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1 SINOPSE O presente trabalho visa estudar da forma mais abrangente possível, mas sem se olvidar dos detalhes, o tema impedimentos do casamento no novo Código Civil. Restringiu-se a investigação apenas às hipóteses constantes do artigo 1.521 do novo Código, uma vez que com a alteração promovida por este diploma na matéria, os antigos impedimentos dirimentes relativos e impedientes, passaram a ser tratados em capítulos e com nomenclaturas diferentes devido aos efeitos distintos que geravam. Mas por ser tema estritamente ligado com alguns dos mais importantes institutos do direito, quais sejam, a família e o casamento, estes não poderiam deixar de ser analisados, ainda que de forma sintética, de forma a embasar e justificar o presente estudo, já que a observância dos impedimentos matrimoniais é talvez a maneira mais eficaz de proteger a entidade familiar das anomalias que nela podem se instalar. Na parte final do estudo, preocupou-se em estender a análise da matéria ao campo do Direito Penal, haja vista as importantes conseqüências a que está submetido aquele que desobedecer as regras previstas no artigo 1.521 do Código Civil de 2002.

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SINOPSE

O presente trabalho visa estudar da forma mais abrangente possível, mas

sem se olvidar dos detalhes, o tema impedimentos do casamento no novo Código

Civil.

Restringiu-se a investigação apenas às hipóteses constantes do artigo 1.521

do novo Código, uma vez que com a alteração promovida por este diploma na matéria,

os antigos impedimentos dirimentes relativos e impedientes, passaram a ser tratados

em capítulos e com nomenclaturas diferentes devido aos efeitos distintos que geravam.

Mas por ser tema estritamente ligado com alguns dos mais importantes

institutos do direito, quais sejam, a família e o casamento, estes não poderiam deixar

de ser analisados, ainda que de forma sintética, de forma a embasar e justificar o

presente estudo, já que a observância dos impedimentos matrimoniais é talvez a

maneira mais eficaz de proteger a entidade familiar das anomalias que nela podem se

instalar.

Na parte final do estudo, preocupou-se em estender a análise da matéria ao

campo do Direito Penal, haja vista as importantes conseqüências a que está submetido

aquele que desobedecer as regras previstas no artigo 1.521 do Código Civil de 2002.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

1. DA FAMÍLIA

1.1 Aspectos históricos e evolutivos da família 4

1.1.1 História e evolução da família no Brasil 8

1.2 O conceito de família 10

1.3 Natureza jurídica da família 11

1.4 Espécies de Família 13

2. DO CASAMENTO

2.1 Aspectos históricos e evolutivos do casamento 15

2.1.1 Histórico e evolução do casamento em Portugal e no Brasil. Do casamento religioso ao casamento civil 22

2.2 Considerações iniciais acerca da natureza jurídica do casamento 26

2.2.1 Teoria Contratualista 26

2.2.2 Teoria Institucionalista 27

2.2.3 Teoria Mista 28

2.3 Conceito de Casamento 29

2.4 Princípios do direito matrimonial 30

2.5 Condições e caracteres essenciais à existência, validade

e regularidade do matrimônio 33

3. DOS IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS

3.1 Aspectos históricos e evolutivos dos impedimentos. Roma: o início 37

3.1.2 Direito Canônico: a sistematização 38

3.1.3 A história dos impedimentos no Brasil 39

4. DOS IMPEDIMENTOS EM ESPÉCIE

4.1 Conceito de impedimento do casamento 42

4.2 Distinção entre incapacidade e impedimento matrimonial 44

4.3 A classificação adotada pelo novo Código Civil em relação

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ao Código de 1916 45

4.4 Caracteres dos impedimentos 48

4.5 Causas determinantes dos impedimentos 49

4.6 Impedimentos resultantes de parentesco 49

4.6.1 De consangüinidade 50

4.6.2 De afinidade 54

4.6.3 De adoção 55

4.7 Impedimento resultante de vínculo 59

4.8 Impedimento resultante de crime 62

4.9 Impedimentos impostos aos estrangeiros 66

4.10 Prova dos impedimentos 68

5. A INCIDÊNCIA DOS IMPEDIMENTOS NA UNIÃO ESTÁVEL 70

6. OPOSIÇÃO DOS IMPEDIMENTOS

6.1 Conceito 78

6.2 Procedimento de oposição dos impedimentos 79

6.3 As peculiaridades da oposição dos impedimentos do casamento 80

6.4 Efeitos e conseqüências da oposição 83

7. ASPECTOS PENAIS DOS IMPEDIMENTOS DO CASAMENTO 84

CONCLUSÃO 88

BIBLIOGRAFIA 93

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INTRODUÇÃO

Com o advento da Lei 10.406 de 2002, batizada pela doutrina de “Novo

Código Civil”, torna-se ainda mais relevante o estudo de temas relacionados à família

e ao casamento, ante as mudanças ocorridas e por serem pontos norteadores da

organização estatal.

Dentre estes temas de elevada importância, vem à tona o ora analisado,

visto que a inexistência de impedimentos matrimoniais é requisito essencial à

celebração do casamento, sendo que a sua desobediência acarreta importantes

conseqüências, não só aos contraentes, como também à própria sociedade.

O presente estudo tem por fim a análise minuciosa dos impedimentos do

casamento sob a luz do Código Civil em vigor, sem, logicamente, deixar de

estabelecer as devidas comparações com o Código anterior, bem como com a

Constituição Federal de 1988 e leis extravagantes, uma vez tratar-se de tema que

sofreu alterações no decorrer da história.

Para desenvolver o tema, nos valemos basicamente da legislação pertinente,

da doutrina especializada no assunto, bem como de decisões jurisprudenciais, estas

utilizadas principalmente nos momentos em que a doutrina se dividia na resolução de

divergências ou a primeira não era suficientemente clara.

Inicialmente, ressaltamos os aspectos gerais e históricos da família e do

casamento devido à sua grande importância no aspecto formador e organizacional do

Estado e da sociedade. Além disso, por ser a família uma sociedade natural,

antecedente nas suas origens ao próprio Estado, e o casamento uma das formas de

constituí-la, é inegável a ligação que estes temas têm com os mais elevados interesses

morais, pessoais e sociais existentes.

Em um segundo momento, adentramos no tema propriamente dito, expondo

de início a evolução e os aspectos históricos dos impedimentos matrimoniais desde sua

introdução primitiva no Direito Romano até sua sistematização no Direito Canônico e

posterior compilação pelas legislações seguintes, inclusive a nossa. Em capítulo à

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parte, tratamos dos impedimentos propriamente ditos, seu conteúdo, conceito, prova,

características, requisitos configuradores, efeitos e conseqüências oriundas de sua

inobservância.

Como o Código Civil de 2002 passou a considerar como impedimentos

somente as causas elencadas no artigo 1.521, trataremos apenas destes casos, apesar

das atuais causas suspensivas e de anulabilidade um dia terem sido também

consideradas impedimentos à época da legislação civil de 1916.

Outro assunto, que não poderia deixar de ser lembrado com o estudo do

tema, refere-se à oposição dos impedimentos matrimoniais, ou seja, a forma como os

impedimentos passam a operar de fato na vida das pessoas que os desobedecem, já que

este é o único modo que a sociedade, ou os legalmente legitimados têm de impedir a

realização de matrimônio que contrarie a ordem pública ou os bons costumes. Neste

sentido, achamos por bem ampliar o assunto abrangendo também a oposição das

causas suspensivas.

Durante a produção do trabalho, surgiram algumas questões que a princípio

pareciam triviais, mas que se analisadas mais profundamente, causam e causaram até

hoje infinitas discussões tanto na doutrina como na jurisprudência. Procuramos, ao

percorrer estas divergências, expor todas as facetas da questão e, por fim, nossa

opinião.

Dentre estes temas de elevada importância que têm sido pontos de

divergência doutrinária e jurisprudencial, ressalta-se de pronto os referentes: à

natureza jurídica do casamento, a distinção entre incapacidade e impedimento

matrimonial, as críticas que apontam pela desnecessidade dos impedimentos previstos

nos incisos III e V do artigo 1.521 do Código Civil, as questões relativas a

possibilidade do cônjuge de pessoa ausente contrair novo casamento e da pessoa

apenas separada de fato ou judicialmente contrair união estável com outrem mesmo ao

arrepio do disposto no artigo 1.521, VI do Código Civil, bem como as referentes a qual

espécie de homicídio se refere o inciso VII do art. 1521 do Código Civil, tanto o

doloso como o culposo ou somente a doloso, e ainda, as discussões acerca da

legitimidade para oposição de impedimentos.

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Por fim, retratamos um tema pouco difundido na doutrina civilista: os

aspectos penais dos impedimentos do casamento. É um assunto que apesar de não

constar nos compêndios de direito civil, é importante, pois traduz em normas a

preocupação do legislador com a punição de indivíduos que atentam contra uma das

mais importantes instituições do direito: a família.

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1. DA FAMÍLIA

1.1 Aspectos históricos e evolutivos da família

Ao se proceder a análise de tema tão controvertido como a origem da

família, percebe-se que novas hipóteses surgem a cada dia, entretanto, nenhuma

apresenta como base, fundamentação e provas seguras que solucionem a dúvida.

Alguns autores crêem ter a família se constituído já no estado primitivo das

civilizações, porém, não como a conhecemos hoje, e sim baseada em relações plurais

entre os indivíduos, marcadas principalmente pela promiscuidade. Há quem sustente,

por outro lado, que a promiscuidade como forma de constituição familiar em épocas

primitivas, até hoje é passível de dubitação, visto não haver indícios concretos que

provem tal teoria.1

Na verdade, não obstante o discenso histórico-doutrinário, pode-se dizer

que nestas épocas remotas, tais relações existentes, baseadas ou não na promiscuidade,

não podem ser consideradas modos formais de constituição familiar, e sim, uniões

comunitárias ligadas por uma relação de parentesco não convencional.

Talvez a dificuldade em reconstituir passado tão longínquo, resida no fato

de que “a família preexistiu ao direito, ao Estado e até mesmo à história. Não há na

história dos povos antigos, tanto na Antiguidade oriental como na Antiguidade

Clássica (Grécia e Roma), o surgimento de uma sociedade organizada sem que se

revele a família instituída.”2

1 “Conforme descrição feita por Friedrich Engels (1997:31 ss), em sua obra sobre a origem da família, editada no século XIX, no estado primitivo das civilizações o grupo familiar não se assentava em relações individuais. As relações sexuais ocorriam entre todos os membros que integravam a tribo (endogamia). Disso decorria que sempre a mãe era conhecida, mas se desconhecia o pai, o que permite afirmar que a família teve de início um caráter matriarcal, porque a criança ficava sempre junto à mãe, que a alimentava e a educava. Caio Mário da Silva Pereira (1996:17) aponta que essa posição antropológica que sustenta a promiscuidade não é isenta de dúvidas, entendendo ser pouco provável que essa estrutura fosse homogênea em todos os povos. Posteriormente, na vida primitiva, as guerras, a carência de mulheres e talvez uma inclinação natural levaram os homens a buscar relações com mulheres de outras tribos, antes do que em seu próprio grupo. Os historiadores fixam nesse fenômeno a primeira manifestação contra o incesto no meio social (exogamia). ...”. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade provada e do Estado. Trad. Leandro Konder. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 31 e ss.; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 11ª ed. Rio de janeiro: Forense, 1996. v.5., p. 17, apud Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil: direito de família, v. 6, p.17. 2 Sebastião José Roque, Direito de Família, p. 16.

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Na Grécia antiga, a família era constituída principalmente através do

casamento, e o elo de união entre os entes familiares era o culto aos antepassados,

comandado pelo chefe da família, figura primitiva do paterfamilias romano.3

Entretanto, para o estudo da família ocidental, a ciência jurídica toma por

base a família romana, visto ser considerada a primeira entidade familiar organizada, o

que justifica não se estender no trato da família primitiva.

Ressalte-se que a organização familiar romana era fundamentalmente

diversa da estrutura da família moderna hoje existente. O vocábulo família, no direito

romano, possuía dois significados básicos, o primeiro tendo por base as relações entre

os membros da entidade, designando basicamente o chefe familiar e o grupo de

pessoas que se subordinavam ao seu poder, e o segundo, onde família era sinônimo de

patrimônio4.

A família romana, considerada como grupo de pessoas subordinadas ao

poder do pater, ainda comporta duas subespécies, a primeira mais restrita e a outra

mais ampla e moderna. “Na sua acepção original, família era evidentemente a familia

pleno iure, isto é, o grupo de pessoas efetivamente sujeitas ao poder do pater famílias.

[...] Noutra acepção, mais lata e mais nova, família compreendia todas as pessoas que

estariam sujeitas ao pater familias, se este não tivesse morrido: era a família communi

iure.”5

Prevalecia, no entanto, a família em sua acepção lata, sendo considerada

concomitantemente uma unidade econômica, jurídica, política6 e religiosa, visto que,

além da produção familiar ser voltada para a própria subsistência, a religião e as

normas seguidas pelos membros da instituição eram domésticas7, fundamentadas na

autoridade do pater.

3 “Na Grécia o principal fundamento da família era oculto aos antepassados. Por isso, em cada casa havia um altar. Cabia sempre a um homem, o chefe da família, presidir às cerimônias realizadas junto ao altar doméstico, onde os antepassados eram venerados.” Antonio José Borges Hermida, Compêndio de História Geral, p. 73 4 “Aliás, etimologicamente, família prende-se a famulus, escravo, que em Roma, tinha obviamente valor econômico.” Thomas Marky, Curso elementar de Direito Romano, p. 153. 5 Thomas Marky, Curso elementar de Direito Romano, p. 153 6 Somente na primeira fase do direito romano a família poderia ser considerada em seu aspecto político, pois o Senado constituía-se pela reunião dos chefes de família, o chamado patres conscripti. 7 “A produção de bens necessários ao consumo pela vida familiar era basicamente doméstica e todos os membros da família, de forma direta ou indireta, eram responsáveis e deviam contribuir para essa produção. Daí a necessidade de as famílias romanas se constituírem de forma ampla, em grandes famílias.” Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 8.

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O pater famílias, era o centro da entidade familiar. Em Roma, quando se

pensava em determinada família, atinava-se logo a figura do pater. Concentrava ao

mesmo tempo as funções de chefe, juiz e sacerdote da família, detendo total

supremacia em relação aos membros familiares. Exercia um poder de mando absoluto

tanto sobre as pessoas como sobre o patrimônio familiar.8

O elo que unia os membros da família romana era a pessoa e a autoridade

do pater. Esse vínculo congregador chamava-se parentesco, sendo, pois, puramente

jurídico no direito romano arcaico, estando baseado exclusivamente no poder que o

paterfamilias tinha ou teve sobre os membros familiares.

Essa forma de parentesco jurídico é a chamada agnação (adgnatio), que

vinculava as pessoas que estavam sujeitas ao mesmo pater, mesmo quando não fossem

consangüíneos, tendo como característica marcante sua forma de transmissão, que só

ocorria pela linha paterna, pois somente homens podiam ser paterfamilias.

Em contrapartida, existia também o parentesco por cognação (cognatio),

onde o vínculo se fundamentava na consangüinidade, ou seja, considerava-se

pertencente à mesma família aquele que proviesse do mesmo ancestral, incluindo-se aí

também os liames pela linha materna.

Ressalte-se que o parentesco consangüíneo, ao ser reconhecido pelo direito

romano, passou a gerar os primeiros impedimentos de que se tem notícia.

Com o advento do cristianismo, nasce o conceito de família cristã, baseada

na igualdade entre o homem e a mulher perante Deus, o que sem dúvida é o início da

perda do poder absoluto de chefia do homem, antes compreendida na figura do pater.

Já na Idade Média, também devido à influência exercida pelo cristianismo,

e às ações arquitetadas pela Igreja católica, o casamento deixou de ser considerado

simples fato social, ou seja, mero acordo de vontades entre as partes, como ocorria em

Roma, e sim, um ato religioso, um sacramento, fazendo com que a constituição da

família se baseasse na procriação e no casamento indissolúvel.

8 “Assim, o paterfamilias exercia um poder de vida e de morte sobre seus descendentes (ius vitae ac necis), o que já era reconhecido pelas XII Tábuas (450-451 a.C.). Esse poder vigorou em toda sua plenitude até Constantino (324-337 d.C.) (Codex Theodosianus, 4.8.6 pr.)” Thomas Marky, Curso elementar de Direito Romano, p.155.

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Posteriormente, principalmente por influência do direito germânico, o

vínculo que une a família passa não mais a se fundamentar no poder do chefe de

família, e sim na autoridade fundada na compreensão e nos sentimentos, onde a

consangüinidade torna-se elemento de suma importância.

Com a decadência do paterfamilias, o parentesco cognativo prevaleceu,

servindo de base para o direito romano, na regulação das relações entre os entes

familiares em um período posterior.

O casamento civil nasce com as reformas protestantes iniciadas

principalmente por Lutero (1483-1546), “que não eram contrárias à família como

instituição social necessária, mas sim, à família como instituição religiosa e

sacramentada pelo casamento religioso indissolúvel.”9

Foi no século XVIII, entretanto, principalmente devido a Revolução

Industrial, que a concepção de família começou a se alterar, pois a renda familiar não

mais era auferida através do trabalho doméstico dos membros da família como ocorria

em Roma. A mulher e os filhos passam a contribuir para a economia doméstica com a

renda proveniente de seu trabalho nas indústrias, o que de fato, é o início do

rompimento, neste sentido, com a tradição da família romana, que era baseada na

concentração de mão-de-obra doméstica, passando a chamada “família nuclear”, a ser

a melhor forma para sua constituição.

A partir do século XIX, as antes tradicionais funções religiosa, econômica e

reprodutiva da família, sofrem austeras modificações, aparecendo somente de forma

secundária, visto que a realização interior do ser humano, nas mais diferentes

acepções, passa a ser o principal objetivo para sua constituição, o que sem dúvida

influenciou o direito contemporâneo na feitura de normas acerca do tema.10

Resumindo, houve três aspectos principais que marcaram a evolução da

família romana: a restrição à autoridade do pater, a concessão de maior autonomia à

mulher e aos filhos e a substituição do parentesco agnatício pelo cognatício.

9 Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 11. 10 “Sem dúvida, hoje, o modelo de família que prevalece é o modelo eudemonista, ou seja, o modelo pelo qual cada um busca, na própria família, ou por meio dela, a sua própria realização, seu próprio bem-estar.” Giselda Maria Novaes Hironaka, In: Família e Casamento em Evolução, p.17.

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Assim, pode ser observado que cada etapa concretizada da evolução da

família romana, abriu caminhos para mudanças maiores que se baseavam nos anseios

da sociedade de cada época. Com o declínio do poder do pater e com a maior

autonomia que passaram a gozar mulher e filhos, ocorreu um distanciamento,

podendo-se chamar de verdadeira dissolução da família romana, passando os membros

desta a serem ligados somente através do sangue, e, posteriormente pelo afeto, e não

mais como outrora ocorria com a concentração do poder em uma só pessoa, o que

consagrava uma verdadeira e violenta ditadura familiar gerenciada por um indivíduo

que recebia o nome de paterfamilias.

Como se pode perceber, não se trata a família de instituto imutável, uma

vez que seu conceito e características vão variar de acordo com a época e a sociedade

na qual ela for considerada, fato este que resta comprovado ante a digressão histórica

apresentada.

1.1.1 História e evolução da família no Brasil

O direito de família brasileiro tomou por base em sua legiferância o direito

romano, que serviu de modelo para a estruturação da entidade familiar da maioria das

civilizações, o direito canônico, traduzido nas normas e ações da Igreja católica que

modificaram o instituto, o direito germânico11 e, numa fase mais avançada o direito

português, por ter sido o Brasil, durante longos anos, colônia de Portugal.

Grande exemplo12 da interferência eclesiástica neste ramo do direito civil, é

a presença marcante dos impedimentos do casamento, originalmente criados e

previstos em normas canônicas.

Sem dúvida, a melhor forma de reconstituir a história de uma nação é

analisar sua ou suas constituições. Quanto à família no Brasil não é diferente.

Por ser a família considerada a “célula mater” da sociedade, logicamente

recebeu proteção das Constituições brasileiras, exceto quanto ao texto de 1824 que não 11 Arnoldo Wald, Curso de Direito Civil Brasileiro: direito de família, p. 24. 12 Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 13.

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tratou do instituto, nem tampouco do casamento. Com a Constituição republicana de

1891, pela primeira vez, reconheceu-se efeitos jurídicos exclusivamente ao casamento

civil. Grande renovação operou a Carta de 1934, que além de tratar da família em

capítulo próprio e reconhecer a possibilidade do casamento religioso com efeitos civis,

estabeleceu o casamento civil indissolúvel como forma de constituição familiar,

mantendo este princípio nas Constituições que se seguiram, indissolubilidade esta

alterada somente com a edição da Lei 6.515/77, que instituiu a dissolubilidade do

vínculo conjugal pelo divórcio, rompendo-se assim, com os valores religiosos

embutidos no instituto.

O Código Civil de 1916, na parte em dispensa proteção à família,

claramente estava baseado nos antigos modelos patriarcais, guardando semelhanças

em diversos aspectos com as famílias da antiguidade, principalmente a romana, vez

que sua constituição legítima se dava apenas através do casamento e a mulher não

possuía os mesmos direitos que os homens, sendo estes considerados como chefes da

sociedade conjugal.13

Verdadeira revolução foi operada pela Constituição Federal de 1988, que,

com vistas a contemplar as alterações sociais ocorridas e que influenciaram o instituto

da família, previu outras formas de constituição familiar, que não exclusivamente o

casamento, rompendo de vez com os valores sociais, morais e religiosos de outrora,

principalmente os albergados no Código Civil de 1916, alterando completamente o

conceito de família.

Em seu artigo 226, a Carta de 1988, além de ressaltar que a família é a

“base da sociedade”, reconheceu como entidades familiares a união estável entre

homem e mulher e a chamada “família monoparental”, equiparando-as à calcada no

matrimônio, bem como equiparou os direitos e obrigações do homem e da mulher e os

direitos dos filhos tidos dentro ou fora do casamento e adotivos.

13 “Para o Código Civil brasileiro de 1916, a família era aquela assentada no direito napoleônico, ou seja, hierarquizada e matrimonializada, calcada na procriação, na formação de mão-de-obra, na obtenção e transmissão de patrimônio, além de fonte de aprendizado individual, demonstrando-se a preferência pela família com valores tradicionais, com o homem exercendo a chefia da sociedade conjugal”. Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 13-14.

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O Código Civil de 2002, só veio confirmar as alterações promovidas pela

Constituição Federal de 1988, incorporando-as em seu bojo e destacando especial

capítulo à união estável, “fazendo nítida distinção entre os dois institutos, mas

abordando esses relacionamentos não matrimoniais como entidades familiares

legítimas e reconhecidas pelo novo sistema jurídico.”14

1.2 O conceito de família

Como dito, o conceito de família tem variado no decorrer dos tempos15, o

que torna difícil estabelecer um conceito único, que possa ser aplicado a qualquer

sociedade e em qualquer época. Desse modo, como as modificações que o instituto

sofreu já foram apresentadas nos itens anteriores, será traçado neste tópico o conceito

que a família tem recebido atualmente na doutrina, visto que a lei não esboçou

nenhuma ação neste sentido.

Segundo Maria Helena Diniz16, na ciência jurídica, a palavra família pode

ser considerada sob três acepções: amplíssima, ampla e restrita.

Na acepção amplíssima, família seria a comunidade de todos os indivíduos

unidos pela consangüinidade, afinidade, incluindo-se estranhos que tenham relação

direta com a instituição, como no caso de empregados domésticos, por exemplo.

De forma ampla, família compreende o conjunto formado pelos cônjuges, e

sua prole, bem como os parentes da linha reta ou colateral, incluindo-se os afins, estes

que são os parentes do outro cônjuge.

Restritamente, a família se resume ao grupo formado pelos cônjuges e sua

prole, não sendo necessário, entretanto, que este tenha sido constituído por casamento,

uma vez que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, §§ 3º e 4º, considera

14 Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 16. 15 “[...] parece inegável que a família, como realidade sociológica, apresente na sua evolução histórica, desde a família patriarcal romana até a família nuclear da sociedade industrial contemporânea, íntima ligação com as transformações operadas nos fenômenos sociais.” FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos de direito de família: curso de direito de civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 12, apud Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 17. 16 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 5, p. 9.

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como entidade familiar a denominada “família monoparental” e também a comunidade

oriunda de união estável. Dessa forma, a Carta Magna vigente quando se refere à

família, o faz no aspecto sociológico, ou seja, não se funda somente naquela originada

através de casamento, pois sob esta ótica, não existe uma acepção única que possa

abranger tudo o ela significa, sendo ao mesmo tempo exata o suficiente, de forma a

delimitar todos os conceitos que dela advém.

Não existe assim, um conceito de família idêntico para todos os ramos do

conhecimento, sendo que, mesmo quando se refere ao direito, a idéia do instituto

difere dependendo da matéria sob a qual se enfoca a análise.17

No Código Civil de 2002, é possível encontrar o vocábulo família utilizado

nas três acepções supra aludidas18, o que apenas corrobora a idéia de que não se pode

conceituar o instituto de uma única forma, o que leva a doutrina dominante apenas

delimitar seu sentido técnico, como sendo “o grupo fechado de pessoas, composto de

pais e filhos, e, para efeitos limitados, de outros parentes, unidos pela convivência e

afeto, numa mesma economia e sob uma mesma direção.”19

1.3 Natureza jurídica da família

Antigamente, a doutrina achou por bem atribuir à família personalidade

jurídica, sob o argumento de que ela seria detentora de determinados direitos

patrimoniais e extrapatrimoniais, como o nome, o bem de família, entre outros, e que

por isso deveria ser tratada autonomamente em relação aos seus membros.

Entretanto, tal posicionamento não é aceito atualmente, e desde logo já é

derrubado ante ao argumento de que as pessoas jurídicas, para serem constituídas,

dependem de um ato jurídico e de normas que lhe confiram tal personificação.

17 “Assim, sua extensão não é coincidente no direito penal e fiscal por exemplo. Nos diversos direitos positivos dos povos e mesmo em diferentes ramos do direito de um mesmo ordenamento, podem coexistir diversos significados de família.” Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil: direito de família, v. 6, p.17. 18 No novo Código Civil consta o vocábulo família nos sentidos amplíssimo: “Art. 1.412. [...] § 2º As necessidades da família do usuário compreendem as de seu cônjuge, dos filhos solteiros e das pessoas de seu serviço doméstico.”.; amplo: artigo 1.592 e seguintes; e restrito: “Art. 1.567. A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.” 19 Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5, p.12.

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Como já explanado, a família é um fato natural20, que independe de normas

ou da prática de determinados atos para nascer. Apesar de ser considerada por muitos

como uma sociedade, o é de forma natural, o que não ocorre com as pessoas jurídicas,

que para existir, dependem de um ato jurídico ou de uma lei que lhe atribua tal

personificação. Portanto as pessoas jurídicas podem ser consideradas, assim como o

Estado, sociedades artificiais, sendo impossível, portanto, inserir a família em tal

categoria.

Neste sentido, bem pontifica a doutrina majoritária21 em definir a família

como ente despersonalizado, pois não é necessário lhe conferir tal atributo, uma vez

que suas atividades jurídicas, patrimoniais ou não, podem ser realizadas sem

personalização jurídica.

Apenas a título de complemento, a família nunca será titular de direitos,

mas sim, seus membros individualmente considerados.

Atualmente, a doutrina majoritária define a família como instituição, o que

também não deixa de ser um conceito impreciso, vez que o conceito de instituição

jurídica22 não se adequa de forma perfeita à idéia de família. “Essa teoria foi enunciada

na França por Maurice Hauriou e desenvolvida em seguida. Como instituição, a

família é uma coletividade humana subordinada à autoridade e condutas sociais. Uma

instituição deve ser compreendida como uma forma regular, formal e definida de

realizar uma atividade. Nesse sentido, família é uma união associativa de pessoas,

sendo uma instituição da qual se vale a sociedade para regular a procriação e educação

dos filhos.”23

20 “Diante dessas considerações, dizemos que a família não é só fato natural, é também fato cultural. Isso porque a família não tem apenas função reprodutora, tem como um de seus principais objetivos transferir a seus membros cultura e educação, fazendo com que eles atinjam a maturidade necessária para o seu desenvolvimento.” Ana Elizabeth Lapa Wanderley, Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 19 21 Neste sentido: Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v.1, p.135; Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil: direito de família, v.6, p. 21. 22 Considera-se instituição jurídica o conjunto de regras de direito sistematicamente direcionadas à regulação dos direitos e deveres de determinado fenômeno social. Trata-se de conceito impreciso, pois a família é o fenômeno social regulado e não regulador. 23 Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil: direito de família, v.6, p. 22

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1.4 Espécies de Família

A doutrina majoritária, corroborada pela Constituição Federal de 1988 e leis

esparsas, divide a família em quatro espécies.

A primeira, chamada de família matrimonial, é aquela que se constitui

através do casamento civil, ou do religioso com efeitos civis, nos termos dos §§ 1º e 2º

do artigo 226 da Constituição Federal e artigo 1.511 do Código Civil.

Os artigos 226, § 4º da Carta Magna e 1.723 e seguintes do Código Civil,

definem a chamada família não matrimonial, considerando família a comunidade

originada da união estável entre homem e mulher, ou seja, é a opção feita por pessoas

de sexo diferente que não desejando se casar, apesar de não estarem impedidas para

tanto, unem-se com os mesmos fins daqueles que estabelecem um vínculo

matrimonial, mas sem a formalidade que este exige.

É também considerada como entidade familiar a família monoparental, ou

na conceituação do artigo 226, § 4º da Constituição Federal de 1988: “Entende-se,

também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus

descendentes”. Trata-se de instituto não existente nas Constituições pretéritas, e que

estabelece “modalidade unilinear de família, desconectada da noção de casal, e

demonstrando haver, efetivamente, uma entidade familiar reconhecida, nesta

comunidade formada por um dos pais e sua prole.”24

Outra espécie de família destacada pela doutrina, juridicamente reconhecida

e equiparada às três primeiras como parentesco civil pelos artigos 1.628 do Código

Civil e 28 da Lei 8.069/90, é a designada família substituta, compreendendo aquela

onde é colocada o menor desamparado, através dos institutos da tutela, guarda ou

adoção, também comumente conhecida como família adotiva.

Como se percebe, a divisão efetuada leva em consideração a fonte que

originou a família: se foi o matrimônio, o companheirismo ou a adoção, ressaltando-se

o fato de que todas as espécies acima aludidas, de acordo com o artigo 226, caput da

24 Giselda Maria Novaes Hironaka, In: Família e Casamento em Evolução, p. 23

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Carta Magna vigente, recebem igual proteção da lei, não mais se fazendo as distinções

de outrora, fundadas em inúteis e latentes preconceitos sociais e morais.

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2. DO CASAMENTO

2.1 Aspectos históricos e evolutivos do casamento

Bem como ocorre com a família, diverge a doutrina também quanto à

origem do casamento, ou seja, o momento histórico inicial em que teria sido criado

como forma de constituição familiar.

Entretanto, de acordo com documentos históricos, antes do casamento

romano organizado, modos formais de constituição familiar já existiam entre os povos

da antiguidade, o que sem dúvida serviu de inspiração para a antiga Roma.

Dentre estas formas primitivas de casamento, segundo o ilustre professor

Álvaro Villaça Azevedo25, citado por Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti,

podem ser destacadas, de acordo com a ordem cronológica da história, as existentes

entre babilônios, egípcios, hititas, hebreus e gregos.

Para os habitantes da Babilônia o casamento era considerado um contrato,

instrumentalizado por documento escrito e assinado pelas partes na presença de

testemunhas, através do qual era paga determinada quantia em dinheiro pela família do

noivo à família da noiva, passando esta, a partir da assinatura do documento, a figurar

na posição de esposa, independentemente de ainda não ter havido a more uxorio dos

romanos.

Entre os egípcios, o matrimônio deveria se pautar por uma união

monogâmica, constituída através de um contrato escrito, seguido pela realização de

uma cerimônia religiosa.

Para os hititas, povo da antiguidade que ocupava a Ásia menor, o

casamento constituía-se de duas formas: pela compra da noiva de forma parecida com

o que ocorria entre os babilônios, ou através do rapto da futura esposa.

Quanto aos hebreus, apesar de inicialmente entre eles imperar a poligamia

na constituição familiar, onde chefes familiares podiam ter várias esposas legítimas e 25 AZEVEDO, Álvaro Villaça, Estatuto da família de fato. São Paulo: Atlas, 2002, p. 29 e ss, apud Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 28.

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concubinas, estas que, entretanto, ocupavam posição inferior a aquelas, posteriormente

adotou-se a monogamia, e, tanto em uma, como em outra fase, antecedia ao casamento

a entrega de presentes por parte do noivo à família da noiva, como forma de garantir a

realização do matrimônio, que era tipicamente religioso.

A família grega era calcada no patriarcalismo e na monogamia, sendo que o

casamento constituía-se através de uma cerimônia religiosa, caracterizada pela entrega

de oferendas e sacrifícios aos deuses, quando após, os pais dos noivos selavam a união

do casal.26

Mas é a partir da Roma antiga27 que o casamento passa a ser considerado

modo formal e legítimo de constituição familiar, servindo como ponto inicial para

ciência jurídica no estudo do tema.

O casamento em Roma não ser considerado um ato jurídico, mas sim um

fato social28, pois era regulado pelos costumes e pela moral vigente na época. Sua

caracterização como ato jurídico advinha não do fato em si, mas das conseqüências

nascidas da sua ocorrência: o reconhecimento social do ato era o mais importante, se

dando através de cerimônias religiosas, sendo que, sua elevação à categoria de ato

jurídico se dava através da comprovação, ou seja, da convivência contínua com a

intenção de permanecer casado (affectio maritalis) e a realização condigna dessa

convivência conjugal (honor matrimonii).

Existiram em Roma os institutos da conventio in manum e da conventio sine

manus, esta que prevaleceu no direito romano clássico.

O primeiro, consistia na prática de determinados atos, como forma de

estabelecer o poder do marido sobre a mulher. Através desta espécie, tanto a mulher

como seu patrimônio, passavam a manus maritalis, ou seja, passavam a ser

26 “Entre os gregos a cerimônia do casamento começava em casa da noiva. Primeiramente o pai, diante do altar doméstico, a desligava do culto dos seus antepassados para que ela pudesse depois venerar os do seu futuro marido. Seguia-se o banquete de núpcias, em que a noiva aparecia vestida com véu; formava-se depois o cortejo para a casa do noivo, levando à frente o archote nupcial e cantando um hino, chamado himeneu. No novo lar, diante das imagens dos antepassados e do fogo doméstico, os noivos repartiam um bolo, pão e frutas, o que significava que comungavam com aquelas divindades.” Antonio José Borges Hermida, Compêndio de História Geral, p. 73-74. 27 “Embora seja importante a estrutura histórica da família nas civilizações mais antigas, como a egípcia, a assíria e a hebraica, nosso estudo jurídico deve partir necessariamente do casamento romano, tendo em vista a origem de nosso Direito Civil.” Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil: direito de família, v.6, p. 37. 28 “Em Roma antiga, o matrimônio, regulado pelos costumes e pela moral, distinguia-se dos direitos dele decorrentes ou a ele ligados. O matrimônio era considerado no direito romano não como uma relação jurídica, mas sim como um fato social, que, por sua vez, tinha várias conseqüências jurídicas.” Thomas Marky, Curso elementar de Direito Romano, p. 159.

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subordinados à família e religião do marido29, perdendo a mulher toda a relação de

parentesco com a família de seu pater original, passando obrigatoriamente a se

submeter ao paterfamilias do marido, quando não coincidiam na mesma pessoa.

Dentre os atos para a instituição da manus sobre a mulher, destacavam-se

três principais: a confarreatio, a coemptio e o usus.

A confarretatio, era o casamento religioso destinado à classe patrícia de

Roma, e consistia em uma cerimônia composta por uma série de rituais e solenidades.

De acordo com relatos históricos30, era dividida em três atos principais: a traditio

(entrega), a deductio in domum (passagem) e a confarreatio propriamente dita.

Iniciava-se a traditio consultando os augures que “previam” o futuro, por

meio de diversos tipos de superstição. Seguia-se uma série de sacrifícios ao céu e a

terra, bem como aos primeiros cônjuges, unidos por laço indissolúvel. Identificavam o

casal inicialmente através dos nomes Caio e Caia, após, simbolicamente sacrificavam

a Minerva, deusa da virgindade e Juno, que comandava o casamento, entre outros.

No dia do casamento, ao pentear a noiva, repartiam-lhe o cabelo com a

ponta de uma flecha para indicar que ela estava sujeita ao marido, “sob a mão do

marido” (cum manus), separavam-no em seis tranças, como forma de indicar a

virgindade. A cabeça da noiva era enfeitada com grinalda de flores de verbena,

colhidas pela própria noiva. O ritual era finalizado com a colocação do véu branco

sobre a cabeça da noiva e de um cinto de pele de ovelha em seu ventre, atado em nó

perfeito, que só podia ser desatado pelo noivo, invocando o deus Juno, no momento

em que os cônjuges estivessem no tálamo, local sagrado onde ocorria a noite de

núpcias e a mulher perdia a virgindade.

Colocava-se sobre a cabeça dos noivos, enfeites com a forma de jugo de

arado, designando o casamento como verdadeiro jugo, de onde advém o termo

cônjuge31. Ainda na fase da traditio era usual raptar a noiva dos braços dos parentes,

em memória ao rapto das sabinas que Rômulo, primeiro rei de Roma, efetuou,

29 Na Roma antiga a religião era doméstica, baseada no culto aos antepassados e dirigida pelo pater. 30 Milton Duarte Segurado, Direito Romano, p. 133-140. 31 “A palavra cônjuge provém do latim conjuge, que advém da união de com + jugo. Jugo, por sua vez, vem do latim jugu, que significa opressão, obediência, autoridade, domínio”. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, p. 314.

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significando também a dor da separação, esta que ocorria de fato, pois a noiva deixava

de pertencer, no casamento cum manus, à família paterna, passando a integrar

juridicamente a família do marido.

O segundo ato, a deductio in domum, refletia a passagem da noiva à família

do marido, quebrando os laços com a sua família original. A noiva saía de casa

conduzida pela mão por seus pais. Próximo a casa do noivo, a noiva seguia sozinha até

lá chegar. No caminho, todos que a acompanhavam cantavam o himeneu, hino

dedicado ao deus Hímen, e levavam seus pertences e davam presentes para a criança

que nasceria desta união. Para os romanos, aí estava uma das maiores importâncias do

casamento: conceber um filho, que seria o continuador do nome, da família e da

tradição e religião do marido.

Por fim, dava-se a confarreatio propriamente dita, onde, já na casa do

marido, apresentavam à noiva água e fogo, que representavam os deuses lares,

significando que a partir daquele momento ela faria parte só da vida do marido,

desligando-se completamente (no sentido jurídico apenas, não no social e na amizade)

da família de origem. Procedia então o juramento junto ao fogo aceso no centro do lar

do marido, de que só aquele seria invocado. Tendo jurado diante dos lares do marido,

estava casada, tendo mudado não só de família como também de religião. Após isso,

seguia-se uma enorme festa, onde os noivos ofereciam um pão feito de trigo ao deus

Júpiter, posteriormente repartido entre o casal, que enquanto comia o pão, lia um texto

solene na presença de dez testemunhas.

A confarreatio, entretanto, logo caiu em desuso, passando a ser rara já ao

tempo de Augusto.

Existia em Roma também a coemptio, que era o matrimônio destinado à

plebe, classe mais baixa da sociedade romana, tratando-se na verdade de um

casamento civil, que tinha como ponto a marcante a venda imaginária (imaginaria

venditio) do poder sobre a mulher feita pelo pai ao futuro marido. A cerimônia se

fundamentava na realização de um negócio jurídico formal, sendo uma modalidade da

mancipatio, uma forma solene de transferência de propriedade.

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Já o usus, era despido de maiores formalidades. Tratava-se, na verdade da

aquisição da mulher pela posse, equivalendo a uma espécie de usucapião. Se

concretizava com a subordinação da mulher ao marido pelo período mínimo de um

ano, comprovando-se que a mulher não se ausentara do lar conjugal por mais de três

noites seguidas sem autorização do marido (trinoctii usurpatio).

Concorria a essas espécies “o casamento de pessoas estrangeiras entre si ou

de pessoa estrangeira com pessoa de cidadania romana”32, denominado matrimonium

iuris gentium, e a união entre escravos ou entre escravos e pessoas livres

(contubernium), considerada uma mera relação de fato e não propriamente um

casamento, já que os escravos não podiam se casar legalmente.

Através da conventio sine manus, por outro lado, a mulher unia-se ao

homem, sem, entretanto, passar a pertencer à família do marido, ou seja, continuava

sob o comando e seguindo a religião doméstica de seu paterfamilias de origem. Foi

criada algum tempo após a conventio in manum, apesar de ter com esta coexistido por

certo período, com o intuito de garantir à mulher a herança advinda de sua família

originária, passando a ser a forma predominante a partir da República.

Segundo Thomas Marky33, o poder jurídico exercido pelo marido sobre a

mulher, já declinado como manus, não se confundia com o casamento romano, “era

um reflexo eventual, mas não absoluto, do matrimônio”, em suas palavras.

Com o advento do casamento sine manu, torna-se clara a posição do

renomado jurista, uma vez que podia haver casamento sem transferência de poder

marital, reforçando-se tal posição pelo fato de que era o casamento sine manu que

prevalecia na Roma clássica, abolindo o instituto da manus.

Assim, tratando-se do casamento romano, sem considerar a manus,

percebesse que com a evolução dos tempos o matrimônio passou a ser baseado mais

no consentimento dos nubentes em se casar e manter esse vínculo, do que

propriamente na obediência de formalidades. O casamento, portanto, era um ato

consensual contínuo de convivência, calcado no ideal da affectio maritalis, traduzida

como afeição conjugal, que na verdade significava a vontade constante de manter o 32 Thomas Marky, Curso Elementar de Direito Romano, p. 161. 33 Curso Elementar de Direito Romano, p. 160.

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vínculo matrimonial. Como o casamento romano era considerado um fato social,

tornava-se necessário demonstrar a existência da afeição conjugal para que a sociedade

reconhecesse a união como legítima. Essa demonstração dava-se principalmente

através da convivência more uxorio, ou seja, a coabitação. Cabe frisar que, a falta da

affectio maritalis enfraquecia o vínculo conjugando, resultando no seu fim.

Como conseqüência desta evolução, nasce, ainda nos tempos do Império, o

chamado justae nuptiae, ou casamento livre, que para se consumar, bastava a

comprovação solene do consentimento e da capacidade matrimonial dos nubentes,

bem como a inexistência de impedimentos matrimoniais, formalidade esta, que sem

dúvida influenciou as legislações posteriores, destaque-se a brasileira, onde até hoje

deve haver prova da obediência destes requisitos para a constituição familiar através

do casamento. “[...] o surgimento do casamento livre, ou seja, justae nuptiae, fez com

que o casamento romano não mais observasse as regras da manus, e, sim, as regras do

jus civile.”34

Tal situação perdurou até a Igreja católica, baseada na ascensão pela qual

passava o cristianismo na época, interferir na instituição matrimonial, concentrando

em suas mãos poderes absolutos na regulamentação da matéria. Assim, é a partir dos

séculos XII e XIII que o casamento passa a ser juridicamente estruturado, ostentando a

Igreja autonomia e exclusividade na produção de normas referentes ao instituto, época

esta onde surge também o direito canônico.

Como visto, devido a interferência promovida pela Igreja católica, o

casamento romano passa a ser tratado de forma diversa, transformando-se em

sacramento (sacramentum), correspondendo a união indissolúvel dos nubentes perante

Deus, encontrando-se até mesmo acima do próprio Estado, que não interferia no

instituto.

A normatização da matéria nos moldes dos ideais canônicos, deu-se apenas

com a edição do Concílio de Trento, que vigorou de 1545 a 1563, através do qual

foram instituídos os requisitos que outorgavam validade ao matrimônio, que nos

34 Ana Elizabeth Lapa Wanderley, Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 31.

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dizeres de Washington de Barros Monteiro35, resumiam-se em: “expedição de

proclamas, publicados por três vezes no domicílio dos contraentes; celebração pelo

pároco, ou outro sacerdote, na presença de duas testemunhas pelo menos; expresso

consentimento dos nubentes e coroamento da cerimônia com a benção nupcial.”

Como forma de ilustrar o poder absoluto que a Igreja detinha na regulação

da matéria, ressalte-se o fato de que, caso a validade do casamento fosse contestada,

deveria-se recorrer à jurisdição eclesiástica, sob pena de excomunhão.

Surge, porém, um grande problema no fim da Idade Média: o conflito entre

os tribunais civis e religiosos em relação à competência em matéria de direito de

família. Assim, a hegemonia católica cai por terra com o surgimento da Reforma,

conflito religioso do século XVI que deu origem às igrejas protestantes marcando o

nascimento de três correntes: a luterana, a calvinista e a anglicana, trazendo reflexões

sobre a teologia da época e influenciando a matéria matrimonial.

Os protestantes alegavam que a competência em direito de família devia

pertencer ao Estado, visto tratar-se o casamento de mero ato da vida civil, sendo

injusta atribuir a ele caráter sacramental.

Neste passo, torna-se difícil explicitar a revolução operada pelos

reformadores, liderados principalmente por Lutero (1483-1546), visto que realizaram

uma das maiores transformações sociais, políticas e religiosas de todos os tempos, que

culminou na separação entre Estado e Igreja, gerando na matéria uma modificação

igualmente importante com a subordinação do casamento às leis civis, de iniciativa do

Estado, e não mais ao direito canônico, este que, entretanto, serviu de base para

legiferância posterior do tema.

Ante as mudanças sociais ocorridas, a maioria dos países deixou de

considerar o casamento religioso. “O primeiro país a dar esse passo foi a Inglaterra, ao

tempo de Cromwell. No dizer de Jemolo, tal ato é a primeira grande afirmação do

direito do Estado no sentido de regular inteiramente o instituto.”36

35 Curso de direito civil: direito de família, v.2, p. 15. 36 Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil: direito de família, v.2, p. 16.

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Entretanto, o matrimônio civil, prescindindo totalmente do caráter religioso,

torna-se obrigatório pela primeira vez somente com o Código Civil Napoleônico de

1804.

Assim é que nasce o casamento civil tal qual conhecemos hoje e que tem

sido adotado pela legislação da maioria dos Estados.

2.1.1 Histórico e evolução do casamento em Portugal e no Brasil. Do casamento

religioso ao casamento civil.

Segundo Arnoldo Wald37, antes de vigorar o Concílio de Trento no direito

português, existiam três tipos de casamento considerados válidos. O primeiro realizado

perante a autoridade religiosa. O segundo, denominado de marido conhecido, tinha

como principais características a coabitação, o tratamento recíproco de marido e

mulher que um cônjuge destinava ao outro e a publicidade dessa união perante a

sociedade, não havendo, entretanto, a intervenção da autoridade eclesiástica na

constituição do vínculo. Por fim, a espécie menos aceita pela sociedade da época,

chamado “à consciência ou à morganheira”38, que caracterizava-se pela não

publicidade da união, vivendo os cônjuges maritalmente de forma marginal à lei, visto

que esta não aprovava tal tipo de união.

O Concílio de Trento, assim que começou a vigorar, causou impacto na

seara jurídica devido as mudanças que realizou. Ante esta repercussão, Portugal,

através do alvará publicado em 12 de Setembro de 1564, mandou que em todos os

domínios da Monarquia Portuguesa, incluindo-se o Brasil, recém descoberto, fossem

obedecidas as normas declinadas no referido Concílio.

Em 1603, a Lei de 11 de Janeiro mandou que fossem observadas as

Ordenações Filipinas referentes à matéria, o que sem dúvida enfraqueceu o domínio

exercido pela Igreja.

37 Direito de família, p. 52. 38 Arnoldo Wald, Direito de Família, p. 32.

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Como as Ordenações divergiam em alguns pontos do Concílio de Trento,

baseado no direito canônico, levantou-se na época uma discussão no sentido de ter as

Ordenações revogado as referidas regras eclesiásticas.

Enquanto não se chegava a um consenso, o Brasil, colônia de Portugal,

através da Lei de 20 de Outubro de 1823, manteve em vigor a legislação portuguesa,

baseada principalmente nas Ordenações.

Definida a discussão, o Brasil, com o Decreto de 03 de Novembro de 1827,

determinou fossem observadas as disposições do Concílio de Trento e a Constituição

do Arcebispado da Bahia, fazendo prevalecer a eficácia do casamento canônico, vez

que quase todos os brasileiros eram católicos.

Entretanto, junto com a imigração em crescimento na época, vieram novas

crenças, passando a ser necessário “a decretação de outra forma de casamento, mais

compatível com as circunstâncias”39.

Nessa esteira, foi apresentado em 1858, projeto de lei com fim de

estabelecer a realização do casamento das pessoas que não seguiam a religião do

Estado de acordo com suas próprias crenças, culminando em 11 de setembro de 1861

na Lei n. 1.144, regulamentada pelo Decreto de 17 de Abril de 1863, que regulava o

casamento dos não-católicos, que podia ser celebrado segundo a religião dos nubentes,

sendo o impulso inicial para o estabelecimento do casamento civil.

De acordo com Maria Helena Diniz, “praticavam-se, então, três tipos de ato

nupcial: o católico, celebrado segundo normas do Concílio de Trento de 1563, e das

Constituições do Arcebispado baiano; o misto, entre católico e acatólico, sob a égide

do direito canônico; e o acatólico, que unia pessoas de seitas dissidentes, de

conformidade com os preceitos das respectivas crenças”40.

Mesmo com a proclamação da República em 1889, perdurou o matrimônio

religioso até o Dec. 119-A de 07 de janeiro de 1890, que retirou-lhe o caráter

sacramental, abrindo caminho para a instituição do casamento civil no Brasil através

do Decreto n. 181 de 24 de janeiro de 1890, corroborado pela Constituição Federal de

39 Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil: direito de família, v.2, p. 16. 40 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5, p. 53.

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189141, não mais reconhecendo valor jurídico ao matrimônio celebrado nos moldes da

Igreja consagrando de vez a competência do Estado na normatização do tema.

Como o Código de Clóvis foi inspirado no Código Civil francês,

logicamente consolidou e reconheceu como válido exclusivamente o casamento civil,

seguindo os passos do Código Civil Napoleônico de 1804 e da Constituição Federal

brasileira de 1891 que já tratavam do assunto.

Entretanto, o casamento religioso mantinha-se arraigado na cultura social

da época, revelando-se necessário uma adequação no sistema de constituição da

família calcado no matrimônio.

É devido aos anseios da população, principalmente e de maioria católica,

que o Estado prevê, no artigo 14642 da Carta Magna de 1934, a possibilidade de

atribuir efeitos civis ao casamento religioso.

“Note-se que o casamento considerado válido era o civil. O Estado apenas

possibilitou que a Igreja o celebrasse, devendo, contudo, observar a legislação

elaborada pelo próprio Estado [...]”43.

No entanto, somente em 1937, com a Lei n. 37944, é que o casamento

religioso com efeitos civis foi realmente regulamentado, sendo parcialmente alterada

pelo Decreto-Lei n. 3.200/4145.

41 “Art. 72. [...] [...] § 4º - A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.” 42 “Art 146 - O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento perante ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que, perante a autoridade civil, na habilitação dos nubentes, na verificação dos impedimentos e no processo da oposição sejam observadas as disposições da lei civil e seja ele inscrito no Registro Civil. O registro será gratuito e obrigatório. A lei estabelecerá penalidades para a transgressão dos preceitos legais atinentes à celebração do casamento.” 43 Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 36. 44 Dispõe a referida Lei: “Art. 1º Aos nubentes é facultado requerer, ao juiz competente para a habilitação conforme a lei civil, que seu casamento seja celebrado por ministro da Igreja Católica, ao culto protestante, grego, ortodoxo, ou israelita, ou de outro cujo rito não contrarie a ordem publica ou os bons costumes.” [...] 45 As principais alterações estão arroladas no Capítulo II do citado Decreto-Lei: “CAPÍTULO II DO CASAMENTO RELIGIOSO COM EFEITOS CIVÍS Art. 4º São adotadas as modificações seguintes no texto da lei n. 379, de 16 de janeiro de 1937 : I. A ementa passa a ser esta: "Regula o reconhecimento de efeitos civís ao casamento religioso". II. No § 5º do art. 4º, são substituidas as palavras "á data da anotação tomada pelo oficial, nos termos do § 3º", pelas seguintes: data da celebração". III. É acrescentado ao art. 4º o parágrafo seguinte: "§ 7º O oficial do registro acusará o recebimento da comunicação a que se refere § 2.º do art. 3.º, indicando a data da inscrição do casamento, assim como o número do livro e da folha, em que fez o assentamento. " IV. Fica o art. 11assim redigido: "As ações de nulidade ou de anulação dos efeitos civís do casamento celebrado por ministro religioso obedecerão exclusivamente aos preceitos de lei civil e serão processadas nos juizos ordinários". É conservado, como está, o parágrafo único deste artigo.

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A Constituição Federal de 194646, bem com a de 1967, com redação dada

pela Emenda Constitucional n.1 de 196947, não foram diferentes no trato do assunto,

apenas condicionando a atribuição de ditos efeitos à obediência dos impedimentos.

A referida linha legislativa já havia sido regulamentada pela Lei 1.110 de

23 de maio de 1950, que mantendo a atribuição daqueles efeitos, previu, dentre outras

disposições, a necessidade de habilitação civil prévia ou posterior ao ato religioso para

o seu reconhecimento perante a ordem jurídica.

A matéria passou a ser regulamentada pela então recém promulgada Lei

6.015/73, conhecida como Lei dos Registros Públicos, tendo sido igualmente prevista

pelo artigo 226, §§ 1º e 2º da Constituição brasileira de 1988.

Até 1977, o casamento, civil ou religioso com efeitos civis, era considerado

indissolúvel, como já apontado, devido às influências da Igreja. Contudo, com a

entrada em vigor da Lei 6.515/77, passou-se a admitir a quebra do vínculo conjugal

pelo divórcio, além das formas já previstas em lei.

O Código Civil de 2002 manteve todas as disposições acerca do tema até

agora apontadas, tratando da atribuição de efeitos civis ao casamento religioso em seus

artigos 1.515 e 1.516 e da dissolução do matrimônio através do divórcio no artigo

1.571, inciso IV.

Art. 5º O certificado de habilitação para casamento, expedido pelo oficial do registro, poderá ser aceito por qualquer ministro religioso como prova plena dos requisitos da lei civil, sem prejuízo do prova dos demais requisitos exigidos pela sua confissão. 46 “Art. 163 - A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado. § 1º - O casamento será civil, e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no Registro Público. § 2º - O casamento religioso, celebrado sem as formalidades deste artigo, terá efeitos civis, se, a requerimento do casal, for inscrito no Registro Público, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente.” 47 “Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Podêres Públicos. § 1º O casamento é indissolúvel. § 2º O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e prescrições da lei, o ato fôr inscrito no registro público, a requerimento do celebrante ou de qualquer interessado. § 3º O casamento religioso celebrado sem as formalidades do parágrafo anterior terá efeitos civis, se, a requerimento do casal, fôr inscrito no registro público, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente.”

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2.2 Considerações iniciais acerca da natureza jurídica do casamento.

Outro tema muito controvertido do direito de família é o referente à

natureza jurídica do casamento. Desde que o instituto foi regulamentado, muitas

dúvidas surgiram de forma a dividir a doutrina até os dias atuais.

Na verdade a grande discussão reside em saber qual o momento de

formação do casamento, o que acaba interferindo em sua natureza jurídica.

As opiniões dos autores ao tratarem do assunto se resumem basicamente em

três correntes, cada uma com suas peculiaridades, e nenhuma podendo ser considerada

totalmente desconexa com as características e os princípios norteadores do instituto.

2.2.1 Teoria Contratualista

Também conhecida na doutrina como clássica ou individualista48, é a mais

antiga entre as existentes, prevista primitivamente na Roma Antiga, haja vista a

necessidade do acordo dos nubentes para casar e permanecer casados, além de ter sido

adotada com a regulamentação do casamento efetuada pelo direito canônico, uma vez

que este o considerava concomitantemente contrato e sacramento.

Para os adeptos desta teoria49, o casamento estabelece entre as partes um

vínculo jurídico de natureza contratual, gerando entre os cônjuges os efeitos de um

verdadeiro “contrato civil”50, sendo regido pelas normas comuns a todos os contratos.

De acordo com os contratualistas, para a constituição do vínculo

matrimonial, basta a declaração de vontade dos nubentes, prescindindo da declaração

civil emanada da autoridade pública competente, considerando-a mera formalidade.

48 Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil: direito de família, v.2, p. 12. 49 Filiam-se à natureza contratual do matrimônio, considerando-o um contrato de direito de família: Caio Mario da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, p. 40-41; Orlando Gomes, Direito de família; J.M. de Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, p. 12; Lamartine Corrêa de Oliveira e Ferreira Muniz, Direito de família: direito matrimonial, p. 121; Clóvis Beviláqua, Código Civil Comentado, § 6º, v. 2; Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, p. 209-210; entre outros. 50 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5, p. 42; Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil: direito de família, v.2, p. 13.

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A idéia de tratar o casamento como um contrato puro, foi abrandada,

posteriormente, por parte da doutrina, que argumenta tratar-se o casamento realmente

de um contrato, entretanto, “contrato com feição especial, a que não se aplicam as

disposições legais dos negócios de direito patrimonial que dizem respeito: (a) à

capacidade dos contraentes; (b) aos vícios de consentimento; (c) aos efeitos”51.

Existe a opinião, mesmo que minoritária de alguns autores, que consideram

o casamento um contrato de adesão, visto que os nubentes não podem modificar a

disciplina do matrimônio, que é fixada na lei e pela lei. “Neste sentido, o casamento é

um verdadeiro contrato de adesão, ou a ele se assemelha: as partes são livres de

contratar ou não; mas, se o fazem devem se subordinar às normas do instituto, não lhes

sendo lícito modificá-lo”52. Entretanto, tal concepção não é aceita, uma vez que, de

certa forma, define e caracteriza o casamento de forma semelhante à teoria

institucionalista.

2.2.2 Teoria Institucionalista

Por outro lado, para a teoria institucionalista, também denominada supra-

individualista53, desenvolvida na França no início do século XX, o casamento surge

como uma “instituição social”54, ou nos dizeres de Washington de Barros Monteiro,

“um estado, o estado matrimonial, em que os nubentes ingressam”55.

Os institucionalistas56 determinam que o casamento não é um contrato

propriamente dito, pois é formado por normas cogentes (normas de ordem pública)

que predeterminam seus efeitos, ou seja, os contraentes apenas aceitam ou não as

normas impostas, não podendo alterar os direitos e obrigações delas decorrentes.

51 Orlando Gomes, Direito de Família, p. 50. 52 Luiz José de Mesquita, Nulidades no Direito Matrimonial: a condição, a simulação e a reserva mental no direito canônico e no Direito Civil, p. 34. 53 Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil: direito de família, v.2, p. 13. 54 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5, p. 43. 55 Curso de Direito Civil, v.2, p. 13. 56 Entre os que defendem esta concepção: Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5, p. 44; Arnoldo Wald, Direito de Família, p. 54; Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, v.2, p. 13; entre outros.

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Portanto, para esta corrente, a instituição matrimonial está acima da vontade

das partes, ou seja, o que está estabelecido na lei não é passível de transação.

2.2.3 Teoria Mista

Com o intuito de pôr fim a contenda travada entre contratualistas e

institucionalistas, Roust57 cria uma nova teoria, também denominada eclética, a qual

poderíamos caracterizar como intermediária ou como a soma das duas anteriores.

O referido autor considera o casamento como um ato complexo, ou seja, ao

mesmo tempo contrato e instituição. Trata-se de contrato no momento de sua

formação, onde prevalece o elemento volitivo, e de instituição no seu conteúdo, ante

ao já explanado caráter cogente das normas que o regulam, ou como bem pondera

Washington de Barros Monteiro, “[...] é mais que um contrato, porém não deixa de ser

contrato também”58.

Particularmente a teoria eclética de Roust ora explicitada nos parece mais

adequada à realidade do instituto, uma vez que esta agrega os principais pontos tanto

da teoria contratualista como da institucionalista. Além do mais, considerar o

casamento, instituição tão grandiosa que tem sobrevivido ao longo de séculos,

retratando as características e ao mesmo tempo sendo forma de constituição da família,

base da sociedade, como simples contrato, seria restringir demais os seus fins. Em

contrapartida, considerar o casamento apenas como instituição, é esquecer de seu

elemento constitutivo, comum a qualquer espécie de contrato, qual seja, a vontade das

partes, o que claramente não o exclui do âmbito desta teoria.

57 Citado Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5, p. 44 e Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil: direito de família, v.2, p. 13. 58 Curso de Direito Civil: direito de família, v.2, p. 13.

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2.3 Conceito de casamento

Apesar das clássicas definições romanas59, a acirrada divergência

doutrinária acerca de sua natureza jurídica, e, ainda, por ser o casamento composto,

assim como a família, de elementos e valores que variam de acordo com a época e a

sociedade em que é analisado, torna-se difícil conceituá-lo genericamente de forma a

abarcar todas as concepções inseridas no bojo das correntes citadas.

Neste passo, cabe ressaltar as lições de João Batista de Oliveira Cândido,

citado por Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, no sentido de que “[...] toda e

qualquer definição sobre casamento sofrerá, ao longo do tempo, alteração

significativa, seja em face do enfoque que a ele se dê: como instituição, contrato ou

como ato; seja em razão de modificações sofridas pela própria família e logicamente

da própria sociedade. [...] De igual modo, se a estrutura familiar se apresenta diferente,

estas alterações passam a ter influência na compreensão do instituto do matrimônio.” 60

Assim, a título de exemplo, e também como forma de reforçar o caráter

divergencial que prevalece na doutrina, destacaremos as definições de autores adeptos

de uma e de outra teoria.

Maria Helena Diniz, filiada ao institucionalismo, conceitua o casamento

“como uma grande instituição social, refletindo uma situação jurídica que surge da

vontade dos contraentes, mas cujas normas, efeitos e forma encontram-se

preestabelecidos pela lei”61.

Já para o ilustre mestre J.M. de Carvalho Santos, citando Spencer Vampré,

“casamento, ou matrimônio, é o contrato pelo qual o homem e a mulher se unem para

sempre, sob promessa de fidelidade no amor, de assistência recíproca e dos filhos, e da

mais estreita comunhão de vida”62.

59 A primeira é atribuída a Modestino : Nuptiae sunt coniunctio maris et feminae et consortium omnis vitae, divini et humani iuris communicatio (Digesto 23.2.1). A outra à Justiniano: Nuptiae sive matrimonium est viri et mulieris conjunctio, individuam consuetudinem vitae continens (Institutas. 1.9.1) 60 CANDIDO, João Batista de Oliveira. “Casamento”. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Direito de família contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, apud Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 26. 61 Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5, p. 43. 62 Código Civil Brasileiro Interprestado, p. 11.

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Portanto, devido a impossibilidade em estabelecer uma conceituação

suficientemente própria ao instituto, acreditamos ser mais importante traçar suas

principais características, na tentativa de entendê-lo sob a ótica da realidade social na

qual está inserido.

2.4 Princípios do direito matrimonial

Como em todos os ramos do saber jurídico, o direito de família, mais

especificamente no campo matrimonial, também é composto por princípios que lhe

orientam.

Miguel Reale, com a maestria que lhe é habitual, já conceituava os

princípios como “certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base de

validade das demais asserções que compõem dado campo do saber”63.

Apesar de não constarem explícitos na norma, os princípios podem ser

claramente evidenciados, uma vez que a norma neles foi baseada para formar seu

conteúdo.

Da análise das leis referentes ao casamento, podem ser extraídos quatro

princípios que, de uma forma ou outra, estão presentes nas regras matrimoniais.

Ao tratar do instituto, o primeiro que nos salta aos olhos é o princípio da

união monogâmica, que dita ser o casamento uma união exclusiva, assumida entre

homem e mulher, não podendo qualquer dos cônjuges manter com terceiros, qualquer

relação assemelhada à marital. Este princípio também serviu de base ao dever de

fidelidade recíproca previsto no artigo 1.566, I do Código Civil.

Dada a importância deste princípio, até mesmo o direito penal dispensou

especial atenção com vistas à sua proteção ao punir o crime de bigamia e adultério

(artigos 235 e 240 do Código Penal, respectivamente).

O princípio da autonomia privada, por sua vez, pode ser traduzido na

liberdade concedida em alguns casos pela lei às pessoas, podendo estas agir da

63 Miguel Reale, Lições preliminares de direito, p. 299.

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maneira como melhor lhes convier, desde que não contrariem as disposições legais

com seus atos, ou seja, a pessoa tem autonomia para agir de acordo com sua própria

vontade até o limite que a norma lhe faculta. “Trata-se, então de uma autonomia de

vontade ‘limitada’, em que a ordem pública em determinadas situações deverá ser

superior”64.

Em matéria matrimonial, o princípio ora explanado já era previsto ao tempo

da Declaração Universal dos Direitos Humanos, sendo considerado como um direito

fundamental do homem, senão vejamos:

“Artigo 16º

1. A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de

casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça,

nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua

dissolução, ambos têm direitos iguais.

2. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno

consentimento dos futuros esposos. [...].”

Bem colocados são os ensinamentos de José Lamartine Corrêa de Oliveira e

Francisco José Ferreira Muniz citados por Ana Elizabeth Lapa Wanderley

Cavalcanti65:

“O princípio da autonomia privada está presente em matéria

matrimonial na liberdade de casar-se, na liberdade de escolha do

cônjuge, e também, vistas as coisas pelo ângulo reverso, na

liberdade de não se casar. No plano dos efeitos patrimoniais do

casamento, através do pacto antenupcial, têm os cônjuges liberdade

de escolha do regime de bens a vigorar em seu casamento. Quanto

aos efeitos pessoais do casamento, a regra geral é a da

indisponibilidade, principalmente no que diz respeito aos aspectos

essenciais do casamento”.

64 Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 104. 65 Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 103.

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Assim, vê-se que no casamento, determinadas situações deverão ser regidas

estritamente pelo comando da norma, como é o caso dos elementos essenciais e

formadores do casamento, e em outras, a vontade dos interessados deve prevalecer.

Já o princípio da dissolubilidade do vínculo conjugal, previsto no

mencionado artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e também no

artigo 1571, § único do Código Civil, dita não se tratar o casamento de uma união

perpétua, vez que, ocorrendo alguma das causas que ensejam o seu fim66, poderá ser

dissolvido, gerando a possibilidade das partes contraírem novas núpcias.

Ressalte-se que no Brasil, até 1977 o casamento era considerado

indissolúvel. Entretanto, com o crescimento em alta escala das uniões concubinárias, à

época consideradas amorais, o legislador editou a Lei 6.515, que entrando em vigor

naquele ano, estabeleceu nova possibilidade de quebra total do vínculo conjugal

através do divórcio.

Por fim, nos cumpre explanar o princípio do favor matrimonii, pouco

difundido na doutrina civilista e que teve origem no direito canônico. Tal enunciado,

de acordo Sílvio de Salvo Venosa, dita que o legislador, ao regular o casamento, deve

conceder-lhe proteção especial para a conservação de seu caráter institucional. E

continua aludido professor, “É levado em conta, nesse aspecto, que a nulidade de um

matrimônio pode acarretar a dissolução de uma família, ocasionando a irregularidade

da união dos cônjuges e a filiação ilegítima. De tal modo, cabe ao intérprete considerar

essa filosofia que se traduz na prática no brocardo in dúbio pro matrimonio”67.

Assim, vemos que o legislador tomou todas as precauções possíveis na

regulação do instituto, que, como já ressaltado, até os dias atuais tem sido a principal

forma de constituição familiar.

66 De acordo com o § único do artigo 1.571 do Código Civil, as causas dissolutivas do vínculo conjugal são o divórcio ou a morte de um dos cônjuges. 67 Direito Civil: direito de família, v.6, p. 122.

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2.5 Condições e caracteres essenciais à existência, validade e regularidade do

matrimônio.

Para atribuir ao casamento o valor jurídico que lhe é inerente, devem ser

respeitadas determinadas condições para que reste configurado como ato jurídico

válido e eficaz. Assim, a existência do matrimônio depende basicamente da obediência

de seis requisitos principais: solenidade do ato, capacidade para o casamento,

consentimento livre e consciente, competência da autoridade celebrante, diversidade

de sexos e inexistência de impedimentos.

Na quase totalidade dos ordenamentos jurídicos existentes, o casamento,

desde os tempos de sua instituição, tem sido a principal forma de constituição da

família, célula-mãe da sociedade. No Brasil, essa característica não é diferente, apesar

das novas formas de família previstas pela Constituição de 1988.

E foi com o intuito de “padronizar” a formação da família, que o Estado

tratou de formular regras básicas a serem seguidas para que qualquer casamento, ao ser

realizado em qualquer parte de seu território, pudesse ter a mesma validade e gerar os

mesmos efeitos.

Por isso, o casamento é caracterizado como ato civil solene, pois para ser

considerado válido, eficaz e produzir os efeitos esperados, devem ser obedecidas

certas formalidades.

Justifica-se esse formalismo, pois uma vez existindo circunstância contrária

às regras legais, o casamento padece de defeito, podendo até mesmo ser considerado

nulo.

Esse procedimento de constituição do vínculo matrimonial pode ser

dividido em três fases: habilitação (artigo 1.525 a 1.532 CC), celebração (artigo 1.533

a 1.542 CC) e registro (artigo 1.543 CC).

A habilitação, que tramita perante o Cartório de Registro Civil, visa

principalmente averiguar o atendimento das exigências legais para a celebração do

matrimônio. É nesta fase que se analisa a competência da autoridade que vai celebrá-

lo, a capacidade dos nubentes, o quão livre é o seu consentimento, bem como se há ou

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não impedimentos, causas suspensivas ou de anulabilidade que prejudiquem a

realização do ato.

Para aferir a capacidade matrimonial68, utiliza-se como critério principal a

idade dos nubentes. O código vigente, em seu artigo 1.517, fixou a idade núbil em 16

(dezesseis) anos, tanto para o homem como para a mulher69. Para sua fixação, o

legislador levou em consideração o momento em que normalmente as pessoas

encontram-se aptas para a procriação70.

Apesar de proibido o casamento de menores de dezesseis anos, já que esta é

causa de anulabilidade do casamento (artigo 1.550, I, CC), de acordo com o artigo

1.520 do Código Civil, ele poderá ocorrer em dois casos somente: “para evitar

imposição e cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez”.

Para que o casamento se concretize, os nubentes, após serem considerados

capazes, devem expressar sua vontade positiva para tanto, ou seja, é através do

consentimento que as partes demonstram a intenção de iniciar e permanecer em

comunhão de vida sob a égide do matrimônio. Mas não basta o simples consentimento.

O Código Civil bem ressalta em seu artigo 1.535 que ele deve ser livre71, sob pena de

ser o casamento posteriormente anulado por vício da vontade, nos termos dos artigos

1.550, 1.556 e 1.558 do mesmo diploma legal.

Também como conseqüência do caráter solene do casamento, deve este ser

celebrado perante autoridade pública competente, que é a responsável por sua

realização nos moldes legais. No Brasil, de acordo com Maria Helena Diniz72, na

maioria do Estados brasileiros, a autoridade competente para realizar casamentos é o

juiz de paz, e no Estado de São Paulo, o juiz de casamentos.

68 “A capacidade núbil ou capacidade para matrimônio não é a mesma capacidade civil. Pode acontecer de a pessoa ter capacidade civil e não ser apta para o casamento civil e a lei permitir que se case mesmo não possuindo capacidade civil de forma ampla”. Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, Casamento e União Estável: requisitos e efeitos pessoais, p. 95. 69 No Código Civil de 1916 a idade mínima exigida para o casamento, de acordo com o artigo 183, XII, era de 16 (dezesseis) anos para a mulher e 18 (dezoito) para o homem. 70 Ressalte-se que a procriação não é elemento essencial do casamento, mas apenas uma de suas finalidades possíveis, vez que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, § 7º, corroborada pelo § 2º do artigo 1.565 do novo Código Civil, prevê que a decisão de ter ou não filhos é exclusiva do casal. 71 Merece destaque o já citado artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos Humanos que assim dispõe: “[...] 2. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos. [...]” 72 Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5, p. 98.

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Um dos principais fatores que tornam o casamento existente73 no mundo

jurídico é a diversidade de sexo dos nubentes.

O casamento, desde seus primórdios, tem sido entendido como a união

entre homem e mulher com plena comunhão de vida. Tal condição, por alguns74

considerada a única necessária, ainda é mantida sob alegação de que as pessoas ao

unirem-se em matrimônio, buscam a realização pessoal em todos os seus âmbitos,

sendo uma dessas formas de realização a procriação, que é impossível em uma relação

entre pessoas do mesmo sexo.

Assim, ante a impossibilidade de procriação, fato este corroborado por

razões morais, sociais, e por que não preconceituosas, o casamento homossexual não é

aceito em nossa nação75.

Apesar da ainda predominante recusa em aceitar o matrimônio de pessoas

do mesmo sexo, atualmente, alguns sistemas jurídicos vêm mudando esta

perspectiva76, passando a considerar o casamento homossexual como forma legítima

de constituição familiar.

73 Neste passo, cabe uma breve explanação acerca da teoria do casamento inexistente, surgida na França no século XIX, que teve como seu criador e expoente o jurista Zachariae. Baseada no princípio de que não pode haver nulidade de casamento sem texto legal que o permita, dita que se determinado fato, sobremaneira prejudicial à constituição do matrimônio, não estiver elencado na lei como causa de nulidade do casamento, este não poderá ser considerado nulo, uma vez que não há previsão expressa que o invalide. Essa teoria surgiu com intuito de suprir as carências legais em casos extremos nos quais a teoria das nulidades não se adequa satisfatoriamente às hipóteses. Aplicando-se a teoria ora versada, somente em três casos o matrimônio será considerado inexistente, quais sejam, identidade de sexo dos nubentes, ausência total de consentimento e inexistência de celebração (ou de autoridade celebrante). O Código Civil, no artigo 1.514 prevê: “O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados”. Assim, de acordo com este artigo, considera-se existente o casamento desde que se reúnam os seguintes pressupostos: diversidade de sexos, consentimento dos nubentes e celebração por autoridade pública que não seja absolutamente incompetente. Basicamente, o que difere o casamento inexistente do nulo ou anulável, é que estes últimos, mesmos que viciados, produzem efeitos, ou melhor, são considerados existentes no mundo jurídico, enquanto que o primeiro é considerado um “nada jurídico”, nas palavras de Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil: direito de família, v.6, p. 43 e Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5, p. 57. 74 Na opinião de J.M. de Carvalho Santos: “O casamento, já o disse um memorável aresto da Corte de Apelação de Caen (16 de março de 1882), o consortium omnis vitae, é antes de tudo a união de duas pessoas inteligentes e morais, que deve ser contratada entre um homem e uma mulher; esta condição é a única necessária e basta para sua existência. [...]” Código Civil Brasileiro Interprestado, p. 12. 75 Ressalte-se também a existência do projeto de Lei nº 1.151/95, de autoria da então Deputada Marta Suplicy, que visa legalizar a união civil de homossexuais, encontrando-se atualmente fora da pauta de votação do Congresso Nacional. 76 O periódico Folha de São Paulo fez uma reportagem em sua edição n. 27.645, de 10 de Dezembro de 2004, p. A 12, sob o título “Supremo do Canadá libera casamento gay”, onde destaca: “A Suprema Corte do Canadá resolveu ontem que o casamento entre homossexuais é constitucional e pode ser permitido em todo o país, abrindo caminho para que o Parlamento vote projeto de lei do governo sobre o tema. Segundo a corte, o Estado não pode forçar, porém, que autoridades religiosas celebrem casamentos entre pessoas do mesmo sexo, em respeito a sua liberdade de credo. [...] Juízes de 6 das 10 Províncias e de 1 dos 3 territórios canadenses já haviam permitido a realização de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, julgando discriminatória a definição tradicional do casamento como uma união entre duas pessoas de sexos diferentes.” A aludida Corte consubstancia sua tese nos seguintes argumentos: “ ‘Vários séculos atrás, seria compreensível que o casamento estivesse disponível apenas a casais do sexo oposto. O reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo em

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Evidentemente, trata-se de tema da mais alta importância ante as diversas

conseqüências geradas por uma união desta natureza ainda não regulada por nosso

direito.

Hodiernamente, os pretórios brasileiros têm concedido apenas efeitos

obrigacionais a estas uniões, alegando não se tratar de união legítima de direito de

família77.

Por serem os impedimentos matrimoniais o objeto deste estudo, serão

tratados oportunamente em capítulo próprio, de forma mais completa e aprofundada.

Ressalte-se que o legislador, seguindo a tradição canônica, adotou o sistema

de enumeração de impedimentos ao invés de dispor acerca dos requisitos necessários

ao matrimônio. Por isso, ante a forma de sistematização dos preceitos, as

nomenclaturas, bem como a forma de disposição do assunto na doutrina difere de autor

para autor.

Assim, resumidamente, vemos que o matrimônio se constitui através da

equação vontade e consentimento livre das partes mais obediência às regras e

formalidades próprias para existência e validade.

diversas jurisdições canadenses, assim como em dois países europeus, desmente a assertiva de que o mesmo é verdade hoje.[...]”, e continua a matéria, “ Na Europa, o casamento gay é legal na Holanda e na Bélgica. O governo socialista da Espanha apresentou neste ano um projeto de lei para legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. [...] Ontem, o Parlamento da Nova Zelândia aprovou lei que reconhece a união civil entre gays e casais heterossexuais como equivalente ao casamento no que diz respeitos aos direitos do casal, como a custódia dos filhos e os direitos de propriedade. [...]” 77 “Sociedade de fato – Relação Homossexual – Meação – Pretensão à extensão a todos os bens do falecido convivente – Simples sociedade de afeto mantida entre parceiros do mesmo sexo que não induz efeitos patrimoniais, à falta de normatização específica – Inexistência de respaldo a legitimar a aplicação analógica da Constituição da República de 1988 ou legislação ordinária que regulamente a união estável, de modo a conferir direito de herança ao apelante – Ruptura do liame informal que gera conseqüências meramente no âmbito do Direito das Obrigações – Presença dos pressupostos do artigo 1.363 do Código Civil – Necessidade da aferição da contribuição de cada um dos sócios para proceder à partilha na proporção de seus esforços na proporção de seus esforços – Recurso parcialmente provido” (TJSP – Ap. Cível 179.953-4, 26-02-02, 10ª Câmara de Direito Privado – Rel. Paulo Dimas Mascaretti)

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3. DOS IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS

3.1 Aspectos históricos e evolutivos dos impedimentos. Roma: o início.

Pode-se dizer que os impedimentos matrimoniais surgiram de forma

primitiva no direito romano. Conforme já exposto, na Roma antiga, para que o

casamento fosse reconhecido pelo direito quiritário, era necessário que os nubentes

possuíssem capacidades de fato (física e moral) para o ato, jurídica para o matrimônio,

além de externar seu consentimento78. Contudo, nem todos ostentavam tais

características, visto que à época, devido à severa distinção entre classes sociais,

reconhecia-se tal capacidade unicamente aos cidadãos romanos. Às classes dos

estrangeiros e dos escravos, eram reservados outros tipos de uniões, tratadas como

“menores”, como o concubinato e contubernium, respectivamente.

Com isso, quem não fosse cidadão romano estava automaticamente

impedido de contrair o casamento juridicamente reconhecido, mesmo preenchendo os

outros dois requisitos.

Conforme lição de Thomas Marky, o direito romano ainda arrolava outras

circunstâncias geradoras de impedimento, quais sejam:

“a) a loucura, por implicar falta de capacidade de fato; b) a

existência de liame matrimonial, visto que o casamento romano era

estritamente monogâmico; c) a consangüinidade entre os nubentes

na linha reta sem restrições e na linha colateral até o terceiro grau;

d) o parentesco adotivo enquanto existente; e) a diferença de classes,

pois entre ingênuos e mulheres taxadas de infames ou entre pessoas

de classe senatorial e da dos libertos havia proibição de casamento;

f) a condição de soldado em campanha; g) a relação jurídica entre

tutor e sua pupila; h) também era proibido o casamento do

78 Todas as vezes que o nubente estivesse subordinado a um pater, era deste o consentimento consultado.

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governador de província e de outros magistrados com mulheres

residentes no território onde exerciam jurisdição.”79

Ao analisar as restrições matrimoniais romanas, vê-se que algumas delas

serviram de molde para legislações posteriores, perdurando até hoje inclusive em

nosso ordenamento jurídico.

3.1.1 Direito canônico: a sistematização.

Apesar das primeiras previsões efetuadas pelo direito romano acerca do

tema, é ao direito canônico que devemos a sistematização da matéria, com a criação no

século XII80 da teoria dos impedimentos matrimoniais, reproduzida, ora integralmente,

ora com algumas variações, por grande parte dos ordenamentos jurídicos que se

seguiram.

A teoria canônica dos impedimentos tinha como pressuposto a liberdade

natural para o casamento, ou seja, este era tratado como um direito natural inerente ao

próprio homem.

Entretanto, apesar do princípio do casamento como direito natural, os

canonistas viram-se diante da necessidade em estabelecer certas restrições ao

matrimônio, pois devido sua elevação à condição de sacramento, tornou-se

indissolúvel e uma vez instituído o vínculo, mesmo com defeitos, impossível era sua

dissolução, o que poderia acarretar diversos prejuízos à família, já que o casamento era

sua principal forma de constituição.

Assim, se a qualquer pessoa era assegurada possibilidade de convolar

núpcias, o mais lógico era estabelecer quais as hipóteses em que o matrimônio não

podia ser realizado e não o contrário, ou seja, instituir quais as condições ou requisitos

necessários para o ato81, sendo pois, esse o motivo pelo qual a legislação brasileira não

79 Ob. cit. 162 80 De acordo com Antônio Chaves, os impedimentos foram introduzidos “na técnica canônica no século XII por Rolando Bandinelli e Bernardo de Pavia”. Antonio Chaves, Tratado de Direito Civil, v. 5, p. 93. 81 Tal doutrina resultou no Cânone 1.058 que assim dispõe: “ Pueden contraer matrimônio todos aquellos a quienes el derecho no se lo prohibe”. <www.vatican.va/archive/ESL0020/_P3U.HTM>

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dita as condições matrimoniais de forma taxativa, assim como o faz quanto aos

impedimentos, uma vez que segue esta teoria.

Os impedimentos canônicos de uma forma geral, abrangiam “causas

baseadas numa incapacidade (idade, diferença de religião, impotência, casamento

anterior), num vício do consentimento (dolo para obter o consentimento matrimonial,

coação ou erro quanto à pessoa do outro cônjuge) ou numa relação anterior

(parentesco, afinidade)”82.

Neste passo, houve outra contribuição canônica de equivalente importância:

a distinção dos impedimentos entre dirimentes e impedientes83.

Os primeiros eram denominados pela técnica canônica de impedimenta

dirimentia e atingiam a validade do ato84. Dividiam-se em publica e privata, conforme

ocasionassem a nulidade ou anulabilidade do casamento se inobservados.

Já os impedimentos impedientes, ou impedimenta impedientia, eram

restrições que não maculavam a validade do matrimônio, mas apenas sujeitavam

aqueles que os desobedecessem a certas sanções de caráter civil.

Os canônicos trataram da matéria com muito rigor e por isso, influenciaram

todo o mundo ocidental nesse sentido, inclusive o Brasil, que absorveu e aplicou a

mesma teoria dos impedimentos, entretanto, excluindo aqueles de índole religiosa,

visto que à época da primeira codificação somente o casamento civil era reconhecido.

3.1.2 A história dos impedimentos no Brasil.

Antes da promulgação da lei do casamento civil no Brasil, também por

conseqüência da teoria canônica, a religião era outro fato gerador de impedimento,

pois eram proibidos de convolar núpcias os sacerdotes de ordens sacras superiores, as

pessoas que passassem a integrar religião na qual o voto solene de castidade era

82 Arnoldo Wald, Direito de família, p. 29. 83 “Distinguiu ainda o direito canônico entre impedimentos públicos, de natureza objetiva, e secretos, que só se conhecem pela comissão do interessado, e entre impedimentos de direito divino, de direito natural e de direito eclesiástico. Quanto a estes últimos, admitia-se a dispensa em casos especiais.” Arnoldo Wald, Direito de família, p. 67. 84 É a diretriz ditada pelo Cânone 1.073: “El impedimento dirimente inhabilita a la persona para contraer matrimonio validamente” <www.vatican.va/archive/ESL0020/_P3U.HTM>

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exigido e também as pessoas ligadas por parentesco espiritual. Havia ainda o

impedimento consubstanciado na disparidade de culto (disparitas cultu), que não

permitia a união entre católicos e hereges, considerado na época meramente proibitivo

por não atingir a validade do vínculo.

A partir da edição do Decreto-Lei 181 de 1890, tais impedimentos de ordem

religiosa passaram a ser respeitados apenas no âmbito eclesiástico, uma vez que têm

fundamento exclusivo no direito canônico.

Em outros países, o preconceito de raças era outra causa determinante de

impedimentos. Como bem ressalta Antônio Chaves, “o preconceito das raças levou a

República norte-americana a proibir o casamento de brancos com negros, e ainda, em

vários Estados, com mulatos e índios. Na Alemanha, uma lei de 15.9.1935 proibia o

casamento entre judeus e alemães, tendo sido abolida com destruição do III Reich. Na

URSS, um decreto de 15.2.1947 proibia o casamento entre um soviético e um

estrangeiro. È nulo o casamento, ainda quando contraído no estrangeiro”85.

Como podemos perceber, a matéria referente aos impedimentos

matrimoniais transformou-se com o passar da história, sempre tentando acompanhar as

mudanças sociais.

No Brasil este fato não foi diferente desde a sua efetiva introdução pelo

Decreto-Lei 181 de 24 de janeiro de 1890.

Apesar de nosso ordenamento nesse sentido ter se baseado no direito

canônico, a uniformidade deste direito na classificação dos impedimentos não foi

efetivamente seguida, pois como nossa lei civil de 1916 apenas taxou as causas que

prejudicavam o casamento simplesmente de “impedimentos”, não as separando em

categorias de acordo com os efeitos que produziam, conforme fizeram os canônicos,

esta tarefa, apesar de seguir o modelo destes últimos, ficou por muito à cargo da

doutrina, o que tornou-se fonte de divergências quanto as formas de classificar os

impedimentos. As disparidades doutrinárias referiam-se na maioria das vezes à

nomenclatura dada as categorias de impedimentos, pois alguns os classificavam em

públicos, privados e impedientes, como os canônicos e outros como absolutos,

85 Tratado de Direito civil, v.5, p. 128.

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relativos e proibitivos. De fato, apesar das várias terminologias, as conseqüências

resultantes da inobservância das proibições eram as mesmas: nulidade, anulabilidade e

aplicação de sanção civil, respectivamente.

O Código Civil de 2002 não se afastou da teoria canônica, mas alterou, em

relação ao Código de 1916, a forma como eram dispostos os impedimentos ao separá-

los em capítulos e categorias diferentes, como já era feito pela doutrina, denominando-

os, por sua vez, de forma peculiar como veremos.

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4. DOS IMPEDIMENTOS EM ESPÉCIE

4.1 Conceito de impedimento do casamento

Um casamento juridicamente perfeito depende da obediência a

determinadas condições para que seja considerado existente, válido e regular.

Como visto, se não houver diversidade de sexos, consentimento e

celebração, o casamento é considerado inexistente, não sendo apto a gerar efeitos

jurídicos.

Mas, para a constituição de um vínculo matrimonial sem defeitos, não basta

simplesmente o atendimento aos requisitos exigidos para a sua existência. Este é

apenas o primeiro plano de análise. Devem ser considerados também os aspectos

relativos à sua validade e regularidade, pois um ato jurídico não é considerado perfeito

apenas por existir, deve-se alcançar um plano mais profundo de investigação: ele

necessita, sobretudo, preencher determinadas exigências legais para que atinja o fim

ou gere os efeitos desejados, ou pelo menos esperados. E o casamento, ato jurídico que

é, não foge a essa regra.

Entretanto, a legislação civil pátria, seguindo os canônicos, não estabelece

de forma taxativa as condições de validade do casamento. Ao contrário, parte do

pressuposto de que todos são aptos ao matrimônio, ditando apenas as situações em

que, estando o indivíduo nela(s) incluído, não poderá convolar núpcias, ou o fará com

alguma restrição.

E são justamente essas situações que obstam o indivíduo de contrair

casamento que denominamos de impedimentos matrimoniais.

Diante disto, pode-se dizer que a lei civil elenca as condições de validade

do casamento de forma negativa através dos impedimentos, ou seja, dita o que não

pode ser feito, podendo se casar, portanto, o(s) nubentes(s) que não se enquadram em

nenhuma das hipóteses legais.

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Contudo, como bem aborda Antonio Chaves, “um fato positivo, como o

impedimento, a existência de um obstáculo que pode revestir-se de numerosas

modalidades diferentes, não se mostra de adequada conceituação através de negativas

tão genéricas”86, ou seja, ante a importante função que exercem na constituição de um

vínculo matrimonial sadio, os impedimentos não podem ser definidos apenas como a

falta de requisitos essenciais impostos pela lei que impedem determinada pessoa de se

casar.

Fez-se necessário, portanto, a elaboração de um conceito positivo de

impedimentos matrimoniais, primeiro porque o Código Civil em nenhum momento

define o que sejam impedimentos, e segundo, pela imprecisão dos conceitos negativos

que se estabeleceram na doutrina.

Assim, positivamente, constituem os impedimentos, genericamente falando,

verdadeiras proibições ou restrições ao casamento de determinada pessoa que, caso

não respeitadas, acarretam a nulidade, anulabilidade ou atribuem certa limitação ao

ato. Como o cerne deste estudo são os impedimentos “stricto sensu” do artigo 1.521 do

Código Civil, podemos dizer que são as causas que proíbem a realização de casamento

válido e uma vez descumpridas, tornam o vínculo nulo.

Sintetizando tanto a ótica negativa como a positiva de conceituar

impedimento, colacionamos a clássica conceituação pronunciada por Carlo Rebuttati,

no verbete que escreveu para o Digesto Italiano:

“Constituem impedimentos aquelas condições positivas ou negativas,

de fato ou de direito, físicas ou jurídicas, expressamente

especificadas pela lei, as quais, permanentemente ou

temporariamente, proíbem o casamento, ou proíbem um novo

casamento ou um determinado casamento”87.

Resta ainda uma observação: é comum atrelar-se as idéias de impedimento

e condições matrimoniais como conceitos semelhantes, entretanto, isto não é verdade,

pois são termos ligados entre si por uma relação de causa (condições) e efeito 86 Antonio Chaves, Tratado de Direito Civil, vol. 5, p. 94. 87 Antonio Chaves, Tratado de Direito Civil, v.5, p. 94; Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5, p. 68.

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(impedimentos), ou seja, é devido ao não preenchimento das condições que surgem os

impedimentos. Conclui-se, portanto, que as condições são os requisitos essenciais para

formação, validade e regularidade do casamento e os impedimentos proibições

previstas expressamente na lei, aplicáveis quando da inobservância de uma ou mais

condições de validade ou regularidade nupcial.

4.2 Distinção entre incapacidade e impedimento matrimonial.

Com base no conceito de impedimentos anteriormente exposto, é possível

delimitar as diferenças existentes entre incapacidade e impedimento do casamento,

questão que tem recebido diversas críticas doutrinárias que indicam ter a lei

confundido os dois institutos, tratando-os muitas vezes como sinônimos.

Contudo, ao proceder o estudo dos impedimentos, verifica-se que, na

verdade, são eles uma espécie de falta de legitimidade para o conúbio e não

incapacidade para o ato como supõe a lei.

A incapacidade torna a pessoa inapta para todos os atos da vida civil,

inclusive para o casamento, e neste particular, a impede de casar-se com qualquer

pessoa. Já o impedimento, torna o indivíduo inabilitado exclusivamente para o

casamento com determinadas pessoas, podendo praticar os demais atos da vida civil

normalmente, inclusive contrair matrimônio, desde que ao fazê-lo, não se encontre

novamente em alguma das hipóteses do artigo 1.521 do Código Civil.

Isto posto, pode ser estabelecida uma correlação entre o impedimento e a

falta de legitimidade do direito processual, pois na ilegitimidade processual, a parte

está impedida, ou não é legítima, para atuar naquela relação jurídica determinada, mas

pode atuar em qualquer outra, desde que ostente legitimidade. Os impedimentos

seguem o mesmo princípio, pois proíbem a pessoa de “atuar” naquele casamento

determinado, mas não em outros em que esteja livre das características que geram

impedimento.

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Nesta esteira, tem razão Orlando Gomes em afirmar que “a incapacidade é

geral, o impedimento circunstancial”88.

Além disso, outro ponto que distancia os institutos, são as causas

determinantes dos impedimentos, que não são as mesmas da incapacidade, como

veremos.

4.3 A classificação adotada pelo novo Código Civil em relação ao Código de 1916

O Código Civil de 1916, de forma pouco sistemática e seguindo as

diretrizes do Decreto-Lei 181 de 1890, cuidou dos impedimentos unicamente em seu

artigo 183, arrolando dezesseis hipóteses, que se não obedecidas, impossibilitavam a

constituição de vínculo matrimonial válido e regular.

Coube então à doutrina aplicar a teoria canônica na classificação dos

impedimentos de forma a facilitar seu estudo e aplicação, já que o aludido diploma

civil, além de não promover a devida separação, previa as conseqüências para o

descumprimento daquelas hipóteses de forma confusa em sua parte especial, Livro – I,

Título – I, Capítulos VI e VII, dificultando a distinção entre as situações que tornavam

o casamento nulo, anulável ou passível de sanção civil.

O atual Código Civil, por seu turno, trata da matéria relativa aos

impedimentos e causas suspensivas em seu Livro IV – Do Direito de Família, Título I

– Do Direito Pessoal, Subtítulo I – Do Casamento, Capítulos III – Dos Impedimentos e

IV – Das Causas Suspensivas, também seguindo as diretrizes da teoria canônica dos

impedimentos, mas agora, promovendo expressa separação entre as proibições de

acordo com os efeitos oriundos do seu descumprimento.

Os impedimentos matrimoniais “lato sensu”, portanto, podem ser divididos

basicamente em três categorias: os que, caso não respeitados, comprometem tanto a

validade como a regularidade do casamento, tornando-o, dependendo da hipótese, nulo

88 Direito de Família, p. 80.

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ou anulável e outros, que devem ser obedecidos apenas para a sua regularidade, e não

sendo, acarretam sanções civis de ordem patrimonial.

À primeira categoria, correspondem os atuais impedimentos “strictu sensu”

do artigo 1.521, que no Código Civil de 1916 eram conhecidos como impedimentos

dirimentes absolutos ou públicos e estavam compreendidos nos incisos I a VIII do

artigo 183, CC/1916. A sua inobservância torna o vínculo matrimonial nulo de acordo

com o artigo 1.548, II do novo Código, pois são situações diretamente ligadas a

interesses públicos como a moral da família e da sociedade, a saúde dos nubentes,

entre outros. Outro fator que demonstra a gravidade da infringência de tais preceitos é

o efeito ex tunc atribuído à nulidade caso reconhecida, ou seja, serão inválidos todos os

atos oriundos do casamento maculado desde sua origem, sendo que, nem mesmo o

divórcio ou dissolução pela morte do primeiro cônjuge convalida o segundo casamento

considerado nulo89.

Já na segunda, enquadram-se os antigos impedimentos dirimentes relativos

ou privados arrolados nos incisos IX a XII do diploma de 1916 e que atualmente são

tratados no artigo 1.550, I a VI do novo Código. Caso ocorra o casamento com

desobediência a esses preceitos, ele poderá ser anulado. Como se vê, a punição

prevista pela lei é mais branda em relação aos impedimentos do artigo 1.521, pois são

restrições destinadas ao benefício dos próprios interessados, de forma que somente a

estes é possível a sua argüição. Tem por objetivo resguardar os indivíduos que se

encontram subjetivamente prejudicados de contrair casamento que não lhes seja

indicado, por falta de completo discernimento ou defeito do consentimento.

Por fim, restam as causas suspensivas do artigo 1.523 do novo Código

Civil. São proibições que não afetam a validade do matrimônio, podendo este

consumar e manter-se normalmente. Visam proteger exclusivamente a certeza da

paternidade e o patrimônio de determinadas pessoas que podem ser prejudicadas pela

ocorrência de um determinado matrimônio. Por isso, preferiu o legislador, também

89 É também a orientação trazida pelo seguinte julgado: “CASAMENTO - Anulação - Bigamia - Artigos 183, inciso VI, e 207 do Código Civil - Dissolução da sociedade anterior pelo divórcio que não convalida o segundo casamento - Nulidade que se opera "ex tunc", retroagindo à data da realização do matrimônio - Artigo 2º, inciso II, da Lei Federal nº 6.515, de 1977 - Sentença confirmada” JTJ 122/53.

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aplicar restrições que atingem apenas o patrimônio daqueles que contraem núpcias

sem acatar as recomendações legais.

Neste passo, cabe fazer menção a justificativa de Antonio Chaves para a

aplicação de sanções gradativas, de acordo com a gravidade da conduta, quando há

inobservância de algum dos impedimentos:

“... se o casamento é de ordem pública, toda violação das regras da

instituição deve, por essa razão, em princípio, ser sancionada por

nulidade absoluta; ele cria, por outro lado, uma situação demasiado

importante na vida dos cidadãos para que, em caso de

irregularidade mais ou menos grave, a mesma sanção seja aplicada

uniformemente”90.

Apesar das mudanças ocorridas quanto à nomenclatura e forma de

disposição, os principais efeitos oriundos da inobservância dos impedimentos

permaneceram praticamente os mesmos desde sua introdução pela Lei do Casamento

Civil, seguida pelo Código de 1916, quais sejam, a decretação de nulidade, a anulação

ou a aplicação de sanção civil.

Diante do exposto, resta claro que a importância dos impedimentos não está

tanto na sua enumeração, mas, principalmente, em sua classificação, pois é a partir

desta que se estabelecerá a gravidade das conseqüências geradas quando da sua

infração.

90 Antonio Chaves, Tratado de Direito Civil, v.5, p. 94-95.

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4.4 Caracteres dos impedimentos.

A lei civil ao furtar-se em estabelecer o conceito de impedimento, apenas

arrolando as situações que assim se configuram, conseqüentemente não delineou quais

seriam suas principais características.

Quanto aos impedimentos do artigo 1.521 do Código Civil, podemos

destacar primeiramente seu caráter preventivo, visto ser sua principal função evitar a

constituição de vínculo matrimonial defeituoso ou com características aptas a

prejudicar a normal e sadia construção e manutenção da entidade familiar, o que sem

dúvida afetaria também a ordem moral e pública e a prole advinda de uniões que

infringissem tais proibições, representando um gravame tanto ao direito dos nubentes,

como também de terceiros e até do próprio Estado, tal é a importância que o

casamento tem no seio da sociedade.

Ressalte-se também seu caráter taxativo, já que só são considerados

impedimentos as hipóteses expressamente arroladas em lei. Essa característica é

oriunda do princípio canônico de que todos podem se casar, cabendo a lei somente

estabelecer de forma específica as hipóteses ou qualidades que tornam o indivíduo

inabilitado ao matrimônio.

Podemos dizer que os impedimentos possuem caráter público, primeiro por

ser instituto diretamente relacionado e que tem sua existência calcada no casamento,

que é de ordem pública. E segundo, pela possibilidade destes impedimentos serem

opostos por qualquer pessoa capaz e a obrigatoriedade do oficial de registro e do juiz

levantá-los deles tendo conhecimento, de acordo com o artigo 1.522 e seu § único do

Código Civil, ou seja, são situações que interessam precipuamente não só às pessoas

próximas aos nubentes, mas também à sociedade como um todo.

Por fim, destacamos que os impedimentos têm caráter concentrado, uma

vez que encontram-se arrolados unicamente no artigo 1.521 do Código Civil, não

havendo nenhuma outra hipótese de impedimento fora deste artigo.

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4.5 Causas determinantes dos impedimentos

Percorrendo os sete incisos do artigo 1.521 do Código Civil, percebe-se que

os impedimentos possuem como causas determinantes de sua existência: as relações de

parentesco, um casamento civil anterior não dissolvido e crime. A seguir estudaremos

todos os impedimentos de acordo com as situações que os determinam.

4.6 Impedimentos resultantes de parentesco

Para uma exata compreensão dos impedimentos resultantes das relações de

parentesco, primeiramente se faz necessário definir o que vem a ser “parentesco”.

De acordo com o artigo 1.593 do Código Civil, o parentesco é a relação que

se estabelece entre pessoas em conseqüência “de consangüinidade ou outra origem”.

Há dois tipos de parentesco: o natural e o civil. O primeiro é o que resulta da

consangüinidade existente entre determinadas pessoas, ou seja, entre pessoas que

procedem de pelo menos um ancestral comum (pai, filho, tio, primo, etc.). O

parentesco civil é aquele que se dá em virtude de casamento ou adoção. O casamento,

por sua vez, gera a chamada afinidade, parentesco que ocorre entre um dos nubentes e

os “ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro”, nos

termos do § 1º do artigo 1.595 do Código Civil.

O Código Civil trata desta espécie de impedimentos nos incisos I a V, os

quais passamos a explicar.

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4.6.1 De consangüinidade

A união de pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade91 sempre foi

causa de graves inconvenientes de ordem eugênica, mas é em Roma e, após com o

Direito Canônico92, que ela passa a ter conseqüências morais e éticas.

Nosso Direito Civil, desde o Decreto-Lei 181 de 189093, sempre proibiu de

maneira ferrenha o casamento de parentes consangüíneos.

O atual Código, no artigo 1.521, arrolou dois impedimentos relativos a

consangüinidade.

O primeiro, disposto no inciso I, proíbe o casamento de “ascendentes com

descendentes, seja o parentesco natural ou civil.”

Como se vê, a única alteração promovida pelo novo Código no antigo

artigo 183, I de 1916 foi a supressão dos adjetivos “legítimo ou ilegítimo” que eram

atribuídos ao parentesco oriundo ou não do casamento. O Código de 2002 apenas

adequou o referido preceito às disposições da Constituição de 1988 que prevê:

“Art. 227. ...........

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por

adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas

quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”

Assim, atendendo ao aspecto moral que deve orientar as relações humanas

em sociedade, a lei busca com este impedimento proibir o incesto, veementemente

91 “A consangüinidade pode se dar em linha reta ou em linha colateral (também chamada lateral ou oblíqua). A primeira refere-se a ascendentes e descendentes (pais e filhos, avós e netos, etc.) e pode ser referida a partir de duas situações diversas: da descendência para os ancestrais (linha reta ascendente) e dos ancestrais para a descendência (linha reta descendente). A segunda, a indivíduos que, não estando nessas condições, procedem de pelo menos um ancestral comum (tios e sobrinhos, irmãos, primos, etc.). [...] A consangüinidade pode ser simples ou múltipla. Simples, quando ocorre através de um tronco único; múltipla, quando há dois ou mais troncos.” JORDE, Lynn B., CAVEY, John C., BAMSHAD, Michael J., WHITE, Raymond L. Genética Médica, p. 53. 92 “1091 § 1. En línea recta de consanguinidad, es nulo el matrimonio entre todos los ascendientes y descendientes, tanto legítimos como naturales. § 2. En línea colateral, es nulo hasta el cuarto grado inclusive.” (www.vatican.va/archive/ESL0020/_P3U.HTM) 93 “Art. 7º São prohibidos de casar-se: §1º. Os ascendentes com os descendentes, por parentesco legítimo, civil ou natural, ou por affinidade, e os parentes collateraes, paternos ou maternos, dentro do segundo gráo civil.” Lydio Mariano, Commentarios à Lei do Casamento Civil, p. 12.

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repudiado pela maioria das sociedades, bem como, procurando caminhar junto às

ciências biomédicas, visa impedir o nascimento da prole com deficiências físicas e

mentais, anomalias hereditárias denominadas recessivas, cuja probabilidade de

ocorrência aumenta quando a geração provém de parentes próximos.

Esse impedimento se estende a todo e qualquer grau da linha reta

infinitamente, visto que a lei não limita sua incidência.

Mas a consangüinidade, de acordo com o artigo 1.521, IV, também é fato

gerador de outro impedimento matrimonial.

Ressalte-se primeiramente que o artigo 183, IV do Código de 1916 possuía

redação praticamente idêntica a do atual artigo 1.521, IV, exceto quanto a uma

pequena diferença que causava certa confusão:

“Art. 183. Não podem se casar:

.............

IV – Os irmãos, legítimos ou ilegítimos, germanos ou não, e os

colaterais, legítimos ou ilegítimos, até o terceiro grau

inclusive.”(grifamos)

Observando com minúcia a sua redação, o uso da conjunção “e” acima

grifada, promovia uma separação entre irmãos e colaterais, ou seja, tratava-os como se

fossem institutos diversos, o que seria ilógico ante o disposto no artigo 331 de 1916,

atual artigo 1.592, uma vez que os irmãos estão inclusos na classe dos colaterais ou,

em outras palavras, os colaterais são gênero do qual irmãos são espécie, senão

vejamos:

CC/1916 – “Art. 331. São parentes, em linha colateral, ou

transversal, até o sexto grau, as pessoas que provêm de um só

tronco, sem descenderem uma da outra.”

O legislador de 2002 corrigiu aludido equívoco ao impedir o casamento dos

“irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau

inclusive.”(grifamos). Assim, ao utilizar a expressão “e demais colaterais” acima

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destacada, acabou por incluir os irmãos na categoria dos colaterais, se harmonizando

com o atual artigo 1.592 que substituiu e modificou o aludido artigo 331 de 1916,

senão vejamos:

“Art. 1.592. São parentes em linha colateral94 ou transversal, até o

quarto grau, as pessoas provenientes de um só tronco95, sem

descenderem uma da outra.”

Outra mudança operada pelo Código de 2002 neste inciso, agora apenas

quanto à terminologia das palavras, foi a substituição da expressão “irmãos germanos

ou não” por “irmãos, unilaterais ou bilaterais”, que na verdade significam o mesmo.

Irmãos bilaterais são aqueles ligados entre si pelos mesmos genitores, ou

seja, os que descendem do mesmo pai e mãe. Já o unilaterais são os que têm apenas

um dos genitores em comum, ou seja, filhos do mesmo pai e de mães diversas ou

filhos da mesma mãe e pais diversos96.

O presente impedimento justifica-se pelas mesmas razões já destacadas nos

comentários ao inciso I supra, quais sejam, a afronta aos bons costumes, prejudicando

sobremaneira a constituição e a manutenção da entidade familiar, tanto quanto ao

aspecto moral como ao fisiológico.

A proibição se estende ainda aos “demais colaterais, até o terceiro grau

inclusive”, entretanto, não de forma absoluta de acordo com a doutrina majoritária97,

visto que os colaterais de terceiro grau, em virtude do Decreto-Lei 3200/41, poderão se

casar desde que, após exames clínicos, dois médicos atestem positivamente pela

possibilidade do matrimônio, ou seja, indiquem através de laudo que a união entre

94 “A linha colateral pode ser igual (quando há o mesmo número de gerações entre os indivíduos analisados e o tronco) ou desigual (quando alguns indivíduos encontram-se mais próximos do tronco do que outros). Assim, os primos em primeiro grau são consangüíneos em linha colateral igual; os tios e sobrinhos em linha colateral desigual.” JORDE, Lynn B., CAVEY, John C., BAMSHAD, Michael J., WHITE, Raymond L. Genética Médica, p. 53. 95 “Há três elementos fundamentais na consangüinidade: os troncos (ou estirpes), as linhas e os graus. Troncos são os ancestrais comuns aos consangüíneos. Linha é a sucessão de gerações. Grau é a unidade de medida da relação genética entre dois consangüíneos..” JORDE, Lynn B., CAVEY, John C., BAMSHAD, Michael J., WHITE, Raymond L. Genética Médica, p. 52. 96 A doutrina costumava fazer a distinção em: “irmãos consangüíneos os que provêm do mesmo pai e de mães diversas; uterinos os que nasceram da mesma mãe provindo, porém, de pais diversos.” Antonio Chaves, Tratado de Direito Civil, v.5, p. 106. 97 Visto haver quem diga que este Decreto-Lei foi revogado pelo novo Código Civil, não mais subsistindo a possibilidade do casamento em colaterais de terceiro grau.

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esses parentes não trará prejuízos para a saúde de qualquer deles e da prole que deles

advier. É o que dita os artigos 1º ao 3º do referido Decreto-Lei, senão vejamos:

“Art. 1.º O casamento de colaterais, legítimos ou ilegítimos, do

terceiro grau, é permitido nos termos do presente Decreto-lei.

Art. 2.º Os colaterais do terceiro grau, que pretendam casar-se, ou

seus representantes legais, se forem menores, requererão ao juiz

competente para a habilitação que nomeie dois médicos de

reconhecida capacidade, isentos de suspeição, para examiná-los e

atestar-lhes a sanidade, afirmando não haver inconveniente, sob o

ponto de vista da saúde de qualquer deles e da prole, na realização

do matrimônio.”

Destarte, desde que obedeçam as regras acima expostas e não haja parecer

médico desfavorável, os colaterais do terceiro grau poderão convolar núpcias

normalmente. Por outro lado, se não for apresentado o atestado de sanidade ou este

concluir pela inconveniência da união, e mesmo assim o casamento se realizar, será

considerado nulo.

Importante consideração se refere à existência de Projeto de lei nº 6.960/02

de autoria do Deputado Ricardo Fiuza, que pretende acrescentar um parágrafo a este

preceito com intuito de incluir no Código Civil a possibilidade da apresentação de

laudo médico neste caso:

“Art. 1.521. ...........

Parágrafo único. Poderá o juiz, excepcionalmente, autorizar o

casamento dos colaterais de terceiro grau, quando apresentado

laudo médico que assegure inexistir risco à saúde dos filhos que

venham a ser concebidos.”98

98 Ricardo Fiúza, Novo Código Civil Comentado, p. 1363.

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Ressalte-se por fim, que o impedimento abrange tanto os colaterais

consangüíneos (irmão e irmã) como os afins (cunhados), estes somente enquanto durar

o cunhadio, como veremos adiante.

4.6.2 De afinidade

Com base no artigo 1.595, caput do Código Civil, a afinidade pode ser

conceituada como o vínculo instituído pelo casamento ou pela união estável entre cada

cônjuge ou companheiro e os parentes do outro.

A afinidade é causa geradora de impedimentos desde o Direito Canônico99,

tendo sido incorporada efetivamente à legislação brasileira pelo Decreto-Lei 181 de

1890100 e mantida como tal pelo Código de 1916, alterado pelo atual somente com

relação à supressão da expressão “vínculo legítimo ou ilegítimo”, já que de acordo

com a Carta Magna vigente tal diferenciação não mais cabe, como já exposto.

Assim sendo, dispõe o artigo 1521, II do novo Código que não podem se

casar os “afins em linha reta”. Visa a lei com este impedimento preservar a moralidade

que deve guiar a vida em família, evitando que se instaure competições amorosas entre

pessoas próximas que normalmente convivem juntas.

Como o inciso em estudo apenas se refere aos afins em linha reta, somente

estes estão impedidos de casar, concluindo-se, portanto, que estão excluídos da

proibição os afins em linha colateral, como é o caso dos irmãos do cônjuge ou

companheiro, mais conhecidos como cunhados(as). “Daí a razão de ser possível o

casamento de um viúvo com a irmã de sua falecida mulher”101.

O impedimento destinado aos afins em linha reta é infinito e perpétuo em

virtude do artigo 1.595, § 2º do Código Civil, ao ditar que “na linha reta, a afinidade

99 É o que dispõe o cânone: “1092 La afinidad en línea recta dirime el matrimonio en cualquier grado.” <www.vatican.va/archive/ESL0020/_P3U.HTM>. 100 O impedimento resultante da afinidade era previsto pelo aludido Decreto-Lei no: “Art. 7º São prohibidos de casar-se: §1º. Os ascendentes com os descendentes, por parentesco legítimo, civil ou natural, ou por affinidade, e os parentes collateraes, paternos ou maternos, dentro do segundo gráo civil.” Lydio Mariano, Commentarios à Lei do Casamento Civil, p. 12. 101 Antonio Chaves, Tratado de Direito Civil, v.5, p. 104.

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não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável”, ou seja, mesmo

dissolvido o casamento ou a união estável que deu origem à afinidade, os afins em

linha reta continuam impedidos de casar entre si, por ser a lei expressa neste sentido, o

que já não ocorre com os afins na linha colateral, já que não estão compreendidos na

restrição do inciso II.

Finalmente, para que o impedimento por afinidade persista mesmo após a

dissolução do casamento que lhe deu origem, necessário se faz que o vínculo tenha se

constituído validamente, pois se foi considerado nulo, extingue-se retroativamente o

parentesco de cada ex-cônjuge com a família do outro, pois a afinidade é um

parentesco civil e não natural.

4.6.3 De adoção

A adoção é tão importante para o direito como determinante de

impedimentos matrimoniais, que tem sido arrolada como tal tanto pela lei civil, no

Brasil desde o Decreto-Lei 181 de 1890102, bem como pelos canônicos em seu

Código103.

Tanto é assim, que o novo Código Civil, baseado no de 1916, em seu artigo

1.521 destina três de seus sete incisos aos impedimentos referentes às relações de

adoção.

Essa especial atenção é justificável, visto que o indivíduo, após o

nascimento do vínculo adotivo, passa a ostentar a situação de filho na família na qual

ingressa, e, conseqüentemente, de irmão, neto, bisneto, etc., em relação aos outros

integrantes da nova família. É o que determina Código Civil104 em seu:

102 “Art. 7º São prohibidos de casar-se: §1º. Os ascendentes com os descendentes, por parentesco legítimo, civil ou natural, ou por affinidade, e os parentes collateraes, paternos ou maternos, dentro do segundo gráo civil.”(Lydio Mariano, ob. cit. p. 12) 103 Cânone: “1094 No pueden contraer válidamente matrimonio entre sí quienes están unidos por parentesco legal proveniente de la adopción, en línea recta o en segundo grado de línea colateral.” <www.vatican.va/archive/ESL0020/_P3U.HTM> 104 O novo Código Civil neste passo seguiu as diretrizes esboçadas pelo artigo 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente: “Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais”.

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“Art. 1.626. A adoção atribui a situação de filho ao adotado,

desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes

consangüíneos, salvo quanto aos impedimentos para o casamento”.

Assim, por passar o adotado a integrar a família adotiva como se

consangüíneo fosse, claramente há necessidade do direito, através dos impedimentos,

proteger, independentemente da natureza do vínculo, a legitimidade das relações

familiares, o respeito, a confiança e, sobretudo, a moralidade do lar, que seriam

prejudicados gravemente pela união do adotado com qualquer dos familiares

abrangidos pelos impedimentos de consangüinidade, visto que a adoção procura imitar

a natureza no maior número de aspectos.

Esses impedimentos nascem no momento em que se estabelece o vínculo

adotivo, ou seja, com o trânsito em julgado da sentença judicial constitutiva, de acordo

com os artigos 1.628 do Código Civil e 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O primeiro obstáculo matrimonial oriundo da adoção elencado no artigo

1.521, I do Código Civil, já foi anteriormente objeto de estudo, entretanto sob ótica do

impedimento de consangüinidade advindo da expressão “parentesco natural”.

Determina o artigo 1.521, I do Código Civil que estão proibidos de casar:

“I – Os ascendentes com descendentes, seja o parentesco natural ou

civil;”

Agora, analisaremos o presente inciso sob a ótica do parentesco civil, ou

seja, a adoção.

Como a adoção atribui a situação de filho ao adotado conforme ressaltado,

este passa a ser descendente do adotante e respectivos ascendentes (pai, mãe, avô, avó

do adotante), bem como seus descendentes passam a sê-lo também do adotante.

Portanto, constituído o vínculo adotivo, o obstáculo matrimonial do inciso I

se instala, já que adotante e adotado passam a ostentar, um em relação ao outro, a

posição de ascendentes para com descendentes, pois no que tange ao inciso ora

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estudado, aplicam-se à paternidade fictícia os mesmos princípios relativos à

paternidade de sangue.

Por fim, ainda com relação ao inciso I, conforme a segunda parte do aludido

artigo 1.626, caput do Código Civil, a adoção promove a quebra de todos os vínculos

entre o adotado e seus pais e parentes consangüíneos, exceto quanto aos impedimentos

do casamento, visto subsistir os inconvenientes de ordem eugênica que podem ocorrer

no caso de incesto. Assim, a título exemplificativo, o impedimento para o casamento

entre irmãos de sangue que foram adotados por famílias distintas ainda persiste mesmo

com a adoção, fundamentando-se não mais na moral de forma precípua, mas agora na

fisiologia, passando a ser impedido pelo inciso IV do artigo 1.521 do Código Civil.

O segundo impedimento relativo à adoção previsto no rol do artigo 1.521

do Código Civil dispõe que não podem se casar:

“III – O adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado

com quem foi cônjuge do adotante”.

Este inciso alterou o antigo artigo 183, III de 1916, que gerava uma

interpretação imprecisa do espírito da lei, visto que dava a impressão que o

impedimento visava evitar uma suposta bigamia, senão vejamos:

CC/1916 -“Art. 183: Não podem se casar:

....................

III – o adotante com o cônjuge do adotado e o

adotado com o cônjuge do adotante (art. 376);”

Ao utilizar a expressão: “com o cônjuge”, os intérpretes eram levados a

pensar que o casamento ainda não havia sido dissolvido. O atual Código Civil não

cometeu o mesmo erro e alterou a aludida expressão para “com quem foi cônjuge”,

pondo fim às dúvidas.

A adoção, além de atribuir a situação de filho ao adotado conforme já

explicitado, institui parentesco, de acordo com a segunda parte do artigo 1.628 do

Código Civil, “não só entre o adotante e o adotado, como também entre aquele e os

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descendentes deste e entre o adotado e todos os parentes do adotante”. Assim, por ser

adotado e adotante parentes de natureza civil (art. 1.593, CC) um do cônjuge do outro

em linha reta, seria inadmissível permitir tal tipo de união, já que também se proíbe o

casamento dos afins em linha reta.

E é neste sentido a maior crítica feita pelos doutrinadores105 ao inciso em

questão, pois, por tratar-se a relação “adotado-cônjuge do adotante” e “adotante-

cônjuge do adotado” de afinidade em linha reta, é ele desnecessário em face do

sistema geral, uma vez que o mesmo artigo 1.521 do Código Civil já proíbe o

casamento dos afins em linha em seu inciso II.

Por fim, o último impedimento destinado às relações de adoção presente no

artigo 1.521 do Código Civil não permite o casamento:

“V – o adotado com o filho do adotante;”

Este impedimento foi alvo de mudanças com o advento do novo Código

Civil, visto este ter extinto o termo “superveniente” constante do artigo 183, V do

Código de 1916, que limitava a proibição:

CC/1916 – “Art. 183. Não podem se casar:

.................

V – O adotado com o filho superveniente ao pai ou à

mãe adotiva (art. 376);”

Ou seja, de acordo com o antigo Código Civil, o adotado era impedido de

contrair matrimônio apenas com os filhos do adotante que viessem à luz após a

constituição do vínculo adotivo, podendo, entretanto, casar-se com os filhos anteriores

à adoção, por acreditar que “nesse caso não haveria vínculos familiares mais

profundos”106.

Como atualmente, em virtude do artigo 1.628, 2ª parte do Código Civil, a

adoção estabelece parentesco “entre o adotado e todos os parentes do adotante”, e

105 Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil: direito de família, v.6, p. 84; Alexandre Guedes Alcoforado Assunção, Novo Código Civil Comentado, coord. Ricardo Fiúza, p. 1362. 106 Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil: direito de família, p. 85.

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ainda pela situação conferida pelo artigo 1.626, caput do Código Civil e 227, § 6º da

Constituição Federal de 1988, o adotado tem seu lugar reservado na família, bem

como os demais membros, não havendo justificativa para a lei discriminar ou tratá-lo

de forma diferente pelo fato de estar ligado aos outros entes familiares através de

parentesco civil e não natural.

Assim, conforme a nova redação do artigo 1.521, V do Código Civil, o

adotado está impedido de se casar com qualquer filho do adotante, uma vez que em

relação a este, todos encontram-se na situação de filhos, e entre si, na situação de

irmãos, cabendo aqui, as mesmas razões de ordem ética e moral ressaltadas na

explanação do inciso IV do mesmo artigo, que trata do impedimento matrimonial entre

irmãos.

E justamente por isso a doutrina107 desfere contra este impedimento críticas

semelhantes às do inciso III, pois como adotado e filhos do adotante são considerados

verdadeiros irmãos, seria ele desnecessário, já que o artigo 1.521, IV do Código Civil

proíbe o casamento entre irmãos, não fazendo distinção se o vínculo entre eles é

natural ou civil, como visto.

4.7 Impedimento resultante de vínculo108

Neste inciso está compreendida a segunda causa determinante dos

impedimentos, qual seja, casamento anterior não dissolvido.

O novo Código Civil não operou qualquer mudança neste dispositivo em

relação ao antigo artigo 183, VI do Código de 1916, uma vez que o Brasil sempre foi

adepto109 da corrente monogâmica do casamento, até mesmo punindo penalmente a

107 Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil, direito de família, p. 84; Alexandre Guedes Alcoforado Assunção, Novo Código Civil Comentado, coord. Ricardo Fiuza, p. 1362. 108 O Direito Canônico já repugnava a bigamia ou a poligamia no seguinte cânone: “1085 § 1. Atenta inválidamente matrimonio quien está ligado por el vínculo de un matrimonio anterior, aunque no haya sido consumado.” <www.vatican.va/archive/ESL0020/_P3U.HTM> 109 Impedimento previsto desde o Decreto-Lei 181 de 1890 : “Art. 7.º: .................§2º. As pessoas que estiverem ligadas por outro casamento ainda não dissolvido;” Lydio, Mariano, Commentarios à Lei do Casamento Civil, p. 12.

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bigamia. Assim, os mesmo comentários já feitos pela doutrina à norma anterior ainda

são válidos.

E, de fato, permitir que uma pessoa mantenha simultaneamente dois

vínculos conjugais, geraria uma desordem no seio familiar que fatalmente se

expandiria para a sociedade em geral, pois seria quase que inevitável o sentimento de

competição entre as duas mulheres ou os dois maridos que integrassem a família.

Além do que, não poderia a lei civil consagrar uma nova união sem dissolver a

anterior, pois estaria indo contra o próprio princípio matrimonial da união

monogâmica.

De acordo com o artigo 1.521, VI do novo Código, aquele que for casado

está impedido de contrair novo matrimônio, e, se o fizer, inevitavelmente cometerá o

crime de bigamia e poderá ter seu novo casamento considerado nulo110.

Portanto, a pessoa que já tenha sido casada, para que possa convolar novas

núpcias, deverá provar a dissolução do vínculo matrimonial anterior através das

formas legais. Essa prova, nos termos do artigo 1.525, V do Código de 2002, se dá no

momento da habilitação com os seguintes documentos:

“Art. 1.525. .................

V – certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença declaratória

de nulidade ou de anulação de casamento, transitada em julgado, ou

do registro da sentença de divórcio.”

Da análise deste dispositivo pode-se tirar algumas conclusões importantes.

110 A Jurisprudência dos Pretórios nacionais reiteradas vezes já decretaram nulo casamento em que um dos nubentes ainda era vinculado a casamento anterior não dissolvido. Destacamos os seguintes arestos: “CASAMENTO - Anulação - Bigamia caracterizada - Hipótese de impedimento absoluto, a redundar em nulidade do matrimônio - Procedência mantida - Recurso não provido”. (Apelação Cível n. 216.649-1 - São Bernardo do Campo - 2ª Câmara Civil - Relator: J. Roberto Bedran - 22.08.95 - V.U.) “CASAMENTO - Anulação - Réu que sem providenciar a dissolução do primeiro casamento contrai novo matrimônio - Ação procedente - Casamento anulado - Infringência das disposições contidas no artigo 183, inciso VI do Código Civil - Impedimentos dirimentes absolutos inobservados - Recurso não provido”. (Apelação Cível n. 274.865-1 - São José do Rio Preto - 7ª Câmara Civil - Relator: Júlio Vidal - 28.02.96 - V.U.) “CASAMENTO - Anulação - Bigamia - Caracterização - Conduta ardilosa do marido ao convencer a autora de seus bons propósitos - Existência do impedimento à época do casamento - Recurso não provido”. (Apelação Cível n. 247.999-1 - São Paulo - 8ª Câmara Civil - Relator: Fonseca Tavares - 01.11.95 - V.U.)

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Primeiro que, mesmo nulo o primeiro casamento, aquele que desejar

contrair novas núpcias, deverá obter a declaração judicial daquela nulidade, sob pena

de ficar impedido para o novo conúbio e arcar com as respectivas conseqüências111.

Em segundo lugar, vê-se que a lei não faz menção alguma ao casamento

inexistente, ou seja, caso ultimado casamento sem celebração, consentimento ou entre

pessoas do mesmo sexo, os “cônjuges” deste casamento poderão consorciar-se com

outrem a qualquer momento, uma vez que tal espécie de casamento não gera efeitos no

mundo jurídico, o que reforça também a não possibilidade de equipará-lo ao

casamento nulo. Isto também se aplica ao casamento exclusivamente religioso que,

não sendo registrado civilmente, não produz qualquer efeito na seara jurídica.

Assim, como a lei exige para a ultimação de casamento que os nubentes não

possuam qualquer vínculo matrimonial anterior, conclui-se que o consensual ou

judicialmente separado está legalmente impedido de casar-se112, pois de acordo com o

artigo 1.571, § 1º do Código Civil, a dissolução do casamento somente ocorre:

“Art. 1.571.............

§ 1º O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos

cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida

neste Código quanto ao ausente.”

Na esteira da parte final do dispositivo supra aludido surge uma questão: o

cônjuge de pessoa ausente pode contrair novo matrimônio?

De acordo com o Código de 1916 isso não era possível em face de seu

artigo 10, visto que presumia a morte do ausente somente nos e para os casos dos

artigos 481 e 482 do mesmo diploma, ou seja, mesmo declarado ausente, presumia-se

sua morte apenas para efeitos sucessórios113.

111 Decorrência do cânone: “1085:.................§ 2. Aun cuando el matrimonio anterior sea nulo o haya sido disuelto por cualquier causa, no por eso es lícito contraer otro antes de que conste legítimamente y con certeza la nulidad o disolución del precedente.” <www.vatican.va/archive/ESL0020/_P3U.HTM> 112 No mesmo sentido tem sido as decisões dos Tribunais nacionais: “CASAMENTO - Anulação - Admissibilidade - Hipótese de bigamia - Cônjuge apenas separado judicialmente ao contrair novo matrimônio - Artigo 183, VI e 207 do Código Civil - Recurso parcialmente provido”. (Apelação Cível n. 234.962-1 - São Paulo - 2ª Câmara Civil de Férias - Relator: Ênio Zuliani - 03.10.95 - V.U.). 113 Código Civil de 1916: “Art. 10. A existência da pessoa natural termina coma morte. Presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos dos arts. 481 e 482”.

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Entretanto, o Código de 2002 transformou essa concepção com a introdução

do artigo 1.571, § 1º em análise, que em sua parte final manda aplicar a presunção de

morte do ausente também para fins de extinguir o vínculo nupcial.

Para entender melhor o que pretendeu a lei com essa nova previsão,

devemos nos reportar aos artigos 6º e 7º do atual Código que tratam presunção de

morte através ou não da ausência:

“Art. 6º A existência da pessoa natural termina com a morte;

presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei

autoriza a abertura de sucessão definitiva.

Art. 7º Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de

ausência:

I – se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo

de vida;

II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não

for encontrado até 2 (dois) anos após o término da guerra”.

Ante ao exposto, vê-se que o cônjuge de ausente ou de pessoa que se

encontra nas hipóteses do artigo 7º do Código Civil, somente poderá contrair novo

conúbio após declarada a morte presumida destes.

4.8 Impedimento resultante de crime

Obstáculo matrimonial antiqüíssimo, já previsto pelos canônicos114 há

muito, que foi incorporado e mantido, com algumas alterações, na maioria das

legislações, inclusive na brasileira.

“Art. 481. Vinte anos depois de passada em julgado a sentença que concede a abertura da sucessão provisória, poderão os interessados requerer a definitiva e o levantamento das cauções prestadas. Art. 482. Também se pode requerer a sucessão definitiva, provando-se que o ausente conta com 80 (oitenta) anos de nascido, e que de 5 (cinco) datam as últimas notícias suas”. 114 Cânone “1090 § 1. Quien, con el fin de contraer matrimonio con una determinada persona, causa la muerte del cónyuge de ésta o de su propio cónyuge, atenta inválidamente ese matrimonio.

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Tal impedimento passou a ser previsto no artigo 1.521, VII do novo

Código, modificando o antigo artigo 183, VIII do diploma de 1916 apenas

textualmente, visto que extinguiu a expressão “como delinqüente”, mas mantendo

idêntico o comando emanado da norma, vejamos:

“VII – O cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou

tentativa de homicídio contra seu consorte;”

Como bem lembra J.M. de Carvalho Santos, pelo Direito anterior a 1916115,

“impedimento havia quando o cônjuge procurava a morte do outro de acordo com

terceiro”116.

Para o Código de 1916 e o atual não se exige tanto. A lei proíbe e condena

este tipo de união ainda que o cônjuge supérstite seja inocente, pois tratar-se-ia de

casamento no mínimo imoral e macabro.

A maior parte da doutrina117 destaca a célebre justificativa de Clóvis

Beviláqua para a existência deste impedimento:

“O homicídio ou tentativa de homicídio contra a pessoa de um dos

cônjuges deve criar uma invencível incompatibilidade entre o outro

cônjuge e o criminoso, que lhes destruiu o lar, e afeições, que

deveriam ser muito caras. Se esta repugnância não surge

espontânea, é de supor conivência no crime. Poderá ser ausência de

sentimentos de piedade para com o morto ou de estima para consigo

mesmo, mas em grau tão subido que, se a cumplicidade não existiu,

houve a aprovação do crime, igualmente imoral. E, nesta hipótese, a

lei não ferirá um inocente, quer haja co-delinqüência, quer simples

aprovação do ato criminoso”.

§ 2. También atentan inválidamente el matrimonio entre sí quienes con una cooperación mutua, física o moral, causaron la muerte del cónyuge.” <www.vatican.va/archive/ESL0020/_P3U.HTM> 115 Era o que ditava o Decreto-Lei 181 de 1890: “Art. 7º São prohibidos de casar-se: §4º. O conjuge condemnado como autor, ou cúmplice, de homicidio, ou tentativa de homicido, contra o seu consorte, com a pessoa, que tenha perpetrado, ou concorrido directamente para a perpetração de seu crime;” Lydio, Mariano, Commentarios à Lei do Casamento Civil, p. 16. 116 CARVALHO SANTOS, J.M. de Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, p. 43. 117 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil comentado. 10ª ed., São Paulo: Francisco Alves, 1954., apud J.M. de Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, p. 43; Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5, p. 78; Antonio Chaves, Tratado de Direito Civil, v.5, p. 110.

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Para a lei não é necessário a consumação do homicídio, basta a simples

tentativa. Assim, mesmo que o cônjuge vítima da tentativa de homicídio venha a

falecer por qualquer outro motivo que não tenha relação com o primeiro crime, o outro

cônjuge (sobrevivente), não poderá convolar núpcias com aquele que tentara um dia

matar seu consorte.

O legislador, entretanto, não atentou para duas situações constantes do

inciso em estudo que geram algumas dúvidas interpretativas.

A primeira se refere à expressão “cônjuge sobrevivente”, que se adequa

somente no caso do homicídio contra o consorte ter se consumado, pois na hipótese da

tentativa, quem será considerado “cônjuge sobrevivente”, o que foi vítima do crime,

ou o outro consorte que nada sofrera?

Mesmo diante da imprecisão legislativa, a correta interpretação do caso é

no sentido de impedir o casamento do cônjuge com o autor do homicídio ou tentativa

de homicídio contra seu consorte.

A outra, diz respeito à expressão “homicídio”, que utilizada genericamente,

torna duvidosa a intenção do legislador ante a existência de duas espécies de

homicídio: o culposo (art. 121, § 3º, C.P.) e o doloso (art. 121, caput, C.P.). Assim,

qual o tipo de homicídio capaz de gerar o impedimento, somente o doloso ou ambos

culposo e doloso?

A doutrina se divide em duas correntes na resolução da questão.

Segundo Antonio Chaves118, a primeira, encabeçada pelo professor Merêa,

da Universidade de Coimbra, entende estar incluído o homicídio culposo no

impedimento. A segunda e majoritária, acredita não ter sido a intenção do legislador

estender a proibição ao homicídio involuntário, da qual são adeptos o próprio Chaves,

bem como Maria Helena Diniz119, Sílvio de Salvo Venosa120 J.M. de Carvalho

Santos121. Este último bem justifica a não inclusão do homicídio culposo no

118 Tratado de Direito Civil, v.5, p. 110. 119 Curso de Direito Civil Brasileiro, p. 78. 120 Direito Civil: direito de família, v.6, p. 87. 121 Código Civil Brasileiro Interpretado, p. 44.

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impedimento alegando que “não se pode exigir do cônjuge sobrevivente que êle

guarde mágoa do autor do ato desastrado que ocasionou a morte do outro consorte”122.

Por outro lado, corroborando a primeira corrente, se a norma for

interpretada em seus estritos termos, não há dúvida de que ela se refere tanto ao

homicídio doloso como ao culposo, já que não faz distinção.

Nos pronunciamos à favor da segunda corrente, pois, apesar das palavras, a

intenção do legislador pareceu ter sido pela repugnância somente do homicídio

cometido intencionalmente, pois há crimes mais graves que o homicídio culposo que

pode ser praticado contra um dos cônjuges e que não são abrangidos pelo

impedimento, como exemplo o art. 129, § 2º, IV do Código Penal – lesão corporal

dolosa de natureza grave da qual resulta deformidade permanente.

Destaque-se ainda que tanto na tentativa, como na consumação do

homicídio, o agente deve ter sido condenado por sentença penal transitada em julgado

para que o impedimento possa ser oposto validamente, devido ao princípio da

presunção de inocência inserto na Constituição Federal de 1988:

“ Art. 5º. ..................

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado

de sentença penal condenatória;”

Resta ressaltar ainda que persistirá o impedimento ainda que o autor do

homicídio se reabilite penalmente ou seja perdoado. Mas a proibição não subsistirá

caso o agente tenha sido absolvido ou o delito prescrito, extinguindo a punibilidade,

pois não houve condenação.

O Código Civil de 1916, seguindo a Lei do casamento civil123, ainda

elencava outro impedimento resultante de crime, previsto no art. 183, VII, obstando o

casamento do “cônjuge adúltero com seu co-réu, por tal condenado”, sendo que,

somente a condenação pelo crime do artigo 241 do Código Penal, e não a simples

infidelidade, causava o impedimento.

122 Código Civil Brasileiro Interpretado, p. 44. 123 “Art. 7.º: .....................§3º. O conjuge adultero com o seu co-réo condemnado por tal;” Lydio Mariano, Commentarios à Lei do Casamento Civil, p. 12.

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Justificava-se na época da criação do Código de 1916 a inclusão deste

impedimento devido a condenação social gerada pelo não cumprimento do dever de

fidelidade conjugal a que estão submetidos ambos os cônjuges. O adultério era

fortemente repreendido em tempos passados e a lei, para não deixar este fato social à

margem de regulamentação e repressão, proibia-o, visando com este impedimento

evitar a proliferação de relações extraconjugais que tinham intuito de um dia tornarem-

se matrimônio.

Entretanto, o novo Código Civil, atendendo às evoluções por que passaram

os costumes e o inexpressivo alcance da norma, suprimiu esse impedimento para evitar

a prolongação, sem volta, das uniões não matrimonializadas que com o decorrer dos

tempos passariam a ser regularizadas, além do adultério não mais ser considerado

crime atualmente.

4.9 Impedimentos impostos aos estrangeiros

Na verdade, não busca este tópico apresentar um novo impedimento

aplicável somente aos estrangeiros, mas sim, explicar quais impedimentos devem ser

respeitados por aquelas pessoas quando seu casamento for realizado no Brasil. O

Código Civil, porém, não traz nada a respeito, por isso, teremos que recorrer a Lei de

Introdução do Código Civil para desvendar a questão.

Dispõe o artigo 7º, caput e § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil que:

“Art. 7.º A lei do país em que for domiciliada a pessoa determina as

regras sobre começo e fim da personalidade, o nome, a capacidade

e os direitos de família.

§1.º Realizando-se o casamento no Brasil, será aplicada a lei

brasileira quanto aos impedimentos dirimentes e às formalidade da

celebração.”

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O dispositivo é claro ao prever que a lei brasileira prevalecerá sobre a do

estrangeiro quando se tratar de impedimentos dirimentes e formalidades da celebração

matrimonial.

Entretanto, a Lei de Introdução foi editada em 4 de setembro de 1942, tendo

como parâmetro o Código Civil de 1916, vigente à época.

Como a classificação adotada em matéria de impedimentos no Código

antigo, separando-os em dirimentes absolutos, dirimentes relativos e meramente

impedientes, foi alterada pelo novo Código, conforme já ressaltado, a Lei de Introdução

encontra-se desatualizada em seus termos ao tratar do assunto, exigindo-se do

legislador, que lhe dê ao menos uma nova “roupagem”, de forma a adaptá-la ao atual

Código.

O § 1º do artigo 7º em questão dita que os estrangeiros que contraírem

matrimônio no Brasil devem respeitar os “impedimentos dirimentes”. Como os

impedimentos dirimentes no antigo diploma civil dividiam-se em absolutos (art. 183, I

ao VIII) e relativos (art. 183, IX ao XII), e atualmente são tratados como impedimentos

(art. 1.523 n.CC) e causas de anulabilidade (art. 1.550 n.CC), respectivamente,

concluímos que de acordo com o Código Civil vigente, os estrangeiros deverão

respeitar ambas as espécies, já que a Lei de Introdução não faz distinção.

Exemplo desta necessidade de observar os atuais impedimentos é o caso de

pessoa que foi casada no estrangeiro e não tendo se divorciado, ou seu casamento

declarado judicialmente nulo, vem ao Brasil com intuito de novamente se casar124.

Claramente tal indivíduo encontra-se impedido ao novo matrimônio, pois o

antigo deveria ter sido legalmente dissolvido de acordo com a lei do país em que se

efetivou o ato para que pudesse ser considerado livre aqui. Além do mais, mesmo que

seu casamento já estivesse dissolvido, o importante é que o ato judicial de dissolução do

vínculo anterior seja operante no Brasil, ou seja, devidamente homologado125.

124 Nossos Tribunais pronunciam-se no mesmo sentido: “CASAMENTO - Estrangeiros casados no país de origem - Adoção da nacionalidade brasileira - Celebração de novo casamento no Brasil pelo regime da comunhão - Nulidade - Código Civil artigo 183, VI - Regime de bens de estrangeiros naturalizados - Lei Introdução ao Código Civil, artigo 7º, § 5º - Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal e comunicação dos aqüestos - Recurso improvido.” (Apelação Cível n. 170.781-4 - Monte Aprazível - 4ª Câmara de Direito Privado - Relator: OlavoSilveira19.04.01V.U.). 125 Entretanto já se decidiu pela inexistência de impedimento mesmo com a ausência de homologação do ato dissolutivo no Brasil:

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Já as atuais causas suspensivas, por corresponderem aos antigos

impedimentos impedientes ou meramente proibitivos, e não aos dirimentes, não são

levados em consideração quando do casamento de estrangeiro realizado no Brasil, se o

ordenamento pátrio deste nada dispuser a respeito.

4.10 Prova dos impedimentos

Por não serem considerados fatos jurídicos aos quais a lei imponha forma

especial, podem as causas que induzem impedimentos ser provadas por qualquer meio

indicado no artigo 212126 do Código Civil.

Entretanto, em determinados casos, mais precisamente naqueles relativos a

parentesco, afinidade e casamento anterior, a comprovação dos impedimentos só pode

ser feita através de documentos a que a lei exige forma especial para constituição e

validade.

A filiação, de acordo com o artigo 1.603 do Código Civil, “prova-se pela

certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil”, ou, na falta ou defeito

deste, por qualquer modo admitido em direito, desde que observadas as disposições do

artigo 1.605 do Código Civil. Ressalte-se o caso dos filhos havidos fora do casamento,

que poderão ser reconhecidos por qualquer das formas arroladas no artigo 1.609127 do

Código Civil, servindo de prova em sede de impedimentos.

“CASAMENTO - Anulação - Bigamia - Inocorrência - Casamento de estrangeiro no Brasil, antes da homologação da sentença estrangeira, que anulou seu primeiro casamento no exterior - Condição de não casado ao tempo do segundo matrimônio - Formalidade da homologação que, no caso, pode ser suprida a posterior! - Nulidade absoluta do artigo 183, inciso VI, do Código Civil, inexistente - Ação improcedente - Sentença confirmada” JTJ 129/45. 126 “Art. 212. Salvo negócio a que se impõe forma especial, o fato jurídico pode ser provado mediante: I – confissão; II – documento; III – testemunha; IV – presunção; V – perícia.” 127 “Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito: I – no registro de nascimento; II – por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; III – por testamento, ainda que incidentalmente manifestado; IV – por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido objeto único e principal do ato que o contém.”

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O vínculo gerado pela adoção, por sua vez, prova-se, nos termos do artigo

47 do Estatuto da Criança e do Adolescente, através de sentença judicial transitada em

julgado, que deverá ser devidamente transcrita no Registro Civil competente.

Já nas hipóteses de afinidade e de casamento anterior não dissolvido, por

serem impedimentos que têm origem em conúbio anterior, somente podem ser

demonstrados através de certidão do registro, de acordo com o artigo 1.543, caput do

Código Civil, e na sua falta, por qualquer outra espécie de prova, nos termos do

parágrafo único do mesmo artigo.

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5. A INCIDÊNCIA DOS IMPEDIMENTOS NA UNIÃO

ESTÁVEL

A união estável recebeu especial proteção constitucional no artigo 226, §3º

da Constituição Federal vigente, entretanto, esta apenas reconheceu sua existência, não

dispondo nada mais a seu respeito.

Era necessário, assim, que a matéria fosse devidamente regulamentada para

que pudessem ser mensurados os direitos e obrigações oriundos desta espécie de

relação e principalmente seus efeitos.

E com esse intuito veio à baila as Leis 8.971/94 e 9.278/96, a primeira

tratando do direito dos conviventes a alimentos e à sucessão e a segunda, regulando o

aludido § 3º do artigo 226 da Constituição Federal.

Tais leis especiais foram sucedidas pelo novo Código Civil, que

definitivamente regulamentou o instituto da união estável em seus artigos 1.723 a

1.727.

Assim, por estar atualmente devidamente regulamentada e ser instituto

correlato ao casamento, já que visa a constituição de entidade familiar, é indiscutível

ser essa situação geradora de impedimentos.

Mas antes de adentrarmos no tema específico dos impedimentos na órbita

da união estável, faz-se necessário breves delineamentos acerca do que se trata esse

instituto.

De acordo com o artigo 1.723, caput do Código Civil, considera-se união

estável ou o chamado concubinato puro:

“Art. 1723. É reconhecida como entidade familiar a união estável

entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,

contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição

de família”.

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Com base neste preceito legal, podem ser extraídos os requisitos essenciais

para a caracterização da união estável, quais sejam, que se constitua entre um homem e

uma mulher, desenvolva-se de forma pública, contínua e duradoura, tendo o objetivo de

formar uma família.

Aqui já pode ser identificado o primeiro equívoco legal, pois a união estável

só existirá verdadeiramente após a efetiva constituição da família, mesmo que sem

prole, e não com o simples objetivo de constituir família, ou seja, se considerarmos a

mera vontade de um dia construir uma entidade familiar, seríamos obrigados a

enquadrar como pessoas unidas estavelmente os namorados e noivos, que comumente

se unem com esse objetivo. Portanto, não basta somente o objetivo, este tem de estar

concretizado numa entidade familiar.

Apesar da crítica ressaltada, são estes os requisitos configuradores da união

estável que podem ser depreendidos da análise normativa.

Isto posto, passemos aos impedimentos e sua incidência na união estável.

Neste passo, necessária é a menção da regra trazida pelo artigo 1.723, § 1º do

Código Civil:

“§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os

impedimentos do art. 1.521; ...”

Quanto a primeira parte do dispositivo, não vislumbra-se problema algum e

até se justifica o comando, já que a união estável é forma de constituição e familiar e

por isso merece estar resguardada de anomalias oriundas da não observância dos

impedimentos do artigo 1.521 do Código Civil.

Ressalte-se que a letra da lei é clara ao subordinar a existência da união

estável à ausência dos impedimentos aplicáveis ao matrimônio.

Contudo é na segunda parte do dispositivo que surge uma das maiores

divergências acerca do tema, ante a contraditoriedade do Código Civil.

Dispõe a § 1º, 2ª parte do artigo 1.723 do Código Civil:

“... não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa

casada se achar separada de fato ou judicialmente”.

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Relembremos que o inciso VI do artigo 1.521 do Código proíbe o

casamento das “pessoas casadas”.

Entretanto, a 2ª parte do dispositivo aludido dita não se aplicar à união

estável esse impedimento no caso de pessoas separadas de fato ou judicialmente, ou

seja, expressamente permite a constituição de união estável entre pessoas apenas

separadas de fato ou judicialmente.

Isto significa que, mesmo não tendo havido a dissolução do vínculo

conjugal anterior, as pessoas casadas, mas separadas de fato, ou as judicialmente

separadas poderão se unir a outras de forma estável, constituindo nova entidade

familiar.

Desse modo, inova o Código de 2002 ao estender a aplicação das regras da

união estável para outras situações, tidas anteriormente como concubinato impuro, já

que a pessoa separada de fato ou judicialmente ainda não rompeu com o vinculo

oriundo do casamento.

Ora, analisando-se a questão mais de perto, verifica-se que o comando legal

é um pouco contraditório, pois como casamento e união estável se destinam a um

único fim comum principal, qual seja, a formação de entidade familiar, porque

subordinar apenas o casamento aos impedimentos, inclusive do inciso VI do artigo

1.521 do Código, e a união estável não? Quer dizer que por ser a união estável uma

relação informal ela vai estar a salvo dos problemas gerados por um casamento

anterior não totalmente dissolvido?

Cremos que não e vamos demonstrar o porque.

Mas o principal problema reside não na hipótese dos separados

judicialmente, pois aqui, é possível delimitar até onde e quando o casamento gerou

direitos e obrigações aos cônjuges, pois a separação judicial, nos termos do artigo

1.571, III do Código Civil, põe fim a sociedade conjugal, e com isso, os “ex-cônjuges”

não necessitam mais cumprir os deveres conjugais de coabitação e fidelidade

recíproca, bem como não mais se considera o regime de bens (artigo 1.576 CC), uma

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vez que com a sentença da separação judicial há a separação de corpos e a partilha dos

bens do casal, de acordo com o artigo 1.575, caput do Código Civil.

“ Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:

....................

III – pela separação judicial;”

“Art. 1.576. A separação judicial põe termo aos deveres de

coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens”.

“Art. 1.575. A sentença de separação judicial importa a separação

de corpos e a partilha de bens”.

A questão que tem atormentado tanto a doutrina como a jurisprudência se

refere à possibilidade dos separados de fato constituírem novas famílias através de

união estável com terceiro mesmo não restando dissolvido nem a sociedade, muito

menos o vínculo conjugal relativo ao casamento anterior, já que o que existe entre eles

é tão somente uma situação de fato.

Na resolução deste impasse divide-se a doutrina.

Uma primeira corrente, encabeçada pela atual jurisprudência e a maioria

dos doutrinadores, considera possível a união estável se configurar mesmo entre

separados de fato, sob alegação de que com a separação de fato comprovada, passa a

inexistir efetiva comunhão de vida entre os cônjuges, e, não havendo mais comunhão

de vida e sim a vontade irreversível de não mais permanecerem casados, não há que se

falar em dever conjugal. Ou seja, para esta parte da doutrina e da jurisprudência, o

estado civil dos conviventes não é elemento crucial para a constituição da união

estável, pois para eles a separação de fato rompe com os direitos e deveres do

casamento previstos no artigo 1.566 do Código Civil.

Já para uma segunda parte da doutrina128, os separados de fato ainda são

vinculados matrimonialmente, visto que nem a sociedade, nem o vínculo conjugal se

128 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 5, p. 330.

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dissolvem apenas com o decurso do tempo e com a vontade de não mais permanecer

casado. É necessário a intervenção judicial para que essa falta de afeição e o tempo de

separação sejam reconhecidos de forma a liberar os cônjuges para novos

relacionamentos sem restrições. Assim, para essa corrente, a ausência de

impedimentos matrimoniais, inclusive o do artigo 1.521, VI do Código, deveria ser

requisito essencial para a formação de uma união estável válida.

Somos adeptos deste último posicionamento doutrinário que, apesar de

minoritário, nos parece o mais adequado ao sistema legal constitucional e do Código

Civil. Demonstraremos alguns motivos que justificam essa tomada de posição.

Primeiramente, ressalte-se que para a constituição de casamento válido,

devem ser obedecidas determinadas formalidades. Por isso, seria ilógico não

reconhecer a necessidade de se cumprir certas formalidades para que fosse dissolvido,

qual seja, o processo de divórcio129. Assim, se o casamento não foi desconstituído de

acordo com as formalidades legais, não há que se falar em sua dissolução, subsistindo

tanto o casamento, como os impedimentos que dele se originam.

De acordo com Maria Helena Diniz, a separação de fato é a “cessação da

vida em comum dos consortes, sem intervenção judicial”130, ou seja, na separação de

fato não é obedecida nenhuma das formalidades necessárias à desconstituição do

vínculo conjugal, o que faz concluir ser os separados de fato ainda casados. E, sendo

ainda casados, estão impedidos de contrair novo matrimônio já que a nossa lei civil

contempla o princípio da união monogâmica. Ora, se nossa lei civil tem como base

aludido princípio na formação e manutenção do casamento, porque não o teria também

com relação à união estável, já que à união estável devem ser aplicadas as mesmas

regras do casamento?

Em segundo lugar, o artigo 1.727 do Código Civil, que trata do concubinato

impuro, claramente dispõe que “as relações não eventuais entre o homem e a mulher,

impedidos de casar, constituem concubinato”. Ou seja, esse artigo não ressalva o

impedimento do artigo 1.521, VI do Código, como faz a 2ª parte do § 1º do artigo

129 O divórcio é a forma jurídica de extinção do vínculo e da sociedade conjugal, já que de acordo com o artigo 1.571, I do Código Civil, a morte é a forma natural de sua extinção. 130 Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 5, p. 286.

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1.723, considerando em situação de concubinato impuro todos aqueles que se unirem a

outrem estando impedidos de casar. E, sendo a hipótese do artigo 1.521, VI um

impedimento, as pessoas casadas que se unirem a terceiro sem antes promover a

dissolução do vínculo matrimonial mantém relacionamento considerado pela lei como

concubinato impuro e não união estável.

Outro motivo para considerarmos esta posição a mais acertada refere-se ao

fato de que, não obstante a previsão do artigo 226, §3º, da Constituição Federal de

1.988 ao ditar que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável

entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua

conversão em casamento”, o artigo 1.723, §º1, do Novo Código Civil, ao estabelecer a

possibilidade de pessoa separada de fato manter união estável com outrem, entra em

choque com o preceito constitucional acima transcrito, pois a pessoa separada de fato

ainda é considerada casada, e, assim sendo, será impossível a conversão em casamento

de uma união estável em que um ou ambos os conviventes encontra-se nesta situação,

sob pena de instaurar-se verdadeira bigamia.

Nessa esteira, o casamento não pode ser considerado apenas um vínculo

formal, mas uma realidade, que convive com outra, que é a relação fora do casamento.

Admiti-la é permitir que a própria lei especial seja afrontada, pois não se pode falar em

respeito e considerações mútuos, que são deveres da união estável, estando os

conviventes ainda unidos matrimonialmente a outrem.

Outro problema que impossibilita nos posicionarmos a favor da primeira

corrente, é que a união estável existente, contraída por pessoa separada de fato, não

poderá ser convertida em casamento conforme prevê o texto constitucional, já que o

convivente ainda não rompeu com o seu vínculo matrimonial. Percebe-se que, nesse

sentido, o novo Código Civil não estará facilitando a “conversão da união estável em

casamento”, conforme manda a Carta Magna de 1.988.

Como dito, em que pese a opinião dos ilustres juristas que defendem a

possibilidade de união estável entre pessoas separadas de fato, seguimos os

ensinamentos da eminente professora Maria Helena Diniz, que também é contrária a

esse posicionamento:

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“Será puro (CC, arts. 1.723 a 1.726) se se apresentar como uma

união duradoura, sem casamento civil, entre homem e mulher livres

e desimpedidos, isto é, não comprometidos por deveres

matrimoniais ou por outra ligação concubinária. Assim vivem em

união estável ou concubinato puro: solteiros, viúvos, separados

judicialmente ou de fato (em contrário, RJ, 725:322, 745:336 e

198:136, por haver óbice ao casamento) e divorciados (RT,

409:352). O separado de fato aqui se incluiria ou não? É uma

questão polêmica, por serem as normas de direito de família de

ordem pública e, além disso, não há o estado civil de separado de

fato, e fator tempo não tem, juridicamente, o condão de romper, por

si só, a sociedade conjugal e muito menos o vínculo matrimonial.

Sem embargo disso o novo Código Civil, a doutrina e jurisprudência

têm admitido efeitos jurídicos à ‘união estável’ de separado de fato

por ser uma realidade social. Mas poderia o ilícito acarretar

direitos e obrigações, se a ela só se deveriam impor sanções? Por

isso, poder-se-ia, entendemos, admitir a essa união algum efeito

como sociedade de fato e não como união estável, ante o princípio

de que se deve evitar o locupletamento ilícito.”131

Ademais, permitir a união estável entre os separados de fato causaria

imensos transtornos no que tange à individualização do patrimônio do casamento e da

posterior união estável, já que no caso da existência de patrimônio construído tanto na

vigência do casamento quanto da união estável, a confusão patrimonial seria

inevitável.

Além do aspecto patrimonial do problema, revela-se ainda a possibilidade

de haver confusão acerca da paternidade (turbatio sanguinis) de prole nascida durante

a transição do casamento à união estável, caso não observados os prazos legais

131 Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5, p. 330.

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relativos a sua presunção, o que sem dúvida seria nascedouro de imensuráveis

controvérsias no seio da entidade familiar.

Entendemos ainda, que a pessoa separada de fato mantém com outrem um

concubinato impuro adulterino, que não pode inclusive ser apreciado pela Vara da

Família, mas pela Vara Cível comum (exceção ao caso de advir prole dessa união),

com a aplicação das regras previstas para a sociedade simples no que se refere às lides

patrimoniais.

Diante todo o exposto, não concordamos as mudanças operadas pelo novo

Código Civil neste assunto, entendendo serem as mesmas inconstitucionais, gerando

maiores confusões do que já temos no momento, principalmente na interpretação dos

conceitos relacionados com a união estável.

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6. OPOSIÇÃO DE IMPEDIMENTOS E DE CAUSAS

SUSPENSIVAS

6.1 Conceito

Inicialmente ressaltamos que apesar do objetivo do presente trabalho ser o

estudo apenas dos impedimentos previstos no artigo 1.521 do novo Código Civil,

acreditamos importante também destacar o procedimento de oposição das causas

suspensivas do artigo 1.523 do mesmo diploma, haja vista ser interessante as

diferenças existentes num e noutro caso.

A oposição de impedimentos e causas suspensivas pode ser conceituada sob

duas óticas. Sob o ponto de vista material, trata-se de ato praticado por pessoa

legalmente legitimada, através do qual se noticia à autoridade competente para

habilitação ou celebração matrimonial, a existência de circunstância que impede ou

suspende a realização do casamento. Já sob o prisma processual, é considerado um

procedimento sumário, de caráter correcional, que gera uma decisão sem força de

coisa julgada.

A oposição pode ser vista ainda como a forma que a sociedade, ou os

legalmente legitimados têm de impedir a realização de matrimônio que contrarie a

ordem pública ou os bons costumes132.

A matéria é simultaneamente tratada em dois diplomas legais: no Código

Civil e na Lei 6.015/73 – Lei dos Registros Públicos.

No primeiro, ela vem elencada nos artigos 1.522 e seu parágrafo único,

1.524, 1.529, 1.530 e parágrafo único. Já no segundo, apenas o artigo 67, § 5º trata do

assunto, principalmente do ponto de vista procedimental.

132 Nesta esteira, ressalte-se os ensinamentos de Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, p. 75-76, apud Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v.5, p. 82: “[...] a sociedade tem interesse em que não se realize o casamento de pessoas impedidas, mas se ele for celebrado, a conveniência social reside na sua conservação, salvo o desfazimento daqueles infringentes de normas condizentes com a paz civil e doméstica. Daí decorrer este contraste: não são as mesmas pessoas credenciadas a pedir a nulidade ou a anulação as que podem acusar o impedimento, que são em maior número.”

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6.2 Procedimento de oposição dos impedimentos e causas suspensivas

No que tange ao procedimento de oposição, tanto dos impedimentos, como

das causas suspensivas, aplica-se as regras arroladas no artigo 67, §5º da Lei dos

Registros Públicos.

Inicia-se com a apresentação da causa considerada impeditiva ou

suspensiva do matrimônio, que no primeiro caso deverá ser alguma do artigo 1.521 do

Código Civil e no segundo do artigo 1.523 do mesmo diploma.

De acordo com o artigo 1.529 do diploma civil, esta apresentação se dá

através de “[...] declaração escrita e assinada, instruída com as provas do fato alegado,

ou com a indicação do lugar onde possam ser obtidas”.

Recebendo a referida declaração e estando esta de acordo com os requisitos

legais, o oficial de Registro Civil deverá cientificar os nubentes da alegação firmada

através de nota da oposição, documento que conforme o artigo 1.530 do Código Civil

deve obrigatoriamente conter os fundamentos da oposição, as provas produzidas pelo

oponente e, não se tratando de oposição de ofício (do juiz ou do oficial do Registro

Civil), o nome deste.

Cientificados os nubentes, lhes é aberto prazo de 03 (três) dias, que pode ser

dilatado a requerimento dos mesmos nos termos do parágrafo único do artigo 1.530 da

lei civil, para indicação das provas que pretendem produzir.

Os autos da oposição são então remetidos, de acordo com Sebastião José

Roque133, ao juiz de casamentos competente para o julgamento.

Abre-se então prazo de 10 (dez) dias para produção de provas do oponente

e dos nubentes, com a devida ciência do Ministério Público.

Passa-se então à oitiva dos interessados e do Ministério Público no prazo de

05 (cinco) dias, seguindo-se o julgamento em igual prazo.

Quanto à decisão proferida no procedimento de oposição, cabe destacar a

não incidência do instituto da coisa julgada, uma vez que, sendo procedimento

133 Direito de Família, p. 37.

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administrativo que tramita junto ao Ofício de Registro Civil, pode ser rediscutida na

esfera judiciária.

Como bem aponta o mestre Orlando Gomes134, se tais formalidades não

forem observadas, a oposição será nula.

6.3 As peculiaridades da oposição dos impedimentos do casamento.

Apesar das regras procedimentais de oposição do artigo 67, §5º da Lei de

Registros Públicos serem as mesmas, tanto para os impedimentos como para causas

suspensivas, existem regras especiais distintamente aplicáveis a um e a outro caso,

advindas principalmente do Código Civil.

A primeira e talvez mais importante, se refere à legitimidade para oposição,

ou seja, quem é apto para alegar impedimentos.

De acordo com a parte final do artigo 1.522 CC, os impedimentos arrolados

no artigo 1.521 do mesmo diploma, “podem ser alegados por qualquer pessoa capaz”.

Assim, no aferimento da capacidade do oponente, devem ser aplicadas as regras dos

artigos 3º, 4º e 5º da parte geral da lei civil. É o caso, por exemplo, de um jovem que,

contando com 15 (quinze) anos de idade, encontra-se apaixonado por mulher prestes a

se casar com o próprio irmão. Como visto, o inciso IV do artigo 1.521 do Código Civil

proíbe esta união, então, o garoto, objetivando impedir o casamento de sua amada, ao

se opor, deverá estar devidamente representado por seus representantes legais, uma

vez que o artigo 3º, I, da lei civil considera os menores de 16 (dezesseis) anos

absolutamente incapazes para os atos da vida civil. Caso realizada sem a observância

destas regras, a oposição praticada pelo jovem será nula.

No mesmo sentido, porém mais rígido, é o comando do parágrafo único do

artigo 1.522135, também do Código Civil, que obriga o oficial de Registro e o juiz

competente pela celebração do casamento a oporem de ofício o impedimento, bem

134 Direito de Família, p. 92. 135 “Art. 1.522. [...] Parágrafo único. Se o juiz, ou oficial de registro, tiver conhecimento da existência de algum impedimento, será obrigado a declará-lo”.

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como a causa suspensiva de que tiverem notícia, sob pena de serem responsabilizados

por essa omissão.

Justificasse estender a possibilidade de argüição das hipóteses do artigo

1.521 CC ao maior número possível de pessoas, pois caso tais normas sejam

transgredidas, atingirão de forma mais gravosa a sociedade.

Já as causas suspensivas, nos termos do artigo 1.524 CC, só “podem ser

argüidas pelos parentes em linha reta de um dos nubentes, sejam consangüíneos ou

afins, e pelos colaterais em segundo grau, sejam também consangüíneos ou afins”.

Seguindo os ensinamentos de Maria Helena Diniz136 e Washington de Barros

Monteiro137, faculta-se a oposição somente a esta classe especial de pessoas, pois as

hipóteses de suspensão dizem respeito exclusivamente à família, não atingindo a

coletividade como um todo.

Ainda no campo da legitimidade, diverge a doutrina acerca da possibilidade

do Ministério Público apresentar oposição ao matrimônio. Maria Helena Diniz segue o

magistério de Eduardo Espínola e Caio Mário da Silva Pereira, ao incluir o Ministério

Público, na pessoa de seu representante, entre os legitimados à oposição, alegando que,

“se a qualquer do povo é lícito opô-lo, com mais razão o é ao órgão que representa a

sociedade e que, funcionalmente é o defensor do direito objetivo”138. Antonio

Chaves139 ressalta a opinião contrária de Virgílio de Sá Pereira, para quem o

Ministério Público não pode opor impedimento, uma vez que não possui tal

competência e nem recebeu esta atribuição da Constituição Federal. Além disso, por

ser a competência matéria de direito estrito, não se deduz: ou consta expressamente na

lei ou não existe, sendo que, para atribuí-la na espécie ao Ministério Público, não se

pode recorrer somente a um raciocínio analógico, mas também deve-se considerar a

vontade do legislador.

Diante disso, se analisarmos de forma crítica essa vontade, veremos que se

o legislador atribuiu expressamente essa competência ao Oficial de Registro e ao juiz,

136 Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 5, p. 83. 137 “[...] nem o representante do Ministério Público tem direito de fazê-lo” Curso de Direito Civil: direito de família, v. 2, p. 62. 138 Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 5, p. 83. 139 Tratado de Direito Civil, v. 5, p. 135.

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e não o fez quanto ao Ministério Público, pode-se depreender que não era sua vontade

conceder esse poder-dever a dito órgão, tornando-o assim, incompetente para o ato de

oposição.

Em que pesem as opiniões em contrário, nos filiamos à corrente de Sá

Pereira, pois como competência não se presume, não se pode considerar a oposição

como sendo uma das atribuições específicas do órgão do Ministério Público.

Outra particularidade que diferencia os impedimentos das causas

suspensivas no que concerne ao procedimento de oposição, se refere ao momento da

apresentação.

Dita a primeira parte do artigo 1.522 do Código Civil que os impedimentos

arrolados no artigo 1.521 do mesmo diploma podem ser argüidos até o momento da

celebração. Sendo assim, caso forem opostos durante a celebração, a autoridade deve

suspendê-la imediatamente, “sem examinar se regular ou irregular a oposição, se o

impedimento tem ou não procedência”140.

Por outro lado, as causas suspensivas do artigo 1.523 CC só podem ser

opostas no interregno de 15 (quinze) dias contados a partir da publicação dos

proclamas de que fala a lei no artigo 1.527 CC, pois como a publicidade da intenção

dos nubentes em unir-se em matrimônio se dá com este ato, somente a partir dele

quem tem conhecimento de algum impedimento ou causa suspensiva tomará

conhecimento do futuro matrimônio.

Como visto, concede-se um prazo maior para a alegação de impedimentos,

pois estes, além de prejudiciais à sociedade e a constituição e manutenção da família,

caso argüidos posteriormente, tornarão o casamento já consumado nulo, o que sem

dúvida é causa de instabilidade das relações sociais, principalmente as familiares.

140 Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil: direito de família, v.2, p. 62-63.

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6.4 Efeitos e conseqüências da oposição

O principal efeito produzido pela oposição de um impedimento é a

suspensão do casamento enquanto pendente de julgamento a questão, o que, por

conseqüência, impede a expedição do certificado de habilitação141, que é o requisito

documental comprobatório do cumprimento das formalidades e aptidão dos nubentes

para o matrimônio, tanto civil como religioso142.

Assim, a decisão da oposição pode ser de duas naturezas: improcedência ou

procedência. Sendo improcedente pelo não atendimento das formalidades legais ou por

serem infundadas as alegações, levanta-se a suspensão, extrai-se o certificado de

habilitação e o casamento pode então se realizar. E, como decorrência lógica, se

procedente, inviabilizada está a celebração do ato nupcial pelo reconhecimento de

alguma das causas impeditivas ou suspensivas do matrimônio.

Pode ainda o ato nupcial se consumar enquanto se julgava a questão. Nesta

hipótese, se a oposição for improcedente, considera-se o casamento já ultimado válido,

caso contrário inválido.

Entretanto, como conseqüência da não incidência da coisa julgada na

decisão da oposição, é possível a propositura das ações de nulidade e anulação143, ou

seja, a matéria pode ser rediscutida em juízo com fundamento no mesmo impedimento

já levantado.

Por outro lado, se comprovada a má-fé do oponente, os nubentes têm direito

de ajuizar demanda indenizatória em face do primeiro, com vistas ao ressarcimento

dos danos morais e patrimoniais144 sofridos.

141 Previsto no Código Civil artigo 1.531: “Cumpridas as formalidades dos arts. 1.526 e 1.527 e verificada a inexistência de fato obstativo, o oficial do registro extrairá o certificado de habilitação”. 142 Cumpre ressaltar o disposto no Código Civil em relação ao casamento religioso realizado com habilitação posterior: “Art. 1.516. O registro do casamento religioso submete-se aos mesmos requisitos exigidos para o casamento civil. [...] § 2º O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil, mediante prévia habilitação perante autoridade competente e observado o prazo do art. 1.532”. 143 Conforme visto nos capítulos anteriores, os impedimentos atuam como proibições e as causas do art. 1.523 do Código Civil como suspensivas do casamento, entretanto, se o matrimônio se consumar com a infringência de alguma destas hipóteses, somente serão cabíveis as ações de nulidade ou anulação, não sendo mais possível a oposição. 144 Exemplos de danos materiais oriundos da má-fé do oponente: a não realização de festa ou viagem de núpcias (lua-de-mel), o que sem dúvida acarreta prejuízos patrimoniais, uma vez que os nubentes mantinham contratos com terceiros e já haviam dispendido dinheiro para a sua realização.

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7. ASPECTOS PENAIS DOS IMPEDIMENTOS DO

CASAMENTO

Com relação aos aspectos penais dos impedimentos matrimoniais, serão

abordados três crimes que têm direta ligação com o tema, tendo sido baseados na

legislação civil quando de sua elaboração.

De acordo com o artigo 1521, inciso VI do Código Civil, são impedidas de

contrair casamento as pessoas que já sejam casadas validamente. Ao relacionar este

preceito com a lei penal, chega-se ao artigo 235 desta, que trata da bigamia.

Conforme prescreve o Código Penal, quem contrair, já sendo casado, novo

casamento, poderá ser condenado à pena que varia de dois a seis anos de reclusão. Este

tipo penal visa proteger a organização da família, uma vez que no Brasil somente é

aceita a união monogâmica.

O sujeito ativo deste delito é a pessoa casada, ressalte-se, validamente, que

contrai novo casamento, sendo, portanto, um crime próprio, pois somente indivíduos

casados podem praticá-lo.

O sujeito passivo é o Estado, visto que tal conduta fere profundamente o

seio da sociedade, atingindo também, de forma indireta, o cônjuge do primeiro

matrimônio e o do segundo, caso esteja de boa-fé.

Para sua consumação, necessária é a existência formal e a vigência de

casamento anterior.

Nesta esteira, é importante ressaltar os ensinamentos do Professor Celso

Delmanto acerca da ocorrência ou não do crime em caso de casamento inexistente e de

casamento unicamente religioso, “tratando-se de casamento inexistente (pessoas do

mesmo sexo ou sem consentimento de uma delas), não há crime pela inexistência

jurídica do anterior matrimônio. O casamento religioso (salvo o que produz efeitos

civis) não serve de pressuposto para o crime.” 145

145 Código Penal Comentado, p. 379.

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Pratica o mesmo crime, embora com certa diminuição na pena (que varia de

um a três anos) e a possível adoção do regime detencional no seu cumprimento, de

acordo § 1º do artigo 235 da lei penal, quem, não sendo casado, ou seja, solteiro, viúvo

ou divorciado, contrai matrimônio com pessoa casada sendo conhecedor desta

circunstância.

Ao observar a letra da lei, conclui-se que a pessoa apenas separada

judicialmente e ainda não divorciada, responde pelo crime de bigamia, visto que o

vínculo matrimonial não está totalmente desfeito, o que só ocorre de fato com o

divórcio ou com a morte do cônjuge146.

A consumação da bigamia se dá no momento e lugar em que se efetiva o

casamento. Há doutrinadores que admitem a tentativa, entendendo os que aceitam, que

ela começa com os atos de celebração, e não com o processo de habilitação.

Com isso, se a pessoa já casada validamente contrair novo casamento, além

de responder pelo delito elencado no artigo 235 do Código Penal, poderá ter seu

segundo casamento considerado nulo147, sendo que a nulidade pode ser argüida

mediante ação direta, por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, conforme

dispõe o artigo 1.549 do Código Civil.

O segundo crime relacionado com os impedimentos do casamento é o

“induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento”, descrito no artigo 236 do

Código Penal.

Neste caso, quem contrair matrimônio, induzindo o outro contraente em

erro essencial148, ou ocultando-lhe impedimento que não seja casamento anterior,

comete o crime ora tratado.

146 Conforme julgado: “CASAMENTO - Nulidade - Bigamia - Admissibilidade - Cônjuge que era apenas separado judicialmente ao contrair o segundo casamento - Questão de ordem pública - Artigo 183, VI do Código Civil - Legitimação da filha nascida da segunda união - Recurso não provido. (Relator: Ney Almada - Apelação Cível nº 193.635-1 - São Paulo - 02.12.93)” 147 É o que estabelece o artigo 1548, II do Código Civil: “ É nulo o casamento contraído: ...; II – por infringência de impedimento;” 148 De acordo com o artigo 1557 do Código de 2002, “Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: I – o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado; II – a ignorância de crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne insuportável a vida conjugal; III – a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável, ou de moléstia grave e transmissível, pelo contágio ou herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência; IV – a ignorância, anterior ao casamento, de doença mental grave que, por sua natureza, torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado”.

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Para melhor compreensão do tipo penal, extrairemos as principais

diferenças entre bigamia e ocultação de impedimento.

O artigo 235 do Código Penal, como dito anteriormente, baseou-se na regra

estabelecida no artigo 1521, VI do Código Civil, onde comete o crime que contrair

casamento já sendo casado anteriormente. Por outro lado, pratica a conduta criminosa

do artigo 236 quem oculta do outro contraente a existência de impedimento que não o

taxado no artigo 1521, VI, ou seja, já ser casado. Portanto, poderá responder pelo tipo

penal quem ocultar algum dos impedimentos previsto nos incisos I a V e VII do artigo

1521 do Código Civil, e ressalte-se, somente estes, uma vez que, com o novo Código

Civil, as antigas hipóteses dos incisos IX ao XVI do artigo 183 de 1916, não mais são

consideradas impedimentos, estando tratadas agora em categorias distintas. IX ao XII

– artigo 1550 CC (causas de anulabilidade), XIII ao XVI – artigo 1523 CC (causas

suspensivas).

O bem jurídico atingido aqui não é mais a organização, mas sim, a regular

formação da família, pois se restar escondida uma causa que impeça a união entre os

nubentes, desde já a gênese desta torna-se irregular.

O sujeito ativo nesta hipótese é o cônjuge que, com dolo, oculta o

impedimento, atingindo com essa conduta, tanto o Estado como o outro cônjuge,

podendo responder assim, pela pena de detenção que oscila de seis meses a dois anos.

Consuma-se o crime da mesma maneira como na bigamia, no momento e

lugar em que se realiza o casamento.

Diferentemente do artigo 235, aqui, a Ação Penal é Privada, dependendo de

queixa do contraente prejudicado, tendo como condição especial para a sua propositura

o trânsito em julgado da sentença que, por motivo de impedimento, anulou o

casamento.

Por derradeiro, resta explicitar a última norma de direito penal que se refere

aos impedimentos.

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Trata-se do artigo 237 do Código Penal, onde quem “contrair casamento,

conhecendo a existência de impedimento que lhe cause nulidade absoluta”149, estará

sujeito a pena de três meses a um ano de detenção.

Este preceito visa, como no artigo 236, proteger a regular formação da

família, pois uma vez não cumprido, atingirá tanto o Estado como o cônjuge não

sabedor do impedimento.

O sujeito ativo pode ser um ou ambos os cônjuges conforme nos leciona

DELMANTO, pois “para a incriminação, é suficiente que o agente se case conhecendo

(sabendo) a existência de impedimento que lhe cause nulidade absoluta. ... se ambos os

contraentes souberem do impedimento, serão co-autores (C.P. art. 29).” 150

O delito de conhecimento prévio de impedimento se consuma com a

realização do casamento, só podendo ser processado mediante Ação Penal Pública

Incondicionada.

Aparentemente há um conflito entre este crime e a bigamia, pois ambos

punem o agente que está impedido pela regra civilista do artigo 1521, VI. Isto na

realidade não ocorre, pois quem casar já possuindo vínculo matrimonial anterior válido

e sabendo que este fato trata-se de impedimento, responderá pelo crime de bigamia,

que pelo princípio da consunção, absorve o do artigo 237 do Código Penal.

149 Atualmente os impedimentos hábeis a gerar nulidade absoluta são os elencados no artigo 1.521 do CC/2002. 150 Código Penal Comentado, p. 381.

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CONCLUSÃO

Quando do início da presente pesquisa, certamente não possuíamos a real

dimensão da importância e dificuldade do tema tratado.

Tal constatação veio somente com a análise profunda dos institutos e temas

relacionados aos impedimentos matrimoniais, os quais, tentamos abordar da maneira

mais clara possível.

A dificuldade permaneceu latente durante todo o trabalho, principalmente

devido a reforma implantada pelo novo Código Civil, que modificou não só os

impedimentos propriamente ditos, mas também outros institutos do direito de família

que têm direta relação com estes.

Como forma de contornar esta dificuldade, realizamos o estudo com base

no novo Código, mas sem deixar de nos referir ao Código Civil de 1916 e demais leis

esparsas aplicáveis ao tema, sempre tentando estabelecer as comparações e

considerações pertinentes.

De início, expusemos, apesar das discussões quanto ao momento histórico

exato do nascimento da família, os aspectos essenciais da evolução histórica desta e do

casamento, visando com isso, demonstrar as principais transformações pelas quais

passaram estes institutos no processo histórico da humanidade, ressaltando que desde

os primórdios, têm sido eles objeto de preocupação para todos os povos.

Constatamos que é devido a esta preocupação constante da humanidade

com a formação de uma família saudável tanto sob o aspecto religioso, como pelo

social e jurídico, que vemos a razão da existência dos impedimentos matrimoniais, ou

seja, foram criados para servir não somente como modo de se evitar a constituição

familiar defeituosa apta ao conflito, mas também, como verdadeiras diretrizes do agir

humano quando o assunto é a união entre um homem e uma mulher com intuito de

formar uma família.

Para chegarmos a esta conclusão, percorremos um longo caminho

analisando o conceito, os princípios informativos, requisitos de formação e validade,

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bem como as principais características da família e do casamento, pois só assim seria

possível identificar quando determinada situação considerada prejudicial poderia ser

elevada ao status de impedimento.

Após essas considerações iniciais, adentramos de fato no tema em estudo

com um intróito acerca da origem e evolução histórica dos impedimentos

matrimoniais, desde suas primeiras e primitivas previsões no direito romano, passando

por sua efetiva introdução e sistematização realizada pelo direito canônico do século

XII com a criação da teoria canônica dos impedimentos, até chegarmos às legislações

contemporâneas, dando ênfase à evolução histórica dos impedimentos no Brasil,

considerando efetivamente inseridos no ordenamento jurídico pátrio somente com a

edição do Decreto-Lei 181 de 24 de Janeiro de 1890, apesar das previsões lusitanas

anteriores.

No capítulo seguinte, tratamos de todos os impedimentos previstos no

artigo 1.521 do Código Civil em espécie.

Mas optamos por tratar antes dos delineamentos básicos da matéria,

primeiramente estabelecendo o conceito de impedimentos matrimoniais, de acordo

com a doutrina, já que a lei em nenhum momento destinou atenção para isso. Assim,

os definimos tanto de forma positiva como negativa, destacando ao final a clássica

conceituação de Carlo Rebuttati.

Em seguida, atingimos outro objetivo a que nos propusemos desde o início:

provar que existe diferença entre incapacidade e impedimento matrimonial, apesar da

confusão feita pelo legislador, que em diversos momentos os consideram como

expressões sinônimas.

Não nos olvidamos também em explicitar a importante mudança operada

pelo novo Código Civil na nomenclatura e classificação da matéria, promovendo o

divórcio definitivo entre impedimentos, causas suspensivas e causas de anulabilidade

do matrimônio que antes eram tratados todas pelo nomen juris “impedimentos”,

cabendo à doutrina distinguí-los em absolutos, relativos e meramente proibitivos, de

acordo com as conseqüências que produziam.

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Como dito anteriormente, não é qualquer situação prejudicial ao casamento

que pode ser considerada impedimento, por isso, explicamos seus caracteres,

preventivo, taxativo, público e concentrado, como modo, não só de mais uma vez

ressaltar sua importância, mas também para facilitar o entendimento do instituto.

Após a caracterização dos impedimentos, cuidamos de cada impedimento

matrimonial de forma específica, mas levando em consideração a causa determinante

de cada um, o que nos possibilitou enquadrá-los em quatro grupos: os impedimentos

oriundos de parentesco consangüíneo ou afim, de adoção, de casamento anterior não

dissolvido e de crime.

Para fechar o capítulo destinado aos impedimentos em espécie, tratamos das

questões referentes à prova dos impedimentos e dos impedimentos impostos aos

estrangeiros, acabando por concluir que estes apenas devem respeitar os impedimentos

dirimentes, que na nomenclatura do atual Código correspondem à hipóteses dos artigos

1.521 (impedimentos) e 1.550 (causas de anulabilidade).

Com relação às divergências existentes quanto ao tema, procuramos tecer

nossas críticas de forma a apontar todas as facetas da questão, principalmente no que

tange aos principais posicionamentos da doutrina e da jurisprudência, para ao final, de

forma justificada, apontar a posição que melhor nos convenceu.

Neste passo, apontamos as discussões relativas à revogação ou não do

Decreto - Lei 3200/41 pelo novo Código Civil, que tirava o caráter absoluto do

impedimento que proíbe os colaterais de terceiro grau de contrair núpcias, acatando a

posição majoritária da doutrina que dita não ter havido revogação, persistindo a

possibilidade daqueles parentes se casar desde que obedecidas as formalidades legais.

A oposição dos impedimentos, tratada no “Capítulo 6”, é outro ponto que

causa grandes debates na doutrina, principalmente no que se refere à legitimidade do

Ministério Público para a prática de tal ato. Apesar da maioria doutrinária reconhecer

legitimidade daquele órgão para opor impedimentos matrimoniais, optamos pela

posição minoritária encabeçada pó Virgílio de Sá Pereira, que aduz não possuir o

Ministério Público dita legitimidade, já que esta não lhe é atribuída expressamente por

lei e por isso não pode ser presumida.

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Apesar de ainda indefinida, não poderíamos deixar de citar a questão

divergencial respeitante à natureza jurídica do matrimônio, que tem dividido a doutrina

em três correntes: a institucionalista, a contratualista e a mista. Defendemos a natureza

jurídica mista do casamento assentada na doutrina de Roust, por acreditar ser a mais

condizente com a atual realidade do instituto, que detém ao mesmo tempo caracteres

de instituição e de contrato.

Ao estudar o impedimento oriundo de vínculo matrimonial anterior,

constatamos dois pontos que têm dificultado a interpretação da norma pelos

operadores do direito.

A primeira dúvida que vem à tona, reside em saber se o cônjuge de pessoa

ausente pode contrair novo casamento. De acordo com a sistemática do atual Código,

o cônjuge de ausente ou de pessoa que se encontra nas hipóteses do artigo 7º do

Código Civil, somente poderá contrair novo conúbio após declarada a morte

presumida destes.

A segunda está em saber se a separação de fato rompe com os deveres

conjugais desaparecendo o impedimento resultante de vínculo, possibilitando assim a

constituição da união estável. Em que pese os brilhantes argumentos da doutrina

majoritárias, somos obrigados a concordar com o posicionamento quase que exclusivo

da Professora Maria Helena Diniz, que dita ser impossível a configuração de união

estável entre pessoas separadas de fato, pois esta situação não é hábil a romper os

deveres conjugais. Além deste argumento da eminente professora, acrescentamos

tratar-se o artigo 1.723, § 1º do Código Civil, que permite a união estável entre

separados de fato, de flagrante inconstitucionalidade por ferir o preceito constitucional

do artigo 226, § 3º da Carta de 1988.

Levando em conta o rol de impedimentos do artigo 1.521 do Código Civil,

o último conflito doutrinário diz respeito a expressão “homicídio” trazida pelo inciso

VII daquele artigo, pois ao não especificar a qual espécie de homicídio se refere, faz

parte da doutrina acreditar ter a lei se referido apenas ao homicídio doloso, e outra,

minoritária, ir no sentido de incluir tanto a forma dolosa como a culposa do crime.

Neste caso, somos militantes da primeira corrente, pois realmente não parece ter sido a

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intenção do legislador proibir o casamento do supérstite com aquele que causou

acidentalmente a morte de seu cônjuge. Seria um exagero da lei.

No capítulo final, tratamos dos aspectos penais dos impedimentos do

casamento, mas não sob o aspecto civil como faz a maioria da doutrina, e sim, baseado

no Código Penal, já que a inobservância dos impedimentos pode acarretar a aplicação

de sanções também na órbita penal.

Na legislação penal encontramos três crimes que mantém em seu bojo tema

condizente com os impedimentos matrimoniais, são eles: artigos 235, 236 e 237 do

Código Penal.

Ressalta-se mais uma vez a importância dos impedimentos matrimoniais,

visto que o legislador penal achou por bem criminalizar condutas que atentassem à

normal constituição e manutenção do casamento e conseqüentemente da família.

Não obstante todas as conclusões a que chegamos, percebemos que quanto

maior for a atenção destinada aos impedimentos matrimoniais de um modo geral

(incluindo-se aqui as causas suspensivas e de anulabilidade), melhor protegida estará a

família e a sociedade, pois assim também estará se evitando as anomalias que

inevitavelmente se apresentam na vida familiar devido a desobediência destas regras, e

que, por conseqüência, atingem diretamente a sociedade.

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