn sentido de expressar a resistencia dos oprimidos a nova ordem. Essa linha contava com forte apoio estudantil e atuava lado a lado com 0 teatro e 0 cinema politizados. A canyao, com sua oralidade de base, constituia urn domfnio privilegiado para se "falar" dos problemas que afiigiam a sociedade, por isso, ate mesmo cineastas ou aficionados do cinema como Ruy Guerra e Sergio Ricardo nao deixayam de engrossar as fileiras do "protesto" ao lado de Edu Lobo, Sidney Miller, Gilberto Gil (em sua primeira fase), ate atinJ;!ir 0) apogeu do genero com Geraldo Vandre.

    A musica especificamente de protesto compunha com outras

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    A SONORIDADE BRASILEIRA

    do mesmo estilo, mas menos direcionadas do ponto de vista ideologico, 0 genero que passou a ser chamado de MPB. Contribuiu para 0 crescimento dessa tendencia 0 surgimento explosivo da cantora ElisRegina que, em meados dos anos sessenta, centralizou no seu programa de televisao 0 Fino da Bossa (que de bossa nova tinha muito pouco) 0 impeto criativo dos nurnerosos compositores que chegavam a Sao Paulo dos mais divers os cantos do pais. Elis abrigava nao apenas a canyao de protesto, mas tambem 0 samba autentico de seu parceiro de programa lair Rodrigues e tudo que tivesse a marca "nacional" e, ao mesmo tempo, "popular': So nao admitia a musica jovem, filiada ao rock internacional, cuja repercussao vinha crescendo espantosamente na esteira do sucesso dos Beatles.

    Para darvazao acantoria dos praticantes do ie-Ie-Ie, urn novo programa foi criado sob 0 comando de Roberto Carlos e batizado de lovem Guarda. Despidos de qualquer engajamento de ordem social ou poJitica, esses novos musicos encadeavam acordes perfeitos em suas guitarras eletricas e retomavam, agora sob a egide do rock, a musica para danyar. Ao mesmo tempo, falavam de amor, cstilo de vida e todos os assuntos considerados aepoca "alienados': Produzir para 0 mercado de discos e reafirmar 0 pr6prio sucesso junto a urn publico ja cativo eram os unicos propositos dos representantes da jovem guarda, conquistados, alias, com extremo profissionalismo. Roberto Carlos e seu parceiro Erasmo Carlos revelaram-se excelentes compositores e suas cany5es sao ate hoje disputadas pelos nossos grandes interpretes. Roberto tornou-se 0 cantor do Brasil.

    A TV Record de Sao Paulo promovia em seus teatros tanto os rapazes do programa lovem Guarda como os artistas prestigiados

    Fino da Bossa. E para cobrir todos os estilos musicalS da epoca ainda mantinha programas comandados por nomes de sucesso

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    nacionalista que falava em nome dos valores do campo e pleiteava a reforma agniria. Ravia a MPB ingenua que se atinha a temas passadistas, aexaltayao dos generos tradicionais, como 0 samba, a marcha-rancho eo frevo, quando nao falavam diretamente de blocos e de carnaval. E entre vaias e proselitismos, fatos comuns nesses festivais, a TV Record teve a coragem de promover a participayao de Roberto Carlos, cantando samba evidentemente, num reduto cujos limites de tolerancia iam de Elis Regina a Geraldo Vandre.

    A DECOMPOSI~AO TROPICALISTA

    Irrompem, nesse contexto, os primeiros sinais de presenya do virus tropicalista que, aos poucos, contaminaria as diversas tendencias musicais da "casa" Record e provocaria 0 devassamento progressivo de seus comodos, ate ser expelido do ambieflte por ayao de "anticorpus" administrativ039 Sem contar com 0 respaldo de um "6rgao" que assegurasse sua sobrevivencia - 0 tropicalismo nao representava nenhum setor politico, social ou cultural do momento -, os idealizadores do movimento embrenharam-se nas poucas arterias e regioes neutras existentes na emissora para promover suas intervenyoes culturais. Foi assim que Caetano Veloso ficou conhecido ao participar do despretensioso programa Esta Noite se Improvisa e, junto com Gilberto Gil, dos festivais da musica popular brasileira. Foi assim tambcm que conquistaram prestigio no contato direto com 0 publico, valendo-se principalmente

    )

    39. Caetano Veloso relata que em solidariedade aGal Costa - desrespeitada, segundo eie, pela produ.;ao de um dos programas da Record se indisp6s contra os donos da casa e, conse qficntemente, se desligou (e foi desligado) do elenco da TV (cf. Verdade Tropical, sao Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 329).

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    A SONORIDADB BRASILBIRA

    dos esquemas de revelayao e promoyao subitas desses festivais. A dassificayao de "Domingo no Parque" e "Alegria, Alegria" entre as finalistas do III Festival da Musica Popular Brasileira difundiu os nomes de Gilberto Gil e de Caetano Veloso para todo 0 pais e, com eles, os primeiros gestos tropicalistas: composiyao de !etras com tematica e construyao ins6Iitas e adoyao de atitudes do ie-ie-ie na principal vitrine da MPB. Logo em seguida, viria 0 disco-manifesto Tropictilia ou Panis et Circensis que, alem de contar com a participayao dos Mutantes e demais artifices do movimento (Gal Costa, Tom Ze, Torquato Neto e Capinam), beneficiou-se da mais feliz investida do musico Rogerio Duprat no territ6rio da canyao popular. Seus arranjos deram unidade aproposta e expressao particular a cada faixa do repert6rio. Como se nao bastasse, 0 disco ainda teve 0 aval de Nara Leao, interprete que marcou presenya em todas as fases cruciais da musica brasileira durante os anos sessenta e que, nesse momento, personificava a sonoridade da bossa nova que sempre norteou as decisoes tropicalistas.

    De fato, bossa nova e tropicalismo firmaram-se como os dois principais gestos da moderna musica brasileira, ambos necessarios para abarcar a diversidade sonora que reinaria nas decadas seguintes e as flutuayoes estcticas que constantemente flexibilizariam as leis do mercado musicaL 0 tropicalismo identificou e prestigiou os trayos da cultura brasileira que emanavam das manifestayoes habitual mente recalcadas ou rejeitadas pelos grupos de demarcayao40. Transitou pelo rock internacional, pelo ie-ie-ie local, pelo

    40. Grupos reconhccidos pela atividade de demarca

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  • BRASILEIRA

    Na esteira do sucesso de vendas da musica norte-americana, os investimentos das grandes empresas concentraram-se, nos anos oitenta, na criac;ao de urn simile nacional que pudesse diminuir os riscos dos lanc;amentos inusitados. 0 pais mergulhara numa crise financeira que impedia qualquer aventura comercial. Ao mesmo tempo, proliferavam-se pelas grandes capitais os chamados grupos de rock em busca da dicC;ao jovem perdida nos anos antedores. A influencia das bandas estrangeiras era flagrante, mas nao chegava a ofus car os indicios da tradic;ao local: 0 charme, a simplicidade e a eficacia comercial - para nao falar do descomprome

    do repert6rio da primeira fase da jovem guarda formavam urn modele sugestivo para a atuac;ao desses grupoS42. As gravadoras souberam abriga-Ios na hora certa e suas canc;oes tomaram conta das emissoras FM, contracenando com a produc;ao internacional do rock, do funk e do reggae.

    Urn pouco antes, fora da alc;ada das empresas, alguns grupos despontaram em Sao Paulo com urn tipo de musica que provinha de experiencias de produC;ao independente e que revelava, pela prime ira vez, urn contato direto com a faixa erudita. Egressos da Faculdade de Musica da Universidade de Sao Paulo, cuja diretriz basica em seus primeiros anos de funcionamento fundava-se na "criaC;ao de vanguarda" e nas conquistas radicais das composic;oes dodecafonicas e atonais dos mestres europeus, boa parte desses artistas independentes chegavam amusica popular repletos de ideias e de soluc;oes ja experimentadas no plano erudito. Foi assim que Arrigo Bamabe operou com series dodecafonicas em suas composic;oes, mas nao sem mistud.-Ias a elocuyoes radiof6nicas e a situac;oes tipicas dashist6rias em quadrinhos. Apesar de conser

    42. Os Titas, importante banda surgida nesse cenario, se autodenominavam "Tiw do ie-Ie-ie':

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    o SECULO DA CANyAO

    fato explicitar 0 6bvio: a musica estrangeira, em graus diversos, e parte integrante da musica brasileira.

    A SONORIDADE DO FINAL DO SflCULO

    Afastados do centro de criac;ao artistica, os grupos de demarcac;ao alojaram-se nas diversas instancias do mercado de disco, agora com 0 proposito de racionalizar a produC;ao em grande escala sob criterios colhidos em pesquisas junto a publicos-alvos. Essa tendencia comec;ou a se manifestar ao longo dos setenta, quando as empresas multinacionais de gravaC;ao e difusao importaram e aprimoraram metodos de introduC;ao de produto no mercado.A primeira investida foi com a propria musica norte-americana que, a custo zero, inflacionou a sonoridade brasileira durante urn go periodo, 0 que deu margem, na epoca, a previsoes catastr6ficas quanto ao futuro da produc;ao nacional. Tudo levava a crftr que, no final do seculo, sequer haveria discos de musica brasileira!

    Acontece, porem, que as leis do mercado so sao leis de fato quando analisadas retrospectivamente. Sua capacidade de previsao, ao menos com produto de natureZa artistica, e de curto alcanceo 0 exito dos produtores e executivos que parecem se orientar por essas leis depende bern mais da flexibilidade com que desenvolvem suas estrategias do que da determinac;ao infalfvel de seus metodos. Contracenando com 0 encaminhamento do produto, as flutuac;oes no ambito do gosto e das necessidades emocionais que singularizam os mais variados setores da sociedade e se manifestam diferentemente em cada fase de sua evoluc;ao historica. Os produtores f~ram aprendendo a auscultar assiduamente a opiniao dos ouvintes e a refazer incansavelmente seus projetos de acordo Com as variac;oes registradas.

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    A SONORIDADF.

    timento ideologico

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    qiienta, haviamos tido 0 samba-cam;:ao e 0 bolero; em fase posterior, nos anos setenta, tivemos as can

  • o SECULO DA CANyAO

    sica estrangeira. Evidente que para adquirir valor competitivo no mundo impessoal e perverso da industria cultural, esse novo produto musical brasileiro assimilou tecnicas de padronizac;:ao e de serializac;:ao que Ihe retiraram a forc;:a inventiva no ambito particular de cada obra. Mas na atuac;:ao em grande escala, 0 sucesso dessa musica, fortemente impulsionado por grupos de produtores nacionais e internacionais - cuja flexibilidade e bern maior que a da elite popular -, esmagou a concorrencia e fechou 0 seculo confirmando a propalada pujanc;:a da musica brasileira.

    Na esteira desse fenomeno, incontaveis nichos de criac;:ao que sempre fizeram parte integrante do universo cancional brasileiro, sobretudo a partir da bossa nova, foram conquistando espac;:os mais significativos - proporcionais a seu "coeficiente comercial" - no campo da sonoridade brasileira. 0 extraordinario avanc;:o tecnico eo conseqi.iente barateamento da gravac;:ao de discos propiciaram maior intercambio entre "artistas de criac;:ao" e "artistas de merca

    ,

    do", quando nao favoreceram diretamente a fusao dessas duas categorias num s6 personagem perfeitamente compatibilizado com a dinfunica comercial, como foi 0 caso de Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes, Lenine e tantos outros. Assistimos ainda, de um lado, a projec;:ao e areabilitac;:ao de nomes talentosos que, por falta de condic;:oes materiais, viviam fora do circuito cultural (Tom Ze, Elza Soares, Luiz Melodia etc.) e, de outro, arepercussao internacional de artistas e movimentos brasileiros que, a exemplo da bossa nova, passaram a despertar 0 interesse das outras nac;:oes (0 caso mais notorio foi a moda do tropicalismo nos EUA). Portanto, embora os focos de manifestac;:ao musical estivessem nesse perfodo espalhados irregularmente por boa parte do territorio nadonal e distribuidos ao longo do ana em projetos e eventos que atingiam 0 apogeu no periodo de carnaval- e nao mais concentrados em ca

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    A SONORIDADE BRASILEIRA

    sas como a de Tia Ciata ou a de Paulo Machado de Carvalho jamais, em toda a sua historia, a sonoridade brasileira viveu a hege\11onia ostentada na passagem do milenio. Mas como os periodos hegemonicos dificilmente podem ser captados pelos contemporaneos, em geral mergulhados em idiossincrasias, nostalgias ou pequenos embarac;:os conjunturais, neste novo milcnio havera tempo sufidente para uma avaliac;:ao mais "des-envolvida".

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    Tatit capatatit fichatatit p.41tatit p.42-54tatit p.56-67