Caderno Pensar 17 03 2012

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VITÓRIA, SÁBADO, 17 DE MARÇO DE 2012 www.agazeta.com.br Pensar Retratos da periferia Entrelinhas PESQUISADOR AMERICANO RELACIONA A VIDA DE SHAKESPEARE COM OBRAS DO DRAMATURGO. Página 3 Memória PROFESSOR QUESTIONA O ESQUECIMENTO DOS MESTRES CAPIXABAS PELO PÚBLICO. Página 4 Música ESTREIA DE ANDRA VALLADARES TEM SAMBAS, BOSSAS E POESIA. Página 5 Cultura SECRETÁRIO DESTACA RIQUEZA HISTÓRICA DO CENTRO. Páginas 10 e 11 ESPECIALISTA ANALISA O NOVO OLHAR DAS NOVELAS SOBRE AS COMUNIDADES Páginas 6 e 7 TV GLOBO/DIVULGAÇÃO Cenário de abertura da novela Duas Caras” (2007), exibida pela TV Globo: núcleo principal da história se passou em uma típica favela urbana

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O caderno Pensar, veiculado em A Gazeta todos os sábados, traz em destaque nesta edição os retratos da periferia

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VITÓRIA, SÁBADO, 17 DE MARÇO DE 2012www.agazeta.com.brPensar

Retratos da periferia

EntrelinhasPESQUISADORAMERICANORELACIONAA VIDA DESHAKESPEARECOM OBRAS DODRAMATURGO.Página 3

MemóriaPROFESSORQUESTIONA OESQUECIMENTODOS MESTRESCAPIXABASPELO PÚBLICO.Página 4

MúsicaESTREIA DEANDRAVALLADARESTEM SAMBAS,BOSSAS EPOESIA.Página 5

CulturaSECRETÁRIODESTACARIQUEZAHISTÓRICA DOCENTRO.Páginas 10 e 11

ESPECIALISTA ANALISA O NOVO OLHARDAS NOVELAS SOBRE AS COMUNIDADES Páginas 6 e 7

TV GLOBO/DIVULGAÇÃO

Cenário de abertura da novela “Duas Caras” (2007), exibida pela TV Globo: núcleo principal da história se passou em uma típica favela urbana

Documento:AGazeta_17_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_1.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:15 de Mar de 2012 20:21:04

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2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,17 DE MARÇODE 2012

marque na agenda prateleiraquempensa

Roberto da Silva RodrigueséjornalistadaEditoriadeQualidadedeAGAZETA. [email protected]

JoséAugustoCarvalhoédoutoremlínguaportuguesapelaUniversidadedeSãoPaulo. [email protected]

RicardoSalvalaioéprofessoreescritor. Publicoudois livroseescrevenoblogwww.outros300.blogspot.com

DanielaZanettiéprofessoraadjuntadocursodeComunicaçã[email protected]

RonaldMansuré jornalistae foiumdoscriadoresdoJornaldoCampo,daTVGazeta. [email protected]

NayaraLimaéescritoraegraduandaemPsicologiapelaUfes.www.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com

JobsonLemosé jornalista.facebook.com/jobsonlemos

CarlosAlexandreRochaéescritorgraduadoemLetrasepublicanobloghttp://pierrocronico.blogspot.com/

AlcionePinheiroésecretáriodeCulturadeVitó[email protected].

Tiranos e TiranetesCarlos TaquariRelato bem-humorado daascensão e queda dosditadores que oprimiram ospovos da América Latina aolongo dos séculos,deixando uma herança de

atraso, analfabetismo e miséria. Entre ospaíses relacionados, Venezuela, Bolívia,Argentina e Cuba, que atravessou meioséculo com um único governante.

378 páginas. Civilização Brasileira. R$ 39,90

Infiel – A História deuma Mulher queDesafiou o IslãAyaan Hirsi AliEdição econômica daautobiografia da exiladasomali, eleita deputada noparlamento holandês, que

foi condenada à morte por fundamentalistasislâmicos após produzir um filme sobre asituação da mulher muçulmana.

320 páginas. Companhia das Letras. R$ 33

Como FazerDocumentáriosLuiz Carlos LucenaEstudioso e produtor naárea do audiovisual, o autorfaz uma reflexão sobre aevolução da produção dedocumentários e oferece

ferramentas para sua produção. Em 14capítulos, mescla história e técnica, dicaspráticas e informação de ponta.

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Tapete de SilêncioMenalton BraffO romance do autor gaúchose passa numa cidadebucólica, onde dez homensrespeitáveis se reúnemnuma noite chuvosa comum dever a cumprir: manter

a ordem e a honra do lugar onde vivem.

128 páginas. Global. R$ 25

Literatura infanto-juvenilFolclore e imaginário capixaba em versosNo dia 22 de março, a escritora Silvana Sampaio lança “LendasCapixabas em Versos”, às 17h30, no Horto Mercado, em Vitória.O livro conta com 11 poemas ilustrados que abordam o folcloree as lendas de diversas regiões do Espírito Santo.

Música“Rainha da fossa” canta e conta históriasA cantora Waleska, que comemora 50 anos de carreira,volta a se apresentar em Vitória após dois anos. O show“Waleska canta e conta histórias da MPB e Bossa nova” seráno dia 23 de março, a partir das 20h, no Wunderbar.

21de marçoDebate-papo com Nara SalettoA historiadora e professora Nara Saletto é a próximaconvidada do projeto Debate-papo com o Escritor, daBiblioteca Pública Estadual. Ela fala sobre sua obra napróxima quarta, às 19h. Mediação de Fernando Achiamé.

27de março

Ana Terra comemora 30 anos com exposiçãoEm homenagem ao Ano de Portugal no Brasil e em comemoraçãoaos seus 30 anos, a Galeria Ana Terra realiza a mostra “Faluas doTejo”, reunindo 36 trabalhos assinados por 12 artistas plásticos edois fotógrafos (no destaque, foto de Roberto Burura). As criaçõessão inspiradas nos poetas Florbela Espanca e Fernando Pessoa.

José Roberto Santos Nevesé editor doCaderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected] ATORES SOCIAIS

Consolidada como paixão nacional e modelo de ex-portação da teledramaturgia brasileira, a novela experimentouuma significativa mudança de conceitos na década de 1990,em meio ao Plano Real e ao aumento do poder aquisitivo doconsumidor de baixa renda. Periferia e favelas, antes relegadosàs margens da narrativa, passaram a figurar entre os ele-mentos principais do enredo. No artigo de capa desta edição,a professora de Comunicação Social da Ufes Daniela Zanettiinvestiga como novelas e séries buscaram outros modos derepresentação da realidade dos moradores desses espaços

urbanos. No texto, uma síntese de sua tese de doutorado, ajornalista elenca o papel de produções ainda vivas na memóriado público, como a novela “Duas Caras” (2007), que trouxepara o núcleo principal a comunidade da Portelinha, e a série“Cidade dos Homens” (2002), sobre o cotidiano dos ado-lescentes Laranjinha e Acerola. Zanetti cita estudiosos do temae deixa um questionamento: com as mudanças socioe-conômicas e tecnológicas pelas quais passa o país, como asperiferias continuarão a ser representadas nas telenovelasbrasileiras? Boa leitura, bom sábado, bom Pensar.

Pensar na webVídeos denovelas e séries citadas noartigo deDaniela Zanetti, faixas doCDdeAndraValladares e trechos de livroscomentados nesta edição, nowww.agazeta.com.br

PensarEditor: José Roberto Santos Neves;EditordeArte:Paulo Nascimento;Textos:Colaboradores;Diagramação:Dirceu Gilberto Sarcinelli;Fotos:Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações:Editoria de Arte;Correspondência: Jornal

A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

EduardoSelgadaSilvaégraduadoemLetras-PortuguêspelaUfes,[email protected]

ColetivoPeixariareú[email protected]

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3PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

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entrelinhaspor ROBERTO DA SILVA RODRIGUES

O TEATRO DA VIDA DEWILLIAM SHAKESPEARE

DIVULGAÇÃO

“Shakespeare eratudo, menosindiferente quantoa ser consideradoum cavalheiro. Massua preocupaçãocom a posição navida, sua ambiçãode sucesso social eseu fascínio pelavida de aristocratase monarcas nãoimplica a supressãodo mundo de ondeviera. (...) Pelocontrário, ele usavasuas experiênciasde infância – damesma forma queusava praticamentetodas as suasexperiências –como umainexaurível fonte demetáforas.”(Página 38)

COMO SHAKESPEARE SETORNOU SHAKESPEAREStephen Greenblatt. TraduçãoDonaldson M. Garschagen eRenata Guerra. 439 páginas.Quanto: R$ 59

Retratos de Elizabeth I e “Hamlet”: livrotransporta leitor à época do dramaturgo

Dramaturgo e poeta, Wil-liam Shakespeare é reco-nhecido como um dosmaiores escritores de to-dos os tempos. Um gênioque produziu, no período

histórico dos reinados da rainha Eli-zabeth I e do rei Jaime I (de meados doséc. XVI aos primeiros anos do séc. XVII),criativas e refinadas obras, voltadas nãosó para as classes abastadas, como paratodo o povo da Inglaterra.E foi o interesse na relação entre a

literatura forjada pelo grande poetainglês e suas histórias pessoais que levouo pesquisador americano Stephen Gre-enblatt a escrever “Como Shakespearese tornou Shakespeare” (Companhiadas Letras, 439 páginas). Greenblatt fezminucioso levantamento dos caminhosde vida do dramaturgo, traçando pa-ralelos entre eles e as suas comédias,dramas e tragédias.O texto do pesquisador americano

não é uma simples biografia, com pro-gressão cronológica tradicional, linear,e descrições da obra literária shakes-peariana. Greenblatt não se prende aeste modelo. E não há resumos nar-rativos das principais obras do dra-maturgo (o que por muitos leitorespode ser considerada uma falha).Stephen Greenblatt utiliza fragmen-

tos da vida de Shakespeare e os com-para com trechos de suas peças, com-provando sua teoria de que os ca-minhos trilhados na vida do drama-turgo ecoaram na criatividade presenteem suas obras. Ele nos transporta àInglaterra Elizabetana, descrevendo ocotidiano no período, intercalando-ocom relatos da infância, adolescência ematuridade do mestre do teatro.Nesse aspecto, o pesquisador ame-

ricano traz à luz questões curiosas sobre aeducação de Shakespeare, os fatos que olevarama fixar-se emLondres, amortedeseu filho Hamnet e seus últimos anos –um período fértil de criação, quandobatalhou para juntar um montante fi-nanceiro que garantiria sua aposenta-doria, sem depender de ninguém.Relatos históricos sobre os odores

fétidos das grandes cidades; o severocódigo penal, com execuções diáriasem praças públicas; a peste negra – quena época não havia ideia da sua trans-missão pelas pulgas dos ratos; e di-versões populares como o “Bear Gar-den”, uma espécie de circo, onde ursoslutavam contra cães ferozes, povoam aspáginas do livro de Greenblatt, re-tratando o peculiar mundo do qualShakespeare foi contemporâneo.Reminiscências da vida de Shakes-

peare se fundem na linguagem rica ecriadora de seus textos, constituídos porgrandenúmerode citações, provérbios evicissitudes, extraídas de fontes comoPlutarco e Boccaccio. A sua obra é umasoma de milhares de personagens, devariados temperamentos e linhas fi-losóficas, representando as contradições

da época isabelina, um tempo de gran-des conflitos, principalmente entre ca-tólicos e protestantes, que disputavam aliderança religiosa da nação.A edição conta ainda com 16 páginas

de gravuras, pinturas e imagens de ma-nuscritos relacionados à vida de Sha-kespeare e à sua época, ilustrando amagnitude de uma carreira artística quefoi ímpar na retratação fiel do gênerohistórico, tanto de reis quanto de ple-beus; tanto de heróis quanto de vilões.Na leitura de “Como Shakespeare se

tornou Shakespeare”, percebemos, en-tão, que seus dramas (“Ricardo III”,“Romeu e Julieta”), suas comédias (“So-nhodeumanoitedeverão”, “OMercadorde Veneza”) e suas grandes tragédias,como “Hamlet”, “Macbeth”, “Rei Lear” e“Otelo”, mais que obras-primas do teatro

mundial, foram verdadeiros relatos poé-ticos, que guardaram pessimismos deinfelizes experiências, subversões de va-lores, picardias e ironias, fantasmas deviolências e dúvidas existenciais – do tipo“Ser ou não ser”?, de “Hamlet” – quepovoaram a mente desse grandeescritor, durante toda sua vida.

Documento:AGazeta_17_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_3.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:15 de Mar de 2012 20:19:11

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Para doutor em Letras, a melhor forma de manter viva a memória do Estado é reeditar obrasdos grandes escritores capixabas, adotá-las no vestibular e divulgá-las o máximo possível

literaturapor JOSÉ AUGUSTO CARVALHO

POR QUE ESQUECEMOSNOSSOS MESTRES?

DIVULGAÇÃO

Alvino Gatti (1925-1982), que tevesuas crônicas reunidas em coletâneana década de 80, é um dos talentos daliteratura produzida no Espírito Santoque permanecem fora de catálogo

Sempre se procura, em qual-quer lugar do Brasil e talvezdo mundo, manter a me-mória de seus grandes no-mes. No Espírito Santo, nãoé o que ocorre. Grandes no-

mes de nossas letras permanecem navala comum da literatura – como cha-mou Raimundo Magalhães Júnior aoesquecimento dos pósteros: Elmo Elton,Madeira de Freitas, Ciro Vieira daCunha,Olival Matos Pessanha, Benjamin Silva,Audifax de Amorim, Hilário Soneghet,Christiano Ferreira Fraga, Eugênio Sette,Newton Braga e outros mais que evitocitar paranãoencherdenomesa folhadepapel sem dizer a que vim.Audífax de Amorim teve um livro de

poemas editado postumamente em 1982pela Fundação Ceciliano Abel de Al-meida, com pouca ou nenhuma re-percussão, o que equivale a dizer quepermanece praticamente inédito; OlivalMatos Pessanha, a não ser por um únicotrabalho lançado em 1985 pela Fun-dação Cultural do Espírito Santo, numaantologia de contos premiados em con-curso, é um grande poeta inédito;Hilário Soneghet teve postumamentesua obra-prima “Por estradas curvas”publicada por amigos em 1971, semeditora e sem divulgação; NewtonBraga publicou pela Ed. Leitura, em

1945, um dos me-lhores livros de poe-mas do século pas-sado: “Lirismo per-dido”, reeditado pelaEditora do Autor, em

1964, pelo irmão RubemBraga, numvolume que inclui também os casos emprosa do livro “Cidade do interior”.Mendes Fradique (Madeira de Freitas)teve reeditada pela Fundação Ceci-liano Abel de Almeida sua obra“Grammatica portugueza pelo me-thodo confuso”, inicialmente pu-blicada em 1928, com sucessivasreedições em vida do autor, sem-pre na velha ortografia. Trata-sede uma obra que subverte aslições de gramática com notávelsenso de humor (as notas de

rodapé são normalmente receitas culi-nárias ou técnicas de tirar manchas, semrelação nenhuma com o texto).Acredito que, para muitos cidadãos de

Vitória, Madeira de Freitas e Audífax de

Amorim, por exemplo, são apenas nomesde rua que não lhes dizem nada. Amelhormaneira de manter viva a memória ca-pixaba é reeditar-lhes as obras, adotá-lasno vestibular, divulgá-las o mais possível.Há algum tempo, a Secretaria de CulturadaPrefeituradeVitória lançoupela coleçãoJosé Costa, “Trovas e cantares capixabas”,de Afonso Cláudio, e o “Poema Mariano”,de Domingos Caldas; e, pela coleção Ro-bertoAlmada,os livros “Facespoéticas” (deJosé Irmo Gonring) sobre Geir Campos e“O solitário de Itapemirim” (de Jô Dru-mond) sobre Narciso Araújo. É, portanto,perfeitamente possível resgatar nossos va-lores literários e impedir que permaneçamna vala comum da literatura...O melhor romance capixaba, que po-

deriaombrear comosmelhoresdogênero,no Brasil, é “Karina”, de Virgínia Tamanini,que já foi traduzidoparao italianoesó tevereedições em vida da Autora.

Erros históricosO grande problema da edição de uma

obra póstuma, inédita, é encontrar quemconheça ecdótica o suficiente para nãofazer edição ruim, como as compilaçõesdas crônicas de Alvino Gatti e de CarméliaM. de Souza, feitas por Amylton de Al-meida, que, apesar de bem-intencionado,não tinha formação acadêmica específica,haja vista, por exemplo, a ausência deinformações a respeitodaspessoas que sãocitadas nas crônicas. Além disso, há erroshistóricos no prefácio pretensamente eru-dito do livro “Vento sul”, de Carmélia(como a afirmação de que, em 1954,Getúlio foi deposto antes de ter-se ma-tado). O pior é que esse prefácio (tambémcom erros de citação e agressões gratuitasa pessoas que Amylton nem sequer co-nheceu, como a referência a Aída Curi,uma jovem assassinada que ele chama de“normalista suburbana”) foi reproduzidona íntegra na segunda edição de “Ventosul” e no livro “Carmélia por Carmélia”, deLinda Kogure, editada pela Prefeitura paraa coleção Roberto Almada. Desgraçada-mente, não há como pesquisar na fonte ascrônicas de Carmélia para resgatar umaobramaravilhosaquea faltadepreparodocompilador condenou àmediocridade.Mas fica o desafio para a edição ou

reedição de novas obras de nossos au-tores mortos. O importante é terdisposição e amor às letras.

De cima para baixo: VirgíniaTamanini, Mendes Fradique(Madeira de Freitas) e CarméliaM. de Souza: autores dereconhecido valor literário

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5PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

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ANDRA VALLADARESAndra Valladares. 11 faixas. LeiVila Velha Cultura e Arte.Quanto: R$ 20. Contatos:[email protected] ewww.poeticamentempv.blogspot.com

falando de músicapor RICARDO SALVALAIO

SELEÇÃO DE SAMBAS EBOSSAS À MODA ANTIGA

Acantora, compositora epoetisa Andra Vallada-res lançou recentemen-te o disco “Andra Val-ladares”. Este é o seuprimeiro álbum, o qual

certamente é um dos trabalhos maisrepresentativos do nosso cenáriomusical. O disco conta com arranjose produção musical de Fabiano Araú-jo, além da participação de talen-tosos músicos como Wanderson Lo-pez, Edu Szajnbrum e Andrey Junca.A obra foi iniciada com recursospróprios e posteriormente patroci-nada pela Prefeitura Municipal deVila Velha, através da Lei Vila VelhaCultura e Arte. O disco foi lançadoem janeiro com o show “Poetica-mente”, no qual a autora executou odisco, recitou alguns poemas e ho-menageou suas grandes influências,como: Villa-Lobos, Tom Jobim, Do-rival Caymmi, Gilberto Gil, ChicoBuarque e Adoniran Barbosa.

Tristeza e silêncio“Andra Valladares” é composto de

samba, bossa nova, samba-rock ejazz. Das 11 faixas que compõem oCD, apenas a última não tem a as-sinatura de Andra; trata-se da mú-sica “Três apitos”, de Noel Rosa.“Morena exibida”, faixa que abre odisco e foi composta em parceriacom Sandra Sarmento, mãe da can-tora, é um samba à moda antiga.Versa acerca daquela eterna “sedu-ção morena” tão recorrente ao gê-nero. A canção tem um belo arranjo,que é acentuado pela suave e bonitavoz de Andra. O samba de raiz con-tinua em voga na segunda música,“Samba do boêmio”. A temática lem-bra muito as letras do grande sam-bista Cartola. “Tristeza vá-se em-bora, por favor,/pois pretendo um sómomento,/de silêncio e sentimen-to,/pra calar a minha dor”, diz umdos versos. Remete ao universo de“Não quero mais amar a ninguém” e“O sol nascerá”, obras-primas domestre Cartola.A terceira canção, “Maria das qui-

meras”, é um poema da escritora por-tuguesa Florbela Espanca. Andra Val-ladares pôs uma linda e perfeita mú-sica no poema saudosista, que acusa apresença do romantismo de fim deséculo e tem tons eróticos e biográ-ficos ao mesmo tempo. Na sequência,temos a triste, porém esperançosa,“Estrelas também vivem sós”, a qual

tem ares de bossa nova. “Estrelastambém vivem sós/mas brilham naamplidão.../ tudo isso é natural,/res-ta aprender e acreditar que o amanhãvirá...”, dizem os versos.

Voz de veludoA quinta faixa, “Canção para uma

valsa lenta”, é um poema de MárioQuintanamusicado pela compositora.Voz de veludo e bela melodia para umpoema que tem como temática a idea-lização da infância como a época maisbela da vida do poeta. Não é à toa queMário Quintana é considerado pormuitos como um poeta de roman-tismo tardio. Seus versos por vezesrecuperam as paisagens da infânciaperdida, unindo, via lembrança, ovelho ao menino, aquilo que o tempodistanciou.A música seguinte, “Feliz”, é uma

metacanção com exaltação ao amor,à vida, às belas coisas da natureza.Nesse sentido, lembra muito as letrasda bossa nova. Já a ótima sétimafaixa, “Se a saudade apertar...”, temtom saudosista e temática similar a

A LETRACANÇÃO PARA UMAVALSA LENTA(Andra Valladares em poemade Mário Quintana)

Minha vida não foi um romance...Nunca tive até hoje um segredo.Se me amas, não digas, que morroDe surpresa... de encanto... de medo...

Minha vida não foi um romanceMinha vida passou por passarSe não amas, não finjas, que vivoEsperando um amor para amar.

Minha vida não foi um romance...Pobre vida... passou sem enredo...Glória a ti que me enches a vidaDe surpresa, de encanto, de medo!

Minha vida não foi um romance...Ai de mim... Já se ia acabar!Pobre vida que toda dependeDe um sorriso... de um gesto... umolhar...

“Cordas de aço”, de Cartola, por ver-sar acerca do violão que sofre porsentir saudades da musa.O samba-rock “As voltas que o mun-

do dá”, composto em parceria comFabiano Araújo, é uma boa reflexãosobre as condições de vida que po-demos superar/aguentar: “Ninguémsabe o que está por vir,/ o destino émistério só...”. A canção revela osaltos e baixos da vida. Por seu turno,“Miragens” segue um rumo maispop-rock e tem uma letra mais urbanae pós-moderna, apesar de lírica. Obom blues “Não tenho coração”, tam-bém composto em parceria com Fa-biano Araújo, tem tom romântico, ver-sa sobre desilusões amorosas e temtônica num amante que volta, sememoção, e quer ser perdoado. A letraremete, assim, à canção “Judiaria”, deLupicínio Rodrigues.Por fim, tem-se a única regravação

do disco, “Três apitos”, de Noel Rosa.A cantora consegue dar emoção e vidaa uma música que foi muitas vezesgravada. Destaque para o arranjo e opiano de Fabiano Araújo. Ótimaobra musical!

DIVULGAÇÃO

Andra Valladares inspirou-se em Cartola, Noel Rosa, Florbela Espanca e Mário Quintana para gravar o seu primeiro CD

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7PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

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6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,17 DE MARÇODE 2012

PARA ESPECIALISTA, REALIDADE DAS COMUNIDADES EFAVELAS GANHA NOVOS OLHARES NA TELEDRAMATURGIA

NAS NOVELAS,A PERIFERIACOMO ELA É

Os núcleos das atuais te-lenovelas brasileiras com-postos por personagensque representamas classespopulares e as periferiasurbanas– comumente am-

bientados em favelas e comunidades (equase sempre reproduzidas nas cidadescinematográficas) – sãoo resultadodeumlongo processo de inserção de novosatores sociais nesse tipo de narrativa.O ressurgimento da crítica social nas

telenovelas ocorre a partir da segundametade dos anos 80, quando algumastelenovelas exibidas na Rede Globo co-meçaram a inserir nas tramas temas decaráter social, centrando-se na represen-tação do “popular” através de deter-minados personagens e núcleos. Mas é apartir dos anos 90 que esse processo seintensifica. Além de “Rei do Gado”(1996), de Benedito Ruy Barbosa, quetrazia para o centro da narrativa umatrabalhadora rural pobre, outras novelasda emissora também buscaram repro-duzir “atos e situações típicas das classespopulares numa sociedade marcada porintensas desigualdades sociais matizadaspor um processo complexo de moder-nização”, como descreve a pesquisadoraMaria Carmem Jacob de Souza no livro

“Telenovela e Representação Social”.Em “Renascer” (1993), também de

BeneditoRuyBarbosa, a tramagirava emtorno da questão agrária, a partir de umprotagonista pobre, o Tião Galinha. “Pá-tria minha” (1994), de Gilberto Braga,abordou as polêmicas em torno dosdireitos dos favelados sem-teto, enquan-to “A próxima vítima” (1994), de Sílviode Abreu, problematizou os direitos so-ciais dos meninos de rua.No que se refere à adesão a um tipo de

representação realista, as telenovelas quese propunham a retratar a pobreza secaracterizam por uma busca da veros-similhança, relacionada à construção dospersonagens, do espaço cênico e da tra-ma, em sintonia com os problemas reaisda sociedade. Autores que se definemcomo realistas, como é o caso deBeneditoRuy Barbosa, desenvolvem uma forma detrabalhopautada “emobservações diretase convívio comas classes populares”, parase buscar certa autenticidade. Ainda se-gundo a pesquisadora, alguns realiza-dores defendiam a telenovela como meiode reflexão e discurso crítico, e centravamsuas atenções sobre os conflitos da vidareal que passavam pela “pobreza, asexperiências de dominação e sub-missão, os conflitos familiares”, ou

DIVULGAÇÃO/TV GLOBO

Antônio Fagundes como o Juvenal Antena em “Duas Caras”: representação social

DIVULGAÇÃO/TV GLOBO

Laranjinha (Darlan Cunha) e Acerola (Douglas Silva) na série “Cidade dos Homens”: o olhar dos jovens moradores da favela

Em sua tese de doutorado, autora aponta que espaços e personagens antes relegados às margens da narrativa passaram a figurar entre os elementos principais do enredo, a partir da década de 90

televisãopor DANIELA ZANETTI

>

ainda pelas ”tragédias advindas dafalta de trabalho”.

A produção ficcional da Rede Globoinstaurou uma tendência ao posiciona-mento de viés humanitário com relação aquestões de caráter social, traduzida emcerta medida pela incorporação, a partirda segundametadedos anos 90, denovosatores sociais, novos cenários, e novasproblemáticas da vida social. Nesse pro-cesso, favelas e periferias ganharam lugarde destaque em diversas produções te-levisivas no Brasil nos últimos anos. Es-paços e personagens antes relegados àsmargens da narrativa passaram a figurarentre os elementos principais do enredo.

PortelinhaA periferia como “personagem cen-

tral” chega ao horário nobre da RedeGlobo em 2007, quando a novela “DuasCaras”, de Aguinaldo Silva, traz para onúcleo principal da história a comu-nidade da Portelinha, uma típica favelaurbana, recriada numa cidade ceno-gráfica, que interage com todos os ou-tros núcleos da trama. Antes disso, anovela “Senhora do Destino”(2004/2005) também chegou a abordaro tema da pobreza, do tráfico de drogas

e da vidana favela,mas apenas de formasecundária na trama.A criação da favela da Portelinha,

inspirada na favela carioca Rio das Pe-dras, tem como proposta contrapor-se àrepresentação da favela como centro deviolência e crime, o que tem levado auma imagem de criminalização de seusmoradores.Mas, ao enfatizar o cotidianonormal desse típico espaço urbano, oautor de “Duas Caras” instalou no paísuma polêmica discussão sobre as con-sequências dessa sua “comunidade ima-ginada”. O autor rebateu as críticas ar-gumentando que “favela é um bairrocomo qualquer outro”, “lugar de tra-balhador”, com “pessoas que têm pro-blemas como todo mundo tem”, comorelata Maria Immacolata Vassallo de Lo-pes, no “Anuário 2008” do ObservatórioIbero-Americano de Ficção Televisiva.A novela “Vidas Opostas” (Rede Re-

cord, 2006/2007) também teve comotema a violência urbana e o universo dotráfico de drogas num morro do Rio deJaneiro, causando grande repercussão.Em 2009, a Record novamente investeno universo do tráfico de drogas e dasfavelas ao lançar a série “A lei e o crime”,na esteira do sucesso do filme “Tropa deElite” (2007), de José Padilha.

Ainda segundo Maria Immacolata, “amigraçãodaperiferia para temacentral detelenovelaestáassociadaaummovimentocultural contemporâneona sociedade bra-sileira que tem se valido de produtosaudiovisuais para tratar de questões pro-fundas e polêmicas acerca da desigual-dade social e de suas consequências”.Outras experiências desenvolveram

abordagens marcadamente diferencia-das sobre a periferia ao investir numdiscurso positivo, associado às ideias dediversidade cultural, espírito comuni-tário, criatividade, solidariedade, emoposição à violência, desigualdade, cri-minalidade, exclusão (embora esses as-pectos possam estar presentes). Houve,portanto, tentativas de construir outrosmodos de representação da realidadeespecífica dos moradores de bairros deperiferia e de favelas.

SériesA primeira série de televisão a

apresentar a periferia como tema cen-tral foi a “Turma do Gueto”, copro-dução da Rede Record com a pro-dutora Casablanca exibida entre2002 e 2004. Idealizada e protago-nizada pelo cantor popular Netinho, a

série contava com um elenco de maio-ria negra e teve boa recepção dacrítica e do público.A série “Cidade dos Homens”, pro-

dução independente da O2 Filmes eexibida na Rede Globo entre 2002 e2005, é um desses produtos maisrepresentativos, pois introduziu umanova temática, novos atores, falas ecenários na produção ficcional te-levisiva. É uma espécie de “desdo-bramento” do filme “Cidade de Deus”(2002), e contou com os mesmoscriadores, equipe e atores (estes úl-timos integrantes da ONG Nós doCinema) da produção cinematográ-fica de Fernando Meirelles. A equipede roteiristas da série incluiu JorgeFurtado, Kátia Lund, Paulo Lins, GuelArraes e Regina Casé.A série, que resultou no filme ho-

mônimo de Paulo Morelli, de 2007,narra diversas situações do cotidianovividas por Acerola e Laranjinha, doisgarotos moradores de uma favela ca-rioca. As crônicas diárias colocam aguerra do tráfico como um dos com-plicadores na vida dos protagonistas,mas não somente. Há ainda os conflitosinternos típicos de adolescentes e asrelações afetivas. Essa tentativa de prio-rizar o olhar desses jovens favelados, decolocar em evidência sua visão de mun-do e o modo como se relacionam com asociedade, é um dos grandes méritos de“Cidade dos Homens”.

“Antônia”A série “Antônia”, exibida na Globo

em 2006, tem como protagonista umgrupo de quatro cantoras de hip hop,negras, pobres e moradoras de umbairro de periferia de São Paulo. Tam-bém produzido pela O2, de FernandoMeirelles, e inspirado no filme ho-mônimo de Tata Amaral, a série re-tratou o difícil cotidiano dessas jo-vens mulheres que sonham em viverde música, tendo como contexto acena hip hop brasileira. Fazem partedo elenco os cantores Thaíde e NegraLi, artistas consagrados no cenáriomusical e reconhecidos como origi-nários da periferia, o que conferemaior verossimilhança ao universoficcional criado.Com as mudanças socioeconômicas e

tecnológicas pelas quais passa o país,resta saber como as periferias conti-nuarão a ser representadas nas tele-novelas brasileiras, considerando aemergência de novos públicos, a de-mocratização do acesso aos bens deprodução audiovisual e a consolidaçãoda internet como espaço de circulaçãode novas vozes, linguagens e discursos.Esses fatores de certo modo tambéminterferemnadinâmica de produçãodasemissoras de TV, cada vez mais forçadasa criar novos formatos e a diver-sificar seu conteúdo.

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8PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,17 DE MARÇODE 2012

memóriapor RONALD MANSUR

DIVULGAÇÃO

Na obra,diversos autoresdescrevemaspectos davida doex-prefeito domunicípio,incluindo o seuvínculo coma Loja MaçônicaFraternidadee Luz

O PERFIL DE UM LÍDER QUEFEZ HISTÓRIA EM CACHOEIROPublicação destaca a trajetória política de BernardoHorta de Araújo, que completaria 150 anos em 2012

Em Cachoeiro de Itapemi-rim, o pequeno InstitutoNewton Braga está lançan-do o segundo volume daColeção Personagens deNossa História, sobre o po-

lítico Bernardo Horta de Araújo, queteria completado 150 anos no últimodia 20 de fevereiro. Essa mesma datamarcou os 99 anos de sua morte. Apublicação, que lembra o formato daliteratura de cordel nordestina, tem 40páginas e nove textos curtos, mas quenos dão uma dimensão de quem foiBernardo Horta de Araújo. Quandoterminamos de ler, fica uma inter-rogação: falta alguma coisa – ou mes-mo muita coisa – para o nosso cenáriocultural, que não vê e não enxerga osseus personagens históricos.Trata-se de uma obra coletiva, com

organização de Higner Mansur, feitapara cobrir a lacuna existente na bi-bliografia da história de Cachoeiro deItapemirim.Logo na abertura, há uma citação do

homenageado, que parece ser umamensagem feita hoje para toda a so-ciedade do ano 2012 e também para osanos que vão seguir. Confira abaixo:“Todos devem ficar convencidos de que

a República não foi proclamada para serexplorada por grupos especiais que, as-senhoreando-se dos postos de mando,julgam-se os únicos capazes de engran-decê-la e felicitá-la. Esses grupos não re-presentam ideal algum político e sim aseita dos exclusivistas, quer para o exer-cíciodasdiversas funçõespúblicas, quernoreconhecimento das qualidades cívicas emorais dos contrários.”Nada mais atual.A publicação segue e justifica a ho-

menagem, no texto de Higner Mansur.“Esta homenagem simples à maior

figura de Cachoeiro de Itapemirim,esperamos possa, nomínimo, despertarnossas responsabilidades. Os que nãomerecem homenagem, que continuema ser homenageados à larga, comoestão sendo, até com propaganda pagapor eles mesmos, como é costume dosnossos tempos; mas deveriam ser ho-menageadas figuras da estatura moralde Bernardo Horta.”Maria Elvira Tavares Costa indaga

sobre o homenageado ao perguntar:“Quem foi esse homem, assim tão

importante, a ponto de merecer ter seunome eternizado numa grande avenida?Afinal, quem foi Bernardo Horta?”

Temas nacionaisA publicação faz um passeio pela vida

de Bernardo Horta, dando ao leitor umpouco da sua dimensão e da sua presençana sociedade de Cachoeiro. Um homemmuito ligado a temas nacionais, mas querealizou uma competente administraçãoquando dirigiu o município.Na sequência, dois textos datados de

1919 lembram Bernardo Horta deAraújo. O primeiro, de Júlio PereiraLeite, diz assim em sua abertura:“Li algures que omelhormeio de julgar

a cultura e o sentimento de um povo eraestudar oapreçoqueele ligavaàmemóriade seus mortos queridos.”O segundo texto, também de 1919,

retirado da revista “Argos”, coloca Ber-nardo Horte de Araújo como “o con-tinuador da obra de Domingos Martins,filho de Itapemirim como ele, (que) terá asua sepultura carinhosamente guardadapela família cachoeirense, em cujo seio ele

viveueexercitousuasenergiasdepaladinoda grande causa da liberdade”.Convocado a dar o seu depoimento,

Newton Braga é categórico: “Quemestuda a História de Cachoeiro sente, acada passo, a presença desse homem,sem dúvida nenhuma a figura maisexpressiva de suas páginas.”Evandro Moreira, conhecedor da

História do município, lembra que “pormuitos anos militou no jornalismo e napolítica, elegendo-se várias vezes à Câ-mara Municipal e ao Congresso Na-cional, sendo, afinal, abandonado pe-los correligionários. Afastou-se da po-lítica em 1911, quando terminou o seumandato de deputado federal, traído eroubado pelos “amigos” de sua própriaagremiação partidária.”Mais adiante, o professor Adilson

Silva Santos lembra: “A maior rea-lização da administração de BernardoHorta é a implantação de uma usinahidrelétrica, elevando a cidade de Ca-choeiro de Itapemirim à categoria daprimeira cidade do Estado a ter ofornecimento de energia elétrica.”Higner Mansur acrescenta: “Sim-

ples, idealista, honesto, sonhador egrande orador, como define EvandroMoreira, seus predicados foram suaglória e martírio.”Oprofessor Adilson Silva Santos volta e

provoca a memória histórica, quando per-gunta: “QuemfoiBernardoHortadeAraú-jo? EmCachoeiro, sabe-se pouco dele e desua atuação política. Essa indagação, entreoutros fatores, levou-me a pesquisar acarreira desse político capixaba, desde acriação do primeiro clube republicano doEspírito Santo por protagonismo seu, deJoaquimPiresdeAmorimeAntonioAguir-re, em 23 de maio de 1887, até o seusuicídio em 1913.”Já Francisco Aurélio Ribeiro e Thelma

Maria Azevedo abordam o aspecto po-lítico: “Eleito deputado sofreu a primeiradas grandes decepções de vida. Legítimodefensordos ideais republicanos,dosquaisfora propagandista ardoroso, teve seu di-ploma contestado. Seus amigos de Ca-choeiro de Itapemirim, contudo, em re-conhecimento a seus grandes méritos,decidiram reparar a injustiça e o elegeram,então, para o governo da cidade.Fechando a publicação, Higner Man-

sur lembra a relação de Bernardo Hortade Araújo com a Maçonaria, citando aata de sua iniciação: “O respeito quevoto à Maçonaria é tão grande, que asminhas próprias convicções políticasficam esquecidas, quando dentro desterecitou estou.”Mas antes de terminar este texto fico

imaginando... Será que estamos fican-domais ignorantes com relação a nossahistória e as nossas coisas? O des-conhecimento dos aspectos de valorparece ser uma unanimidade geral.Infelizmente eu estou certo.

BERNARDO HORTADE ARAÚJO 150 ANOSHigner Mansur (org.). GracalGráfica e Editora. 40 páginas.Quanto: R$ 3. À venda na lojaHortifruti, Rua HenriqueMoscoso, 333, Praia da Costa,Vila Velha, ou pelo [email protected].

Documento:AGazeta_17_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_8.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:15 de Mar de 2012 20:26:43

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9PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

17 DE MARÇODE 2012

poesias

ENTARDECERDE ABRILCARLOS ALEXANDREROCHASintoo mundo fecharsob as minhas costasocas, como se fechasseum livro mal lido.

Sinto(as costelas a traquejar insônias)que o mundonão é mais mundo(se mudo)eu ainda escutoo cacarejarde seus gracejos.

Enquantoo destino, a vida...(que vá tudo pro brejo)farta e bebidacomo se bebeo sangue em dias de domingo.

Tudo se dissolvaem patéticas lembrançasque o amarelo, o branco...Insistem em apagar.

Diluindo no rostoas pétalasdos anos mal sonhados(despetalados?)Lamentadosnestas fotosdeste entardecerde abril.

crônicas

À ÉDITH PIAF,COM AMORpor NAYARA LIMAEla canta, e eu escrevo durante a voz.Tenho escutado com frequência a voz deÉdith Piaf, das suas primeiras às últimasapresentações. De repente, Piaf. Umpássaro vivo e honesto, intenso e frágil.Piaf, de repente. E umsoprode coragem,um pouco de sangue no que corre echama. O que foi preciso para ser Piafque não fosse a própria vida? Que nãofosse a própria Piaf?Achoquehá tempode ver e ouvir o que

existe. Adianta pouco dizer: “Preciso leresse livro porque dizem que é um grandelivro. Preciso ouvir esse disco porque omundo inteiro já escutou”. Não é assim,não aqui onde sinto. Onde sinto perceboque as coisas do mundo se revelam paramim apenas quando eu estou prestes atambém me revelar. Quando Édith Piafdecidiu cantar foi para obedecer a ordem.“Canta, eles estão esperando”, disse o paidiante dos passantes que jogariam moe-das no chapéu posto entre as mãos damenina, que era ela. Revelou-se. Segun-

dos antes, o pai, contorcionista de circo,havia feito do corpo um malabarismoinimaginável. E vão. Não veio nenhumamoeda por isso. Até ela cantar. O que foipreciso que não fosse Piaf a própriamenina que era?Eu me pergunto se Édith Piaf en-

tregaria sua voz ao mundo não fosse atarde crua, não fosse a verdade pelaverdade. Importa menos descobrir o quenão se revelou do que notar simples-mente o que está. Mas me comove o quedesperta o dia, o homem, o passo, osolhos, me fascina o que desperta a vidadentro do que antes, muda, viria a falar.Me cala quando da cena em pressa, otempo para. Canta, pela primeira vez, aÉdith Piaf. E eu escuto. E nada há mais,nem um pedregulho empurrado pelospés distraídos na calçada. Nada há en-quanto escuto, pela primeira vez, ÉdithPiaf. Nem omundo, nem as cores, nem oritmo do tempo no rosto que passa. Nadaalém.

E eu podia terminar o texto por aqui,não fosse o desejo de continuar. Perceboque nenhuma linha imaginária existe semo fundo verdade que desperta cada cen-tímetro da linha. Assim se borda, assimuma vida inteira se costura. Uma história,assim, começa. E como amistura de tintasna tela que esconde mais de uma teladentro de uma, nenhuma história meparece peça única dela mesma. Dentro dahistória deÉdithPiaf, há várias histórias deÉdith Piaf, uma por uma começou. Atéacabar. E até não acabar nunca. Se lheescrevo sobre ela, é porque há o quepermanece. E isso devia nos aliviar. Per-manecemos no que fica, mesmo se o quefica não somos nós, mas apenas o que nostoca.Amim,mealivia.Aartistadeque falotermina a vida respondendo a três per-guntas com uma única palavra. Na areiada praia, com a saúde física já abalada, eum pano de onde fazia tricô, deu suaúltima entrevista. Talvez a resposta sejaaquilo que desperta e me comove.– Se fosse dar um conselho a uma

mulher, qual seria?– Ame.– A uma jovem?– Ame.– A uma criança?– Ame.

ATÉ QUE A MANHÃ ACABEpor JOBSON LEMOS

Antes da metade do dia na Lama, umhomem respira profundamente atravésde seu saxofone, Charlie Parker. Outrosvêm ao seu encontro na rua ainda vaziado burburinho da noite, da disputa in-sana pelo volume mais alto, dos mo-toristas que não respeitam trânsito, pe-destre ou ouvidos. Não, a vida nãopertence a estes naquele pedaço de Jar-dim da Penha. Até que a manhã acabe ea tarde se estabeleça, a poesia é umafaxina promovida por seu Geraldo.Diuturnamente, ele veste uma camiseta

branca, vira a caixa de sompara a rua, põea tocar músicos de jazz e lava o Cochicho.Esfrega o chão com mestres, como nashistóriasdoblues, comose limpasseaalmano rio enquanto a roupa quara ao lado,estendida.Depois, cansado talvez, senta-seatrás do balcão na penumbra do bar e ficaali por uma hora. Contempla o ir e vir depessoas enquanto o calor da cidade faz

suar a pele e secar o piso.Quase três décadas. Asmesmasmesas

de madeira são armadas perto do anoi-tecer. As contas todas anotadas em pe-quenos retalhos de papel, nenhuma má-quina mais que a calculadora surrada.Nada demodernidade além daquela quemantenha a cerveja gelada. Do elevadormovido a corda sobem pedidos, descemcoxinhas. Recostado na parede, um de-senho antigo retrata a boemia. DonaConceição põe ordem nos garçons emmeio aos tsurus coloridos penduradospor fios. Tão antiga a cena que parecenunca ter sido de outra maneira.Emoutros tempos, em outrasmoedas,

outros estilos, gostos e tendências. Comdiferentes turmas de estudantes uni-versitários que – cada qual ao modo desua época – sentam para discutir omundo, a vida ou apenas contar históriase abrir sorrisos largos. Desde o período

em que não existia equipamento parapagar nada. E bem, nem tudo muda.Um cartaz ainda anuncia solene: “Não

aceitamos cartões”. E vezououtra, alguéminterpela o senhor. “Comopode?Assimvaiter problemas.” Calmamente, ele olha orapazouamoça e responde comavozqueparece sempre falar para dentro: “Estouaqui há 27 anos”. Outros tantos baresficaram na história dali. Passaram, foramembora seja qual tenha sido a razão.O que seu Geraldo não diz pode ser

deduzido pelas harmonias de antes doalmoço. A eletrônica e os plásticos rí-gidos podem tomar o lugar de livros ejornais, quem sabe um dia, mas não seassentam como se navegassem o destinode tudo. Em sua parte de calçada malajambrada quem faz a história são oshomens e as mulheres e seus sons ma-ravilhosos. Wes dedilha com seu polegaruma guitarra em saudação a isso.

FALANGESO mundo está a comeros dedosque deduram a incongruênciadas coisas.

Dedos que se perdeme se roubame se recolheme se escondemnos bolsos.

Unhas que roemsuturasque arranhamsem mesuras.

Falanges que falama(r)trozese se quebrame morremna multidão de vozes.

Dedos que anunciammortesque cominamsilêncios.

Dedos que apontamcalandoa voz.

ARABSON

Documento:AGazeta_17_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_9.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:15 de Mar de 2012 19:46:59

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11PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

17 DE MARÇODE 2012

10PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,17 DE MARÇODE 2012

patrimônio históricopor ALCIONE PINHEIRO

CENTRO DE VITÓRIA: O DESAFIO DAREQUALIFICAÇÃO PELA CULTURA

OCentro de Vitória temuma aura própria e umaatmosfera de puro bu-colismo. Foi ali que, em1551, nasceu a nossaCapital. O cenário é sur-

preendente: as construções antigas emarcos históricos da colonização seespalham pela Cidade Alta enquantoum enorme cargueiro navega logo aolado, na avenida Beira-Mar.Essa realidade de contiguidade ma-

rítima, de cidade porto e de interface

com mundos distantes faz com queVitória, hoje, estabeleça uma relaçãoespacial muito mais polarizada do quegeograficamente contínua. Até o finaldos anos 1970, o Centro era nãoapenas o espaço de convergência depessoas, grupos e investimentos pú-blicos e privados, referência admi-nistrativa, social, econômica, políticae cultural da Cidade, mas de toda aGrande Vitória.Essa característica de centralidade foi se

diluindo à medida que a configuração

GABRIEL LORDÊLLO

urbana da Capital sofreu alterações sig-nificativas, com o gradual deslocamentode moradores e instituições para novosbairros, em especial na região Norte daIlha. Esse movimento culminou no de-senvolvimento de novos subcentros po-larizados de importância econômica, po-lítica e cultural.Mas esta realidade não é apenas de

Vitória. Esse modelo arquipélago, deum território que se arranja a partir deuma composição de polos que agregamfenômenos heterogêneos e se mantêm

fisicamente fragmentados, é o para-digma de cidades que são o “cérebro”da economia global, como: Nova York,Londres, Paris, Frankfurt, Madrid, Tó-quio, Xangai, entre outras.E nesse panorama altamente com-

petitivo da economia de mercado, ascidades precisam se destacar, buscarseu diferencial para se tornarem atra-tivas globalmente. O patrimônio his-tórico, as tradições locais e a culturapopular, por conseguinte, têmsidomui-to valorizados na contemporaneidade.

Secretário municipal defende a revitalização da região a partir do potencial cultural,econômico e turístico de espaços e monumentos que mesclam passado e modernidade

HumanizaçãoA Cultura é uma questão estratégica

que visa a garantir os direitos inerentesà cidadania da população e tem opotencial de mobilização criativa, devalorização do ser humano, de geraçãode riquezas e de humanização da ci-dade. O Centro guarda nossa históriaem construções coloniais, em antigosfortes, igrejas e em diversas tradiçõesseculares.O processo de requalificação do Cen-

tro, um bairro vivo e dinâmico quepossui necessidades, experiências, his-tória e cultura próprias, implica nocomprometimento dos diversos atoressociais envolvidos como espaço urbanoem foco, trabalhando pela coabitaçãodo novo com o histórico e tradicional.Não se pode, por exemplo, falar da

identidade do Centro sem falar noporto de Vitória, um ícone imagético ecultural. Local de intenso comércio sim,

mas também de troca, escambo deculturas que aqui chegam desde osprimórdios da Ilha até os dias atuais.Nesse espaço privilegiado de beleza e

efervescência cultural, desenvolvemos,desde 2006, o projeto Estação Porto.Além de divulgar as tradições e riquezasculturais para os visitantes de váriaspartes do país e do mundo, a EstaçãoPorto transformou-se num centro de en-tretenimento e convivência dos mora-dores da região central, de outras partesda cidade e da região metropolitana.Inteiramente gratuitas, as atrações

acontecem, principalmente, nomeio dasemana, reduzindo o processo de es-vaziamento na região. Em seis anos deprojeto, quase 300 mil pessoas visi-taram o local em mais de 250 apre-sentações regionais e 55 nacionais.Este ano, conseguimos uma parceria

muito importante: o governo do Estado.InvestirnaEstaçãoPortoécolaborar como

fomento da economia criativa do Centro.Outro importante investimento estadualfoi a restauração do Palácio Anchieta eabertura do espaço para exposições eatividades voltadas para a Cultura.Mas háainda diversos outros equipamentos cul-turais localizados na região.

CorredorDo Saldanha da Gama ao Complexo

Cultural Walmor Miranda, nosso Sam-bão do Povo, um verdadeiro corredorcultural passa pelo Centro de Vitória.Reativamos o Espaço Cultural Salda-nha da Gama, em 2011, realizandoeventos como o Concurso Nacional deMarchinhas Carnavalescas e o Festivalde Música Livre.Pontuamos, a partir daí, a Casa Porto

das Artes Plásticas, que se encontra emprocesso de restauro; a Faculdade deMúsica do Espírito Santo (Fames); a

Escola de Teatro, Dança eMúsica Fafi; oMercado da Capixaba; o Museu de Artedo Espírito Santo – Dionísio Del Santo(Maes); o Teatro Sesc Glória; a GaleriaHomero Massena; a Galeria VirgíniaTamanini; o Casarão Cerqueira Lima.No Centro Histórico da Capital, é

possível ainda fazer passeios comquase500 anos de história. O Theatro CarlosGomes, por exemplo, apresenta arqui-tetura inspirada no Teatro Scala deMilão; a Catedral Metropolitana deVitória, que demorou 50 anos para serconstruída; o Convento São Francisco,primeiro convento franciscano cons-truído ao sul do Brasil; a Igreja de SãoGonçalo, considerada a dos enlacesduradouros e felizes; o Convento doCarmo, onde funcionou o famoso Co-légio do Carmo; a Igreja do Rosário,que começou a ser construída por ne-gros libertos e escravos a partir de1765; e a Capela de Santa Luzia, aedificação mais antiga da Ilha.Isso sem contar o Palácio Domingos

Martins, futura sede da Biblioteca Mu-nicipal Adelpho Poli Monjardim, queatualmente funciona dentro da Fafi; oMuseu Capixaba do Negro; o PalácioAnchieta; o Arquivo Público Estadual eMunicipal; a Escola São Vicente dePaula, que será uma extensão da Fafi amédio prazo; o Espaço Vitória Design; eo Centro Cultural Carmélia Maria deSouza, entregue em pleno funciona-mento à população em 2011.Não há nenhumoutro polo de Vitória

que tenha em seu espaço geográficotantos sítios de caráter cultural e quemesclam passado e modernidade. Sa-bemos que alguns espaços estão emreforma ou em processo de restauro.Mas, em breve, todos esses aparelhosculturais públicos e privados estarãoem pleno funcionamento. O atual ce-nário, portanto, nos permite concluirque a requalificação do Centro de Vi-tória está em processo de consolidaçãoe passa, obrigatoriamente, por doiscaminhos: a parceria público-pri-vada e a cultura.

Símbolo da Capital, a Catedral Metropolitana de Vitória levou 50 anos para ser concluída e foi tombada pelo Conselho Estadual de Cultura em maio de 1984

GABRIEL LORDÊLLO

A restauração do Palácio Anchieta e a sua abertura para receber exposições reforçam o caráter cultural do Centro

RICARDO MEDEIROS

O edifício que abrigou a sede do antigo Clube Saldanha da Gama representa mais um espaço para a realização de eventos

DIVULGAÇÃO

A Estação Porto se propõe a ser umcentro de entretenimento e convivência

Documento:AGazeta_17_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_10.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:15 de Mar de 2012 19:45:21

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12PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,17 DE MARÇODE 2012

ficçãopor EDUARDO SELGA DA SILVA

INSTANTÂNEO“Mas você, meu sobrinho, você morreu antes de todos, sete anos e alguns meses devida apenas” – comenta o narrador desse conto ao rever os fantasmas de sua família

Vê aquelaspessoas todas logoali, poucos metros à nossafrente, a tonalidade esmae-cida e, ainda assim, esmae-cendo? Pois é. Exceto eu, àesquerda, menino, o único

mortal em preto e branco, todos hojehabitam sepulturas. Uns mais, outros me-nos, observe o quanto riem exatamente amesma alegria preestabelecida para si-tuações convencionais, como esses no-venta anos deminha última avó lúcida, alino meio de todos, alheia. Eu sou aquelaimagemnocanto, timidez, aborrecidocomos milhões de sorrisos frenéticos e vozesem torno. Porque essa felicidade pré-fa-bricada sempre me incomodou. Aindahoje, como se fora moléstia, permaneçoermo a observar essa habilidade alheia, acompetência que apenas os outros têm decaminhar matagal adentro desvencilhan-do-se dos cipoais por meio do riso. Mas...não seja assim tãoacanhadoquanto eu fui,aproxime-se. Vem cá, meu querido so-brinho... Pode vir.Eu me lembro nitidamente daquela

noite, como se estivesse sob o sol dehoje. Mas é estranho: não me sintopersonagem do episódio, tampouco dafamília. Está vendo ao fundo, emol-duradas pela janela, luzinhas coloridasno quintal? Daqui de fora talvez sejacomo se inexistisse para você, mas lá, nojardim, existe (ou existia, não sei) umacaramboleira iluminada... Era uma noi-te, aqueles parabéns, era uma noite nointerior da qual eu preferia ser coruja eme esconder entre os enormes galhos daárvore e suas frutas maduras. Acreditoque por dentro vovó também desejavaisso, sempre teve olhares noturnos. Nãosei se você me entende. Por exemplo:veja ali no centro ela engolida pelossorrisos parentes. Dá a impressão estarabsorta no bolo ornamentado em con-feitaria enquanto a maior parte escolhese descomprometer rindo espaços va-zios, lugares-comuns. Mas na verdadeseus olhos são reflexivos: saudades demim, seu neto logo ali, há poucos me-tros, exilado entre a parentela posadavizinha ao bolo para fotografia. Unslonges eu e ela.O sujeito de camisa laranja, chapéu

panamá, cordões, e no rosto a fisionomiade quem se pretende conhecedor de tudosobre todos os assuntos prováveis no cír-culo de qualquer prosa amena, redon-damente impossível não enxergá-lo, estávendo? Meu tio, coitado. E foi rindo dessemesmo jeito, como quem a irrefutávelsapiência de repente engolirá o mundocircundante, que o encontraram cadáver,dias após a festa, muito mais inchado que

quandovivo.Océrebronãosuportou tantaculturazinha extraída de palavras cru-zadas; os quilômetros cúbicosde cachaçaelimão intoxicaram-lhe o fígado. Dele, sim,eu quero distância.Imagino esteja ouvindoaquelamulher

de saia vermelha e mãos erguidas ao céuexclamar “glória Jesus!” bem próxima avovó. Uma das várias primas às quaisvocê não teve tempo de ser apresentado.Morreu ontem (viveu até muito!...), his-térica que só ela, a Bíblia sobre o cria-do-mudo nunca atendera seu pedidomentiroso: fosse removida de seu co-ração, pelo amor de Deus, aquela paixãoarraigada com quem há décadas dormiae acordava; a virtude engolisse a fome deabrir as pernas emergulhar de cabeça na

vagina lindíssima duma outra prima nos-sa, mais nova, a quem por acaso viu nuasobre a cama, contorcendo-se entre ge-midos solitários e imaginação desamar-rada. Por isso não reconhecia e con-denavaao fogodos Infernos sua vontade,louca, de ficar perto.Mas você, meu sobrinho, você morreu

antes de todos, antesmesmo da festa, seteanos e alguns meses de vida apenas. Comcerteza foi-lhe impossível fixar na me-mória quem quer que fosse. Mesmo o seucorpo astral estando presente no ani-versário. Sim, você é aquele menino, sen-tado na outra janela, próximo às costas desua mãe. Assombrado com o desengano?Eu sei... Nas orações que você recebeu atéhoje, ou não lhe disseram nada sobre sua

origem ou lhe disseram que o seu nas-cimento teria ocorrido anos após a festa.Mas não foi nada assim.Mentirosos até nahora de nossa morte, amém. Se as fe-licitações pelos noventa anos de vida davovó foram o princípio da morte vagarosado nosso ramo genealógico, como umacaramboleira apodrecendo no quintal ou-trora iluminado, você, candura, foi umensaiodisso. Sete anos epoucosmeses...Otempo passou, mas, apesar disso, olha aívocê tão simplório quanto certamenteteria sido se ainda. Continua acreditando,por exemplo, que ainda está vivo, quandode fato, sobrinho, é o seu fantasma quemestá aqui comigo apreciando o retrato dopassado, suspenso. Naquela parede.Vê? Aproxime-se.

Documento:AGazeta_17_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_12.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:15 de Mar de 2012 19:19:47