CAMINHOS PARA O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO NA...
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Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
RECONHECIMENTO E SUBSIDIARIEDADE:CAMINHOS PARA O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA DO SUL
Alex Ian Psarski Cabral1
Cristiane Helena de Paula Lima Cabral2
RESUMO
O presente artigo tem o propósito de analisar a possibilidade de aplicação da Teoriado Reconhecimento e do Princípio da Subsidiariedade ao direito humanofundamental ao desenvolvimento e à integração regional no âmbito da América doSul. Considerando o indivíduo como o ator principal das relações interestatais faz-senecessário apresentar os benefícios da integração para a consagração desse direito.A proposta é avaliar a necessidade de um novo arranjo de poderes envolvendo osindivíduos e os Estados, resultando na consagração da participação popular comoinstrumento essencial de reivindicação dos direitos de dimensão social no EstadoDemocrático de Direito.
PALAVRAS – CHAVES: Direito ao Desenvolvimento; Teoria do Reconhecimento;Indivíduo; Integração Regional
INTRODUÇÃO
Há tempos que os internacionalistas reconhecem a substituição do
paradigma estatal clássico pela concepção individualista nas relações internacionais.
Existe, no entanto, quem afirme que desde as primeiras manifestações do
constitucionalismo moderno, o indivíduo sempre figurou como elemento essencial
das teorias jurídicas.
Sem desprezar o protagonismo estatal como sumo artífice da justiça, impõe-
se resgatar as teorias que, voltadas para os indivíduos, reconhecem suas
1 Doutorando em Direito Público Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.Mestre em Ciências Jurídico-Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,Portugal. Especialista em Direito do Estado e professor universitário2 Doutoranda em Direito Público Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.Mestre em Ciências Jurídico-Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,Portugal. Especialista em Direito Público e professora universitária
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diferenças, e, pautadas na pluralidade, portam-se como instrumentos na garantia
dos direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais distinguem-se dos chamados direitos do homem,
que são os direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos, e são
adotados numa dimensão jusnaturalista-universalista. Já os direitos fundamentais
propriamente ditos, são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos
e limitados espacio-temporalmente3. Ou seja, os direitos fundamentais representam
os direitos humanos positivados no sistema jurídico.
Os primeiros momentos do processo de construção do constitucionalismo
moderno são marcados por documentos que assinalam a proteção aos direitos e
liberdades numa lógica preponderantemente individualista4.
A transição da Era Pré-Moderna para a Era Moderna teve como
antecedentes a Magna Charta Libertatum (1215/1225), a Petition of Rights ou
Petição de Direitos (1628), o Habeas Corpus Act (1679), o Bil of Rights ou
Declaração dos Direitos dos Cidadãos (1689), a Declaração de Direitos do Bom
Povo da Virgínia (1776) e seu ápice histórico na Declaração de Direitos do Homem e
do Cidadão (1789).
No século XVIII, essa mesma ética individualista foi referida por Bernard de
Mandeville5, filósofo e economista holandês famoso pela associação dos indivíduos
da época às abelhas, descrevendo em versos o egoísmo e outros vícios do
capitalismo, como instrumentos inconscientes de promoção do interesse público.
A filosofia de Mandeville serviu de influência para o utilitarismo de Bentham
e Hume e, posteriormente, para a Teoria do Desenvolvimento Econômico de Adam
Smith. Smith compartilhava com Mandeville a ideia de que a ação coletiva dos
indivíduos em face dos próprios interesses trazia consigo benefícios públicos.
Junto com John Locke, Voltaire e Montesquieu, Adam Smith foi expoente do
Liberalismo clássico que, em geral, ressaltou a importância do livre mercado e das
3 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra, 2003.4 "No embrião dos direitos humanos, portanto, despontou antes de tudo o valor da liberdade. Não,porém, a liberdade geral em benefício de todos, sem distinções de condição social, o que só viria aser declarado ao final do século XVIII, mas sim liberdades específicas, em favor, principalmente, dosestamentos superiores da sociedade – o clero e a nobreza - com algumas concessões em benefíciodo “Terceiro Estado”, o povo. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitoshumanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 465 In MANDEVILLE. Bernard. A Fábula das Abelhas: Ou Vícios Privados, Benefícios Públicos. (The Fable of the Bees). 1714.
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liberdades civis no período histórico Pós-Revolução Americana (1776) e Pós-
Revolução Francesa (1789)6.
Durante o século XIX, o desenvolvimento de técnicas que substituíram o
método artesanal por máquinas que produziam em larga escala resultou no
crescimento econômico sustentado. Mas a transição do capitalismo comercial para o
capitalismo industrial da Revolução Industrial logo deu lugar às desigualdades
econômicas.
Somando-se a isso o início da Primeira Guerra Mundial e a Grande
Depressão de 1929, não demoraria até que a insatisfação do proletariado se
transformasse numa reinvindicação da intervenção estatal na vida política, social e
econômica do país.
Ao contrário do Estado Liberal, o Estado Social vai reclamar uma prestação
estatal positiva, promovendo os direitos sociais, econômicos e culturais conforme o
ideal de igualdade. Nele, o Estado é o agente regulador de toda vida e saúde social,
política e econômica do país.
Após a década de sessenta, com os processos de globalização e
independência das antigas colônias africanas e, sobretudo após as duas Grandes
Guerras Mundiais, os Estados começaram a despertar para a necessidade de uma
nova perspectiva de direitos.
Pautada no espírito de fraternidade, que alcançava a todos os indivíduos,
sem qualquer distinção, até mesmo as fronteiras estatais cederam ante o argumento
irrefutável da solidariedade como reação natural de proteção à raça humana.
Esses fenômenos proporcionaram profundas transformações nas relações
internacionais, com repercussão direta sob a organização interna dos Estados.
A globalização e a diminuição das fronteiras e, posteriormente, a abertura
das economias, incentivou a cooperação entre os Estados e teve grande influência
na formação de compartimentos regionais de integração, os denominados blocos
econômicos.
Na sequencia dos processos de descolonização, os projetos de integração
política e econômica dos Estados demonstram uma possível tendência global ao
regionalismo, acentuando a participação dos atores não estatais na vida dos
indivíduos.
6 BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. 5 ed. Brasília: Ed. UNB, 2000.
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Impulsionadas pelos ideais de solidariedade, as grandes potências,
especialmente as europeias, as primeiras a despertar para a necessidade de se
preparar para os desafios da regionalização, passaram a recorrer ao
aprofundamento dos laços de cooperação como táctica defensiva7.
Vale dizer, a cooperação ainda está aquém do status comunitário. Segundo
o sociólogo e filósofo alemão Ferdinand Tonnies, citado por Elizabeth Accioly, a
depender da relação que os Estados mantêm entre si, subsistem pelo menos dois
modelos diferentes8.
O Modelo Comunitário é dotado de bases com estrutura vertical, impondo-
se limites à soberania dos Estados. É esse limite que assegurará o poder de
integração, dando substância ao poder comunitário, ou poder supranacional, como
no caso da União Europeia.
A chamada 'supranacionalidade', definida como ordem das soberanias
subordinadas normativamente, tem lastro, segundo Fausto de Quadros, na
superioridade hierárquica do poder supranacional sobre o poder estadual. Desafia o
conceito clássico de soberania e impõe uma série de medidas no sentido de
regulamentar esse poder supranacional9.
Por outro lado, o Modelo Societário ou de Cooperação refere-se à
cooperação de soberanias nacionais. Está inserido no contexto da comunidade
internacional clássica, formada por Estados sob a égide do respeito à soberania
desses Estados.
É o caso da integração da América do Sul, que prima pela afirmação do
individualismo de cada Estado parte, sobrepondo-o aos interesses comuns. Ali não
há nenhum poder superior aos Estados, havendo uma relação horizontal de
coordenação de soberanias.
A concepção nacionalista individualista contrasta com a própria concepção
de democracia. E os processos regionais de integração da América do Sul parecem
padecer das mesmas chagas dos primórdios do constitucionalismo, esquecendo-se
do sentido de coletividade que orienta a humanidade e que deve necessariamente
acompanhar o direito.
7 DINH, Nguyen Quoc, DAILLIER, Patrick e PELLET, Alain. Direito internacional público. trad. VítorMarques Coelho. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.8 ACCIOLY, Elizabeth. Poderá Exportar-se o Modelo da União Europeia? Revista de EstudosEuropeus, Ano I, nº 2, Coimbra: Almedina, 2007.9 QUADROS, Fausto de. Direito da União Europeia. Almedina. Coimbra, 2004.
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Mas em que consiste, efetivamente, o Estado Democrático? Atualmente,
quais são os parâmetros de democracia na América do Sul? Há quem afirme que o
próprio conceito de democracia precisa ser revisto, substituindo-se os mecanismos
representativos majoritários por métodos alternativos consensuais10.
Diante dessas considerações, esse artigo, pretende analisar o denominado
direito ao desenvolvimento face ao regionalismo contemporâneo que marca as
relações interestatais e a incapacidade cada vez mais evidente do Estado em prover
os direitos sociais, é provável que seja o momento de voltar os olhos (mais uma
vez?) à ordem social, nomeadamente nos Estados que compõem a América do Sul
e Latina, com vista a demonstrar que é possível que o direito ao desenvolvimento
tem uma matriz essencialmente social, tanto na ordem nacional quanto na ordem
internacional e por consequência, é razoável aceitar o indivíduo como o objeto
principal dessa relação.
Assim, através de uma breve análise da teoria do reconhecimento,
apresentada por Hegel e desenvolvida por Axel Honneth, espera-se ao final do
artigo demonstrar que a própria concepção de solidariedade, os elementos
inspiradores e impulsionadores para a integração na América do Sul e, no direito ao
desenvolvimento, a justificativa jurídica para conduzir as vontades políticas dentro
dos projetos integracionistas do Cone Sul têm como ponto de partido a ótica do
indivíduo.
1. O DESENVOLVIMENTO COMO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL
Para Arjun Sengupta, o direito ao desenvolvimento é um processo
específico que possibilita a realização de todas as liberdades e de todos os direitos
fundamentais. Vai além do direito aos frutos do desenvolvimento e tampouco
significa a soma dos direitos humanos existentes. Refere-se mais à
10 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. O Estado plurinacional e o direito internacional moderno.Curitiba: Juruá, 2012.
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operacionalização dos direitos fundamentais e concretização do desenvolvimento de
uma maneira geral11.
Como um direito humano universal, o desenvolvimento traduz norma de
ius cogens, ultrapassa a fronteira dos Estados, estendendo-se a todos os entes e
organismos internacionais influentes, criando obrigações erga omnes nos planos
normativo e operacional.
Como direito transidividual (ou supraindividual), ultrapassa a esfera de um
único indivíduo, afetando-o tanto isoladamente quanto em coletividade12. Sintetiza
uma gama de direitos difusos13 interligados nos planos político e econômico, social,
civil, cultural, científico-tecnológico, ambiental e espiritual14.
Assim como o direito à paz e à autodeterminação dos povos, o direito ao
desenvolvimento se insere no rol dos "novos direitos", uma síntese dos direitos da
terceira geração (ou dimensão) dos direitos fundamentais, que encontram o seu
fundamento na fraternidade e na solidariedade.
Efetivamente, o termo desenvolvimento, tem origem das agendas das
organizações internacionais. Desde a criação da Organização das Nações Unidas
(ONU) em 1945, o direito ao desenvolvimento foi referido várias vezes, direta e
indiretamente, em documentos internacionais15.
A Carta da ONU, assinada em 26 de junho do mesmo ano, dedicou o
capítulo IX à "cooperação econômica e social internacional". Especialmente, o artigo
55 afirma a intenção das Nações Unidas de promover:
11 SENGUPTA, Arjun. "Fifth Report of the Independent Expert on the Right to Development".E/CN.4/2002/WG.18/6. 18 set. 2002. Disponível em:<http://www.unhchr.ch/Huridocda/Huridoca.nsf/0/bc51cabde398c157c1256c4b002a0051?Opendocument>. Acesso em 24 fev. 2014.12 Vasco Pereira da Silva adverte que "o caráter difuso destes direitos, contudo, só repercute sobre alegitimaçãoo para exigí-los e não sobre a exigibilidade em si, que continua sendo atribuída aospróprios indivíduos como titulares". Segundo ele, a consagração de um direito supraindividual e, portal razão, indivisível, não o tira o conteúdo de um direito individual. In SILVA, Vasco Pereira da. VerdeCor de Direito – Lições de Direito do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2002.13 Os direitos difusos pertencem a um número indeterminado de pessoas que se encontram namesma situação fática, mas não têm entre si nenhuma relação juridical pré-definida. Cf. BARROSO,Luis Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas (Estudo: A proteção do meioambiente na Constituição brasileira). 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 254. In Comentários àConstituição do Brasil. Coord. Científica J.J. Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, IngoWolgang Sarlet e Lenio Luiz Streck. Editora Saraiva. 2013.14 Todas essas partes "são indivisíveis e interdependentes, e cada um deles deve ser considerado nocontexto do todo”. Artigo 9 no 1 da Declaração sobre Direito ao Desenvolvimento de 1986.15 A Carta da ONU, assinada em 26 de junho do mesmo ano, dedicou o capítulo IX à "cooperaçãoeconômica e social internacional".
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a) a elevação dos níveis de vida, o pleno emprego e condições deprogresso e desenvolvimento econômico; b) a solução dos problemasinternacionais econômicos, sociais, de saúde e conexos, bem como acooperação internacional, de caráter cultural e educacional; c) o respeitouniversal e efetivo dos direitos de homem e das liberdades fundamentaispara todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
E o dispositivo vai além. Segundo a Carta, esses objetivos são
fundamentais para criar a condição de estabilidade e bem-estar, necessárias às
relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseada no respeito ao princípio de
igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos16.
Daí em diante o desenvolvimento tornou-se questão fundamental para a
ONU. Sobretudo durante a década de 60, quando antigas colônias já reivindicavam
a independência de outras nações perante a Assembleia Geral e a cooperação
internacional para o desenvolvimento desses povos, resultando nas Resoluções no
1.514 e no 1.710.
Segundo Fernando Antônio Amaral Cardia (CARDIA, 2005), durante a
década de 60, o desenvolvimento tornou-se “um programa normativo de cooperação
em diversas áreas das relações econômicas, com vistas a superar as profundas
diferenças de desenvolvimento existentes entre os povos do mundo”.
Inclusive, há quem entenda esse momento histórico como marco de um
novo sistema jurídico, com regras próprias, voltadas para a inauguração de uma
nova ordem econômica internacional, pautada no Direito Internacional do
Desenvolvimento.
Durante a década de 70, a ONU continuou a estipular metas, na forma de
Resoluções, aprovadas por meio da Resolução pela Assembleia Geral, a exemplo
da Resolução no 2.626, que previa ações coordenadas voltadas ao desenvolvimento.
Os anos 80 são marcados pelo enfraquecimento dos debates
interestatais, predominantemente econômicos, em torno da questão do
desenvolvimento. Ganha força o enfoque jurídico da construção do direito ao
desenvolvimento, migrando definitivamente para o campo do direito internacional
dos direitos humanos.
16 Vide Artigo 55 - Capítulo IX – Cooperação Internacional Econômica e Social da Carta da ONU,assinada na cidade de São Francisco em 26 de Junho de 1945. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕESUNIDAS. Carta das Nações Unidas. 26 de junho de 1945. Disponível em: <http://http://www.onu-brasil.org.br/>, acessado em 02 de fevereiro de 2014.
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A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, aprovada pela
Resolução 41/128 da Assembleia Geral da ONU em 4 de dezembro de 1986 define
o desenvolvimento como:
um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa oconstante incremento do bem-estar de toda a população e de todos osindivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa nodesenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes.
Ao invocar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, afirmou que
"todos têm direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e as
liberdades consagrados nesta Declaração possam ser plenamente realizados".
Considerando-se o inegável caráter histórico, principiológico e
universalista da Declaração Universal dos Direitos Humanos era natural que a
palavra "desenvolvimento" referida na Declaração de 1986 proporcionasse grandes
debates políticos e jusinternacionalistas.
A ideia mais comum de desenvolvimento é aquela que o relaciona a
crescimento e à evolução do Estado.
O crescimento de um país é um fenômeno da macroeconomia. Considera
a produção de renda e riquezas – soma de bens e serviços finais produzidos -,
traduzindo-se basicamente no aumento no Produto Interno Bruto (PIB) daquele
Estado.
Já a evolução é uma das formas de transformação estrutural do Estado.
Em sentido positivo, pressupõe a participação popular e o gradativo
aperfeiçoamento estatal na proteção aos direitos e garantias fundamentais. E no
sentido negativo impõe limites à intervenção Estatal se a sua atuação não for
imprescindível ou não implica melhor desempenho na prestação da atividade.
A outra maneira de modificação do Estado é a revolução. Enquanto a
evolução implica modificação pacífica, lenta e paulatina, a revolução pode ser
armada, não é necessariamente positiva e pressupõe alteração brusca e profunda
do status quo.
O direito ao desenvolvimento é o crescimento que resulta em evolução.
Ou seja, é o direito ao aproveitamento dos índices de riqueza em prol do bem estar
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social, refletindo-se nas liberdades17 e direitos elementares, como saúde, segurança,
educação e cultura.
Arjun Sengupta interpreta o direito ao desenvolvimento como um
processo específico que possibilita a realização de todas as liberdades e de todos os
direitos fundamentais. Vai além do direito aos frutos do desenvolvimento e tampouco
significa a soma dos direitos humanos existentes. Refere-se mais à
operacionalização dos direitos fundamentais e concretização do desenvolvimento de
uma maneira geral18.
Como um direito humano universal, o desenvolvimento traduz norma de
ius cogens, ultrapassa a fronteira dos Estados, estendendo-se a todos os entes e
organismos internacionais influentes, criando obrigações erga omnes nos planos
normativo e operacional.
Como direito transidividual (ou supraindividual), ultrapassa a esfera de um
único indivíduo, afetando-o tanto isoladamente quanto em coletividade19. Sintetiza
uma gama de direitos difusos20 interligados nos planos político e econômico, social,
civil, cultural, científico-tecnológico, ambiental e espiritual.
Assim como o direito à paz e à autodeterminação dos povos, o direito ao
desenvolvimento se insere no rol dos "novos direitos", uma síntese dos direitos da
terceira geração (ou dimensão) dos direitos fundamentais, que encontram o seu
fundamento na fraternidade e na solidariedade.
Internamente, os debates sobre o direito ao desenvolvimento cabem ao
Direito Constitucional nacional, envolvendo o controle judicial das políticas públicas
na busca da efetivação dos direitos fundamentais.
17 Referindo-se a "liberdades básicas", Amartya Sen entende que é impossível mensurar o crescimento ou o desenvolvimento de um país sem
considerar o que realmente acontece na vida das pessoas, que são agentes importantes do desenvolvimento. In SEN, Amartya. Desenvolvimento
como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
18 SENGUPTA, Arjun. Fifth Report of the Independent Expert on the Right to Development .E/CN.4/2002/WG.18/6. 18 set. 2002. Disponível em:<http://www.unhchr.ch/Huridocda/Huridoca.nsf/0/bc51cabde398c157c1256c4b002a0051?Opendocument>. Acesso em 24 fev. 2014.19 Vasco Pereira da Silva adverte que "o caráter difuso destes direitos, contudo, só repercute sobre alegitimaçãoo para exigí-los e não sobre a exigibilidade em si, que continua sendo atribuída aospróprios indivíduos como titulares". Segundo ele, a consagração de um direito supraindividual e, portal razão, indivisível, não o tira o conteúdo de um direito individual. Cfr SILVA, Vasco Pereira da.Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2002.20 Os direitos difusos pertencem a um número indeterminado de pessoas que se encontram namesma situação fática, mas não têm entre si nenhuma relação juridical pré-definida. Cf. BARROSO,Luis Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas (Estudo: A proteção do meioambiente na Constituição brasileira). 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 254. In Comentários àConstituição do Brasil. Coord. Científica J.J. Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, IngoWolgang Sarlet e Lenio Luiz Streck. Editora Saraiva. 2013.
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No plano internacional, o debate sempre teve campo fértil na chamada
análise econômica do Direito. A estratégia era identificar os limites jurídicos a que se
submetiam os agentes econômicos e promover a distribuição dos recursos através
dos ideais de maximização da riqueza.
A partir da década de 60, a teoria social passou a enfrentar o binômio
desenvolvimento versus subdesenvolvimento noutra perspectiva. De influência
marxista, fazia duras críticas ao capitalismo para explicar que havia uma
dependência indevida das economias periféricas em relação às economias centrais.
Nos anos 70, a corrente liberal-democrática contestava o modelo
industrial da América Latina, alertando para a necessidade de uma aliança entre
desenvolvidos e subdesenvolvidos como alternativa à concentração de renda desse
regime.
O fato é que, debruçada sobre uma visão econômica do Direito, a
comunidade internacional nunca explicou porque, no cenário de aceleração do
crescimento sistemático das economias mundiais, o desenvolvimento
socioeconômico não se democratizou com mesma proporção com que se deu a
interdependência global entre os Estados.
O que se sabe é que o desenvolvimento não tem sido prioridade nas
políticas públicas da maioria das nações mais pobres, sobretudo na América Latina.
Assim como os acordos internacionais de cooperação não têm demonstrado
resultados expressivos na implementação desse direito nas nações desfavorecidas,
conforme veremos.
Essas contradições demandam, ao mesmo tempo, uma análise do Estado
e do indivíduo, concomitantemente sujeitos ativo e passivo no processo de
desenvolvimento. Este último, aliás, deve ser concebido como elemento essencial
sobre o qual orbita o direito ao desenvolvimento.
2. RECONHECIMENTO E SOLIDARIEDADE NA PERSPECTIVA DA AMÉRICA DOSUL
Considerando-se os obstáculos experimentados pelos Estados da
América do Sul para alcançar os objetivos de ordem social e a emergência dos
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modelos regionais de integração, tudo indica que é preciso retomar o espírito de
solidariedade que convida a refletir sobre a relação de fraternidade que deve orientar
os governos nacionais na revelação das suas prioridades sociais.
Diante das várias mudanças globais – mais recentemente a crise nos
EUA e na Europa e a instabilidade no mundo Árabe - nunca foi tão necessário
discutir o aprofundamento das relações de cooperação no projeto de integração dos
Estados da América do Sul e América Latina.
Enquanto os Estados Unidos ainda regurgitavam o seu sistema
financeiro, a Europa passou a amargar o seu próprio drama, contemplando países
como Portugal, Grécia, Espanha e Itália. Antes pioneira e visionária, a Europa
integracionista não foi capaz de evitar a própria crise em 2011, e, desde então, tem
convivido com a antiga sombra da desconfiança em relação à chamada Zona Euro.
Esses episódios não devem ofuscar o rompante de democracia vivido
pelo Mundo Árabe. Inaugurados pela Tunísia e favorecidos pelas redes sociais do
mundo virtual, os movimentos populares disseminaram-se por países como Egito,
Líbia e Síria, exigindo respeito à liberdade e profundas reformas sociais contra a
tendência repressora das teocracias absolutistas que há décadas perpetuam-se no
poder.
Esbarrando em governos heterogêneos e nacionalistas, o Mercado
Comum do Sul, não está imune aos acontecimentos. Ao contrário, após a
suspensão do Paraguai e a controvertida adesão da Venezuela, é provável que
esteja enfrentando o ápice de sua própria tragédia.
Criado em 1991, após longas negociações entre Argentina e o Brasil, o
projeto de integração que inclui ainda Paraguai, Uruguai e Venezuela, nunca
conseguiu alcançar seus principais objetivos: o mercado comum e a integração entre
os povos sulamericanos.
Com arquitetura extremamente simples e estrutura minimalista, o modelo
intergovernamental do Mercosul não se aperfeiçoou como pretendido. O avanço que
se esperava do bloco ficou impedido por uma série de problemas institucionais, a
exemplo do processo decisório, que ainda adota o consenso dos Estados Parte.
Ademais, inobstante sua trajetória antiga de esforços de integração, a
opção política pela intergovernabilidade teve como consequência o adiamento do
início dos trabalhos de elaboração de um sistema definitivo de composição de
divergências.
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Dificuldades de ordem política e obstáculos gerados pelas assimetrias
econômicas de seus Estados Partes explicam em parte esse atraso. Mas a questão
pode ser ainda mais profunda, passando pela própria concepção de poder político
por parte dos Estados que compõem o bloco.
Tal como ocorre em relação ao direito ao desenvolvimento, a participação
do indivíduo no processo de integração regional tem imensa relevância, sobretudo
através da difusão da sua dimensão econômica e social. E grande parte da
população do Mercosul ainda não está familiarizada com os efeitos que um projeto
de integração pode provocar no cotidiano do cidadão.
Sucede que, dentro do espírito de solidariedade, a democracia pode ser
uma boa resposta do cidadão, ao impor ao Estado, por força da participação
popular, o dever de elevar a integração à categoria de objetivo estatal, tudo em
nome do direito fundamental ao desenvolvimento.
O fato é que o resgate do princípio da soberania popular, que orienta o
Estado Democrático de Direito é útil tanto a integração na América do Sul quanto na
efetivação do direito ao desenvolvimento no continente.
Esse processo relaciona-se diretamente com a premissa da necessidade
de redescobrimento da identidade do indivíduo e do seu papel perante a sociedade
em que vive, já que é imprescindível pensá-lo a partir da ótica da coletividade.
É preciso registrar a diferença entre individualismo e individualidade.
Enquanto a individualidade indica tudo aquilo que constitui o indivíduo ou o conjunto
das qualidades que o caracterizam, o individualismo é posição de espírito oposta à
solidariedade, ou seja, a capacidade de o indivíduo existir isoladamente21.
Friedrich Hegel pontua a luta pelo reconhecimento dos indivíduos e a
importância da consciência universal de si. Não há espaço, segundo ele, para o
pensamento subjetivo sem a inserção do indivíduo numa comunidade, sem o
conhecimento, por parte de todos os destinatários, de seus direitos. Assim é que
estes indivíduos passarão a reivindicar direitos de toda uma sociedade.22
21 In Dicionário Michaelis On line. Disponível em: www.michaelis.uol.com.br. Acesso em: 18 dedezembro de 2014.22 Cfr em HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosófica em compêndio (1830) A Filosofia doEspírito, vol. III. Trad. MENESES, Paulo. Edições Loyola. p. 207.
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Mais do que isso. As lutas pelo reconhecimento adquirem dimensão de
fundamento dos avanços normativos sociais23.
Para Axel Honneth o conflito é intrínseco à formação do sujeito e ele é
que será capaz de promover a construção da imagem do indivíduo perante o outro e
permitir a sua inserção dentro de uma comunidade na luta pela efetivação de direitos
e garantias fundamentais24.
Assim, deve-se entender a luta social como “o processo prático no qual
experiências individuais de desrespeito são interpretadas como experiências cruciais
típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir, como motivos diretores
da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento” 25.
De uma maneira geral, a sociedade humana pode se organizar conforme
o ciclo indivíduos-grupos sociais-Estados-grupos sociais-indivíduos.
Os indivíduos aspiram serem reconhecidos dentro dos grupos sociais
onde se incluem. Os grupo sociais, que recebem os indivíduos, desejam ser
reconhecidos pelo Estado, que reconhece, ao mesmo tempo, os grupos sociais e os
indivíduos.
Da mesma forma, os Estados adotam a cooperação como forma de inter-
relacionar-se com outros Estados e, assim, serem também reconhecidos, compondo
espaços sociais específicos.
Consequentemente, nas relações internacionais, face à concepção
individualista do Direito Internacional, os processos de aproximação devem
igualmente reconhecer o papel dos nacionais e das suas nações.
23 Cfr em NETO, José Aldo Camurça de Araújo. A categoria “reconhecimento” na teoria de AxelHonneth. Argumentos Revista de Filosofia, ano 3, nº 5, 2011, pp. 147; HONNETH, Axel.Reconhecimento e socialização: Mead e a transformação naturalista da ideia hegiliana. In:HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento – a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. deLuiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003. pp. 125-154.24 "A orientação para a emancipação que caracteriza a atividade do teórico critico exige também quea teoria seja expressão de um comportamento crítico relativamente ao conhecimento produzido e àprópria realidade social que esse conhecimento pretende apreender. Esses dois princípiosfundamentais da Teoria Critica, herdados de Marx, estão fundados na ideia de que a possibilidade dasociedade emancipada está inscrita na forma atual de organização social sob a forma de umatendência real de desenvolvimento". In HONNETH, Axel. Reconhecimento e socialização: Mead e atransformação naturalista da ideia hegiliana. In: HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento – agramática moral dos conflitos sociais. Trad. de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003. pp. 125-15425 HONNETH, Axel. Reconhecimento e socialização: Mead e a transformação naturalista da ideiahegiliana. In: HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento – a gramática moral dos conflitossociais. Trad. de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003. pp. 125-154
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Mas o Estado pode ir além da mera cooperação e, ao aprofundar os laços
de solidariedade passar a integrar-se a outros Estados, em benefício dos indivíduos,
que teriam reforçada a condição de elemento nuclear da humanidade.
Ao abordarem a relação do indivíduo com o outro, essas concepções
trazem importante parâmetro para o resgate da perspectiva da solidariedade bem
como à compreensão dos indivíduos numa sociedade plural. A inserção do indivíduo
na sociedade convida à implementação de uma política comum de defesa dos
direitos transidividuais.
As relações internacionais não mais consideradas como uma ameaça à
segurança e paz internas. É nesse sentido que se aplica a teoria apresentada por
Hegel e discutida por Honneth.
A adoção do direito ao desenvolvimento na perspectiva dos direitos
humanos universais enseja essa mudança de postura, argumentando
favoravelmente aos processos de integração, caracterizados pela cooptação de
diversos grupos sociais que se comunicam na diversidade.
A partir da interação do sujeito com o outro e a necessidade de
desenvolvimento das suas ações pautadas num sentimento de coletivo, onde o
ordenamento jurídico não pode mais permitir distinções entre os indivíduos.
Quanto maior é a luta pelo reconhecimento de um determinado grupo,
maior é desenvolvimento de sua consciência moral e da necessidade de mudanças.
A gramática dos conflitos sociais é fundamental para compreendermos o direito ao
desenvolvimento e sua relação com os processos de integração.
Daí que, para um processo de integração no Cone Sul é imprescindível
considerar os problemas e as assimetrias experimentadas pelos Estados sul-
americanos.
Diante disso, é possível verificamos que, apesar de não existir de maneira
expressa, no Tratado de Assunção (que instituiu o Mercosul) disposições acerca do
princípio democrático e da participação individual no processo de integração,
verifica-se que o objetivo do bloco foi a instituição de medidas que fossem
suficientes para a criação de um espaço democrático na região, como, por exemplo,
a instituição do mercado comum e a livre circulação de bens, serviços, capitais e
pessoas.
Um dos documentos mais importantes para a persecução desse objetivo
foi o estabelecimento, em 1994, do Protocolo de Ouro Preto que serviou para
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aprimorar o funcionamento dos órgãos do Mercosul e definiu de forma precisa quais
seriam as funções da Comissão Parlamentar Conjunta na adoção de medidas para
acelerarem o processo de integração26.
Direcionando a sua integração, para um lado mais social, a “Declaração
Presidencial de Las Leñas”27, em 1992, estipulou a necessidade de se construir
instituições democráticas como condição indispensável para a existência e
desenvolvimento do Mercosul.
Dentre os itens da declaração, uma das mais importantes, para consolidar
o viés democrático foi que disciplinou a possibilidade de um Estado parte ter o seu
processo de integração prejudicado em virtude uma alteração na ordem
democrática28.
Como consequência, em 1998, é estabelecido o Protocolo de Ushuaia
sobre o Compromisso Democrático no Mercosul que institui de forma definitiva o
compromisso do bloco no com os ditames da democracia e a impossibilidade em se
admitir que os Estados partes adotem governos autoritários e que violem
sistematicamente os direitos humanos.
O Protocolo reafirma mais uma vez que o Estado parte terá a sua
participação suspensa no bloco sempre que houver uma ruptura na ordem
democrática e por conseguinte uma inobservância dos preceitos do bloco29.
Para reafirmar, ainda mais o fato de que os Estados partes não aceitaram
qualquer tipo de tentativa de golpe de Estado, seja com a decretação de ditaduras
militares, o Protocolo de Ushuaia II, trouxe medidas ainda mais graves que serão
26 Veja maiores informações em: MERCOSUL. Protocolo Adicional ao Tratado de Assunção sobrea Estrutura Instituicional do Mercosul - Protocolo de Ouro Preto. 17 de dezembro de 1994.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D1901.htm>. Acesso em 02 dedezembro de 2014.27 Cfr informação em MERCOSUL. Declaração Presidencial sobre Compromisso Democrático noMercosul, 25 de junho de 1996. Disponível em: <http://www.mercosur.int/innovaportal/file/4677/1/cmc_1996_acta01_declara-presiden_pt_compdemocratico.pdf>. Acesso em 04 de dezembro de 201428 Cfr. Item 2, Declaração Presidencial sobre Compromisso Democrático no Mercosul: “2.- Todaalteração da ordem democrática constitui obstáculo inaceitável para a continuidade do processo deintegração em curso para o Estado membro afetado”. MERCOSUL. Declaração Presidencial sobreCompromisso Democrático no Mercosul, 25 de junho de 1996. Disponível em: <http://www.mercosur.int/innovaportal/file/4677/1/cmc_1996_acta01_declara-presiden_pt_compdemocratico.pdf>. Acesso em 04 de dezembro de 201429 Cfr em MERCOSUL. Protocolo de Ushuaia sobre o Compromisso Democrático no Mercosul,Bolívia e Chile. 24 de julho de 1998. Disponível em:<http://www.mercosur.int/innovaportal/file/4002/1/1998_protocolo_pt_ushuaiacomprodemocraticomcs-bech.pdf>. Acesso em 04 de dezembro de 2014..
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aplicadas a qualquer Estado parte que estiver sofrendo ameaça ou ruptura em sua
ordem democrática.30
A evidência do déficit democrático da Venezuela, o aumento da taxa de
violência no Brasil, o crescimento do sentimento de exclusão de alguns povos
indígenas, oriundos da Bolívia e Peru, apenas ressaltam o valor da democracia para
os povos da América do Sul, reforçando o alcance das conquistas nas lutas pelo
reconhecimento.
Marilena Chauí31 explica que a cidadania exige instituições, mediações e
comportamentos próprios, constituindo-se na criação de espaços sociais de lutas e
na definição de instituições permanentes para a expressão política, como partidos,
legislação e órgãos do poder público.
E como ampliar essa participação cidadã e fomentar o status de cidadania
ativa? Já que a cidadania se define pelos princípios da democracia, isso significa
necessariamente conquista e consolidação social e política32.
Vale a pena diferenciar a cidadania passiva, aquela que é outorgada pelo
Estado, com a ideia moral do favor e da tutela, da cidadania ativa, que institui o
cidadão como portador de direitos e deveres, mas essencialmente criador de direitos
para abrir novos espaços de participação política.
Logo, verifica-se que, uma vez cumprido os direitos humanos pelo
cidadão, a participação social alcança um status além das fronteiras dos países e
passa a ser requisito a ser obtido pelos espaços comuns de integração, com a
inserção de cláusulas democráticas não só nos textos constitucionais dos Estados,
mas até mesmos nos próprios tratados instituidores dos blocos regionais de
integração33.
30 Cfr artigo 1, Protocolo de Ushuaia II: “O presente Protocolo será aplicado em caso de ruptura ouameaça de ruptura da ordem democrática, de uma violação da ordem constitucional ou de qualquersituação que ponha em risco o legítimo exercício do poder e a vigência dos valores e princípiosdemocráticos”. As medidas a serem aplicadas estão descritas no artigo 6 e vão até a suspensão dodireito de participar nos diferentes órgãos da estrutura institucional do MERCOSUL, à adoção desanções políticas e democráticas e promoção da suspensão da Parte afetada no âmbito de outrasorganizações regionais e internacionais. Promover junto a terceiros países ou grupos de países asuspensão à Parte afetada de direitos e/ou benefícios derivados dos acordos de cooperação dos quefor parte. MERCOSUL. Protocolo de Montevidéu sobre Compromisso com a Democracia no Mercosul(Ushuaia II), 20 de dezembro de 2011. Disponível em:<http://www.mercosur.int/innovaportal/file/2486/1/ushuaia_ii.pdf>. Acesso em 04 de dezembro de2013.31 CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia. São Paulo: Moderna, 200832 Chauí, Marilena. Cultura e democracia. São Paulo, Editora Moderna, 200833 Relacionando mais uma vez essas transformações com a teoria do reconhecimento de AxelHonneth, podemos afirmar que: “Do mesmo mode, a negativa de reconhecimento em uma dessas
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Portanto, já não há dúvidas de que é preciso ir além da retórica das
declarações de direitos e partir-se para os meios de sua fruição. Nesse ponto, um
princípio com origens antigas vem obtendo lugar de destaque, sobretudo na
construção europeia: o princípio da subsidiariedade.
3. A APLICAÇÃO DA SUBSIDIARIEDADE NO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO
Apenas a adoção de uma postura de cidadania ativa pode efetivamente
reconduzir o indivíduo ao centro do processo de decisões políticas do Estado e dos
Estados nos processos de integração.
Consequentemente, o desenvolvimento como direito humano de
dimensão plural, pautado no direito à vida, às liberdades e à igualdade, sempre irá
decorrer de um processo de redemocratização, transformador das relações entre os
indivíduos e entre os indivíduos e o Estado.
Trata-se de estabelecer mecanismos que promovam um novo equilíbrio
nas relações de poder (power-sharing arrangements) nas três dimensões: entre os
indivíduos, entre os nacionais e o Estado e entre os próprios Estados.
Inspirado nos paradigmas da América de sua época, Tocqueville
rechaçava a ideia de centralização da administração, inadmitindo-a face à vastidão
do território americano.
Visualizava uma América gerenciada por administrações periféricas, cujos
governos locais teriam a possibilidade de incluir os indivíduos no processo de
tomada de decisões nos seus próprios assuntos.
Segundo Tocqueville esse era o pressuposto que deveria reger a
sociedade dos Estados Unidos: a individualidade a serviço do núcleo que lhe cerca,
e esse núcleo, por sua vez, em atuando em benefício das esferas maiores da
organização política e territorial do país.
esferas propociaria situações de desrespeito aos indivíduos de um modo geral, permeadas por maustratados e violação da integridade física, privação de direitos e exclusão quanto à integridade social,degradação e ofensa quanto à horna e dignidade”. _____________________. O reconhecimentosocial na visão de Axel Honneth: compreendendo a gramática moral dos conflitos sociais. Puc-Rio.Disponível em: <http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/1012878_2012_cap_2.pdf>.Acesso em 04 de dezembro de 2014.
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Essa crescente de competências harmonicamente interligadas em torno
de um movimento “de dentro para fora”, tem como pressuposto, segundo ele, a
soberania do povo, ensejando a participação das instâncias intermédias, no sentido
de viabilizar a eficiência dos meios e asseguram a liberdade em face do Estado.
Tocqueville referia-se ao princípio consagrado na construção do processo
de integração europeu34, o Princípio da Subsidiariedade.
A ideia da subsidiariedade, no entanto não é exatamente uma criação
jurídica. Tem origem filosófica35, cujas referências remetem remotamente à ordens
religiosas e apresenta contemporaneamente interessantes desdobramentos para as
ciências políticas e as relações internacionais.
Etimologicamente, os termos subsidiário, subsidiariamente e
subsidiariedade provém de uma raiz comum, o termo latino “subsidium”, derivado de
“subsidiarius”36.
O adjetivo subsidiário aplica-se a subsídio, no sentido daquilo que reforça
ou dá apoio, ajuda ou socorre37, e, na sua forma substantiva, origina a palavra
subsidiariedade.
A subsidiariedade nasce de subsídio, do latim subsidium38, com sentido
equivalente a auxílio, socorro extraordinário, quantia que vai prestar benefício ou
coadjuvação a alguém ou quantia subscrita para obra de beneficência ou de
interesse público.
Pode, portanto, designar o auxílio, a interferência, em caráter
extraordinário, no sentido de prestar o apoio desejado, ou, para fins de reforçar
aquele socorro que normalmente é prestado.
Pode ser interpretada com uma designação para tudo que pode ser
qualificado como secundário. Ou, como ensina José de Oliveira Baracho, pode
34 O projeto de integração europeu está constitucionalmente vinculado ao princípio dasubsidiariedade. Introduzido pelo Tratado de Maastrich, guarda (juntamente com outros princípios)status fundamental no sistema de competências da União.35 As raízes da subsidiariedade remontam à filosofia grega, bem como às manifestações cristãsmedievais e à concepção germânica da sociedade. In MILLON-DELSOL, CHANTAL, L´Étatsubsidiaire, Ingérence et non ingérence de L`État: Le príncipe de subsidiarité aux fondementsde l`histoirie européene, Paris, 1992.36 A subsidiariedade tem tradução para diversas línguas (subsidiarity, em inglês; subsidiarité, emfrancês; subsidiariedad, em espanhol, sussidarietà, em italiano; e subsidiaritä, em alemão).37 _______________.Dicionários Michaelis e Houaiss da Língua Portuguesa. In Dicionário UOL,disponível em: <http://dic.busca.uol.com.br>. Acesso 10 de dezembro de 2014.38 _______________.Dicionários Michaelis e Houaiss da Língua Portuguesa. In Dicionário UOL,disponível em: <http://dic.busca.uol.com.br>. Acesso 10 de dezembro de 2014.
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traduzir, ao mesmo tempo, “as ideias de complementariedade e
suplementariedade”39.
No entanto, nenhum desses conceitos é suficiente para traduzir a real
significação jurídica de subsidiariedade. O termo é poliédrico e sua etimologia
sugere uma interpretação multifuncional dos seus significados, do ponto de vista
filosófico, político e jurídico40.
Segundo leciona Margarida Salema Martins41, a subsidiariedade começa
a repercutir na Antiguidade através da filosofia política aristotélica, na Idade Média
pela filosofia tomista e na contemporaneidade na filosofia católica.
Para Aristóteles a sociedade é o produto de um conjunto de grupos,
formados sucessivamente. A natureza fez do homem um “ser político”, dotado
necessidade primitiva de viver socialmente (appetitus societatis).
A família é a principal das comunidades naturais, formada pela união do
homem com a mulher, referindo-se as necessidades quotidianas, constituindo a
casa. A sucessão de várias casas com necessidades menos quotidianas enseja a
aldeia.
A cidade, por sua feita, seria o resultado da união de várias aldeias.
Marcada pela autossuficiência, a cidade organizava-se em torno das necessidades
da vida e em prol do bem estar. Cada grupo destes representaria uma camada, que
por sua vez, coexistia com as demais. A depender da camada, toda camada
superior atende aos anseios da camada imediatamente inferior.
O poder, segundo ele, está relacionado à sua utilidade, aos seus fins
específicos. Não pode ultrapassar a idéia de remediar uma situação onde as
diversidades - naturalmente existentes na sociedade - estão em conflito. Se a
autoridade exerce o poder além desse limite, o faz fora de qualquer noção política.
Em síntese, a sociedade civil constituía, para Aristóteles, a um só tempo,
uma resposta para as suas próprias necessidades, e um novo método através do
qual uma comunidade (o indivíduo, inclusive) encontra a melhor maneira para
aperfeiçoar a sua vida.
39 In BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O Princípio da Subsidiariedade. Conceito e Evolução. Riode Janeiro: Editora Forense, 2003, p. 24.40 Nesse sentido, IRIBANE, Manuel Fraga. El Principio de Subsidiariedade en La Unión Europea.Bruxelas: Fundación Galicia Europa, 1997, p. 36.41 MARTINS, Margarida Salema D´Oliveira. O Princípio da Subsidiariedade em PerspectivaJurídico-Política. Lisboa: Coimbra Editora, 2003, p. 40.
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O discurso de Aristóteles soa como um aviso. Alerta para um Estado
redutor e onipotente, perante o qual a subsidiariedade funciona como uma medida
capaz de limitar a ingerência dos poderes públicos na esfera política e de liberdade
do indivíduo.
Com base na teoria da origem natural da sociedade42 e de acordo com a
sua orientação organicista43, Tomás de Aquino descreveu a sociedade como a
necessária subordinação do bem da parte ao bem do todo.
Para ele, a antiga compreensão de cidadão parecia ter sido substituída
pela entidade cristã “pessoa”. Cada um, na sua individualidade, é responsável pelo
seu destino, recorrendo ao poder público, que se coloca à serviço das sociedades,
para realizar a sua felicidade44.
Tomás de Aquino, desenvolveu suas ideias, juntamente com Althusius,
com a influência do pensamento de Aristóteles, reverenciando o primado do bem
comum sobre o bem particular. O homem, por seu turno, estava naturalmente
inclinado a desejar, primeiro, o bem do próximo.
Isso não significava que este homem deixaria de perseguir os seus
próprios fins, com liberdade. Embora necessariamente ligado à sociedade e a Deus,
o homem é livre para realizar a si próprio.
Após o período medieval, Althusius foi pioneiro ao fazer apologia a uma
autoridade subsidiária45.
42 Segundo esta teoria, apenas um indivíduo de natureza vil ou superior ao homem pode viverisolado: o ser superior, por ser dotado da capacidade divina de viver só (excelentia naturae), osmentalmente anormais (corruptio naturae) ou por acidente (mala fortuna). Os irracionais que seassociam, constituem, pela teoria da origem natural da sociedade, meros agrupamentos formadospelo instinto, os denominados agrupamentos primários.43 Na perspectiva do organismo (organicista), a sociedade é o conjunto de relações através dos quaisos indivíduos vivem e atuam em ordem formando uma entidade nova e superior. Contrapõe-se,portanto, à perspectiva do mecanismo ou mecanicista. Grosso modo, é aquele que relaciona asociedade a um grupo de indivíduos, formado a partir de um acordo de vontades e que buscam,através do vínculo associativo, obter um interesse comum impossível de ser obtido pelos esforçosisolados dos indivíduos. Nesse sentido, ao contrário dos organicistas que consideram a sociedadecomo valor primário ou fundamental, como sujeito da ordem social, os mecanicistas pugnam peloindivíduo, ele é a unidade fundamental, o centro irredutível a toda assimilação coletiva, o verdadeirosujeito da ordem social.44 TANCREDO, Fabrizio Grandi Monteiro de. O princípio da Subsidiariedade: As Origens e AlgumasManifestações. Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Vol.XLVI nº1. Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 178.45 Althusius se inspirava na sociedade alemã da época, onde as autonomias locais muitas vezes semanifestavam como independências. Essas autonomias dos grupos sociais baseavam-se nos finsparticulares de cada ser e permitiam que aqueles grupos trabalhassem para realização da felicidadegeral.
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Na concepção organicista de Althusius, a sociedade constrói-se por
pactos sucessivos, através de contratos públicos. Considerava imprescindível
preservar a autonomia das comunidades em cada nível. As próprias comunidades,
para ele, só existem porque são absolutamente necessárias.
Entretanto, a subsidiariedade só começou efetivamente a receber
tratamento dogmático no discurso canônico, consagrado como princípio da Filosofia
Social da Igreja Católica.
Embora presente na Rerum Novarum (1891), foi na Encíclica de Pio XI
Quadragesimo Ano (1931)46 que a subsidiariedade consagrou o primado da pessoa
humana como valor essencial da vida em comunidade47.
Constituía princípio dedicado à função supletiva da coletividade, e sua
aplicação implicou considerar o indivíduo e os grupos sociais menores da
Comunidade.
O Estado havia esgotado a sua capacidade de cumprir com as suas
funções e a conjuntura social era desfavorável. Chamando atenção para a existência
dos corpos intermédios, a Encíclica sugeria uma via intermediária entre o
Liberalismo e o coletivismo da doutrina marxista48.
Em seguida, o princípio da subsidiariedade e a função da autoridade
pública na economia foi tema da Encíclica Mater et Magister de João XXIII, que
louvou a intervenção do Estado como elemento de incentivo.
Em 1963 em Pacem in Terris o tema da subsidiariedade foi adotado no
âmbito das relações internacionais.
Segundo Maria do Rosário Vilhena, o princípio insculpido pela doutrina
social da Igreja Católica contempla a existência de uma dimensão positiva e uma
dimensão negativa.
46 PIO XI. Encíclica Quadragésimo anno. 1931. Disponível em: http://www.vatican.va/phome_po.htm.Acesso 10 de dezembro de 2014.47 No contexto de desorganização social da época, o Papa reavalia o papel da autoridade pública doEstado. “Assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efectuar com a própriainiciativa e trabalho, para confiar à Comunidade, do mesmo modo passar para uma comunidademaior e mais elevada o que comunidades menores e inferiores podem realizar é uma injustiça, umgrave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua acção écoadjuvar os seus membros, não destruí-los, nem absorvê-los”. Encíclica de Pio XI QuadragesimoAno (1931), in VILHENA, Maria do Rosário. O Princípio da Subsidiariedade no DireitoComunitário. Coimbra: Almedina, 2002.48 SARAIVA, Rute Gil. Sobre o Princípio da Subsidiariedade. Gênese, evolução, interpretação eaplicação. Lisboa.: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2001, p. 21.
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É positiva já que o Estado deve agir quando necessário e à medida que a
comunidade inferior não reúna as condições ideais para desempenhar eficazmente
as tarefas que lhe são acometidas, impondo-se à comunidade superior que lhe
auxilie49.
E negativa porque o Estado deve abster-se de agir se a sua presença não
for imprescindível ou se a sua atuação não implicar maior eficiência no desempenho
das funções.
Aliás, o critério de eficácia como justificativa da ação dos níveis
superiores – poderes públicos e supra-governamentais - foi referido na Centesimus
Annus de João Paulo II, em 1991. Nos casos onde não se verificasse esse critério, a
função deveria ser cumprida pelos corpos intermédios50.
Em suma, originalmente, a subsidiariedade pressupõe que tudo aquilo
que pode ser realizado pelas comunidades inferiores não deve ser concretizado pela
comunidade superior à qual pertencem. Implica uma inegável limitação da
comunidade superior a um mínimo necessário.
Daí que a subsidiariedade tem vinculação com as ideias de liberdade e
justiça. Já que o papel do Estado há de ser sempre subsidiário, competindo à
própria sociedade promover a assistência mútua e recíproca para encerrar suas
demandas, originalmente, mediante seus próprios esforços.
Segundo Faber Torres, é a liberdade que a subsidiariedade, enquanto
princípio de competência, visa concretizar. A subsidiariedade almeja o equilíbrio
social, seja quando o Estado intervêm indevidamente em áreas próprias da
sociedade, seja quando se presta a ajudar, coordenando e suprindo as
necessidades coletivas51.
À subsidiariedade corresponde a fundamento de justiça à medida que
reclama a competência originária dos indivíduos, das famílias e dos grupos sociais
49 “Não obstante, este auxílio não implica o afastamento total e imediato da comunidade inferiorrelativamente às tarefas em causa. De facto, o auxílio e a actuação do grupo de nível mais elevado eenglobante deve cessar logo que a comunidade inferior se revele capaz e autônoma. A merasubstituição, sem mais, de uma comunidade pela outra, não obedece ao espírito da subsidiariedade”.in VILHENA, Maria do Rosário. O Princípio da Subsidiariedade no Direito Comunitário.Coimbra:Almedina, 2002.50SARAIVA, Rute Gil. Sobre o Princípio da Subsidiariedade. Gênese, evolução, interpretação eaplicação. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2001, p. 21.51 TANCREDO, Fabrizio Grandi Monteiro de. O princípio da Subsidiariedade: As Origens e AlgumasManifestações. Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Vol.XLVI nº1. Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 188.
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menores. A ameaça a essa competência, segundo Fabrizio De Tancredo é pura
injustiça52.
A noção de subsidiariedade teria ainda alguns princípios estruturantes, a
saber: o bem comum, a dignidade humana, o pluralismo social e a responsabilidade
social.
Bem comum e subsidiariedade são os fundamentos da intervenção do
Estado. Enquanto que conforme explica Jorge Miranda a Dignidade Humana é a
fonte ética, fundamento e fim da própria sociedade53.
O pluralismo social, por outro lado, constitui corolário da subsidiariedade.
O primeiro indica o reconhecimento pelo Estado da existência dos grupos sociais,
com autonomia de direitos e competências próprias.
A responsabilidade social nada mais é do que a consagração do vínculo
solidário de convivência entre os indivíduos que compõem uma sociedade. Também
não há que se pronunciar a subsidiariedade sem esse substrato.
Ademais, o termo subsidiariedade não se confunde com descentralização.
Jorge Miranda adverte que “na descentralização parte-se do Estado para
pessoas coletivas por ele criadas ou com poderes por ele outorgados, ao passo que
na subsidiariedade o movimento é inverso (…)”.
Arremata concluindo que o aparente nexo entre os termos não se justifica
tendo em vista que “a subsidiariedade não é suficiente garantia de descentralização,
tudo depende do juízo que, em cada momento, se faça acerca das necessidades
coletivas e acerca dos modos e dos meios de satisfazê-las”54
O que pode sugerir uma ligação é o fato de que, na ordem jurídica
interna, a subsidiariedade está relacionada à preocupação dos governos dos
Estados, sobretudo os membros de uma federação, com o exercícios das suas
próprias atribuições nos quadros políticos, administrativos e econômicos.
A qualidade de uma administração pública muitas vezes não se coaduna
com as tendências de centralização. Ao contrário, a concretização de políticas de
descentralização favorece a desburocratização e o desenvolvimento, através da
implementação de políticas públicas locais.
52 Ob cit, p. 189.53 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais. 3 ed.Coimbra: Coimbra Editora, 2000, P. 184.54 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais. 3 ed.Coimbra: Coimbra Editora, 2000, P. 184
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A maior facilidade para o diagnóstico dos problemas sociais em razão da
maior proximidade entre os cidadãos e autoridade locais contribui positivamente
para a implementação dos direitos fundamentais, além de estimular a participação
solidária da sociedade, conforme se analisará mais profundamente adiante.
CONCLUSÃO
O desenvolvimento não é apenas um direito de ordem constitucional.
Como direito humano universal ultrapassa a fronteira dos Estados, estendendo-se a
todos os entes e organismos internacionais.
Embora direito do homem, ultrapassa a esfera individual e, ao sintetizar
direitos difusos, afeta-o isoladamente e coletivamente.
Sua origem nas agendas das organizações internacionais inseriu-o
equivocadamente no rol dos compromissos morais dos Estados desenvolvidos com
os Estados em desenvolvimento.
Sua verdadeira natureza, no entanto, é outra. Trata-se de uma nova
dimensão de direitos, ligada à própria evolução das relações entre indivíduos, entre
indivíduos e o Estado e entre os próprios Estados.
No plano nacional, exige uma das formas de transformação estrutural do
Estado. No plano internacional, implica uma reflexão a respeito da própria noção de
crescimento do Estado em face de suas relações internacionais.
Em sentido positivo, pressupõe a participação popular e o gradativo
aperfeiçoamento das estruturas estatais na proteção aos direitos e garantias
fundamentais. E no sentido negativo impõe limites à intervenção Estatal sempre que
a sua presença não for imprescindível ou se a sua atuação não implicar maior
eficiência na prestação da atividade.
Em face das dificuldades experimentadas na América do Sul,
principalmente no que se refere aos índices sociais, um importante passo para a
garantia do direito ao desenvolvimento se dá com o estímulo à cidadania ativa no
contexto dos modelos regionais de integração.
A participação dos indivíduos nos processos decisório do Estado – e,
consequentemente, dos Estados em processo de integração – pode contribuir
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decisivamente para a promoção e efetivação desse direito nos dois planos: nacional
e regional. Aliás, essa compromisso democrático já encontra interessante parâmetro
jurídico no Protocolo de Ushuaia, firmado no âmbito do Mercosul.
O Princípio da Subsidiariedade e a Teoria do Reconhecimento têm em
comum refletirem ambos sobre a necessidade do protagonismo dos indivíduos no
processo de desenvolvimento dos Estados.
Comparando-se as iniciativas de integração da América do Sul com a
experiência europeia resta demonstrado que, num processo de integração, quanto
mais próximos os sul-americanos estiverem dos centros de poder maior consciência
haverá de sua dimensão econômica e social.
Entretanto, não se trata de tarefa fácil, haja vista que isso só será possível
através de um novo arranjo de poder nas relações entre os indivíduos, entre os
indivíduos e o Estado e, entre os indivíduos e os poderes no processo de integração.
Daí a importância do resgate da identidade do indivíduo, que passa
necessariamente pela consciência de sua função na coletividade.
É preciso retomar o espírito de solidariedade que convida a refletir sobre
a relação de fraternidade que deve orientar os governos nacionais na revelação das
suas prioridades sociais. E deixar para trás a memória individualista do direito
constitucional através da predominância do espírito solidário do Estado Social é
propor a superação do individualismo pela da reafirmação da individualidade.
Nesse processo, a reinvindicação popular ao direito ao desenvolvimento
também deve valer-se da influência do mesmo princípio de repartição de
competências adotado na integração europeia: o princípio da subsidiariedade.
Conforme se anotou, desde o discurso canônico da Filosofia Social da
Igreja Católica que a subsidiariedade se consagrava como princípio que eleva o
indivíduo e os grupos sociais menores da Comunidade. E desde Aristóteles, sempre
funcionou como freio à ingerência dos poderes públicos na esfera política e de
liberdade do indivíduo.
Pressupondo que o que pode ser realizado pelas comunidades inferiores
não deve ser concretizado pela comunidade superior, a subsidiariedade represente
a limitação da comunidade superior ao mínimo necessário. Consequentemente vai
se associar às ideias de liberdade, justiça social, a dignidade humana, o pluralismo e
a responsabilidade social.
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
A intervenção equivocada dos poderes públicos – Estado e órgãos
decisórios no processos de integração - ou a ausência dela podem resultar em
violação à liberdade e injustiça.
Tendo como valor máximo a dignidade humana e o bem comum, a
subsidiariedade reverencia o pluralismo social à medida que protege o individuo e,
ao reconhecer os grupos sociais, exalta a individualidade. Já a responsabilidade
social nada mais é do que a consciência do vínculo solidários entre os indivíduos
numa sociedade.
Intimamente ligados, as teorias que exaltam o direito dos indivíduos a
conscientizar-se do seu papel na sociedade e o princípio da subsidiariedade, vão se
encontrar como fundamento à cidadania ativa no processo de integração da América
do Sul. E, ao promovê-la, acabam por cooperar com essa integração, através do
reconhecimento do direito ao desenvolvimento para os povos do Cone Sul.
Assim sendo, podemos afirmar que há sim meios de se priorizar,
nomeadamente nos quadros da integração na América do Sul, o direito ao
desenvolvimento, definido como direito humano fundamental. E não se trata de
compromisso moral, conforme já se anotou. Num projeto de integração sério há
muitos meios para se estabelecer um compromisso em bases jurídicas para o
desenvolvimento em prol dos indivíduos.
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