Cagliari - A Realidade Linguística Da Criança

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CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e lingüística. São Paulo: Scipione, 1990. pp16-31 A REALIDADE LINGUÍSTICA DA CRIANÇA Uma criança de 7 anos que entra na escola para se alfabetizar já é capaz de entender e falar a Língua Portuguesa com desembaraço e precisão, nas mais diversas circunstâncias de sua vida. Essa criança aprendeu a falar e a entender o que lhe falam, revelando um processo de aquisição da linguagem que teve grande desenvolvimento a partir, aproximadamente, de seu primeiro ano de idade. Com 3 anos ela já era capaz de conversar com outras crianças e com adultos, compreendendo plenamente o que lhe era dito. Sua habilidade com o uso da linguagem havia alcançado um estágio tal que, quando ela não entendia algo que lhe era dito, já dispunha de modos de falar para externar sua dúvida. Quando queria dizer algo e para isso sentia a necessidade de palavras adequadas que não conhecia, usava circunlocuções apropriadas a fim de exprimir, de maneira indireta, o que pretendia. Nesse jogo, é claro, nem sempre perguntava tudo o que não entendia, nem se preocupava em entender tudo o que lhe era dito, na abrangência semântica maior que a fala carrega. A criança de que falamos é qualquer criança normal, de qualquer parte do mundo. As dificuldades específicas de aquisição de linguagem só ocorrem quando a criança apresenta problemas biológicos seriíssimos, causados por patologias neurofisiológicas graves. E é admirável que, mesmo nessas circunstâncias, haja ainda pessoas que conseguem aprender a usar a linguagem ou reaprendê-la, atingindo um extraordinário grau de perfeição. Por exemplo: alguém que tenha sofrido uma lesão cerebral irreversível e grave a ponto de comprometer o uso da linguagem, com o tempo pode recuperar grande parte da capacidade de utilizá-la. Esse é um caso de comprometimento sério, mas há os mais circunstanciais, como o de alguém que, quando sente dor, revela uma dificuldade no uso da linguagem que uma pessoa sã não apresenta. E essa dificuldade pode restringir em muito a execução de sua tarefa lingüística, impedindo, ao se manifestar, que seu portador diga o que quer, e como gostaria, ou que entenda como conviria o que lhe é dito. O estado de fome é semelhante ao estado de dor. E convém lembrar aqui que as pessoas não passam a vida com dor aguda ou com fome. Se se mantêm vivas é porque periodicamente sua dor ou fome cessa e o corpo ganha novo ânimo para continuar vivendo. Nesses períodos recompõe-se não só o organismo biológico, como também o processo de aprendizagem da vida, o qual inclui a linguagem. Uma criança com fome pode ter dificuldades no desempenho das tarefas escolares, mas, se ela continua viva, com força para se locomover até a escola, significa que dispõe de força também para aprender. Num dia será terrível para ela, porque a fome é aguda; noutro, em que tiver a oportunidade de se alimentar, sua disposição será razoável, e nesse jogo levará sua vida. É importante lembrar que essa criança que passa fome viveu assim por 7 anos e, apesar disso, aprendeu a falar, a entender o que lhe dizem, a agir em diferentes situações, a realizar alguns trabalhos, a encontrar um caminho para si nessa miséria e a sobreviver. A escola não pode tratá-la como a um ser falido — se sobreviveu até agora é porque tem condições de

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A REALIDADE LINGUSTICA DA CRIANA

CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetizao e lingstica. So Paulo: Scipione, 1990. pp16-31

A REALIDADE LINGUSTICA DA CRIANA

Uma criana de 7 anos que entra na escola para se alfabetizar j capaz de entender e falar a Lngua Portuguesa com desembarao e preciso, nas mais diversas circunstncias de sua vida.

Essa criana aprendeu a falar e a entender o que lhe falam, revelando um processo de aquisio da linguagem que teve grande desenvolvimento a partir, aproximadamente, de seu primeiro ano de idade. Com 3 anos ela j era capaz de conversar com outras crianas e com adultos, compreendendo plenamente o que lhe era dito. Sua habilidade com o uso da linguagem havia alcanado um estgio tal que, quando ela no entendia algo que lhe era dito, j dispunha de modos de falar para externar sua dvida. Quando queria dizer algo e para isso sentia a necessidade de palavras adequadas que no conhecia, usava circunlocues apropriadas a fim de exprimir, de maneira indireta, o que pretendia. Nesse jogo, claro, nem sempre perguntava tudo o que no entendia, nem se preocupava em entender tudo o que lhe era dito, na abrangncia semntica maior que a fala carrega.

A criana de que falamos qualquer criana normal, de qualquer parte do mundo. As dificuldades especficas de aquisio de linguagem s ocorrem quando a criana apresenta problemas biolgicos serissimos, causados por patologias neurofisiolgicas graves. E admirvel que, mesmo nessas circunstncias, haja ainda pessoas que conseguem aprender a usar a linguagem ou reaprend-la, atingindo um extraordinrio grau de perfeio. Por exemplo: algum que tenha sofrido uma leso cerebral irreversvel e grave a ponto de comprometer o uso da linguagem, com o tempo pode recuperar grande parte da capacidade de utiliz-la. Esse um caso de comprometimento srio, mas h os mais circunstanciais, como o de algum que, quando sente dor, revela uma dificuldade no uso da linguagem que uma pessoa s no apresenta. E essa dificuldade pode restringir em muito a execuo de sua tarefa lingstica, impedindo, ao se manifestar, que seu portador diga o que quer, e como gostaria, ou que entenda como conviria o que lhe dito.

O estado de fome semelhante ao estado de dor. E convm lembrar aqui que as pessoas no passam a vida com dor aguda ou com fome. Se se mantm vivas porque periodicamente sua dor ou fome cessa e o corpo ganha novo nimo para continuar vivendo. Nesses perodos recompe-se no s o organismo biolgico, como tambm o processo de aprendizagem da vida, o qual inclui a linguagem. Uma criana com fome pode ter dificuldades no desempenho das tarefas escolares, mas, se ela continua viva, com fora para se locomover at a escola, significa que dispe de fora tambm para aprender. Num dia ser terrvel para ela, porque a fome aguda; noutro, em que tiver a oportunidade de se alimentar, sua disposio ser razovel, e nesse jogo levar sua vida.

importante lembrar que essa criana que passa fome viveu assim por 7 anos e, apesar disso, aprendeu a falar, a entender o que lhe dizem, a agir em diferentes situaes, a realizar alguns trabalhos, a encontrar um caminho para si nessa misria e a sobreviver. A escola no pode trat-la como a um ser falido se sobreviveu at agora porque tem condies de aprender e se desenvolver, talvez at mais conscientemente do que uma criana que sempre tenha vivido na redoma do lar.

Qualquer criana que ingressa na escola aprendeu a falar e a entender a linguagem sem necessitar de treinamentos especficos ou de prontido para isso. Ningum precisou arranjar a linguagem em ordem de dificuldades crescentes para facilitar o aprendizado da criana. Ningum disse que ela devia fazer exerccios de discriminao auditiva para aprender a reconhecer a fala ou para falar. Ela simplesmente se encontrou no meio de pessoas que falavam e aprendeu.

A criana, evidentemente, no entrou para o mundo da linguagem da mesma forma que um adulto se inicia no aprendizado de uma lngua estrangeira. Ela foi exposta ao mundo lingstico que a rodeia e nele foi, ela prpria, traando o seu caminho, criando o que lhe era permitido fazer com a linguagem. Nesse seu processo se percebe uma evoluo nem sempre simples nem sempre lgica, mas sempre condizente com seu modo de ser e de estar no mundo. E, j com 3 anos, chega ao ponto de ser considerada um falante nativo de uma lngua. Muitos adultos estudam lnguas estrangeiras por anos e r chegam a atingir a proficincia lingstica de uma cria: ca dessa idade.

Quando se diz que a criana j um falante nativo de uma lngua, significa que ela dispe de um vocabulrio e de regras gramaticais. O vocabulrio de uma criana de 3 anos pequeno e ela capaz de entender um nmero maior de palavras do que o que usa. O nmero de palavras que uma pessoa conhece ou emprega est intimamente relacionado s necessidades lingsticas do indivduo. Desse modo, a criana de 3 anos adquire e usa um vocabulrio prprio para expressar aquilo que precisa, assim como um mdico, um metalrgico ou um cozinheiro adquirem e usam o vocabulrio de que necessitam. Todos eles, quando se vem diante de uma palavra desconhecida, perguntam a outros seu significado ou consultam livros, sobretudo os dicionrios.

O pequeno vocabulrio da criana de 3 anos no compromete o sistema lingustico de uma lngua, da mesma forma que o vocabulrio extenso do erudito no contribui significativamente para o sistema lingustico da lngua que usa.

Porm, mais importante do que o vocabulrio ou lxico a prpria estrutura gramatical da lngua. A lngua vive por causa disso. Uma lista de palavras nunca chegar a formar uma lngua. So necessrias as regras do jogo alm das peas e dos jogadores.

Todo falante nativo usa sua lngua conforme as regras prprias de seu dialeto, espelho da comunidade lingstica a que est ligado. Naturalmente, h diferenas entre o modo de falar de um dialeto e o de outro, mas isso no significa que um dialeto dispe de regras e outro no. A linguagem um fato social e sobrevive graas s convenes sociais que so admitidas para ela. As pessoas falam da maneira como seus semelhantes e por isso se entendem. Se cada um falasse como quisesse, jamais poderia existir a linguagem numa sociedade. Algum pode dizer "nis vai prant arrois " porque assim que se fala em seu dialeto, enquanto outro diz "ns vamos plantar arroz". Os dois modos de falar so diferentes em alguns aspectos e por isso caracterizam dialetos diferentes, mas ambos so regidos por regras muito especficas. Tanto se pode fazer uma "gramtica normativa" para um dialeto como para outro. Um dialeto no simplesmente um uso errado do modo de falar do outro dialeto. So modos diferentes.

Todavia, seria estranho, por exemplo, que os falantes estabelecessem a ordem das palavras livremente, dizendo algo como: ' 'prant vai arrois nis " ou ' 'plantar vamos arroz ns", pois esse modo de organizar as palavras em sentenas foge s regras de ambos os dialetos.

As crianas de 3 ou 7 anos, como falantes nativos, tambm usam um dialeto que tem, alm de um vocabulrio, um conjunto de regras gramaticais especficas. Uma caracterstica da fala da criana que chama a ateno do adulto o fato de ela generalizar regras, ou seja, o fato de ela aplicar a regra geral quando deveria aplicar uma particular. quando a criana diz eufazi, em vez de eu fiz, como eu vendi, comi etc. Qualquer manifestao lingstica, desde a mais tenra idade, tem vocabulrio e regras. A criana vai aprender a dizer "nis vai"ou "ns vamos" no porque menos ou mais dotada para a linguagem, mas porque se tornou falante de um ou de outro dialeto. Por outro lado, pelo fato de aprender a falar, com a complexidade que isso envolve, com apenas 3 anos, prova que tem capacidade intelectual extremamente desenvolvida e apta para a fala, sem precisar de professores ou de mtodos especficos, bastandopara tanto o convvio com uma comunidade falante. Evidentemente, os pais e a comunidade de um modogeral zelam pelo desempenho lingstico de seus membros, porque lhes convm que cada um assuma seu papel na sociedade.

Uma criana que entra para a escola pela primeira vez aos 7 anos j trilhou um longo caminho lingustico, j provou no dia-a-dia um conhecimento e uma habilidade lingustica muito desenvolvidos. preciso salientar ainda que aos 7 anos uma criana pode ter mostrado suacapacidade intelectual para aprender e fazer tambm outras coisas, no-relacionadas linguagem. Algumas crianas no Nordeste do Brasil, por exemplo, aprendem a fazer rendas, seguindo padres complicados, contando os pontos, numa clara prova de habilidade manual, memria e capacidade de aprender e executar tarefas dessa natureza.

As crianas, quer trabalhando, quer brincando, sabem o que fazem, no se intimidam diante de algo novo, aprendem a se virar, tomam a iniciativa de participar, aprendem a manusear ferramentas, jogos ou objetos com a preciso necessria para conseguir realizar o que pretendem. Tm senso de proporo, de direo, tm a noo de tempo e velocidade, sempre em funo de alguma atividade que quer realizar. Para conseguir isso no preciso treinamento de prontido, nem orientaco pedaggica: basta deixar a criana agir, atuar sobre os objetos.

A criana que entra na escola pode certamente levar um choque, por mais que os adultos digam que a escola isso ou aquilo. Se ela for pobre, vier de uma comunidade que fala um dialeto que sofre discriminao por parte dos habitantes do lugar onde se situa a escola, seu caso ser realmente dramtico, trgico mesmo. Tudo o que ela conquistou at aquele momento ser completamente ignorado, embora a escola possa dizer que est partindo do conhecimento de sua realidade. Descobrir o preconceito desta quanto ao seu modo de falar, andar, vestir, agir, pensar, que no fundo ser avaliado por isso, e sentir uma dor profunda, porque ela, criana, perceber que isso tudo acontece porque pobre. A escola vai lhe dizer um dia que burra, incapaz de aprender as coisas elementares que todo mundo sabe (sic!...), que tem problemas de discriminao visual, age como se visse as coisas espelhadas, concluso a que chegou vendo que a criana confunde a escrita cursiva das letras b e d. A escola lhe dir que tem problemas de discriminao auditiva porque troca as letras, no aprende a forma cor-reta de escrever as palavras, concluindo, por fim, que preciso comear tudo de novo com essa criana. Esquece-se seu passado, comea-se vida nova. Faz-se com a criana o mesmo que se faz com um relgio: reduz-se a zero, para que no prazo de um ano esteja pronta para receber seu diploma de alfabetizada! claro que, nesse caminho, a escola vai criar mais problemas ainda para a pobre criana pobre e, inevitavelmente lhe atribuir falta de boa vontade. A partir dos resultados negativos das avaliaes que, para a criana, sempre acontecem nos momentos errados, mas que a professora tem de executar porque o calendrio escolar, sintonizado com o relgio do tempo, assim a obriga a agir, a criana final mente considerada portadora de uma doena educacional chamada carncia e, dessa forma submetida a mtodos especiais, sobretudo de segregao, em classes especiais. Esconde-se no fundo, mais uma vez, o preconceito de que pobre diferente e por isso precisa ser colocado em seu lugar, no podendo se beneficiar da companhia daqueles afortunados que falam o dialeto de prestgio, porque dessa maneira o aprender mais fcil e rapidamente e criar problemas de estratificao social na nossa sociedade, zelosa pelo que propriedade de cada um, incluindo os "erros dialetais" do portugus.

Isso tudo a criana sente desse modo. S a escola cega. Mas ela tem o poder, e a criana a desgraa de ser pobre. Por isso, haver um nmero elevado de reprovaes no final do ano escolar, alm, claro, de um nmero significativo de crianas que logo perceber que o jogo desonesto e que o melhor abandonar a luta e sair de vez e rapidamente da escola.

As crianas sentem, mas no sabem reagir lingisticamente a isso. Quando crescerem e aprenderem, ser tarde demais para voltar atrs e dizer tudo o que deviam.

A escola no s interpreta erradamente a realidade das crianas, como tambm no se preocupa com o que estas pensam dela e o que pretendem quando nela ingressam. Ela tem tudo pronto, tudo decidido por algum que se desconhece. Ficar muito surpresa quando ouvir as crianas, pois estas sabem falar srio quando lhes permitem. Podem no dizer as coisas da mesma maneira que o adulto, nem com a mesma extenso, mas dizem com muita seriedade as suas verdades. Vale a pena fazer uma pesquisa nesse sentido. Por exemplo, deveria ser perguntado s crianas o que elas acham da escrita, para que ela serve na comunidade em que vivem e o que pretendem fazer conhecendo-a.

Uma criana que viu desde cedo sua casa cheia de livros, jornais, revistas, que ouviu histrias, que viu as pessoas gastando muito tempo lendo e escrevendo, que desde cedo brincou com lpis, papel, borracha e tinta, quando entra na escola, encontra uma continuao de seu modo de vida e acha muito natural e lgico o que nela se faz.Uma criana que nunca viu um livro em sua casa, nunca viu seus pais lendo jornal ou revista, que muito raramente viu algum escrevendo, que jamais teve lpis e papel para brincar, ao entrar para a escola sabe que vai encontrar essas coisas l, mas sua atitude em relao a isso bem diferente da criana citada no pargrafo anterior. E a maneira como a escola trata da sua adaptao pode lhe trazer apreenses profundas, at mesmo desiluses..

Uma criana pode pensar, ao entrar para a escola, que a escrita serve para contar histrias como aquelas que j ouviu, mas outra pode pensar que a escrita servir para ela ser um office-boy, para tomar notas de pedidos de compras no mercadinho, para assinar documentos e outras coisas semelhantes.

Alm da escrita, devem-se investigar as expectativas dos alunos com relao aos diferentes modos de fala, as leituras, Educao e moral, filosofia de vida que cada um espera ter para si, o que pretendem fazer quando crescerem e o que pretendem fazer na escola etc., etc.

A escola moderna se envolveu num emaranhado de teorias e mtodos, mas se afastou, de fato, da realidade de seus alunos. O que fez a escola? Creio que nem ela prpria sabe explicar. preciso recuperar o fio da meada e comear a tecer de novo, no ao acaso, nem de maneira mais complicada do que o prprio mundo, mas na justa medida das coisas. Por exemplo, ensinar portugus ensinar portugus e no fazer disso um campo de prova de teorias ou hipteses psicolgicas, pedaggicas ou seja l o que for. Mas o que ensinar portugus para pessoas que j sabem falar o portugus?

O QUE A ESCOLA ENSINA?

Neste pas, o aluno passa 8 anos na escola de 1. grau, 3 anos na de 2. grau e pode passar mais 4 na faculdade, sem contar o ano de cursinho preparatrio e as reprovaes... e, se um especialista em problemas relacionados lngua portuguesa fizer uma pesquisa sria para ver o que esse aluno aprendeu em mais de uma dcada de estudos, sem dvida ficar decepcionado. Ento o que o aluno fez nesses anos todos de escola? Ser que o ser humano precisa de tanto tempo para aprender to pouco? O que est errado nesta histria? Tenho a certeza de que o aluno no aprende porque a escola no ensina e no sabe ensinar, e os que aprendem o fazem, em grande parte, apesar do que a escola ensina.

Eu mesmo passei por essa experincia, apesar de ter freqentado uma escola que j no existe mais, com privilgios de formao que poucas pessoas, ainda que ricas, podem ter: uma escola de tempo integral, onde se vivia e no apenas se assistia s aulas. Obviamente os professores eram do mais alto nvel. Professores de ginsio com doutoramento no exterior... Mas, apesar de tudo, havia ainda ali a influncia de uma tradio que torna as escolas retrgradas por natureza. Os mtodos fascinam as pessoas como varas de condo e, s vezes, infelizmente fazem com que certas pessoas se descuidem dos contedos em funo dos mtodos. Os mtodos valem para quem capaz de se beneficiar deles e jamais substituem o contedo, do contrrio se tornam fins em si mesmos, ou mquinas que produzem robs e no seres dotados de capacidade de reflexo intelectual.

No decorrer desta obra, o leitor ficar sabendo o que quis dizer com no ter recebido informaes correias a respeito do portugus ao longo de minha formao escolar, porque fui entender certos aspectos bsicos do conhecimento de uma lngua como o portugus somente aps longos anos de pesquisa. E agora sei que resolvi apenas parte desse problema, aquela relativa minha rea de especializao, que a Fontica e a Fonologia...Porm, apesar de tudo, tive uma escola privilegiada, como disse antes, e sem dvida aprendi muita coisa interessante e til, que possibilitou inclusive o meu desenvolvimento cientfico nos estudos lingsticos. Nas aulas de portugus se estudava portugus, sobretudo se refletia muito sobre os fenmenos lingsticos, e isso era salutar. Mas, se esse tipo de escola no existe mais, o que existe?

O aluno passa anos e anos, diariamente, em aulas de portugus, e o que aprende? Sempre as mesmas coisas: o que significa a palavra... telrico, como se escrevem as palavras... exceo, extenso e estender? qual o plural de... cidado? a que categorias gramaticais pertencem as palavras... mal e mau"! O que substantivo... concreto, abstrato? qual o coletivo de... lobo? qual o sujeito da oraes... "Caiu no jardim a bola'', ' 'H vidros na grama"? o que o autor quis dizer com a expresso... seu idiota!? qual a moral da histria? e finalmente: "Faa uma redao sobre o retrato de um cego". Dito desta maneira pode parecer piada. Mas o que acontece na escola, incluindo muitos cursos superiores de Letras. Ser que estudar portugus isso? s isso? desse jeito? Se num teste para motoristas de nibus urbanos perguntassem aos candidatos se sabem distinguir uma rua de uma calada, ou eles se sentiriam ofendidos ou achariam que era uma brincadeira. Se perguntassem se podem distinguir uma rua asfaltada de uma rua de terra, eles sentiriam ou achariam o mesmo... Como que se sente um falante nativo de portugus quando lhe perguntam qual o feminino de pai, av, menino...? Obviamente, como os candidatos a motoristas de nibus urbanos descritos anteriormente. Como se sente um aluno quando lhe perguntam, na interpretao de um texto que contm a frase "Joo chutou a bola", "quem chutou a bola?" Sem dvida alguma o aluno acha que ele ou a escola so malucos ou bobos!... Mas algum pode argumentar que alguns alunos, diante de tarefas to simples e bvias como essas, no conseguem dar as respostas corretas...

Lembro-me de ter visto, numa prova de avaliao de fim de ano para alunos de uma classe de alfabetizao, seguinte exerccio:

Faa segundo o modelo

o meninoo pai

o av

o tio

Um aluno respondeu: oa paioa, oa avoa, oa tioa. Obviamente, a professora comentou: "Como pode passar de ano um aluno que nem capaz de resolver uma coisa to simples e fcil como essa?" Em primeiro lugar, me parece muito estranho querer tratar de gnero gramatical na alfabetizao... isso deve ser preocupao do ensino somente em sries mais avanadas. Voltando ao teste, qual seu objetivo? Ver se o aluno sabe que nesses pares de palavras tm-se de um lado o pai, o av e o tio (e o menino), e de outro a me, a av, a tia (e a menina)? Que na lngua portuguesa se diz pai-me, av-av, tio-tia? Se se estivesse ensinando portugus para quem no conhece essa lngua, isso poderia ter uma razo de ser. Mas ser que alguma criana de 7 anos, falante nativo de portugus, no sabe disso? Claro que sabe! Ento, por que respondeu errado? Porque, mesmo sabendo que os pares so o pai-a me, o av-a av, o tio-a tia, o aluno decerto achou que no era isso que a escola estava lhe perguntando. Seria muito bobo perguntar algo to bvio. Ento, seguindo o esquema "maluco" de perguntas e respostas da prtica escolar, o aluno arriscou uma soluo.

Uma questo como essa jamais poderia ser respondida erradamente por um falante nativo de portugus, mesmo com 7 anos de idade, a no ser que a formulao da questo fosse capciosa... O que se quer com o exerccio, na verdade, no que o aluno diga os pares opai-a-me etc. e use apropriadamente essas palavras, mas que demonstre que sabe fazer o jogo de perguntas e respostas, to ao gosto da escola e indispensvel, segundo alguns, ao processo de avaliao. Como ningum ensinou ao professor como avaliar o rendimento escolar de um alfabetizado sem lhe fazer perguntas desse tipo, ele continua fazendo. A escola usa e abusa da fora da linguagem para ensinar e para deixar bem claro o lugar de cada um na instituio e at na sociedade, fora dos seus muros. A maneira como se fala, como se deixa falar, sobretudo como se pergunta e como so aceitas as respostas muitas vezes usada no para avaliar o desenvolvimento intelectual de um aluno, mas como um subterfgio para lhe dizer que burro, incapaz ou excelente. uma forma de mostrar que o autor do livro, a professora, a escola possuem o saber, sem margens de dvidas, bem como possuem o poder da autoridade disciplinar e moral a que o aluno deve se submeter. A forma de fazer perguntas , sem dvida, um exerccio de poder do locutor sobre o interlocutor. Numa cartilha famosa, em que aparece a frase "O beb baba, h uma indicao, no manual do professor, da pergunta que o professor deve fazer aos alunos: ' 'O que baba?'', certamente com o objetivo de controlar o conhecimento do significado de todas as palavras da cartilha, ou talvez de exercitar o aluno a responder explicando o significado de palavras. Porm, observe como foi feita a pergunta. Confesso que sou incapaz de dizer o que baba, embora saiba do que se trata. A pergunta, do modo como foi feita, exige como resposta uma definio que difcil de se dar, neste caso. O que o professor deveria perguntar se os alunos sabem o que significa a palavra baba, nada mais. Algum poder dizer que perguntar o que baba uma forma de perguntar o que significa a palavra ba-\ ba... No verdade! Mas reconheo que o jogo da escola consiste em descobrir o que deve ser respondido, a partir de uma pergunta que, no raramente, endereada a] outra direo. Da o aluno tem de aprender apesar da escola, e no de acordo com uma coerncia no processo de ensino. Esse um jogo desonesto com os alunos, um abuso muito grande do uso da linguagem institucionalizada nos processos de avaliao do rendimento escolar.

Evidentemente, a escola no faz esse jogo por maldade, mas o faz, mesmo que seja ingenuamente. E o problema no se coloca apenas numa pergunta de natureza lingstica ou filosfica. Se analisarmos, por exemplo, as dificuldades reais que a grande maioria dos alunos tem para resolver provas, vamos descobrir que o problema no est na falta de conhecimento do aluno, e sim no impasse lingstico criado pela formulao das questes que lhe so apresentadas.

Gostaria que os lingistas, por exemplo, pesquisassem livros e provas de matemtica para compreender aquilo que se deve fazer com os nmeros. Tenho feito algumas investigaes ou constataes a partir das dificuldades do meu filho e pude ver que a criana sabe somar, diminuir, multiplicar e dividir; todavia, dado um certo problema, a dificuldade no est nas contas, mas em compreender aquilo que se deve fazer com os nmeros. Os problemas de Matemtica em geral tm uma funo cabalstica: eles so literais nos valores numricos, mas hermticos nas relaes entre esses nmeros. Porm, como atividade de escola, ou se formulam as questes de maneira mais aberta e clara, sobretudo no incio dos estudos matemticos, ou o professor ter como obrigao explicar corretamente as regras do jogo para o aluno, isto , dever ensinar-lhe como interpretar um problema em primeiro lugar, como l-lo, como descobrir as relaes ocultas entre os nmeros que permitem ao problema ter seu verdadeiro sentido. A questo lingstica do ensino de matemtica fascinante e mereceria um estudo detalhado. A matemtica no se faz s com nmeros, mas tambm com a linguagem. As pessoas no se do conta, a no ser rarssimas excees, da maneira diferente com que lemos nmeros, imprimindo ritmos diversos de fala, porque revelam realidades matemticas diferentes. Um professor no atento a isso pode criar confuso na cabea dos alunos e ser mal interpretado ao fazer perguntas. Um professor que muda as regras do jogo, a seu critrio, com o intuito de facilitar o trabalho dos alunos, pode, em vez de ajudar, atrapalhar o aprendizado. Por que no se aprendem essas coisas na escola? Por que o saber institucionalizado tem de ser sempre um labirinto cuja sada cada um deve descobrir por si para merecer ser contemplado com a prova do saber? A escola diz que quer ensinar, mas no final das contas percebe-se que ela ensina de maneira muito estranha, e esconde mais do que mostra. Contudo, cobra de seus alunos um conhecimento pleno, como se eles fossem obrigados a t-lo, sem ela ministr-lo e sem eles poderem perguntar. Porque nenhum aluno se atreve a perguntar a um professor de matemtica como se interpreta um problema antes de resolv-lo. Os professores sem dvida teriam condies para responder a uma pergunta desse tipo. O problema que esse tipo de pergunta facilmente vedado numa sala de aula, no raro sob a falsa alegao de que representa uma provocao capacidade autoridade do professor.Essa questo no diz respeito somente matemtica, embora a tenha peculiaridades mais interessantes. Com as outras matrias da escola, acontecem coisas semelhantes.H muito a se dizer sobre esse assunto, mas infelizmente foge ao objetivo do debate a que se prope este livro. Por isso, voltemos a discutir o ensino de portugus.O QUE ENSINAR PORTUGUS?

A questo mais fundamental do ensino de portugus obviamente a seguinte: o que ensinar portugus para pessoas que j sabem falar o portugus? Por que no se ensina portugus no Brasil como se ensinaria para falantes nativos de outras lnguas?

Ensinar portugus para falantes nativos como se fosse uma lngua estrangeira de fato um absurdo. A questo assim colocada tem uma resposta pronta e fcil, mas, na prtica escolar, pode-se constatar que muitas das atividades que a escola realiza com os alunos revelam uma atitude perante a linguagem semelhante que teria seestivesse ensinando uma lngua estrangeira.

Mas, se o aluno j sabe portugus, vamos ensinar o qu? Em primeiro lugar, no bem verdade que o aluno j sabe portugus. Ele sabe algumas coisas e no sabe outras. Mas h muita coisa a se fazer de novo e interessante no ensino da lngua materna e isso no se restringe alfabetizao, apesar de este perodo ser, na verdade, muito especial.

O objetivo mais geral do ensino de portugus para todas as sries da escola mostrar como funciona a. linguagem humana e, de modo particular, o portugus; quais os usos que tem, e como os alunos devem fazer para estenderem ao mximo, ou abrangendo metas especficas, esses usos nas suas modalidades escrita e oral, em diferentes situaes de vida. Em outras palavras, o professor de portugus deve ensinar aos alunos o que uma lngua, quais as propriedades e usos que ela realmente tem, qual o comportamento da sociedade e dos indivduos com relao aos usos lingsticos, nas mais variadas situaes de suas vidas.

A escola, tradicionalmente, tem se apegado a umas tantas coisas a respeito da lngua e julgado que isso tudo. Mais especificamente, tem se apegado ao que diz nossa gramtica normativa e metodologia de exigir re-daes e fichas de leitura, na melhor das hipteses. O aluno que passa pelo 1. e pelo 2. grau treinado nesses moldes. Os vestibulares, concursos etc. s levam isso em considerao.

Ao aluno no se ensina adequadamente como ele fala, qual o valor funcional dos segmentos fnicos de sua lngua, como se compe a morfologia desta, a sintaxe, a semntica etc. O aluno fez centenas de redaes e no sabe o que est realmente fazendo, como deve elaborar um texto escrito ou dizer um texto oral em situaes diferentes.A criana que se inicia na alfabetizao j um falante capaz de entender e falar a lngua portuguesa com desembarao e preciso nas circunstncias de sua vida em que precisa usar a linguagem. Mas no sabe escrever nem ler. Esses so usos novos da linguagem para ela, e sobretudo isso o que ela espera da escola. Em muitos casos, h ainda o interesse em aprender uma variedade do portugus de maior prestgio.Essa criana no s sabe falar o portugus, como sabe tambm refletir sobre a sua prpria lngua. De fato, as crianas se divertem manipulando a linguagem: compem palavras novas, a partir da anlise dos processos de formao de palavras, s vezes criando formas surpreendentes; adoram traduzir a sua prpria lngua em cdigos, como a lngua do P, e falar invertendo slabas, substituindo certos segmentos por outros, com uma destreza que o adulto dificilmente consegue acompanhar.As respostas que as crianas do s perguntas que lhes so feitas revelam a incrvel capacidade que tm de manipular fatos semnticos de alta complexidade, como a pressuposio, a argumentao lgica, sem contar com a expresso de metforas e o poder de abstrao e generalizao claramente revelados numa anlise de seu comportamento lingstico. Alm disso, elas contam ainda com uma capacidade enorme de anlise da linguagem oral, o que iro perder logo que entrarem na escola, sufocadas pelo modo como se ensina o portugus, tomando-se a escrita ortogrfica como base para tudo. Na anlise de muitos erros encontrados em provas e nas avaliaes feitas na alfabetizao, fcil observar que, em muitos casos, a criana revela um apego s formas fonticas da lngua, em lugar das formas ortogrficas, no raramente deixando o professor perplexo com a "burrice do aluno", devido a sua incapacidade de analisar a fala com a mesma competncia que a criana apresenta.

A escola no parte do conhecimento que a criana tem de sua fala e da fala de seus colegas para a partir da ensinar o que deve. A escola parte de um abecedrio e de uma fala (tpica de '' professora primria'') completa-mente estranha criana. Talvez isso at sirva de motivao para as crianas considerarem a escola um desafio a sua capacidade de realizao, o "diferente" que esperam ali encontrar. Mas, sem dvida alguma, essa no me parece uma maneira correta de tratar a linguagem na alfabetizao.No ensino de portugus fundamental, essencial e imprescindvel distinguir trs tipos de atividades ligadas respectivamente aos fenmenos da fala, da escrita e da leitura. So trs realidades diferentes da vida de uma lngua, que esto intimamente ligadas em sua essncia, mas que tm uma realizao prpria e independente nos usos de uma lngua.

O que a linguagem. A linguagem existe porque se uniu um pensamento a uma forma de expresso, um significado a um signifcante, como dizem os lingistas. Essa unidade de dupla face o signo lingstico. Ele est presente na fala, na escrita e na leitura como princpio da prpria linguagem, mas se atualiza em cada um desses casos de maneira diferente. Essa procura das relaes entre significado e significante em outras palavras saber como uma lnguafunciona e quais os usos que tem. E isso no tarefa fcil nem simples. H uma imensa literatura lingstica a respeito dessa busca, de seus achados e frustraes, e que absolutamente ignorada pela escola que ensina portugus. A esse respeito falaremos mais adiante, abordando o assunto em detalhes. Tambm sero tratadas em detalhes as questes especficas de fala, escrita e leitura. Gostaria agora de to-somente fazer alguns comentrios gerais.Uma criana que escreve disi no est cometendo um erro de distrao, mas transportando para o domnio da escrita algo que reflete sua percepo da fala. Isto , a criana escreveu a palavra no segundo sua forma ortogrfica, mas segundo o modo como ela a pronuncia. Em outras palavras, fez uma transcrio fontica. Por outro lado, uma criana que leia a palavra disse dizendo duas slabas de durao igual est transportando para a fala algo que a escrita ortogrfica insinua (ou que faz lembrar a fala artificial da professora...). Se o aluno passar pela escola fazendo esse jogo de pular da fala para a escrita sem saber o que pertence fala e o que pertence escrita e por que as coisas so como so, ele ter dificuldades imensas em seguir seus estudos de portugus, porque o absurdo est presente a todo momento.Por outro lado, como pode a escola explicar adequadamente como a fala e a escrita funcionam se no dispuser de um instrumental para faz-lo, de uma ferramenta prpria para a execuo dessa tarefa?Como a escola priva o aluno desse instrumental, ele inventa o seu prprio; por isso, escreve o que quer, e, quando no sabe a forma ortogrfica, usa das possibilidades do sistema de escrita de sua lngua para escrever o que pretende. Quando ele no sabe ler um texto com propriedade, l como pode e segue em frente com bastante dificuldade.O aluno que escreve errado o ene ou inverte o esse o faz no porque deficiente, ou tem problemade discriminao, problema motor, de lateralizao ou outros que a escola inventa para entender esse erro. Elepode escrever assim simplesmente porque lhe ensinaram, ou ele deduziu a partir de sua experincia comousurio do sistema de escrita que se devem escrever as letras comeando sempre (ou quase) pelo canto esquerdo de cima e depois descendo ou indo para a direita. A escola muitas vezes procura a causa do insucesso do aluno em lugares errados. Em vez de atribuir-lhe uma deficincia, por que no investiga melhor, antes, que tipo de reflexo a criana est fazendo quando comete seus erros? Pode ser que ela tenha simplesmente feito uma escolha errada, dentro do conjunto de possibilidadesque se usam normalmente.A criana que escreve disi escreve algo possvel para o sistema de escrita do portugus, s que no escreve na forma ortogrfica. O mesmo faz a criana que escreveu ptio (patinho), mecadio (mercadinho), qieasiora (que a senhora). Se a escola distinguisse claramente os problemas de fala dos problemas de escrita, veria essas escritas como escritas de fala, e feitas com uma propriedade fontica to grande que chega a ser comovente a conscincia que as crianas tm do modo como falam.a menina

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Uma criana no tem viso em espelho das coisas. Quando se encontra numa sala, sabe muito bem como sair dela pela porta e no se choca contra a parede como se visse a porta ao contrrio.