Cadernos do Cárcere - Caderno 11

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Antonio Gramsci Cadernos do cárcere INTRODUÇÃO DE Carlos Nelson Coutinho Volume 1: Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce TRADUÇÃO DE Carlos Nelson Coutinho CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Rio de Janeiro 1999

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Este texto é parte do volume 1 dos cadernos do cárcere, do intelectual marxista italiano Antônio Gramsci.

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  • Antonio Gramsci

    Cadernos do crcereINTRODUO DE

    Carlos Nelson Coutinho

    Volume 1:Introduo ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce

    TRADUO DE

    Carlos Nelson Coutinho

    CIVILIZAO BRASILEIRA

    R io de Janeiro 1999

  • Obras de Antonio Gramsci

    Editor; Carlos Nelson CoutinhoCo-editores: Luiz Srgio Henriques e Marco Aurlio No

    gueira

    Cadernos do crcere (6 vols.)

    1. Introduo ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce

    2. Os intelectuais. O princpio educativo. Jornalismo3. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a poltica4. Temas de cultura. Ao catlica. Americanismo e

    fordismo5. II Risorgimento italiano. Para uma histria das clas

    ses subalternas6. Literatura. Folclore. Gramtica

    Escritos polticos (2 vols.)

    1. Escritos polticos 1910-19202. Escritos polticos 1921-1926

    Cartas do crcere (3 vols.)

  • C O P Y R I G H T Carlos Nelson Coutinho, Luiz Srgio Henriques e Marco Aurlio Nogueira, 1999

    C A P A

    Evelyn Grumach

    P R O J E T O G R A F I C O

    Evelyn Grumach e Joo Leite de Souza

    p r e p a r a o d e o r i g i n a i s

    Carlos Nelson Coutinho

    e d i t o r a o e l e t r n i c a

    Art Line

    CIP-BRAS1L. CATALOGAAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    Gramsci, Antonio, 1 8 9 1 -1 9 3 7 G 458c Cadernos do crcere, volume 1 / Antonio Gramsci; edio eV. 1 traduo, Carlos Nelson Coutinho; co-edio, Luiz Srgio

    Henriques e M arco Aurlio Nogueira. Rio de Jan eiro : Civilizao Brasileira, 1999.

    Traduo de: Quaderni dei crcere V. 1. Introduo ao estudo da filosofia; A filosofia de

    Benedetto CroceISBN 8 5 -2 0 0 -0 5 1 1-X

    1. Filosofia. 2 . Croce, Benedetto, 1866-1952 . 3. Gramsci, Antonio, 1 8 9 1 -1 9 3 7 Viso poltica e social. I. Ttulo.

    CDD 335 .439 9 -1 4 0 4 CDU 3 3 0 .3 4 2 .1 5

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    Impresso no Brasil 1 9 9 9

  • Sumrio

    INTRODUO DE CARLOS NELSON COUTINHO 7

    AGRADECIMENTOS 4 7

    CRONOLOGIA DA VIDA DE ANTONIO GRAMSCI 49

    CADERNOS DO CRCERE. VOLUME 1 75Projetos de Gramsci para os Cadernos 77

    I. INTRODUO AO ESTUDO DA FILOSOFIA 81

    1. Caderno 11 (1 9 32-1933): Introduo ao estudo da filosofia 83 [ADVERTNCIA] 85APONTAMENTOS E REFERNCIAS DE CARTER HISTRICO-CRTICO 85 APONTAMENTOS PARA U M A INTRODUO E UM ENCAMINHAMENTO AO ESTUDO DA

    FILOSOFIA E DA HISTRIA DA CULTURA 93I. Alguns pontos preliminares de referncia 93

    II. Observaes e notas crticas sobre uma tentativa de Ensaio popular de sociologia 114

    in. A cincia e as ideologias cientficas 168IV. Os instrumentos lgicos do pensamento 176V. Tradutibilidade das linguagens cientficas e filosficas 185

    VI. Apontamentos miscelneos 191

    5

  • 2 . Dos cadernos miscelneos 2 2 7CADERNO 1 (1929-1930) 2 2 9CADERNO 3 (1930) 230CADERNO 4 (1930-1932) 231CADERNO 5 (1930-1932) 233CADERNO 6 (1930-1932) 234CADERNO 7 (1930-1931) 2 3 5CADERNO 8 (1931-1932) 2 5 0CADERNO 9 (1932) 2 5 5CADERNO 14(1932-1935) 2 5 7CADERNO 15(1933) 2 5 9CADERNO 17 (1933-1935) 2 6 6

    II. A FILOSOFIA DE BENEDETTO CROCE 2 7 5

    1. Caderno 10 (1932-1935): A filosofia de Benedetto Croce 2 7 7[PARTE I]

    PONTOS DE REFERNCIA PARA UM ENSAIO SOBRE 8. CROCE 2 7 9 [PARTE II]

    A FILOSOFIA DE BENEDETTO CROCE 309

    2 . Dos cadernos miscelneos 431CADERNO 4 (1930-1932) 433 CADERNO 6 (1930-1932) 433 CADERNO 7 (1930-1931) 440 CADERNO 8 (1931-1932) 44S CADERNO 15(1933) 448

    NOTAS AO TEXTO 4 5 5

    Indice ONOMSTICO 489

    C A D E R N O S D O C A R C E R E

    6

  • I. Introduo ao estudo da filosofia

  • 1. Caderno 11 (1932-1933)Introduo ao estudo da filosofia

  • [ADVERTNCIA]

    As notas contidas neste caderno, como nos demais, foram escritas ao correr da pena, como rpidos apontamentos para ajudar a memria. Todas devem ser revistas e verificadas minuciosamente, j que certamente contm inexatides, falsas aproximaes, anacronismos. Escritas sem ter presentes os livros a que se referem, possvel que, depois da verificao, tenham de ser radicalmente corrigidas, precisamente porque o contrrio do que foi escrito que verdadeiro.

    APONTAMENTOS E REFERNCIAS DE CARTER HISTRICO-CRTICO

    1. Antonio Labriola. Para construir um ensaio completo sobre Antonio Labriola, preciso levar em conta, alm de seus escritos, que so escassos e com freqncia apenas alusivos ou extremamente sintticos, tambm os elementos e os fragmentos de conversao referidos pelos seus amigos e alunos (Labriola deixou a lembrana de excepcional conversador). Nos livros de B. Croce, de modo disperso, podem-se recolher vrios desses elementos e fragmentos. Assim, nas Conversazioni critiche (Seconda Serie), p. 60-61: O que o senhor faria para educar moralmente um papuano?, perguntou um de ns, alunos, h muitos anos, ao Prof. Labriola, numa de suas lies de Pedagogia, objetando contra a eficcia da Pedagogia. Provisoriamente (respondeu com aspereza moda de Vico e de Hegel o professor herbartiano), pro

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  • visoriamente eu faria dele um escravo; e essa seria a pedagogia adequada circunstncia, deixando para depois saber se, com seus netos e bisnetos, seria possvel comear a usar algo da pedagogia moderna. Essa resposta de Labriola deve ser aproximada da entrevista que ele deu sobre a questo colonial (Lbia), por volta de 1903, republicada no volume dos Scritti vari di filosofia e politica [1]. Deve ser aproximada tambm do modo de pensar de Gentile no que se refere ao ensino religioso nas escolas primrias [2]. Trata-se, ao que parece, de um pseudo- historicismo, de um mecanicismo bastante emprico e muito prximo do evolucionismo vulgar. Poder-se-ia recordar o que disse Bertrando Spaventa [3] sobre aqueles que gostariam de ver os homens sempre no bero (ou seja, no momento da autoridade, que, no obstante, educa para a liberdade os povos imaturos) e pensam que toda a vida (dos outros) se passa num bero. Ao que me parece, o problema deve ser colocado historicamente de outro modo: ou seja, se uma nao ou um grupo social que atingiu um grau superior de civilizao pode (e, portanto, deve) acelerar o processo de educao dos povos e dos grupos sociais mais atrasados, universalizando e traduzindo de modo adequado a sua nova experincia. Assim, quando os ingleses recrutam soldados entre os povos primitivos, que jamais viram um fuzil moderno, no instruem esses recrutas no emprego do arco, do boomerang e da zarabatana, mas os instruem precisamente no manejo do fuzil, ainda que as normas de instruo sejam necessariamente adaptadas mentalidade daquele determinado povo primitivo. O modo de pensar implcito na resposta de Labriola, portanto, no parece dialtico e progressista, mas antes mecnico e reacionrio, tal como o pedaggico-religioso de Gentile, que no mais do que uma derivao do conceito de que a religio boa para o povo (povo = criana = fase primitiva do pensamento ao qual corresponde a religio, etc.), ou seja, a renncia (tendenciosa) a educar o povo. Com efeito, pode muito bem ocorrer que seja necessrio escravizar os papuanos para educ-los, mas no menos necessrio que algum afirme que isso necessrio contingentemente, dada a existncia de determinadas condies, ou seja, que isso uma necessidade histrica e no absoluta: necessrio, ao contr-

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    rio, que exista uma luta a respeito, e essa luta precisamente a condio para que os netos e bisnetos do papuano sejam libertados da escravido e sejam educados segundo a pedagogia moderna. Que exista quem afirme enfaticamente que a escravido dos papuanos apenas uma necessidade momentnea e se rebele contra essa necessidade tambm um fato filosfico-histrico: 1) porque contribuir para reduzir ao tempo necessrio o perodo de escravido; 2) porque induzir os prprios papuanos a refletirem sobre si mesmos, a auto-educarem-se, na medida em que se sentiro apoiados por homens de civilizao superior; 3) porque s essa resistncia mostra que se est realmente num perodo superior de civilizao e de pensamento, etc. O historicismo de Labriola e de Gentile de um tipo muito inferior: o historicismo dos juristas, para os quais um cnute no um cnute quando um cnute histrico [4]. De resto, trata-se de um modo de pensar muito nebuloso e confuso. Que nas escolas primrias seja necessria uma exposio dogmtica das noes cientficas, ou seja necessria uma mitologia, no significa que o dogma deva ser o dogma religioso ou a mitologia aquela determinada mitologia. Que um povo ou um grupo social atrasado tenha necessidade de uma disciplina exterior coercitiva, a fim de ser educado civilizadamente, no significa que deva ser escravizado, a no ser que se pense que toda coero estatal escravido. H uma coero de tipo militar tambm para o trabalho, que pode ser aplicada tambm classe dominante, e que no escravido, mas sim a expresso adequada da pedagogia moderna voltada para a educao de um elemento imaturo (que certamente imaturo, mas tal na proximidade de elementos mais maduros, ao passo que a escravido expresso orgnica de condies universalmente imaturas) [5]. Spaventa, que se punha do ponto de vista da burguesia liberal contra os sofismas historicistas das classes reacionrias, expressava sarcasticamente uma concepo bem mais progressista e dialtica do que a de Labriola e Gentile.

    2. Alessandro Levi. Devem-se pesquisar os seus escritos de filosofia e de histria. Como Rodolfo Mondolfo, Levi de origem positi

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  • vista (da escola padana de R. Ardig). Como ponto de referncia da maneira de pensar prpria de Levi, interessante esta passagem de seu estudo sobre Giuseppe Ferrari (Nuova Rivista Storica, 1931, p. 387): No, no me parece que em Ferrari exista um certo e, nem mesmo..., um incerto materialismo histrico. Ao contrrio, parece- me existir precisamente um abismo entre a concepo ferrariana da histria e sua pretensa filosofia da histria e o materialismo histrico, compreendido corretamente, isto , no como mero economicismo (e, mesmo deste, na verdade, existem em Ferrari traos bem mais vagos do que na histria concreta de um Cario Cattaneo), mas sim como aquela dialtica real, que compreende a histria superando-a com a ao, e que no separa histria e filosofia, mas colocando os homens sobre seus ps faz destes os artfices conscientes da histria, e no os joguetes da fatalidade, na medida em que os seus princpios, isto , os seus ideais, centelhas que brotam das lutas sociais, so precisamente estmulos prxis que, mediante a sua ao, se subverte. Conhecedor superficial da lgica hegeliana, Ferrari era um crtico muito precipitado da dialtica ideal para conseguir super-la pela dialtica real do materialismo histrico.

    S 3. Alessandro Chiappelli (morto em novembro de 1931). Por volta da metade do decnio 1890-1900, quando saram os ensaios de Antonio Labriola e de B. Croce, Chiappelli escreveu sobre a filosofia da prxis. Deve existir um livro ou um ensaio de Chiappelli sobre As premissas filosficas do socialismo-, deve-se ver a bibliografia.

    S 4. Lucien Herr. Um Rapport sur ltat des tudes hgliennes en France, de A. Koyr, reproduzido nos Verhandlungen des ersten Hegelskongresses, vom 22 bis 25 abril 1930, ed. Haag-Mohr, Tbingen, 1931, in-8. gr., 243 p. Koyr, entre outros, fala de Lucien Herr, que passou vinte e cinco anos de sua vida estudando o pensamento hegeliano e que morreu sem ter podido escrever o livro que se propunha, o qual se colocaria ao lado dos de Delbos e de Xavier Lon; todavia, deixou um esboo destes seus estudos no artigo sobre Hegel

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  • publicado na Grande Encyclopdie, notvel pela lucidez e penetrao. Uma Vie de Lucien Herr foi publicada por Charles Andler, em Europe de 10 de outubro de 1931 e ss. Escreve Andler: Lucien Herr est presente em todo o trabalho cientfico francs h quarenta anos; e sua ao foi decisiva na formao do socialismo na Frana [6].

    5. Antonio Labriola (cf., acima, 1) [7]. Hegel afirmara que a servido o bero da liberdade. Para Hegel, como para Maquiavel, o principado novo (ou seja, o perodo ditatorial que caracteriza os incios de todo tipo novo de Estado) e a servido que disso resulta so justificados somente como educao e disciplina do homem no ainda livre. Mas B. Spaventa {Principii di etica. Apndice, Npoles, 1914) comenta oportunamente: Mas o bero no a vida. Alguns gostariam que ficssemos sempre no bero.

    (Um exemplo tpico do bero que dura por toda a vida oferecido pelo protecionismo alfandegrio, que sempre defendido e justificado como bero, mas que tende a tornar-se um bero eterno.)

    6. Giovanni Gentile. Sobre a filosofia de Gentile, deve-se conferir o artigo da Civilt Cattolica (Cultura e filosofia dellignoto, 16 de agosto de 1930) que interessante para ver como a lgica formal escolstica pode ser adequada na crtica dos banais sofismas do idealismo atual [8], que pretende ser a perfeio da dialtica. E, de fato, por que a dialtica formal deveria ser superior lgica formal? Trata-se apenas de instrumentos lgicos; e um bom utenslio velho pode ser melhor do que um utenslio defeituoso mais moderno; um bom veleiro superior a uma lancha a motor quebrada. De qualquer modo, interessante ler as crticas dos neo-escolsticos ao pensamento de Gentile (livros do padre Chiocchetti, etc.).

    Gentile, junto com o seu squito de Volpicelli, Spirito, etc. (devese ver o grupo de colaboradores do Giornale critico delia filosofia italiana), instaurou podemos dizer um verdadeiro maneirismo literrio, j que, na filosofia, as astcias e as frases feitas substituem o pensamento. Todavia, a comparao deste grupo com o de Bauer,

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  • satirizado na Sagrada Famlia, o mais adequado e literariamente mais fecundo de desenvolvimentos (os Nuovi Studi oferecem muitos e variados pontos para tal desenvolvimento).

    7. A. Rosmini. Deve-se ver o seu Saggio sul comunismo e sul socialismo, publicado aos cuidados e com um prefcio de A. Cana- letti-Gaudenti, in-\6, 85 p., Roma, Signorelli, 6 liras. Comparar com as encclicas papais emanadas antes de 1848 e citadas no Sillabo [9], para servir de comentrio histrico italiano ao primeiro pargrafo do Manifesto: cf. tambm o captulo bibliogrfico no Mazzini de Rerum Scriptor [10].

    8. Antonino Lovecchio, Filosofia delia prassi e filosofia dello spirito, Palmi, Zapone, 1928,112 p., 7 liras. Da resenha aparecida na Italia che scrive e escrita por Giuseppe Tarozzi (junho de 1928), extraem-se as seguintes indicaes: o livro consta de duas partes, uma sobre a filosofia da prxis, outra sobre o pensamento de B. Croce, ligadas entre si pela contribuio de Croce crtica da filosofia da prxis. A parte conclusiva se intitula Marx e Croce. Discute as teses sobre a filosofia da prxis, notadamente as de Antonio Labriola, Croce, Gentile, Rodolfo Mondolfo, Adelchi Baratono, Alfredo Poggi. Trata-se de um crociano (ao que parece, muito ignorante criticamente). Tarozzi diz que o livrinho um esboo, cheio de muitos e graves defeitos de forma. (Lovecchio um mdico de Palmi.)

    9. Ettore Ciccotti. Seu volume Confronti storici. Biblioteca delia Nuova Rivista Storica, n. 10, Societ Ed. Dante Alighieri, 1929, X X X IX -262 p., foi resenhado favoravelmente por Guido De Ruggiero, na Critica de janeiro de 1930, e, ao contrrio, com muita cautela e no fundo desfavoravelmente, por Mario de Bernardi, na Rifor- ma sociale (cf.). Um captulo do livro de Ciccotti (talvez a introduo geral) foi publicado na Rivista d ltalia de 15 de junho-15 de julho de 1927, com o ttulo Elementos de verdade e de certeza na tradio histrica romana; aqui nos referimos apenas a esse captulo. Ciccotti

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    examina e combate uma srie de deformaes profissionais da historiografia romana e muitas de suas observaes so justas negativamente: em relao s afirmaes positivas que subsistem dvidas e so necessrias muitas cautelas. A resenha de De Ruggiero muito superficial: ele justifica o mtodo analgico de Ciccotti como um reconhecimento da identidade fundamental do esprito humano, mas assim se vai muito longe, at mesmo justificao do evolucionismo vulgar e das leis sociolgicas abstratas, as quais tambm se fundam, a seu modo, com uma linguagem particular, na hiptese da identidade fundamental do esprito humano.

    Um dos erros tericos mais graves de Ciccotti parece consistir na interpretao errada do princpio de Vico segundo o qual o certo se converte no verdadeiro . A histria no pode ir alm da certeza (com a aproximao da investigao da certeza). A converso do certo no verdadeiro pode dar lugar a construes filosficas (da chamada histria eterna) que tm apenas pouco em comum com a histria efetiva; mas a histria deve ser efetiva e no romanceada: a sua certeza deve ser, antes de mais nada, certeza dos documentos histricos (ainda que a histria no se esgote inteiramente nos documentos histricos, cuja noo, de resto, to complexa e extensa que pode dar lugar a conceitos sempre novos tanto de certeza quanto de verdade). A parte sofistica da metodologia de Ciccotti aparece de modo muito claro quando ele afirma que a histria drama, j que isso no significa que toda representao dramtica de um dado perodo histrico seja aquela efetiva, ainda que viva, artisticamente perfeita, etc. O sofisma de Ciccotti leva a que se d um valor excessivo beletrsti- ca histrica como reao erudio pedante e petulante: das pequenas conjecturas filolgicas passa-se s grandiosas conjecturas sociolgicas, com poucos ganhos para a historiografia.

    Num exame da atividade histrica de Ciccotti, preciso levar muito em conta esse livro. A filosofia da prxis de Ciccotti muito superficial: a concepo de Guglielmo Ferrero e de C. Barbagallo, ou seja, um aspecto da sociologia positivista, temperada com alguma dignidade viquiana. A metodologia de Ciccotti deu lugar, precisamente.

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  • s histrias do tipo Ferrero e s curiosas elucubraes de Barbagallo, que termina por perder o conceito de distino e de concreticidade individual de cada momento do desenvolvimento histrico e por descobrir duas originais dignidades: que todo o mundo igual nossa aldeia e que, quanto mais tudo muda, tanto mais fica parecido.

    10. Giuseppe Rensi. Exame de todo o seu desenvolvimento poltico-intelectual. Foi colaborador da Critica Sociale (tambm esteve exilado na Sua depois de 1898). Sua atual atitude moralista e lacrimosa (cf. seus artigos na Nuova Rivista Storica de alguns anos atrs) deve ser cotejada com suas manifestaes literrias e jornalsticas de 1921-22-23, nas quais justifica um retorno escravido e prope uma interpretao estupidamente cnica de Maquiavel. Recordar sua polmica com Gentile em II popolo dItalia, depois do Congresso dos filsofos sediado em Milo, em 1926: deve ter assinado o chamado Manifesto dos Intelectuais redigido por Croce. [11]

    11. Corrado Barbagallo. Seu livro Uoro e il fuoco deve ser examinado, levando-se em conta a inteno prvia do autor de encontrar na Antiguidade o que essencialmente moderno, como o capitalismo, a grande indstria e as manifestaes que lhes so correlatas. preciso examinar sobretudo suas concluses a propsito das corporaes profissionais e de suas funes, confrontando-as com as investigaes dos estudiosos do mundo clssico e da Idade Mdia. Cf. as concluses de Mommsen e de Marquardt sobre os collegia opificum et artificum; para Marquardt, eles eram instituies de carter fazendrio e serviam economia e s finanas do Estado em sentido estrito, sendo apenas pouco, ou mesmo no sendo de modo algum, instituies sociais (cf. o mir russo). E isso para no falar na observao de que, em todos os casos, o sindicalismo moderno deveria corresponder s instituies prprias dos escravos do mundo clssico. Desse ponto de vista, o que caracteriza o mundo moderno que, abaixo dos proletrios, no existe nenhuma classe qual seja proibido organizar-se, como ocorria na Idade Mdia e tambm, com toda probabilidade, no mundo clssico; o

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    arteso romano podia utilizar escravos como trabalhadores e eles certamente no pertenciam aos collegia; e no se exclui que, na prpria plebe, alguma categoria no servil fosse excluda da organizao.

    APONTAMENTOS PARA UMA INTRODUO E UM ENCAMINHAMENTO AO ESTUDO DA FILOSOFIA E DA HISTRIA DA CULTURA

    I. Alguns pontos preliminares de referncia

    12. preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia algo muito difcil pelo fato de ser a atividade intelectual prpria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filsofos profissionais e sistemticos. preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens so filsofos, definindo os limites e as caractersticas desta filosofia espontnea, peculiar a todo o mundo, isto , da filosofia que est contida: 1) na prpria linguagem, que um conjunto de noes e de conceitos determinados e no, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de contedo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religio popular e, conseqentemente, em todo o sistema de crenas, supersties, opinies, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por folclore.

    Aps demonstrar que todos so filsofos, ainda que a seu modo, inconscientemente j que, at mesmo na mais simples manifestao de uma atividade intelectual qualquer, na linguagem, est contida uma determinada concepo do mundo , passa-se ao segundo momento, ao momento da crtica e da conscincia, ou seja, ao seguinte problema: prefervel pensar sem disto ter conscincia crtica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto , participar de uma concepo do mundo imposta mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos esto

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  • automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a prpria aldeia ou a provncia, pode se originar na parquia e na atividade intelectual do vigrio ou do velho patriarca, cuja sabedoria dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela prpria estupidez e pela impotncia para a ao), ou prefervel elaborar a prpria concepo do mundo de uma maneira consciente e crtica e, portanto, em ligao com este trabalho do prprio crebro, escolher a prpria esfera de atividade, participar ativamente na produo da histria do mundo, ser o guia de si mesmo e no mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da prpria personalidade?

    Nota 1. Pela prpria concepo do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema o seguinte: qual o tipo histrico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? Quando a concepo do mundo no crtica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa prpria personalidade compsita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princpios da cincia mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases histricas passadas estreitamente localistas e intui- es de uma futura filosofia que ser prpria do gnero humano mundialmente unificado. Criticar a prpria concepo do mundo, portanto, significa torn-la unitria e coerente e elev-la at o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoludo. Significa tambm, portanto, criticar toda a filosofia at hoje existente, na medida em que ela deixou estratificaes consolidadas na filosofia popular. O incio da elaborao crtica a conscincia daquilo que realmente, isto , um conhece-te a ti mesmo como produto do processo histrico at hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traos acolhidos sem anlise crtica. Deve-se fazer, inicialmente, essa anlise.

    Nota II. No se pode separar a filosofia da histria da filosofia,

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  • nem a cultura da histria da cultura. No sentido mais imediato e determinado, no se pode ser filsofo isto , ter uma concepo do mundo criticamente coerente sem a conscincia da prpria historicidade, da fase de desenvolvimento por ela representada e do fato de que ela est em contradio com outras concepes ou com elementos de outras concepes. A prpria concepo do mundo responde a determinados problemas colocados pela realidade, que so bem determinados e originais em sua atualidade. Como possvel pensar o presente, e um presente bem determinado, com um pensamento elaborado em face de problemas de um passado freqentemente bastante remoto e superado? Se isto ocorre, significa que somos anacrnicos em face da poca em que vivemos, que somos fsseis e no seres que vivem de modo moderno. Ou, pelo menos, que somos bizarra- mente compsitos. E ocorre, de fato, que grupos sociais que, em determinados aspectos, exprimem a mais desenvolvida modernidade, em outros manifestam-se atrasados com relao sua posio social, sendo, portanto, incapazes de completa autonomia histrica.

    Nota III. Se verdade que toda linguagem contm os elementos de uma concepo do mundo e de uma cultura, ser igualmente verdade que, a partir da linguagem de cada um, possvel julgar a maior ou menor complexidade da sua concepo do mundo. Quem fala somente o dialeto ou compreende a lngua nacional em graus diversos participa necessariamente de uma intuio do mundo mais ou menos restrita e provinciana, fossilizada, anacrnica em relao s grandes correntes de pensamento que dominam a histria mundial. Seus interesses sero restritos, mais ou menos corporativistas ou economicistas, no universais. Se nem sempre possvel aprender outras lnguas estrangeiras a fim de colocar-se em contato com vidas culturais diversas, deve-se pelo menos conhecer bem a lngua nacional. Uma grande cultura pode traduzir-se na lngua de outra grande cultura, isto , uma grande lngua nacional historicamente rica e complexa pode traduzir qualquer outra grande cultura, ou seja, ser uma expresso mundial. Mas, com um dialeto, no possvel fazer a mesma coisa.

    Nota IV. Criar uma nova cultura no significa apenas fazer indi

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  • vidualmente descobertas originais; significa tambm, e sobretudo, difundir criticamente verdades j descobertas, socializ-las por assim dizer; e, portanto, transform-las em base de aes vitais, em elemento de coordenao e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multido de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitria a realidade presente um fato filosfico bem mais importante e original do que a descoberta, por parte de um gnio filosfico, de uma nova verdade que permanea como patrimnio de pequenos grupos intelectuais.

    Conexo entre o senso comum, a religio e a filosofia. A filosofia uma ordem intelectual, o que nem a religio nem o senso comum podem ser. Ver como, na realidade, tampouco coincidem religio e senso comum, mas a religio um elemento do senso comum desagregado. Ademais, senso comum um nome coletivo, como religio: no existe um nico senso comum, pois tambm ele um produto e um devir histrico. A filosofia a crtica e a superao da religio e do senso comum e, nesse sentido, coincide com o bom senso, que se contrape ao senso comum.

    Relaes entre cincia-religio-senso comum. A religio e o senso comum no podem constituir uma ordem intelectual porque no podem reduzir-se unidade e coerncia nem mesmo na conscincia individual, para no falar na conscincia coletiva: no podem reduzir- se unidade e coerncia livremente, j que autoritariamente isto poderia ocorrer, como de fato ocorreu, dentro de certos limites, no passado. O problema da religio, entendida no no sentido confessional, mas no laico, de unidade de f entre uma concepo do mundo e uma norma de conduta adequada a ela: mas por que chamar esta unidade de f de religio, e no de ideologia ou, mesmo, de poltica? [12]

    Com efeito, no existe filosofia em geral: existem diversas filosofias ou concepes do mundo, e sempre se faz uma escolha entre elas. Como ocorre esta escolha? esta escolha um fato puramente intelectual, ou um fato mais complexo? E no ocorre freqentemente que

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  • entre o fato intelectual e a norma de conduta exista uma contradio? Qual ser, ento, a verdadeira concepo do mundo: a que logicamente afirmada como fato intelectual, ou a que resulta da atividade real de cada um, que est implcita na sua ao? E, j que a ao sempre uma ao poltica, no se pode dizer que a verdadeira filosofia de cada um se acha inteiramente contida na sua poltica? Este contraste entre o pensar e o agir, isto , a coexistncia de duas concepes do mundo, uma afirmada por palavras e a outra manifestando-se na ao efetiva, nem sempre se deve m-f. A m-f pode ser uma explicao satisfatria para alguns indivduos considerados isoladamente, ou at mesmo para grupos mais ou menos numerosos, mas no satisfatria quando o contraste se verifica nas manifestaes vitais de amplas massas: neste caso, ele no pode deixar de ser a expresso de contrastes mais profundos de natureza histrico-social. Isto significa que um grupo social, que tem sua prpria concepo do mundo, ainda que embrionria, que se manifesta na ao e, portanto, de modo descontnuo e ocasional isto , quando tal grupo se movimenta como um conjunto orgnico , toma emprestado a outro grupo social, por razes de submisso e subordinao intelectual, uma concepo que no a sua, e a afirma verbalmente, e tambm acredita segui-la, j que a segue em pocas normais, ou seja, quando a conduta no independente e autnoma, mas sim submissa e subordinada. por isso, portanto, que no se pode separar a filosofia da poltica; ao contrrio, pode-se demonstrar que a escolha e a crtica de uma concepo do mundo so, tambm elas, fatos polticos.

    Deve-se, portanto, explicar como ocorre que em cada poca coexistam muitos sistemas e correntes de filosofia, como nascem, como se difundem, por que nessa difuso seguem certas linhas de separao e certas direes, etc. Isto mostra o quanto necessrio sistematizar crtica e coerentemente as prprias intuies do mundo e da vida, fixando com exatido o que se deve entender por sistema, a fim de evitar compreend-lo num sentido pedante e professoral. Mas esta elaborao deve ser feita, e somente pode ser feita, no quadro da histria da filosofia, que mostra qual foi a elaborao que o pensamento

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  • sofreu no curso dos sculos e qual foi o esforo coletivo necessrio para que existisse o nosso atual modo de pensar, que resume e compendia toda esta histria passada, mesmo em seus erros e em seus delrios, os quais, de resto, no obstante terem sido cometidos no passado e terem sido corrigidos, podem ainda se reproduzir no presente e exigir novamente a sua correo.

    Qual a idia que o povo faz da filosofia? Pode-se reconstru-la atravs das expresses da linguagem comum. Uma das mais difundidas a de tomar as coisas com filosofia, a qual, analisada, no tem por que ser inteiramente afastada. verdade que nela se contm um convite implcito resignao e pacincia, mas parece que o ponto mais importante seja, ao contrrio, o convite reflexo, tomada de conscincia de que aquilo que acontece , no fundo, racional, e que assim deve ser enfrentado, concentrando as prprias foras racionais e no se deixando levar pelos impulsos instintivos e violentos. Essas expresses populares poderiam ser agrupadas com as expresses similares dos escritores de carter popular (recolhidas dos grandes dicionrios) nas quais entrem os termos filosofia e filosoficamente; e assim se poder perceber que tais expresses tm um significado muito preciso, a saber, o da superao das paixes bestiais e elementares numa concepo da necessidade que fornece prpria ao uma direo consciente. Este o ncleo sadio do senso comum, que poderia precisamente ser chamado de bom senso e que merece ser desenvolvido e transformado em algo unitrio e coerente. Torna-se evidente, assim, por que no possvel a separao entre a chamada filosofia cientfica e a filosofia vulgar e popular, que apenas um conjunto desagregado de idias e de opinies.

    Mas, nesse ponto, coloca-se o problema fundamental de toda concepo do mundo, de toda filosofia que se transformou em um movimento cultural, em uma religio, em uma f, ou seja, que produziu uma atividade prtica e uma vontade nas quais ela esteja contida como premissa terica implcita (uma ideologia, pode-se dizer, desde que se d ao termo ideologia o significado mais alto de uma concepo do mundo, que se manifesta implicitamente na arte,

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  • no direito, na atividade econmica, em todas as manifestaes de vida individuais e coletivas) isto , o problema de conservar a unidade ideolgica em todo o bloco social que est cimentado e unificado justamente por aquela determinada ideologia. A fora das religies, e notadamente da Igreja Catlica, consistiu e consiste no seguinte: elas sentem intensamente a necessidade de unio doutrinria de toda a massa religiosa e lutam para que os estratos intelectualmente superiores no se destaquem dos inferiores. A Igreja romana foi sempre a mais tenaz na luta para impedir que se formassem oficialmente duas religies, a dos intelectuais e a das almas simples. Esta luta no foi travada sem que ocorressem graves inconvenientes para a prpria Igreja, mas estes inconvenientes esto ligados ao processo histrico que transforma a totalidade da sociedade civil e que contm, em bloco, uma crtica corrosiva das religies. E isto faz ressaltar ainda mais a capacidade organizativa do clero na esfera da cultura, bem como a relao abstratamente racional e justa que a Igreja, em seu mbito, soube estabelecer entre intelectuais e pessoas simples. Os jesutas foram, indubitavelmente, os maiores artfices deste equilbrio e, para conserv-lo, eles imprimiram Igreja um movimento progressivo que tende a satisfazer parcialmente as exigncias da cincia e da filosofia, mas com um ritmo to lento e metdico que as modificaes no so percebidas pela massa dos simples, embora apaream como revolucionrias e demaggicas aos olhos dos integristas.

    Uma das maiores debilidades das filosofias imanentistas em geral consiste precisamente em no terem sabido criar uma unidade ideolgica entre o baixo e o alto, entre os simples e os intelectuais. Na histria da civilizao ocidental, o fato verificou-se em escala europia, com o fracasso imediato do Renascimento e, parcialmente, tambm da Reforma em face da Igreja Catlica. Esta debilidade manifesta-se na questo da escola, na medida em que, a partir das filosofias imanentistas, nem mesmo se tentou construir uma concepo que pudesse substituir a religio na educao infantil, do que resultou o sofisma pseudo-historicista, defendido por pedagogos a-religiosos (aconfessio- nais), realmente ateus, que permite o ensino da religio porque ela a

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  • filosofia da infncia da humanidade, que se renova em toda infncia no metafrica. O idealismo tambm se manifestou contrrio aos movimentos culturais de ida ao povo, expressos nas chamadas Universidades populares e instituies similares, e no apenas pelos seus aspectos equivocados, j que nesse caso deveriam somente ter procurado fazer melhor. Todavia, estes movimentos eram dignos de interesse e mereciam ser estudados: eles tiveram xito, no sentido em que revelaram, da parte dos simples, um sincero entusiasmo e um forte desejo de elevao a uma forma superior de cultura e de concepo do mundo. Faltava-lhes, porm, qualquer organicidade, seja de pensamento filosfico, seja de solidez organizativa e de centralizao cultural; tinha-se a impresso de que se assemelhavam aos primeiros contatos entre os mercadores ingleses e os negros africanos: trocavam- se coisas sem valor por pepitas de ouro. De resto, a organicidade de pensamento e a solidez cultural s poderiam ocorrer se entre os intelectuais e os simples se verificasse a mesma unidade que deve existir entre teoria e prtica, isto , se os intelectuais tivessem sido organicamente os intelectuais daquelas massas, ou seja, se tivessem elaborado e tornado coerentes os princpios e os problemas que aquelas massas colocavam com a sua atividade prtica, constituindo assim um bloco cultural e social. Tratava-se, pois, da mesma questo j assinalada: um movimento filosfico s merece este nome na medida em que busca desenvolver uma cultura especializada para restritos grupos de intelectuais ou, ao contrrio, merece-o na medida em que, no trabalho de elaborao de um pensamento superior ao senso comum e cientificamente coerente, jamais se esquece de permanecer em contato com os simples e, melhor dizendo, encontra neste contato a fonte dos problemas que devem ser estudados e resolvidos? S atravs deste contato que uma filosofia se torna histrica, depura-se dos elementos intelectualistas de natureza individual e se transforma em vida.

    (Talvez seja til distinguir praticamente entre a filosofia e o senso comum, para melhor indicar a passagem de um momento para o outro. Na filosofia, destacam-se notadamente as caractersticas de elaborao individual do pensamento; no senso comum, ao contrrio.

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  • destacam-se as caractersticas difusas e dispersas de um pensamento genrico de uma certa poca em um certo ambiente popular. Mas toda filosofia tende a se tornar senso comum de um ambiente, ainda que restrito (de todos os intelectuais). Trata-se, portanto, de elaborar uma filosofia que tendo j uma difuso ou possibilidade de difuso, pois ligada vida prtica e implcita nela se torne um senso comum renovado com a coerncia e o vigor das filosofias individuais. E isto no pode ocorrer se no se sente, permanentemente, a exigncia do contato cultural com os simples.)

    Uma filosofia da prxis s pode apresentar-se, inicialmente, em atitude polmica e crtica, como superao da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente). E portanto, antes de tudo, como crtica do senso comum (e isto aps basear-se sobre o senso comum para demonstrar que todos so filsofos e que no se trata de introduzir ex novo uma cincia na vida individual de todos, mas de inovar e tornar crtica uma atividade j existente); e, posteriormente, como crtica da filosofia dos intelectuais, que deu origem histria da filosofia e que, enquanto individual (e, de fato, ela se desenvolve essencialmente na atividade de indivduos singulares particularmente dotados), pode ser considerada como culminncias de progresso do senso comum, pelo menos do senso comum dos estratos mais cultos da sociedade e, atravs desses, tambm do senso comum popular. assim, portanto, que uma introduo ao estudo da filosofia deve expor sinteticamente os problemas nascidos no processo de desenvolvimento da cultura geral, que s parcialmente se reflete na histria da filosofia, a qual, todavia, na ausncia de uma histria do senso comum (impossvel de ser elaborada pela ausncia de material documental), permanece a fonte mxima de referncia para critic-los, demonstrar o seu valor real (se ainda o tiverem) ou o significado que tiveram como elos superados de uma cadeia e fixar os problemas novos e atuais ou a colocao atual dos velhos problemas.

    A relao entre filosofia superior e senso comum assegurada pela poltica, do mesmo modo como assegurada pela poltica a

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  • relao entre o catolicismo dos intelectuais e o dos simples. As diferenas entre os dois casos so, todavia, fundamentais. O fato de que a Igreja deva enfrentar um problema dos simples significa, justamente, que existiu uma ruptura na comunidade dos fiis, ruptura que no pode ser eliminada pela elevao dos simples ao nvel dos intelectuais (a Igreja nem sequer se prope esta tarefa ideal e economicamente desproporcional em relao s suas foras atuais), mas mediante uma disciplina de ferro sobre os intelectuais para que eles no ultrapassem certos limites nesta separao, tornando-a catastrfica e irreparvel. No passado, essas rupturas na comunidade dos fiis eram remediadas por fortes movimentos de massa, que determinavam ou eram absorvidos na formao de novas ordens religiosas em torno a fortes personalidades (Domingos, Francisco). (Os movimentos herticos da Idade Mdia que surgiram como reao simultnea politicagem da Igreja e filosofia escolstica que foi uma sua expresso, e que se baseavam nos conflitos sociais determinados pelo nascimento das Comunas foram uma ruptura entre massa e intelectuais no interior da Igreja, ruptura corrigida pelo nascimento de movimentos populares religiosos reabsorvidos pela Igreja, atravs da formao das ordens mendicantes e de uma nova unidade religiosa.) Mas a Contra-Reforma esterilizou este pulular de foras populares: a Companhia de Jesus a ltima grande ordem religiosa, de origem reacionria e autoritria, com carter repressivo e diplomtico, que assinalou, com seu nascimento, o endurecimento do organismo catlico. As novas ordens surgidas posteriormente tm um pequenssimo significado religioso e um grande significado disciplinar sobre a massa dos fiis: so ramificaes e tentculos da Companhia de Jesus (ou se tornaram isso), instrumentos de resistncia para conservar as posies polticas adquiridas, no foras renovadoras de desenvolvimento. O catolicismo se transformou em jesuitismo. O modernismo no criou ordens religiosas, mas sim um partido poltico: a democracia crist. (Recordar a anedota, narrada por Steed em suas Memrias, do cardeal que explica ao protestante ingls filocatlico que os milagres de So Genaro so teis para o populacho napolitano mas

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  • no para os intelectuais, que tambm nos Evangelhos existem exageros, etc. E pergunta: Mas ns no somos cristos?, responde: Ns somos prelados, isto , polticos da Igreja de Roma.)

    A posio da filosofia da prxis antittica a esta posio catlica: a filosofia da prxis no busca manter os simples na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrrio, conduzi-los a uma concepo de vida superior. Se ela afirma a exigncia do contato entre os intelectuais e os simples no para limitar a atividade cientfica e para manter uma unidade no nvel inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral que torne politicamente possvel um progresso intelectual de massa e no apenas de pequenos grupos intelectuais.

    O homem ativo de massa atua praticamente, mas no tem uma clara conscincia terica desta sua ao, a qual, no obstante, um conhecimento do mundo na medida em que o transforma. Pode ocorrer, alis, que sua conscincia terica esteja historicamente em contradio com o seu agir. quase possvel dizer que ele tem duas conscincias tericas (ou uma conscincia contraditria): uma, implcita na sua ao, e que realmente o une a todos os seus colaboradores na transformao prtica da realidade; e outra, superficialmente explcita ou verbal, que ele herdou do passado e acolheu sem crtica. Todavia, esta concepo verbal no inconseqente: ela liga a um grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, sobre a direo da vontade, de uma maneira mais ou menos intensa, que pode at mesmo atingir um ponto no qual a contraditoriedade da conscincia no permita nenhuma ao, nenhuma escolha e produza um estado de passividade moral e poltica. A compreenso crtica de si mesmo obtida, portanto, atravs de uma luta de hegemonias polticas, de direes contrastantes, primeiro no campo da tica, depois no da poltica, atingindo, finalmente, uma elaborao superior da prpria concepo do real. A conscincia de fazer parte de uma determinada fora hegemnica (isto , a conscincia poltica) a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconscincia, na qual teoria e prtica finalmente se unificam. Portanto, tambm a unidade de teoria e prtica

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  • no um dado de fato mecnico, mas um devir histrico, que tem a sua fase elementar e primitiva no sentimento de distino, de separao, de independncia quase instintiva, e progride at a aquisio real e completa de uma concepo do mundo coerente e unitria. por isso que se deve chamar a ateno para o fato de que o desenvolvimento poltico do conceito de hegemonia representa, para alm do progresso poltico-prtico, um grande progresso filosfico, j que implica e supe necessariamente uma unidade intelectual e uma tica adequada a uma concepo do real que superou o senso comum e tornou-se crtica, mesmo que dentro de limites ainda restritos.

    Todavia, nos mais recentes desenvolvimentos da filosofia da prxis, o aprofundamento do conceito de unidade entre a teoria e a prtica permanece ainda numa fase inicial: subsistem ainda resduos de mecanicismo, j que se fala da teoria como complemento e acessrio da prtica, da teoria como serva da prtica. Parece justo que tambm este problema deva ser colocado historicamente, isto , como um aspecto da questo poltica dos intelectuais. Autoconscincia crtica significa, histrica e politicamente, criao de uma elite de intelectuais: uma massa humana no se distingue e no se torna independente para si sem organizar-se (em sentido lato); e no existe organizao sem intelectuais, isto , sem organizadores e dirigentes, ou seja, sem que o aspecto terico da ligao teoria-prtica se distinga concretamente em um estrato de pessoas especializadas na elaborao conceituai e filosfica. Mas este processo de criao dos intelectuais longo, difcil, cheio de contradies, de avanos e de recuos, de debandadas e de reagrupamentos; e, neste processo, a fidelidade da massa (e a fidelidade e a disciplina so inicialmente a forma que assume a adeso da massa e a sua colaborao no desenvolvimento do fnomeno cultural como um todo) submetida a duras provas. O processo de desenvolvimento est ligado a uma dialtica intelectuais-massa; o estrato dos intelectuais se desenvolve quantitativa e qualitativamente, mas todo progresso para uma nova amplitude e complexidade do estrato dos intelectuais est ligado a um movimento anlogo da massa dos simples, que se eleva a nveis superiores de cultura e amplia simulta

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    neamente o seu crculo de influncia, com a passagem de indivduos, ou mesmo de grupos mais ou menos importantes, para o estrato dos intelectuais especializados. No processo, porm, repetem-se continuamente momentos nos quais entre a massa e os intelectuais (ou alguns deles, ou um grupo deles) se produz uma separao, uma perda de contato, e, portanto, a impresso de acessrio, de complementar, de subordinado. A insistncia sobre o elemento prtico da ligao teoria- prtica aps se ter cindido, separado e no apenas distinguido os dois elementos (o que uma operao meramente mecnica e convencional) significa que se est atravessando uma fase histrica relativamente primitiva, uma fase ainda econmico-corporativa, na qual se transforma quantitativamente o quadro geral da estrutura e a qualidade-superestrutura adequada est em vias de surgir, mas no est ainda organicamente formada. Deve-se sublinhar a importncia e o significado que tm os partidos polticos, no mundo moderno, na elaborao e difuso das concepes do mundo, na medida em que elaboram essencialmente a tica e a poltica adequadas a elas, isto , em que funcionam quase como experimentadores histricos de tais concepes. Os partidos selecionam individualmente a massa atuante, e esta seleo opera-se simultaneamente nos campos prtico e terico, com uma relao to mais estreita entre teoria e prtica quanto mais seja a concepo vitalmente e radicalmente inovadora e antagnica aos antigos modos de pensar. Por isso, pode-se dizer que os partidos so os elaboradores das novas intelectualidades integrais e totalitrias [13], isto , o crisol da unificao de teoria e prtica entendida como processo histrico real; e compreende-se, assim, como seja necessria que a sua formao se realize atravs da adeso individual e no ao modo laborista, j que se se trata de dirigir organicamente toda a massa economicamente ativa deve-se dirigi-la no segundo velhos esquemas, mas inovando; e esta inovao s pode tornar-se de massa, em seus primeiros estgios, por intermdio de uma elite na qual a concepo implcita na atividade humana j se tenha tornado, em certa medida, conscincia atual coerente e sistemtica e vontade precisa e decidida. Uma destas fases pode ser estudada na discusso atravs da qual se

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  • verificaram os mais recentes desenvolvimentos da filosofia da prxis, discusso resumida em um artigo de D. S. Mirski, colaborador da Cultura [14]. Pode-se ver como ocorreu a passagem de uma concepo mecanicista e puramente exterior para uma concepo ativista, que est mais prxima, como observamos, de uma justa compreenso da unidade entre teoria e prtica, se bem que ainda no lhe tenha captado todo o significado sinttico. Pode-se observar como o elemento determinista, fatalista, mecnico, tenha sido um aroma ideolgico imediato da filosofia da prxis, uma forma de religio e de excitante (mas ao modo dos narcticos), tornada necessria e justificada historicamente pelo carter subalterno de determinados estratos sociais. Quando no se tem a iniciativa na luta e a prpria luta termina assim por identificar-se com uma srie de derrotas, o determinismo mecnico transforma-se em uma formidvel fora de resistncia moral, de coeso, de perseverana paciente e obstinada. Eu estou momentaneamente derrotado, mas a fora das coisas trabalha por mim a longo prazo, etc. A vontade real se disfara em um ato de f, numa certa racionalidade da histria, numa forma emprica e primitiva de finalismo apaixonado, que surge como um substituto da predestinao, da providncia, etc., prprias das religies confessionais. Deve-se insistir sobre o fato de que, tambm nesse caso, existe realmente uma forte atividade volitiva, uma interveno direta sobre a fora das coisas, mas de uma maneira implcita, velada, que se envergonha de si mesma; portanto, a conscincia contraditria, carece de unidade crtica, etc. Mas, quando o subalterno se torna dirigente e responsvel pela atividade econmica de massa, o mecanicismo revela-se num certo ponto como um perigo iminente; opera-se, ento, uma reviso de todo o modo de pensar, j que ocorreu uma modificao no modo social de ser. Os limites e o domnio da fora das coisas se restringiram. Por qu? Porque, no fundo, se o subalterno era ontem uma coisa, hoje no o mais: tornou-se uma pessoa histrica, um protagonista; se ontem era irresponsvel, j que era resistente a uma vontade estranha, hoje sente-se responsvel, j que no mais resistente, mas sim agente e necessariamente ativo e empreendedor . Mas, mesmo ontem, ser que

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    ele era apenas simples resistncia, simples coisa, simples irresponsabilidade? No, por certo; deve-se, alis, sublinhar que o fatalismo apenas a maneira pela qual os fracos se revestem de uma vontade ativa e real. por isso que se torna necessrio demonstrar sempre a futilidade do determinismo mecnico, o qual, explicvel como filosofia ingnua da massa e, somente enquanto tal, elemento intrnseco de fora, torna-se causa de passividade, de imbecil auto-suficincia, quando elevado a filosofia reflexiva e coerente por parte dos intelectuais; e isto sem esperar que o subalterno torne-se dirigente e responsvel. Uma parte da massa, ainda que subalterna, sempre dirigente e responsvel, e a filosofia da parte precede sempre a filosofia do todo, no s como antecipao terica, mas tambm como necessidade atual.

    O fato de que a concepo mecanicista tenha sido uma religio de subalternos revelado por uma anlise do desenvolvimento da religio crist, que em um certo perodo histrico e em condies histricas determinadas foi e continua a ser uma necessidade, uma forma necessria da vontade das massas populares, uma forma determinada de racionalidade do mundo e da vida, fornecendo os quadros gerais para a atividade prtica real. Neste trecho de um artigo da Civilit Cattolica (Individualismo pagano e individualismo cristia- no, fascculo de 5 de maro de 1932), parece-me bem explcita esta funo do cristianismo; A f em um porvir seguro, na imortalidade da alma destinada beatitude, na certeza de poder atingir o eterno gozo, foi a mola propulsora para um trabalho de intenso aperfeioamento interno e de elevao espiritual. O verdadeiro individualismo cristo encontrou nisso o impulso para as suas vitrias. Todas as foras do cristo foram concentradas em torno a este nobre fim. Libertado das flutuaes especulativas que lanam a alma na dvida, e iluminado por princpios imortais, o homem sentiu renascer as esperanas; certo de que uma fora superior o sustentava na luta contra o mal, ele fez violncia a si mesmo e venceu o mundo. Mas, tambm neste caso, trata-se do cristianismo ingnuo, no do cristianismo jesuitizado, transformado em simples pio para as massas populares.

    Mas a posio do calvinismo, com a sua frrea concepo da pre

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  • destinao e da graa, que determina uma vasta expanso do esprito de iniciativa (ou torna-se a forma deste movimento), ainda mais expressiva e significativa. (Sobre este assunto, consulte-se Max Weber, A tica protestante e o esprito do capitalismo, publicado nos Nuovi Studi, fascculos de 1931 e ss.; bem como o livro de Groethuysen sobre as origens religiosas da burguesia na Frana [15].)

    Por que e como se difundem, tornando-se populares, as novas concepes do mundo? Neste processo de difuso (que , simultaneamente, de substituio do velho e, muito freqentemente, de combinao entre o novo e o velho), influem (e como e em que medida) a forma racional em que a nova concepo exposta e apresentada, a autoridade (na medida em que reconhecida e apreciada, pelo menos genericamente) do expositor e dos pensadores e cientistas nos quais o expositor se apia, a participao na mesma organizao daquele que sustenta a nova concepo (aps ter entrado na organizao, mas por outro motivo que no aquele de partilhar da nova concepo)? Na realidade, estes elementos variam de acordo com o grupo social e com o nvel cultural do referido grupo. Mas a pesquisa interessante, sobretudo, no que diz respeito s massas populares, que mais dificilmente mudam de concepo e que, em todo caso, jamais a mudam aceitando a nova concepo em sua forma pura, por assim dizer, mas apenas e sempre como combinao mais ou menos heterclita e bizarra. A forma racional, logicamente coerente, a perfeio do raciocnio que no esquece nenhum argumento positivo ou negativo de certo peso, tm a sua importncia, mas est bem longe de ser decisiva; ela pode ser decisiva apenas secundariamente, quando determinada pessoa j se encontra em crise intelectual, oscila entre o velho e o novo, perdeu a confiana no velho e ainda no se decidiu pelo novo, etc. O mesmo pode ser dito com relao autoridade dos pensadores e cientistas. Ela muito grande no povo. Mas, de fato, toda concepo tem pensadores e cientistas a seu favor e a autoridade dividida; alm disso, possvel, com relao a todo pensador, distinguir, colocar em dvida que haja dito as coisas precisamente dessa maneira, etc. Pode-se concluir que o processo de difuso das novas concepes

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    ocorre por razes polticas, isto , em ltima instncia, sociais, mas que o elemento formal (a coerncia lgica), o elemento de autoridade e o elemento organizativo tm uma funo muito grande neste processo to logo tenha tido lugar a orientao geral, tanto em indivduos singulares como em grupos numerosos. Disto se conclui, entretanto, que, nas massas como tais, a filosofia no pode ser vivida seno como uma f. Que se pense, ademais, na posio intelectual de um homem do povo; ele elaborou para si opinies, convices, critrios de discriminao e normas de conduta. Todo aquele que sustenta um ponto de vista contrrio ao seu, enquanto intelectualmente superior, sabe argumentar as suas razes melhor do que ele e, logicamente, o derrota na discusso. Deveria, por isso, o homem do povo mudar de convices? E apenas porque, na discusso imediata, no sabe se impor? Se fosse assim, poderia acontecer que ele devesse mudar uma vez por dia, isto , todas as vezes que encontrasse um adversrio ideolgico intelectualmente superior. Em que elementos baseia-se, ento, a sua filosofia? E, especialmente, a sua filosofia na forma que tem para ele maior importncia, isto , como norma de conduta? O elemento mais importante, indubitavelmente, de carter no racional: um elemento de f. Mas de f em quem e em qu? Sobretudo no grupo social ao qual pertence, na medida em que este pensa as coisas tambm difusamente, como ele: o homem do povo pensa que tantos no podem se equivocar to radicalmente, como o adversrio argumentador queria fazer crer; que ele prprio, verdade, no capaz de sustentar e desenvolver as suas razes como o adversrio faz com as dele, mas que, em seu grupo, existe quem poderia fazer isto, certamente ainda melhor do que o referido adversrio; e, de fato, ele se recorda de ter ouvido algum expor, longa e coerentemente, de maneira a convenc-lo, as razes da sua f. Ele no se recorda concretamente das razes apresentadas e no saberia repeti-las, mas sabe que elas existem, j que ele as ouviu expor e ficou convencido delas. O fato de ter sido convencido uma vez, de maneira fulminante, a razo da permanente persistncia na convico, ainda que no se saiba mais argumentar.

    Estas consideraes, contudo, conduzem concluso de que as

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  • novas convices das massas populares so extremamente dbeis, notadamente quando estas novas convices esto em contradio com as convices (igualmente novas) ortodoxas, socialmente conformistas de acordo com os interesses das classes dominantes. Isso pode ser visto quando refletimos sobre os destinos das religies e das igrejas. A religio, e uma Igreja determinada, mantm a sua comunidade de fiis (dentro de certos limites, das necessidades do desenvolvimento histrico global) na medida em que mantm permanente e organizada- mente a prpria f, repetindo infatigavelmente a sua apologtica, lutando sempre e em cada momento com argumentos similares, e mantendo uma hierarquia de intelectuais que emprestem f pelo menos a aparncia da dignidade do pensamento. Todas as vezes em que a continuidade das relaes entre Igreja e fiis foi interrompida violentamente, por razes polticas, como ocorreu durante a Revoluo Francesa, as perdas sofridas pela Igreja foram incalculveis; e, se as condies que dificultavam o exerccio das prticas habituais tivessem excedido certos limites de tempo, de se supor que tais perdas teriam sido definitivas e uma nova religio teria surgido, o que, alis, ocorreu na Frana, em combinao com o velho catolicismo. Disto se deduzem determinadas necessidades para todo movimento cultural que pretenda substituir o senso comum e as velhas concepes do mundo em geral, a saber: 1) no se cansar jamais de repetir os prprios argumentos (variando literariamente a sua forma): a repetio o meio didtico mais eficaz para agir sobre a mentalidade popular; 2) trabalhar de modo incessante para elevar intelectualmente camadas populares cada vez mais vastas, isto , para dar personalidade ao amorfo elemento de massa, o que significa trabalhar na criao de elites de intelectuais de novo tipo, que surjam diretamente da massa e que permaneam em contato com ela para se tornarem seus espartilhos. Esta segunda necessidade, quando satisfeita, a que realmente modifica o panorama ideolgico de uma poca. Ademais, estas elites no podem constituir-se e desenvolver-se sem que, no seu interior, se verifique uma hierarquizao de autoridade e de competncia intelectual, que pode culminar em um grande filsofo individual, se este for capaz de

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    reviver concretamente as exigncias do conjunto da comunidade ideolgica, de compreender que ela no pode ter a rapidez de movimento prpria de um crebro individual e, portanto, de conseguir elaborar formalmente a doutrina coletiva de maneira mais aderente e adequada aos modos de pensar do que um pensador coletivo.

    evidente que uma construo de massa desta espcie no pode ocorrer arbitrariamente, em torno a uma ideologia qualquer, pela vontade formalmente construtiva de uma personalidade ou de um grupo que se proponha esta tarefa pelo fanatismo das suas prprias convices filosficas ou religiosas. A adeso ou no-adeso de massas a uma ideologia o modo pelo qual se verifica a crtica real da racionalidade e historicidade dos modos de pensar. As construes arbitrrias so mais ou menos rapidamente eliminadas pela competio histrica, ainda que por vezes, graas a uma combinao de circunstncias imediatas favorveis, consigam gozar de certa popularidade; j as construes que correspondem s exigncias de um perodo histrico complexo e orgnico terminam sempre por se impor e prevalecer, ainda que atravessem muitas fases intermedirias nas quais a sua afirmao ocorre apenas em combinaes mais ou menos bizarras e heterclitas.

    Estes desenvolvimentos colocam inmeros problemas, sendo os mais importantes os que se resumem no modo e na qualidade das relaes entre as vrias camadas intelectuais qualificadas, isto , na importncia e na funo que deve e pode ter a contribuio criadora dos grupos superiores, em ligao com a capacidade orgnica de discusso e de desenvolvimento de novos conceitos crticos por parte das camadas intelectualmente subordinadas. Em outras palavras, trata-se de fixar os limites da liberdade de discusso e de propaganda, liberdade que no deve ser entendida no sentido administrativo e policial, mas no sentido de autolimitao que os dirigentes pem sua prpria atividade; ou seja, mais precisamente, trata-se da fixao de uma orientao de poltica cultural. Em suma: quem fixar os direitos da cincia e os limites da pesquisa cientfica? Podero esses direitos e esses limites ser realmente fixados? Parece-me necessrio que o traba-

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  • iho de pesquisa de novas verdades e de melhores, mais coerentes e claras formulaes das prprias verdades seja deixado livre iniciativa dos cientistas individuais, ainda que eles reponham continuamente em discusso os prprios princpios que parecem mais essenciais. Por outro lado, no ser difcil perceber quando estas iniciativas de discusso tiverem motivos interessados e no de natureza cientfica. Tambm no impossvel pensar que as iniciativas individuais possam ser disciplinadas e ordenadas, de maneira que passem pelo crivo de academias ou institutos culturais de natureza diversa, tornando-se pblicas somente aps um processo de seleo, etc.

    Seria interessante estudar concretamente, em um determinado pas, a organizao cultural que movimenta o mundo ideolgico e examinar seu funcionamento prtico. Um estudo da relao numrica entre o pessoal que est ligado profissionalmente ao trabalho cultural ativo e a populao de cada pas seria igualmente til, com um clculo aproximativo das foras livres. A escola em todos os seus nveis e a Igreja so as duas maiores organizaes culturais em todos os pases, graas ao nmero de pessoas que utilizam. Os jornais, as revistas e a atividade editorial, as instituies escolares privadas, tanto as que integram a escola de Estado quanto as instituies de cultura do tipo das universidades populares. Outras profisses incorporam em sua atividade especializada uma frao cultural no desprezvel, como a dos mdicos, dos oficiais do exrcito, da magistratura. Entretanto, deve-se notar que em todos os pases, ainda que em graus diversos, existe uma grande ciso entre as massas populares e os grupos intelectuais, inclusive os mais numerosos e mais prximos periferia nacional, como os professores e os padres. E isso ocorre porque o Estado, ainda que os governantes digam o contrrio, no tem uma concepo unitria, coerente e homognea, razo pela qual os grupos intelectuais esto desagregados em vrios estratos e no interior de um mesmo estrato. A Universidade, com exceo de alguns pases, no exerce nenhuma funo unificadora; um livre-pensador, freqentemente, tem mais influncia do que toda a instituio universitria, etc.

    Nota I. Com respeito funo histrica desempenhada pela con

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    cepo fatalista da filosofia da prxis, pode-se fazer o seu elogio fnebre, reivindicando a sua utilidade para um certo perodo histrico, mas, justamente por isso, sustentando a necessidade de sepult-la com todas as honras cabveis. possvel, na verdade, comparar a sua funo da teoria da graa e da predestinao nos incios do mundo moderno, teoria que posteriormente, porm, culminou na filosofia clssica alem e na sua concepo da liberdade como conscincia da necessidade. Ela foi um sucedneo popular do grito Deus assim o quer; todavia, mesmo neste plano primitivo e elementar, era o incio de uma concepo mais moderna e fecunda do que a contida no Deus assim o quer ou na teoria da graa. Ser possvel que uma nova concepo se apresente formalmente em outra roupagem que no na rstica e desordenada da plebe? Todavia, o historiador com toda a necessria distncia consegue fixar e compreender que os incios de um novo mundo, sempre speros e pedregosos, so superiores decadncia de um mundo em agonia e aos cantos de cisne que ele produz. O desaparecimento do fatalismo e do mecanicismo indica uma grande reviravolta histrica; da a profunda impresso causada pela resenha de Mirski. Que se pense no que ela provocou. Que se pense na discusso com Mario Trozzi, em Florena, em novembro de 1917, e a primeira meno a bergsonismo, voluntarismo, etc. [16]. Poder-se-ia fazer um quadro semi-srio de como realmente se apresentava esta concepo. Que se pense, tambm, na discusso com o Professor Presutti, em Roma, em junho de 1924. Comparao com o capito Giulietti, feita por G. M. Serrati, que para ele foi decisiva e de condenao total. Para Serrati, Giulietti era como o confuciano para o taosta, como o chins do sul, mercador ativo e operante, para o literato mandarim do norte, que olhava com supremo desprezo de iluminado e de sbio, para quem a vida j no tem mistrios, estes homenzinhos do sul que acreditavam poder abrir caminho com os seus irrequietos movimentos de formiga. Discurso de Cludio Treves sobre a expiao. [17]. Havia neste discurso um certo esprito de profeta bblico: quem quisera e fizera a guerra, quem abalara o mundo em suas bases e, portanto, era responsvel pela desordem do aps-guerra.

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  • deveria expiar e carregar a responsabilidade desta desordem. Tinham cometido o pecado do voluntarismo: deviam ser punidos pelo seu pecado, etc. Havia uma certa grandeza sacerdotal neste discurso, um grito de maldies que deveriam petrificar de espanto e, ao contrrio, foram um grande consolo, j que indicavam que o coveiro ainda no estava preparado e que Lzaro podia ressuscitar.

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    II. Observaes e notas crticas sobre uma tentativa de Ensaio popular de sociologia

    13. Um trabalho como o Ensaio popular [18], destinado essencialmente a uma comunidade de leitores que no so intelectuais de profisso, deveria partir da anlise crtica da filosofia do senso comum, que a filosofia dos no-filsofos, isto , a concepo do mundo absorvida acriticamente pelos vrios ambientes sociais e culturais nos quais se desenvolve a individualidade moral do homem mdio. O senso comum no uma concepo nica, idntica no tempo e no espao: o folclore da filosofia e, como o folclore, apresenta-se em inumerveis formas; seu trao fundamental e mais caracterstico o de ser uma concepo (inclusive nos crebros individuais) desagregada, incoerente, inconseqente, conforme posio social e cultural das multides das quais ele a filosofia. Quando na histria se elabora um grupo social homogneo, elabora-se tambm, contra o senso comum, uma filosofia homognea, isto , coerente e sistemtica. O Ensaio popular se equivoca ao partir (implicitamente) do pressuposto de que, a esta elaborao de uma filosofia original das massas populares, oponham-se os grandes sistemas das filosofias tradicionais e a religio do alto clero, isto , a concepo do mundo dos intelectuais e da alta cultura. Na realidade, estes sistemas so desconhecidos pelas multides, no tendo eficcia direta sobre o seu modo de pensar e de agir. Isto no significa, por certo, que eles sejam desprovidos inteiramente de eficcia histrica: mas esta eficcia de outra natureza. Estes sistemas influem sobre as massas populares como fora poltica externa.

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    como elemento de fora coesiva das classes dirigentes, e, portanto, como elemento de subordinao a uma hegemonia exterior, que limita o pensamento original das massas populares de uma maneira negativa, sem influir positivamente sobre elas, como fermento vital de transformao interna do que as massas pensam, embrionria e caoticamente, sobre o mundo e a vida. Os elementos principais do senso comum so fornecidos pelas religies e, conseqentemente, a relao entre senso comum e religio muito mais ntima do que a relao entre senso comum e sistemas filosficos dos intelectuais. Mas, tambm com relao religio, necessrio distinguir criticamente. Toda religio, inclusive a catlica (ou antes, sobretudo a catlica, precisamente pelos seus esforos de permanecer superficialmente unitria, a fim de no fragmentar-se em igrejas nacionais e em estratificaes sociais), na realidade uma multiplicidade de religies distintas e freqentemente contraditrias: h um catolicismo dos camponeses, um catolicismo dos pequenos burgueses e dos operrios urbanos, um catolicismo das mulheres e um catolicismo dos intelectuais, tambm este variado e desconexo. Sobre o senso comum, entretanto, influem no s as formas mais toscas e menos elaboradas destes vrios catoli- cismos, atualmente existentes, como influram tambm e so componentes do atual senso comum as religies precedentes e as formas precedentes do atual catolicismo, os movimentos herticos populares, as supersties cientficas ligadas s religies passadas, etc.

    Predominam no senso comum os elementos realistas, materialistas, isto , o produto imediato da sensao bruta, o que, de resto, no est em contradio com o elemento religioso, ao contrrio; mas estes elementos so supersticiosos, acrticos. Eis, portanto, um perigo representado pelo Ensaio popular, ele confirma freqentemente estes elementos acrticos, graas aos quais o senso comum ainda pto- lomaico, antropomrfico, antropocntrico, ao invs de critic-los cientificamente. O que se disse acima sobre o Ensaio popular, a saber, que ele critica as filosofias sistemticas ao invs de partir da crtica do senso comum, deve ser entendido como observao metodolgica, dentro de certos limites. Por certo, isto no quer dizer que se deva

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  • esquecer a crtica s filosofias sistemticas dos intelectuais. Quando, individualmente, um elemento da massa supera criticamente o senso comum, ele aceita, por este mesmo fato, uma filosofia nova: da, portanto, a necessidade, numa exposio da filosofia da prxis, da polmica com as filosofias tradicionais. Alis, por este seu carter tenden- cial de filosofia de massa, a filosofia da prxis s pode ser concebida em forma polmica, de luta perptua. Todavia, o ponto de partida deve ser sempre o senso comum, que espontaneamente a filosofia das multides, as quais se trata de tornar ideologicamente homogneas.

    Na literatura filosfica francesa, existem mais estudos sobre o senso comum do que em outras literaturas nacionais: isto se deve natureza mais estritamente popular-nacional da cultura francesa, isto , ao fato de que os intelectuais tendem, mais do que em outras partes, por causa de determinadas condies tradicionais, a aproximar-se do povo para gui-lo ideologicamente e mant-lo ligado ao grupo dirigente. Por isso, possvel encontrar na literatura francesa muito material sobre o senso comum, que deve ser utilizado e elaborado; a atitude da cultura francesa para com o senso comum, alis, pode oferecer um modelo de construo ideolgica hegemnica. Tambm as culturas inglesa e americana podem oferecer muitos estmulos, mas no de modo to completo e orgnico como a francesa. O senso comum foi considerado de vrias maneiras: ou diretamente como base da filosofia, ou criticado do ponto de vista de uma outra filosofia. Na realidade, em todos os casos, o resultado foi a superao de um determinado senso comum para a criao de um outro, mais adequado concepo do mundo do grupo dirigente. Nas Nouvelles Littraires de 17 de outubro de 1931, num artigo de Henri Gouhier sobre Lon Brunschvicg, falando da filosofia de Brunschvicg, afirma- se: H apenas um nico e mesmo movimento de espiritualizao, quer se trate de matemtica, fsica, biologia, filosofia ou moral: o esforo pelo qual o esprito se liberta do senso comum e de sua metafsica espontnea, que pe um mundo de coisas sensveis reais e o homem no meio desse mundo. [19] Obras de Lon Brunschvicg: Les tapes de la philosophie mathmatique. L exprience humaine et la

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  • causalit physique. Le progrs de la conscience dans la philosophie occidentale. La connaissance de soi. Introduction la vie de lesprit.

    A atitude de Croce em face do senso comum no parece clara. Em Croce, a proposio de que todo homem um filsofo pesa muito sobre o juzo acerca do senso comum. Ao que parece, Croce freqentemente se compraz com o fato de que determinadas proposies filosficas so compartilhadas pelo senso comum; mas que significa isto concretamente? O senso comum um agregado catico de concepes disparatadas e nele se pode encontrar tudo o que se queira. Por outro lado, esta atitude de Croce em face do senso comum no conduziu a uma concepo da cultura fecunda do ponto de vista nacional- popular, isto , a uma concepo mais concretamente historicista da filosofia, o que, de resto, s pode ocorrer na filosofia da prxis.

    Quanto a Gentile, deve-se ver seu artigo La concezione umanis- tica dei mondo (na Nuova Antologia de 1 de junho de 1931). Escreve Gentile: A filosofia pode ser definida como um grande esforo realizado pelo pensamento reflexivo, visando a conquistar a certeza crtica das verdades do senso comum e da conscincia ingnua, daquelas verdades que todo homem pode dizer que sente naturalmente e que constituem a estrutura slida da mentalidade da qual ele se utiliza para viver. Este parece um outro exemplo da rusticidade sem temperos do pensamento gentiliano: a afirmao, ao que parece, derivada ingenuamente das afirmaes de Croce, segundo as quais o modo de pensar do povo a prova da verdade de determinadas proposies filosficas. Mais adiante, escreve Gentile: O homem sadio acredita em Deus e na liberdade do seu esprito. Assim, j nestas duas proposies de Gentile, observamos: 1) uma natureza humana extra-histrica, que no se sabe exatamente o que seja; 2) a natureza humana do homem sadio; 3) o senso comum do homem sadio e, por isto, tambm um senso comum do homem no sadio. E o que significar homem sadio? Sadio fisicamente, no louco? Ou, ento, que pensa sadiamente, bem-pensante, filisteu, etc.? E que significa verdade do senso comum? A filosofia de Gentile, por exemplo, inteiramente contrria ao senso comum, seja este

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  • entendido como a filosofia ingnua do povo, que repudia qualquer modalidade de idealismo subjetivo, seja entendido como bom senso, como atitude de desprezo pelas obscuridades e artificiosidades de certas exposies cientficas e filosficas. Este flerte de Gentile com o senso comum algo muito bizarro.

    Nossas afirmaes anteriores no significam a inexistncia de verdades no senso comum. Significam que o senso comum um conceito equvoco, contraditrio, multiforme, e que referir-se ao senso comum como prova de verdade um contra-senso. possvel dizer corretamente que uma verdade determinada tornou-se senso comum visando a indicar que se difundiu para alm do crculo dos grupos intelectuais, mas, neste caso, nada mais se faz do que uma constatao de carter histrico e uma afirmao de racionalidade histrica; neste sentido, contanto que seja empregado com sobriedade, o argumento tem o seu valor, precisamente porque o senso comum grosseiramente miso- nesta e conservador, e ter conseguido inserir nele uma nova verdade prova de que tal verdade tem uma grande fora de expansividade e de evidncia.

    Recordar o epigrama de Giusti; Jaz na escola ora sem vida O bom senso, outrora professor; A cincia, sua filha preferida, Matou- o para ver-lhe o interior. Ele pode servir para indicar como so empregados de uma maneira equvoca os termos bom senso e senso comum: como filosofia, como determinado modo de pensar com um certo contedo de crenas e opinies, e tambm como atitude benevolamente indulgente, em seu desprezo pelo obscuro e pelo artificial. Era necessrio, por isto, que a cincia assassinasse um determinado bom senso tradicional, a fim de criar um novo bom senso.

    Referncias ao senso comum e solidez de suas crenas encontram-se freqentemente em Marx [20]. Contudo, trata-se de referncias no validez do contedo de tais crenas, mas sim sua solidez formal e, conseqentemente, sua imperatividade quando produzem normas de conduta. Alis, em tais referncias, est implcita a afirmao da necessidade de novas crenas populares, isto , de um novo senso comum e, portanto, de uma nova cultura e de uma nova

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    filosofia, que se enrazem na conscincia popular com a mesma solidez e imperatividade das crenas tradicionais.

    Nota I. Deve-se acrescentar, a respeito das proposies de Gentile sobre o senso comum, que a linguagem do escritor voluntariamente equvoca, graas a um oportunismo ideolgico pouco louvvel. Quando Gentile escreve: O homem sadio acredita em Deus e na liberdade do seu esprito, como exemplo de uma daquelas verdades do senso comum das quais o pensamento reflexivo elabora a certeza crtica, quer nos fazer acreditar que sua filosofia a conquista da certeza crtica das verdades do catolicismo, mas os catlicos no mordem a isca e sustentam que o idealismo gentiliano mero paganismo, etc., etc. Todavia, Gentile insiste e mantm um equvoco que no deixa de ter conseqncias na criao de um ambiente de cultura demi-monde, no qual todos os gatos so pardos: a religio se abraa com o atesmo, a imanncia flerta com a transcendncia, e Antnio Bruers fica inteiramente feliz, j que, quanto mais se estabelece a confuso e o pensamento se obscurece, tanto mais ele reconhece ter tido razo em seu sincretismo macarrnico. (Em outra nota, cito um trecho de Bruers tpico da mais cmica chicana filosfica.) [21] Se as palavras de Gentile tivessem um significado literal, o idealismo atual se teria convertido em servo da teologia.

    Nota II. No ensino da filosofia dedicado no a informar historicamente o aluno sobre o desenvolvimento da filosofia passada, mas a form-lo culturalmente, para ajud-lo a elaborar criticamente o prprio pensamento e assim participar de uma comunidade ideolgica e cultural, necessrio partir do que o aluno j conhece, da sua experincia filosfica (aps lhe ter demonstrado que ele tem uma tal experincia, que um filsofo sem o saber). E, j que se pressupe uma certa mdia intelectual e cultural nos alunos, que provavelmente no tiveram ainda mais do que informaes soltas e fragmentrias, carecendo de qualquer preparao metodolgica e crtica, no possvel deixar de partir do senso comum, em primeiro lugar, da religio, em segundo, e, s numa terceira etapa, dos sistemas filosficos elaborados pelos grupos intelectuais tradicionais.

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  • 14. Sobre a metafsica. Pode-se extrair do Ensaio popular uma crtica da metafsica e da filosofia especulativa? Deve-se dizer que escapa ao autor o prprio conceito de metafsica, na medida em que lhe escapam os conceitos de movimento histrico, de devir e, conseqentemente, da prpria dialtica. Pensar uma afirmao filosfica como sendo verdadeira em determinado perodo histrico, isto , como expresso necessria e inseparvel de uma determinada ao histrica, de uma determinada prxis, mas superada e esvaziada em um perodo posterior, sem porm cair no ceticismo e no relativismo moral e ideolgico, ou seja, conceber a filosofia como historicidade, operao mental um pouco rdua e difcil. Ao invs disso, o autor incide plenamente no dogmatismo e, por isso, numa forma, ainda que ingnua, de metafsica; isto evidente desde o incio, desde a colocao do problema, desde a vontade de construir uma sociologia sistemtica a partir da filosofia da prxis: sociologia, neste caso, significa precisamente metafsica ingnua. No pargrafo final da introduo, o autor no sabe responder s objees de alguns crticos que sustentam que a filosofia da prxis s pode viver em obras concretas de histria. Ele no consegue elaborar o conceito de filosofia da prxis como metodologia histrica e esta como filosofia, como a nica filosofia concreta; isto , no consegue colocar e resolver, do ponto de vista da dialtica real, o problema que Croce colocou e procurou resolver do ponto de vista especulativo. Ao invs de uma metodologia histrica, de uma filosofia, ele constri uma casustica de questes particulares, concebidas e resolvidas dogmaticamente, quando no resolvidas de modo puramente verbal, atravs de paralogismos to ingnuos quanto pretensiosos. Esta casustica poderia, inclusive, ser til e interessante, contanto que se apresentasse como tal, sem outra pretenso alm daquela de fornecer esquemas aproximativos de carter emprico, teis para a prtica imediata. Ademais, compreensvel que assim ocorra j que, no Ensaio popular, a filosofia da prxis no uma filosofia autnoma e original, mas a sociologia do materialismo metafsico. Para ele, metafsica significa apenas uma determinada formulao filosfica, aquela especulativa do idealismo, e no

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    qualquer formulao sistemtica que se afirme como verdade extra- histrica, como um universal abstrato fora do tempo e do espao.

    A filosofia do Ensaio popular (que lhe implcita) pode ser chamada de um aristotelismo positivista, de uma adaptao da lgica formal aos mtodos das cincias fsicas e naturais. A lei de causalidade, a pesquisa da regularidade, da normalidade, da uniformidade, substituem a dialtica histrica. Mas como, a partir deste modo de conceber, possvel deduzir a superao, a subverso da prxis? [22] O efeito, mecanicamente, jamais pode superar a causa ou o sistema de causas; por isso, no pode haver outro desenvolvimento que no aquele montono e vulgar do evolucionismo.

    Se o idealismo especulativo a cincia das categorias e da sntese a priori do esprito, isto , uma forma de abstrao anti-histo- ricista, a filosofia implcita no Ensaio popular um idealismo invertido, no sentido de que conceitos e classificaes empricas substituem as categorias especulativas, to abstratas e anti-histricas quanto estas.

    15. O conceito de cincia. Colocar o problema como uma pesquisa de leis, de linhas constantes, regulares, uniformes, esta atitude est ligada a uma exigncia, concebida de maneira um pouco pueril e ingnua, de resolver peremptoriamente o problema prtico da previsibilidade dos acontecimentos histricos. J que parece, por uma estranha inverso de perspectivas, que as cincias naturais fornecem a capacidade de prever a evoluo dos processos naturais, a metodologia histrica foi concebida como sendo cientfica apenas se, e na medida em que, habilita abstratamente a prever o futuro da sociedade. Da a busca das causas essenciais, ou melhor, da causa primeira, da causa das causas. Contudo, as Teses sobre Feuerbach j haviam criticado antecipadamente esta concepo simplista. Na realidade, possvel prever cientificamente apenas a luta, mas no os momentos concretos dela, que no podem deixar de ser resultados de foras contrastantes em contnuo movimento, sempre irredutveis a quantidades fixas, j que nelas a quantidade transforma-se continua-

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  • mente em qualidade. Na realidade, pode-se prever na medida em que se atua, em que se aplica um esforo voluntrio e, desta forma, contribui-se concretamente para criar o resultado previsto. A previso revela-se, portanto, no como um ato cientfico de conhecimento, mas como a expresso abstrata do esforo que se faz, o modo prtico de criar uma vontade coletiva.

    E como poderia a previso ser um ato de conhecimento? Conhece-se o que foi ou , no o que ser, que um no-existente e, portanto, incognoscvel por definio. Por isso, prever to-somente um ato prtico, que no pode enquanto no uma futilidade ou uma perda de tempo ter outra explicao que a acima exposta. necessrio colocar corretamente o problema da previsibilidade dos acontecimentos histricos para estar em condies de criticar exaustivamente a concepo do causalismo mecnico, para esvazi-la de qualquer prestgio cientfico e reduzi-la a puro mito, que talvez tenha sido til no passado, em um perodo atrasado de desenvolvimento de certos grupos sociais subalternos (cf. uma nota anterior, 12).

    Mas o prprio conceito de cincia, tal como resulta do Ensaio popular, que deve ser criticamente destrudo; ele pura e simplesmente recolhido das cincias naturais, como se estas fossem a nica cincia, ou a cincia por excelncia, tal como acreditava o positivismo. No Ensaio popular, contudo, o termo cincia empregado em muitos significados, alguns explcitos, outros subentendidos ou apenas mencionados. O sentido explcito o que cincia tem nas investigaes fsicas. Outras vezes, contudo, parece indicar o mtodo. Mas existe um mtodo em geral? E, se existe, significar outra coisa que no a filosofia? Outras vezes, poderia significar nada mais do que a lgica formal; mas possvel chamar esta de mtodo ou cincia? Deve-se deixar estabelecido que toda investigao tem seu mtodo determinado e constri uma cincia determinada, e que o mtodo desenvolveu-se e foi elaborado conjuntamente ao desenvolvimento e elaborao daquela determinada investigao e cincia, formando com ela um todo nico. Acreditar que se pode fazer progredir uma investigao cientfica aplicando-lhe um mtodo tipo, escolhido porque deu bons resultados

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  • em outra investigao ao qual estava relacionado, um equvoco estranho que nada tem em comum com a cincia. Contudo, existem tambm critrios gerais que, digamos, constituem a conscincia crtica de todo cientista, no importa qual seja a sua especializao, e que devem estar sempre espontaneamente ativos em seu trabalho. Desta forma, pode-se dizer que no cientista quem demonstre escassa segurana em seus critrios particulares, quem no tenha uma plena inteligncia dos conceitos utilizados, quem tenha escassa informao e conhecimento do estgio precedente dos problemas tratados, quem no seja muito cauteloso em suas afirmaes, quem no progrida de uma maneira necessria, mas sim arbitrria e sem concatenao, quem no saiba levar em conta as lacunas que existem nos conhecimentos j atingidos, mas as ignore e se contente com solues ou nexos puramente verbais, ao invs de declarar que se trata de posies provisrias que podero ser retomadas e desenvolvidas, etc. (Cada um desses pontos pode ser desenvolvido, com as oportunas exemplificaes.)

    Uma observao que se pode fazer a muitas referncias polmicas do Ensaio o desconhecimento sistemtico da possibilidade de erro por parte dos autores individuais citados, razo pela qual se atribuem a um grupo social, do qual os cientistas seriam sempre os representantes, as mais disparatadas opinies e as mais contraditrias vontades. Esta observao liga-se a um critrio metodolgico mais geral, a saber: no muito cientfico (ou, mais simplesmente, muito srio) escolher os adversrios entre os mais estpidos e medocres; ou, ainda, escolher entre as opinies dos prprios adversrios as menos essenciais e as mais ocasionais, presumindo assim ter destrudo todo o adversrio porque se destruiu uma sua opinio secundria e acidental, ou ter destrudo uma ideologia ou uma doutrina porque se demonstrou a insuficincia terica de seus defensores de terceira ou quarta categoria. E mais: deve-se ser justo com os adversrios, no sentido de que necessrio esforar-se para compreender o que eles realmente quiseram dizer, e no fixar-se maliciosamente nos significados superficiais e imediatos das suas expresses. Isto vlido sempre que o fim proposto seja o de elevar o tom e o nvel intelectual dos pr

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  • prios seguidores, e no o fim imediato de criar um deserto em torno de si a qualquer custo. Deve-se assumir o seguinte ponto de vista: que o prprio seguidor deve discutir e sustentar o prprio ponto de vista em discusses com adversrios capazes e inteligentes, e no apenas com pessoas rsticas e despreparadas, que se convenam por autoridade ou por via emocional. A possibilidade do erro deve ser afirmada e ju