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CONVERSAS:
CAMINHOS DA PESQUISA COM O COTIDIANO
Para os que chegam…
E pegam a conversa assim meio começada, meio terminada, meio no meio, sintam-se a vontade, afinal conversa é assim mesmo, a gente puxa a cadeira e entra.
Esta conversa começou no CIEP Compositor Donga, no Município do Rio de Janeiro, onde atuo como professora de Sala de Leitura e PEJA (jovens e adultos). Começou nos atravessamentos dos decretos baixados sobre a avaliação escolar, começou na discussão sobre a produção dos fracassos e sucessos de nossa escola.
Começou também com um debate entre as professoras alfabetizadoras desta escola, sobre nossas dificuldades, possibilidades, sobre nossas crenças e práticas.
Nas conversas passadas estas discussões foram apresentadas e debatidas na orientação coletiva. O texto que alimenta nossa conversa de agora, será um capítulo anterior a todos os acontecimentos já narrados e debatidos, onde a conversa é apresentada como uma possibilidade de metodologia de pesquisa com o cotidiano, metodologia que foi sendo descoberta no próprio movimento da pesquisa, e me foi lançada como desafio pela banca de qualificação.
Desafio que divido com vocês... Andréa Serpa
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CONVERSAS: CAMINHOS DA PESQUISA COM O COTIDIANO1
Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacralmente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.
Entretanto são palavras simples:
definem partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença dos séculos.
E tudo é proibido. Então, falamos.
Carlos Drummond de Andrade
Quando nos aventuramos pelos tortuosos caminhos de pesquisar com o cotidiano, e
não sobre ele, enfrentamos muitas encruzilhadas, algumas armadilhas e certos desafios.
Negarmos a “coisificação” que transforma os sujeitos em objetos e a arrogância que
transforma o pesquisador em soberano defensor do estatuto da verdade produzida por uma
realidade única e inexorável, nos obriga a enfrentar que mergulhamos em um rio de águas
profundas sem saber exatamente o que esperar do que vamos encontrar. As águas são
turvas, as correntezas imprevisíveis e as certezas que usamos como salva-vidas, muitas
vezes não nos salvam, ao contrário, algumas vezes até nos arrastam para o fundo.
Ao compartilhamos nossas trajetórias, experiências e reflexões com os outros
sujeitos com quem vamos produzindo a pesquisa estes se tornam também narradores,
parceiros na pronúncia do mundo. Contudo, dizê-lo é muito mais simples do que fazê-lo.
Partilhar as experiências, assim como as narrativas e as reflexões produzidas
coletivamente pressupõem assumir uma escrita sobre a qual, ao registrarmos, podemos ter
certa autoria, mas não o controle. Significa produzir um texto onde as vozes não sejam
apenas um ponto de apoio, as escoras, onde vou erguer o prédio de minha sabedoria, sob as
quais vou erguer minhas argumentações e verdade, mas exatamente o contrário, são vozes
que nos desequilibram, nos convidam para o embate e para o debate. Significa produzir um
1 Texto integrante da Tese de Doutorado: Quem são os Outros na/da Avaliação defendida em nov de 2010.
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texto marcado pelo movimento de vozes que se atravessam, e ao se atravessarem provocam
umas nas outras mudanças de rumo, mudanças de perspectivas. Que ao se atravessarem vão
formando uma trama que não se submete ao nosso desejo cartesiano de desfiar o real para
encontrar-lhe as pontas e assim arrumá-lo em nosso carretel. Vozes que ao se cruzarem e ao
se encontrarem, provocam novas experiências umas nas outras, deixam marcas.
Sujeitos que, como nos aponta Bhabha, encontram-se muitas vezes em antagonismo
ou contradições, mas que são desafiados a produzir juntos e pensar juntos, encontram-se –
um encontro raramente harmonioso e tranquilo – neste espaço da tradução e da negociação.
Neste encontro, esta negociação entre diferentes lógicas e desejos, percepções e
medos, levaram-me a buscar aprofundar minhas reflexões sobre a conversa como noção
(conceito ou princípio) potencial para desenvolver uma pesquisa com o cotidiano.
A conversa como metodologia de reflexãoaçãoreflexão vem sendo utilizada por
alguns grupos que buscam nesta prática criar um lugar de encontro onde os sujeitos possam
reinventar a si e a suas realidades através da palavra compartilhada.
As rodas de conversa, metodologia bastante utilizada nos processos de leitura
e intervenção comunitária, consistem em um método de participação coletiva
de debates acerca de uma temática, através da criação de espaços de diálogo,
nos quais os sujeitos podem se expressar e, sobretudo, escutar os outros e a si
mesmos. Tem como principal objetivo motivar a construção da autonomia dos
sujeitos por meio da problematização, da socialização de saberes e da reflexão
voltada para a ação. Envolve, portanto, um conjunto de trocas de experiências,
conversas, discussão e divulgação de conhecimentos entre os envolvidos nesta
metodologia.( http://www.agb.org.br/XENPEG/artigos/Poster)
Onde se inicia a pesquisa com o Cotidiano? Quando se inicia? Os caminhos de
minha pesquisa, foram feitos de muitos começos, tantos que percebi que a pesquisa não foi
feita de começos, mas de muitos e infinitos meios: fragmentos da vida da escola,
acontecimentos e falas recolhidas aqui e ali, desabafos no café, professoras que adentram
minha sala e meus pensamentos com suas angústias e alegrias, com suas dúvidas e
descobertas, festas, decretos, provas, bilhetinhos...
Um destes muitos começos/meios, foram as conversas entre o grupo de professoras
alfabetizadoras de minha escola, que despertaram a mim, assim como a outras
pesquisadoras do Grupalfa, para a potencialidade daquelas conversas como uma das formas
possíveis de investigarmos com o cotidiano. Uma metodologia que se produz com os
sujeitos e suas vozes em um movimento dinâmico, rizomático, imprevisível. A cada nova
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palavra, a cada novo acontecimento, a cada nova experiência resignificada na palavra do
outro a pesquisa abria-se para uma nova trilha. Caminhos abertos pela conversa...
Caminhos que nos impõe certos desafios. Como produzir um texto de pesquisa onde
as vozes dos sujeitos sejam respeitadas em sua diferença e não reduzidas por mim aos meus
interesses? Ao assumirmos que não acreditamos, na existência da neutralidade nem na
pesquisa, nem no autor que a narra, como produzir um texto onde as contradições e as
ambivalências presentes nos sujeitos e em mim não sejam invisibilizadas, para produzir um
texto “limpo” de nossas incongruências, mas ao contrário, o precioso material de nossa
investigação, reflexão e produção de um conhecimento coletivo? Isso é possível? É
possivel uma pesquisa que siga o ritmo vertiginoso, os caminhos tortuosos do pensamento
vivo em seu movimento? Dizer, pensar, redizer, repensar... afinal do que se trata nossa
pesquisa?
Trata-se, isto sim, de modos de fazer cotidianos, artes outras que a racionalidade
dominante, carregada de emoções, intuições, imaginação criadora e de outra
racionalidade, que combinam possibilidades geradoras de inúmeras alternativas
capazes de desenvolver trajetórias impossíveis de prá determinar, porque
caóticas, e, por consequência, auto-poéticas, imprevisíveis, diferentes a cada
momento, só se deixando ver por quem aprendeu a ver para além do
instituído.(Garcia, Alves. 2006)
Para uma concepção de ciência que pretende apreender o “todo”, não. Para uma
ciência que pretendende dissercar este todo em partes desarticuladas, não. Mas para uma
ciência que se interessa pelas relações complexas, pelo pensamento que vai se produzindo
na pronúncia da palavra compartilhada, talvez. Talvez seja possível aprender com a palavra
que flui, com a palavra que ainda não foi sacralizada, aprender com o que ainda é semente,
com o que ainda esta em produção no interior de cada sujeito, aprender com o latente.
Talvez seja possível aprender também com as nossas dúvidas e silêncios. No entanto, não é
possível aos pesquisadores e pesquisadoras com o cotidiano vencer este desafio – nem
muitos outros – sozinhos(as).
Na produção da pesquisa com o cotidiano acredito que seja fundamental a prática
da orientação coletiva. O diálogo produzido no espaço da orientação coletiva, tanto com as
orientadoras/orientador e seu grupo de orientandos, quanto – como acontece no Campo de
Pesquisa com o Cotidiano da UFF – com todas as doutorandas/doutorandos do campo, é
primordial para apresentar a pesquisadora/pesquisador novas possibilidades de leitura e
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interpretação de suas experiências, ampliando as possibilidades de compreensão e reflexão
sobre os acontecimentos vividos, sobre as entrevistas, sobre os caminhos da pesquisa.
A interlocução, tanto com os sujeitos da pesquisa, quanto com os autores,
professoras, professores e colegas, servem de bússola, de combustível e alimento à
pesquisa. Na leitura do outro me encontro e me perco, me resignifico, me compreendo, me
desafio. Nos olhos do outro, dos muitos outros, o leme da ética, do respeito, da seriedade
que a pesquisa, seus sujeitos e lugares merecem.
Sempre acreditei no diálogo como o lugar onde os sujeitos que se assumem como
narradores compartilham experiências. Estes aspectos – a experiência, a narrativa e o
diálogo – são para mim indissociáveis e complementares, os fios que formam o tecido da
pesquisa, e assim como acredito, do processo de ensinoaprendizagem também.
As experiências que constituem os sujeitos ao serem narradas permitem que estes
sujeitos interajam criando representações de si mesmos e do mundo. O diálogo surge como
o lugar onde é possível tecer o encontro entre as diferentes experiências e narrativas, assim
como, refletir sobre estas, nos diferentes espaçostempos em que se encontram e se
desafiam. O confronto entre as diferentes experiências que nos constituem e a partilha de
diferentes narrativas faz do encontro entre os sujeitos uma prática potencialmente
educativa.
Explorar a potencialidade desse encontro, compreendendo as relações entre a
produção das experiências, narrativas e diálogos como os fios com os quais acredito se
produzam as pesquisas e as práticas pedagógicas significativas, vem se constituindo um
desafio em busca dos sentidos do meu fazer/ser professora/pesquisadora. Com estes fios
vou tecendo minha pesquisa, meu texto, minha prática. Muitos outros, se apresentam, ao
longo da produção desta escrita, contudo, quero neste momento pensar como estes três
conceitos se articulam e me permitem pensar os caminhos da pesquisa – e sua escrita – com
o cotidiano.
Para Benjamim2 a experiência é a fonte onde os narradores bebem. Experiências que
vão se constituindo tanto no conhecimento adquirido ao longo de anos de permanência em
certo lugar, como naquelas adquiridas no caminhar pelo mundo. Podemos refletir então
que, se nossa narratividade encontra, por um lado, um terreno fértil nas experiências que a
2 Texto O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
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proximidade, que a familiaridade e o conhecimento histórico sobre certo lugar nos permite,
brota também, por outro, nas experiências adquiridas no caminho, no vagar – e vagabundiar
– pelo mundo. Olhar do nativo e do estrangeiro. Olhar antigo, olhar amigo, olhar do novo,
olhar de novo. Olhar os minúsculos fios que tecem a trama, assim como a paisagem tecida
que só com a distancia podemos perceber.
Narrar é a possibilidade de compartilhar essas experiências. Acreditar na
possibilidade de que essas experiências entre nossos olhares nativos e estrangeiros – e
penso que, de certa forma, sempre possuímos ambos – possam ser dividas e multiplicadas.
Fiel a este princípio minha proposta inicial para a formação do grupo de pesquisa
foi: diante de tantas preocupações e questões comuns, reunirmo-nos para debatê-las em
busca de uma maior compreensão sobre nossas práticas, sobre nossos fazeres, sobre nossos
sucessos e fracassos. As professoras que compuseram inicialmente o grupo são professoras
que de alguma se oferecem a conversa, que expressam continuamente o desejo de querer
refletir coletivamente sobre as questões de nosso fazer pedagógico, professoras que
compartilharam – em 2008 – o desafio de assumirem a “classe” de alfabetização. Contudo,
permaneci no exercício de sedução para que o grupo se ampliasse e outras professoras
participacem de nossas conversas. Infelizmente, por muitos e diferentes motivos isso não
aconteceu.
A primeira conversa, foi individual, com cada professora, para explicar que eu
entendia a pesquisa como uma prática indissociável de nosso caminhar coletivo. Expliquei
também que por nossa história recente na rede e no país, meu interesse tem se voltado para
as questões relativas à avaliação e seu atravessamento em nossas práticas diárias, por isso
neste primeiro momento este seria o foco do grupo, que iria à medida que fossemos
caminhando, definindo coletivamente quais as questões seriam fundamentais ao nosso
debate, quais eram – para além das minhas – as nossas questões.
Foi interessante notar que apesar do foco estar previamente negociado, nossas idéias
fugiam de nós nos levando para aqueles lugares onde nossos sentimentos nos mantinham
ancoradas: a dor de nosso trabalho não reconhecido, a insegurança diante do olhar (e do
julgamento/avaliação) dos outros; nossos saberes não valorizados; os saberes de nossos
alunos que não valorizávamos, ou aqueles que mesmo quando valorizávamos não sabíamos
como expressar; a alegria do sucesso; a necessidade de nos dizermos, de nos mostrarmos,
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de nos pensarmos. A necessidade de nos tornarmos senhoras de nossa palavra, de nos
enunciarmos e anunciarmos, de nos tornarmos sujeitos na pronúncia do mundo, do nosso
mundo.
Sentadas em semi-círculo, enquanto conversávamos sobre nossas experiências, as
linhas que separam os diferentes espaçostempos onde nossas trajetórias foram se
constituindo e produzindo saberes sobre “a” escola e sobre a “nossa” escola, vão se
diluindo, se cruzando e se complementando. Nas memórias compartilhadas, sobre nossos
tempos de escola, sobre as escolas que frequentamos e sobre as escolas que produzimos,
nos aproximamos e nos afastamos, ora falamos de uma escola que nos é próxima,
conhecida, familiar, ora tecemos nossas críticas, pontuamos como estrangeiras, as suas
contradições e incongruências. Ao nos movermos para diferentes espaçostempos nossas
identidades deslizam para outras escolas, para outro tempo, onde habitávamos este lugar –
institucional – não apenas como professoras, mas também, como alunas.
Ao compartilharmos estas experiências, selecionadas por nossas memórias,
percebemos que não mais poderíamos tecer as generalizações, que tantas vezes fazemos,
sobre as práticas pedagógicas – assim como o julgamento moral de sua perversidade ou
virtude – de forma tão linear ou simplória, pois os sentidos que estas práticas adquiriram
para nós, eram absolutamente diversos. Memórias de práticas similares – presentes em
vários cotidianos escolares – adquiriram sentidos diversos e produziram lembranças e
relações diversas com “a” escola. Nossas memórias nos falavam de “escolas”.
A importância deste movimento, de investigar nossos saberes produzidos pela
familiaridade, pela proximidade com a escola, assim como investigar nossas memórias
sobre nossas experiências com a escola, nos possibilitam tecer numa mesma narrativa as
duas formas de experiência apontadas por Benjamim.
Se Benjamim nos convida a pensar sobre a relação entre narrativa e experiência,
Larosa nos provoca com a dimensão que a palavra(conceito) experiência possa adquirir.
Vivemos em um espaçotempo que se auto-proclama “era da comunicação”. E de
fato os meios de comunicação foram uma das revoluções mais significativas em nosso
modo de vida nas últimas décadas. Os meios de comunicação aproximaram o mundo.
(Aproximaram? Que múltiplos sentidos podem ser lidos nesta palavra? O que ela revela, o
que ela esconde?)
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Sofremos uma avalanche diária de informações, e enquanto o espaço parece se
expandir ao infinito o tempo parece se reduzir no sentido contrário. Vivemos muitas coisas
ao longo de nossos dias, e as vivemos com tamanha velocidade que rapidamente
desaparecem sem deixar grandes vestígios em nós. Em outras palavras, a multiplicidade e
velocidade com que vivemos os acontecimentos não permite, geralmente, que se
constituam como experiências. Eles passam por nós, mas em nós não se fixam, em nosso
peito não fazem morada, não são digeridos, não são absorvidos e, portanto, não nos
transformam.
Uma experiência deixa marcas. Uma experiência muda nossos rumos, nossos
sonhos, nossas vidas. Uma experiência também surge como uma porta que se abre e nos
apresenta novas possibilidades de caminhos. Nossas experiências são a essência de nossas
narrativas. Podemos contar ou descrever uma vivencia, um fato, um acontecimento. Mas
quando narramos uma experiência, convidamos outros seres humanos a compartilharem
conosco de nossa humanidade. Narrar uma experiência é abrir-se ao encontro. E talvez, seja
exatamente este encontro que percamos na troca diária e desesperada de milhares de
informações, tantas vezes inúteis.
As experiências a quais nos referimos, portanto, são aquelas que não são esquecidas,
não são embotadas pelo tempo, ao contrário, são aquelas que quanto mais narramos, quanto
mais revisitamos, mais se expandem em nós, mais nos produzem como sujeitos. São
aquelas que quanto mais compartilhamos, mais significados encontramos, mais cresce em
nosso peito e mais fundo nos marca a alma. São aqueles nossos alunos que nos ensinam a
ser professoras, com quem sempre aprendemos algo, quando invadem nossas lembranças
nos provocando um meio sorriso, uma meia tristeza...
Estas experiências, ao serem narradas, compartilhadas com outros sujeitos, às vezes
são envoltas por uma aura de cumplicidade e respeito, onde mesmo ideias contrárias, se
permitem ouvir com atenção. A experiência dota a narrativa de certa legitimidade e
profundidade que a informação fortuita raramente possui. O narrado talvez não seja
compatível ou mesmo simpático a minha “verdade”, mas ao ser narrado com verdade, ao
ser ouvido com verdade, permite que eu perceba quantas verdades existem mundo a fora,
permite que eu repense, que eu reflita sobre as minhas “verdades”. Um encontro nem
sempre possível, encontro, tantas vezes, raro. Por isso um momento importante quando
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acontece. Mas um encontro que vem acontecendo em muitas escolas, que vem sendo
vivienciado por muitas professoras-pesquisadoras, por muitas pesquisadoras-professoras
que juntas vem aprendendo o poder transformador da palavra compartilhada, como narra a
professora-pesquisadora Mitsi Lacerda:
Foi Renata quem me fez pensar nisso. Ela é uma das participantes de nosso
grupo de professoras onte contamos e refletimos as histórias de escola. Fez-me
pensar nisso quando disse “as coisas que eu falei no grupo já não falaria hoje,
e as hipóteses que eu apresentei também não seriam as mesmas. Hoje eu
penso diferente”. (Lacerda, 2002)
A nossa escola, enquanto instituição, foi fundada sob os pilares do racionalismo.
Enciclopédica e bancária, quantas aulas ainda hoje não passam de um desfile de
conhecimentos desconectados, desarticulados e sem sentido? O tecnicismo, amplamente
desenvolvido nos anos de chumbo e que agora vem mostrando novo fôlego e vitalidade,
ressurgindo com novas roupagens em várias propostas dos gestores em Educação de vários
municípios, vem sustentado na crença de que o ser humano se desenvolve – adquire
conhecimentos que o transformam qualitativamente – através da aquisição dessas
informações.
Contudo, se nossa razão é capaz de adquirir e processar informações, estas por si só,
não serão suficientes para produzir uma transformação dos sujeitos em sua relação com o
mundo. E é exatamente neste ponto que a experiência faz toda a diferença. Na experiência
conhecer, viver, sentir, perceber, tornam-se elementos indissociáveis na produção do saber.
Conhecer não basta. Identificar, diferenciar, reconhecer, e todos os verbos que
“aprendemos” a utilizar para pré-fabricar nossos “objetivos”, não bastam. É preciso sentir.
É preciso ser afetado pela vida do outro, pela narrativa do outro, pela experiência do outro.
É preciso tornar-se senhor de sua própria palavra, narrá-la e resignificá-la a cada narrativa. I
Acredito, portanto, que a produção de saberes acontece, na partilha das
experiências, na dialogicidade do ato de ensinaraprender, e que “tentar” racionalizar o
conhecimento, apagando as marcas de nossa subjetividade, de nossos sonhos e desejos, de
nossos medos e crenças, produz – entre muitos outros, é verdade – um certo tipo de
conhecimento escolar pelo qual todos nós, de uma forma ou outra, passamos: um
conhecimento que passa por nós, nos atravessa, sem em nós inscrever marcas mais
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profundas, sem em nós encontrar sentidos. Um conhecimento que muitas vezes nos permite
marcar as respostas “certas”, mas não a nos comprometermos com elas. Conhecer (e diferir,
reconhecer, relacionar, etc.) é fundamental para saber. Mas só conhecer não basta, é preciso
produzir saberes, e este, assim como entendo, acontece na relação dialógica com o outro.
Ao pesquisarmos assumimos uma postura dialógica diante das enunciações do outro
e de nossas enunciações. O que dizemos, o que o outro diz, nossas experiências, as
experiências dos outros, nossa narrativa, a narrativa dos outros estão em constante
movimento. E é exatamente isso que a professora Renata anuncia: o movimento de seu
pensamento frente ao movimento do pensamento dos outros.
Interagimos com todas as vozes sociais que nos cercam, que acolhemos consciente e
inconscientemente no mundo, produzimos um enunciado que nos precede – já que muitas
vozes se farão ouvir em nossos textos – e um enunciado que espera resposta – que se
apresenta ao mundo não de forma passiva, mas interativa, propositiva, provocativa.
Estas relações dialógicas travadas entre diversos enunciados são espaços de
permanente tensão. O diálogo é este espaço de luta entre as vozes sociais, que por sua vez
são também plurais. “Bakhtin não é apenas o filósofo das relações dialógicas em sentido
amplo; o diálogo é também, no seu pensamento, a metáfora daquilo que poderíamos
considerar como sua grande utopia” (Faraco,2003,p.72) talvez este seja o aspecto onde
sua voz (ou vozes) mais se faça necessária à nossa compreensão sobre pesquisa, e sobre
ensinoaprendizagem. Quando releio certas passagens que escrevi, penso no quanto a utopia
de Bakhtin – assim como a utopia de Freire – são vozes que constituem a minha própria
utopia.
Portanto, se por um lado, acredito no diálogo como uma possibilidade de
negociação entre diferentes lógicas, acredito também que esta negociação é tensa, difícil e
muitas vezes encontra limites – principalmente quando nos encontramos na fronteira que
separa o diferente do antagônico – mas acima de tudo, acredito que é o caminho para
compreendermos a complexidade do mundo, sua dinâmica, sua pluralidade e formas
possíveis de negociação e construção coletiva. Compreendermos que existem muitos
mundos por serem pesquisados e descobertos quando nos movemos ao encontro dos outros
e de suas “estranhas” lógicas.
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Nossa utopia, entretanto, não é uma utopia ingênua, de quem acredita ser fácil ou
“sempre” possível dialogar com tantos outros. Nem sempre é, ou pelo menos, nem sempre
assim percebemos no espaçotempo presente onde o diálogo é produzido. Por isso não
podemos compreender nossas conversas apenas como um diálogo que acontece em um
tempo linear, de entendimento harmônico, ou de superação dialógica constante e continua.
Resolvi que meu caminho na pesquisa exigiria a presença viva e encarnada de
muitos outros sujeitos. Por isso venho defendendo a conversa como o lugar fundamental e
privilegiado onde estes sujeitos se encontram, se desafiam, se complementam, se
antagonizam, se movem e se transformam.
E foi a própria pesquisa que fez com que eu me movesse nesta direção que ainda
não sei se compreendo bem. A conversa. Mais uma vez, os caminhos da pesquisa,
desafiam-me a mergulhar em águas turvas, sem certeza do chão sob meus pés. Agarro-me
aos meus companheiros de jornada – Bakthin e Freire – como criança em primeiro dia de
aula: desejo, mas não quero ir. Ir para onde? Ir com quem? Ir por quê?
Penso em minhas colegas professoras, que compartilharam comigo suas
experiências e comigo teceram a narrativa da pesquisa. Sim o que temos e fazemos é, com
certeza, uma conversa, uma roda de conversas. Mesmo que a timidez e a opressão da
filmadora tenha nos inibido no inicio, é claro que o que tivemos (e ainda temos) é uma
conversa. Uma conversa que flui, que segue meio se rumo, sem direção... cada uma com
seu novelo de verdades, de saberes, de experiências ao colo vai cruzando seu fio com a
outra. Puxa, amarra, desfaz. Às vezes formamos lindos mosaicos, às vezes a trama se
esgarça. Paramos, mudamos de rumo, depois retomamos os pontos frágeis de outros
lugares. Voltamos ao dito, rememoramos, reelaboramos. Mas não serão diálogos? Serão
conversas?
Diferentes experiências são narradas, e nas narrativas somos levadas ora ao riso, ora
as lágrimas, ora a indignação ou sonho. Quantas vezes paramos e dizemos: agora você me
fez pensar outra coisa... e percebemos assim o quanto o pensamento do outro vai
convidando o meu a realizar um movimento vertiginoso onde pensamos não só sobre o que
o outro diz, mas sobre o que dizemos, não só sobre a experiência que o outro narra, mas
sobre nossa própria experiência resignificada no pensamento do outro. Aprendemos com o
outro mais sobre nós. O que sabemos amplia-se, morre, renasce.
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Lógicas que se enfrentam ou se complementam formando outra coisa: uma ideia
que às vezes perambula entre o lá e o cá sem achar um lugar fixo... e o silêncio. Podem as
ideias vagar sem encontrar pouso? Sem demarcarem seus territórios e neles fincarem suas
bandeiras? Às vezes quando paramos diante do pensamento do outro e abandonamos nosso
lugar sem ir necessariamente para outro, parece que sim... ficamos ali, habitando um lugar
que não reconhecemos como lugar, lugar nenhum, mas que vai se configurando como o
lugar do silêncio, o lugar das incertezas, o lugar tão temido por nós e nossa lógica moderna.
Lugar mal-dito, porque tememos e de certa forma desconhecemos as palavras para o que
ainda não é límpido e certo. Porque será que ainda acreditamos que só as certezas são
dignas das palavras?
As informações que se amontoam em nossos correios eletrônicos, ou piscam
tentando ganhar um segundo de nossa atenção, apresentam-se geralmente como certezas
inquestionáveis, apesar de não sobrevirem a mais nova certeza inquestionável (e científica!)
da semana que vem. Muitas vezes passamos anos acreditando que uma experiência que nos
marcou profundamente só tem uma interpretação possível, e de repente o outro me faz
compreender que o que vivi e o que narrei pode ser compreendido de outra maneira. De
muitas outras maneiras. Por isso a narrativa de uma experiência é mais que descrever. É
mais que simplesmente contar uma “histórinha” para o deleite da plateia.
Ao compartilharmos uma experiência retiramos ela de seu lugar fixo para entregá-la
ao mundo, e não sendo mais apenas nossa, ela ganha milhares de outras narrativas
possíveis, milhares de tons, milhares de possibilidades. Uma pesquisa sempre será apenas
uma, ou algumas, dessas possibilidades, mas a sua leitura por outros sujeitos será uma porta
aberta para o infinito.
Diálogos ou conversas? O que produzimos em nossas pesquisas? O que
experimentamos em nossas práticas? Por que quando produzimos alguns textos, encontros,
seminários, reflexões fazemos uma opção distinta? Conversas com professoras, diálogos
com professoras? Aprendemos que cada palavra é um conceito. Que conceito distingue
conversa de diálogo? Existe uma distinção? Acredito que toda conversa é um diálogo. Mas
todo diálogo se produz como uma conversa?
Onde dorme meu coração? Não sei. Talvez nos dois. Talvez não exista uma
fronteira que coloque estes termos em lugares tão fixos e por isso seja tão difícil
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reconhecer-lhes as semelhanças e diferenças. Talvez diálogos e conversas não sejam assim
tão indissociáveis na forma como os compreendo e utilizo.
Como Latour me ensinou a desconfiar dessas fronteiras fixas, dessas
palavras(conceitos) que arrastam suas correntes e âncoras, na tentativa sempre vã, de não se
deixarem levar pela correnteza de significados, produzidos pelo movimento da própria
língua, eu tenha dificuldades de encontrar-lhes um lugar. Então este deverá ser apreendido
por cada um, como um banquete servido para que cada qual se sirva, como desejar. Como
aprisionar em um único – e verdadeiro – sentido, palavras que são produzidas em contextos
históricos e sociais tão plurais, tão diversos?
Minha pretensão não permite que eu vá além de oferecer alguns elementos para a
reflexão sobre alguns dos muitos sentidos e possibilidades que estas palavras(conceitos)
oferecem as nossas pesquisas e fazeres pedagógicos, e assim examinar-lhes o potencial
metodológico que conferem as nossas pesquisas com o Cotidiano.
Muito próximas no sentido a elas atribuído pelo dicionário – conversação, troca de
ideias e informações – como estas duas palavras (conceitos) foram sendo separadas pelo
uso e adquirindo um sentido tão diverso? Por que uma é tão utilizada e possui amplo
referencial teórico, enquanto a outra ficou relegada a um plano menor?
Como ambas habitam em mim, talvez seja assim mesmo que eu deva seguir. Uma já
é velha companheira e apego-me a ela como um náufrago em mar bravio. A outra é
companhia querida, que me acompanha por toda parte, mas vulgar. O sagrado e o profano,
a pesquisa e sua escrita, um dos grandes desafios para aqueles que desejam pesquisar com o
cotidiano.
O diálogo é um conceito desenvolvido e utilizado de diferentes formas por
diferentes campos de pesquisa. Mesmo possuindo compreensões distintas e plurais, que
subsidiam práticas distintas e plurais, encontra-se no lugar do sagrado, lugar do instituído,
goza de uma aura de cientificidade enquanto a conversa, prática vulgar, do homem
ordinário, das gentes do mundo, assim como tantas outras práticas humanas, são tratadas,
muitas vezes, com indiferença, como uma trivialidade indigna das artes da ciência.
Como pesquisadora do Cotidiano, ensinaram-me a revirar o lixo. A olhar para tudo
que é desprezado, invisibilizado ou ignorado por ser considerado menor. As práticas
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pequenas, as pequenas ranhuras que se escondem por trás de cada texto, os sussurros, as
sombras. A conversa surge então como uma destas práticas.
Como tantas outras coisas que acabam se tornando invisíveis pela exposição, a
conversa é uma prática cotidiana, sobre a qual não prestamos muita atenção, pelo menos até
que sintamos falta de ter com quem conversar! Ai o vazio que se instala nos faz perceber a
importância do banal, e a conversa, ignorada em sua presença, torna-se uma dor quase
insuportável em sua ausência. Muitos na sua falta enlouquecem. Mas o que é uma
conversa? E dê que conversa, afinal, falamos?
Em nosso dia a dia usamos milhares de expressões que revelam a complexidade
dessa palavra. Temos “conversas de pé de orelha”, “conversa fiada”, “conversa de
comadre”, “uma conversa séria”, “conversa difícil”, “uma conversinha”, “conversa pra boi
dormir”, etc. No entanto nem toda interação humana, mediada pela palavra, é
compreendida como uma conversa. Assim como nem tudo que chamamos de conversa, a
conversa em seus múltiplos sentidos, é a conversa que me interessa particularmente refletir
e defender como uma metodologia potencializadora de nossas pesquisas e práticas.
Ao longo do nosso dia podemos entabular uma série de diálogos, curtos ou longos,
que não se configuram necessariamente como conversa que desejamos investigar como
metodologia. Podemos passar horas falando com um colega de trabalho sobre uma
atividade que estejamos fazendo juntos, solicitar informações, prestar informações, sem que
uma “conversa” seja estabelecida. Um casal convive diariamente, vão ao mercado, falam
das contas, dos filhos e uma hora um deles se queixa: “nós não conversamos mais!”.
Se nosso primeiro pensamento sobre o que é “conversa” nos leva para o lugar
comum, vulgar, trivial, quando pensamos no oposto, a ausência de conversa, esta ganha
outros sentidos: torna-se a necessidade de partilhar algo mais profundo, mais intenso, mais
verdadeiro, e é esta exatamente a dimensão da conversa que me interessa explorar. Quando
ausente, a conversa, adquire uma importância fundamental nas relações humanas. Ao nos
ressentirmos de sua ausência, geralmente reconhecemos que a “conversa” é o fio que nos
conecta aos outros seres humanos de uma forma mais intima, pessoal e significativa.
Falamos com muita gente, mas precisamos ter com quem conversar.
Na obra “As ligações perigosas” de Choderlos de Laclos, escrita na forma de cartas
entre as personagens, e adaptada para o cinema, a Marquesa de Merteuil exige que o
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Visconde de Valmont encerre seu relacionamento – maquiavelicamente tramado pelos dois
– com a madame de Tourvel. Na obra de Laclos a Marquesa – quando percebe que a paixão
do Visconde tornou-se real – envia a Valmont, em um claro desafio, um roteiro jocoso e
perverso para encerrar uma relação indesejada, que o Visconde, no livro encaminha a
madame de Tourvel.3
O cinema coloca as personagens frente a frente, e diante de uma madame de
Tourvel desesperada, Valmont repete mecanicamente “está fora do meu controle” (não
tenho culpa, não posso fazer nada a respeito). A mulher vai se dilacerando frente aquele
homem, buscando por ele em cada enunciado ávido por uma resposta, enquanto ele ao
repetir impassivelmente o mesmo texto, e apenas o mesmo texto, oferecendo apenas a
mesma resposta a toda nova interlocução, encerra qualquer possibilidade de conversa.
Rompe o vinculo, porta-se intencionalmente como um “outro”, coloca-se na posição do
estranho, cerra a porta da comunicação que existia entre os amantes. Ela adoece e morre.
Quantas vezes diante de um interlocutor buscamos desesperadamente “fazer
contato”, argumentamos, provocamos, alteramos o tom e o ritmo das palavras, mas
ouvimos mecanicamente a mesma resposta a todas os nossos enunciados? Quantas vezes
nossos alunos tentam em vão estabelecer algum vinculo, articular uma conversa enquanto
repetimos mecanicamente, de forma quase dogmática, nossos regimentos, nossas normas,
nossas verdades, sem ouvi-los? Para que uma conversa exista, é preciso muito mais do que
duas pessoas que falem. É fundamental duas pessoas que realmente se ouçam. Duas
pessoas que realmente se importem com o que é dito.
O contrário também é verdadeiro. Como ouvimos na canção: “Um dia ele chegou
tão diferente do seu jeito de sempre chegar. Olhou-a de um jeito muito mais quente do que
sempre costumava olhar. E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar,
e nem deixou-a só num canto...4”. E o que muda quando mudamos o jeito de falar? Um dia
3 "De tudo nos aborrecemos, meu anjo, é uma lei da natureza; não tenho culpa. Se agora me aborreço duma
aventura que me ocupou inteiramente durante quatro longos meses, não tenho culpa. Se tive tanto amor como
tu virtude, e já é afirmar muito, não é para admirar que um tenha acabado ao mesmo tempo que a outra. Não
tenho culpa. Resulta disso, que desde há algum tempo te engano: mas também a tua implacável ternura a isso
me obrigava! Não tenho culpa. Hoje, uma mulher que amo loucamente exige que te sacrifique. Não tenho
culpa. Bem vejo que julgarás chegado o momento de me chamares perjuro, mas se a natureza concedeu aos
homens apenas a constância, e legou às mulheres a obstinação, não tenho culpa. Crê-me; tal como eu,
escolhe outro amante. Este conselho é bom, muito bom; se o achas mau, não tenho culpa. Adeus, minha
amiga, tive-te com prazer, deixo-te sem pena; talvez volte ainda. É assim o mundo. Não tenho culpa." 4 Valsinha – Chico Buarque
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alguém chega senta-se ao lado de um outro alguém e de repente em uma frase, em um
breve enunciado – às vezes até mesmo em um breve silêncio – se estabelece o vinculo, a
partilha, o entendimento e o reconhecimento onde minha humanidade encontra a sua5.
No entanto, aprendi, ou me dei conta, em uma conversa de botequim, que este
encontro nem sempre acontece, no mesmo espaçotempo para os dois interlocutores. Muitas
vezes o entendimento, a negociação é atravessada por tantos sentimentos – vaidade,
amargura, teimosia, mágoa, arrogância, etc. etc. – que deixamos de nos ouvir uns aos
outros. Outras vezes não são sentimentos, mas ideias, concepções, nossas filiações e
convicções que só nos permitem – quando permitem – ouvir parte do que o outro diz. E
penso que não tenhamos como fugir disso. Temos nossos sentidos sempre atravessados por
nossas crenças, temos que compreender os limites de nossa compreensão, de nossa
possibilidade de tradução, ter a consciencia de que a compreensão absoluta não existe.
O que não significa que uma conversa não possa acontecer – ou continue
acontecendo – dentro de cada um dos interlocutores, horas, dias ou mesmo anos depois.
Pois o tempo ao nos deslocar, nos permite não só ad-mirar o que não foi visto, mais ouvir o
que foi dito, repensar o que foi dito. O tempo nos permite viver outras experiências e estas
nos possibilitam retomar uma conversa antiga, com novos entendimentos, recriando a
conversa vivida em um tempo passado.
Conversava com uma amiga (professora também) na mesa de um bar – lugar que
sempre me inspira boas conversas – e ela me relatava seus conflitos no trabalho e sua
dificuldade para conviver com as diferentes concepções de mundo, de infância, de
educação, que encontrava tanto com o grupo de professoras e agentes educativas, quanto
com a equipe dirigente da creche onde trabalha6. Narrava-me o quanto tornavam-se
polemicas as muitas questões que levantava nas reuniões: as práticas religiosas nas rotinas
da creche; a falta de higiene em algumas práticas (como usar um único sabonete para dar
banho nas crianças); a falta de um objetivo pedagógico claro em atividades festivas; a
burocracia que roubava tempo de atividades mais importantes; a ausência constante da
direção, etc. Questões, que a faziam ser combatida, que degastavam sua relação com o
5 Como na cena emblemática vivida por Fernanda Montenegro e Francesco Guarnieri em Eles não usam
Black Tié. Sem uma palavra em cena, os atores representam o vinculo entre um casal que cata feijão junto,
como juntos catam os cacos da dor que compartilham, como juntos lutam cada batalha da vida. 6 Creche administrada pela Prefeitura de São João de Meriti, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro.
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grupo, fazendo-a sentir-se só, como se fosse uma educadora perdida no túnel do tempo,
vivendo em uma escola que pensava não ser possível mais existir. Mas que, infelizmente,
ainda existem.
Enquanto isso, meu pensamento vagava, percorrendo suas palavras mas também as
reflexões do meu texto, o que me fez questioná-la porque insistia em argumentar, reclamar,
defender posições que sabia não seriam bem recebidas pelo grupo? Perguntei-lhe se achava
que estava sendo ouvida? Se achava que valia a pena tanto desgaste? (às vezes nem eu
acredito nas perguntas tolas que faço! Poderia botar a culpa no álcool, mas não seria
sincero). Ela disse que sim! Que embora as relações continuassem ruins, muitas ações,
muitos fazeres pedagógicos acabavam se transformando, mesmo quando suas colegas não
admitiam sua influência nesta mudança. Bakthin se apresenta sem cerimônias em nossa
conversa, e pergunta: mas isso importa? A autoria importa? Não será a transformação que a
palavra produz no outro o mais importante? Então as ideias que você tem e defende são só
suas? Elas não pertenceram a tantos outros antes de ti? Quantas dessas ideias não foram
também extranhas, de dificil digestão, e depois tornaram-se suas?
Ela me fez pensar então, o quanto eu estava vendo a conversa, muitas vezes, em um
espaçotempo linear, fixo, e talvez marcada por minha própria vivencia na pesquisa, como
uma experiência idealizada, entre sujeitos idealizados. Pude perceber que a palavra
pronunciada pode ficar como semente plantada em nós por muito tempo. Uma conversa
pode estar acabada para um sujeito, mas permanece no outro, e algum dia, ela brota. São as
vozes a que Bakthim se refere, que permanecem em nós, perdem sua origem, sua autoria,
mas preservam o mais importante, produzindo profundas transformações no processo se
tornarem nossas. Assim penso na potencia da conversa, não apenas entre os iguais, ou
semelhantes, mas entre os diferentes.
Permanece, contudo, a necessidade que esta conversa se produza como uma
experiência, ainda que precise de tempo para maturar, ser digerida, ser absorvida, esta
conversa precisa deixar marcas, precisa seguir viva dentro de nós.
Uma outra professora – que trabalha em minha escola – entra nervosa em minha
sala. Ela é minha colega e confia que eu possa ajudá-la a decidir sobre que atitude tomar em
uma situação referente a uma criança que teve um excelente desenvolvimento, mas que se
encontra, em sua avaliação, muito aquém do que deveria possuir para seguir em frente,
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questão recorrente em meu/nosso cotidiano. Ela narra sua aflição, os caminhos e os
descaminhos de seu pensamento, que se encontra confuso, nebuloso, em conflito: reprová-
la e correr o risco de “jogar no lixo”, todo o trabalho de motivação e auto-estima
conquistados a duras penas, que modificou a relação da criança com o seu próprio processo
de aprendizagem ou aprová-la e correr o risco de ser criticada por não saber avaliar uma
criança sem “condições” de cursar o ano seguinte? Seu pensamento devaneia ela fala
comigo e consigo ao mesmo tempo, eu acompanho agradecida pelas coisas que ela me faz
também pensar: quantas vezes ela foi rigorosa em seus critérios de aprovação/reprovação
para depois constatar que outros alunos, muito “piores” que os seus retidos, cursavam a
série posterior? Quantas vezes ela reprovou um aluno e este perdeu o interesse e piorou seu
rendimento ao invés de melhorar? Quantas vezes ela reteve um aluno que em dois meses de
aula no ano seguinte apresentava um desenvolvimento muito acima da turma o que além de
gerar um arrependimento na professora, desestabilizava o trabalho em sala, já que ela
desejava (e acreditava) na organização de uma turma homogênea?( E ela me desperta para
algo que ainda não tinha pensado: como a retenção também produz heterogeneidades,
sendo uma contradição dentro da própria lógica que a defende).
Eu escuto, pergunto, questiono, sugiro. Pensamos juntas sobre as escolhas e os
caminhos. Não travamos uma batalha de palavras. Não existe – necessariamente – a
intenção de vitória de um argumento ou de uma ideia. Existe uma partilha. Um convite para
entrar em um labirinto de pensamentos e ajudar a encontrar algum caminho. Ela sabe que
possuo muitas opiniões contrárias a algumas de suas práticas. Mas sabe também que a
respeito como professora interessada, comprometida e séria que é. Ela não me procura para
confirmar o que já sabe, mas para discutir, refletir e dividir o peso de uma decisão que sabe
ser muito séria na vida de uma criança. Uma decisão que não pode ser leviana, tomada com
a arrogância de quem conhece todas as respostas. Assim como sabe que eu também não
possuo “todas” as respostas, mas compreendo cada criança em sua singularidade como uma
questão única, um desafio único a ser investigado e refletido, motivo sim, para muita
conversa.
A conversa surge como uma experiência que vivemos e que vai nos constituindo,
pois nos desafia a pensar com o outro sobre o mundo que vivemos e fazemos. Mas isso não
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seria o conceito de diálogo compreendido em Freire? Quando defende que não podemos
pensar sem os outros, nem para os outros, mas com os outros?
Kavaya (2007) nos apresenta uma interessante reflexão sobre o conceito de diálogo
em Freire e a Ondjango (casa de conversa) africano/angolano, feita de pau-a-pique, circular
e sem laterais, à sombra de uma grande árvore:
Trata-se da casa de conversa, de reunião, de hospedagem, de partilha de
bens/refeição/serviços, de educação/iniciação sociocultural, de entretenimento
e/ou de fazer justiça. Antes de tudo, se trata de uma casa, ponto de partida e
ponto de confluência; de uma casa com as condições de se poder sentar,
reunir junto de alguns mais-velhos; trata-se de um lugar de encontro.
O que me chamou atenção nesta “casa de conversa” foi exatamente seu caráter
plural e sua importância social. Ondjango tanto é o local dos fóruns oficiais para se
deliberar sobre questões sociais e políticas, quanto é um local de hospedagem, de festa.
Tanto é utilizada como espaço de educação das novas gerações, como espaço de encontro
para partilha. Centro vital da organização social de um povo, não separa o que em nossa
cultura seria profano – encontro para relatar acontecimentos cotidianos e vulgares – do que
consideramos sagrado – questões de justiça por exemplo – e que por ser sagrado é restrito
aos iniciados, exige fronteiras, portas fechadas, vigias e trancas, austeridade.
A vida partilhada, não é dividida em diferentes espaços (e estes não possuem
necessariamente uma hierarquia) possui apenas um: Ondjango, o lugar de conversa. O lugar
onde os sujeitos devem se encontrar e dividir suas experiências, criar com suas diferentes
narrativas a identidade de seu povo.
Quando discutimos o conceito de espaço como o lugar praticado (Certeau), para
além de sua configuração física, mas sua produção pelos sujeitos que nele se encontram e
ali instauram formas do viver, a Ondjango nos mostra um mesmo espaço, que vai se
transformando em diferentes lugares segundo as práticas dos sujeitos, ganhando novos
contornos segundo a finalidade dos encontros, segundo a intenção das conversas. As
configurações que este espaço adquire são, portanto, criadas pelas diferentes formas que
adquire a palavra.
A linguagem define o espaço. Não existe a tentativa de limitá-lo ou produzi-lo no
controle de sua arquitetura, mobiliários, horários, regimentos. Assim o mesmo lugar – para
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eles sempre sagrado mesmo quando nas atividades mais simples ou cotidianas – ganha seus
contornos pela palavra:
Aí, segundo a pertinência do vivenciado, o ohango (conversa/diálogo) tomava
vários significados: “ondjango”, enquanto “ulonga” (relato da vida desde o
encontro anterior), “elongiso” (ensinamento e aprendizado), “ekuta” (partilha
de bens alimentares), “ekongelo” (reunião de caráter deliberativo),
“ekanga/okusomba/okusombisa” (reunião para fazer justiça e sentenciar para
punir ou absolver o argüido), “okupapala” (encontro de entretenimento, festas
e danças culturais e tradicionais, conforme a situação vivida no momento:
morte, caça, casamento, iniciação sociocultural e comunitária, acolhimento de
uma visita etc.), “ondjuluka” (encontro para organizar um mutirão
comunitário a favor de algum da comunidade em situação de doença,
problema socioeconômico, intervenção de ajuda na sua lavoura etc.)
(Kavaya,2007)
Ondjango convida-me a pensar no quanto, e até que ponto, a disposição das
cadeiras, a organização do espaço escolar, reflete-se realmente na produção ou não, de
“lugares de conversa”. Sem menosprezar o poder da organização espacial, as fronteiras
visíveis e invisíveis que se erguem entre os sujeitos pela força da arquitetura e
planejamento estratégico de um espaço, sou assaltada pela memória de quantos “círculos”
de silêncio, belicosos e autoritários, participei. Quantas aulas estive, onde um aluno, inicia
um relato de suas experiências e todos, subvertendo a disposição das carteiras, viram-se
para ouvi-lo com atenção e respeito, e estabelecem uma conversa.
Ondjango convida-me também a pensar nas diferentes intencionalidades das
conversas. Conversas de relatos, troca de experiências, entretenimento... conversas para se
fazer justiça, se ensinar, resolver problemas. Algumas mais livres, outras mais diretivas,
todas compreendidas como conversas, na dimensão do encontro, da necessidade do
encontro.
Para referir-se a linguagem (ou palavra) os gregos usavam mytos e logos. Separava-
se assim, a palavra mítica, mágica, religiosa, a palavra que narrava o sagrado, da palavra
que expressaria o pensamento e a realidade. Os mytos que possuíam em sua narrativa o
poder encantado de organizar e nos ajudar a compreender a realidade vão perdendo sua
importância diante do logos: a palavra racionalizada, expressão das idéias, dos conceitos,
da verdade. Lançadas às sementes que cresceriam no solo fértil da modernidade,
começavam a gestar o mundo cindido entre o sagrado e o profano, entre a razão e todas as
outras formas de conhecer o mundo, consideradas indignas, menores, e por isso mesmo
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eclipsadas pela luz da ciência. Mas a palavra seguiu sendo razão e encantamento,
pensamento e magia. Nossas narrativas, continuaram a existir como mytos e logos, e ambos
nos constituem, indissociavelmente.
Em nossa cultura, ou melhor, nos traços ocidental e racionalista de nossa complexa
cultura mestiça, a conversa é profana na origem e na forma. A conversa não exige
questionários, métodos e fórmulas, a conversa nem sempre tem um objetivo claro ou pré
determinado, e tampouco um fim pré concebido, ela não exige planejamento ou controle,
mas como percebemos, nem sempre necessita deles para ser considerada produtiva ou um
sucesso.
Neste sentido desenha-se certa fronteira com o conceito de diálogo em Freire que
nos adverte que: “O diálogo não pode converter-se num bate-papo desobrigado que
marche ao gosto do acaso entre o professor ou professora e os educandos” (2005).
Compartilho com Freire a crença da intencionalidade e a compreensão de que a
prática pedagógica é uma prática diretiva: quem ensina, ensina algo, a alguém7. Como
sujeitos produzidos pela modernidade, fomos ensinados a sempre ter um projeto para o
mundo. E de fato temos, pois acreditamos que o mundo precisa sim, ser transformado.
Entretanto a prática da pesquisa chamou minha atenção exatamente para a
potencialidade educativa do acaso. Realmente temos, muitas vezes, na conversa a
“desobrigação” de chegarmos a um ponto pré determinado, conquistar conhecimentos pré
concebidos, atingir um objetivo. Contudo, isso não significa que conhecimentos não
tenham sido produzidos, que pessoas e realidades não tenham se transformado neste
processo. A potencia do acaso esta exatamente na ausência do roteiro. Sem caminhos
rígidos a serem percorridos, sem margens, sem fronteiras, as conversas nos levam para
lugares – e saberes – insuspeitáveis, exatamente por isso revela o novo, o que ainda vai
latente em nossos corações, as incertezas que nos moverão para o desconhecido.
Exatamente por isso não permite que nossas pesquisas, ao trilharem apenas pelos caminhos
desejáveis, se tornem a confirmação de nossas certezas, e não, a investigação de nossas
dúvidas.
7 “E ensinar é um verbo transitivo-relativo. Quem ensina, ensina alguma coisa – o conteúdo – a alguém – o
aluno”. Freire, 2005.
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Certa ausência de controle – sobre a pesquisa e sua escrita – provoca insônias,
calafrios e mal estar, com certeza. Mas toda essa insegurança é compensada pela riqueza
das descobertas que nos permitimos encontrar. Conversar não é interrogar, não é arguir, não
é separar os sujeitos entre os que elaboram as perguntas – e analisam as respostas segundo
seus manuais – e aqueles que respondem as perguntas – às vezes de forma “errada” e
“insatisfatória”; não é estabelecer um diálogo dividido entre os que sabem e os que não
sabem; os que possuem as chaves da compreensão da palavra do outro, e os que não
compreendem nem mesmo o que dizem.
Não podemos fazer pesquisa com estranhos. Não podemos ser sujeitos estranhos ao
universo da pesquisa. Não fale com estranhos! Nossas mães nos aconselhavam zelosas. Não
fale com estranhos! Tantas mães repetem cautelosas. No entanto, nós só “falamos” com os
estranhos. Mas com eles não conversamos. Os “estranhos” são aqueles que nos parecem
hostis, e como bem nos alertam nossas mães, nem sempre nos querem bem, ou nos fazem
bem. E como nos vem como estranhos também, não acreditam facilmente em nosso bem
querer. Por isso não podemos conversar com eles. E por isso também, nem sempre eles
querem conversar conosco. Conversamos com nossos companheiros, que mesmo quando
nos recriminam, discordam ou debocham, nos amam, nos querem bem. Contudo, quando
conversarmos com um “estranho”, ele deixa de ser estranho, eis o poder e a magia da
conversa.
O sucesso da conversa é a entrega. É o encontro. Que no entanto, como vimos, nem
sempre acontecem no mesmo momento para os direfentes interlocutores. Uma conversa
acontece realmente onde existe cumplicidade, segurança, confiança, respeito, dignidade e
afeto. As pessoas que conversam afetam-se com o que é dito pelas outras, porque
compreendem que o dizer das outras pessoas é importante, porque as pessoas que falam são
ou tornaram-se – com o deslocar no tempoespaço – importantes. Naturalmente isso não
exclui a tensão, o conflito que às vezes adia o final de uma conversa – se é que ela termina
– por muito tempo.
Falamos com muita gente, mas quando insistimos na conversa, mesmo as mais
difícieis, é porque confiamos que o outro está nos ouvindo, mesmo que nem sempre
concordando. A conversa é uma profissão de fé no outro ser humano, e em sua capacidade
de nos ouvir, e quem sabe um dia, mesmo sem concordar, nos compreender.
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Falamos muito o tempo inteiro, mas conversamos mesmo apenas em algumas
ocasiões. E talvez saibamos intuitivamente exatamente o momento em que uma conversa
começa. Quantas vezes convivemos meses, anos com algumas pessoas, e depois de uma
“conversa”, saímos com a sensação de ter conhecido alguém novo? De que a relação com
aquela pessoa não será mais a mesma.
Quando o que é dito ganha uma relevância mais profunda, as pessoas envolvidas na
conversa reposicionam seus corpos, aproximam seus ouvidos, olham nos olhos, as vozes se
alteram. Existe uma resposta física, emocional e mental a uma conversa. Existe um desejo
de participar, um desejo de ouvir e ser ouvido. Um desejo de mergulhar no outro, de saber
mais, de ouvir mais. Decifrá-lo e devorá-lo. Antropofagia.
Essa conversa pode ser com um amigo, com um professor, com um aluno, como
pode ser com um compositor, com um pintor, com um autor, com um outro ser humano que
nos toque e crie em nós essa estranha necessidade do encontro.
Para uma perspectiva cientifica moderna, pseudamente neutra, esta conversa é
inconcebível, pois é rica demais em subjetividades, é humana demais para ser fonte de
informações sobre o universo humano. Para a pesquisa com o cotidiano, é uma opção de
conhecer e pensar sobre a vida e sobre os sujeitos, com os sujeitos no momento em que a
vida acontece. Para nossa prática pedagógica é uma questão a ser refletida: entre tantos os
momentos que passamos em uma sala de aula, quando conversamos? Será que conversar é
mesmo perda de tempo? E o quanto este compartilhar experiências, ouvir o outro, narrar-se
potencializa o ato de aprender? Será que o controle sobre os diálogos pedagógicos para que
não escapem ao acaso produz um diálogo pedagogicamente potencializador entre os
sujeitos?
Acredito que aprendemos uns com os outros, quando compartilhamos nossas
experiências, quando nos sentimos seguros para nos narrarmos e confiamos em nossos
companheiros. Acredito que quando fazemos isso estabelecemos com os outros um diálogo,
e que uma das formas que este diálogo assume em nosso cotidiano é a conversa. E digo
uma das, porque o diálogo pode assumir muitas formas, e algumas delas, como vimos,
possuem fronteiras, normas, objetivos, que geralmente a conversa não respeita.
Alguns filósofos da Antiguidade Clássica utilizavam o diálogo como método. Havia
uma intencionalidade e uma diretividade na discussão para que o discípulo compreendesse
23
determinada ideia ou conceito. Em uma relação assimétrica um interlocutor – reconhecido
como mestre – utiliza a forma de perguntas e respostas para desconstruir as ideias pré-
concebidas dos pupilos, para em seguida orientá-los, com o mesmo método de perguntas e
respostas para as conclusões que espera que alcancem. Percebemos que assim
compreendido, o diálogo assume alguns a priores: primeiro se estabelece o conhecimento
dos “pupilos” como um conhecimento restrito, falho, incompleto, portanto negado como
conhecimento. Segundo se acredita que o conhecimento do mestre, ao contrário, é
expressão da “verdade”. O diálogo neste sentido – e não esqueçamos que o díalogo como
conceito tem muitos sentidos e alguns bastante diversos deste – torna-se o caminho
utilizado para fazer com que os sujeitos abandonem suas próprias ideias e convicções e
assumam as do mestre como suas. Os sofistas, filósofos do período socrático,
apresentavam-se como mestres da oratória e da retórica, artes fundamentais para uma
atuação política na polis. Para os sofistas não importava onde estava “a” verdade, pois “a”
verdade estaria com aquele que melhor a apresentasse e defendesse, aquele que houvesse
desenvolvido a arte da persuasão. Aprendido a usar a palavra como espada. A palavra para
vencer o outro. O diálogo – quando nesta perspectiva – muitas vezes nos desafia para um
duelo. Quando nesta forma, o diálogo apresenta-se como uma lógica que combate à outra e
tenta provar-se superior em “verdade”.
A conversa que interessa a nossa pesquisa é aquela que permite que uma lógica
resignifíque-se na outra, expanda-se na outra, aprenda com a outra. Enquanto nesta
perspectiva de diálogo – herança grega – alguém sai vencedor do debate, na conversa, na
perspectiva que defendo, não vencemos ou perdemos, aprendemos. E aprender significa
tanto ganhar como perder muitas coisas...
Minha contribuição a esta conversa, não foi lançar luz sobre as trevas. Não foi
oferecer soluções ou respostas, mas contribuir na busca de outras reflexões possíveis, em
busca de outras práticas e outras escolas possíveis, não porque eu acredite que não façamos
um trabalho sério e comprometido com nossos alunos, mas exatamente por esta seriedade e
comprometimento que nos exige buscar sempre, criar sempre, investigar sempre, pois o
mundo esta permanentemente se recriando, e os desafios são muitos.
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Minha contribuição a esta conversa foi ser, de certa forma e neste momento, a
fiandeira dessas muitas linhas que se cruzaram: nossos saberes humanos, docentes, outros
saberes, nossos não-saberes e os não saberes dos outros...
O diálogo travado na conversa perde sua hierarquia – mestre/pupilo – assim como
sua diretividade. A conversa é por natureza democrática, rizomática, indirigível. Começa
em um ponto que não necessariamente foi aquele que você estipulou para começar, e
termina em lugares absolutamente imprevisíveis. A conversa em sua dialogicidade e
dinâmica nos produz outros na interação com as experiências dos narradores, não
possuindo, portanto, garantia de portos-seguros onde ancorarmos. Mesmo quando partimos
com um mapa, os ventos, as mares, e a própria viagem vai nos transformando e
transformando nossos caminhos. É preciso deixar-se levar...
Uma conversa também, nem sempre se encerra quando nos despedimos, pois
seguimos uns nos outros, continuando mentalmente, por muito tempo, a conversa
inacabada...
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