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Linguística Cognitiva Organizadores Maity Siqueira Ana Flávia Souto de Oliveira Cadernos de Tradução N o 31, jul/dez de 2012 Instituto de Letras - UFRGS Cadernos de Tradução, Porto Alegre, n o 31, jul-dez, 2012, p. 1-254

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Linguística Cognitiva

OrganizadoresMaity SiqueiraAna Flávia Souto de Oliveira

Cadernos de Tradução

No 31, jul/dez de 2012

Instituto de Letras - UFRGS

Cadernos de Tradução, Porto Alegre, no 31, jul-dez, 2012, p. 1-254

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INSTITUTO DE LETRAS - UFRGS

Diretora: Profª. Jane Fraga Tutikian

Vice-Diretora: Profª. Maria Lucia Machado de Lorenci

COMISSÃO EDITORIALProf. Andrei dos Santos Cunha Prof. Gerson Roberto NeumanProfª. Heloísa Monteiro Rosário

Organizadores deste número:Maity SiqueiraAna Flávia Souto de Oliveira

Capa e Editoração: Leandro Bierhals Bezerra - Núcleo de Editoração Eletrônica do Instituto de Letras

Universidade Federal do Rio Grande do SulInstituto de LetrasAv. Bento Gonçalves, 9500 CEP 91540-000 Porto Alegre-RSFone: (051) 33166689 Fax: (051) 33167303http://www.ufrgs.br/iletrasE-mail: [email protected]

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SUMÁRIO

Apresentação / 5

Linguística Cognitiva

A hipótese da invariância: o pensamento abstrato está baseado emesquemas de imagem? / 7

George Lakoff

A realidade psicológico-cognitiva dos esquemas de imagem esuas transformações / 47

Raymond W. Gibbs, Jr. e Herbert L. Colston

Recuperando os conceitos / 81Eleanor Rosch

A semântica de Frames como modelo para a descrição da polissemiae da estrutura sintática dos verbos de movimento do inglês e do alemãona lexicografi a computacional contrastiva / 107

Hans C. Boas

Metáforas pelas quais as biociências vivem / 127Rita Temmermann

Os papéis foram a minha ruína: relações conceituais de sentidos polissêmicos / 143

Devorah E. Klein e Gregory L. Murphy

Construções: uma nova abordagem teórica para a linguagem / 189Adele E. Goldberg

A chave está na cognição social / 205Michael Tomasello

A abordagem da metáfora à luz da dinâmica do discurso e análise dodiscurso a luz das metáforas / 217

Lynne Cameron, Robert Maslen, Zazie Todd, John Maule, Peter Stratton eNeil Stanley

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Apresentação

Este segundo volume temático sobre Linguística Cognitiva dos Cadernos de Tradução foi organizado novamente pelo grupo de pesquisa SEMAFORO. Após apenas três anos da publicação do primeiro volume nesse tema, já é possível perceber o grande aumento na quantidade de publicações e eventos no nosso país que tratam de fenômenos e questões de investigação nessa perspectiva teórica. Pretendemos, com este segundo volume, ajudar a divulgar as pesquisas de grandes expoentes da Linguística Cognitiva, desde publicações mais clássicas, como as de Eleanor Rosch, George Lakoff , Gibbs e Colston, até publicações mais recentes, com as de Boas, Temmerman, Klein e Murphy, Goldberg, Tomasello e Cameron e colaboradores.

Os artigos aqui traduzidos – que abordam categorização, esquemas de imagem, polissemia, semântica de frames, gramática de construções, aquisição da linguagem, metáfora no discurso e na linguagem técnico-científi ca – mostram um pouco da diversidade da agenda de investigação da Linguística Cognitiva. Essa amplitude de interesses verifi cada nos artigos, de certa forma, refl ete os dois principais compromissos da Linguística Cognitiva. O primeiro trata de caracterizar os fundamentos gerais que regem todos os aspectos da linguagem humana (efeitos prototípicos, por exemplo, são observados não apenas em análises semânticas, mais óbvias, mas também em análises nas quais esses efeitos não seriam esperados, como nas morfológicas e fonológicas). O segundo trata da estreita relação entre o que se sabe a respeito da linguagem e os achados das outras disciplinas e ciências cognitivas sobre o funcionamento da mente/cérebro. Ou seja, o fato de a Linguística Cognitiva entender a linguagem como não modular e como parte da cognição geral orienta as investigações para as mais variadas interfaces.

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Todas as traduções deste volume foram feitas por alunos de graduação ou pós-graduação e revisados por doutorandos ou professores universitários. Todos os artigos contam com a autorização expressa de seus autores. Uma vez mais, agradecemos a todos eles, autores, tradutores, revisores e ao Instituto de Letras da UFRGS, que possibilitaram a realização deste volume, fazendo circular o conhecimento.

Porto Alegre, outubro de 2012.

Maity Siqueira e Ana Flávia Souto de OliveiraOrganizadoras

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A Hipótese da Invariância: o pensamento abstratoestá baseado em esquemas de imagem?1

George Lakoff 2

Tradução: Larissa Brangel3; Dalby Dienstbach4

Revisão de tradução: Aline Aver Vanin5

Revisão técnica: Heloísa Pedroso de Moraes Feltes6

A meu ver, a linguística cognitiva está defi nida pelo compromisso de descrever todo tipo de generalização acerca da linguagem e, ao mesmo tempo, ser fi el às descobertas empíricas sobre a natureza da mente e do cérebro. A Hipótese da Invariância é um princípio geral cujo propósito é descrever uma grande variedade de regularidades pertinentes aos nossos sistemas linguístico e conceptual. Considerando-se que todos os mapeamentos metafóricos são parciais, a Hipótese da Invariância estabelece que a parte da estrutura do domínio-fonte que é mapeada preserva a sua topologia cognitiva – embora nem toda a topologia cognitiva do domínio-fonte precise ser mapeada. Já que a topologia cognitiva dos esquemas de imagem determina os seus padrões de inferência, a Hipótese da Invariância sugere, então, que padrões de raciocínio imagético são projetados para padrões de raciocínio abstrato através de mapeamentos metafóricos. Isso nos leva a crer que pelo menos uma parte do raciocínio abstrato (e talvez todo ele) seja uma versão metafórica do raciocínio baseado em imagens.

Entre os dados que fazem parte da Hipótese da Invariância estão o entendimento metafórico de tempo, estados, eventos, ações, propósitos, meios, causas, modalidades, escalas lineares e categorias. E porque o domínio-fonte

1 Traduzido com a autorização do autor, a partir do texto em inglês LAKOFF, G. Th e invariance hipothesis: Is abstract reason based on image schemas? Cognitive Linguistics, v. 1, n. 1, p. 39-74, 1990.2 University of California, Berkeley (Estados Unidos da América).3 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS.4 Universidade Federal Fluminense, RJ.5 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, RS.6 Universidade de Caxias do Sul, RS.

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desses conceitos metafóricos está estruturado com base em esquemas de imagem, a Hipótese da Invariância sugere que o raciocínio que envolve esses conceitos é baseado fundamentalmente em imagens. Isso inclui o conteúdo de raciocínios booleanos, escalares, modais, temporais e causais. Esses casos abrangem uma diversidade tão grande de formas de pensamento abstrato que a pergunta que naturalmente surge é se todo o pensamento abstrato humano é uma versão metafórica do pensamento imagético. Vejo isso como uma questão crucial para pesquisas futuras em linguística cognitiva.

1 O que é linguística cognitiva?

Em geral, prefi ro não entrar em discussões metodológicas e continuar me focando no meu trabalho. Entretanto, acredito que a criação de um novo periódico voltado à linguística cognitiva requer, pelo menos, uma mínima discussão a respeito do que seja essa ciência, ou do que entenda por ela. Trata-se, sem dúvida, de uma defi nição minha. Eu a incluo aqui porque gostaria de fazer com que essa discussão sobre fundamentações fi losófi cas e compromissos primários fosse, desde o início, parte desta iniciativa.

Na minha opinião, grande parte dos desentendimentos cáusticos que têm caracterizado a linguística gerativa ao longo da sua história acontece em virtude de uma falta de comprometimento com discussões desse tipo e de uma falta de interesse pelos compromissos primários de outras teorias. Espero que, se expusermos bem os nossos compromissos primários – para nós mesmos e para os outros –, possamos evitar desentendimentos entre os nossos pesquisadores e, também, com pesquisadores de outras correntes, que veem a linguística sob outras perspectivas.

Compromissos primários

Para mim, a linguística cognitiva se defi ne por dois compromissos primários, que chamarei de Compromisso de Generalização e Compromisso Cognitivo. O compromisso de generalização é o compromisso de se caracterizarem os princípios gerais que regem todos os aspectos da linguagem humana. Vejo-o como o compromisso de se tratar a linguística como um empreendimento científi co. Já o compromisso cognitivo é aquele que torna as explicações sobre a linguagem humana consistentes com o que já foi descoberto a respeito da mente e do cérebro, tanto em outras disciplinas como na nossa.

O compromisso de generalização implica em uma caracterização fenomenológica das subáreas no que diz respeito aos tipos de generalização necessários:

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Na sintaxe: Generalizações sobre a distribuição de morfemas gramaticais, categorias e construções.Na semântica: Generalizações sobre inferências, polissemia, campos semânticos, diversos tipos de relações semânticas, estrutura conceptual, estrutura de conhecimento e a inscrição da linguagem em tudo que percebemos, experienciamos e entendemos.Na pragmática: Generalizações sobre atos de fala, discurso, implicaturas, dêixis e o uso da linguagem no contexto.

O mesmo serve para a morfologia, a fonologia etc. É claro que nenhum compromisso é assumido aprioristicamente, como se essas fossem subáreas distintas. Trata-se de uma questão empírica, e constatações empíricas sugerem que essas subáreas não são distintas – por exemplo, generalizações feitas a respeito da sintaxe dependem de considerações semânticas e pragmáticas.

O compromisso cognitivo, por sua vez, exige que se leve em consideração a grande variedade de dados empíricos fornecidos por várias disciplinas. Alguns exemplos incluem:

Dados sobre categorização provenientes da psicologia cognitiva, da psicologia do desenvolvimento e da antropologia, que demonstram a existência de categorias de nível básico e efeitos prototípicos.Dados psicofísicos, neurofi siológicos e antropológicos a respeito da natureza da percepção cromática e da sua categorização.Dados da psicologia cognitiva relativos à capacidade humana de conceber imagens e à associação de imagens convencionais com a linguagem.Dados da neurociência cognitiva e do conexionismo referentes aos mecanismos computacionais do cérebro.

Se tivermos sorte, os dois compromissos entrarão em acordo: os princípios gerais que procuramos serão cognitivamente reais. Caso não sejam, o compromisso cognitivo tem prioridade: estamos interessados em lidar com generalizações cognitivas reais.

Esse não é um assunto trivial. Pode acontecer de nem todas as generalizações cognitivas reais concordarem com generalizações feitas a partir de métodos tradicionais de análise linguística. Por exemplo, o fato de as categorias cognitivas não serem clássicas, na sua maioria, implica que um pesquisador da linguagem que defi ne uma generalização se valendo apenas de categorias tradicionais (ou seja, a partir de listas de atributos), entrará, inevitavelmente, em confl ito com o compromisso cognitivo. A teoria cognitiva de categorização está pressuposta na descrição do que conta como uma generalização dentro da linguística cognitiva. Para um linguista gerativista, as teorias tradicionais são as únicas

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possíveis, e as generalizações devem ser defi nidas a partir do seu uso. Um linguista cognitivo, por outro lado, presume que as categorias tenham um dos tantos tipos de estruturas prototípicas (LAKOFF, 1987) e sejam organizadas em termos de níveis básicos, níveis superordenados e níveis subordinados. No âmbito da linguística cognitiva, o uso das categorias clássicas em uma análise qualquer exige uma justifi cativa empírica: uma demonstração de que não existem estruturas prototípicas ou estruturas de nível básico.

O compromisso cognitivo também leva a se suspeitar das listas não estruturadas. Sabemos que a teoria da memória por estocagem está errada: redes neurais não captam somente pedaços isolados de informação sobre um assunto, sem aplicá-los sem generalizar (RUMELHART; MCCLELLAND, 1986, cap. 14). Desse modo, não esperamos que um sistema linguístico seja uma lista não estruturada de itens lexicais e construções. Esperamos, ao invés disso, achar redes de relações entre esses itens.

Tomando como primários os compromissos de generalização e cognitivo, todos os outros compromissos passam a ser secundários: compromissos fi losófi cos, compromissos com as formas apropriadas de descrição linguística, e outros pressupostos acerca da natureza do pensamento e da linguagem. E isso é realmente relevante, porque, quando compromissos primários e compromissos secundários entram em conflito entre si, o compromisso primário tem prioridade, ao passo que o secundário deve ser descartado.

Consideremos um exemplo. Um tempo atrás, quando eu ainda era um linguista gerativista, o meu compromisso com o paradigma da manipulação de símbolos, que defi ne a linguística gerativa, era secundário. Conservei esse compromisso por muitos anos, contanto que ele não contradissesse os compromissos primários de generalização e cognitivo, os quais sempre defi niram o meu trabalho. Porém, na metade da década de 1970, a descoberta da categorização de nível básico e prototípica, e o subsequente estabelecimento da necessidade de esquemas de imagens para se descreverem certas generalizações linguísticas, gerou em mim um confronto de compromissos. O compromisso cognitivo exigia que eu considerasse seriamente a categorização de base prototípica. O compromisso de generalização me obrigava a encarar seriamente os esquemas de imagem. Como eles não poderiam ser assumidos pelo paradigma gerativista de manipulação de símbolos, e como esse compromisso gerativista era secundário, optei por abandoná-lo. Apesar de o compromisso gerativista ser logicamente consistente com os compromissos cognitivo e de generalização, ele se mostrava empiricamente inconsistente com eles. Continuar com o compromisso gerativista implicaria desistir dos compromissos cognitivo e de generalização, ou seja, abrir mão da linguística cognitiva do modo como a entendo.

Da mesma forma, eu costumava assumir outro compromisso secundário, que chamarei de compromisso fregeano, para uma visão de signifi cado baseada

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em verdade e de referência. Esse compromisso me levou, no início da década de 1960, a sugerir que tais mecanismos da lógica, como a forma lógica e a teoria de modelos, eram fundamentais para a linguística. No entanto, na década de 1970, fi cou claro, para mim, que o compromisso fregeano era empiricamente inconsistente com os compromissos cognitivo e de generalização (LAKOFF, 1989, p.55-76). O que tornou isso claro não foi apenas a descoberta das categorias de nível básico e dos esquemas de imagem, mas também a descoberta da metáfora conceptual. A teoria da metáfora conceptual é uma consequência empírica da aplicação do compromisso de generalização ao fenômeno da polissemia e da inferência (ver LAKOFF; BRUGMAN, 1986). Sem a metáfora conceptual, muitas generalizações não poderiam ser estabelecidas. Manter-se fi el a tais compromissos para defender essas generalizações signifi ca abrir mão do compromisso fregeano, ou seja, abandonar o aparato da lógica formal e a ideia de que o signifi cado é baseado em referência e verdade.

O compromisso cognitivo exige que levemos as pesquisas em psicologia cognitiva a sério e, consequentemente, motiva uma teoria da metáfora conceptual. Pesquisas recentes desenvolvidas por Ray Gibbs e seus colaboradores, na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz (EUA), confi rmaram, através de experimentos, as nossas conclusões acerca da existência da metáfora conceptual e das imagens mentais convencionais.

Resumindo, aceitar os compromissos de generalização e cognitivo não é uma questão de pouca importância. Esses compromissos têm consequências de grande alcance quando combinados com pesquisas empíricas – consequências que alteram completamente a natureza da linguística. Portanto, meu ponto de vista, hoje, a respeito da metáfora, dos esquemas de imagem, das categorias radiais e da teoria prototípica em geral não são em si mesmos compromissos a priori. Eles são consequências empíricas de se adotarem os compromissos cognitivo e de generalização com o que considero como o que defi ne o campo da linguística cognitiva.

São muitas as razões que me levam a querer esclarecer os meus compromissos:

Em primeiro lugar, tudo o que eu disser, de agora em diante, será baseado nesses compromissos. Já que o que eu disser aqui está sujeito a controvérsias, quero fazer uma distinção entre o que é controverso em relação a compromissos e o que é controverso em relação a análises (em que se assumem muitos compromissos semelhantes).Em segundo lugar, não sei quantos estudiosos que se consideram linguistas cognitivos compartilham os mesmos compromissos que eu. O único jeito de descobrir é estabelecer abertamente os nossos compromissos.E em terceiro lugar, estou certo de que outros pesquisadores que se

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consideram cognitivos não tem os mesmos compromissos primários que eu. As divergências quanto a como analisar adequadamente um determinado fenômeno será resultado das diferenças entre compromissos primários.

Linguística cognitiva vs. linguística gerativa

Do modo como a entendo, a linguística gerativa se defi ne pela primazia do compromisso gerativista: o compromisso de se enxergar a linguagem em termos de sistemas da matemática combinatória do tipo postulado, pela primeira vez, pelo matemático Emil Post. Esses sistemas são denominados “gramáticas formais”. Essas gramáticas forais são sistemas em que os símbolos são manipulados através de regras de uma forma matemática restrita, sem se levar em consideração a interpretação desses símbolos.

Exclui-se do compromisso gerativista tudo que não se encaixa nesses sistemas: imagens mentais e esquemas de imagens, processos cognitivos gerais, categorias de nível básico (que são, em parte, defi nidas pelo aparato sensoriomotor), fenômenos prototípicos em geral, signifi cados dos símbolos usados, a base [groudning] dos signifi cados em experiências corpóreas e sociais, e o uso de fundamentações neurológicas para as teorias linguísticas. Vamos nos referir a eles como “fenômenos não fi nitos”.

Aceitar o compromisso gerativista como primário signifi ca defi nir o estudo da linguística em termos do estudo das gramáticas formais e, consequentemente, restringir a ciência da linguagem àquilo que tais sistemas podem fazer. Signifi ca, também, excluir da linguística tudo o que foi mencionado antes: os fenômenos rejeitados pelo compromisso gerativista. Assim, a independência da linguística, aos olhos dos linguistas gerativistas, não é consequência de um fenômeno empírico. É, na verdade, resultado da decisão de se defi nir o campo da linguística de acordo com o compromisso gerativista, a fi m de se usarem as gramáticas formais no seu sentido mais técnico. As propriedades matemáticas dessas gramáticas requerem autonomia, uma vez que não podem lidar naturalmente com fenômenos não fi nitos.

Além do mais, aceitar o compromisso gerativista como primário torna secundários os compromissos cognitivo e de generalização. Se a linguística for defi nida pela exclusão de todos os fenômenos não fi nitos, então qualquer generalização linguística que faça referência a um fenômeno desse tipo não será encarada como uma generalização linguística correta e, por isso, será ignorada (ou, provavelmente, nem ao menos será observada). Quando, dentro da linguística gerativa, se toma o compromisso gerativista como primário, o signifi cado de uma generalização acaba sendo defi nido de modo bastante abrangente. No que diz respeito ao compromisso cognitivo, não podemos ignorar os fenômenos não fi nitos; pelo contrário, devemos dar a eles uma atenção especial.

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Como mencionei anteriormente, seria logicamente possível que a linguística cognitiva e a linguística gerativa constituíssem uma única iniciativa: Se as generalizações linguísticas nunca fi zessem qualquer referência a fenômenos não fi nitos, se todos os aspectos da linguagem fossem perfeitamente caracterizáveis em termos de sistemas combinatoriais, então as linguísticas cognitiva e gerativa seriam idênticas. Mas é um fato empírico que elas não são idênticas. Os princípios gerais da linguagem não somente fazem uso de fenômenos não fi nitos, como fazem uso deles em praticamente todos os aspectos da sua estrutura. É a observação empírica que tem dado origem à linguística cognitiva – as centenas, talvez milhares, de casos descritos até agora, em que esses fenômenos ignorados pela linguística gerativa são necessários para que possam se esclarecerem os princípios gerais que regem a linguagem.

O que faz a diferença não é somente o fato de a linguística cognitiva conseguir explicar mais fenômenos do que a gerativa. Ela, de fato, o faz; porém, os explica de maneira diferente. Tomemos como exemplo a natureza da representação semântica. Os compromissos de generalização e cognitivo fi zeram com que linguistas cognitivos postulassem noções como esquemas de imagem, mapeamentos metafóricos e metonímicos, espaços mentais, categorias radiais etc., para, assim, caracterizarem as generalizações semânticas. Os fenômenos que levaram a tais conclusões geralmente não são discutidos pelos linguistas gerativos. Na minha opinião, isso acontece principalmente porque o aparato descritivo disponível na linguística gerativa não é capaz de dar conta dos princípios gerais que regem tais fenômenos. Isso não é encarado como um problema pelos gerativistas, pois a sua disciplina é defi nida de modo restrito, a ponto de excluir tais fenômenos.

Além dessa distinção de base empírica entre as duas disciplinas, há também uma distinção fi losófi ca: uma distinção entre o que é visto como conhecimento e o que é visto como prática científi ca. Ambas as disciplinas se autodenominam científi cas e comprometidas com uma precisão máxima. Porém, os gerativistas tendem a defi nir a sua precisão pelo uso da matemática dos sistemas combinatórios, enquanto os linguistas cognitivos não possuem restrições quanto à defi nição de precisão. Assim, quando Noam Chomsky descreveu a linguística gerativa como algo comprometido com nada além do que fosse “preciso e completo”, ele determinou que a única maneira de ser “preciso” era fazendo uso de certos sistemas da matemática combinatória. E o que se via como “completo” era diretamente proporcional ao que se via como “preciso”: os princípios gerais que não se encaixassem nos moldes da gramática formal não eram vistos como princípios linguísticos reais e, portanto, eram deixados de fora de uma descrição “completa” de uma língua. Ao se tomar esse compromisso como determinador do que é preciso e, por consequência, científi co, somente a linguística gerativa poderia ser vista como “científi ca”.

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A linguística cognitiva tem uma visão bem diferente do que seja científi co. Para aqueles que têm como primários os compromissos cognitivo e de generalização, o estudo científi co da linguagem consiste em buscar os seus princípios gerais, indo ao encontro do que se conhece acerca da cognição e do cérebro. Partindo de uma perspectiva cognitivista, a opção de se aceitar como primário o compromisso gerativista vai de encontro ao que é científi co, pois esse exclui, a priori, o estudo de todas as regularidades linguísticas que não podem ser expressas por certos sistemas matemáticos combinatórios. Empiricamente, essa é uma restrição arbitrária que torna impossível determinar muitos dos princípios gerais que regem os aspectos da linguagem. Nessa perspectiva, a linguística gerativa está mais para um programa fi losófi co do que para uma iniciativa científi ca – o estudo das consequências de se tomar como primário o compromisso gerativista.

Pode-se entender agora o porquê dos constantes problemas de comunicação entre linguistas gerativistas e cognitivos. Eles tomam como primários compromissos diferentes. Esses compromissos não apenas são empiricamente incompatíveis, como também geram posições muito diferentes a respeito da visão da linguística enquanto iniciativa científi ca. Diante de tais diferenças, seria um milagre se a comunicação fosse simples. A comunicação só será possível se se admitirem as diferenças entre os seus compromissos primários.

É preciso dizer, ainda, que nem todo o mundo que se autodenomina linguista gerativista assume aquilo que chamei de compromisso gerativista. Muitos linguistas veem o “preciso” e o “completo” como palavras comuns, e não como termos técnicos, e aceitam um compromisso amplo e não-técnico com relação à precisão e à completude. Tal compromisso vai, sem dúvida, ao encontro da linguística cognitiva; porém, passa longe do compromisso técnico elaborado pelos teóricos gerativistas mais ferrenhos.

Diversidade da linguística cognitiva

Aqueles que se veem profi ssionalmente como linguistas cognitivos não precisam obrigatoriamente compartilhar os mesmo compromissos primários que estabeleci ao defi nir a linguística cognitiva. Tomemos um exemplo óbvio. A professora Anna Wierzbicka tem, há muito tempo, assumido um compromisso primário para a existência de um grupo universal de primitivos semânticos, conforme foi sugerido por Leibniz. O seu compromisso para essa visão específi ca do “alfabeto dos pensamentos humanos” tem prioridade sobre aquilo que chamei de compromissos cognitivo e de generalização. Devido ao fato de partirmos de compromissos primários diferentes, é provável que eu acabe discordando da professora Wierzbicka em muitas questões. O seu compromisso primário é inconsistente com teorias como as da metáfora conceptual, dos protótipos, dos conceitos de nível básico etc. Logo, é inevitável que discordemos nessas e em outras questões.

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Imagino realmente que a professora Wierzbicka não aceitaria os compromissos cognitivo e de generalização e os priorizaria em relação ao seu compromisso leibniziano. Logo, não espero que ela desista desse seu compromisso diante das evidências que tenho apresentado em muitos trabalhos. Por conta dessas divergências iniciais, é inevitável que cheguemos também a conclusões diferentes. Sem que haja concordância nas premissas iniciais, discussões acerca das conclusões seriam sempre à toa.

Escolhi a professora Wierzbicka em função do meu grande respeito por suas distintas contribuições para a linguística durante a sua longa carreira, e também porque aprendi muito com o seu trabalho, apesar das nossas discordâncias. Diferenças desse tipo nos compromissos primários são inevitáveis entre os membros da comunidade da linguística cognitiva, assim como em qualquer outra comunidade científi ca. É importante que entendamos a natureza de tais discordâncias, que as reconheçamos abertamente, e que estejamos dispostos a discuti-las francamente, sem rancores.

É claro que existe uma boa razão para eu ter escolhido os compromissos cognitivo e de generalização como primários. No meu ponto de vista, o compromisso de generalização se coloca diante da linguística como um parâmetro científico, um compromisso que busca princípios gerais. O compromisso cognitivo não isola a linguística dos estudos da mente e considera com atenção os vários outros dados referentes a ela. Nenhum desses compromissos impõem uma forma particular de resposta. Assim, constituem compromissos metodológicos, e não compromissos teóricos.

Por outro lado, os compromissos gerativista, fregeano e até mesmo o leibniziano pressupõem algum tipo de resposta. O compromisso gerativista requer uma resposta em termos da manipulação de símbolos não interpretados. O compromisso fregeano exige uma resposta na forma de condições de verdade e mapeamentos, a partir de símbolos, para coisas no mundo. O compromisso leibniziano exige uma resposta na forma de um alfabeto de primitivos.

Prefi ro os compromissos primários elaborados por mim e muitos outros linguistas cognitivos, pois tais compromissos não impõem uma única forma de resposta e, por isso, não limitam a investigação de maneira artifi cial. O que tem sido muito interessante nisso tudo é que esses compromissos têm nos levado, por meios empíricos, a concepções muito ricas a respeito da natureza da linguagem e do pensamento.

2 Algumas propriedades básicas das metáforas

A teoria da metáfora, como foi desenvolvida na última década, resulta da aplicação dos compromissos cognitivo e de generalização sobre um grande conjunto de dados. A língua inglesa, por exemplo, é rica em expressões que

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refl etem a conceptualização do amor como sendo uma viagem. Algumas são especifi camente sobre o amor, outras podem ser entendidas desta forma:

Look how far we’ve come. [Veja até onde chegamos.]7

It’s been a long, bumpy road. [Esta é uma estrada longa e tortuosa.]We can’t turn back now. [Não podemos voltar atrás agora.]We’re at a crossroads. [Estamos em uma encruzilhada.]We may have to go our separate ways. [Teremos de seguir caminhos diferentes.]We’re spinning our wheels. [Não estamos saindo do lugar.]Th e relationship isn’t going anywhere. [Este namoro não está indo a lugar algum.]Th e marriage is on the rocks. [O casamento encalhou.]

Essas são expressões bem comuns na língua inglesa. Não são poéticas, nem são usadas necessariamente para efeitos retóricos particulares. Expressões como Look how far we’ve come [Veja até onde chegamos], que não fazem alusão somente ao amor, podem ser facilmente relacionadas a ele. Exemplos como esses mostram que o que está envolvido aqui não é apenas uma linguagem convencional, mas um modo convencional de se pensar. Eles refl etem um tipo de refl exão sobre o amor em termos de um certo tipo de viagem:

O casal é uma dupla de passageiros que viajam juntos, com os mesmos objetivos de vida, os quais são vistos como destinos a serem alcançados. O relacionamento em si é o veículo do casal, o que permite que busquem juntos as mesmas metas. O relacionamento cumpre o seu propósito quando o casal consegue progredir em relação aos seus objetivos comuns. A viagem não é fácil. Existem obstáculos. Em alguns lugares (crossroads [encruzilhadas]), devem se tomar decisões sobre qual direção seguir e se devem prosseguir a viagem juntos ou não. A viagem pode ser feita de diversas maneiras: de carro (long bumpy road [estrada longa e tortuosa], spinning our wheels [patinar]), de trem (off the track [fora dos trilhos]), de barco (on the rocks [encalhado], foundering [naufragar]), de avião (just taking off [decolar], bailing out [ejetar]).

A metáfora envolve o entendimento de um domínio de experiência – o amor – em termos de outro domínio de experiência bem diferente – viagens. A metáfora pode ser explicada como um mapeamento (no sentido matemático) 7 A fi m de se preservar a coerência entre as explicações do autor e os respectivos exemplos, optou-se por manter os exemplos na sua língua original, seguidos da tradução para o português entre colchetes. (N. T.)

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de um domínio-fonte (neste caso, viagens) para um domínio-alvo (neste caso, o amor). O mapeamento é solidamente estruturado. Existem correspondências ontológicas que determinam quais elementos do domínio do amor (por exemplo, o casal, seus objetivos comuns, suas difi culdades, o relacionamento em si etc.) se correlacionam, de modo sistemático, com quais elementos no domínio da viagem (os viajantes, o veículo, os destinos etc.). Eis alguns exemplos de correspondências ontológicas:

O casal corresponde aos viajantes.O relacionamento em si corresponde ao veículo.O fato de estarem tendo um relacionamento corresponde a viajarem no mesmo veículo.A intimidade que existe no relacionamento corresponde à proximidade física de estarem no mesmo veículo.Os objetivos comuns do casal correspondem ao seu destino comum na viagem.As difi culdades correspondem aos obstáculos da viagem.

O mapeamento possui ainda correspondências epistêmicas, nas quais o conhecimento sobre viagens é mapeado para o conhecimento sobre o amor. Tais correspondências nos permitem pensar sobre o amor da mesma maneira que pensamos sobre uma viagem. Tomemos um exemplo:

Dois viajantes estão indo para algum lugar em um veículo, quando batem em algum obstáculo e param. Se os viajantes não fi zerem nada, não chegarão ao seu destino.

Há um número limitado de alternativas de ações a serem tomadas:

1. Podem tentar fazer com que o carro volte a andar, consertando-o ou fazendo ele passar pelo obstáculo que o parou.2. Podem permanecer no veículo parado e desistirem de chegar ao seu destino.3. Podem abandonar o veículo.

A opção de permanecerem no veículo parado é a que exige menos esforço, mas não satisfaz a vontade de chegarem ao seu destino.

As correlações ontológicas mapeiam esse cenário de viagem (às vezes, chamado de “estrutura do conhecimento” pelas ciências cognitivas) para um cenário correspondente de amor, em que se encontram alternativas correspondentes para as ações. Cria-se, então, o cenário correspondente de amor, fruto da aplicação das correlações ontológicas a essa estrutura de conhecimento.

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Duas pessoas estão apaixonadas e aspiram por objetivos comuns em um relacionamento amoroso. Elas encontram algumas difi culdades no relacionamento e, se nada for feito, tais difi culdades irão impedi-las de continuar perseguindo os seus objetivos.

As alternativas de ações a serem tomadas podem ser:1. Podem tentar fazer algo que mude essa situação, fazendo com que o relacionamento lhes permita, mais uma vez, aspirar pelos mesmos objetivos.2. Podem deixar o relacionamento como está, desistindo, assim, de perseguirem os seus objetivos.3. Podem abandonar o relacionamento.

A alternativa de permanecerem no relacionamento exige um esforço menor, mas não atinge os objetivos externos ao relacionamento.

O que constitui a metáfora AMOR É UMA VIAGEM não é nenhuma palavra ou expressão em particular. São os mapeamentos epistêmico e ontológico entre os domínios conceptuais, o domínio-fonte de viagem e domínio-alvo de amor. A metáfora não é apenas uma questão de linguagem, mas também de pensamento e raciocínio. A língua é um refl exo do mapeamento. O mapeamento é convencional, uma das nossas maneiras convencionais de entender o amor.

Se as metáforas fossem apenas expressões linguísticas, esperaríamos que expressões linguísticas diferentes fossem metáforas diferentes. Nesse caso, We’ve hit a dead-end street [Chegamos a um beco sem saída] seria uma metáfora, e We can’t turn back now [Não podemos mais voltar atrás] constituiria outra metáfora, bem diferente. E Th eir marriage is on the rocks [O casamento deles está encalhado] envolveria, ainda, outra metáfora. O mesmo valeria para outras dezenas de exemplos. No entanto, não temos aqui dezenas de metáforas diferentes. Temos uma metáfora, em que o amor é visto como uma viagem. Trata-se de uma única maneira de se conceptualizar o amor metaforicamente, que é materializada em diferentes expressões linguísticas. É aqui que o compromisso da generalização entra em cena. A metáfora AMOR É UMA VIAGEM caracteriza uma generalização linguística de dois tipos:

Generalização polissêmica: uma generalização sobre sentidos relacionados de expressões linguísticas, como, por exemplo, dead-end street [rua sem saída], crossroads [cruzamentos], spinning one’s wheels [patinar], not going anywhere [não chegar a lugar algum] etc.Generalização inferencial: uma generalização sobre as inferências entre domínios conceptuais diferentes.

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Uma vez que o compromisso da generalização consta como um dos compromissos primários, tal evidência leva à conclusão de que a metáfora conceptual existe. Sem dúvida, existem outras evidências que podem servir como fundamentação para a metáfora conceptual, as quais surgem do valor predicativo da metáfora. Tomemos uma frase como:

Look how far we’ve come. [Veja até onde chegamos.]

Ela pode se referir ao amor (bem como a outras atividades, como carreiras, que são vistas como viagens). Nenhuma das palavras da frase seria identifi cada no léxico do inglês como relacionada ao amor. Nem look [ver], nem far [onde] e nem come [chegar] (nos sentidos usados aqui). Esse fato, no entanto, pode ser explicado se pressupormos a metáfora AMOR É UMA VIAGEM. Essa metáfora conceptual explica por que as extensões novas e criativas do mapeamento podem ser entendidas imediatamente, dadas as devidas correspondências ontológicas e outras informações sobre viagens. Veja este fragmento da letra de uma música:

We’re driving in the fast lane on the freeway of love. [Estamos dirigindo na pista rápida da rodovia do amor.]

A alusão a viagens feita aqui é a seguinte: quando dirigimos na pista rápida, percorremos grandes distâncias em pouco tempo, e isso pode ser tanto estimulante como também perigoso. O mapeamento metafórico geral transporta o conhecimento acerca da ação de dirigir para o conhecimento sobre relacionamentos amorosos. O perigo pode estar no veículo (o relacionamento pode não durar muito) ou nos passageiros (o casal pode se machucar emocionalmente). O estímulo do amor como viagem é o sexo. O nosso entendimento da música depende de correspondências metafóricas preexistentes, pertinentes à metáfora AMOR É UMA VIAGEM. A letra da música é compreendida imediatamente pelos falantes de inglês, pois essas correspondências metafóricas já fazem parte do seu sistema conceptual.

A metáfora AMOR É UMA VIAGEM foi o exemplo que me convenceu de que a metáfora não é uma fi gura de linguagem, mas, sim, uma maneira de pensar, defi nida por um mapeamento sistemático entre um domínio-fonte e um domínio-alvo. O que me convenceu foram as três características da metáfora que acabamos de discutir:

1. A sistematicidade nas correspondências linguísticas.2. O uso da metáfora para gerenciar o pensamento e o comportamento baseado nele.3. A possibilidade de se entenderem extensões inéditas com base nas correspondências convencionais.

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Até agora, discutimos apenas o compromisso de generalização. Vamos tratar agora do compromisso cognitivo, que nos leva a encarar seriamente os resultados experimentais da psicologia cognitiva. No passado, apoiei-me nesse compromisso com o propósito de conciliar as minhas visões teóricas com os resultados experimentais sobre a natureza da categorização, tanto no que dizia respeito aos prototípicos quanto aos conceitos de nível básico. Mas, e a metáfora?

Muitas das expressões metafóricas discutidas na literatura sobre metáforas são expressões idiomáticas. Na visão clássica, as expressões idiomáticas possuem signifi cado arbitrário. Porém, na linguística cognitiva, existe a possibilidade de elas não serem arbitrárias e, sim, motivadas, e a metáfora conceptual pode ser uma das coisas que as motivam. Vamos examinar essas expressões com mais atenção.

Uma expressão idiomática como spinning one’s wheel [patinar] traz consigo uma imagem mental convencional, em que as rodas de um carro atolam em alguma substância – que pode ser lama, areia, neve ou gelo – a ponto de impedir que o carro se movimente, mesmo com o motor ligado e as rodas girando. Parte do nosso conhecimento sobre essa imagem diz que muita energia está sendo gasta (para girar as rodas) sem que haja qualquer progresso, que a situação não vai mudar por si só, e que isso vai exigir muito esforço por parte dos passageiros do veículo para que as rodas voltem a se mover novamente – e talvez isso nem seja possível.

A metáfora AMOR É UMA VIAGEM recorre a esse conhecimento imagético sobre patinar o carro para mapear o conhecimento sobre carros para o conhecimento sobre relacionamentos amorosos: muita energia é gasta sem que haja qualquer progresso (para alcançar objetivos comuns), a situação não mudará por si só, e será necessário muito esforço por parte do casal para que haja alguma mudança etc. Resumindo, quando expressões idiomáticas possuem imagens convencionais associadas a elas, é normal que uma metáfora conceptual, cuja motivação se dá de forma independente, mapeie esse conhecimento do domínio-fonte para dentro do domínio-alvo. Pelo menos, é isso que o compromisso de generalização nos faz acreditar. Os psicólogos cognitivos Ray Gibbs e Jennifer O’Brien, da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, desenvolveram três conjuntos de experimentos para testar essa hipótese, e eles a corroboram de maneira contundente (ver GIBBS; O’BRIEN, 1989). Logo, os compromissos cognitivo e de generalização nos levam às mesmas conclusões.

Moral da história: se tomarmos como primários os compromissos de generalização e cognitivo, teremos de aceitar as explicações sobre metáforas e sobre as expressões idiomáticas que elas desencadeiam. Essas conclusões podem ser descartadas somente se colocarmos algum outro princípio à frente dos compromissos cognitivo e de generalização.

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3 O entendimento metafórico de conceitos semânticos básicos

A maioria das pessoas não fi ca tão surpresa ao descobrir que conceitos emocionais, como amor e raiva, são entendidos metaforicamente. O que é mais interessante, e que acho mais instigante, é o fato de muitos dos conceitos mais básicos, em termos de semântica, também serem entendidos metaforicamente – conceitos como tempo, quantidade, estado, mudança, ação, causa, propósito, meio, modalidade e até mesmo a ideia de uma categoria. Essas noções entram normalmente nas gramáticas das línguas, e, se são realmente metafóricas por natureza, então a metáfora se torna um elemento central para a gramática. O que estou querendo dizer aqui é que os mesmos tipos de considerações que nos levam a aceitar a metáfora AMOR É UMA VIAGEM, nos levam também, inevitavelmente, à conclusão de que os conceitos mais simples são geralmente (e, talvez, sempre) entendidas através de metáforas.

Categorias

Categorias clássicas são entendidas metaforicamente como se fossem espaços limitados, ou “recipientes”. Sendo assim, algo pode estar dentro ou fora de uma categoria, pode ser colocado para dentro ou tirado dela etc. A lógica das categorias clássicas é a lógica dos recipientes (ver Figura 1).

Se X está no recipiente A, e A está no recipiente B, então X está no recipiente B.

Figura 1. X está em A; A está em B. X está em B.

O que torna essa afi rmação verdadeira não é a natureza de alguma dedução lógica, mas, sim, a natureza das propriedades topológicas dos recipientes. Por conta da metáfora CATEGORIAS CLÁSSICAS SÃO RECIPIENTES, as

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propriedades lógicas das categorias são herdadas das propriedades lógicas dos recipientes. Uma das principais propriedades lógicas das categorias clássicas é o silogismo clássico. O silogismo clássico:

Sócrates é homem.Todo homem é mortal.Logo, Sócrates é mortal.

É da forma:

Se X está na categoria A, e A está na categoria B, então X está na categoria B.

Sendo assim, as propriedades lógicas das categorias clássicas podem ser vistas como resultado das propriedades topológicas dos recipientes somadas ao mapeamento metafórico entre recipientes e categorias. Se as propriedades topológicas dos recipientes forem preservadas pelo mapeamento, esse resultado será verdadeiro. Há uma generalização a ser postulada aqui. A linguagem dos recipientes se aplica às categorias clássicas, e a lógica dos recipientes constitui uma realidade para elas. Um único mapeamento metafórico deve poder caracterizar, de uma única vez, ambas a generalização linguística e a generalização lógica. Isso só acontece se as propriedades topológicas dos recipientes forem preservadas no mapeamento. A combinação das relações linguística e inferencial entre recipientes e categorias clássicas não é um caso isolado. Tomemos outro exemplo.

Quantidades e escalas lineares

O conceito de quantidade envolve pelo menos duas metáforas. A primeira é bem conhecida: MAIS É PARA CIMA, MENOS É PARA BAIXO, expressas em várias sentenças, como Prices rose [Os preços subiram], Stocks skyrocketed [os valores dispararam], Th e market plummeted [O mercado despencou], entre outras. A segunda metáfora diz que ESCALAS LINEARES SÃO TRAJETÓRIAS. Podemos percebê-las em expressões como:

John is far more intelligent than Bill. [John é de longe mais inteligente do que Bill.]John’s intelligence goes way beyond Bill’s. [A inteligência de John ultrapassa a de Bill.]John is way ahead of Bill in intelligence. [John está muito à frente de Bill em se tratando de inteligência.]

A metáfora mapeia o ponto inicial da trajetória para a base da escala e mapeia a distância percorrida como quantidade em geral. O que é particularmente

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interessante é que a lógica das trajetórias é mapeada para a lógica das escalas lineares (ver Figura 2).

Figura 2.

Inferência da trajetória: Se você está indo de A para C e, neste momento, está em um ponto intermediário B, então você já esteve em todos os pontos entre A e B, mas em nenhum ponto entre B e C. Exemplo: Se você está indo de São Francisco a Nova York pela rota 80 e está, neste momento, em Chicago, então você já passou por Denver, mas não por Pittsburgh.Inferência da escala linear: Se você tem exatamente $50 na sua conta, então você tem $40, $30 etc., mas não $60, $70 ou qualquer outra quantia maior.

A forma dessas inferências é a mesma. A inferência da trajetória é uma consequência da topologia cognitiva de trajetórias. Será verdadeira em qualquer esquema de imagem de trajetória. De novo, há uma generalização linguística e inferencial a ser postulada, que poderia ser pressuposta pela metáfora ESCALAS LINEARES SÃO TRAJETÓRIAS, uma vez que as metáforas em geral preservam a topologia cognitiva (ou seja, a estrutura do esquema de imagem) do domínio-fonte.

A Hipótese da Invariância

As considerações feitas acima nos levam à seguinte hipótese:

Hipótese da Invariância: mapeamentos metafóricos preservam a topologia cognitiva (ou seja, a estrutura do esquema de imagem) do domínio-fonte.

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De acordo com essa Hipótese, todas as inferências do domínio-fonte referentes à topologia cognitiva (estrutura do esquema de imagem) serão preservadas no mapeamento. Isso explica o que tem se observado empiricamente em estudos sobre metáforas até agora, ou seja, que a metáfora preserva a estrutura inferencial – pelo menos alguns tipos de estrutura inferencial. Também pode se afi rmar, a partir dessa hipótese, que uma grande parte das inferências abstratas – se não todas elas – são versões metafóricas de inferências espaciais inerentes à estrutura topológica dos esquemas de imagem. Dessa forma, o compromisso de generalização nos leva à Hipótese da Invariância, a qual, por sua vez, levanta uma questão bastante controversa a respeito da natureza do raciocínio abstrato.

A Hipótese da Invariância tem outra consequência, que se refere ao tipo de representação imagética que Ron Langacker propôs para muitos conceitos abstratos. A Hipótese da Invariância sustenta que, se os conceitos abstratos são entendidos metaforicamente, então as suas representações imagéticas são os esquemas de imagem que foram projetados metaforicamente a partir do domínio-fonte das metáforas. Em síntese, a Hipótese da Invariância é uma possível ligação entre a análise metafórica e a análise proposta por Langacker. Ela surge, de fato, para reforçar os exemplos que discutimos até agora: as categorias clássicas e as escalas lineares. Volto-me, agora, a outros casos de conceitos semânticos básicos, porém abstratos, a fi m de entender que evidências indicam um entendimento metafórico desses conceitos. Depois, retornarei à questão da Hipótese da Invariância.

Tempo

Sabe-se que, na língua inglesa8, o tempo é visto em termos de espaço. Os detalhes são muito interessantes:

Ontologia: O tempo é entendido em termos de coisas (entidades e lugares, por exemplo) e movimento.Contexto: O tempo presente está no mesmo local em que se encontra um observador comum.

Os mapeamentos são:

O tempo é um objetoA passagem do tempo é o movimentoO futuro está na frente do observador; o passado está atrás do observadorUma coisa está se movendo, a outra está parada; a coisa parada é o centro dêitico

8 Também na língua portuguesa, até onde se sabe, o tempo é visto em termos de espaço. (N. T.)

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Acarretamento: tendo em vista que o movimento é contínuo e unidimensional, a passagem do tempo é contínua e unidimensional.

Primeiro caso especial: o observador é fi xo. O tempo é um objeto que se move em relação ao observador. O tempo está com a frente voltada para a direção do movimento.

Acarretamento: se o tempo 1 vem depois do tempo 2, então o tempo 1 está no futuro em comparação com tempo 2. O tempo que passa pelo observador é o presente. O tempo tem uma velocidade relativa ao observador.

Segundo caso especial: o tempo é um local fi xo. O observador se move em relação ao tempo.

Desdobramento: o tempo tem uma extensão e pode ser medido. Um período de tempo, como uma área no espaço, pode ser visto como uma área limitada.

Essa metáfora, com seus dois casos especiais, expressa uma generalização responsável por muitas situações em que uma expressão referente ao espaço pode ser usada também para se referir ao tempo. O primeiro caso especial é responsável tanto pela forma linguística quanto pelo desdobramento semântico de expressões como:

Th e time will come when... [Chegará o dia em que...]Th e time has long since gone... [Foi-se o tempo em que...]Th e time for action has arrived. [Chegou a hora de agirmos.]Th at time is here. [O momento é este.]In the weeks following next Tuesday... [Nas semanas seguintes à próxima terça-feira...]On the preceding day... [No dia anterior...]I’m looking ahead for Christmas. [Não vejo a hora de chegar o Natal.]Th anksgiving is coming up on us. [O dia de ação de graças está chegando.]Let’s put all that behind us. [Vamos deixar isso tudo para trás.]I can’t face the future. [Não consigo encarar o futuro.]Time is fl ying by. [O tempo está voando.]Th e time has passed when... [Já tinha se passado muito tempo quando...]

Sendo assim, o primeiro caso especial caracteriza o princípio geral por trás do uso de palavras como come [vir, chegar], go [ir], here [aqui], follow [seguir],

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precede [preceder], ahead [à frente], behind [atrás], fl y [voar], pass [passar] para se falar de tempo, dando conta não apenas do porquê do seu uso para se falar de espaço e tempo, mas do porquê de seu signifi cado. O segundo caso especial leva em consideração um conjunto diferente de situações em expressões como:

Th ere’s going to be trouble down the road. [Teremos problemas pela frente.]He stayed there for ten years. [Ele fi cou lá por dez anos.]He stayed there a long time. [Ele fi cou lá por muito tempo.]His stay in Russia extended over many years. [Sua estadia na Rússia se estendeu por muitos anos.]He passed the time happily. [Ele passou o tempo de forma agradável.]He arrived on time. [Ele chegou na hora.]We’re coming up on Christmas. [Estamos chegando no Natal.]We’re getting close to Christmas. [Estamos chegando perto do Natal.]He’ll have his degree within two years. [Ele se forma dentro de dois anos.]I’ll be there in a minute. [Estarei lá em um minuto.]

O segundo caso especial mapeia expressões como down the road [pela frente], for [por] + lugar, long [distante], over [por], close to [próximo a], within [dentro], in [em], pass [passar] para expressões temporais correspondentes, com os seus sentidos correspondentes. Mais uma vez, o segundo caso especial estabelece um princípio geral que relaciona termos e padrões inferenciais de lugar com termos e padrões inferenciais de tempo.

As especificações dos dois casos são bem diferentes. Na verdade, são inconsistentes entre si, o que faz com que sejam casos especiais. A existência desses casos especiais traz uma consequência teórica especialmente interessante: as palavras mapeadas pelos dois casos, cada uma a seu tempo, terão interpretações inconsistentes. Tomemos como exemplo o verbo come [chegar] em Christmas is coming [O Natal está chegando] (no primeiro caso especial) e em We’re coming up on Christmas [Estamos chegando no Natal] (no segundo caso especial). As duas ocorrências de come são referentes a tempo, mas uma toma como primeiro argumento um tempo que se move, e a outra toma como primeiro argumento um observador que se move. O mesmo acontece com o verbo pass [passar] em Th e time has passed [O tempo passou] (no primeiro caso especial) e em He passed the time [Ele passou o tempo] (no segundo caso especial).

Essas diferenças entre os dois mapeamentos mostram que não se deve simplesmente afi rmar que expressões de lugar podem ser usadas para falarmos sobre o tempo sem se especifi carem detalhes, como se houvesse apenas uma correspondência entre tempo e espaço. Quando somos explícitos ao expressar os mapeamentos, descobrimos a existência de dois subcasos diferentes – e inconsistentes.

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O fato de o tempo ser entendido metaforicamente em termos de movimento, entidades e posições é coerente com o nosso conhecimento biológico. No nosso aparato visual, temos detectores de movimento e detectores de objetos/lugares. Não temos detectores de tempo (seja o que for que isso possa signifi car). Portanto, faz muito sentido, biologicamente falando, que o tempo seja entendido em termos de objetos e de movimento.

Isso quer dizer que o tempo nunca é entendido nos seus próprios termos, com alguma estrutura independente de metáforas? A resposta é não. Não temos evidência disso. É provável que haja alguma estrutura no domínio de tempo que seja independente de qualquer metáfora e que seja neutra em relação aos dois casos especiais da metáfora básica de tempo, ou seja, uma estrutura sufi cientemente pouco específi ca, a ponto de os dois casos especiais poderem, inclusive, se mapear por meio dela. Porém, em qualquer sentença pode ocorrer a imposição da estrutura de um dos dois casos especiais da metáfora do tempo. Logo, não podemos simplesmente conduzir, em uma dada oração de tempo, uma única análise indistinta. Devemos, em vez disso, fi car de olho nos casos especiais da metáfora do tempo para ver se algum deles se faz presente em dada oração.

Estrutura de eventos

Falemos agora do trabalho (ainda não publicado), realizado por mim e duas das minhas alunas, Sharon Fischler e Karin Myhre, a respeito do que descobrimos sobre o entendimento metafórico, no inglês, da estrutura de eventos. Descobrimos que muitos aspectos da estrutura de eventos – incluindo noções de estados, mudanças, processos, ações, causas, propósitos e meios – são entendidos metaforicamente em termos de espaço, movimento e força.

O mapeamento geral que encontramos é o seguinte:

Estados são áreas limitadas no espaço.Mudanças são movimentos dentro ou fora das áreas limitadas.Processos são movimentos.Ações são movimentos autopropulsionados.Causas são forças.Propósitos são destinos.Meios são caminhos para os destinos.

Esse mapeamento se aplica a um número muito grande de expressões sobre um ou mais aspectos da estrutura de eventos. Tomemos como exemplo estados e mudanças. Falamos em estar dentro [in] ou fora [out] de um estado, em passar a ele [going into it] ou sair dele [going out of it], em entrar nele [entering it] ou deixá-lo [leaving it], em chegar a [getting to] um estado ou emergir dele

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[emerging from it]9. Para vermos o quanto essa metáfora é rica, consideremos algumas das suas correspondências básicas:

Impedimentos à ação são impedimentos ao movimento.A maneira de agir é a maneira de se mover.Meios diferentes de se atingir um propósito são caminhos diferentes.Forças que afetam a ação são forças que afetam o movimento.A incapacidade de agir é a incapacidade de se mover.O progresso feito é a distância percorrida.

Consideraremos todos esses exemplos, um por um, com alguns casos especiais:

Impedimentos à ação são impedimentos ao movimentoWe hit a roadblock. [Batemos em algum obstáculo.]We are at an impasse. [Estamos em um impasse.]I can’t fi nd my way around that. [Não consigo contornar essa situação.]I’ve hit a brick wall. [Dei de frente com um problema.]We are going upstream. [Estamos nadando contra a maré.]We are fi ghting an uphill battle. [Estamos lutando uma batalha injusta.]It’s a steep road ahead. [Temos uma estrada dura pela frente.]It’s a long and winding road. [Está sendo uma estrada longa e tortuosa.]We are in rough waters. [Estamos navegando por águas revoltas.]

Impulso à ação é impulso ao movimentoIt is smooth sailing from here on in. [A viagem é tranquila a partir daqui.]It’s all downhill from here. [Daqui para frente é só descida.]Th ere’s nothing in our way. [Não há nada no nosso caminho.]

Usar um meio diferente para chegar a um resultado é seguir por um caminho diferenteDo it this way. [Faça deste jeito.]She did it the other way. [Ela fez de outro jeito.]Do it any way you can. [Faça do jeito que você puder.]However you want to go about it is fi ne with me. [Seja como for que você quiser fazer isso, estará bom para mim.]

Movimento forçado é ação forçadaHe pushes me too hard. [Ele me força demais.]

9 A fi m de se manter o fl uxo de leitura, nesse caso, o procedimento de tradução dos exemplos do autor – conforme está explicado na nota 7 – foi invertido. (N. T.)

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She pushed me into doing it. [Ela me forçou a fazer isso.]Th ey dragged me into doing it. [Eles me arrastam para isso.]I’m being pulled along by the current. [Estou seguindo com a maré.]She leaned on him to do it. [Ela se apoiou nele para fazer isso.]She put the lean on him. [Ela colocou todo o peso nos ombros dele.]He is a mover and a shaker. [Ele faz e acontece.]He really throws his weight around. [Ele coloca muita força em tudo que faz.]

Ação guiada é movimento guiadoShe guided him through it. [Ela o orientou nesse caso.]She walked him through it. [Ela o acompanhou nesse caso.]She led him through the rough parts. [Ela o conduziu nos momentos difíceis.]

Incapacidade de agir é incapacidade de se moverWe are stuck on this problem. [Estamos presos a este problema.]I am drowing in work. [Estou atolado de trabalho.]I am tied up with work. [Estou preso ao trabalho.]He is up to his neck in work. [Ele está com trabalho até o pescoço.]

Caso especial: Suspensão. (Se formos detido no caminho, então não poderemos percorrê-lo)I am really hung up on this problem. [Estou obcecado por este problema.]He is so caught up in his work he can’t do anything else. [Ele está tão envolvido no trabalho que não consegue fazer outra coisa.]He was held up in the meeting. [Ele fi cou preso na reunião.]He was hung up at school. [Ele levou uma suspensão na escola.]

Uma força que limita a ação é uma força que limita o movimentoShe leads him around by the nose. [Ela o tem na sua mão.]She held him back. [Ela o conteve.]She is being pushed into a corner. [Ela está sendo deixada de lado.]He is up against a wall. [Ele está contra a parede.]I am being pulled under. [Estão me puxando para baixo.]He doesn’t give me any slack. [Ele não me dá uma folga sequer.]She has him on a tight rein. [Ela o colocou em rédeas curtas.]She has him on a short leash. [Ela o leva pela coleira.]He is tied to his mother’s apron strings. [Ele está agarrado à barra da saia da sua mãe.]He is tied up with work. [Ele está preso ao trabalho.]

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Maneira de agir é maneira de se moverWe are moving/running/skipping right along. [Estamos correndo o tempo todo.]We slogged through it. [Trabalhamos duro nisso.]He is fl ailing around. [Ele fi ca pipocando por aí.]He is falling all over himself. [Ele está se puxando ao máximo.]We are leaping over hurdles. [Estamos superando os obstáculos.]He is out of step. [Ele está fora do ritmo.]He is in step. [Ele está dançando conforme a música.]

Ação cautelosa é movimento cautelosoI’m walking on eggshells. [Estou pisando em ovos.]He is treading on thin ice. [Ele está pisando em terreno pantanoso.]He is walking a fi ne line. [Ele está andando em uma corda bamba.]

Ações rápidas são movimentos rápidosHe fl ew through his work. [Ele correu com o trabalho.]He is running around. [Ele não para quieto.]I have been running all day. [Meu dia está sendo bem corrido.]It is going swimmingly. [As coisas passam voando.]Keep things moving at a good clip. [Deixe as coisas seguirem o seu rumo.]Th ings have slowed to a crawl. [As coisas estão se arrastando.]She is going by leaps and bounds. [Ela vai a passos largos.]I am stagnating. [Estou bloqueado.]I am moving at a snail’s pace. [Estou andando a passos de tartaruga.]

Uma ação intencional é um movimento em direção a um destinoPossui os seguintes casos especiais:

Progresso é movimento para frenteWe are moving ahead. [Estamos seguindo em frente.]Let’s forge ahead! [Vamos seguir em frente!]Let’s keep moving forward! [Vamos continuar em frente!]We made lots of forward movement. [Demos muitos passos para frente.]

Progresso é distância percorridaWe’ve come a long ways. [Percorremos um longo caminho.]We’ve covered lots of ground. [Percorremos muito chão.]We’ve made it this far! [Chegamos até aqui!]

Não fazer progresso é se mover para trásWe are sliding backwards. [Estamos indo para trás.]

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We are backsliding. [Estamos indo de ré.]We need to backtrack. [Precisamos recuar.]It is time to turn around and retrace our steps. [É hora de darmos meia volta e refazermos o nosso caminho.]

Iniciar uma ação é começar a andar por um caminhoWe are just starting out. [Estamos apenas começando.]We have taken the fi rst step. [Demos o primeiro passo.]

Sucesso é chegar ao fi m do caminhoWe’ve reached the end. [Chegamos ao fi m.]We are seeing the light at the end of the tunnel. [Já podemos ver uma luz no fi m do túnel.]We only have a short way to go. [Temos um curto caminho pela frente.]Th e end is in sight. [já podemos ver o fi m disso tudo.]Th e end is a long ways off . [Isso está muito longe de acabar.]

Falta de propósito é falta de direçãoHe is just fl oating around. [Ele fi ca viajando o tempo todo.]He is drift ing aimlessly. [Ele está andando sem rumo certo.]He needs some direction. [Ele precisa de alguma orientação.]

Falta de progresso é falta de movimentoWe are at a standstill. [Estamos no meio de uma paralisação.]We aren’t getting any place. [Não chegaremos a lugar algum.]We aren’t going anywhere. [Não estamos indo a lugar algum.]We are going nowhere with this. [Não chegaremos a lugar algum desse jeito.]

Esses exemplos mostram que a metáfora da estrutura de eventos existe, e que ela funciona muito bem para explicar como todas essas expressões que envolvem espaço, movimento e força podem ser usadas para se falar e se pensar sobre estados, eventos, ações, causas, propósitos e meios. No entanto, existe uma complexidade metafórica para causas e mudanças maior do que a que vimos até agora. Vamos começar com mudança. Ken Baldwin, em um estudo não publicado sobre o verbo turn [tornar-se > virar], observou que, em expressões como Th e milk turned sour [O leite tornou-se azedo > O leite fi cou azedo], existe uma outra metáfora para mudança, que envolve a manutenção ou uma mudança de estado em função do tempo.

Mudar de estado é mudar de direção.Manter o estado é manter a direção.

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Exemplos da segunda parte da metáfora são:

We’re in a rut. [Isso virou rotina.]Th ings are going the way they’ve always gone. [As coisas estão indo como sempre foram.]

Juntando isso com a parte da metáfora da estrutura de eventos, que diz que causas são forças, temos que:

Causar uma mudança de estado é forçar uma mudança de direção.

Essa é a metáfora que está por trás de expressões como:

We need to take the country in a new direction. [Temos que dar um novo rumo ao país.]We’re going to move the country down the path to a drug-free society. [Estamos levando o país por um caminho livre de drogas.]

Causa

No exemplo dado acima, a metáfora da causa como força se combina com outra metáfora de mudança de estado para produzir um resultado mais complexo, em que causar uma mudança de estado é forçar uma mudança de direção. Pesquisas atuais feitas por Jane Espenson, em Berkeley (comunicação pessoal), sugerem que esse tipo de interação complexa é comum na metáfora da causa como força. Vejamos um breve resumo de seus resultados.

Ações provocadas, como vimos, são entendidas como movimentos forçados. Existem dois tipos principais de movimento forçado: propulsão (enviar, arremessar, impulsionar etc.) e a aplicação contínua da força para produzir movimento (como em trazer ou dar). E eles têm implicações diferentes. No caso da aplicação contínua, o movimento se mantém apenas enquanto a força é aplicada. Já na propulsão, a aplicação da força dá início ao movimento, que continua após esse primeiro impulso. Essas implicações referentes à força são mapeadas para a noção de causa através da metáfora CAUSAS SÃO FORÇAS. Considere os seguintes exemplos:

Th e home run brought the crowd to its feet. [A jogada levantou a multidão.]Th e home run sent the crowd into a frenzy. [A jogada levou a multidão ao delírio.]

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Aqui, bring [levantar] e send [levar] são usados como verbos causativos, já que os dois possuem como sentido principal o movimento forçado. Mas, por possuírem tipos diferentes de movimento forçado – aplicação contínua versus propulsão –, a metáfora CAUSAS SÃO FORÇAS mapeia esses verbos para tipos diferentes de causa. No primeiro exemplo, com brought, o efeito da causa se dá durante o voo da bola e depois cessa: a multidão fi ca em pé enquanto a bola está no ar. No segundo caso, com sent, o delírio acontece após a jogada. Assim, dois casos especiais de força são mapeados com dois casos especiais de causa pela metáfora CAUSAS SÃO FORÇAS.

Espanson percebeu, ainda, que a metáfora CAUSAS SÃO FORÇAS se combina com outras metáforas para criar uma variação ainda mais rica dos tipos de causa. Em inglês, existe uma metáfora para dizer que EXISTÊNCIA É UM LUGAR AQUI; INEXISTÊNCIA É UM LUGAR FORA DAQUI. Posto que a mudança é um movimento em direção a uma área limitada, e que a existência é metaforizada como uma área limitada que nos cerca, uma pessoa pode passar a existir [“come into existence”] ou deixar de existir [“go out of existence”], sendo que a opção entre come [vir] e go [ir] é determinada pelo centro dêitico (aqui). A palavra about, da expressão came about [acontecer], indica uma área nos arredores do centro dêitico (tipicamente, o falante), que, nessa metáfora, é o domínio da existência. Assim, a frase Th e revolution came about [A revolução aconteceu] signifi ca que a revolução existiu.

Ao combinarmos CAUSAS SÃO FORÇAS com EXISTÊNCIA É UM LUGAR AQUI, temos expressões como bring into existence [fazer surgir] e bring about [ocasionar], em que bring indica uma aplicação contínua de força. Por exemplo, em

Th e stock market crash brought about political instability. [A quebra da bolsa de valores trouxe instabilidade política.]

A instabilidade política é vista como algo que existe graças à força exercida pela quebra da bolsa de valores. Nesse tipo de causa, a força metafórica é aplicada ao EVENTO, fazendo com que ele passe a existir. Esse exemplo é bem diferente do caso a seguir:

Th e home run brought the crowd to its feet. [A jogada levantou a multidão.]

Nesse caso, a força é aplicada ao PACIENTE (a multidão), levando-o a um novo estado (fi car em pé). Sendo assim, temos, até agora, dois padrões gerais de causa:

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Caso 1: CAUSAS SÃO FORÇAS mais ESTADOS SÃO ÁREAS LIMITADASA força se aplica ao objeto da ação (ou paciente) e o leva a um novo estado (uma área limitada).Caso 2: CAUSAS SÃO FORÇAS mais EXISTÊNCIA É UM LUGAR AQUI.A força se aplica ao evento e o leva à existência (uma área limitada ao nosso redor).

Duas frases simples são capazes de ilustrar essas duas versões metafóricas de causa:

Caso 1: He brought the water to a boil. [Ele fez a água ferver.]Caso 2: He brought about the boiling of the water. [Ele levou a água à fervura.]

Outras combinações são possíveis entre CAUSAS SÃO FORÇAS e outras metáforas, como, por exemplo, ATRIBUTOS SÃO BENS e EXPERIÊNCIAS SÃO BENS. Suponhamos, por exemplo, que paciência é uma característica de Harry e que a sua paciência seja o resultado da prática de uma meditação zen. Graças à metáfora ATRIBUTOS SÃO BENS, podemos falar de Harry como alguém que possui [“have”] paciência ou que adquiriu [“acquired”] paciência. Podemos descrever como ele adquiriu paciência usando o verbo give [dar], como em:

Th e practice of Zen meditation gave Harry patience. [A prática da meditação zen deu a Harry um pouco de paciência.]

Essa frase atribui um papel causal à prática da meditação zen. O verbo give pode ser usado para expressar causa porque, no seu sentido básico, ele denota uma transferência de posse: uma força é aplicada a um objeto, levando-o a um recipiente, que passa a possui-lo. Nesse exemplo, a paciência é a entidade que é levada até à posse de Harry, e a causa (a meditação Zen) é vista como a força causal. Em geral, o verbo give é usado como um verbo causal quando a metáfora CAUSAS SÃO FORÇAS é combinada com alguma metáfora de posse. Por exemplo, pode se combiná-la com a metáfora EXPERIÊNCIAS SÃO BENS para termos um exemplo como:

Problem 3 gave Harry trouble. [A questão 3 deu trabalho a Harry.]

Aqui, a questão 3 é a causa de Harry enfrentar uma difi culdade. Através da metáfora EXPERIÊNCIAS SÃO BENS, podemos pensar em Harry como tendo problemas [“having trouble”] e, através da metáfora CAUSAS SÃO FORÇAS,

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podemos ver a causa como uma força que leva os problemas até à posse de Harry. Logo, o que se apresentou confi rma esse uso. Note que ainda há um outro tipo de causa:

Caso 3: CAUSAS SÃO FORÇAS mais EXPERIÊNCIAS SÃO BENSA força se aplica à posse, levando-a a quem a possuirá.

Sendo assim, vimos casos em que a força pode ser aplicada a um evento, a um paciente e a um bem. Esses são apenas alguns modelos metafóricos descobertos por Jane Espanson. Há duas lições nisso tudo:

Primeiro: Causas (como Talmy observou em seu trabalho sobre forças dinâmicas) são entendidas metaforicamente como forças. Assim, a causa não é uma noção semanticamente primitiva, independente de quaisquer metáforas.

Segundo: Apesar de existir uma única metáfora para causas, a combinação dessa com outras metáforas gera um conjunto extremamente complexo e muito diferente de EVENTOS CAUSAIS como um todo. Assim, não podemos supor que todos os eventos causais tenham a mesma estrutura. Eles diferem entre si por algo tão elementar quanto aquilo a que a força causal se aplica – eventos, pacientes, bens etc.

De novo, a Invariância

As metáforas mostradas acima mapeiam primeiramente três tipos de esquemas de imagem: recipientes, caminhos e forças. Porém, graças aos subcasos e às suas combinações, as especifi cidades desses esquemas se tornam, no mínimo, complexas. Ainda assim, a Hipótese da Invariância interroga cada caso no que diz respeito ao que é mapeado dos esquemas de imagem para o domínio-alvo. Não entrarei em detalhes aqui, mas, até onde consigo ver, os questionamentos a respeito da estrutura inferencial são plausíveis. Por exemplo, a lógica da dinâmica das forças parece se mapear sem grandes problemas, através da metáfora CAUSAS SÃO FORÇAS, para a lógica da causa. O que segue são inferências da lógica da força inerentes à dinâmica das forças:

Um objeto parado só irá se mover se uma força for aplicada a ele; sem força, ele não irá se mover.A aplicação da força requer contato; logo, a fonte da força deve estar em contato físico com o objeto que será movido.A aplicação da força precede temporariamente o movimento, uma vez que a inércia deve ser superada antes de o movimento acontecer.

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Essas são condições inferenciais clássicas de causa: contato físico, precedência temporal e o fato de A causar B somente se B for totalmente dependente de A. Nesse ponto, gostaria de levantar a questão sobre o que a Hipótese da Invariância ainda pode nos acrescentar. Considerarei dois casos que surgiram quando Mark Turner e eu escrevíamos More Th an Cool Reason (1989). O primeiro caso aborda metáforas de imagem, e o segundo, metáforas de nível genérico. Porém, antes de entrar nesse assunto, devo apresentar uma consequência importante da invariância.

No livro Metaphors We Live By (1980)10, Johnson e eu postulamos que uma estrutura proposicional complexa poderia ser mapeada, através de metáforas, para outro domínio. O principal exemplo que demos foi a metáfora DISCUSSÃO É GUERRA. Kövecses e eu, na nossa análise sobre as metáforas da raiva, também postulamos que metáforas podem mapear estruturas proposicionais complexas. A Hipótese da Invariância não nega esses postulados, mas os coloca sob um enfoque bem diferente. Estruturas proposicionais complexas envolvem noções semânticas como tempo, estados, mudanças, causas, propósitos, escalas quantitativas e categorias. Se todos esses conceitos abstratos são entendidos metaforicamente, então a Hipótese da Invariância afirma que o que nós chamávamos de estrutura proposicional é, na verdade, uma estrutura de esquema de imagem! Em outras palavras:

As chamadas inferências proposicionais emergem da estrutura topológica inerente aos esquemas de imagem, a qual é mapeada, através de metáforas, para conceitos como tempo, estados, mudanças, ações, causas, propósitos, meios, quantidade e categorias.

O motivo pelo qual me dei ao trabalho de discutir todos esses conceitos abstratos é porque queria demonstrar essa consequência da Hipótese da Invariância, qual seja, que o que tínhamos tratado anteriormente como sendo inferências proposicionais são, na verdade, inferências baseadas em imagens. Se a Hipótese da Invariância estiver correta, temos aqui uma consequência signifi cativa:

O pensamento abstrato é um caso especial de pensamento baseado em imagens.

O pensamento baseado em imagens é fundamental, e o pensamento abstrato é baseado em imagens, o qual se dá através de uma projeção metafórica para um domínio abstrato. Para buscarmos uma confi rmação independente da Hipótese da Invariância, vamos voltar a nossa atenção para as metáforas de imagem.10 Traduzido para o português sob o título Metáforas da vida cotidiana. (Tradução do Grupo GEIM). São Paulo: EDUC / Mercado das Letras, 2002. (N. T.)

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4 Metáforas de imagem

Existe um conjunto de metáforas que serve para mapear uma imagem mental convencional para outra. Elas contrastam com as metáforas que discutimos até agora, que mapeiam um domínio conceitual para outro, geralmente, com vários conceitos do domínio-fonte mapeados para vários conceitos correspondentes do domínio-alvo. Metáforas de imagem, por sua vez, são metáforas de um “único lance”: elas mapeiam apenas uma imagem para outra. Vejamos, por exemplo, este poema de tradição indígena (MERWIN; MASON, 1981, p. 71):

Now women-riversbelted with silver fi shmove unhurried as women in loveat dawn aft er a night with their lovers11

Aqui, a imagem do andar lento e sinuoso de uma índia é mapeado para a imagem da corrente lenta, sinuosa e cintilante de um rio. O brilho de um cardume de peixes é visto como o brilho de um cinto. O mapeamento metafórico entre imagens funciona exatamente como todos os outros mapeamentos metafóricos: através do mapeamento da estrutura de um domínio para a estrutura de outro domínio. Mas, aqui, os domínios são imagens mentais convencionais. Tomemos como exemplo este verso de André Breton:

My wife... whose waist is an hourglass. [Minha esposa... cujo corpo é um violão]

Trata-se, aqui, de uma superimposição da imagem de um hourglass [ampulheta] sobre a imagem da cintura de uma mulher, que leva em conta as suas formas semelhantes. Como no caso anterior, a metáfora é conceptual; a relação não está nas palavras, mas nas imagens mentais. Aqui, temos a imagem mental de uma ampulheta e a de uma mulher, e mapeamos o centro da ampulheta para a cintura da mulher. Note que as palavras não nos dizem qual parte da ampulheta deve ser mapeada para a cintura, nem sequer dizem que apenas uma parte da forma da ampulheta corresponde à cintura. As palavras são um meio de mapearmos uma imagem convencional para outra. Da mesma forma, considere (REBELAIS. Th e descriptions of King Lent. Tradução de J. M. Cohen):

His toes were like the keyboard of a spinet. [Seus dedos do pé eram como o teclado de um cravo.]

11[Agora as mulheres-rios / com um cinto de peixes prateados à cintura / movem-se lentamente como mulheres apaixonadas / no alvorecer, após uma noite com os seus amantes.] (N. T.)

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Aqui, mais uma vez, as palavras não nos dizem que um dedo corresponde a uma tecla específi ca do teclado. Mais uma vez, as palavras são um meio de construirmos um mapeamento entre imagens mentais convencionais. De modo particular, mapeamos aspectos da estrutura da parte-pelo-todo de uma imagem para aspectos da estrutura da parte-pelo-todo de outra. Assim, um dedo faz parte de um pé da mesma forma que uma tecla faz parte de um teclado.

Mapeamentos entre imagens podem envolver mais do que o mapeamento da relação física da parte com o todo. O curso de um rio, por exemplo, pode se mover lentamente; esse movimento faz parte de uma imagem dinâmica que pode ser mapeada para a ação de se tirar lentamente uma roupa (MERWIN, MASSON, 1981, p. 69):

Slowly slowly rivers in autumn showsand banksbashful in fi rst love womanshowing thighs12

Outros atributos também são mapeados: a cor do banco de areia para a cor da pele, a qualidade da luz sobre a areia úmida para o refl exo da pele, o leve movimento do toque da água ao recuar do banco de areia para o leve movimento da roupa ao cair do corpo. Note que as palavras não falam da existência de qualquer roupa. Interpretamos isso através de uma imagem mental convencional. A estrutura da parte-pelo-todo também é mapeada nesse exemplo. A água cobre a parte escondida do banco de areia, assim como a roupa cobre a parte escondida da perna. A riqueza do detalhe nas imagens limita os mapeamentos entre imagens a casos extremamente específi cos. É isso que os torna mapeamentos únicos.

Esses mapeamentos entre imagens nos levam a mapear o conhecimento da primeira imagem para o que sabemos a respeito da segunda. Considere o seguinte exemplo da tribo Navaho (War God’s Horse Song I. Letra de Tall Kia ahni. Interpretação de Louis Watchman):

My horse with a mane made of short rainbows. [Meu cavalo com uma crina feita de pequenos arcos-íris.]

A estrutura do arco-íris (por exemplo, a faixa arqueada de linhas) é mapeada para uma faixa de cabelo arqueada; e muitos arcos-íris, para muitas dessas faixas da crina do cavalo. Esse mapeamento entre imagens nos faz mapear o nosso entendimento do domínio-fonte para o domínio-alvo. Sabemos que arcos-íris

12 [Rios lentos, lentos no outono revelam / bancos de areia / tímida, em sua primeira paixão, uma mulher / revelando as suas coxas.] (N. T.)

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são bonitos, especiais, inspiradores, exuberantes, quase místicos, e que, ao os observarmos, fi camos felizes e sem palavras. Esse conhecimento é mapeado para o que sabemos a respeito de cavalos: nos deixam sem palavras, são bonitos, exuberantes, quase místicos. Essa frase vem de um poema que contém uma série de mapeamentos entre imagens:

My horse with a hoof like a striped agate,with his fetlock like a fi ne eagle plume:my horse whose legs are like quick lightningwhose body is an eagle-plumed arrow:my horse tail is like a trailing black cloud13

Metáforas de imagem levantam duas questões importantes para a teoria geral da metáfora:

Como funcionam? O que restringe os mapeamentos? Que tipos de estruturas internas as imagens mentais possuem para permitir que alguns mapeamentos funcionem facilmente, outros, apenas com certo esforço, e outros, ainda, nem funcionem?Qual é a teoria geral que une as metáforas de imagem a todas as metáforas convencionais que mapeiam a estrutura proposicional de um domínio para a estrutura proposicional de um outro domínio?

Turner e eu (1989) sugerimos que a Hipótese da Invariância poderia ser uma resposta para essas questões. Sugerimos que imagens mentais convencionais são estruturadas por esquemas de imagens, e que as metáforas de imagem preservam a estrutura esquemática da imagem, mapeando as partes em termos das partes e o todo em termos do todo, recipientes em termos de recipientes, caminhos em termos de caminhos, entre outros. A generalização seria a de que todas as metáforas são invariáveis em relação à sua topologia cognitiva, ou seja, cada mapeamento metafórico preserva a estrutura dos esquemas de imagem.

5 Metáforas de nível genérico

Quando escrevemos More than cool reason (1989), Turner e eu sugerimos a existência do que chamamos de “metáforas de nível genérico” para lidar com dois problemas que encontramos:

13 [Meu cavalo com um casco como uma ágata listrada / com seu machinho como uma delicada pluma de águia / meu cavalo cujas patas são rápidas como um relâmpago / cujo corpo é uma fl echa com pena de águia / a cauda do meu cavalo é como o rastro de uma nuvem negra.] (N. T.)

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Primeiro problema: Personifi cação

Ao estudarmos vários poemas em inglês sobre a morte, descobrimos que, poema após poema, a morte era personifi cada em um número relativamente pequeno de opções: motoristas, cocheiros, lacaios; ceifeiros, devoradores e destruidores; ou oponentes em uma luta ou em um jogo (um cavaleiro ou um adversário de xadrez, por exemplo). A pergunta que fi zemos foi: Por que essas imagens? Por que a morte não é personifi cada como uma professora, um carpinteiro ou, ainda, um sorveteiro? Por algum motivo, as personifi cações que ocorrem repetidamente parecem apropriadas. Mas por quê?

Ao estudarmos personifi cações em geral, descobrimos que esse número limitado respeita um padrão: eventos (como a morte) são entendidos em termos de ações executadas por um agente (como um ceifeiro, por exemplo). É esse agente que é personifi cado. Dessa forma, sugerimos uma metáfora bem geral, EVENTOS SÃO AÇÕES, na tentativa de dar uma lógica a esses casos. Porém, a metáfora em questão era diferente de qualquer outra metáfora que já tínhamos visto antes. Era muito geral, não tinha uma ontologia específi ca, nem detalhes específi cos de mapeamento. Ela também não explicava o que não poderia ser uma personifi cação da morte.

O que ela fez, na verdade, foi dar algum sentido a casos que tínhamos encontrado, quando ela era combinada com alguma outra metáfora que tratasse de vida e morte. Tome, por exemplo, a metáfora MORTE É DESPEDIDA. Despedida é um evento. Se entendermos esse evento como uma ação executada por um agente causador – alguém que causa ou ajuda a causar a ação de ir embora –, então podemos explicar algumas imagens tais como motoristas, cocheiros, lacaios etc. Ou tome a metáfora PESSOAS SÃO PLANTAS. No curso natural da vida, plantas murcham e morrem. Porém, se enxergarmos esse evento como uma ação causada por um agente, então esse agente é um ceifeiro. Até aqui, tudo bem. Mas por que destruidores e devoradores? E os casos impossíveis?

Destruir e devorar são ações que fazem com que uma entidade deixe de existir. O mesmo se aplica à morte. A “forma” geral do evento da morte é similar, nesse sentido, às “formas” gerais dos eventos de destruição e devoração. Além disso, há um aspecto causal aplicável à morte: a passagem do tempo irá, fi nalmente, resultar na morte. Assim, a forma geral do evento da morte possui uma entidade que, com o passar do tempo, deixa de existir como resultado de uma causa. Os atos de devorar e de destruir possuem a mesma “forma de evento” geral. Ou seja, o mesmo acontece no que diz respeito à estrutura causal e à persistência das entidades com o passar do tempo.

Pensamos, portanto, que a metáfora EVENTOS SÃO AÇÕES estivesse limitada da seguinte maneira: a ação deve ter a mesma forma geral do evento em questão. O que é preservado no mapeamento é a estrutura causal, a estrutura

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aspectual e a persistência das entidades. Referimo-nos a isso como “estrutura de nível genérico”.

A preservação da estrutura de nível genérico pode explicar por que a morte não é mapeada em termos de ensino, ou de se encher uma banheira, ou ainda, de se sentar em um sofá. Esses exemplos simplesmente não possuem a mesma estrutura causal e geral de evento, ou seja, não compartilham a mesma “estrutura de nível genérico”.

Segundo problema: Provérbios

Ao discutirmos uma série de expressões asiáticas – provérbios em forma de pequenos poemas –, deparamo-nos com a questão sobre quais seriam as limitações na interpretação de um provérbio. Algumas interpretações são naturais, outras parecem impossíveis. Por quê? Considere um exemplo retirado de Asian Figures, traduzido por Willian Merwin (1973):

Blind / blames the dith. [O cego culpa o fosso.]

Para termos uma noção das possíveis interpretações do provérbio, considere as seguintes aplicações dele:

Suponhamos que um candidato à presidência cometa conscientemente algum ato pessoal inadequado (ainda que não seja ilegal ou relacionado a assuntos políticos), e a sua candidatura seja destruída pela cobertura dada pela imprensa a esse ato. O candidato prefere culpar a imprensa, por ter coberto o erro, do que a si mesmo, por tê-lo cometido. Achamos que ele deveria conhecer a realidade da imprensa política ao optar por cometer o erro. Então, expressamos nossa opinião dizendo “O cego / culpa o fosso”.

Turner e eu observamos que a estrutura de conhecimento usada na interpretação do caso do erro do candidato compartilha certas características com a estrutura de conhecimento usada na interpretação literal do provérbio “O cego / culpa o fosso”. Vamos nos referir a isso como a estrutura esquemática de nível genérico do nosso conhecimento sobre o provérbio. A estrutura de conhecimento de nível genérico é:

Há uma pessoa com uma incapacidade.Ela se depara com uma situação em que a sua incapacidade tem um resultado negativo.Ela culpa antes a situação do que a sua própria incapacidade.Ela deveria ter responsabilizado a si mesma, e não a situação.

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Trata-se de um esquema bastante geral que caracteriza um conjunto ilimitada de situações. Podemos enxergá-lo como um modelo aberto, que pode ser preenchido de diversas maneiras. Aqui temos uma maneira:

A pessoa é um candidato à presidência.A sua incapacidade é não entender as consequências dos seus erros pessoais.O contexto em que ele se coloca é o de cometer conscientemente um ato inadequado e a imprensa cobrir esse ato.A consequência é ter sua candidatura arruinada.Ele culpa a imprensa.Nós o consideramos um tolo por ter culpado a imprensa em vez de si mesmo.

Se enxergarmos o esquema de nível genérico como o mediador entre o provérbio “O cego / culpa o fosso” e a história do erro do candidato, temos a seguinte correspondência:

O cego corresponde ao candidato à presidência.A cegueira corresponde à incapacidade de entender as consequências dos seus erros pessoais.Cair no fosso corresponde a cometer o erro, e ele ser alvo da imprensa.Estar no fosso corresponde ao afastamento da disputa eleitoral.Culpar o fosso corresponde a culpar a imprensa.Considerar o cego um tolo por culpar o fosso corresponde a considerar o candidato um tolo por culpar a imprensa.

Essas correspondências defi nem a interpretação metafórica do provérbio quando aplicado ao caso do erro do candidato. Além disso, o conjunto das maneiras possíveis de se preencher o esquema de nível genérico do provérbio corresponde ao conjunto de interpretações possíveis do provérbio. Assim, podemos explicar por que “O cego / culpa o fosso” não signifi ca “Tomei banho” ou “A minha tia está sentada no sofá” ou os tantos outros signifi cados que o provérbio não pode ter.

Todos os provérbios estudados por mim e por Turner envolviam esse tipo de esquema de nível genérico. E os componentes que surgiram nesses esquemas pareciam ser exatamente os mesmos, caso após caso. Estão entre eles:

Estrutura causalEstrutura temporalForma do evento (ou seja, se ele é imediato ou recorrente, completo ou

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aberto, único ou repetido, se possui etapas fi xas ou não, se preserva a existência de entidades ou não etc.)Estrutura de propósitosEstrutura modalEscalas lineares

Essa lista não é exaustiva. Porém, ela inclui muitos dos elementos mais importantes das estruturas de nível genérico que encontramos. O que é interessante para nós, a respeito dessa lista, é que tudo que está nela é, sob a perspectiva da Hipótese da Invariância, um aspecto da estrutura de esquema de imagem. Em síntese:

Se a Hipótese da Invariância estiver correta, a maneira de se chegar a um esquema de nível para alguma estrutura de conhecimento é através da extração da sua estrutura de esquema de imagem.

A interpretação metafórica de formas discursivas como provérbios, fábulas, alegorias etc., parece depender da nossa habilidade em alcançar estruturas de nível genérico. Turner e eu introduzimos a metáfora GENÉRICO É ESPECÍFICO como o processo de extrair a estrutura de nível genérico a partir de uma estrutura de conhecimento específi co. Vemos essa metáfora como um mecanismo geral para se entender o que é geral em termos do que é específi co.

Se a Hipótese da Invariância estiver correta, a metáfora GENÉRICO É ESPECÍFICO será uma metáfora mínima que mapeia o que a Hipótese da Invariância exige que seja mapeado e nada além disso. Se acontecer de a estrutura de nível genérico ser exatamente a estrutura de esquemas de imagem, então a Hipótese da Invariância assume um poder explicativo enorme. E isso tornaria evidente a necessidade de uma caracterização própria para as estruturas de nível genérico. Em vez disso, ela poderia caracterizar, por si só, a estrutura de nível genérico, explicando possíveis personifi cações e as possíveis interpretações para os provérbios.

6 O status da Hipótese da Invariância

A Hipótese da Invariância é uma hipótese empírica. Além disso, seu status não está claro. Em primeiro lugar, ela é vaga em determinados aspectos, já que qualquer formulação exata exigiria conhecimento de todo o inventário de esquemas de imagem. Em segundo lugar, a Hipótese da Invariância pode ser traduzida em uma versão forte ou fraca. Existem diversas versões fracas possíveis. Pode se dizer, por exemplo, que nem todas as estruturas inferenciais

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abstratas estão baseadas em esquemas de imagem, e que apenas uma parte específi ca delas está. Ou então, pode se considerar a possibilidade de as estruturas de esquema de imagem serem apenas um dos muitos aspectos da estrutura de nível genérico. É claro que a versão mais interessante da Hipótese da Invariância é a sua versão mais forte:

Todos os mapeamentos metafóricos são parciais. Aquilo que é mapeado preserva a estrutura do esquema de imagem, apesar de nem toda estrutura do esquema de imagem precisar ser mapeada. Além do mais, todas as formas de inferência abstrata, todos os detalhes de mapeamentos entre imagens e todas as estruturas de nível genérico surgem através da Hipótese da Invariância.

No momento, não há evidências sufi cientes que sustentem essa hipótese, da forma como está posta aqui. Mas, como uma estratégia de pesquisa, atrelar-se à versão mais forte da Hipótese da Invariância é uma boa maneira de se investigar quais os limites da própria invariância.

7 Conclusão

Iniciamos este artigo com uma discussão sobre os compromissos cognitivo e de generalização, e eu gostaria de voltar a ela. A Hipótese da Invariância resultou de uma tentativa de satisfazer o compromisso de generalização da melhor maneira possível. Apesar de não ter alcançado a sua versão mais forte, a Hipótese da Invariância ainda pode constituir uma generalização poderosa, que se estende para além dos padrões de inferência que as metáforas mantêm, para além das restrições que recaem sobre as metáforas de imagem e para além dos aspectos das estruturas de nível genérico.

O que não é tão óbvio é como a Hipótese da Invariância está relacionada com o compromisso cognitivo. Considero essa hipótese como parte desse compromisso para poder caracterizar os conceitos abstratos, como eles podem ser interpretados e como o pensamento abstrato pode ter sido adquirido pelos seres humanos. E a Hipótese da Invariância poderia desempenhar um papel importante nessa iniciativa. Ela defende que muitos conceitos abstratos surgem através mapeamentos metafóricos de conceitos espaciais, e que esse raciocínio abstrato se dá através de mapeamentos metafóricos quando a topologia cognitiva dos esquemas de imagem está preservada no mapeamento, o qual, por sua vez, preserva a estrutura inferencial desses conceitos espaciais.

Uma das coisas que sabemos sobre a evolução do cérebro é que as estruturas que se desenvolveram em animais inferiores são usadas e elaboradas em animais

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superiores. A Hipótese da Invariância sustenta que certos mecanismos usados na percepção de relações espaciais que parecem estar presentes em animais inferiores são usados pelos seres humanos no pensamento abstrato – e essa característica tem sido tradicionalmente usada para separar o ser humano dos animais inferiores. Entretanto, a biologia tem nos mostrado que o homem não é uma forma de vida totalmente distinta. O ser humano utiliza muitas capacidades biológicas presentes em animais que evoluíram mais cedo. É claro que, do ponto de vista evolutivo, não seria surpreendente se o ser humano utilizasse e aprimorasse mecanismos que estão presentes em animais inferiores para representar relações espaciais. De fato, a ideia de que o raciocínio abstrato faz uso de mecanismos perceptuais espaciais presentes em animais inferiores faz muito mais sentido do que a ideia de que a razão tenha vindo toda de uma única vez com o homem, como uma nova faculdade cognitiva totalmente distinta. A ideia de que o pensamento abstrato também seja fruto da evolução dá um sentido mais biológico à discussão.

Universidade da Califórnia, em Berkeley, US

Notas

Esta pesquisa foi fi nanciada, em parte, por fomentos da Fundação Sloan e da Fundação Nacional da Ciência (IRI-8703202) para a Universidade da Califórnia, em Berkeley.

O autor é professor de Linguística e membro do corpo docente do Instituto de Estudos Cognitivos e do Instituto Internacional de Ciência Computacional da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Ele é presidente da Associação Internacional de Linguística Cognitiva e membro da Comissão Administrativa da Sociedade de Ciências Cognitivas.

Os seguintes colegas e estudantes colaboraram, de diversas formas, na redação deste artigo, desde comentários proveitosos até a sua autorização para que suas pesquisas fossem citadas: Ken Baldwin, Claudia Brugman, Jane Espenson, Sharon Fischler, Ray Gibbs, Adele Goldberg, Karin Myhre, Eve Sweetser e Mark Turner.

Obras poéticas citadas

AUSTER, Paul. (Ed.). Th e Random House book of twentieth century French poetry. Nova York, US: Random House, 1984.

A Hipótese da Invariância: o pensamento abstrato...

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A realidade psicológico-cognitiva dos esquemas de imagem e suas transformações1

Raymond W. Gibbs, Jr.2 e Herbert L. Colston3

Tradução: Danilo Nogueira Marra4

Revisão da tradução: Lúcia Collischonn de Abreu5

Revisão técnica: Maity Siqueira6

Uma das mais importantes premissas da semântica cognitiva é que grande parte do nosso conhecimento não é estática, proposicional e sentencial. Ela é, na verdade, fundamentada e estruturada por diferentes padrões de nossas interações perceptivas, ações corporais e manipulações de objetos (JOHNSON, 1987; 1993; LAKOFF, 1987; 1990; TALMY, 1988). Esses padrões são gestalts experienciais conhecidas como esquemas de imagem, que emergem no decorrer de atividades sensório-motoras como manipular objetos, se orientar no espaço e tempo e direcionar o foco perceptivo para vários fi ns (JOHNSON, 1991).

Estudos em linguística cognitiva sugerem que mais de duas dúzias de esquemas de imagem diferentes e várias de suas transformações surgem regularmente no pensamento, no raciocínio e na imaginação humana diariamente (JOHNSON, 1987; LAKOFF, 1987). Dentre esses esquemas, existem as estruturas esquemáticas RECIPIENTE, EQUILÍBRIO, ORIGEM-PERCURSO-META, PERCURSO, CICLO, ATRAÇÃO, CENTRO/PERIFERIA e LIGAÇÃO. Os esquemas de imagem cobrem uma ampla gama de estruturas práticas predominantes na experiência, além de possuírem estrutura interna e poderem ser elaborados metaforicamente para ajudar em nossa compreensão de domínios mais abstratos. Por exemplo, pesquisas em linguística cognitiva 1 Traduzido com a permissão dos autores a partir do texto em inglês GIBBS, R. W; COLSTON, H. L. Th e cognitive psychological reality of image schemas and their transformations. Cognitive Linguistics, Vol 6(4), 1995, p.347-378.2 University of California, Santa Cruz (Estados Unidos da América)3 University of Wisconsin, Parkside (Estados Unidos da América)4 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS.5 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS.6 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS

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têm examinado como os esquemas de imagem são usados para criar formas gramaticais (LANGACKER, 1987; 1991); representar signifi cados subjacentes que relacionam os sentidos aparentemente distintos das preposições (BRUGMAN; LAKOFF, 1988; VANDELOISE, 1993); motivar construções do tipo verbo + partícula, principalmente aquelas no inglês com up e out (LINDNER, 1983), advérbios como very (BRUGMAN, 1984), alguns verbos como take (NORVIG; LAKOFF, 1987); e explicar os diversos tipos de relações cognitivas que podem formar a base da extensão de uma categoria como hon, no japonês (LAKOFF, 1987). Estudos mais recentes em linguística e fi losofi a examinaram o papel que os esquemas de imagem exercem na motivação de conceitos metafóricos abstratos como causalidade, morte e moralidade (JOHNSON, 1993; LAKOFF, 1990; LAKOFF; TURNER, 1989; TURNER, 1991).

Apesar de esses estudos fornecem importantes evidências sobre esquemas de imagem no pensamento cotidiano e na compreensão da linguagem, ainda permanece a dúvida sobre se existem evidências empíricas independentes referentes à realidade psicológica dos esquemas de imagem. Nosso objetivo com este trabalho é descrever algumas das conclusões da psicolinguística e psicologia cognitiva e do desenvolvimento que, em nossa visão, apoiam as premissas da semântica cognitiva a respeito dos esquemas de imagem e suas transformações.

Há duas razões importantes para considerar tais evidências psicológicas. Em primeiro lugar, linguistas cognitivos, seguindo o compromisso de elaborar teorias consistentes com o que se sabe sobre mente e cérebro (LAKOFF, 1990, 1993), devem estar cientes dos achados experimentais de disciplinas congêneres, em especial dados que incidem sobre as possíveis conexões entre percepção, pensamento e linguagem. Em segundo lugar, psicólogos se mostram às vezes céticos com relação a noções teóricas de linguistas baseadas principalmente nas intuições de um único estudioso sobre estrutura e comportamento linguístico. Uma das principais razões para conduzir experimentos com grandes grupos de indivíduos é minimizar a incerteza em fazer inferências sobre pensamento e comportamento em populações inteiras de pessoas.

Não concordamos totalmente com o ceticismo de alguns psicólogos a respeito das afi rmações teóricas de linguistas cognitivos (ex. Kennedy e Vervaeke, 1993). Contudo, cremos que existam diferentes tipos de evidências empíricas da psicologia a que ambos psicólogos e linguistas cognitivos precisam estar atentos ao considerar a importância dos esquemas de imagem nas funções cognitivas mais básicas. Este artigo descreve algumas dessas evidências. Primeiramente elaboramos a noção de esquemas de imagem e como eles são transformados. Em seguida, analisamos trabalhos da psicolinguística que examinaram de forma explícita como os esquemas de imagem motivam a compreensão humana sobre o signifi cado das palavras. A seção subsequente descreve trabalhos em psicologia cognitiva que parecem bastante consistentes com argumentos sobre a

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importância dos esquemas de imagem no funcionamento cotidiano da cognição. Analisamos ainda o trabalho da psicologia do desenvolvimento que também apoia a realidade cognitiva dos esquemas de imagem. Por fi m, a última seção discute a importância de diferentes trabalhos da psicologia para futuros estudos em linguística cognitiva.

1 Esquemas de imagem e suas transformações

Esquemas de imagem podem ser defi nidos como representações análogas e dinâmicas de relações espaciais e movimentos no espaço. Apesar de derivarem de processos perceptuais e motores, os esquemas de imagem não são em si processos sensório-motores. Na realidade, eles são “meios básicos pelos quais construímos ou constituímos uma ordenação, e não meros receptáculos passivos nos quais a experiência é despejada” (JOHNSON, 1987, p.30). Nesse sentido, os esquemas de imagem diferem-se da noção de esquema tradicionalmente usada na ciência cognitiva, que são estruturas abstratas de evento conceituais e proposicionais (ver Rumelhart, 1980). Em contraposição, os esquemas de imagem são imaginativos e não proposicionais por natureza, e ainda operam como estruturas organizadoras de experiências no nível da percepção e movimentação corpóreas. Eles estão presentes em todas as modalidades da percepção, algo que deve se manter para que haja qualquer coordenação sensório-motora em nossa experiência. Como tal, esquemas de imagem são ao mesmo tempo visuais, auditivos, sinestésicos e táteis.

É possível ilustrar o que se entende pelo conceito de esquema de imagem, e como sua estrutura interna é projetada metaforicamente em um novo domínio, por meio do esquema de EQUILÍBRIO (JOHNSON, 1987). A ideia de equilíbrio é algo assimilado “com os nossos corpos e não pela apreensão de um conjunto de regras” (JOHNSON, 1987, p.74). Equilibrar-se é uma parte tão predominante de nossa experiência corpórea que raramente nos damos conta de sua presença no dia-a-dia. Conhecemos o sentido de equilíbrio através das experiências bastante próximas entre si de equilíbrio corporal ou perda de equilíbrio. Por exemplo, um bebê põe-se de pé, se desiquilibra e cai. Ele tenta repetidas vezes até aprender como se manter em uma postura ereta e equilibrada. Uma criança se esforça em fi car em cima de uma bicicleta para aprender a manter o equilíbrio enquanto desce uma rua. Cada um de nós já experienciou momentos em que sentimos acidez na barriga, nossas mãos fi cam frias, sentimos a cabeça esquentar, nossas bexigas se dilatam, os seios paranasais se incham, e fi camos com a boca seca. Dessas – e de várias outras – formas assimilamos os sentidos de falta de equilíbrio ou sustentação. Respondemos a essa instabilidade ou desequilíbrio esfregando as mãos, umedecendo a boca, esvaziando a bexiga, e assim por diante, até nos

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sentirmos estáveis de novo. O esquema de imagem EQUILÍBRIO emerge, assim, de experiências de equilíbrio e desequilíbrio do corpo e da manutenção dos sistemas e funções corporais em estados de estabilidade. Referimos a essas experiências corporais recorrentes como esquemas de imagem para enfatizar meios de estruturar esquematicamente experiências específi cas para que se possa estabelecer ordem e conectividade às percepções e concepções humanas (JOHNSON, 1987).

Uma das coisas mais interessantes com relação aos esquemas de imagem é que eles motivam aspectos importantes da maneira como pensamos, raciocinamos e imaginamos. Um mesmo esquema de imagem pode ser instanciado em diversos tipos de domínios, pois a estrutura interna de um único esquema pode ser metaforicamente entendida. Continuando no mesmo exemplo, nosso esquema de imagem de EQUILÍBRIO é metaforicamente elaborado em um grande número de domínios abstratos de experiência (ex. estados psicológicos, relações legais, sistemas formais) (JOHNSON, 1991). Nos casos de equilíbrio corpóreo e visual, parece haver um esquema básico que consiste de um ponto ou eixo no qual forças e pesos precisam ser distribuídos para se neutralizarem ou se contraporem um com o outro. Nossa experiência de equilíbrio corporal e nossa noção de balanço conectam-se a nossa compreensão de personalidades em equilíbrio, opiniões e sistemas equilibrados, equilíbrio estável, equilíbrio de poder e de justiça, e assim por diante. Em cada um desses exemplos, a noção mental ou abstrata de equilíbrio é compreendida e experienciada em termos da compreensão física de equilíbrio. Os esquemas de imagem possuem lógica ou estrutura interna que determina os papéis que eles podem desempenhar na estruturação de diversos conceitos e em padrões de raciocínio. Não é o caso de um grande número de conceitos não relacionados (para os domínios sistemático, psicológico, moral, legal e matemático) fazerem uso da mesma palavra equilíbrio e de termos afi ns (JOHNSON, 1991). Ao contrário, utilizamos a mesma palavra para todos esses domínios, porque eles estão estruturalmente relacionados pelo mesmo tipo de esquemas de imagem subjacentes e são metaforicamente elaborados a partir deles.

Os esquemas de imagem não existem simplesmente como entidades isoladas. Eles estão comumente ligados uns aos outros para formarem relações bastante naturais através de diversas transformações de esquemas de imagem. Tem se demonstrado que as transformações de esquemas de imagem desempenham um papel importante na relação entre percepção e razão. Alguns dos principais esquemas de imagem são (LAKOFF, 1987, p.443):

(a) Foco no percurso para foco no ponto de chegada: acompanhe, mentalmente, o trajeto de um objeto se deslocando, e, em seguida, mire o ponto no qual o objeto parar ou onde ele entrará em repouso.(b) Complexo de entidades para massa homogênea: imagine um conjunto formado

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por diferentes objetos. Distancie-se, mentalmente, deste até que o agrupamento de entidades comece a se transformar em uma única massa homogênea. Agora, retorne ao ponto onde a massa volta a ser novamente um agrupamento.(c) Acompanhando uma trajetória: enquanto percebemos um objeto se deslocando continuamente, podemos traçar mentalmente o caminho percorrido por ele ou o trajeto que ele está prestes a percorrer.(d) Sobreposição: imagine uma grande esfera e um pequeno cubo. Aumente o tamanho do cubo até que a esfera possa caber em seu interior. Reduza agora o tamanho do cubo e coloque-o dentro da esfera.

Cada transformação de esquema de imagem refl ete aspectos importantes de nossa experiência corpórea visual, auditiva ou sinestésica. Para ilustrar, considere o modo como essas transformações podem agir no exemplo anterior do esquema de imagem para equilíbrio ou estabilidade. Uma situação na qual várias dessas transformações interagem com o esquema de imagem de equilíbrio é a de lidar com um grupo de animais. Para poder controlar e conduzir de forma satisfatória um grande número de animais, ex. rebanho de gado ou ovelhas, é necessário manter a coesão do grupo. Se uma parte do rebanho começar a se distanciar do todo, nesse caso, uma instância da transformação do complexo de entidades para massa homogênea, a estabilidade será perdida, e uma ação deverá ser empregada para restabelecê-la. Essa ação reparadora requer que o percurso daqueles que se afastam seja apurado (acompanhando uma trajetória), e que o ponto de chegada seja determinado e deslocado (foco no percurso para foco no ponto de chegada). Há vários exemplos parecidos que ilustram o papel dos esquemas de imagem e de várias transformações na estruturação de nossa compreensão dos fenômenos do mundo real. Consideraremos outras instâncias dessas transformações como demonstradas em diversos estudos da psicologia cognitiva e do desenvolvimento. Contudo, iremos considerar primeiramente algumas das evidências experimentais do papel dos esquemas de imagem na motivação da compreensão humana sobre o signifi cado de palavras.

2 Psicolinguística e esquemas de imagem

Considere a palavra stand nas seguintes sentenças em inglês: Please stand at attention. He wouldn’t stand for such treatment. Th e clock stands on the mantle. Th e law still stands. He stands six-foot fi ve. Th e part stands for the whole e She had a one-night stand with a stranger. Essas sentenças mostram apenas alguns dos muitos sentidos de stand encontrados na fala e na escrita cotidiana. Alguns desses sentidos se referem ao ato físico de permanecer de pé (ex. Please stand at attention, Th e clock stands on the mantle, He stands six-foot fi ve), enquanto outros possuem interpretações não físicas, talvez fi guradas (ex. We stood

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accused of the crime, Th e part stands for the whole, He wouldn’t stand for such treatment). Quais são os princípios que relacionam os sentidos de palavras polissêmicas? Por exemplo, o que associa os sentidos físicos e não físicos de stand nos exemplos mencionados?

Alguns linguistas têm argumentado nos últimos anos que várias palavras polissêmicas resistem a serem defi nidas por um sentido comum, abstrato e central (BRUGMAN; LAKOFF, 1988; FILLMORE, 1982; GEERAERTS, 1993; SWEETSER, 1986). Linguistas cognitivos têm sugerido que os sentidos de palavras polissêmicas podem ser determinados por metáforas, metonímias e diversos tipos de esquemas de imagem (LAKOFF, 1987; JOHNSON, 1987; SWEETSER, 1990). Sob essa perspectiva, a organização lexical de palavras polissêmicas não é um repositório de informações idiossincráticas e aleatórias. Ela é, na verdade, estruturada por princípios cognitivos gerais que são sistemáticos e recorrentes por todo o léxico. O mais importante, talvez, seja a afi rmação de que tais princípios surgem de nossa experiência corporal, fenomenológica. Uma possível explicação é que a experiência corporal motiva em parte as intuições das pessoas a respeito de por que os vários sentidos de stand possuem os sentidos que tem.

Gibbs et al. (1994) tentaram mostrar experimentalmente que os diferentes sentidos da palavra polissêmica stand são motivados por diferentes esquemas de imagem originados de nossa experiência corporal de se manter de pé. Seu objetivo geral foi demonstrar empiricamente que os sentidos da palavra polissêmica stand não são arbitrários para falantes nativos, mas são motivados por repetidas experiências corporais das pessoas no mundo real.

Como primeiro passo para compreender como esquemas de imagem motivam parcialmente os sentidos da palavra polissêmica stand, um experimento preliminar procurou determinar quais esquemas de imagem melhor refl etem as recorrentes experiências corporais humanas de se manter de pé. Um grupo de participantes foi orientado a realizar uma breve série de exercícios corporais para fazê-los refl etir conscientemente sobre sua própria experiência física de se manter de pé. Por exemplo, foi pedido para que os participantes se colocassem de pé, se movimentassem, se curvassem, se encolhessem e fi cassem na ponta dos pés. Fazer com que realmente se envolvessem nessas atividades físicas facilita o entendimento intuitivo dos participantes de como a experiência de se manter de pé se relaciona com os vários possíveis esquemas de imagem. Em seguida, os participantes leram uma breve descrição de 12 esquemas de imagem diferentes que pudessem eventualmente ter alguma relação com a experiência de se manter fisicamente de pé (ex. VERTICALIDADE, EQUILÍBRIO RESISTÊNCIA, CENTRO/PERIFERIA e LIGAÇÃO). Finalmente, os participantes avaliaram o grau de associação entre cada esquema de imagem e a sua própria experiência corporal de se manter de pé. Os resultados do estudo inicial mostraram que cinco

Raymond W. Gibbs, Jr. e Herbert L. ColstonRaymond W. Gibbs, Jr. e Herbert L. Colston

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esquemas de imagem são fundamentais nesse tipo de experiência (EQUILÍBRIO, VERTICALIDADE, CENTRO/PERIFERIA, RESISTÊNCIA e LIGAÇÃO).

Um segundo experimento investigou o julgamento das pessoas com relação à similaridade entre os diferentes sentidos de stand. Os participantes tiveram que agrupar 35 sentidos diferentes da palavra em cinco grupos levando em consideração a similaridade do signifi cado. A análise desses grupos revelou que os participantes não separaram sentidos físicos de stand dos sentidos não físicos ou fi gurativos. Por exemplo, a noção física de se manter de pé em to stand at attention foi muitas vezes agrupada com os sentidos metafóricos de stand em let the issue stand e to stand the test of time.

O terceiro experimento da série investigou a relação entre os cinco esquemas de imagem que subjazem a experiência física de fi car de pé e as várias noções de stand analisadas no Experimento 2. Mais uma vez, foi pedido aos participantes para que se colocassem de pé e observassem os diferentes aspectos dessa experiência corporal. Enquanto faziam isso, foram exibidas descrições verbais dos cinco esquemas de imagem EQUILÍBRIO, VERTICALIDADE, CENTRO/PERIFERIA, RESISTÊNCIA e LIGAÇÃO. Em seguida, os participantes receberam uma lista com 32 sentidos de stand, e foi pedido para que avaliassem o grau de associação entre cada um dos sentidos e os cinco esquemas de imagem.

Os dados de classifi cação obtidos no terceiro experimento permitiu que Gibbs et al. (1994) traçassem um perfi l de esquema de imagem para cada um dos 32 usos de stand. Diversas similaridades interessantes foram observadas nesses perfi s. Por exemplo, it stands to reason e as the matter now stands possuem o mesmo perfi l de esquema de imagem (na ordem de importância) de LIGAÇAO-EQUILÍBRIO-CENTRO/PERIFERIA-RESISTÊNCIA-VERTICALIDADE. As expressões don’t stand for such treatment e to stand against great odds são caracterizadas pelo perfi l de esquema de imagem RESISTÊNCIA-CENTRO/PERIFERIA-LIGAÇÃO-EQUILÍBRIO-VERTICALIDADE.

O objetivo principal do estudo foi avaliar se os sentidos de stand vistos como semelhantes em signifi cado no segundo experimento foram previsíveis de forma confi ável a partir dos perfi s de esquemas de imagem obtidos nesse estudo. Análises estatísticas mostraram que conhecer os perfi s de esquemas de imagem dos diferentes sentidos de stand nos permitiu predizer 79% de todos os agrupamentos de stand no Experimento 2. Esses dados fornecem evidências bastante fortes de que a compreensão humana sobre os sentidos de stand é parcialmente motivada por esquemas de imagem que surgem de experiências corporais de se manter de pé. Um quarto estudo mostrou que a distribuição dos sentidos de stand nos diferentes grupos realizada pelos participantes não pode ser explicada somente em termos de seu entendimento dos contextos nos quais essas palavras estavam inseridas. Assim, os participantes não separavam sentenças como don’t stand for such treatment e to stand against great odds, pois

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essas expressões se referem aos mesmos tipos de situação. Em vez disso, parece que os julgamentos de semelhança das pessoas são mais bem atribuídos ao seu entendimento tácito de como diferentes padrões de esquemas de imagem motivam diferentes usos da palavra polissêmica stand.

Essa pesquisa psicolinguística demonstrou que as pessoas compreendem os diferentes usos de stand por causa de seu entendimento tácito de diversos esquemas de imagem que surgem parcialmente de sua própria experiência física de fi car de pé. Esses esquemas de imagem, dos quais os mais importantes são EQUILIBRIO, VERTICALIDADE, CENTRO/PERIFERIA, RESISTÊNCIA E LIGAÇÃO, não apenas fornecem a base para os vários sentidos físicos de stand (ex. he stands six-foot nine, stand in the way e stand at attention), mas também fundamentam o entendimento humano de usos complexos metafóricos (ex. the part stands for the whole, as the matter now stands, and the engine can’t stand the constant wear). As pessoas compreendem os diferentes sentidos de stand como semelhantes em termos de seu signifi cado baseando-se, em parte, no perfi l básico dos esquemas de imagem para cada uso da palavra num contexto.

Essa conclusão sobre os sentidos da palavra stand não implica que indivíduos julguem similaridade de acepções entre dois sentidos de uma palavra baseando-se apenas nos esquemas de imagem. Diversos aspectos do sentido de uma palavra que não estão diretamente relacionados com esquemas de imagem certamente atuam de alguma forma na compreensão humana do sentido lexical e no julgamento de similaridade de acepções para os vários sentidos de uma palavra polissêmica. Ao mesmo tempo, essa pesquisa empírica não sugere que as pessoas identifi cam automaticamente alguns padrões específi cos de esquemas de imagem a cada instante em que se deparam com o uso específi co de uma palavra. A principal conclusão do experimento, na verdade, é que os indivíduos reconhecem tacitamente alguma ligação entre essas experiências corporais esquemáticas e diferentes aspectos do signifi cado linguístico, incluindo aqueles altamente abstratos e/ou metafóricos.

A pesquisa psicolinguística sobre stand é, até onde podemos constatar, o único trabalho empírico em psicologia que explicitamente iniciou a investigação do possível papel dos esquemas de imagem na percepção, pensamento e uso da linguagem. O estudo pode ser interessante aos céticos às ideias da linguística cognitiva sobre esquemas de imagem, pois a metodologia aplicada permitiu a avaliação autônoma da experiência corporal independente de qualquer análise de como o corpo pode motivar expressões linguísticas. Psicólogos sustentam muitas vezes que pesquisas em linguística cognitiva pecam por apresentarem um raciocínio circular no qual se inicia com uma análise linguística para inferir algum dado sobre a mente ou o corpo que, por sua vez, motivam diferentes aspectos da estrutura linguística e do comportamento. Ao avaliar antecipadamente e de forma independente a experiência corporal de se manter

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de pé, Gibbs et al. (1994) conseguiram levantar evidências sobre a compreensão humana dos diversos usos de stand. Trazer evidências experimentais específi cas – e que podem ser falseadas – a respeito do comportamento linguístico humano é um ingrediente imprescindível aos psicólogos, se eles forem aceitar a realidade psicológica de qualquer construto hipotético como os esquemas de imagem.

3 Psicologia cognitiva e esquemas de imagem

A possível relevância das pesquisas em psicologia cognitiva para os esquemas de imagem foi inicialmente observada por Johnson (1987) e Lakoff (1987). Ambos descreveram diversos estudos sobre imagens mentais que apoiavam a ideia de que os esquemas de imagem e suas transformações exercem um papel importante no funcionamento cognitivo. Analisaremos brevemente esses estudos, além de descrever várias outras linhas de pesquisa em processamento de informação não linguística conectadas à realidade psicológica cognitiva dos esquemas de imagem e de suas transformações.

Um tópico de especial relevância sobre os esquemas de imagem e suas transformações é a conexão entre imagem e percepção. A pesquisa em imagem é de central importância para o tradicional debate das ciências cognitivas sobre se a mente humana emprega representações tanto proposicionais como analógicas. O que o estudo em imagens mentais nos diz sobre os esquemas de imagem e suas transformações?

A pesquisa inicial em imagem mental centrava-se na ideia da interferência seletiva. Consideremos primeiro um estudo clássico de Brooks (1968). Foram mostrados brevemente a participantes fi guras como a letra F ou frases. Em seguida, foi pedido que analisassem as imagens mentais das fi guras para responderem perguntas específi cas. Para as frases, os participantes tiveram que lembrar em sequência cada palavra contida em cada uma e apontar se a palavra era um substantivo ou não. Para os diagramas em linhas, na forma de letras maiúsculas não cursivas, os participantes tiveram que imaginar um canto específi co do diagrama e, depois, proceder em torno do perímetro do diagrama para, em seguida, apontar se cada um dos cantos da letra imaginada era um canto externo ou não. Em ambos os tipos de recordação, os participantes foram instruídos a responderem oralmente, dizendo “sim” ou “não”, ou gestualmente, apontando para folhas de papel com as palavras “sim” ou “não” impressas. Brooks descobriu que o tipo de recordação e o método de relato entravam em confl ito se ambos estivessem na mesma modalidade. Os participantes eram mais lentos quando respondiam visualmente do que oralmente quando recordavam a linha do diagrama. Eles também eram mais lentos ao responderem visualmente do que verbalmente quando se recordavam das frases. Em geral, o emprego de

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imagens levou a uma queda no desempenho em tarefas que utilizaram processos relacionados. Estudos de Segal e Fusella (1970) mostraram que imagens visuais e auditivas podem interferir seletivamente na detecção de sinais de uma mesma modalidade. Johnson (1987) sugere que os dados obtidos no estudo de Brooks trazem evidências dos esquemas de imagem na medida em que as pessoas parecem ser capazes de acessar certas modalidades cognitivas, seja recordando informações verbais ou imagens visuais, através de múltiplos canais, como o relato sinestésico ou verbal.

Johnson (1987) e Lakoff (1987) também argumentaram que vários estudos clássicos sobre rotação mental de fi guras fornecem evidências dos esquemas de imagem e de suas transformações. Por exemplo, em um estudo, foram mostrados a participantes desenhos bidimensionais de pares de objetos tridimensionais. A tarefa dos participantes era determinar se os dois objetos representados eram idênticos, exceto pela orientação destes (SHEPARD; METZLER, 1971). Algumas das fi guras exigiam rotação somente dentro do plano da fi gura, enquanto outras exigiam rotação em profundidade (“para dentro” da página). Os resultados gerais mostraram que, seja para rotações bi ou tridimensionais, os participantes pareciam girar mentalmente os objetos a uma velocidade constante de aproximadamente 60 graus por segundo. Outros experimentos confi rmaram o mesmo fenômeno (COOPER; SHEPARD 1982). Estudos de controle demonstraram que os efeitos da manipulação mental de imagens não podem ser facilmente explicados em termos de estratégias verbais ou outras estratégias analíticas que podem ter sido baseadas na descrição inicial de algum padrão visual (BETHELL-FOX; SHEPARD, 1988; COOPER; PODGORNY, 1976). Esses dados mostram que somos limitados pelos nossos processos mentais de manipulação das coisas em geral de forma similar a como somos limitados em nossa habilidade física de manipular coisas no mundo real. Johnson (1987, p.25) concluiu a partir de sua discussão sobre os dados em rotação mental que “podemos realizar operações mentais de esquematizações de imagem que sejam análogas a operações espaciais”. Em outras palavras, os dados empíricos sugerem que esquemas de imagem possuem um caráter sinestésico, pois não estão vinculados a nenhuma modalidade perceptual específi ca.

Nossa habilidade de girar mentalmente imagens refl ete de fato a manipulação de esquemas de imagem? Para responder essa pergunta, devemos esclarecer bem as diferenças entre imagens mentais como tradicionalmente estudadas pelos psicólogos cognitivos e a noção de esquemas de imagem. Johnson e Lakoff notaram que esquemas de imagem não são o mesmo que imagens reais, às quais eles se referem como imagens “ricas”. Esquemas de imagens são presumidamente mais abstratas do que imagens comuns e consistem de padrões espaciais dinâmicos que subjazem as relações e os movimentos espaciais encontrados em imagens concretas. Imagens mentais são também representações

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temporárias, enquanto que esquemas de imagens são propriedades permanentes da experiência corporal. Por fi m, esquemas de imagem são propriedades emergentes da experiência corporal não refl exiva; já imagens mentais são o resultado de processos cognitivos que requerem mais esforço. Por exemplo, pesquisas mostram que imagens mentais são geradas através da montagem das partes de uma imagem de cada vez (ver Finke, 1989).

Apesar das diferenças, há semelhanças interessantes entre imagens mentais e esquemas de imagem que tornam o estudo de imagens mentais especialmente relevante a nossa busca pela realidade psicológica cognitiva dos esquemas de imagem e suas transformações. Em primeiro lugar, imagens reais não são tradicionalmente tão ricas e detalhadas quanto Johnson e Lakoff inicialmente sugeriram. Diversos estudos mostram que imagens mentais não são fi guras mentais no sentido de fornecer uma cópia fi el do que foi percebido (FINKE, 1989). Imagens visuais são tradicionalmente construídas a partir de conceitos básicos já conhecidos pelo indivíduo (CHAMBERS; REISBERG, 1992; INTOS-PETERSON; ROSKOS-EWOLDSEN, 1989). Alguns aspectos das imagens mentais refl etem a operação de representações visuais e espaciais. Até mesmo pessoas que sofrem de cegueira congênita se saem bem em diferentes tarefas envolvendo imagens mentais nas quais eles são primeiro apresentados a objetos estudados tatilmente, e não visualmente (KERR, 1983; ZIMLER; KEENAN, 1983). Essas evidências sugerem que não há razão para crer que uma representação visual seja necessária para a manipulação de imagens mentais. A representação de imagens mentais não é inteiramente visual nem inteiramente espacial. Por exemplo, Farah et al. (1988) notaram que podem existir dois sistemas corticais distintos para lidar com representações visuais (um relacionado com a representação da aparência de objetos; o outro para representar a localização do objeto no espaço). Outra evidência neuropsicológica mostrou que um paciente com lesão no cérebro, resultado de um acidente automobilístico, sofria de várias debilidades no reconhecimento visual, mas se saiu de maneira satisfatória na maioria das tarefas de manipulação de imagens mentais espaciais. Além disso, outros aspectos das imagens mentais são limitados pelo conhecimento sinestésico humano que, por exemplo, infl uencia a habilidade das pessoas de reconhecer rotações permissíveis do corpo e de diferentes partes do corpo (PARSONS, 1988, 1989).

Em síntese, apesar de existirem diferenças signifi cativas entre imagens mentais e esquemas de imagem, há evidências concretas de que tanto representações espaciais quanto visuais existam para a manipulação de imagens mentais. Essa conclusão é bastante consistente com a idéia de que diferentes modos de experiência de percepção/corporal dão origem a esquemas cognitivos que possuem propriedades de tipo analógicas. Assim, na medida em que as imagens mentais humanas refl etem a operação de diferentes modalidades e

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propriedades sinestésicas do corpo, as evidências experimentais em imagens mentais apoiam a ideia de que esquemas de imagem exercem um papel crucial em alguns aspectos da percepção e cognição.

Um conjunto de pesquisas relativamente novas que aponta especifi camente para o papel dos esquemas de imagem e suas transformações no funcionamento da mente vem de estudos sobre momentum representacional. Antes de analisarmos essas atividades, consideremos primeiro a experiência corporal de momentum. Essa experiência é predominante na vida cotidiana. Experienciamos momentum visual quando observamos algo pesado que se desloca continuar a se deslocar mesmo quando se depara com outros objetos. Experienciamos momentum sinestésico tanto quando somos nós o objeto com o qual algo pesado se depara, como quando somos a coisa pesada que se desloca. Experienciamos momentum auditivo tanto como um correspondente de um momentum visual e sinestésico, como de forma independente quando, por exemplo, trovões se intensifi cam gradativamente. Há ainda momentum interno quando algumas de nossas funções corporais se intensifi cam de forma que não podem ser interrompidas. Abstraímos dessas experiências correlatas aspectos formais que possuem em comum ou que sejam semelhantes, aos quais nos referimos através da linguagem como momentum.

O termo momentum representacional foi cunhado por Freyd e Finke (1984) para se referirem a uma representação internalizada de um momentum físico. Diversos experimentos têm analisado diferentes aspectos do momentum representacional. O paradigma tradicional utilizado para investigar o momentum representacional consiste da apresentação de uma sequência de três imagens estáticas – referidas como estímulos indutivos – de um objeto (normalmente uma forma geométrica simples ou um ponto) que parece se deslocar linearmente ou girando em uma direção. Uma posição fi nal da imagem é mostrada e, em seguida, é pedido aos participantes que apontem se a posição fi nal dessa imagem-alvo é idêntica à terceira imagem estática do objeto. A Figura 1 mostra um diagrama esquemático do paradigma experimental utilizado no estudo do momentum representacional. A participação das pessoas em uma tarefa de momentum representacional envolve a habilidade de acompanhar em sua mente o percurso de um objeto que se desloca, e, em seguida, focar o ponto no qual o objeto irá parar (um exemplo da transformação de esquema de imagem do tipo foco no percurso para foco no ponto de chegada).

Um dos achados mais importantes dos estudos em momentum representacional é que a memória dos participantes para a posição fi nal de um objeto submetido a um movimento implícito é alterada para a direção do movimento. Esse efeito foi descoberto inicialmente com objetos em rotação (FREYD; FINKE, 1984) e depois estendido para objetos que se deslocam linearmente (FINKE; FREYD, 1985; HUBBARD; BHARUCHA, 1988). Por

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exemplo, se os participantes observassem a imagem de um objeto que parecesse girar, e, em seguida, tivessem que recordar a posição fi nal do objeto, eles normalmente relatariam sua posição fi nal como se estivesse mais adiante do que de fato estava. O mesmo tipo de efeito ocorre com objetos que se deslocam linearmente. Se os participantes observassem a imagem de um objeto que parecesse se deslocar por um percurso linear, e, em seguida, tivessem que lembrar a posição fi nal desse objeto, eles relatariam a posição fi nal deste como se estivesse mais adiante no percurso de que de fato estava.

Figura 1. Diagrama esquemático de uma série de eventos em um experimento típico sobre momentum representacional

Que princípios psicológicos cognitivos melhor explicam o fenômeno do momentum representacional? O efeito não ocorre por causa do movimento aparente, pois mesmo se aumentássemos o tempo entre a apresentação de cada imagem estática para dois segundos, o resultado ainda evidenciaria o momentum representacional (FINKE; FREYD, 1985). Tudo indica que esse tipo de momentum “refl ete a internalização dos princípios do momentum físico no sistema visual” (KELLY; FREYD, 1987, p.369). De fato, inúmeras características do momentum físico real foram encontradas no momentum representacional. Por exemplo, a aparente velocidade dos estímulos indutores interfere nesse tipo de momentum (FREYD; FINKE, 1985; FINKE et al., 1986). A memória de participantes da posição fi nal de um objeto se movendo rapidamente aponta para um ponto mais adiante no percurso do que seria se o objeto estivesse se movendo mais lentamente. A aparente aceleração do estímulo indutor também afeta o momentum representacional no qual objetos que parecem estar em aceleração produzirão um deslocamento maior na memória (FINKE et al., 1986). Além disso, deslocamentos que vão além do que alguém esperaria no momentum real não produzem momentum representacional (FINKE; FREYD, 1985). Se a imagem-alvo do objeto estivesse em uma posição tal que corresponda com o

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que seria a “próxima” posição na sequência de imagens induzidas, ou se mesmo estivesse mais adiante no percurso ou na rotação do que a “próxima” posição, o efeito do momentum representacional desapareceria.

Além disso, o deslocamento na memória é maior para o movimento horizontal vs. vertical (HUBBARD; BHARUCHA, 1988). Talvez esse seja o resultado da predominância do movimento horizontal em nosso ambiente. A gravidade também afeta o momentum representacional (HUBBARD; BHARUCHA, 1988). Objetos se movendo para baixo são deslocados mais na direção do movimento do que objetos se movendo para cima. Se um objeto está se movendo horizontalmente e depois desaparece, os participantes marcam de forma consistente o ponto de desaparecimento mais abaixo do que de fato era. O mesmo resultado é obtido com o movimento oblíquo ascendente. Curiosamente, o movimento oblíquo ascendente produz normalmente um deslocamento acima do ponto de desaparecimento real. Esses resultados sugerem restrições internalizadas do fator ambiental sobre o momentum. O que sobe precisa descer; o que desce o faz mais rápido do que sobe; coisas que se movem linearmente normalmente caem em direção ao chão, e as que caem em certo ângulo acabam normalmente se movendo pelo chão. Ao que parece, o momentum representacional é algo mais complexo do que uma simples representação de como pode ser o movimento de um objeto que possua momentum.

Por fi m, mas não menos importante, os efeitos do momentum representacional não foram encontrados apenas para os estímulos visuais, mas para os auditivos também (KELLY; FREYD, 1987; FREYD et al., 1990). Estudos com a altura de notas musicais demonstraram que uma série de tons induzidos a ora subirem ora descerem em altura, acompanhados de um tom-alvo maior ou menor que o terceiro tom induzido, produz os mesmos efeitos de momentum representacional que os de estudos em estímulo visual. A existência do momentum representacional auditivo não se deve apenas à correlação com o momentum representacional visual, mas, na verdade, parece estar relacionado a ele de forma apenas abstrata (KELLY; FREYD, 1987). Kelly e Freyd introduziram o princípio da Gestalt de “continuidade” como uma provável explicação para as semelhanças entre momentum representacional visual e auditivo, mas desconsideraram a ideia dizendo que ela “não consegue fornecer qualquer explicação para os aspectos quantitativos específi cos do fenômeno, tal como o fato de que as distorções representacionais aumentam com a velocidade implícita da mostra. Tais efeitos, contudo, são previstos por um modelo do fenômeno baseado em momentum físico.” (1987, p.397).

Diversos aspectos dos dados sobre momentum representacional visual e auditivo podem ser explicados em termos de esquemas de imagem e suas transformações. Primeiro, o esquema de ORIGEM-PERCURSO-META deve fundamentar aspectos críticos do momentum representacional enquanto um

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indivíduo observa um objeto se movendo de um ponto inicial ao longo de um caminho em direção a uma posição fi nal imaginada. O esquema ORIGEM-PERCURSO-META deve ser um dos esquemas de imagem mais básicos que surgem a partir de nossa experiência corporal e interações perceptuais com o mundo. Além desse esquema, pode haver também um esquema específi co para MOMENTUM. Quando nos deparamos com os estímulos indutores em uma tarefa de momentum representacional, seja ela visual ou auditiva, uma representação armazenada do momentum não é ativada. Em vez disso, usamos o esquema de imagem para MOMENTUM, derivado conjuntamente pela mente, corpo e o ambiente externo, na expectativa de que os próximos estímulos estejam mais adiante na trajetória, rotação ou escala musical. Tal expectativa não ocorreria usando apenas o esquema da imagem PERCURSO ou a transformação SEGUINDO UMA TRAJETÓRIA. Esses esquemas são capazes de prover a direção que um objeto em movimento ou em rotação está prestes a assumir, mas eles não podem ser responsáveis pela expectativa referente à distância que o objeto irá percorrer dado que este possui momentum. No entanto, um esquema de MOMENTUM é responsável por aspectos quantitativos específi cos de um momentum representacional visual. Assim, nossa experiência nos diz que quanto mais rápido algo se desloca, mais momentum ele terá e, consequentemente, maior será a distância percorrida quando for aplicada contra ele uma força de interrupção. Além disso, a noção de momentum como esquema de imagem também explica os aspectos multimodais de um momentum representacional. Nós separamos nossas experiências de ver, ouvir e sentir momentum daqueles aspectos que são compartilhados ou que são semelhantes entre si. Dessa forma, obtemos os mesmos tipos de efeitos tanto no momentum representacional auditivo quanto no visual, mesmo que eles não estejam sempre correlacionados no ambiente externo (KELLY; FREYD, 1987).

A pesquisa sobre momentum representacional visual e auditivo também ilustra diferentes transformações de esquema de imagem nas quais um esquema de imagem como momentum pode ser criado pela transformação de outros esquemas de imagem tais como MARCO, PERCURSO, BLOQUEIO, REMOÇÃO DE BLOQUEIO e META. Esses tipos de transformações de esquemas de imagem atuariam em um momentum representacional da seguinte maneira. Primeiro, invocamos o esquema de imagem de marco quando voltamos a atenção para um objeto. À medida que esse objeto se move, transformamos o esquema de imagem de marco no de trajetória, somando assim à nossa atenção a trajetória do marco. Isto é conhecido como transformação de esquema de imagem MARCO-PERCURSO. Nós, então, invocamos o esquema de imagem de BLOQUEIO no momento em que o objeto em movimento desaparece. Esse esquema de imagem é transformado no esquema REMOÇÃO DE BLOQUEIO quando os estímulos alvo aparecem. Tal transformação é conhecida como

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transformação de esquema de imagem BLOQUEIO-REMOÇÃO. Por fi m, para determinar o marco fi nal do objeto em movimento – considerando que temos um marco se deslocando ao longo de uma trajetória, que por sua vez se deparou com um bloqueio, o qual foi logo em seguida removido –, transformamos o esquema de imagem de PERCURSO no esquema de MOMENTUM, e, depois, este, em um esquema de chegada ou meta. Isso nos dá informações sobre a posição provável do objeto uma vez que este não encontrou qualquer bloqueio.

Fazemos uso da posição fornecida por transformações de esquema de imagem para compará-la com os estímulos-alvo em uma tarefa de momentum representacional. Se houver uma correspondência entre a posição esperada dada por diferentes transformações de esquema de imagem e os estímulos-alvo, responderemos afi rmativamente. Apesar disso, como a literatura sobre momentum representacional tem mostrado, nos enganamos com frequência ao dizer que as posições de destino que estão mais à frente ao longo do caminho indicam corretamente a posição em que o objeto se encontraria. Esse erro é produzido pela transformação de esquema de imagem TRAJETÓRIA-FOCO NA CHEGADA. Essa transformação nos dá informações sobre a posição em que o objeto se encontra uma vez que ele se movia a certa velocidade e em certa direção e, por fi m, encontrou um bloqueio que foi retirado logo em seguida. Se estivéssemos nos baseando apenas na informação memorizada da posição real da imagem mais recente do objeto, não cometeríamos esses erros.

Em geral, a pesquisa sobre momentum representacional mostra que diferentes modos de experiência, sejam visuais ou auditivos, estão estruturados de forma muito similar, embora nem sempre estejam correlacionados no ambiente externo. Representações internalizadas de um momentum físico do mundo real não são adequadas por causa das restrições impostas por nosso sistema perceptual. Projeções externalizadas de nossas percepções não são adequadas por causa de aspectos do mundo real tais como a gravidade. Princípios da Gestalt são convincentes no sentido de que eles capturam a essência de padrões formais repetitivos e abstratos de nossa experiência corporal ao interagir com o ambiente, mas eles não se sustentam sozinhos, pois não especifi cam detalhes quantitativos. Por outro lado, os esquemas de imagem e suas transformações fornecem uma forma prática de explicar os diferentes aspectos do momentum representacional.

Nossa análise dos esquemas de imagem e suas transformações que podem estar envolvidos nos estudos empíricos sobre momentum representacional destina-se a ilustrar um pouco a importância da experiência corporal na percepção e cognição humanas. Vários outros estudos em psicologia cognitiva mostram que eventos dinâmicos – e não ocorrências individuais e isoladas – são as unidades básicas da percepção. Em muitos casos, pessoas compreendem mais facilmente eventos temporais do que aqueles que não o são, e objetos que

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se movem do que os estacionários (GIBSON, 1979; MICHAELS; CARELLO, 1981). Uma demonstração sofi sticada desses padrões é encontrada em uma investigação conduzida por Johansson (1973). Em um experimento, luzes foram afi xadas às principais articulações do corpo de uma pessoa vestida de preto e fotografada no escuro. Diante das luzes estacionárias, observadores relataram ter visto apenas arranjos aleatórios de pontos. No entanto, se a pessoa a quem as luzes foram afi xadas se pusesse a andar, pular, fazer abdominais, ou qualquer outra atividade familiar, os observadores notariam imediatamente e com precisão uma pessoa envolvida na atividade. Se as luzes parassem de se mover, eles voltariam a relatar o arranjo aleatório de pontos. Outra evidência indica que os observadores detectaram o sexo e até mesmo a identidade de uma pessoa em movimento a quem luzes estão afi xadas (KOSLOWSKY; CUTTING, 1977).

Johansson concluiu que a percepção de padrões gestálticos de um evento progredindo no tempo é fundamental na vida cotidiana. Ele propôs que a percepção de uma estrutura única referente à constante transformação de pontos de luzes foi realizada pelo sistema visual após uma análise vetorial perceptual. Uma conclusão similar tem sido levantada para como as pessoas percebem os movimentos das mãos e braços no espaço na Língua de Sinais Americana (POIZNER et al., 1986). Mas a percepção de eventos dinâmicos pode também refl etir a prioridade das transformações de esquemas de imagem na cognição humana. Por exemplo, a capacidade de observadores de reconhecer que um conjunto de luzes em movimento constitui uma pessoa refl ete a participação da transformação de esquema de imagem COMPLEXO-DE-ENTIDADES-PARA-MASSA-HOMOGÊNEA, onde um grupo indiferenciado de objetos começa a assumir uma aparência coerente e signifi cativa uma vez que o movimento é detectado. A percepção de eventos dinâmicos sobre os estáticos também destaca a importância do componente analógico dos esquemas de imagem.

Além de nossa capacidade imagístico-esquemática de perceber aspectos signifi cativos a partir do movimento de pontos aleatórios, as pessoas apresentam uma capacidade de notar semelhanças signifi cativas entre diferentes experiências sensoriais. O que permite que os indivíduos, por exemplo, reconheçam uma semelhança entre o brilho tênue de uma estrela e um tom silenciado? Quando semelhanças multimodais surgem na linguagem, elas normalmente assumem a forma de comparações e metáforas. Experiências multissensoriais ou sinestésicas fornecem um dos tipos mais simples de linguagem metafórica em que um modo de experiência sensorial ou perceptiva é mapeado em outro. Expressões do inglês como loud sunlight, bright thunder, murmur of sunlight, e sunlight roar ilustram alguns dos milhares de exemplos de sinestesia. Embora estudos anteriores sugerirem que a percepção sinestésica pode ser relativamente rara em adultos, estudos recentes sugerem que a percepção sinestésica pode se basear em um entendimento universal de equivalências multimodais

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(MARKS, 1978). Correspondências sinestésicas não são aleatórias. As pessoas não combinam cores, formas e sons de maneira arbitrária. Elas estabelecem conexões sistemáticas entre dimensões de modalidades específi cas, por exemplo, sons suaves e de baixa frequência são associados a cores opacas e escuras, e, à medida que os sons fi cam mais altos ou mais agudos, as cores se tornam mais claras (MARKS, 1978, 1982).

Nossa capacidade de apreciar as semelhanças entre as propriedades relativamente abstratas de experiências visuais e auditivas pode ilustrar o surgimento de diversas estruturas esquemáticas de imagem. Conseguimos, por exemplo, reconhecer que a estrutura esquemática de imagem para cores pode ter uma correspondência fi xa com a estrutura esquemática da imagem para sons. Marks et al. (1987) defendem a existência de supra-dimensões abstratas de experiência que tornam certas combinações de ideias mais prováveis, mais naturais, do que outras (por exemplo, alto (som) e claro são mais facilmente associados do que alto (som) e escuro). Mas podemos argumentar de forma mais precisa que restrições em relações perceptivas permissíveis são fornecidas pelo princípio da invariância (LAKOFF, 1990), que sustenta que os mapeamentos das informações do domínio fonte-para-alvo em metáforas preservam as características estruturais ou topologia cognitiva dos domínios fontes. Sob essa ótica, na sinestesia, as pessoas reconhecem correspondências invariáveis entre a estrutura esquemática de imagem para sons auditivos e imagens visuais, o que delimita quais combinações de sinestesia são mais signifi cativas.

4 Esquemas de imagem e pesquisas sobre desenvolvimento

Os psicólogos do desenvolvimento têm debatido por muito tempo sobre o papel do comportamento sensório-motor da criança no desenvolvimento cognitivo. Desde os escritos de Piaget (1952, 1954) sobre como o desenvolvimento sensório-motor fundamenta diferentes aspectos do crescimento cognitivo, os psicólogos do desenvolvimento têm considerado maneiras de vincular os padrões que emergem das experiências corporais e perceptuais de crianças pequenas com o desenvolvimento intelectual posterior. Embora Piaget tenha concluído que crianças mais jovens compreendiam pouco dos eventos físicos que ocorrem a sua volta, uma pesquisa mais recente realizada com métodos sensórios sugere que bebês são capazes de realizar raciocínios físicos sofi sticados (BAILLARGEON, 1993; SPELKE et al., 1992). Nos últimos anos, os psicólogos do desenvolvimento têm argumentado que os esquemas de imagem formam a base para certos conceitos que parecem fundamentar o raciocínio físico na primeira infância (MANDLER, 1992).

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Primeiro, considere o conceito de animação. As pessoas são capazes de julgar o movimento como sendo animado com base em características perceptivas das quais elas não estão cientes. Existem dois tipos amplos de início do movimento: o movimento auto-instigado e o causado. Desde os primeiros anos de vida, bebês são sensíveis à diferença entre algo começando a se deslocar por conta própria e algo que está sendo empurrado ou, de outra forma, provocado a se mover (LESLIE, 1988). A auto-locomoção é o início de uma trajetória independente na qual nenhum outro objeto ou trajetória está envolvido. Por si só, um objeto que se põe a se mover sem outra trajetória visível agindo sobre ele não é uma garantia de animação (por exemplo, um brinquedo de corda).

Vários tipos de análises perceptivas simples dão um sentido conceitual para uma categoria de coisas que se deslocam. Mandler (1992) afi rmou que crianças usam esquemas de imagem à medida que elaboram generalizações dos vários elementos de percepção até chegarem a uma representação que engloba algumas características abstratas que as experiências têm em comum. Por exemplo, adultos enxergam o movimento biológico como se tivessem características rítmicas, mas imprevisíveis, enquanto o movimento mecânico é pensado como invariável a menos que seja desviado de alguma forma. Dada a atenção concentrada de crianças em objetos em movimento, algumas análises das trajetórias animadas devem ocorrer juntamente com a análise do início de suas trajetórias. Um exemplo é observar que cães se movimentam para cima e para baixo e seguem trajetórias irregulares quando se movem. Um estudo com crianças de um a dois anos de idade analisou como elas brincavam com pequenos modelos de animais e veículos variados (MANDLER et al., 1991). As crianças muitas vezes interagiam com os animais fazendo-os saltar na mesa, porém elas fi zeram os veículos andarem em uma linha reta. Assim, crianças muito jovens parecem compreender as diferenças na movimentação de objetos animados e inanimados.

Diversos esquemas de imagem podem fundamentar a compreensão de crianças pequenas sobre animacidade. A contingência do movimento animado não só envolve fatores como um objeto animado seguindo outro, como descrito pelo esquema de imagem TRAJETÓRIAS INTERLIGADAS, mas envolve também evitar obstáculos e realizar mudanças repentinas na aceleração. Adultos são sensíveis a todos esses aspectos do movimento animado (STEWART, 1984), mas não se sabe ainda se bebês são capazes de responder a tais movimentos, embora pareçam ser perceptualmente salientes. Além disso, ninguém considerou ainda como fatores tais como evasão de obstáculos podem ser representados em termos de esquema de imagem (MANDLER, 1992). Johnson (1987) descreveu diversos esquemas de FORÇA tais como BLOQUEIO e DESVIO que podem ser úteis em descrever a evasão de obstáculos. Porém esses esquemas precisam ser mais detalhados para dar conta de trajetórias animadas ou inanimadas.

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É possível representar diferenças animadas e inanimadas em resposta a um bloqueio como uma trajetória que muda de direção antes de entrar em contato com um obstáculo versus outro que vai de encontro a um obstáculo e, em seguida, para ou ricocheteia nele (MANDLER, 1992).

Causalidade e não animação são dois outros conceitos importantes para o desenvolvimento conceitual nos primeiros anos de vida. A diferença entre movimento próprio e movimento provocado é que, no último caso, o início da trajetória envolve outro causador. Por ex., uma mão pega um objeto, cuja trajetória é iniciada, ou uma bola rola contra outra, iniciando o deslocamento desta. Leslie (1982, 1988) especulou que um conceito de causalidade na infância é derivado desse tipo de percepção. Seus estudos, que empregavam técnicas sofi sticadas de desabituação, mostraram que crianças de quatro meses de idade distinguiram entre o movimento causal no qual uma bola atinge e empurra outra e eventos muito similares nos quais existe um pequeno intervalo espacial ou temporal entre os dois movimentos. No arremesso, o fi m-da-trajetória do primeiro percurso é o início-da-trajetória do objeto. No caso não causal, não existe ligação entre o fi m de uma trajetória e o início da outra. Outra pesquisa também mostra que crianças com 10 meses de idade podem diferenciar entre eventos causais e não causais (COHEN; OAKES, 1993), e que aquelas com 10 a 12 meses são capazes de fazer julgamentos de calibragem sofi sticados sobre eventos de colisão (KOTOVESKY; BAILLARGEON, 1994).

Os diferentes resultados sobre a análise espacial de crianças pequenas sugerem que a causalidade física pode ser representada antes da psicológica, ao contrário do que normalmente é aceito nos estudos sobre desenvolvimento (PIAGET, 1954). É geralmente entendido que a especialização da compreensão causal começa somente após as crianças experienciarem diversas ocasiões em que elas arrastam objetos para si ou os empurram para longe. No entanto, dados de Leslie (1982, 1988) sugerem que a ordenação ontogenética pode ocorrer de forma contrária. A experiência da intenção ou violação pode não ser necessária para formar uma concepção inicial de causalidade.

Considere agora a aquisição dos conceitos de contenção e apoio pela criança. Contenção é muito relevante para o pensamento pré-verbal e é uma parte inicial do desenvolvimento conceptual. Algum conceito de contenção parece ser responsável pelo melhor desempenho que bebês com nove meses de idade apresentam nas tarefas de ocultação de objetos quando o objeto que esconde outro consiste de um recipiente em posição vertical, em vez de um recipiente virado para baixo ou uma tela (FREEMAN et al., 1980; LLOYD et al., 1981). Essas crianças já parecem possuir um conceito de recipientes como lugares onde coisas desaparecem e reaparecem.

Os esquemas de imagem podem explicar alguns desses dados. Por exemplo, o esquema CONTENÇÃO possui três elementos estruturais (interior, borda

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e exterior) que surgem principalmente a partir de duas fontes: (1) análise perceptual da diferenciação de fi gura que se projeta do fundo, isto é, ver objetos como limitados e tendo um interior separado do exterior (SPELKE, 1988); e (2) análise perceptual de objetos entrando e saindo de recipientes. A lista das relações de contenção que bebês experienciam é longa. Eles comem e bebem, cospem coisas para fora, veem seus corpos serem vestidos e despidos, são levados e retirados de seus quartos, e assim por diante.

Embora Johnson (1987) tenha defendido a experiência corporal como a base do entendimento de contenção, não é óbvio que esse tipo de experiência per se é necessária para a análise perceptual acontecer (MANDLER, 1992). Bebês têm muitas oportunidades para analisar contêineres simples e facilmente visíveis como garrafas, copos e tigelas, e atos de contenção que fazem coisas desaparecerem e reaparecerem fora deles. Na verdade, talvez seja mais fácil analisar a visão do leite entrando e saindo de um copo do que entrando e saindo da boca. No entanto, independentemente da forma como a análise de contenção é iniciada, é de se esperar que a noção de alimentos como algo levado à boca seja uma conceituação desenvolvida cedo.

Outro aspecto que parece estar envolvido na concepção de contêiner no inicio do desenvolvimento é a de suporte. Contêineres verdadeiros não só envolvem as coisas, mas as suportam também. Crianças com até três meses de idade se surpreendem quando as relações de suporte entre os objetos são violadas (NEEDHAM; BAILLARGEON, 1991). Bebês com cinco meses e meio fi cam surpresos quando recipientes sem fundo parecem segurar coisas no seu interior (KOLSTAD, 1991). De modo similar, bebês com nove meses de idade puderam determinar se um bloco poderia ser suportado por uma caixa aberta no topo somente após compararem em uma única olhada as larguras do bloco e da caixa enquanto o primeiro era colocado dentro do segundo (SITSKOON; SMITSMON, 1991). Finalmente, Baillargeon (1993) demonstrou que crianças com 12,5 meses de idade puderam determinar se uma coberta de tecido com uma pequena protuberância poderia esconder um pequeno tigre de brinquedo somente após compararem diretamente o tamanho da protuberância com o do brinquedo. Esses resultados sugerem que as noções de contenções e suporte podem estar intimamente relacionadas entre si desde bem cedo na vida. Um esquema de imagem de SUPORTE pode requerer apenas uma representação de contato entre dois objetos na dimensão vertical (MANDLER, 1992).

A compreensão de uma criança do ato de abertura e fechamento também está relacionada ao desenvolvimento da noção de contenção. Piaget (1952) documentou em detalhes as ações que crianças com nove a doze meses de idade realizavam enquanto aprendiam a imitar atos que não podiam se ver realizando, tais como piscar. Antes de conseguirem efetuar a ação correta, os bebês às vezes abriam e fechavam a boca, abriam e fechavam as mãos,

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ou cobriam e descobriam os olhos com um travesseiro. As observações de Piaget comprovam a análise perceptiva na qual os bebês estavam envolvidos e sua compreensão analógica da estrutura do comportamento que tentavam reproduzir. Esse entendimento parece ser um caso claro de um esquema de imagem do movimento espacial existente quando algo se abre ou se fecha, independentemente das particularidades da coisa em si.

Finalmente, outra fonte de evidência para a realidade psicológica dos esquemas de imagem e suas transformações vem da literatura da psicologia do desenvolvimento sobre permanência de objetos. A permanência de objetos refere-se à crença de que objetos físicos continuam a existir mesmo quando não estão na presença das modalidades sensoriais. Piaget (1954) propôs que bebês inicialmente não compartilham as mesmas crenças dos adultos sobre eventos de oclusão, mas acabam adotando-as lentamente ao longo dos primeiros anos de vida. Alguém poderia argumentar que o desenvolvimento da noção de permanência do objeto pode ser pensado como o desenvolvimento de vários esquemas de imagem diferentes, e os produtos de transformações entre eles. Diversos estudos têm sido realizados cujos resultados apontam para a infl uência de um esquema de imagem. Por exemplo, Baillargeon (1987) mostrou que bebês com 3,5 a 5,5 meses de idade representam sem difi culdades a existência de um, dois, ou mesmo três objetos ocultos. Crianças também parecem representar muitas das propriedades dos objetos, tais como altura, comprimento e trajetória (BAILLARGEON, DEVOS, 1991). Outros estudos mostram que crianças sabem que objetos ocultos, como os visíveis, não podem se mover através do espaço ocupado por outros objetos, e que um objeto não pode aparecer em dois lugares no espaço sem serem transportados de um ponto a outro (BAILLARGEON, 1993). Bebês de três meses também parecem ter desenvolvido o conhecimento dos aspectos físicos das pessoas (LEGERSTEE, 1994).

Esses resultados sobre permanência de objetos podem ser pensados como um indicativo da presença de vários esquemas de imagem e de transformações entre eles. Propomos, nos moldes de Mandler (1992), que as transformações de MARCO para BLOQUEIO, para REMOÇÃO DE BLOQUEIO, e, fi nalmente, de volta a MARCO fundamentam a demonstração da permanência de objetos em crianças com 4,5 meses de idade. A razão pela qual crianças com 3,5 meses não exibem permanência de objetos é que eles ainda não desenvolveram um ou mais desses esquemas de imagem ou ainda não são capazes de transformá-los. Uma explicação específi ca exigiria testes mais precisos para determinar qual seria a conclusão correta, porém suspeitamos que esteja relacionado com bloqueio e remoção de bloqueio. Isso decorre do fato de que crianças com 3,5 meses de idade já conseguem se concentrar em objetos individuais e, portanto, parecem ter desenvolvido o esquema de imagem para MARCO.

Nossa análise do papel dos esquemas de imagem nas reações de bebês diante de eventos físicos difere do ponto de vista de muitos psicólogos do

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desenvolvimento sobre as origens do conhecimento. Vários estudiosos levantam dúvidas sobre a ideia de que o conhecimento infantil sobre eventos físicos surgem à medida que crianças aprendem sobre regularidades em seu ambiente perceptual (SPELKE et al., 1993). Muitos psicólogos defendem que o desenvolvimento inicial da percepção, ação e raciocínio é modular (KARMILOFF-SMITH, 1992). Contudo, gostaríamos de sugerir que os esquemas de imagem e suas transformações têm algum papel funcional nos sistemas sensório-motor e cognitivo da criança.

Discutimos anteriormente algumas das pesquisas da psicologia cognitiva sobre correspondência multimodal. Existe uma linha de estudos semelhante na psicologia do desenvolvimento que mostra que crianças pequenas encontram similaridades abstratas entre diferentes experiências sensoriais. Uma investigação que apoia essa conclusão analisou como crianças pequenas compreendem diversos movimentos multimodais. A detecção de relações intermodais não é apenas um caso de associação de duas experiências que acontecem simultaneamente. Por exemplo, bebês com três meses de idade foram familiarizados com diversos eventos fi lmados – visíveis e audíveis (BAHRICK, 1988). Um dos fi lmes mostrava uma mão chacoalhando uma garrafa plástica transparente que continha uma grande bola de gude. O outro fi lme mostrava uma mão chacoalhando uma garrafa contendo algumas bolinhas de gude muito pequenas. Quatro condições resultaram do emparelhamento entre vídeo e som para saber se o áudio apropriado (o som de uma ou várias bolas de gude) correspondia ao respectivo fi lme ou não. Apenas um grupo de crianças foi familiarizado com fi lmes emparelhados com as faixas de som apropriadas e sincronizadas. Após a familiarização, um teste de preferência foi dado a cada grupo de bebês com dois fi lmes mostrados lado-a-lado, enquanto uma única faixa de som era executada. Os dados demonstraram que a aprendizagem ocorreu com maior familiarização, resultando em uma preferência por combinar o vídeo em questão com seu áudio correspondente. Além disso, o aprendizado fi cou limitado a apenas um grupo de crianças, a saber, aquelas mais familiarizadas com a sincronização apropriada entre imagem e som. A oportunidade idêntica de associar uma faixa de som inadequada não resultou em uma preferência por essa combinação no teste. Esses resultados mostram que crianças bem pequenas exibem uma capacidade de aquisição de relações abstratas entre eventos em diferentes modalidades.

Uma outra linha de pesquisa sobre como as crianças encontram semelhanças abstratas entre experiências sensoriais diferentes vem de trabalhos sobre sinestesia. Em um estudo inicial, crianças foram desafiadas a construir uma relação de similaridade entre dois eventos que não compartilhavam características físicas ou histórico de co-ocorrência (por exemplo, um tom

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pulsante e duas linhas inclinadas e emparelhadas – uma pontilhada e uma contínua). Bebês com nove a 12 meses de idade olharam por mais tempo a linha pontilhada do que a sólida na presença de um tom pulsante, o que sugere que uma correlação metafórica foi estabelecida (WAGNER et al., 1981). De forma similar, elas olharam por mais tempo para uma seta apontando para cima enquanto ouviam um tom ascendente e uma seta para baixo enquanto ouviam um tom descendente. Os bebês foram, assim, capazes de reconhecer uma dimensão abstrata que fundamenta dois eventos fi sicamente e temporalmente diferentes entre si (por exemplo, descontinuidade no tom pulsante e descontinuidade na linha pontilhada). Outro estudo demonstrou que crianças com quatro anos de idade já percebem e concebem semelhanças entre frequência sonora e brilho (por exemplo, tom grave é igual a escuro; tom agudo é igual a claro) e entre volume e brilho (por exemplo, som baixo é igual a escuro; som alto é igual a claro). Esses resultados são de especial importância porque estão em consonância com a ideia de que adultos projetam esquemas de imagem de um domínio para outro, por exemplo, eles concebem quantidade em termos de verticalidade (por exemplo, MAIS É PARA CIMA e MENOS É PARA BAIXO).

Por fi m, uma pesquisa mais recente analisou se bebês são capazes de construir uma unidade abstrata entre uma expressão facial de emoção (por exemplo, alegria) e um evento auditivo (por exemplo, um tom ascendente) – eventos que também não compartilham características físicas ou histórico de co-ocorrência (PHILLIPS et al., 1990). Bebês de sete meses não categorizaram diferentes expressões faciais de alegria e raiva. Contudo, eles olharam por tempo considerável para as expressões de alegria, surpresa e tristeza quando estas foram combinadas com tons ascendentes, pulsantes, e descendentes e contínuos, respectivamente. Como os eventos auditivos e visuais nessa tarefa experimental eram substancialmente diferentes, os bebês tiveram que agir de acordo com os eventos dentro de um curto período de tempo para dar sentido (ou seja, determinar as equivalências) à disparidade. Assim, eles tiveram que determinar a equivalência entre duas expressões faciais exibidas simultaneamente a um evento auditivo. Essa é uma demonstração impressionante de como bebês correlacionam metaforicamente eventos díspares para construir algum signifi cado sobre expressões faciais de emoção.

As várias peças de evidências empíricas sobre a capacidade de crianças pequenas de encontrar relações abstratas entre os diferentes eventos sensoriais ajustam-se bem às afirmações sobre esquemas de imagem. Para termos experiências signifi cativas e interconectadas, deve haver padrões regulares para nossas ações, percepções e concepções. Os esquemas de imagem refl etem esses padrões recorrentes e surgem dos movimentos corporais através do espaço, da manipulação de objetos, e de nossa percepção do mundo.

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5 Discussão geral

Nosso objetivo foi explorar as diferentes conexões entre as ideias da linguística cognitiva sobre esquemas de imagem e suas transformações e dados experimentais da psicolinguística, psicologia cognitiva e psicologia do desenvolvimento. As evidências que revimos fornecem apenas uma pequena parte dos dados empíricos que possam estar relacionados a como os esquemas de imagem e suas transformações mediam e constituem diferentes aspectos do funcionamento cognitivo. Para ter certeza, muitos dos estudiosos cujos trabalhos citamos aqui não concordariam à primeira vista com nossa interpretação de seus trabalhos nos termos dos esquemas de imagem e suas transformações. Nossa análise sugere que alguns trabalhos empíricos, sem que seus pesquisadores o soubessem, podem realmente fornecer evidências que apontam para a realidade cognitiva psicológica dos esquemas de imagem e suas transformações. Apesar de os esquemas de imagem não fundamentarem todos os aspectos semânticos e cognitivos, eles são uma dimensão crucial e pouco valorizada do signifi cado que não tem sido sufi cientemente explorada pelos psicólogos.

O fato de que se pode falar em diferentes tipos de esquemas de imagem e de diferentes maneiras em que estes são transformados certamente sugere que esquemas de imagem são representações mentais defi níveis. Mas como eles são representados, dada sua característica multimodal? Onde os esquemas de imagem devem ser representados no cérebro, já que surgem a partir de experiências corporais recorrentes que perfazem movimentos visuais, auditivos e sinestésicos, entre outros (por exemplo, os esquemas de ORIGEM-PERCURSO-META ou MOMENTUM são codifi cados no córtex visual ou em alguma outra parte do cérebro)? O caráter abstrato, mas ainda defi nível, dos esquemas de imagem não fornece respostas fáceis a essas perguntas. Neste momento, só podemos sugerir que linguistas e psicólogos precisam ser cautelosos ao levantar premissas concretas sobre como e onde os esquemas de imagem podem ser mentalmente representados. É até possível que os esquemas de imagem não sejam propriedades específi cas da mente, mas refl etem gestalts experienciais que nunca são codifi cadas como representações mentais explícitas. Outra possibilidade é de que os esquemas de imagem possam ser caracterizados como propriedades emergentes dos nossos sistemas conceituais básicos e, portanto, não são explicitamente representados em qualquer parte específi ca da mente. Sistemas conexionistas ou sistemas de redes neurais fornecem a arquitetura necessária para criar um modelo de esquemas de imagem como propriedades emergentes da cognição humana. Levantamos essas ideias para sugerir algumas das possibilidades de como esquemas de imagem podem, ou não, ser mentalmente representados.

Existem várias maneiras pelas quais voltar-se para trabalhos experimentais em diferentes áreas da psicologia pode fomentar pesquisas em psicologia e

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linguística cognitiva sobre esquemas de imagem e suas transformações. Em primeiro lugar, linguistas cognitivos deveriam olhar mais atentamente para evidências experimentais sobre experiências não linguísticas para estudar como diferentes aspectos da percepção e cognição se relacionam de forma sistemática com a estrutura linguística e o comportamento. Por exemplo, nossa discussão sobre momentum representacional em tarefas de representação de imagens mentais sugere que algumas propriedades esquemáticas de imagem podem estar relacionadas com várias expressões linguísticas. Considere os seguintes enunciados:

I was bowled over by that idea.We have too much momentum to withdraw from the election race.I got carried away by what I was doing.We better quit arguing before it picks up too much momentum and wecan’t stop.Once he gets rolling, you’ll never be able to stop him talking.

Esses enunciados refl etem a forma como o esquema de imagem para MOMENTUM permite a discussão sobre domínios muito abstratos da cognição, como apoio político, controle, argumentos, e a discussão em termos de objetos físicos que se movem com momentum. Podemos ser capazes de prever aspectos importantes das inferências que as pessoas criam quando compreendem essas expressões partindo do que se sabe sobre momentum representacional levantado pelas pesquisas em psicológica cognitiva.

Uma das conclusões levantadas por pesquisas sobre momentum representacional é que as pessoas se comportam como se um objeto em movimento continuasse a se mover, mesmo depois de se deparar com um obstáculo. Essencialmente, o objeto em movimento parece levar o obstáculo consigo em vez de se desviar dele ou parar. Para compreender a sentença em inglês I was bowled over by that idea, as pessoas devem inferir que a ideia era importante e que o interlocutor estava convencido dela. Isso decorre de uma das características de objetos em movimento: quanto maiores forem os objetos, mais momentum eles acumularão ao se deslocarem. Por conseguinte, um objeto grande, ao se deparar com um obstáculo, deveria resultar no obstáculo sendo carregado juntamente com o objeto. Aplicando a metáfora conceitual IDEIAS SÃO OBJETOS, é possível inferir ao ler ou ouvir a sentença I was bowled over by that ideia que, se a pessoa encontrar uma (grande) ideia importante seria convencida (levada junto) por ela.

Outro resultado da pesquisa sobre momentum representacional é que objetos que se movem com momentum são vistos como sendo incapazes de parar de forma imediata. Mesmo se sobre o objeto for aplicada uma força para pará-lo, ele

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continuará percorrendo certa distância até que não se mova mais. Pode-se inferir a partir dessa situação que, se há intenção de chegar a um destino específi co, então, quanto mais momentum um objeto acumular, maiores serão suas chances de atingir o destino. Podemos aplicar esse conhecimento, juntamente com a metáfora conceitual REALIZAÇÃO SÃO MOVIMENTOS, na sentença We have too much momentum to withdraw from the election race para inferir que os candidatos na corrida eleitoral têm uma boa chance (muito momentum) para vencer a eleição e, portanto, não devem tentar se afastar (parar).

Outra descoberta da pesquisa sobre momentum representacional é que um objeto com uma momentum incerto se deslocará por uma longa distância, talvez indo além dos destinos esperados. Essa situação expõe as inferências feitas na frase I got carried away by what I was doing. Uma pessoa fazendo algo sem monitorar o tempo envolvido ou os recursos destinados a essa ação (um objeto se movendo com um momentum incerto) pode resultar em uma dedicação de tempo ou recursos excessiva para a tarefa (superar o destino esperado).

Um aspecto diferente da investigação sobre momentum representacional diz respeito à aparente velocidade e aceleração do objeto em movimento. Esse fator afeta o momentum que achamos que um objeto acumulará. Aplicando essa constatação à frase Once he gets rolling, you’ll never get him to stop talking nos leva a inferir que interromper (parar) a pessoa no início da conversa (quando a velocidade é baixa) será mais fácil do que interrompê-la mais tarde (quando a velocidade é alta). Esse resultado também se aplica à frase You had better stop the argument now before it picks up too much momentum and we can’t stop it. A inferência aqui pode ser que os argumentos começam razoavelmente inofensivos (com baixa velocidade), mas, à medida que progridem, coisas irretratáveis podem ser ditas (alta velocidade). Para ambas as frases, entendemos que a conversa ou discussão deve ser interrompida o mais cedo possível.

Essas análises ilustram como resultados da psicologia cognitiva podem ser aplicados para fazer previsões sobre a compreensão humana de expressões linguísticas. Linguistas cognitivos fariam bem se considerassem mais detalhadamente – seguindo o compromisso cognitivo – como dados experimentais se relacionam com a análise de estruturas linguísticas e comportamento. Por outro lado, psicólogos devem considerar como muitos de seus resultados experimentais refl etem a experiência corporal humana. Vários aspectos da linguagem, percepção e cognição podem ser, pelo menos em parte, motivados por esquemas de imagens que surgem a partir de experiências corporais recorrentes e de nossas interações perceptivas com o mundo. Mesmo que muitos psicólogos conjecturem que grande parte do nosso conhecimento é inata e organizada em módulos encapsulados, aspectos signifi cativos de como aprendemos, percebemos, pensamos e usamos a linguagem estão intimamente interligados com nossa experiência corporal básica. Um dos nossos objetivos ao escrever este artigo é incentivar psicólogos a buscarem

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relações mais signifi cativas entre seu trabalho sobre percepção e cognição e a experiência corporal básica humana.

Um desafi o importante para psicólogos e linguistas cognitivos é encontrar maneiras mais efi cientes de testar empiricamente o papel dos esquemas de imagem na percepção, cognição e linguagem. O principal argumento que apresentamos até agora é o de que diversos dados empíricos são consistentes com a realidade cognitiva dos esquemas de imagem e sua transformação. No entanto, devemos descobrir maneiras de falsear a teoria dos esquemas de imagem. Não é sufi ciente mostrar que há dados consistentes com os esquemas, devemos também fazer previsões experimentais específi cas sobre o comportamento humano com base em nossa compreensão teórica dos esquemas de imagem e suas transformações. Se não conseguirmos fazer esse tipo de previsão experimental, então a teoria dos esquemas de imagem não será potencialmente falseável e reconhecida pelos psicólogos como tendo qualquer realidade cognitiva signifi cativa. Pesquisas da psicolinguística sobre os usos de stand demonstram que é possível examinar a realidade psicológica dos esquemas de imagem em um panorama de falseamento. Encorajamos psicólogos e linguistas cognitivos a estudarem formas de realizar tipos similares de pesquisa experimental.

A maior contribuição do trabalho descrito aqui talvez seja que ele fornece informações complementares sobre o que é especialmente cognitivo sobre linguística cognitiva (GIBBS, 1996). A natureza corpórea do pensamento e da linguagem pode ser ilustrada não só através de análises de estruturas linguísticas e comportamento, mas também por analisar experimentalmente várias maneiras de se perceber, aprender, e imaginar. Os estudos experimentais são especialmente úteis para a compreensão de detalhes importantes do processamento mental inconsciente que não podem ser obtidos através da análise introspectiva de nossa experiência fenomenológica e linguística.

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Recuperando os conceitos1

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Tradução: Dalby Dienstbach Hubert3

Revisão da tradução: Rosalia Neumann Garcia4

Revisão técnica: Solange Vereza5

Reza a lenda que um cientista foi convocado por uma associação de criadores de gado para que lhes dissesse como fazer com que as vacas dessem mais leite, ao que o cientista respondeu: “Primeiro, precisamos de uma vaca esférica”. Isso é para ser uma piada! Mais esquisito ainda é o que o cognitivismo fez com aquilo que se acredita ser o estudo da vida e do pensamento humanos. Este capítulo é sobre conceitos, o elemento fundamental da teoria cognitivista. Primeiro, mostrarei como o cognitivismo realmente não consegue dar um tratamento adequado aos conceitos e, depois, o que é mais importante (afi nal, quem se importa com as críticas?), descreverei em linhas gerais os fundamentos para uma nova visão não-representacional dos conceitos, a qual deverá inserir o estudo dos conceitos em um universo real (e não de vacas esféricas).

Se alguma vez existiu um tema sobre o qual você acreditava que o cognitivismo poderia estar certo, esse tema são os conceitos. Talvez ninguém espere que o cognitivismo lance luz sobre a biologia, a arte, a emoção, a intuição ou a espiritualidade. Por outro lado, os conceitos são o elemento fundamental das teorias cognitivistas. Por isso, eles são um estudo de caso bastante apropriado

1 Traduzido com a permissão da autora a partir do texto em inglês ROSCH, E. Reclaiming concepts. NÚÑEZ, R.; FREEMAN, W. (Orgs.). Reclaiming cognition: Th e primacy of action, intention, and emotion. Th orverton: Imprint Academy, 1999.2 University of California, Berkeley (Estados Unidos da America).3 Universidade Federal Fluminense, RJ.4 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS.5 Universidade Federal Fluminense, RJ.

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para este volume6 pois analisar o caso dos conceitos signifi ca explorar o cognitivismo no seu próprio habitat.

Por que deve se esperar que os conceitos sejam o elemento sine qua non do cognitivismo? A resposta para isso requer algumas considerações básicas: o que queremos dizer com ‘conceito’ e, nesse sentido, o que queremos dizer com ‘cognitivismo’?

Os conceitos são um dos aspectos dos estudos sobre categorização. Uma das funções mais primárias dos seres vivos é categorizar, que signifi ca lidar com diferentes objetos e eventos como entidades equivalentes. Os seres humanos vivem em um mundo categorizado. Desde utensílios domésticos até emoções, gêneros e democracia, os objetos e eventos, apesar de únicos, são tratados como membros de alguma classe. Algumas teorias diriam que, sem essa habilidade, seria impossível aprender a partir da nossa experiência e que, portanto, a categorização é uma das funções básicas da vida. Desde o século XIX, pelo menos, é comum se referir ao aspecto cognitivo ou mental das categorias como conceitos.

Que parte os conceitos os faz inacessíveis ao cognitivismo? Ao longo deste capítulo, defenderei que: Conceitos são a ligação natural entre mente e mundo, ao ponto de nos fazerem mudar o que pensamos ser a mente e o que pensamos ser o mundo. Conceitos ocorrem apenas em situações reais, nas quais atuam mais como peças fundamentais da situação do que como representações ou mecanismos para se identifi carem objetos. Conceitos são sistemas abertos, através dos quais os seres podem aprender coisas novas e podem criar. E conceitos existem em um contexto maior – não são a única maneira pela qual os seres vivos pensam e agem. Em uma máquina cognitiva, por outro lado, conceitos são inerentemente solipsistas; conceitos nada mais são que defi nições analíticas fechadas, às quais não se permitem nem uma função participativa e nem inovações. E não há contextos que abrigam outras formas de conhecimento nos quais podemos inserir o conhecimento conceitual. Então, o que é cognitivismo e de onde ele vem, para possuir todas essas limitações?

Já existe uma longa tradição fi losófi ca que trata dos conceitos e das categorias, chamada o problema dos universais, da qual a ciência cognitiva é herdeira. O que está em jogo nessa tradição é como é possível haver um fundamento sólido para o conhecimento quando o que os sentidos oferecem parece tão inconstante e falível. Porém, o cognitivismo também é herdeiro de outro conjunto de restrições. Segundo afirmam outros dois artigos deste volume (e também Martel; Erneling, 1997), existem, na verdade, duas vertentes bastante divergentes sob o nome de ciência cognitiva’. Uma delas é simplesmente um esforço de cooperação interdisciplinar entre a

6 A obra a que a autora se refere é NÚÑEZ, R.; FREEMAN, W. (eds.) Reclaiming concepts: Th e primacy of action, intention, and emotion. Th orverton: Imprint Academy, 1999. (N.T.)

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inteligência artifi cial, a psicologia, a fi losofi a, a linguística, a neurofi siologia e a antropologia. A outra forma de ciência cognitiva também assume uma postura fi losófi ca específi ca que hoje se conhece como cognitivismo. A importância dos conceitos no cognitivismo tem uma origem um tanto diferente da que possui nas tradições fi losófi ca e psicológica.

O cognitivismo vê a mente como uma máquina; mais precisamente, como um programa de computador; e mais precisamente ainda, como um tipo de programa que funciona como uma série de cálculos (ou seja, mudanças determinadas por regras) feita a partir de representações simbólicas. A mente é vista como um conjunto de representações mentais exatamente análogas às representações simbólicas de um computador. A única pergunta que podemos fazer a respeito de tal modelo ou máquina, ou seja, o único teste apropriado para esse modelo é justamente o teste clássico de Touring – em que o rendimento da máquina não é diferente do de um ser humano. Fodor (1998) chama esse modelo de “A Teoria Representacional da Mente” (TRM) e ressalta a sua importância para o cognitivismo: “Não há cognição sem representação”7 (p.26).

Representação, aqui, tem um signifi cado técnico. Não se refere à relação entre a mente e as coisas no mundo, mas apenas aos símbolos dentro do sistema fechado da máquina. Cognitivistas (Carnap, Chomsky, Fodor etc.) há muito sustentam que, ainda que possa existir um conteúdo semântico (referentes signifi cativos no mundo real) para a linguagem e o pensamento, é somente a sintaxe (operações formais) que é acessível à ciência cognitiva. Fodor (1982) chama isso de “solipsismo metodológico”. Conceitos são fundamentais para a TRM, pois são as unidades a partir das quais regras são criadas e sobre as quais as regras operam. Então, de certa forma, os conceitos perderam o seu papel inspirado na fi losofi a e adquiriram um papel tecnologicamente inspirado – uma tecnologia sólida, na qual as condições para programar os cálculos da máquina a partir das suas representações simbólicas se tornam a nossa teoria da mente.

O modelo mencionado acima pode ser chamado de cognitivismo fi losófi co ou stricto sensu. Pesquisadores empíricos estão habituados a ignorar o solipsismo metodológico do cognitivismo e tratar as representações cognitivas como um espelhamento do mundo ou, no mínimo, como uma recuperação das informações que vêm do mundo. Fora isso, esses pesquisadores concordam com o resto do modelo cognitivo. Chamaremos isso de cognitivismo funcional.

Já que os conceitos são o elemento central do modelo representacional cognitivista da mente, o cognitivismo necessita urgentemente de uma teoria de conceitos. Fodor (1998) diz que: “A TRM não é uma boa proposta se não houver uma teoria viável sobre conceitos”8 (p.39). Quais são, então, as teorias que podem dar conta dos conceitos?

7 [No cognition without representation.]8 [RTM is simply no good without a viable theory of concepts.]

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É consensual que atualmente existem três abordagens principais sobre os conceitos: (1) a chamada visão clássica, (2) a visão de estrutura gradual e/ou dos protótipos, e (3) as visões das várias teorias. Todas elas surgiram, como tantas outras abordagens, a partir das tradições fi losófi ca e psicológica. Embora nenhuma delas tenha a sua origem em uma visão cognitivista per se, o cognitivismo tem ou adotado ou criticado profundamente essas abordagens, já que precisa de uma teoria para os seus elementos centrais. Uma das alegações deste artigo é a de que o cognitivismo se viu forçado pelos próprios princípios a deturpar e distorcer cada uma dessas abordagens aos conceitos, e que as suas críticas a essas tradições recaem, na verdade, sobre a sua própria estrutura. Nas seções seguintes, apresentarei cada visão em termos de sua própria tradição, mostrarei como o cognitivismo se vê forçado a distorcer essas tradições, mostrarei tanto as limitações quanto as contribuições (às vezes nada óbvias) de cada visão e fi nalizarei apresentando uma alternativa não-cognitivista para as visões existentes.

I. Abordagens atuais sobre conceitos e categorias

A. A visão clássica

A visão clássica é a abordagem aos conceitos que tem origem na história da fi losofi a ocidental. Quando o homem começou a refl etir sobre a própria experiência por meio da razão, surgiram, como era de se esperar, questões sobre a confi abilidade dos sentidos e as bases do conhecimento, bem como questões mais específi cas sobre o fato de as categorias serem gerais, de as palavras possuírem signifi cados e de os conceitos na mente se relacionarem com categorias no mundo. Os gregos, e a maioria dos fi lósofos ocidentais depois deles, concordam que experiências particulares, conforme vão sendo adquiridas a cada momento através dos sentidos, não são confi áveis. Portanto, somente as categorias estáveis, abstratas, lógicas e universais podem atuar como objetos de conhecimento e de referência para os signifi cados das palavras. Essa é uma opção fi losófi ca de grande importância histórica. A cultura grega não foi a única a adotar o pensamento essencialista, que também foi compartilhado pela tradição sânscrita na Índia (CHAKRABARTI, 1975; RADHAKRISHNAN; MOORE, 1957). Porém, o pensamento dialético Chinês tomou um caminho um tanto diferente (NISBETT, et al., em revisão; Peng e Nisbett, 1999).

Para oferecer uma base apropriada para o conhecimento, Platão percebeu que teria de fazer uso de entidades metafísicas, as Formas, que fundamentam a experiência e que são aprendidas através da memória. Para Aristóteles, os universais estavam contidos nos objetos específi cos e eram aprendidos através

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das experiências com esses objetos. Os universais eram os elementos comuns a esses objetos específi cos, ou seja, um universal X é qualquer coisa que seja comum a ou compartilhado por todos os Xs. Cada objeto deveria ser classifi cado em categorias que compartilhassem as mesmas propriedades, e essas categorias deveriam ser subdivididas em gêneros e espécies de acordo com as propriedades que as diferenciassem. Uma das principais tarefas da ciência natural era dividir e classifi car os objetos naturais em gêneros e espécies dentro das categorias reais as quais esses objetos naturalmente pertenciam. O sistema Aristotélico é, em princípio, bastante conhecido. Os nossos dicionários são organizados a partir dele, para não dizer o nosso pensamento. Para fi ns de comparação, os primeiro dicionários chineses continham apenas sinônimos e o detalhamento analítico de ideogramas chineses (BAKER, não publicado).

A próxima grande escola que trata das categorias é chamada de Conceitualismo e é atribuída aos empiristas britânicos a partir de John Locke. Na verdade, o conceitualismo não é uma teoria oposta ao realismo grego, mas uma teoria com um enfoque diferente – de que modo, precisamente, a mente cria conceitos gerais? Locke afi rma que isso ocorre por um processo de abstração a partir de conceitos específi cos. Cada vez que uma pessoa se depara com um membro de uma categoria, ela exclui do seu conhecimento sobre essa categoria as propriedades que não são comuns a todos os seus membros, até restarem apenas propriedades necessárias e sufi cientes que identifi quem os membros dessa categoria. As discussões que se seguiram entre Locke, Berkeley e Hume diziam respeito à natureza da abstração mental resultante: se atribui (um tanto injustamente) a Locke a afi rmação de que essa abstração seria uma ideia ou imagem abstrata geral; a Berkeley, o argumento de que ela seria uma ideia específi ca que se torna geral ao representar coisas do mesmo tipo; e a Hume, a declaração (normalmente ignorada) de que ela defi nitivamente não seria uma ideia, mas simplesmente um hábito ou costume. Vejam até que ponto grande parte do pensamento empirista se assemelha ao Aristotélico na sua descrição geral dos conceitos e categorias.

A psicologia herdou da história da fi losofi a uma visão bastante específi ca sobre categorias. Para que funcionasse como uma base essencialista apropriada para o conhecimento, uma categoria deveria: (1) ser exata, não vaga – isto é, ter contornos bem defi nidos; e (2) ter atributos em comum que fossem condições necessárias e sufi cientes que identifi cassem os seus membros. A partir disso, concluía-se que (3) todos os membros de uma categoria deveriam ser igualmente legítimos quanto a sua participação na categoria. Ou eles possuíam as propriedades necessárias comuns ou não. As categorias e conceitos eram, então, vistos como conjuntos lógicos.

A visão dos fi lósofos sobre categorias se inseriu de modo explícito na psicologia da década de 1950, sob a forma de estudos sobre a aprendizagem

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de conceitos. Orientados pelo trabalho de Jerome Bruner e seus colegas (BRUNER; GOODNOW; AUSTIN, 1956), sujeitos eram instruídos a aprender categorias que eram conjuntos lógicos defi nidos por atributos explícitos, tais como vermelho e quadrado, combinados com regras lógicas, tais como e. O que se queria descobrir era como os sujeitos aprendiam quais atributos eram relevantes e quais regras os uniam. Na psicologia do desenvolvimento, as teorias de Piaget e Vygotsky eram combinadas com paradigmas de aprendizagem de conceitos para se estudar como os conceitos temáticos mal-estruturados das crianças evoluíam para o modelo lógico do adulto. Estímulos artifi ciais eram comumente usados em pesquisas experimentais em todos os níveis, estruturados em micro-mundos nos quais as crenças predominantes a respeito da natureza das categorias já estavam predefi nidas.

A versão cognitivista da visão clássica, segundo Fodor (1998), afi rma que conceitos são defi nições através das quais são transmitidas combinações equivalentes e substituíveis de símbolos. Um solteiro é um homem não-casado seria um exemplo prototípico. Máquinas cognitivas, de fato, operam por meio de combinações substituíveis de símbolos. Mas era realmente essa a noção de conceito nos postulados da visão clássica? Quando Aristóteles explicou os objetos em termos de gêneros e propriedades únicas, ele obviamente estava querendo descrever o seu conteúdo empírico. Através do paradigma de aquisição de conceitos-padrão da teoria da aprendizagem, os psicólogos tentaram descobrir como os seres aprendiam que atributos eram relevantes a um dado conceito e quais regras os uniam. Os sujeitos não eram instruídos a substituir uma combinação de símbolos por outra. Podia ser que as categorias fossem vistas como conjuntos lógicos, porém, elas eram conjuntos criados para refl etirem mapeamentos entre a mente e o mundo. Assim, um problema da interpretação cognitivista acerca da visão clássica sobre categorias como defi nições baseadas em conjuntos substituíveis de símbolos é que ela não descreve de fato a visão clássica. Mas será que os cognitivistas poderiam dizer que a visão clássica deveria ser assim?

Quando dizemos que uma pessoa possui ou entende um conceito, estamos dizendo que tudo o que ela possui é uma combinação substituível de símbolos? Essa questão se assemelha a outro debate, que nunca sai de moda, sobre a possibilidade de os computadores serem capazes ou não de pensar. Computadores operam por meio de combinações substituíveis de símbolos. Mas tomemos o famoso exemplo do quarto chinês de John Searle: um homem que não fala nem entende uma palavra de chinês está sentado em um quarto isolado. Frases em chinês são apresentadas a ele, que as verifi ca em um concordanciador e organiza os resultados obtidos. Isso é tudo o que ele faz. Seus resultados passam no teste de Turing, ou seja, são semelhantes às frases de alguém que entende chinês. O homem entende chinês? Ele está operando com conceitos e categorias

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do chinês? NÃO! O que esse homem está fazendo é justamente substituir uma combinação de símbolos por outra.

O exemplo do quarto chinês evoca de várias maneiras a nossa intuição a respeito dos conceitos. Um aspecto que parece essencialmente equivocado é o solipsismo. Outro aspecto equivocado é a natureza simplifi cada da substituição. Conceitos necessitam não apenas do nosso dicionário, mas de toda a extensão do conhecimento enciclopédico humano proveniente da sua experiência, e isso sem considerar a interação com o mundo material e social (para considerações iniciais a esse respeito, ver Dreyfus e Hall, 1982). A visão clássica sobre categorias pode não dar conta dessas necessidades (como será mostrado nas próximas seções), mas pelo menos levanta perguntas na esfera onde a história do pensamento ocidental só tem se preocupado em encontrar respostas.

Na verdade, nem os cognitivistas acreditam que uma defi nição por meio de combinações substituíveis de símbolos, dito assim de maneira tão direta, seja uma teoria de conceitos coerente. Esse tipo de explicação é de fato uma espécie de nominalismo, posição fi losófi ca que defende que as generalidades existem unicamente nas palavras. O nominalismo nunca foi levado a sério pela fi losofi a, que o vê como uma posição incoerente e fácil de ser contestada (WOOZLEY, 1967). Até mesmo Fodor, o arqui-cognitivista, não considera adequada essa explicação dos conceitos por meio de defi nições. De fato, o autor pensa que todas as teorias existentes acerca dos conceitos são “comprovadamente falsas, de maneira prática e radical, e algo drástico precisa ser feito a esse respeito”9 (FODOR, 1998, p. viii).

Então como é possível que cognitivistas como Fodor simplesmente achem natural a interpretação da visão clássica por meio de defi nições? Talvez seja porque os conceitos, no caso das máquinas, sejam combinações substituíveis de símbolos. Isso é tudo o que conseguem ser. E isso é bastante evidente quando se pensa nos sistemas computacionais baseados em regras da Teoria Representacional da Mente. Até onde as críticas de Fodor conseguem ser válidas, suas análises podem ser vistas mais como críticas que incidem sobre o próprio cognitivismo do que sobre a visão clássica de conceitos.

B. A visão de estrutura gradual ou dos protótipos

Considere a cor vermelha: cabelo vermelho é um exemplo tão bom da imagem que você faz de vermelho quanto um carro (vermelho) de bombeiros? Uma cadeira de dentista é um exemplo tão bom de cadeira quanto uma cadeira da sua sala de jantar? Perguntas desse tipo não fazem sentido em uma visão 9 [Radically and practically demonstrably, untrue, and that something drastic needs to be done about it.]

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clássica de categorias, onde uma coisa é ou não é membro de uma categoria, e onde todos os membros são equivalentes. Os desafi os que se lançam na visão clássica vêm da psicologia, a partir de estudos com categorias de cor (ROSCH, 1973). Categorias de cor não possuem quaisquer atributos distintivos obviamente analisáveis, uma estrutura formal ou contornos defi nidos, e possuem uma estrutura interna gradual em termos do quão típica de uma categoria as pessoas julgam determinada cor. Além disso, aqueles segmentos do espectro de cores que as pessoas apontam como os melhores exemplos das categorias dessas cores parecem possuir uma função específi ca. São os segmentos mais estáveis, são consensuais entre as culturas, e talvez sejam a origem fi siológica das categorias de cor (BERLIN; KAY, 1969; HARDIN; MAFFI, 1997; ROSCH, 1977). Outros tipos de categorias são estruturados de maneira semelhante?

Uma pesquisa bem abrangente determinou a essência de descobertas empíricas (Rosch, 1978, 1994). Em primeiro lugar, todas as categorias apresentam uma relação gradual entre os seus membros; ou seja, sujeitos avaliam de maneira fácil, rápida e signifi cativa o quão bem um determinado item satisfaz a sua ideia ou imagem da categoria à qual esse item pertence. Essas avaliações são a característica principal da visão de estrutura gradual ou dos protótipos. Note que esses julgamentos não são sobre probabilidade, mas sim sobre o grau de pertencimento dos membros. Esse julgamento da relação gradual entre os membros serve para os mais diferentes tipos de categorias: categorias sensoriais como vermelho, categorias semânticas como móvel, categorias biológicas como mulher, categorias sociais como profi ssões, categorias políticas como democracia, categorias formais que possuem defi nições clássicas como números ímpares, e categorias ad hoc de objetos como coisas que se deve tirar de casa em caso de incêndio.

O grau de pertencimento dos membros de uma categoria são de grande importância psicológica, pois está claro que tais medidas afetam virtualmente todos os grandes métodos de avaliação usados em pesquisas da psicologia. Discuto essa questão como uma forma de contestar o modo como o cognitivismo lida com a visão de estrutura gradual ou de protótipos, a qual será descrita abaixo. (Salvo indicações contrárias, os seguintes estudos são apresentados em Makman, 1989; Mervin e Rosch, 1981; Rosch, 1973, 1978, 1987; Rosch e Lloyd, 1978; ou Smith e Medin, 1981):

Aprendizagem: bons exemplos das categorias são aprendidos por sujeitos que participam de experimentos e adquiridos naturalmente por crianças antes dos exemplos ruins, e as categorias podem ser aprendidas mais facilmente quando exemplos melhores são apresentados primeiro – esses resultados têm implicações para a educação. Velocidade de processamento: quanto melhor for o exemplo de uma categoria, mais rapidamente os sujeitos serão capazes de avaliar se esse item pertence ou não a ela. Isso é importante porque o tempo de reação é normalmente

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visto como o caminho mais rápido para se desvendar os processos mentais. Expectativa: quando se apresenta aos sujeitos o nome de uma categoria antes de fazerem qualquer avaliação rápida sobre ela, o seu desempenho é favorecido pelos exemplos bons dessa categoria e prejudicado pelos exemplos ruins. Chamada pela psicologia de priming, essa descoberta tem sido usada para se argumentar (não sem controversas) que a representação mental de uma categoria é, em alguns casos, mais parecida com os exemplos bons do que com os exemplos ruins.Associação: quando são instruídos a listar os membros de uma categoria, os sujeitos colocam os melhores exemplos primeiro e com mais frequência do que colocam os exemplos ruins. Inferência: os sujeitos inferem mais rapidamente os membros de uma categoria a partir dos mais representativos para os menos representativos do que o contrário; e a representatividade dos itens interfere na avaliação feita em tarefas de lógica formal, tais como silogismos. Avaliações de probabilidade: a representatividade interfere profundamente nas avaliações de probabilidade (KAHNEMAN; SLOVIC; TVERSKY, 1982), o que é importante, porque se pensa que a probabilidade é a base das inferências indutivas e, portanto, da forma através da qual aprendemos sobre o mundo. Indicadores de estrutura gradual das línguas naturais: as línguas naturais possuem vários mecanismos que confi rmam e sugerem uma estrutura gradual, tais como palavras modalizadoras do tipo tecnicamente e realmente (LAKOFF, 1987; ROSCH, 1975). Avaliações de similaridade: exemplos não tão bons de uma categoria são considerados mais semelhantes aos bons exemplos do que o contrário. Isso vai de encontro à forma como a similaridade é tratada na lógica, em que as relações de similaridade são simétricas e passíveis de inversão.

Outras pesquisas contestam diretamente a alegação da visão clássica de que as categorias possuem características defi nidoras. Rosch e Mervis (1957) descobriram que quando os sujeitos são instruídos a listarem os atributos dos membros de uma categoria, várias dessas categorias apresentam poucos ou nenhum atributo em comum. Os atributos apresentavam antes semelhança por familiaridade (WITTGENSTEIN, 1953) do que uma estrutura necessária e sufi ciente.

Aqueles considerados os melhores exemplos de uma categoria conceitual são chamados de protótipos. Enquanto que alguns exemplos podem estar baseados em frequências estatísticas, como, por exemplo, os meios ou maneiras (ou estruturas de semelhança por familiaridade) para se alcançarem diversos atributos, outros parecem ser exemplos ideais que se tornam mais salientes por fatores como psicologia (bons exemplos de cores, bons exemplos de formas), estrutura social (presidente, professor), cultura (santos), objetivos (os alimentos ideais para uma dieta), estrutura formal (múltiplos de dez em um sistema decimal), teorias causais (sequências que “parecem” aleatórias) e experiências individuais (elementos vivenciados recentemente ou pela primeira vez, ou elementos que se tornam particularmente salientes por possuírem alguma carga emocional, por serem intensos, concretos, relevantes ou interessantes). Um dos

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aspectos mais convincentes dos protótipos, de um ponto de vista fi losófi co, é que, longe de serem abstrações de uma meia dúzia de atributos defi nitórios, eles parecem constituir eventos detalhados, imagísticos, sensoriais e totalmente corporifi cados que servem de ponto de referência em todos os tipos de práticas científi cas mencionados acima.

Uma descoberta bastante importante a respeito dos protótipos e da estrutura gradual é que eles são bastante afetados pelo contexto. Por exemplo, enquanto que um cão ou gato são vistos como animais de estimação prototípicos, um leão ou elefante são vistos mais como animais de circo prototípicos. Em um contexto padrão (sem especifi cação de contexto), café ou chá ou coca-cola podem estar listados como bebidas típicas, mas é mais provável que se escolha vinho em um contexto de jantar formal. Além disso, pessoas reconhecem bem a infl uência de uma categoria com estrutura gradual sobre categorias orientadas por algum objetivo ad hoc, tais como bons lugares para se esconder da Máfi a. Na verdade, a infl uência do contexto em uma estrutura gradual pode ser generalizada (BARSALOU, 1987).

Para a visão clássica, desde a sua origem no pensamento grego, se um objeto que faz parte do nosso conhecimento mudasse em cada circunstância, ele não seria um objeto do nosso conhecimento; e o signifi cado de uma palavra não pode mudar segundo as suas condições de uso. Uma das grandes qualidades da noção de traços distintivos para aqueles que a defendem era o fato de que esses supostos traços eram justamente aquilo que não mudava segundo o contexto. Barsalou defende que a infl uência do contexto mostra que os protótipos de cada categoria e a estrutura gradual não estão pré-armazenados na mente, mas que são criados de novo a cada momento, a partir de traços mais básicos ou de outras estruturas mentais. A grande fl exibilidade das categorias para se ajustar à infl uência do contexto pode ter implicações muito mais profundas.

Os cientistas cognitivistas defi nem a visão de estrutura gradual ou de protótipos como uma teoria estatística. Smith e Medin (1981) a chamam de visão probabilística. Fodor (1998) a defi ne como uma teoria estatística baseada “na probabilidade de algo que está inserido na extensão de um conceito ter a propriedade expressa por um determinado atributo”10 (p.92). Porém, limitar essa visão signifi ca perder o aspecto mais visionário, fi losofi camente falando, da estrutura gradual. Todas as pessoas, levando em conta todas as categorias conceituais, vêem os membros de uma categoria como tendo diferentes graus de representatividade, mesmo quando não há questionamentos ou variações estatísticas quanto à possibilidade de os itens serem ou não classifi cados como membros dessa categoria. Por exemplo, pessoas que classifi cam “8421” como um número ímpar, sem hesitar, também classifi cam “7” como um exemplo melhor da ideia que fazem da categoria número ímpar.

10 [how likely it is that something in the concept’s extension has the property that [a given] feature expresses.]

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Na verdade, o reconhecimento de diferentes graus de representatividade é tão universal que, por um capricho da lógica, esse tem sido o método usado para se refutar os impactos da estrutura gradual (GLEITMAN; ARMSTRONG; GLEITMAN, 1983). Além disso, como foi dito antes, muitos protótipos derivam de outras fontes que não a frequência estatística. Descrever uma estrutura gradual apenas em termos estatísticos signifi ca não levar em conta um dos desafi os básicos que a infl uência da estrutura gradual e dos protótipos tem tanto sobre a visão clássica quanto sobre o cognitivismo. Discutiremos depois por que o cognitivismo deve descrever uma estrutura gradual dessa forma.

Tanto cognitivistas funcionais quanto os stricto sensu são bastante críticos em relação à estrutura gradual e aos protótipos enquanto explicação para conceitos e categorização, até mesmo quando concordam com os resultados de experimentos. A única maneira legítima pela qual os protótipos conseguem representar os conceitos dentro do cognitivismo é no caso de o protótipo poder ser substituído por uma defi nição e ser manipulado do modo coerente. Será que os protótipos podem ser substituídos por traços defi nitórios dentro de um modelo de semântica formal capaz de explicar operações lógicas e linguísticas, tais como a sinonímia, a contradição e as categorias conjuntivas?

Isso é conhecido como componencialidade. Em um trabalho bastante importante, Osherson e Smith (1981) desenvolveram a teoria dos protótipos utilizando o princípio da lógica fuzzy, de Zadeh (1965), na qual as categorias conjuntivas são processadas por uma regra de maximização, e demonstraram que os protótipos não seguem essa regra. Por exemplo, o labiste, que não é nem um exemplo muito bom da categoria animal de estimação nem da categoria peixe, é um ótimo exemplo da categoria peixe de estimação. Isso fi cou conhecido como o “problema do peixe de estimação”. Sem dúvida, essa é mais uma crítica a um determinado modelo formal, a lógica fuzzy de Zadeh, do que à estrutura gradual ou dos protótipos. Não fi ca claro qual modelo formal, se houver algum, se faz adequado para uma estrutura gradual ou de protótipos; ou se há, de fato, alguma evidência empírica capaz de estabelecer a diferença entre modelos contraditórios, já que cada modelo de armazenamento sempre é apresentado ao lado de hipóteses complementares de processamento, que permitem que tal modelo satisfaça qualquer tipo de dado experimental (BARSALOU, 1990).

Por que o cognitivismo faz questão que os conceitos sejam composicionais dentro de modelos formais? Nos sistemas simbólicos do cognitivismo estrito senso, o indivíduo deve ser capaz de partir de animal de estimação e peixe, e chegar a peixe de estimação somente por caminhos semânticos – isto é, pela manipulação de símbolos formais, através de regras formais –, pois não pode haver uma semântica do mundo real equivalente na qual possamos confi ar. Mas esse indivíduo não é capaz de depreender o protótipo de peixe de estimação através da manipulação dos símbolos de peixe e animal de estimação. Portanto,

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ele não será capaz de transformar uma estrutura gradual em uma defi nição formal. Para o cognitivismo, essa evidência faz crítica à estrutura gradual ou dos protótipos; mas, mais uma vez, isso poderia servir como uma crítica contra o próprio cognitivismo.

Uma das maneiras pela qual o cognitivismo tem tentado chegar a um acordo com as evidências empíricas que favorecem a estrutura gradual ou dos protótipos é dividindo a categorização em conceitos fundamentais e heurísticos de processamento. Isso está presente em uma série de modelos para os quais o signifi cado real dos termos de uma categoria é a defi nição clássica à qual se unem uma heurística de processamento ou um procedimento de identifi cação capazes de explicar os aspectos da estrutura gradual (OSHERSON; SMITH, 1981; SMITH; SHOBEN; RIPS, 1974). Dessa forma, os números ímpares podem “possuir” tanto uma defi nição clássica quanto um protótipo. Isso é uma iniciativa arriscada, já que ela separa a teoria de qualquer referencial empírico. Dessa forma, o “sentido real” do termo de uma categoria pode se tornar um tipo de entidade metafísica explicável apenas pela lógica, ou uma entidade compatível apenas com um sistema cognitivo metodologicamente solipsista e artifi cialmente inteligente, mas não uma entidade que as nossas ciências empíricas provavelmente gostariam de adotar.

Em suma, as evidências que corroboram a estrutura gradual e os protótipos violam os dogmas tanto da visão clássica quanto dos cognitivismos funcional e estrito senso: (1) As categorias de estrutura gradual não possuem contornos bem defi nidos. Não é apenas uma questão de probabilidade o fato de alguns itens serem classifi cados como membros de uma categoria, já que, para muitas categorias, como cores, os indivíduos afi rmam que alguns itens fi cariam, de fato, entre categorias. (2) Muitas categorias não têm, e nenhuma categoria precisa ter, traços necessários e sufi cientes que levem um item a pertencer a uma categoria. Pelo contrário, os protótipos de uma categoria possuem grande riqueza de detalhes, tal como imagens completas e detalhes precisos de uma dada situação, os quais não são comuns a todos os membros dessa categoria. Resumindo, a ideia de traços essenciais, necessários e sufi cientes, parece irrelevante no que se refere a conceitos, quando esses são usados na realização da maioria das ações. (3) Os itens de uma categoria não são equivalentes em relação ao seu pertencimento à categoria, mas possuem níveis de pertencimento. Mais uma vez, isso não é simplesmente uma questão de probabilidade, já que as pessoas dirão, sem hesitar, que um membro de uma categoria é um exemplo melhor do que outro dessa categoria. Todas as curvas não são necessariamente distribuições de probabilidade. (4) Estruturas graduais não são sistemas formais, e os itens de uma estrutura gradual não necessariamente implicam ou motivam outro item na estrutura, e não há nada em uma estrutura gradual que precise ocupar o papel de combinações substituíveis de símbolos. As estruturas graduais e os

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protótipos não precisam respeitar um sistema formal, como a lógica fuzzy de Zadeh, para poderem existir. (5) As estruturas graduais e os protótipos, ainda que pertençam a um contexto padrão, são adaptáveis em outros contextos, no que diz respeito aos contextos mutáveis das situações cotidianas. Eles não podem estar estruturados por um solipsismo, seja metodológico ou não, já que devem levar em consideração as situações do mundo real, que estão sempre mudando. Pela mesma razão, não está claro como eles poderiam ser representacionais no sentido do cognitivismo funcional. Que elemento estável do mundo real, subjacente ou superfi cial, eles poderiam representar?

C. Teorias

A terceira abordagem aos conceitos que existe hoje se apresenta em termos de teorias. Existem, na verdade, dois grupos de especialistas dessas teorias, compostos de certa forma por uma grande diversidade de profissionais: psicólogos cognitivos de base cognitivista, que tratam principalmente de questões de categorização, e psicólogos do desenvolvimento, que pertencem à corrente da “teoria da teoria” e que tratam de mudança conceitual. O primeiro grupo (MEDIN, 1989; MEDIN; WATTENMAKER, 1987; MURPHY; MEDIN, 1985) tem usado a ideia de teorias principalmente para criticar pesquisas anteriores sobre categorização. Por via de regra, eles estabelecem uma relação de oposição entre as teorias baseadas em uma suposta semelhança, nas quais eles inserem a visão de estrutura gradual ou dos protótipos (e possivelmente todo o resto) e a sua nova visão de teorias. As críticas feitas às abordagens que levam em conta o aspecto da semelhança se baseiam no fato de que: (1) elas se valem da contagem de traços, mas não conseguem explicar esses traços; (2) a semelhança não pode ser explicada por modelos formais existentes (ou seja, Tversky, 1977); e (3) vários experimentos com protótipos e estruturas graduais mostram que o contexto é um fator signifi cante. Sendo assim, esse grupo defende que traços, semelhança e todas as descobertas científi cas sobre categorização são fruto e se explicam através de “teorias”. O fato é que nenhuma das explicações existentes possibilita um entendimento adequado sobre a natureza dos atributos, da semelhança ou do contexto – todos problemas antigos. Mas o que é essa visão das teorias, e como ela as explica?

O interessante é que o primeiro grupo de teóricos da teoria nunca esclareceu ou explicou o que quer dizer com teoria, e nunca, em toda a sua literatura, forneceu um único exemplo de uma teoria real a partir da qual teriam surgido conclusões, ou até mesmo uma única conclusão, sobre categorização. Tampouco há qualquer esforço em demonstrar como atributos, similaridade ou o contexto poderiam resultar das teorias, tanto dentro de teorias abstratas ou a partir de teorias específi cas.

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Essa teoria que vê as categorias como teorias é um novo conceito com fundamento ou apenas um grito de guerra? O que querem dizer com teoria? Seriam, por acaso, expressões diretas que podem ser trazidas à consciência? Um elemento do conhecimento de mundo? Um dicionário e enciclopédia completos? Uma expectativa ou um hábito? Qualquer coisa dentro da mente ou de um livro? Um contexto? A impressão que fi ca é que, para a abordagem da psicologia cognitiva que vê as categorias como teorias, hoje quase tudo pode servir como teoria, e que pode se recorrer à palavra teoria para explicar qualquer descoberta sobre similaridade, atributos ou contexto. Se o que está em evidencia são as limitações da percepção, fala-se então de teorias perceptivas (e se recorre à evolução) – algo como a proliferação dos instintos e impulsos nos primórdios da psicologia. É interessante notar que muitos dos argumentos usados para defender a visão de teoria (por exemplo, casos em que alguém precisa trazer o seu conhecimento de mundo para dentro de suas explicações) são exatamente o mesmo tipo de argumento usado na tradição fenomenológica Heideggeriana para atacar as teorias e defender a necessidade de se estabelecer uma base não teórica de hábitos e conhecimentos que sustentem as categorias e as atividades da vida humana.

Como pode uma visão tão pouco rigorosa ser tão atraente? Acredito que é porque a palavra teoria consegue evocar – e dar a impressão de satisfazer – duas visões de mundo realmente contraditórias. Por um lado, as pessoas (inclusive os psicólogos) sabem muito bem que na vida as coisas acontecem em um contexto muito maior do que aquele sugerido nos nossos experimentos em laboratório. A nossa experiência se apresenta sob a forma de conjuntos independentes que fazem sentido, não de unidades isoladas. Esses conjuntos abrangem: conhecimento de mundo, crenças (que geralmente não são organizadas em nada que se pareça com teorias coerentes), expectativas, desejos, hábitos, competências, intuição, o corpo, o funcionamento dos sentidos, conhecimento tácito, tudo que é inconsciente ou não-consciente, costumes, valores, o meio, e assim por diante. Por outro lado, acreditamos que o conhecimento científi co deva se dar através de estruturas delimitadas e objetivas (idealmente formais). A palavra teorias sugere tanto contexto quanto formalismos. Mas isso é uma ilusão. O contexto mais amplo de conjuntos que faz sentido não é composto por teorias, e o que chamamos de teorias está (como mostra os debates entre os fi lósofos da ciência) longe de poder ser descrito de forma defi nitiva. Se fosse feita qualquer tentativa de se cumprir a proposta das teorias, ela se realizaria dentro das mesmas limitações e estaria sujeita às mesmas críticas que faz a outras abordagens. A visão de teorias sustenta a ilusão de que é uma abordagem plausível apenas porque é vazia. Portanto, é bastante equivocada. No entanto, a popularidade das teorias é um indício de que as pessoas possuem

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intuições signifi cativas quanto a conceitos e contexto, a qual será explorada mais detalhadamente na parte II deste artigo.

Diferentemente dos psicólogos cognitivos, que falham em defi nir o que querem dizer com teoria, a corrente da “teoria da teoria” da psicologia do desenvolvimento (ver Gopnik e Meltzoff , 1997) descreve a noção de teoria de maneira bastante objetiva, como algo análogo às teorias científi cas, muito próximo aos paradigmas Kuhnianos, e defendem que o desenvolvimento cognitivo deve ser encarado como uma troca contínua de um paradigma que a criança possui por outro. O interesse que recai sobre os conceitos parte, em geral, do ponto de vista da mudança na teoria da criança (e não do pesquisador) a respeito do que seria um conceito. Quando conceitos são estudados, como, por exemplo, os táxons biológicos (CAREY, 1987; KEIL, 1979), o objetivo é mostrar que esses conceitos fazem parte de unidades teóricas mais amplas.

Fodor (1998), como representante do cognitivismo stricto sensu, defi ne a “teoria da teoria” como “holismo conceitual” e rejeita essa abordagem com o argumento de que, se um conceito é defi nido em termos da teoria de que faz parte, então a mudança conceitual que foi discutida pelos psicólogos é algo impossível, já que a ação de incluir um novo termo no sistema ou mudar o signifi cado de um termo que já está inserido nele alteraria o signifi cado de todos os termos desse sistema. De fato, uma máquina cognitiva programada com essa versão de holismo conceitual apresentaria essa mesma difi culdade. Na verdade, as teorias, para os especialistas do desenvolvimento, devem ser estudadas de diferentes maneiras, dependendo das necessidades de cada experimento. Um exemplo disso seriam arranjos, não fi rmemente estruturados, de afi rmações que expressam crenças, nos quais a mudança de uma crença (por exemplo, o que signifi ca estar vivo) resultaria na mudança de outras crenças (por exemplo, o que signifi ca estar morto) (SLAUGHTER; JAAKKOLA; CAREY, no perlo).

Fodor chamaria isso de uma demonstração incoerente da teoria da “teoria”. O que Fodor faz na sua última análise, e que qualquer cognitivista stricto sensu deveria fazer, é reduzir tanto a estrutura gradual ou de protótipos quanto as teorias a uma defi nição de conceito em termos de combinações substituíveis de símbolos. O cognitivismo precisa recorrer a isso, porque isso é tudo com que uma máquina cognitiva consegue trabalhar. Mesmo assim, como vimos anteriormente, isso é totalmente insatisfatório, até mesmo para os cognitivistas. Fodor (1989) admite o erro e tenta remediá-lo sem contrariar qualquer princípio da visão cognitivista de mundo, através de um novo conjunto de defi nições (para uma crítica a esse respeito, ver Rosch, 1999).

Vamos precisar de algo muito mais radical que isso para resgatar os conceitos, bem como a ciência cognitiva como um todo, do cognitivismo. É necessária uma profunda refl exão sobre mente, mundo, conceitos e a relação entre eles.

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II. Fundamentos para uma nova visão de conceito

A. Conceitos são a ligação entre mente e mundo

Entendemos a mente e o mundo como coisas separadas. Da mesma forma, entendemos o corpo (ou organismo) e o meio como coisas separadas. Isso porque os encaramos a partir de um determinado ponto de vista. A partir de outro ponto de vista (Rosch, no prelo), isso estaria claramente equivocado.

O mundo como o percebemos ou categorizamos é, recorrendo à terminologia usada por Skarda (neste volume), uma rede ou um conjunto contínuo, em que aquele que percebe/categoriza e aquilo que é percebido/categorizado são extremos de um mesmo evento. No nível da consciência, esses extremos parecem de fato coisas separadas. A primeira tarefa dos conceitos é reunir esses extremos em unidades funcionais, ainda que aparentemente separadas. Visto dessa maneira, os conceitos estão, em parte, restabelecendo uma situação mais autêntica e, portanto, potencialmente mais científi ca do que do modo como geralmente encaramos o mundo.

O primeiro cientista cognitivo a sugerir algo parecido com essa visão foi J. J. Gibson. “Perceber o mundo é também se co-perceber. A informação ótica que defi ne o indivíduo está associada à informação ótica que defi ne o meio. Uma não pode existir sem a outra. Os domínios supostamente divididos do que é subjetivo e do que é objetivo são, na verdade, focos diferentes de atenção. O dualismo que separa o observador e o meio é desnecessário. O tipo de informação que emerge da percepção do ‘aqui’ é o mesmo que emerge da percepção do ‘lá’, e uma estrutura contínua se estende entre elas”11 (GIBSON, 1979, p.116). Isso parece ser mais óbvio quando percebemos a nossa localização. Uma pessoa só consegue saber onde está quando sabe onde estão as outras coisas, e vice versa; isto é, os julgamentos que uma pessoa faz sobre a própria localização e a localização dos pontos de referência do meio são aspectos do mesmo domínio de informação.

A disciplina em expansão da psicologia ecológica possui diversas provas empíricas de que esse fato afeta o comportamento (ver Neisser, 1993). Da mesma forma, as interações entre pessoas são determinadas, vivenciadas e realizadas de forma interdependente. Isso é chamado de intersubjetividade, que é também a força propulsora de muitas pesquisas recentes (TREVARTHEN, 1993; ver também Rosch, 1996). Em nível micro, Skarda (neste volume) mostra, de forma detalhada e bastante clara, como a percepção dual consegue emergir do domínio contínuo de um evento de percepção. Jarvilehto (1998a, 1998b) defende

11 [To perceive the world is to coperceive oneself... Th e optical information to specify the self... accompanies the optical information to specify the environment... Th e one could not exist without the other... Th e supposedly separate realms of the subjective and the objective are actually only poles of attention. Th e dualism of observer and environment is unnecessary. Th e information for the perception of ‘here’ is of the same kind as the information for the perception of ‘there’, and a continuous layout of surfaces extends from the one to the other.]

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a necessidade de se reconceitualizar a relação entre organismo e meio como um sistema único, tanto em nível micro (neurológico) quanto em nível macro (comportamental). No entanto, no nível consciente da percepção, é evidente que aquele que percebe e o mundo percebido são vistos como coisas diferentes e separadas – por isso que existem os conceitos.

Todas as abordagens aos conceitos e categorias discutidas anteriormente tiveram de enfrentar a questão sobre como reunir aquele que percebe/categoriza e o mundo percebido/categorizado. Vejamos quais são os argumentos: o mundo contém universais reais que o indivíduo ciente recupera ou aprende; ou o mundo contém objetos categorizados (extensão de categoria), ao passo que a mente ciente contém os conceitos; ou o mundo e o indivíduo consciente juntos criam saliências que se tornam protótipos, ao redor dos quais as categorias são formadas; ou o mundo e o indivíduo consciente juntos criam situações em que ocorrem categorizações fl exíveis; ou o mundo funciona de tal forma que o indivíduo consciente o mapeia através de teorias; e assim por diante. Todas essas explicações compartilham do mesmo pressentimento básico, que diz que são os conceitos que unem o par mente-mundo. Somente o cognitivismo estrito senso, com o seu solipsismo metodológico, nega tal pressentimento, ou pelo menos nega que a ciência possa partir dele.

Conclusão A. Conceitos não são representacionais

Já que os aspectos subjetivo e objetivo dos conceitos e categorias emergem juntos como pontos diferentes do mesmo ato cognitivo e fazem parte do mesmo domínio de informação, eles já estão unidos desde o início. Eles não precisam fi car ainda mais unidos através de uma teoria representacional da mente, como aquela do cognitivismo funcional, e não podem ser separados pelo solipsismo da teoria representacional da mente, proposta pelo cognitivismo estrito senso. Conceitos e categorias não representam o mundo dentro da mente; eles são apenas uma parte integrante do conjunto mente-mundo, em que a consciência da mente (de se ter uma mente que vê e pensa) é um extremo, e os objetos da mente (como objetos visíveis, sons, pensamentos, emoções etc.) são o outro extremo. Conceitos – vermelho, cadeira, medroso, delicioso, tatu e todo o resto – unem, de maneira tão indissolúvel e através de tantos modos funcionais diferentes, a consciência de ser ou ter uma mente com a consciência dos objetos da mente.

Conclusão B. Conceitos e categorias existem apenas em situações complexas reais

Não importa o quão abstrato e universal um conceito possa parecer (raiz quadrada, por exemplo); na verdade, esse conceito somente ocorre em situações

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concretas bem particulares. Situações reais são eventos completos, ricos em informação. Ninguém fi ca parado admirando uma árvore qualquer como acontece no caso dos fi lósofos; há sempre um contexto complexo, tão rico, que se acredita que nunca poderá ser totalmente defi nido (SEARLE, 1983). Situações/contextos são peças unidas de mente-mundo que dizem respeito a formas completas de vida. A infl uência do contexto é geralmente estudada em pesquisas da psicologia apenas como um fator negativo, um instrumento que invalida o experimento ou a teria de alguém. Mas pode ser que os contextos e situações sejam a unidade que as pesquisas sobre categorização realmente devam estudar.

Conclusão B-1. Conceitos e categorizações nunca ocorrem isoladamente

Os conceitos só existem como partes de uma rede de sentidos viabilizada tanto por outros conceitos como por atividades vitais relacionadas entre si. Tomemos o conceito grande. Ele só tem sentido em relação a pequeno. Além disso, sabemos que uma pulga grande é menor que um elefante pequeno. As pessoas que elaboram os verdadeiros sistemas de inteligência artifi cial e de interpretação de histórias sabem que, para se ensinar a uma máquina o signifi cado de uma palavra, é necessário ensinar a ela o signifi cado de tantas outras palavras. O mesmo acontece com essas outras palavras, uma explosão exponencial que só pode ser contida por mecanismos artifi ciais. E palavras por si só não bastam. Procure uma palavra estrangeira em um dicionário estrangeiro. A defi nição não servirá de nada se você não souber a língua em questão.

Ensinar o signifi cado de uma palavra é o mesmo que ensinar à máquina diversos fatos, ou seja, a parte enciclopédica do problema. Como foi dito antes, é o aspecto de inter-relação dos conceitos e da noção de mundo que concede um caráter aparentemente plausível à visão de teorias. Mas a rede inter-relacionada de compreensão não está delimitada por teorias determináveis. Os fatos, assim como as palavras, exigem muitos outros fatos. Que eles devem ser muitos mesmo está dito na alegação ceteris paribus de Searle: quando você pede um hambúrguer, não especifi ca que não quer que ele venha embalado em acrílico, e nem que ele não tenha um quilômetro de comprimento..., e uma infi nidade de suposições sobre signifi cado e contexto que nunca podem ser defi nidas formalmente. Além disso, com todas as informações com as quais são abastecidas, as máquinas de interpretação de narrativas ainda fazem um trabalho bem pouco efi ciente. Elas não entendem o sentido das fábulas. Isso acontece porque os conceitos (e o resto do raciocínio humano) não são per se informativos em nível abstrato. Eles são partes de um todo.

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Conclusão B-2. Conceitos participam das situações, não servem para identifi cá-las

O que uma coisa é já está predeterminado como parte de toda a situação mente-mundo na qual ela existe. A função básica dos conceitos não é identifi car as coisas (e nem representá-las). Não é tarefa dos conceitos fazer com que falemos para nos mesmos o tempo todo: “Aquele objeto lá tem quatro pernas e late. Ele deve ser um cão!” Mais que isso, os conceitos fazem parte das situações de diversas maneiras fl exíveis. Muitas pesquisas experimentais sobre conceitos e categorias, e com certeza a maioria dos modelos, afi rmam que o que deve ser explicado, discutido ou representado é a função de identifi cação. Não há dúvidas de que podemos realizar atividades específi cas de identifi cação (como fazer um teste de botânica, jogar Twenty Questions12 ou participar de um experimento de aprendizagem de conceitos), mas essas atividades são vistas mais como jogos de linguagem (como em Wittgenstein, 1953) do que como uma atividade conceitual prototípica. De modo semelhante, existem formas representacionais particulares, como desenhos arquitetônicos e coisas parecidas. Até mesmo a criação de sistemas formais pode ser vista por algumas culturas como uma tarefa que mereça prêmio e recompensa em algumas situações.

Já que os conceitos são baseados em situações e são funções participativas e não de identifi cação, as defi nições podem ser vistas sob uma nova perspectiva. Uma das situações com as quais as pessoas na nossa cultura se deparam é quando lhes é perguntada a defi nição de um conceito. Nessa situação, todo o histórico das práticas, noções e instruções formais com que fomos criados entra em jogo, e a resposta correta geralmente é uma defi nição de categoria aristotélica clássica. Esse é outro tipo de jogo de linguagem. “Defi nição” na perspectiva da estrutura gradual e de protótipos pode ter um papel diferente. Os protótipos com suas informações e imagens complexas e não-distintivas podem indicar, em vários níveis diferentes, possíveis formas de se localizar e se mover em situações complexas.

A importância das situações vai além das pesquisas sobre categorização. Porque mente e mundo somente ocorrem como aspectos combinados de situações complexas reais, essas situações são as unidades dentro das quais existem as interpretações, emoções e motivações humanas. Por exemplo, casos enigmáticos que envolvem a famosa falta de força de vontade são aqueles em que a motivação não passa de uma situação a outra. Situações também são o campo das ações (uma velha questão na psicologia da personalidade; ver Buss e Cantor, 1989). Sendo assim, as situações são, sem dúvida, as unidades que

12 Jogo em que um participante deve descubrir o objeto em que outro jogador está pensando, fazendo até vinte perguntas de sim ou não. (Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Twenty_Questions)

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exigem um estudo na psicologia em geral. Como? O que é uma situação? Que tipos de situação existem? Como as situações se relacionam e se classifi cam? Como elas se estruturam em formas de vida? E de que maneira os conceitos e categorias se relacionam com tudo isso?

Porque os conceitos e categorizações desempenham um papel essencial na ligação entre mente e mundo e na exposição dos contextos situacionais, eles podem oferecer um ponto de partida para o estudo das situações. Em vez de perguntarmos como as categorias podem ser universais ou como os conceitos podem representar o mundo de fora na mente, que é interna, podemos perguntar, em primeiro lugar, de onde vêm as categorias e os sistemas categóricos. Por que as cadeiras representam uma categoria diferente de mesas e sofás? Por que cadeira parece mais o nome real desse objeto do que móvel, objeto material ou cadeira de escritório? Por que a categoria cangurus que pesam entre 0.6 e 1.3 quilos não parece ser uma categoria nem básica, nem coerente e nem provável? Para o cognitivismo stricto sensu e a visão clássica, as categorias também poderiam ser arranjos aleatórios de atributos e, de fato, foram classifi cadas assim em tarefas tradicionais de aprendizagem de conceitos realizadas em laboratório. Na medida em que o cognitivismo funcional se preocupa apenas com questões de representação, ele não é capaz de fornecer nenhuma pista que leve às condições ecológicas de formação das categorias do mundo real (com exceção do pouco rigor de sempre em relação à teoria da evolução em geral).

Uma tentativa de abordar essas questões (ROSCH, et al., 1976) propôs que, sob condições naturais, existe uma grande estrutura de relações entre percepções, ações e atividades vitais, e que as categorias são formadas para mapear de forma plena essa estrutura. No que diz respeito às taxonomias de objetos comuns, os autores dessa proposta chamaram esse nível de nível básico, mostraram que esse é o nível padrão a partir do qual as categorias são interpretadas, e apresentaram indícios de que ele possui prioridade linguística, de percepção e de desenvolvimento. Visto que os objetos são “peças” das situações, será que uma pesquisa como essa é capaz de fornecer pistas que levem a um nível básico de categorização das situações? (Ver Cantor, Mischel e Schwartz, 1982; Rifk in, 1985; Rosch, 1978). Será que conceitos ricos em informações poderiam funcionar como simuladores de situações? (BARSALOU, no prelo; KAHNEMAN et al, 1982)? Existem outras abordagens das situações que conseguem situar os conceitos em seu meio natural? O cognitivismo não consegue lidar com essas perguntas, tampouco pode fazê-las.

C. Regras “causais” para as unidades mente-mundo não-representacionais

Quando mente e mundo são vistos como coisas distintas, a efi ciência causal e explicativa é atribuída ou à mente ou ao mundo. Os acontecimentos no

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mundo podem ser considerados estímulos aos quais o organismo ou a pessoa respondem, ou a mente pode ser vista como a fonte de desejos, intenções, teorias e ações em relação às coisas no mundo. Colocar esses dois elementos em extremos opostos nos leva a teorias e pesquisas científi cas que entram e saem de moda, mas que não evoluem. Na melhor das hipóteses, haverá quem diga que mente e mundo interagem. A nova visão exige uma refl exão acerca de como queremos representar causalidade e previsibilidade na sua totalidade. A mente e o mundo existem juntos em uma série de situações que são, de certa forma, legítimas e previsíveis. Queremos ter a capacidade de descobrir as leis que as legitimam, e de encontrar um nível de descrição que não transforme as ações humanas em algo mecânico, como a engenharia, e nem em algo puramente mental, como a fantasia.

A psicologia ecológica de Gibson se deparou com um problema semelhante. A sua ótica ecológica foi acusada de ser um modo avesso de inserir o meio dentro da cabeça do organismo. Vejamos como ele evita sair de cima do muro quando aborda os movimentos da mão humana: “O movimento das mãos não é uma resposta a estímulos... Será que a única explicação seria pensar nas mãos como instrumentos da mente? Piaget, por exemplo, parece sugerir, às vezes, que as mãos são ferramentas da inteligência da criança. Mas isso é o mesmo que dizer que a mão é uma ferramenta da criança interior... Isso é, sem dúvida, um equívoco. A explicação não pode voltar ao mentalismo. Não devemos pensar nas mãos como algo acionado ou comandado, mas sim como algo controlado”13 (GIBSON, 1979, p. 235). Gibson está tentando desenvolver uma análise da percepção e da ação que dê conta apenas do nível da descrição funcional entre o sujeito e o objeto. Ele não tem seguidores nessa linha. Enquanto que os pesquisadores têm se concentrado em desenvolver as suas ideias sobre invariâncias de ordem superior (que poderiam ser estudadas sem se alterar o arranjo mental do indivíduo), pouco tem sido feito para se implementar um novo tipo de descrição.

D. Inovação

As máquinas cognitivas são limitadas. Quando uma máquina apenas manipula combinações de símbolos, trocando uns pelos outros, tudo que acontece fica armazenado, sob alguma forma. No final das contas, esses acontecimentos são armazenados pelo programador humano. As descrições dos conceitos e categorias nos sistemas do cognitivismo formal que operam 13 [Th e movement of the hands do not consist of responses to stimuli... Is the only alternative to think of the hands as instruments of the mind? Piaget, for example, sometimes seems to imply that the hands are tools of a child’s intelligence. But this is like saying that the hand is a tool of an inner child... Th is is surely an error. Th e alternative is not a return to mentalism. We should think of the hands as neither triggered nor commanded but controlled.]

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através de regras não admitem inovação. As situações reais nas quais os conceitos e categorias atuam são únicas e infi nitamente diferentes umas das outras. O cognitivismo funcional consegue apenas conceber conceitos quando reage a umas poucas semelhanças entre as situações para desenvolver conceitos esquemáticos próprios da visão clássica. Sob essa perspectiva, os conceitos não são representações, mas sim elementos funcionais que fazem parte de situações completas. Sendo assim, os conceitos permitem que haja inovação das próprias situações, e isso pode levar a verdadeiras surpresas, aprendizados e invenções.

E. Plano de fundo não conceitual

Os conceitos existem somente em relação a um plano não conceitual. Não podemos nem cogitar de falar de conceitos e conceitualizações sem levar em conta aquilo que eles não são. Todos os modelos, que não o cognitivismo, abrem algum espaço e tentam, ao menos, abordar o que é não-conceitual. Alguns exemplos são: o saber como versus o saber que; a formação de hábitos e práticas de Heidegger; a experiência particular com aquilo que se conhece por qualia; o conhecimento baseado no corpóreo; o ceterus paribus de Searle; a intuição; a experiência que envolve todas as formas de arte; a inexplicável experiência do amor, da tristeza, das operações matemáticas, das religiões etc. Mas para o cognitivismo, interessam apenas os conceitos. Não há como um sistema cognitivista lidar com o que seja não-conceitual, ainda que seja justamente nessas experiências que as pessoas encontrem sentido e integridade para as suas vidas. Para o cognitivismo, essas coisas devem ser colocadas em outra esfera, onde elas serão vistas como algo que não existe ou como algo que não pertence à ciência cognitiva. Na nova visão que se propõe aqui, o que é não-conceitual é parte essencial das situações de mente-mundo, e talvez de todas as situações que existem. Nenhuma ciência que trata da existência humana pode se deixar excluir de imediato aquilo que é mais signifi cativo para as pessoas.

Conclusões

Os sistemas cognitivos são feitos de conceitos. Se o cognitivismo não consegue dar uma explicação adequada para esses seus elementos básicos, temos aí um problema. Tentei mostrar como o cognitivismo parece fazer uma leitura equivocada das teorias e pesquisas anteriores que tratam dos conceitos, e como ele não consegue dar conta dos fatos fundamentais a respeito desses elementos. Apresentei as bases para uma nova visão sobre conceitos e categorias, a qual deverá inserir os seus estudos em um universo real (e não em um universo fantástico de vacas esféricas). A lógica dos conceitos e categorias deve confi gurar um sistema

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lógico aberto, e não fechado. Só então o estudo sobre conceitos poderá ser salvo das garras improdutivas das defi nições e combinações substituíveis de símbolos e se tornar uma ciência legítima do conhecimento humano.

Notas

1. Veja que, no inicio, lanço mão dos termos mente e mundo como são geralmente usados e tento levar o leitor a um entendimento diferente (e comprovadamente melhor) desses conceitos. Qualquer leitor que, em vez disso, sinta a necessidade de recorrer a defi nições clássicas de mente, mundo, organismo, meio, consciência etc. deve interromper a leitura aqui e retornar às explicações feitas na primeira parte deste artigo.

2. Perceber algo como sendo uma cadeira ou como sendo vermelho é tanto um ato de percepção quanto de categorização. Em um sentido mais amplo, cognição e percepção podem estar muito mais próximos do que querem admitir as teorias em voga hoje, particularmente o cognitivismo (ver, por exemplo, Barsalou, no prelo).

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A semântica de Frames como modelo para a descrição da polissemia e da estrutura sintática

dos verbos de movimento do inglês e do alemão na lexicografi a computacional contrastiva1,2

Hans C. Boas3

Tradução: Larissa Moreira Brangel4

Revisão da tradução: Ana Flavia Souto de Oliveira5 e Dalby Dienstbach Hubert6

Revisão técnica: Félix Bugueño Miranda7

  O presente artigo aborda a questão de como lidar com a polissemia verbal

sob um ponto de vista contrastivo. Através do exame da distribuição sintática e semântica dos argumentos de um determinado número de verbos de movimento do inglês e do alemão, pretendo mostrar a utilidade da Semântica de Frames de Fillmore (1982) na descrição dos padrões de realização do argumento verbal entre línguas. Deste modo, mostraremos que as descrições baseadas na Semântica de Frames oferecem um modo unifi cado de relacionar o alcance total das unidades lexicais8 que denotam o mesmo conceito semântico. Além dessas considerações teóricas, serão discutidas as aplicações práticas da abordagem da Semântica de Frames à organização lexical.

1 A pesquisa aqui apresentada só foi possível devido a uma parceria de pós-doutorado do “Deutscher Akademischer Austauschdienst” (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico) na modalidade “Gemeinsames Hochschulprogramm III von Bund und Ländern” para o desenvolvimento de pesquisa com os membros do projeto FrameNet (http://www.icsi.berkeley.edu/~framenet) (NSF Grant No. IRI-9618838, P.I. Charles Fillmore) do International Computer Science Institute em Berkeley, California.2 Traduzido com a permissão do autor a partir do texto em inglês BOAS, Hans C. Frame Semantics as a framework for describing polysemy and syntactic structures of English and German motion verbs in contrastive computational lexicography. Proceedings of the Corpus Linguistics 2001 Conference. Technical Papers, Vol. 13. Lancaster, UK: University Centre for computer corpus research on language, 2001.3 University of Texas, Austin (Estados Unidos da América). 4 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS.5 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS.6 Universidade Federal Fluminense, RJ.7 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS 8 Uma unidade lexical é uma palavra em uma de suas signifi cações.

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Hans C. Boas

 1 A polissemia dos verbos de movimento do inglês e do alemão 

As informações em (1) – (2) mostram algumas das signifi cações associadas aos verbos de movimento do inglês run [correr] e walk [caminhar] expressos em termos de  padrões distintos de realização do argumento sintático. Em (1a), run é usado em um sentido Self-motion [movimento próprio] para descrever uma situação em que o Self-mover [a pessoa que se move] (Julie) chega a uma Meta (the store) como resultado de seu próprio controle sob o seu movimento9. Em (1b), run é usado com o sentido de um Movimento Causado (Caused-motion) para descrever uma situação em que um Agente (Julie) faz com que o Tema (Pat) chegue em um local, neste caso, uma Meta (off the street).   (1) a. Julie ran to the store. [Julie correu para a loja]

b. Julie ran Pat off the street. [Julie mandou Pat sair para a rua] (2) a. Rod walked to the door. [Rod caminhou até a porta]

b. Rod walked Melissa to the door. [Rod levou Melissa até a porta] 

A semântica do verbo walk em (2a) é similar à semântica do verbo run em (1a), pois descreve o movimento de um Self-mover [a pessoa que se move] (Rod) em direção a uma Meta (the door). Seguindo a terminologia desenvolvida por Johnson et al. (2001), classifico os usos de run e walk em (1a) e (2a) como Self-motion [movimento próprio]. O verbo walk difere do verbo run em dois aspectos. Primeiramente, o tipo de movimento expresso por walk tem uma natureza mais lenta que o expresso por run10. Em segundo lugar, a semântica do verbo walk em (2b) difere da semântica do verbo run em (1b) em termos de contato entre os dois participantes do evento e da relação entre eles. Ou seja, enquanto run em (1b) incorpora uma noção de força, em (2b) não. Em contraste com a semântica de Movimento Causado (Caused-motion) atribuída a run em (1b), a semântica Cotheme [Tema Concomitante] associada ao uso do verbo walk em (2b) implica que os dois participantes do evento (isto é, os elementos do frame), Rod (o Self-mover) e Melissa (o Cotheme), começaram a caminhar juntos, a partir de uma Origem comum não mencionada, ao longo de uma Trajetória também não mencionada, em direção ao seu destino final, a Meta (to the door).

Na língua alemã, os tipos básicos de situações descritas pelos verbos run e walk em (1a) e (2a) são tipicamente expressos pelos verbos rennen e gehen,

9 Para fi ns de clareza, os nomes dos elementos de frame (i.e., papéis semânticos) e dos frames semânticos estão em letra maiúscula.10 A diferença de velocidade entre run e walk é classifi cada por Levin (1993, p.265) como uma diferença no modo de se movimentar. Isso leva a autora a classifi car run e walk como “verbos de modo de movimento”.

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respectivamente. (3a) mostra que a signifi cação básica de Self-motion em rennen é a tradução equivalente da signifi cação básica de Self-motion em run em (1a). Note, no entanto, que apesar da signifi cação básica de Self-motion em run mostrar uma sobreposição semântica e sintática considerável com as signifi cações básicas de Self-motion em rennen, essa sobreposição não ocorre entre run em (1b) e rennen em (3b).

(3) a. Tina rannte zum Geschäft .Tina ran to the store‘Tina ran to the store.’ [Tina correu para a loja]

b.*Tina rannte Enno von der Straße ab.Tina ran Enno from the street off [*Tina mandou Enno da rua para fora] 

c. Tina drängte Enno (beim Rennen) von der Straße ab.Tina pushed Enno (while running) from the street off  [Tina empurrou Enno da rua para fora (enquanto corria)]Tina pushed Enno off the street (while running).’ [‘Tina empurrou Enno da rua (enquanto corria).]

  Uma comparação entre a signifi cação do Movimento Causado associada

ao verbo run em (1b) e a frase (3b) mostra que o verbo em alemão rennen não é convencionalmente associado à signifi cação de Movimento Causado. O fenômeno exemplifi cado  pela distribuição de run e de rennen em (1b) e (3b) é um caso que tem sido chamado de “divergência” [divergence] em estudos recentes sobre tradução automática (cf., por exemplo, Dorr (1990) e Heid (1994)). As divergências ocorrem quando línguas diferentes usam meios diferentes para expressar uma dada signifi cação. No caso do verbo alemão rennen, signifi ca que a tradução equivalente da signifi cação de Movimento Causado associada ao verbo inglês run em (1b) é expressa por um tipo diferente de verbo em alemão, neste caso, o verbo abdrängen no exemplo (3c).

Uma comparação detalhada do significado de run como Movimento Causado em (1b) com o signifi cado isolado de abdrängen em (3c) mostra que a semântica dos dois verbos não apresenta uma sobreposição exata. Ou seja, abdrängen sem especifi cações adicionais não codifi ca o modo como o Tema (i.e., Enno em (3c)) foi induzido a mover-se até o seu ponto fi nal. A informação a respeito do modo como a atividade de Movimento Causado ocorreu deve ser fornecida por meio da expressão beim Rennen.

A comparação entre as frases nos exemplos (1) e (3) mostra que os verbos em inglês e em alemão podem se diferenciar no que diz respeito ao modo como a semântica do Movimento Causado é lexicalizada. Enquanto o inglês pode dar conta dos seus verbos de movimento com um frame sintático específi co para expressar a semântica do Movimento Causado, o alemão não conta com essa

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opção em rennen. A língua fornece um tipo diferente de verbo para expressar o Movimento Causado e deixa aberta a opção de especifi car o modo como a ação aconteceu. Baseado na Terminologia de Talmy (1985) sobre o estudo das expressões de movimento, me refi ro ao tipo de realização da semântica do Movimento Causado exemplifi cada pelo verbo run em (1b) como uma semântica construction-framed. Ou seja, o conceito semântico abstrato de Movimento Causado em (1b) é lexicalizado em termos de um frame sintático específi co de construção que ocorre com o mesmo verbo que o sentido básico, i.e., run. O verbo alemão abdrängen em (3c) é um exemplo do que chamo de semântica verb-framed. Nesse caso, a semântica do Movimento Causado não é lexicalizada em termos de um frame sintático específi co que ocorre com a mesma unidade lexical que expressa o sentido básico. Ao invés disso, trata-se de um conceito lexicalizado inerente à semântica de uma unidade lexical diferente, nesse caso, abdrängen.11

Voltando para os equivalentes de tradução em alemão das duas signifi cações de walk no exemplo (2), note que o uso de gehen em (4a) exibe o mesmo signifi cado básico de Self-motion que walk em (2a). Uma comparação entre (2a) e (4a) mostra que, ao contrário de walk, que é associado a uma semântica Cotheme do tipo construction-framed, gehen não exibe esta característica. Ao invés disso, a língua alemã obriga o uso de um verbo diferente, begleiten, em (4c), para expressar a semântica Cotheme exibida pelo verbo walk em (2b).

(4) a. Bernd ging zur Tür.Bernd walked to the door‘Bernd walked to the door.’ [Bernd andou até a porta]

b. *Bernd ging Anna zur Tür.Bernd walked Anna to the door [Bernd levou Anna até a porta]

c. Bernd begleitete Anna zur Tür.Bernd accompanied Anna to the door‘Bernd accompanied Anna to the door.’ [Bernd acompanhou Anna até a porta]

A diferença entre os padrões de lexicalização da semântica Cotheme em (2) e (4) mostra propriedades semelhantes às diferenças nos padrões de lexicalização da semântica de Movimento Causado observadas em (1) e (3). Ou seja, enquanto a semântica Cotheme é lexicalizada em termos de uma semântica construction-framed com o verbo walk, a língua alemã prefere lexicalizar o equivalente de tradução em termos de uma semântica verb-framed, através do emprego do verbo begleiten (cf. (4c)).

11 Para ser mais preciso, a semântica de Movimento Causado já está lexicalizada no verbo alemão drängen. Neste caso, o prefi xo separável ab serve como pré-verbo responsável por especifi car o caminho e a meta da semântica de Movimento Causado.

Hans C. Boas

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Esta seção mostrou que os verbos de movimento do inglês e do alemão podem se diferenciar no que diz respeito ao modo como os conceitos semânticos abstratos são lexicalizados. Foi mostrado que os verbos de movimento do inglês e do alemão exibem tipos diferentes de redes polissêmicas, i.e., não são todos associados a uma mesma quantidade de diferentes conceitos semânticos. A próxima seção aborda a questão da descrição das similaridades e diferenças exibidas pelos verbos run, walk, rennen e gehen com uma série de recursos que permitem abstrações linguísticas entre línguas entre diferentes padrões de lexicalização.

2 O papel da Semântica de Frames na lexicografi a contrastiva

A maior parte das abordagens tradicionais feitas às descrições lexicográfi cas leva em consideração a noção de palavra-entrada como central para a organização dos dicionários e listam as diferentes signifi cações associadas a uma palavra-entrada em uma entrada lexical. Para cada um dos signifi cados associados a uma palavra-entrada, os dicionários tradicionais listam informações relativas ao signifi cado, uso, registro etc. (cf. ATKINS 1995, p.26). Enquanto essa abordagem feita à documentação da polissemia de unidades lexicais tipicamente se baseia em um exemplo para cada signifi cação de uma palavra, a fi m de exemplifi car o contexto em que ela é usada, exploro aqui um tipo alternativo de organização lexical para estruturas polissêmicas bilíngues como as ilustradas nos exemplos (1) – (4). Considerando as idéias de estudos prévios sobre organização lexical (FILLMORE; ATKINS 1992, HEID 1994, ATKINS 1995 e FONTENELLE 2000), proponho que os diferentes signifi cados dos verbos de movimento do inglês e do alemão sejam relacionados entre si em termos de descrições de frames semânticos.

2.1 A Semântica de Frames

A Semântica de Frames de Charles Fillmore (1982) se baseia na idéia de que, para entender os signifi cados das palavras em uma língua, deve-se primeiramente ter o conhecimento dos frames semânticos, ou estruturas conceituais, que subjazem seu uso. Os frames servem como um tipo de recurso cognitivo estruturante que fornece a motivação e o conhecimento prévio necessários para a existência das palavras de uma língua, bem como para o modo como elas são usadas no discurso12. O exemplo mais utilizado de Fillmore quanto à noção de frame é o do frame de transação comercial, que envolve um cenário com diferentes elementos de frame, como Consumidor, Vendedor, Mercadorias e Dinheiro, que fazem parte de uma transação comercial. Nesse frame,

12 Para uma análise detalhada a respeito dos principais conceitos subjacentes à Semântica de Frames, ver Petruck (1996).

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uma pessoa toma o controle ou posse de algo de outra pessoa, através de um acordo, como resultado da entrega de um montante de dinheiro a essa pessoa. O plano de fundo necessário requer um entendimento de posse, economia fi nanceira, contrato implícito, e muitas outras coisas. (FILLMORE; ATKINS, 1992, p.78)

As unidades lexicais pertencentes a esse frame são verbos do tipo buy [comprar], sell [vender], spend [gastar], ou charge [cobrar], substantivos do tipo charge [preço], goods [bens], ou money [dinheiro] e adjetivos do tipo cheap [barato] e expensive [caro]. Por todas essas unidades lexicais pertencerem ao mesmo frame semântico (o frame de transação comercial), a escolha específi ca de uma unidade lexical revela uma perspectiva particular através da qual o frame de transação comercial é visto. Considere os seguintes exemplos:

(5) a. Miriam bought a book (from Collin) (for $20). [Mirian comprou um livro (de Collin) (por $20)]b. Collin sold a book (to Miriam) (for $20). [Collin vendeu um livro (para Miriam) (por $20)]

As duas frases do exemplo (5) descrevem a mesma transação comercial, mas de perspectivas diferentes. Enquanto (5a) enxerga a transação do ponto de vista de quem compra, (5b) enxerga a transação da perspectiva que quem vende. O principal ponto é que tanto o verbo buy [comprar] quanto o verbo sell [vender] fazem referência ao mesmo frame subjacente e evocam o mesmo tipo de conhecimento subjacente sobre eventos de transação comercial. Note também que a realização sintática dos elementos individuais do frame difere de acordo com o tipo de verbo empregado para descrever a transação comercial. Enquanto o verbo sell [vender] requer uma realização sintática dos elementos do frame Consumidor e Bens, o Vendedor e o Preço não necessitam ser realizados sintaticamente, como é indicado nos parênteses. A ação de Vender requer que o Vendedor e os Bens estejam presentes no nível sintático, mas deixa a explicitação do Consumidor e do Preço como opção.

Uma descrição completa, baseada na Semântica de Frames, de uma unidade lexical pertencente ao frame de transação comercial inclui não somente informação sobre os tipos de elementos do frame que compõem o frame subjacente, mas também a informação sobre como esses elementos de frame são realizados no nível sintático. A entrada lexical do verbo buy [comprar], por exemplo, inclui a informação de que o elemento do frame Consumidor deve aparecer como um SN (sintagma nominal) em posição de sujeito, enquanto o elemento de frame Bens deve aparecer como SN em posição de objeto. A entrada também marca que os elementos de frame Vendedor e Preço podem ocorrer opcionalmente em posição pós-verbal.

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Perceber as informações semânticas e sintáticas a respeito das unidades lexicais em termos de descrições baseadas em um frame semântico facilita a criação de inventários de unidades lexicais de acordo com os tipos de frames ao quais elas pertencem. Este tipo de organização lexical difere da organização dos dicionários tradicionais, pelo fato de que, em um dicionário de Semântica de Frames, o “conceito de ‘palavra-entrada’ se torna obsoleto, pois o frame inteiro é o defi niendum,” como aponta Atkins (1995, p.27). Note também que a abordagem de frame semântico na organização do dicionário possui vantagens práticas para o usuário de dicionários. Ao trocar a carga defi nicional do nível dos signifi cados individuais listados sob a categoria de uma palavra-entrada para o nível “frame-semântico”, torna-se mais fácil compreender todo o plano de fundo de conhecimento que está por trás do uso de uma palavra. Levando em consideração que a descrição de um frame semântico também inclui uma lista de palavras que evocam o frame, o usuário do dicionário tem acesso às inter-relações existentes entre a classe de palavras que pertencem a um frame semântico em comum. Isso signifi ca que entender o signifi cado de uma palavra fundamentado em uma descrição baseada em frame semântico facilita um entendimento mais direto de todas as palavras pertencentes ao mesmo frame.13

A próxima seção mostra as vantagens de uma abordagem da Semântica de Frames na organização lexical para descrever as diferentes estruturas polissêmicas dos verbos de movimento do inglês e do alemão discutidas anteriormente.

2.2 Descrevendo estruturas polissêmicas contrastivas

Iremos agora contrastar sistematicamente as estruturas polissêmicas dos verbos de movimento do inglês e do alemão com base nos princípios da Semântica de Frames. Há uma característica importante no modo como observamos os dados (1) – (4) (pela ótica da Semântica de Frames) que separa nossa abordagem das abordagens tradicionais feitas à lexicografi a bilíngue. Ou seja, nossas descrições léxico-semânticas não se referem à concepção de palavra-entrada como elemento estruturador do nosso dicionário. Isso signifi ca que, em vez de se referir a um sentido específi co de uma palavra-entrada, a descrição de uma unidade lexical é feita em termos de um frame como recurso estruturador. Ao se adotar esse tipo alternativo de organização lexical, torna-se possível estabelecer generalizações mais abrangentes sobre o signifi cado das palavras entre diferentes línguas.

13 Ao incluir uma série de frases que exemplifi quem o uso de uma palavra em contexto, o usuário do dicionário também tem acesso à informação sobre toda a gama de padrões de realização sintática dos elementos de frame. Na base de dados FrameNet de Berkeley (para descrições detalhadas, ver LOWE et al. 1997; BAKER et al. 1998; FILLMORE; ATKINS 1998 e JOHNSON et al. 2001), cada entrada lexical inclui exemplos de corpus extraídos do British National Corpus, que foi marcado com rótulos semânticos representando elementos de frame (ver GAHL 1998).

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Para melhor esclarecer as relações existentes entre as signifi cações individuais dos verbos analisados na seção 1, considere primeiramente as signifi cações “básicas” dos verbos do inglês run [correr] e walk [caminhar]. Como já foi salientado anteriormente, os usos em (1a) e (2a) são exemplos de Self-motion onde “um ser vivo (Self-mover) se move, sob o seu próprio controle, de modo direcionado” (JOHNSON et al. 2001, p.148). Usando a terminologia de Johnson et al. (2001), identifi camos no exemplo (6) os elementos do frame pertencentes ao frame Self-mover da seguinte maneira: o elemento de frame Self-mover é um ser vivo que se move sob seu próprio controle (i.e., Julie em (6a) e Rod em (6b)). O elemento de frame Meta fornece a informação sobre onde o Self-mover chega como resultado de seu movimento (i.e., to te store [para a loja] em (6a) e to the door [até a porta] em (6b)).14

(6) a. Julie ran to the store. [Julie correu até a loja]b. Rod walked to the door. [Rod caminhou até a porta]

Se considerarmos as informações sobre a distribuição dos elementos do frame Self-motion como são realizados por run e walk em (6), veremos que resultam em séries parciais de descrições simplifi cadas baseadas na Semântica de Frames, como no exemplo (7).15

(7) Descrições parciais baseadas na Semântica de Frames das signifi cações de frame Self-motion dos verbos run e walk

a. runSelf-Motion [ Self-mover Meta ]

SN SPb. walk

Self-Motion [ Self-mover Meta ]SN SP

As descrições simplifi cadas parciais baseadas na Semântica de Frames em (7) identifi cam cada verbo como pertencente ao frame Self-motion e fornecem informações sobre a realização sintática dos dois elementos do frame Self-mover e Meta. Enquanto o Self-motion se realiza sob a forma de um SN, a Meta se

14 Além do Self-mover e da Meta, esse frame inclui também os elementos de frame Origem, Trajetória, Maneira, Distância e Área. Para maiores detalhes, ver Johnson et al. (2001, p.148-150).15 Note que em uma descrição frame-semântica completa do FrameNet, as entradas lexicais incluem toda a gama de padrões sintáticos atestados pelo corpus exibidos por uma unidade lexical, incluindo informação sobre como os elementos do frame são realizados por cada padrão sintático. Eles também incluem sentenças do corpus semanticamente marcadas, que servem como exemplo (ver LOWE et al. 1997; BAKER et al. 1998 e [http://www.icsi.berkeley.edu/~framenet] para detalhes).

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realiza sob a forma de um SP com os dois verbos. A seguir, considere os verbos correspondentes em língua alemã rennen e gehen em (3a) e (4a), retomados em (8), e suas descrições simplifi cadas parciais baseadas na Semântica de Frames correspondentes em (9), que as identifi ca como pertencentes ao frame Self-motion.

(8) a. Tina rannte zum Geschäft .b. Bernd ging zur Tür.

(9) Descrições parciais baseadas na Semântica de Frames dos sentidos Self-motion dos verbos rennen e gehen

a. rennenSelf-Motion [ Self-mover Meta ]

SN SPb. gehen

Self-Motion [ Self-mover Meta ] SN SP

Uma comparação entre as descrições parciais baseadas na Semântica de Frames em (7) e em (9) mostra que os quatro verbos evocam o frame Self-motion e exibem o mesmo tipo de realização sintática dos elementos de frame Self-mover e Meta. Levando nossas observações a um nível mais alto de abstração, chegamos a uma generalização sobre como os elementos de frame pertencentes ao frame Self-motion são realizados pelos quatro verbos nas duas línguas, como mostra (10).

(10) O frame Self-motion como um recurso de estruturação comum para o inglês e o alemão

O topo do diagrama na imagem (10) contém um fragmento do frame Self-motion e mostra como verbos individuais do inglês e do alemão exemplifi cam os elementos de frame respectivos desse frame. As setas que conectam as descrições verbais individuais baseadas na Semântica de Frames aos elementos

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de frame do frame subjacente Self-motion mostram o mapeamento entre os elementos de frame do frame de Self-motion e suas realizações sintáticas em ambas as línguas. Uma comparação entre as propriedades mapeadoras entre os elementos de frame dos frames Self-motion e os verbos run e gehen em (10) mostra que os dois verbos possuem propriedades de mapeamento idênticas, ou seja, mapeiam o Self-mover como um SN pré-verbal e a Meta como um SP pós-verbal. Observações similares podem ser feitas em relação ao mapeamento dos elementos de frame entre walk and gehen discutidos nos exemplos (7b) e (9b).

Até agora, foi mostrado como os elementos de frame do frame Self-motion são realizados de modo semelhante pelos verbos run, walk, gehen, e rennen. A próxima seção se volta para a discussão de casos em que verbos de línguas diferentes exibem tipos diferentes de mapeamentos entre elementos de frame devido a uma diferença nos padrões de lexicalização dos frames semânticos.

Na seção 1, foi mostrado que, enquanto run é associado tanto ao frame Self-motion quanto ao frame de Movimento Causado, o verbo rennen, do alemão, não exibe um uso de Movimento Causado similar ao do run. Em vez disso, a língua alemã oferece uma lexicalização verb-framed de Movimento Causado (i.e., abdrängen) para descrever esses tipos de situações que são expressas pela signifi cação de Movimento Causado de run, enquadrado na construção. Utilizando a terminologia de Johnson et al. (2001, p.132) para descrever o frame de Movimento Causado, podemos dizer que “um Agente faz com que o Tema realize um movimento direcionado” que pode ser “com relação a uma Origem, Trajetória e/ou Meta.” Os elementos de frame relevantes para descrever as signifi cações de Movimento Causado de run e de abdrängen incluem Agente, Tema e Meta.16 O diagrama seguinte mostra como esses três elementos de frame são realizados pela signifi cação de Movimento Causado de run e pela signifi cação de Movimento Causado de abdrängen .

(11) O frame de Movimento Causado como um recurso estruturante comum para o inglês e o alemão.

(12) a. Julie ran Pat off the street. [Julie mandou Pat sair para a rua] b. Tina drängte Enno von der Straße ab.

16 Outros elementos de frame incluídos no frame de Movimento Causado são Origem, Trajetória, Distância e Área (cf. Johnson et al. 2001, p.131-133).

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Tina pushed Enno from the street off [Tina empurrou Enno da rua para fora]‘Tina ran Enno off the street.’ [Tina mandou Enno sair para a rua]

Note que as descrições baseadas na Semântica de Frames das signifi cações de Movimento Causado de run e abdrängen em (11) expressam tipos semelhantes de cenários como exemplifi cado em (12). Ao comparar as similaridades e as diferenças entre os diagramas (10) e (11), vemos que a noção de frame semântico oferece um modo conveniente de se compararem e contrastarem as distribuições dos conceitos semânticos entre diferentes unidades lexicais17. Especifi camente, nossas descrições baseadas na Semântica de Frames dão informações sobre o uso do verbo run para expressar tanto Self-motion como também Movimento Causado, e o uso do verbo gehen somente para expressar Self-motion18. A vantagem em organizar um dicionário bilíngue de acordo com os conceitos da Semântica de Frames deve estar clara agora. Usuários de dicionários bilíngues, por exemplo, que requerem informações sobre como expressar um conceito semântico específi co em uma língua diferente contam com múltiplas maneiras de ter acesso à informação.

A primeira possibilidade inclui procurar uma palavra específi ca na língua-alvo para ver se ela pode ser usada do mesmo modo que a palavra na língua-fonte. No caso do Movimento Causado, o usuário do dicionário pode achar que, por run e rennen estarem associados com signifi cações de frame Self-motion similares, os dois verbos partilham um padrão de uso similar quando expressam Movimento Causado. Ao consultar a signifi cação de Movimento Causado de run, o usuário do dicionário chegaria a uma descrição do frame de Movimento Causado e, subsequentemente, descobriria que não há um equivalente de Movimento Causado para rennen, mas que ele deve usar abdrängen. Neste

17 Note que abdrängen sozinho não caracteriza detalhadamente o modo como o Movimento Causado é executado. Ou seja, ele apenas lexicaliza a dinâmica da força do Movimento Causado (empurrar). Por outro lado, run X off não apenas lexicaliza a semântica da dinâmica da força abstrata do Movimento Causado em termos de um frame sintático, como também fornece informações sobre o modo como a atividade do Movimento Causado é realizada.18 A proposta apresentada ao longo deste artigo se opõe a muitas considerações gerativistas da polissemia verbal, como as de Jackendoff (1972), Pustejovsky (1995), e Rappaport Hovav e Levin (1998). Essas considerações sugerem tipicamente que os signifi cados verbais devem se dividir em diferentes agrupamentos de classe verbal e, subsequentemente, devem ser reduzidos para incluírem apenas informações semânticas mínimas. Para chegarem a múltiplas signifi cações verbais, essas propostas sugerem o emprego de tipos diferentes de mecanismos gerativos para assegurar a criação de diferentes signifi cações verbais e seus padrões de realização do argumento relacionados a partir de entradas lexicais mínimas subespecifi cadas. Em relação à aplicação das propostas gerativas do signifi cado verbal, Weigand (1998, p.viii) aponta que “a abordagem gerativa (...) alcança seus limites na medida em que a abordagem regulada pela regra e orientada pelo modo, em princípio, não consegue lidar com todas as variedades e idiossincrasias do uso da língua e, por isso, permanece restrita a um sub-conjunto de exemplos.

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caso, uma descrição baseada na Semântica de Frame que subjaz um diagrama, como em (11), permite que o usuário do dicionário entenda mais facilmente o signifi cado de abdrängen, pois ele é descrito em termos dos mesmos recursos de estruturação subjacentes, ou seja, o frame de Movimento Causado e os seus elementos de frame. Além disso, ao fornecer abonações como as frases apresentadas em (12) (ao consulente do dicionário), que incluem informações sobre como uma dada signifi cação de uma palavra é usada no contexto, o usuário do dicionário ganha acesso total aos exemplos de uso de ambas as línguas.

A segunda maneira de acessar a informação desejada para expressar uma situação específi ca tem a ver com os casos em que o usuário do dicionário não está completamente certo a respeito dos tipos de palavras a serem usadas em cada língua. Aqui, o dicionário baseado na Semântica de Frames serve como uma combinação de dicionário e de thesaurus. O usuário pode consultar o dicionário de frames e procurar listas de descrições de frames semânticos, incluindo os tipos de palavras pertencentes ao frame. Com base na defi nição dos frames, juntamente com exemplos que ilustram o uso das palavras individuais pertencentes ao frame, o usuário do dicionário pode escolher a palavra que melhor descreve as situações por ele imaginadas.

Tome, por exemplo, nossa comparação entre walk e gehen em (2b) e (4b). Vimos que enquanto o verbo walk é associado a uma semântica Cotheme do tipo construction-framed, gehen não. Para ser mais preciso, enquanto walk é associado a uma signifi cação que descreve o movimento de dois objetos distintos (Self-mover e Cotheme) se movendo em direção a uma meta, gehen não permite esta associação construction-framed com a semântica do frame Cotheme. Em vez disso, ele exige um verbo diferente, begleiten, para expressar o mesmo tipo de Cotheme semântico. Isso é ilustrado pelo diagrama abaixo:

(13) O frame Motion-Cotheme como um recurso comum de estruturação para o inglês e o alemão

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(14) a. Rod walked Melissa to the door. [Rod levou Melissa até a porta]b. Rod accompanied Melissa to the door. [Rod acompanhou Melissa até a porta]c. Bernd begleitete Anna zur Tur.

‘Bernd accompanied Anna to the door.’ [Bernd acompanhou Anna até a porta]

No centro do diagrama (13), há uma parte dos elementos de frame do frame Motion-Cotheme19. As setas que ligam as descrições do frame dos verbos individuais ao frame Motion-Cotheme indicam que cada um dos três verbos estão associados à semântica do frame Motion-Cotheme, bem como o modo como os elementos do frame são realizados respectivamente por cada verbo.

Voltando aos problemas que um usuário de dicionário enfrenta, consideremos um falante do alemão que queira descrever um cenário de Motion-Cotheme. Ao consultar o índice de frames, o falante procura a descrição do frame Motion-Cotheme e vê duas possibilidades para expressar tal cenário em inglês. É neste ponto que as frases que exemplifi cam o uso das respectivas palavras no frame se tornam cruciais. Ao escolher, por exemplo, entre o padrão de lexicalização construction-framed do frame Motion-Cotheme com o verbo walk ou o padrão de lexicalização verb-framed do frame Motion-Cotheme com accompany, o usuário do dicionário pode querer enfatizar o fato de o cenário de Motion-Cotheme ter sido realizado pela ação de caminhar. Neste caso, ele opta pela lexicalização construction-framed da semântica Motion-Cotheme através do verbo walk (cf. (14a)). Por outro lado, se o falante opta por não falar sobre o modo do movimento, ele escolhe a lexicalização verb-framed da semântica Motion-cotheme através do verbo accompany (cf. (14b)), que possui o mesmo tipo de padrão de lexicalização do Motion-Cotheme que begleiten (i.e., verb-framed) (cf. (14c)).20

A terceira maneira de se ter acesso às informações sobre como um conceito específico é expresso em uma língua é fazendo referência aos elementos individuais do frame. Quando o usuário do dicionário quer expressar informação sobre o movimento de uma pessoa, por exemplo, ele pode procurar a defi nição para o elemento de frame Self-mover. Com base nessa defi nição, o usuário do dicionário tem um acesso automático a todos os frames semânticos que incluem esse elemento de frame na sua descrição de frame. Para os frames utilizados como 19 Os elementos de frame desse frame incluem Self-mover, Cotheme, Trajetória, Meta, Maneira, Distância e Área (cf. JOHNSON et al. 2001, p.133–135).20 Note que, apesar dos três verbos, walk, accompany e begleiten, estarem associados à semântica Motion-cotheme, eles descrevem a semântica do Motion-Cotheme a partir de diferentes ângulos. Ou seja, accompany e begleiten não mencionam explicitamente o modo do movimento, enquanto o uso Cotheme de walk faz referência explícita ao modo do movimento. De acordo com a classifi cação da descritividade verbal de Snell-Hornby (1983: 33-35), verbos como accompany e begleiten exibem um grau variável de descritividade, enquanto o signifi cado Cotheme de walk exibe um baixo grau de descritividade. Sobre isso, ver também a discussão sobre “verbos expressivos” de Leisi (1975:77).

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exemplos discutidos neste artigo, isso signifi ca que a referência ao Self-mover oferece acesso direto aos itens lexicais pertencentes aos frames Self-motion (ex., run, walk, rennen, e gehen), de Movimento Causado (ex., run, walk, e abdrängen ), e de Cotheme-motion (ex., walk, accompany, e begleiten), dentre outros.

Oferecer múltiplas maneiras de acessar informações sobre a distribuição de itens lexicais em um dicionário bilíngue mostra a utilidade de uma abordagem baseada na Semântica de Frames para a organização lexical. Ao contrário dos dicionários tradicionais, que empregam as noções de palavra-entrada e de exemplos isolados para guiar o usuário do dicionário para achar o equivalente de tradução adequado para uma signifi cação específi ca de uma palavra, os dicionários bilíngues que empregam a noção de frames semânticos tornam os itens lexicais mais fáceis de serem encontrados e entendidos. Isso porque o recurso em comum para o entendimento do signifi cado é o frame semântico como um todo.

O uso de frames semânticos como recursos de estruturação também facilita o aprendizado de estruturas polissêmicas, pois os tipos de polissemia exibidos por uma palavra na língua-fonte podem não ser refl etidos por uma rede polissêmica semelhante na palavra da língua-alvo21. Ao construir dicionários bilíngues baseados na Semântica de Frames, complementando os mesmos com um grande número de exemplos de corpus que exemplifi quem os diversos usos de um item lexical contextualizado, é possível contornar um grande problema para os usuários de dicionários bilíngues apontado por Snell-Hornby (1983, p. 215): “Talvez o maior equívoco dos dicionários bilíngues convencionais seja o de operarem com palavras isoladas, ainda que funcionem de acordo com o princípio da equivalência, segundo o qual um contexto seria necessário.”

3 Aplicações práticas para a lexicografia computacional bilíngue e ferramentas educacionais

Empregar os princípios da Semântica de Frames na construção de dicionários bilíngues requer meios efetivos de representar grandes quantidades de informação lexical. Ao invés de se limitar a ferramentas tradicionais de representação, como as obras impressas, o projeto de um dicionário que tenha uma base de dados eletrônica facilitará a representação e a busca de unidades lexicais, suas descrições baseadas em Semântica de Frames e as relações semânticas entre frames (por ex., transferência e mesclagem (cf. FILLMORE; ATKINS 1998). Uma base para construir essa base de dados eletrônica bilíngue que incorpore as principais idéias propostas na seção 2 é a base de dados monolíngue do inglês FrameNet, da universidade de Berkeley22. Sem entrar 21 Veja, por exemplo, nossa discussão sobre os verbos run e rennen na sessão 1. Vimos que run está associado tanto à signifi cação Self-motion como também a uma signifi cação de Movimento Causado. Em contrapartida, rennen é associado somente ao sentido Self-motion.22 Ver http://www.icsi.berkeley.edu/~framenet

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em detalhes sobre toda a sua arquitetura (ver LOWE et al. 1997 e BAKER et al. 1998 para mais detalhes), colocarei em linhas gerais como algumas destas características podem ser incorporadas em uma base de dados bilíngue computadorizada baseada na Semântica de Frames23.

No centro dessa base de dados fi ca a descrição de um frame, os elementos desse frame e as unidades lexicais pertencentes a esse frame. Para cada unidade lexical de uma língua, há uma entrada lexical que contém uma defi nição “tradicional” combinada a uma descrição baseada na Semântica de Frames com uma lista exaustiva de propriedades combinatoriais semânticas e sintáticas. Além disso, a entrada lexical conta com exemplos marcados retirados de um corpus, os quais exemplifi cam os padrões de valência sintática em que os elementos de frame ocorrem. Como já foi mencionado anteriormente, o usuário da base de dados tem a possibilidade de acessar informações sobre equivalentes de tradução de um item lexical de diferentes formas. A primeira opção consiste em uma lista alfabética de frames abstratos que contém uma descrição de cada frame, bem como seus elementos de frame e as unidades lexicais de ambas as línguas participantes desse frame. Ao clicar em um frame, o usuário é informado a respeito da descrição do frame e pode, então, continuar obtendo informações sobre itens lexicais do inglês e do alemão que pertençam a esse frame24.

A segunda maneira de acessar informações parte de uma lista alfabética que contém todas as unidades lexicais (listas diferentes para o inglês e para o alemão). Clicando em uma unidade lexical, o usuário verá a entrada lexical correspondente e poderá partir dela tanto para a unidade lexical correspondente da outra língua como também para a descrição completa do frame semântico. No nível dos frames semânticos, o usuário é informado sobre todas as unidades lexicais de ambas as línguas participantes do frame e pode escolher o item lexical correspondente da outra língua a partir daí.

Em uma terceira opção, como foi visto na seção 2.2, o usuário do dicionário pode acessar informações sobre itens lexicais e seus equivalentes de tradução através da escolha de um elemento de frame a partir de uma lista alfabética de elementos de frame para ter acesso a um panorama de todos os frames em que

23 Para propostas semelhantes, ver Fontenelle (2000) sobre bases de dados lexicais bilíngues que combinam Semântica de Frames e Teoria do Sentido-Texto (MEL’CUK et al. 1984). Heid (1994) apresenta um resumo do projeto DELIS, que busca desenvolver ferramentas lexicográfi cas para a lexicografi a baseada em corpus. Nesse projeto, a Semântica de Frame é empregada para desenvolver descrições semânticas de fragmentos do léxico para itens lexicais do inglês, do francês, do italiano, do dinamarquês e do holandês. As propostas apresentadas neste artigo partilham muitas considerações teóricas e práticas que fundamentam a arquitetura do DELIS. 24 Um exemplo disso é a representação simplifi cada em (13), ao qual o usuário do dicionário teria acesso após clicar em “Motion-Cotheme”. Além da informação relativa às unidades lexicais pertencentes a esse frame, o usuário da base de dados também pode ter acesso às descrições completas baseadas na Semântica de Frames dos itens lexicais individuais clicando neles.

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o elemento de frame ocorre. A partir dessa lista, podem ser acessadas descrições de frames individuais para se ter um panorama geral dos itens lexicais que exemplifi cam esse elemento de frame.

As diversas maneiras de se acessarem as descrições baseadas na Semântica de Frames de itens lexicais e seus equivalentes de tradução apresentados nesta seção constituem apenas uma pequena parcela das opções de representação da informação lexical em uma base de dados bilíngue baseada em Semântica de Frames. A questão fundamental é que, em uma base de dados tão fl exível quanto a apresentada anteriormente, as possibilidades de acessar diferentes tipos de informações relevantes são enormes. Além disso, a interação com estruturas polissêmicas entre as línguas é facilitada, pois os frames semânticos oferecem um modo viável de estruturar a polissemia em termos de um vocabulário descritivo unifi cado.

E, fi nalmente, considere as vantagens que uma base de dados bilíngue baseada na Semântica de Frames pode oferecer ao campo da aquisição de uma segunda língua, especialmente no que diz respeito às ferramentas educacionais necessárias para o ensino de uma língua estrangeira. As ferramentas tradicionais de aprendizagem, como os livros didáticos impressos, são limitadas na quantidade e no escopo dos exercícios oferecidos aos estudantes. A incorporação de uma base de dados bilíngue de frame semântico às ferramentas de aprendizagem eletrônicas, voltadas para a pedagogia de línguas estrangeiras, não ofereceria aos estudantes apenas um acesso aos modos mais efi cientes de aprender um vocabulário através da capacidade de relacioná-lo a um recurso de estruturação comum, i.e., os frames semânticos. Ela também daria aos professores de língua estrangeira a oportunidade de desenvolverem exercícios individuais para os estudantes, incorporando, assim, diferentes tipos de informações pedagogicamente relevantes da base de dados, as quais são necessárias para tarefas específi cas de aprendizagem que não são abordadas pelos soft wares padrões de aprendizagem utilizados em sala de aula. Por fi m, com os exemplos semanticamente marcados, extraídos dos corpora, os estudantes teriam a oportunidade de aprender o vocabulário de uma língua estrangeira no seu contexto. Essa oportunidade permitiria que os estudantes melhorassem o seu entendimento dos padrões de uso dos respectivos itens lexicais, em vez de simplesmente aprenderem um vocabulário através da memorização de listas constituídas apenas de “palavras” e seus equivalentes de tradução25.

25 Levando-se em conta que as entradas lexicais contêm exemplos marcados semanticamente retirados de corpus os quais mostram como um item lexical é usado em contexto, uma base de dados baseada na Semântica de Frames poderia melhorar muito o que Neubert (2000) chama de “os cinco parâmetros de competência tradutória.” Esses parâmetros incluem: “(1) competência linguística, (2) competência textual, (3) competência temática, (4) competência cultural, (5) competência de transferência.” (NEUBERT 2000, p.6)

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4 Resumo

Este artigo delineou as vantagens práticas e teóricas da adoção da Semântica de Frames de Fillmore para descrever os diferentes tipos de redes polissêmicas do inglês e do alemão.26 Através do exame das distribuições sintáticas e semânticas dos argumentos de um dado número de verbos de movimento do inglês e do alemão, este artigo mostrou como os frames semânticos podem ser empregados como recursos unifi cados de estruturação para dicionários bilíngues e bases de dados. Descrevendo as unidades lexicais em relação aos seus frames semânticos subjacentes, as noções tradicionais de “palavra entrada” e “signifi cado básico” como elementos organizadores de estruturação do léxico não se fazem mais necessárias. A Semântica de Frames pode, assim, ser vista como uma verdadeira metalinguagem semântica tanto para a teoria linguística quanto para a lexicografi a aplicada, pois faz referência a cenários tipicamente compartilhados por falantes de todas as línguas.

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26 A gama total de redes polissêmicas dos verbos de movimento do inglês e do alemão é, obviamente, bem maior. Criar inventários das descrições baseadas em frames semânticos destes verbos e comparar suas diferentes distribuições de signifi cação é uma tarefa que vai muito além dos limites deste artigo. Para um exemplo de estudo detalhado que discute as redes polissêmicas de dois verbos relacionados, ver Fillmore; Atkins (2000) para uma comparação entre o verbo inglês crawl e o verbo francês ramper.

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Metáforas pelas quais as biociências vivem1

Rita Temmerman2

Tradução: Kleber Schenk3

Revisão da tradução: Amanda Schmitt4

Revisão técnica: Ana Flávia Souto de Oliveira5

Resumo: Analisamos os mecanismos que estão por trás da necessidade de uma nova e melhor compreensão nas biociências. Mostramos como nas biociências um modelo metafórico de tipo gestáltico DNA É INFORMAÇÃO está na base de uma longa lista de lexicalizações metafóricas na disciplina. Por último, afi rmamos que uma análise dos modelos cognitivos subjacentes a uma disciplina é parte dos métodos da terminologia sociocognitiva que conduzem a um melhor entendimento de um assunto. Já que a teoria sociocognitiva da terminologia leva à terminografi a e a traduções de melhor qualidade, ela deveria ser ensinada à terminógrafos e a tradutores.

Enquanto estudávamos neologismos em um corpus de textos das biociências em língua inglesa, espantou-nos a grande ocorrência de lexicalizações metafóricas. Na tentativa de encontrar uma explicação para este fato, buscamos inspiração no modelo metafórico que parece subjazer a nova compreensão dos princípios da vida e do desenvolvimento das biociências. Na seção um deste artigo confrontaremos o leitor com alguns exemplos de neologismos metafóricos oriundos do corpus que estudamos (TEMMERMAN, 1998). Na seção dois, apresentaremos o modelo metafórico multifacetado que parece estar na base do entendimento da vida como informação. A diferenciação de tipo

1 Traduzido com a permissão da autora a partir do texto em inglês TEMMERMAN, R. Metaphors the life sciences live by. In: Proceedings of the Maastricht Conference on Translation and Meaning, Maastricht, Th e Netherlands, 2001. p.43-52.2 Erasmus University College (Bélgica). 3 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS. 4 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS. 5 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS.

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textual fez-nos perceber a necessidade de se fazer distinção entre os potenciais criativos e didáticos do modelo de informação, como explicamos na seção três. Finalmente, na seção quatro, sugerimos que se dê atenção à análise do modelo metafórico no treinamento de tradutores e terminógrafos.

1 Neolexicalizações metafóricas nas biociências

Atualmente, a ideia de que o DNA carrega informação genética é tão fundamental ao pensamento biológico que é difícil ter ideia da enorme lacuna intelectual que foi preenchida quando seus fundamentos foram descobertos. Somente em 1953 Watson e Crick propuseram um modelo para a estrutura do DNA que era baseado em uma analogia. Descobriu-se que o DNA, que era conhecido por ter quatro bases (adenina (A), que sempre se junta à timina (T), e guanina (G), que sempre se junta à citosina (C)), tinha uma estrutura de dupla hélice (Figura 1). A ordem dos pares base, ou nucleotídeos, tinha a informação para assegurar a replicação do DNA e possibilitar a tradução do DNA em proteína.

Figura 1. Estrutura de dupla hélice do DNA

Watson e Crick, e outros cientistas, começaram a compreender o DNA em termos de informação, e este modelo analógico deu origem a vários neologismos metafóricos. Nos fragmentos textuais abaixo, podemos observá-los in vivo (em negrito):

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Como pode uma longa cadeia de nucleotídeos codifi car as instruções para um organismo ou mesmo para uma célula? E como estas mensagens podem ser copiadas de uma geração de células para a próxima? As respostas estão na estrutura da molécula de DNA (ALBERTS et al., 1994, p.99).

Por esse motivo, parece que a unidade de informação básica no código genético não pode ser menor do que uma trinca de bases. Entretanto, há 64 trincas – mais do que três vezes o número necessário. A explicação deste excesso tornou-se uma grande preocupação dos teóricos do código (HAYES, 1998).

1) O código genético é lido de maneira sequencial, começando próximo da extremidade 5’ do RNAm. Isto signifi ca que a tradução prossegue ao longo do RNAm na direção 5’ ---> 3’, que corresponde à direção N-terminal para C-terminal das sequências de aminoácidos dentro das proteínas.

2) O código é composto por uma trinca de nucleotídeos.

3) Todas aquelas 64 combinações possíveis dos 4 nucleotídeos se codifi cam para aminoácidos, ou seja: o código é degenerado, pois há somente 20 aminoácidos.

O dicionário preciso do código genético foi determinado com o uso de sistemas de tradução in vitro e de polirribonucleotídeos. Os resultados desses experimentos confi rmaram que alguns aminoácidos são codifi cados por mais de um códon triplo – por isso a degeneração do código genético. Esses experimentos também estabelecem a identidade de códons de terminação de tradução. (http://web.indstate.edu/thcme/mwking/protein-synthesis.html#genetic code)

O DNA não é traduzido diretamente para proteína. Ao invés disso, o DNA é transcrito em RNAm, que é então editado e traduzido em proteínas por RNA ribossômico (RNAr). O RNA é transcrito do DNA (transcrição) no núcleo e sai no citoplasma, onde o RNAr traduz o RNAm em cadeias polipeptídicas (tradução), que então formam proteínas. Essas duas etapas principais são chamadas de transcrição e tradução; a transcrição ocorrendo no núcleo e a tradução, no citoplasma. (http://sidwell.edu/us/science/vlb98/projects/protein/smarks/protein/index.html)

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Todos os neologismos que ocorrem nessas amostras de texto, exceto ‘códon’ (seção 2.1), são metaforicamente transferidos do domínio da informação: codifi car, mensagem, copiar, unidade de informação, código genético, dicionário, sistema de tradução, traduzir, transcrever, editar. Na próxima seção veremos esse modelo metafórico de forma mais detalhada.

2 Modelo metafórico

Nesta seção queremos nos concentrar no desenvolvimento da compreensão e do entendimento através do raciocínio metafórico (o mapeamento de um domínio-fonte para um domínio-alvo). O raciocínio metafórico resulta na compreensão de um novo fato, situação, processo ou qualquer tipo de categoria baseada na analogia imaginada entre aquilo que estamos tentando lidar e entender e algo que já se sabe e se entende. Esta capacidade inventiva ou criativa se faz tangível e deixa seus traços em neolexicalizações. O raciocínio imaginativo, do qual resulta a nomeação metafórica de novas categorias com lexemas já existentes, está enraizado na experiência humana.

As disciplinas das biociências se desenvolvem em frames cognitivos que podem ser vistos como gestalts (LAKOFF; JOHNSON, 1980; LAKOFF, 1987). A fi m de desenvolver novas ideias, profi ssionais da disciplina das biociências apoderam-se de frames cognitivos existentes de domínios de experiência alheios às biociências (os domínios-fonte). Modelos metafóricos deixam seus traços em neolexicalizações. O modelo metafórico funciona como uma gestalt. Isto pode ser visto quando comparamos a parte da gestalt metafórica efetivamente lexicalizada à parte que poderia estar expressa proposicional e lexicalmente se fosse necessária mais clareza – em uma situação em que explicações adicionais fossem solicitadas, como ao treinar futuros especialistas (veja seção 3).

Por trás do progresso no entendimento dos mecanismos da vida, está um número de analogias que deixa seus traços em lexicalizações metafóricas. Pode-se testemunhar o desenvolvimento de um novo campo lexical baseado em estruturas gestálticas metafóricas específi cas ou baseadas em analogias.

Vários subdomínios do modelo de informação são expandidos, sendo a explicação para um número de lexicalizações metafóricas (Figura 2) como:

• DNA É UMA LINGUAGEM. Os genes são mensagens escritas numa linguagem. Este é um primeiro subdomínio baseado na experiência de que a informação é geralmente expressa em uma linguagem (seção 2.1).• DNA É UM ATLAS DE MAPAS. A totalidade da localização da informação genética de um organismo (o genoma) pode ser representada em mapas. Assim como os exploradores do globo representam em mapas a informação

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da localização dos fenômenos geográfi cos que eles conseguiram observar, os geneticistas assinalam a posição dos genes em mapas genéticos (seção 2.2). • DNA É UM SOFTWARE que pode ser rodado pela célula. Este é um terceiro subdomínio baseado na experiência de que a informação está frequentemente armazenada e disponível em formato eletrônico (seção 2.3).• DNA É UM FILME que pode ser “lido” por um projetor. Este é um quarto subdomínio baseado na experiência de que a informação pode ser armazenada e fi car disponível em fi tas de fi lme (seção 2.4).

Domínio-fonte que fornece a analogia

Subdomínios do modelo de informação

O modelo de informação

Material genético (DNA) pode ser entendido como uma linguagem (seção 2.1)A totalidade de material genético de um organismo (o genoma) pode ser entendida como um atlas de mapas (seção 2.2)O material genético (DNA) pode ser entendido como o soft ware de um sistema de processamento de informação (a célula) (seção 2.3)O material genético (DNA) pode ser entendido como uma fi ta de fi lme (seção 2.4)

Figura 2. Representação dos subdomínios que são parte do domínio-fonte (informação), usado no entendimento da genética molecular

2.1 DNA É UMA LINGUAGEM

Um primeiro submodelo está baseado na experiência de que a informação é frequentemente expressa na linguagem. Neste caso, o material genético (o DNA) pode ser entendido como se fosse uma linguagem. Shapiro (1991, p.4) descreve como a ideia de nosso plano estar armazenado em letras é conhecida há pouco mais de uma geração. Antes disso, nossos antepassados foram inspirados por outras analogias imaginadas que deixaram seus traços na língua. Vestígios de uma ideia muito mais antiga ainda estão preservados na língua como um tipo de fóssil verbal: que a hereditariedade é preservada e transmitida pelo nosso sangue. Esta ideia tornou-se tão familiar que nós nem sequer hesitamos quando vemos sintagmas tais como sangue real, sangue ruim, parente de sangue, sangue azul e sangue misto. A teoria do sangue foi primeiramente desenvolvida por Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) e outros pensadores de seu tempo. Para os que acreditavam nesta teoria, a herança envolvia uma combinação de qualidades familiares, como na mistura de dois líquidos diferentes.

O texto linear é diferente: pode ser emendado, mas não misturado. A criança

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Metáforas pelas quais as biociências vivem

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recebe uma seleção de componentes tanto do pai quanto da mãe. Alguns se mantem intactos, enquanto outros traços de um dos pais podem ser inteiramente perdidos.

Resumimos a história da herança e indicamos em negrito as lexicalizações que se relacionam com a analogia subjacente à linguagem. O resumo tem como base Hodson (1992) e Berg e Singer (1992).

Gregor Mendel descobriu os mecanismos da herança em 1866. Para ele, os “fatores” da herança (que atualmente chamamos genes) eram entidades inteiramente abstratas. Em meados do século XIX, os microscópios operavam com poder de aumento de mil vezes ou mais. No núcleo celular, eram vistas estruturas que pareciam fi os coloridos e que foram chamadas cromossomos (palavra de étimo grego que significa “corpos coloridos”). Percebeu-se imediatamente que aí estava a realidade por trás dos “fatores” de Mendel. Pesquisar os cromossomos tornou-se o foco da genética. Era óbvio que os cromossomos forneciam a base física para o mecanismo de herança de Mendel. Eles não poderiam ser o mesmo que os fatores de Mendel (genes) pela simples razão de que eles não estavam em número sufi ciente.

Embora o comportamento dos genes estivesse sendo entendido cada vez melhor, não havia informação sobre seu comportamento físico além do fato de estarem localizados em uma fi leira ao longo dos cromossomos. Era claro que os genes estavam de alguma forma carregando mensagens e que, para se autoperpetuarem através de divisões celulares, eles tinham que se duplicar corretamente. Entretanto, não havia uma teoria sobre o que fazia parte da composição dos cromossomos que pudesse fornecer-lhes estas extraordinárias propriedades. Experimentos posteriores mostraram que o segredo estava no DNA (ácido desoxirribonucleico). Francis Crick e James Watson tentaram solucionar o problema da estrutura de dupla hélice do DNA construindo uma maquete com arame e pedaços de papelão. A molécula era como uma escadaria em espiral, com degraus compostos de pares de bases (A (adenina) sempre pareada com T (timina), C (citosina) sempre pareada com G (guanina)) e os corrimãos compostos de cadeias de açúcar-fosfato.

O que Crick e Watson descobriram é que o DNA tinha uma estrutura que permitia que ele se autocopiasse. Já que A deve ser pareado com T e C com G, consequentemente, se uma molécula de DNA é dividida ao meio longitudinalmente, toda a informação estará lá para reconstituir a molécula inteira novamente.

A estrutura do DNA proposta por Crick e Watson também forneceu a explicação para como um gene funciona em termos químicos. Já se sabia que um gene controla a produção de uma única proteína. O que o modelo de Crick e Watson mostrou foi como o gene poderia conter uma mensagem codifi cada numa sequência de letras que era a especifi cação de qual proteína seria feita. A estrutura de código do DNA faz duas coisas:• assegura que o DNA seja replicado para produzir mais DNA;

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• assegura que o DNA seja transcrito em RNA, que é então traduzido em proteína.

Transcrição e tradução

Quando o DNA produz uma proteína, ele o faz via uma molécula intermediária chamada ácido ribonucleico (RNA), que é muito semelhante ao DNA. O RNA geralmente tem a forma de um fi lamento único. Uma molécula de RNA pode ser feita de acordo com um padrão exato e replicável através da leitura da sequência de bases de um trecho de DNA – esse processo se chama transcrição. O fi lamento de RNA produzido dessa maneira é conhecido como RNA mensageiro, ou RNAm, pois carrega a mensagem que diz que a proteína deve se formar a partir do trecho de DNA específi co que foi copiado.

Sydney Brenner trabalhou com Crick com o intuito de decifrar o código genético. Eles descobriram que o código é escrito em “palavras” de três letras. Já que há quatro bases possíveis ocorrendo em grupos de três, há 64 (isto é 43) combinações possíveis – mas apenas 20 aminoácidos para serem codifi cados. Descobriu-se que a maioria dos aminoácidos são codifi cados por mais de um códon e que há três códons que não representam nenhum aminoácido, mas que são sinais de “pare” nos quais a mensagem de decodifi cação da proteína termina (Figura 3). A sequência de códigos do gene do DNA é usada para construir uma molécula de RNA mensageiro. Isso é arranjado por uma enzima chamada RNA polimerase, e essa parte do processo que se chama transcrição.

Há também muitas moléculas de um tipo diferente de RNA, conhecido como RNA de transferência (RNAt). Cada molécula de RNAt é composta de somente três bases. Estas três bases formam um anticódon, e cada uma delas se encaixa no códon no RNAm. Esta parte do processo, conhecida como tradução, acontece nos ribossomos, que agem como um tipo de estrutura de montagem para construir proteínas. As moléculas de RNAt formam uma linha, e os aminoácidos se agrupam na ordem específi ca para formarem a cadeia proteica.

Figura 3. As setas indicam os processos e as direções que transmitem informações genéticas do DNA para o RNA, do RNA para a proteína e do

RNA para o DNA (BERG; SINGER, 1992, p.35)

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Metáforas pelas quais as biociências vivem

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É difícil saber se o frame cognitivo ou gestalt da “linguagem” é ativado quando a analogia entre genes e linguagem é entendida, ou se é um detalhe da analogia (a visualização das bases nos fi lamentos de DNA, que são abreviados para as primeiras letras dos nomes das bases (A, T, G, C)) que desencadeia o entendimento dos processos genéticos via analogia linguística. A transferência metafórica do entendimento da informação codifi cada na língua para o novo entendimento e nomeação do campo científi co da genética é possível. O modelo metafórico da linguagem começa a mostrar seu impacto na forma que pensamos sobre a genética e nomeamos as unidades de entendimento. Ao lidar com a mensagem no DNA, os autores contam com o vocabulário existente de tudo que tem relação com linguagem e processamento da linguagem. A analogia dará origem a lexicalizações explícitas.

Temos que fazer distinção entre: a) empréstimos de termos do modelo do domínio fonte da língua que provê a analogia (por exemplo, letra); b) criações de termos baseadas no modelo do domínio fonte da língua que provê a analogia, mas usando uma palavra que já existia em um domínio diferente (por exemplo, sequenciar); e c) novas criações inspiradas pelo modelo do domínio fonte da língua que provê a analogia, mas nomeadas diferentemente (por exemplo, códon) (Figura 4).

Elementos do modelo do domínio fonte da língua que servem na analogia

Lexicalizações que dizem respeito à informação inspirada pela linguagem nos genes

Tipo a (termo ou palavra existente é tomada emprestada)

letra letra (representando uma base (nucleotídeo)

Tipo b (se atribui um novo sentido à palavra existente)

as letras ocorrem em uma ordem ou sequência específi ca em um texto

a ordem das letras pode ser determinada com um método chamado sequenciação

Tipo c (um novo termo é criado)

as palavras representam unidades de informação

códons são palavras de três letras

Figura 4. Três tipos de termos cujas origens são encontradas na analogia da

linguagem da genética

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2.2 DNA É INFORMAÇÃO EM UM ATLAS DE MAPAS

Primeiramente, apresentamos a informação sobre a analogia entre mapeamento genético e mapeamento geográfi co (Jones usa o termo “geografi a genética” (1993, p.46)) e indicamos as lexicalizações que podem ser entendidas como resultantes desta analogia.

A analogia entre as representações de localizações e seus genes e distâncias mútuas ajudou a entender a importância da posição dos genes no genoma dos organismos. Em organismos superiores, como em seres humanos, a informação necessária é de natureza dupla: os cientistas terão interesse em saber, por um lado, em qual cromossomo um gene específi co pode ser encontrado e, por outro lado, onde na sequência da informação genética no fi lamento de DNA o gene específi co pode ser encontrado. Baseados na experiência de que a informação em um território previamente desconhecido pode ser obtida e armazenada pela exploração e mapeamento cuidadoso do que se descobre, à maneira que os exploradores faziam quando estavam descobrindo novos continentes previamente desconhecidos, os geneticistas começaram o mapeamento de genomas de diferentes organismos. O genoma humano é “o plano para o desenvolvimento de um único ovo fertilizado em um organismo complexo de mais de 1013 células. O plano é escrito em uma mensagem codifi cada dada por uma sequência de bases nucleotídicas – as As, Cs, Gs e Ts que são sequenciadas ao longo das moléculas de DNA no genoma” (COOPER,1994, p.71). Qualquer pessoa que tenha um conhecimento básico de biologia sabe que o DNA contém genes, que os genes são as mensagens codifi cadas que fazem as proteínas e que as proteínas executam todas as funções de um organismo. Foi considerada uma boa ideia iniciar-se a leitura da sequência inteira de bases de uma extremidade à outra e desenhar um mapa genético completo do ser humano, defi nido pelos RFLPs (polimorfi smos de comprimento de fragmento de restrição) que são usados como genes marcadores. Isso resultou no Projeto Genoma Humano, um dos mais ambiciosos programas científi cos já feitos. É um esforço internacional que procura criar um detalhado mapa do DNA humano. Desde que o projeto foi iniciado (ofi cialmente em outubro de 1990), várias equipes de todo o mundo têm se ocupado em mapear os 50.000 a 100.000 genes humanos e sequenciar os pares-base (seis bilhões de bases) dos quais eles consistem (COOPER, 1994, p.71). Por volta do ano de 2005, os mapas devem estar completos; eles serão de inestimável valor no desenvolvimento da biotecnologia, da pesquisa biológica e da medicina clínica, pois possibilitarão aos cientistas localizar nos cromossomos humanos os genes causadores de certas doenças hereditárias.

Uma distinção é feita entre mapas de ligação genética e mapas físicos. A diferença entre esses dois mapas pode ser resumida da seguinte maneira: mapas de ligação genética mostram a posição de cada gene em relação a outro gene; já nos mapas físicos pode-se ler o número exato de pares-base entre dois genes. É a combinação dos mapas de ligação genética e dos mapas físicos que revelarão o genoma humano.

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Metáforas pelas quais as biociências vivem

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A construção dos mapas de ligação genética

Os genes estão dispostos nos cromossomos em ordem linear. Normalmente, os genes em um certo cromossomo devem ser transmitidos juntos, dos pais para os fi lhos. Entende-se que tais genes, que sempre são herdados juntos, são ligados. Entretanto, às vezes, ocorre o crossing-over. Isto signifi ca que dois genes que normalmente estão no mesmo cromossomo são transmitidos separadamente. As crianças que recebem estes cromossomos modifi cados de um de seus pais são chamadas de recombinantes. Os cientistas, ao tentarem estabelecer mapas de ligação genética, comparam o número de recombinantes entre os fi lhos em certas famílias ao número total de crianças nessas famílias. Esta comparação resulta na fração de recombinação. A principal regra é a seguinte: quanto menos genes estiverem ligados, maior será o número de recombinantes, e assim será a fração de recombinação. Em um estágio fi nal, as frações de recombinação transformam-se em ‘distâncias genéticas’ (expressas em centimorgans), que são as distâncias relativas entre os genes de um cromossomo. Estas distâncias genéticas possibilitam que os cientistas determinem a ordem dos genes.

Inicialmente, os genes, dos quais as combinações estavam sendo testadas, eram escolhidos arbitrariamente (mapeamento da combinação clássico). Este era um método muito demorado e, por isso, os cientistas começaram a usar os chamados polimorfi smos de DNA como marcadores (mapeamento de ligação moderno). Um exemplo de marcador de DNA são os RFLPs (polimorfi smos de comprimento de fragmento de restrição). Estes são pequenas sequências de DNA resultantes do corte do DNA em um certo cromossomo por uma enzima de restrição, que é capaz de encontrar a sequência específi ca autonomamente. Estas sequências estão presentes em todos os seres humanos, mas podem ser herdadas de várias formas: portanto, nós as chamamos de ‘polimorfi smos’. Uma vez localizados, os RFLPs são marcados radioativamente, para que fi quem visíveis quando vistos em um microscópio sofi sticado. Por último, a coherança dos RFLPs com outros genes é estudada. Isso permite que os cientistas novamente determinem a posição dos outros genes em relação aos RFLPs e em relação uns aos outros.

A construção dos mapas físicos

Mapas físicos mostram distâncias físicas (em pares-base) entre pontos de referência ao longo de uma molécula de DNA cromossômico. No momento, um mapa físico está sendo construído para cada um dos 23 pares de cromossomos humanos. A primeira técnica usada para se construir mapas físicos é a hibridização in situ. Assim como na construção de mapas de ligação

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genética por meio de RFLPs, esta técnica é baseada no uso de sondas de DNA radioativamente marcadas. Primeiro, a dupla hélice do DNA de determinado cromossomo é separada em dois filamentos únicos. Então, um número de sequências de pares-base em um dos fi lamentos é manchado. Aqueles fi lamentos fl uorescentes servirão como sondas. Eles são colocados junto com outros fi lamentos únicos de DNA, nos quais os geneticistas tentam localizar as sequências de bases das sondas. As sondas automaticamente se ligam àquelas sequências específi cas se elas ocorrerem no fi lamento examinado (hibridização). Esta técnica proporciona mapas de baixa resolução, o que signifi ca que rótulos fl uorescentes que estão próximos demais uns dos outros parecem ir de encontro uns aos outros.

Outro tipo de mapas físicos são os chamados “mapas contig” ou “contigs”. “Um mapa contig é um conjunto de fragmentos clonados sobrepostos de forma contígua que foram posicionados com relação uns aos outros” (COOPER, 1994, p.113). Estes mapas são muito mais detalhados do que os mapas construídos por meio de hibridização in situ. A técnica para obtê-los é a seguinte: cada cromossomo humano é cortado em fragmentos (digerido) por enzimas de restrição. Estes fragmentos são clonados várias vezes; então, cada um destes fragmentos é separado ainda mais por outra enzima de restrição. Em cada clone, este segundo processo de digestão é interrompido em diferentes períodos. Como resultado, os cientistas envolvidos têm clones sobrepostos à sua disposição. Sondas de DNA (obtidas por hibridização) são usadas para determinar a ordem das sequências de bases sobrepostas nos fragmentos. O objetivo fi nal do Projeto do Genoma Humano é obter mapas contig de todo o genoma. A Figura 5 mostra a analogia entre o domínio-fonte (mapa geográfi co) e o domínio-alvo (mapa genético) do modelo de subdomínio metafórico.

domínio-fonte: mapa geográfi co

domínio-alvo: mapa genético

Continentes Cromossomoslocalizar lugares localizar genesmarcadores ou pontos de referência

RFLPs como marcadores

posição relativa dos lugares em relação a outros lugares (em quilômetros ou milhas)

mapa de ligação genética: a posição de cada gene em relação a um outro gene (distância genética em centimorgans) mapa físico: o número de pares-base entre dois genes (distância em pares-base entre pontos de referência)

Região RegiãoLocal local

Figura 5. Aspectos da analogia entre mapas geográfi cos e mapas genéticos

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2.3 DNA É SOFTWARE

O terceiro submodelo de informação implica que o material genético (DNA) poder ser entendido como o soft ware em um sistema de processamento de informação (a célula). Isto está explicitamente exposto em:

Aqui há outra analogia que enfatiza porque a unidade da vida é tão importante à biologia molecular. Você pode considerar as instruções codifi cadas do DNA como o “soft ware” molecular que roda o “hardware” da vida. Assim como6 um programa de processamento de textos diz ao hardware do computador o que fazer, as instruções do DNA controlam a maquinaria da vida. Por que esta comparação é útil? Porque se você trabalha com computadores da mesma maneira que a maioria de nós, você sabe o sufi ciente sobre a sua planilha favorita ou seu processador de textos favorito para usá-los, mas você difi cilmente poderia escrever o programa. De modo similar, os biólogos moleculares sabem o sufi ciente sobre certos “programas” baseados no DNA para usá-los sem o conhecimento total de como eles funcionam.

Então é útil que muito do soft ware da vida – independentemente do organismo do qual vem – rodará no hardware de praticamente qualquer outra célula viva. Por isso que, por exemplo, os pesquisadores que descobrem e aprendem a controlar o processador de textos molecular usado por um organismo podem controlar esta ferramenta para manipular texto genético em organismos diferentes sem ter que aprender com precisão por que ou como este programa molecular específi co funciona (LEVINE; SUZUKI, 1993, p.23).

Como está exposto acima, as subunidades dos fi lamentos de DNA, os nucleotídeos, são a base química para o armazenamento de informação no DNA (DRLICA, 1992, p.33).

As “instruções codifi cadas do DNA” são pensadas como sendo “o soft ware molecular que roda o hardware da vida”. A comparação é relevante porque, assim como os usuários de computador podem usar um programa mas não podem escrevê-lo, os biólogos moleculares sabem o sufi ciente sobre o DNA para usá-lo, sem o conhecimento total de como ele funciona. O “soft ware” (DNA) de um organismo específi co pode ser rodado no hardware (células) de praticamente qualquer outro organismo. 6 Sublinhado por nós.

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Em nosso corpus encontramos menção à analogia entre o soft ware de computador e o DNA, mas não encontramos nenhum exemplo de como esta analogia inspirou a formação de termos.

2.4 DNA É UMA FITA DE FILME

Potencialmente, o modelo de informação consiste em mais submodelos do que os três que indicamos até agora (linguagem, geografi a e soft ware de computador). Em Drlica (1984 e 1992) uma quarta analogia (Figura 6), que ganha relevância para explicar a estrutura da informação genética, é encontrada.

De algumas maneiras, o DNA se parece com um fi lme de cinema. Como o fi lme, o DNA é subdividido em “frames” que fazem sentido quando vistos na ordem correta. No DNA os “frames” correspondem às letras no código genético [...]. Quando um número de frames ou letras genéticas é organizado em uma combinação específi ca, eles criam uma cena, no caso do fi lme, ou um gene, no caso do DNA (DRLICA,1992, p.4).

Como mostrado acima, as subunidades dos filamentos de DNA, os nucleotídeos, são as bases químicas para o armazenamento da informação no DNA. Retornando à analogia do fi lme [...], as unidades que agora temos defi nidas como pares nucleotídicos, ou pares-base, correspondem a uma cena no fi lme de cinema (DRLICA,1992, p.34).

fi lme de cinema DNAFrames letras no código genéticoCenas Genes

Figura 6. A analogia entre fi lme de cinema e DNA

As lexicalizações cenas e frames são lexicalizações idioletais, usadas aqui com propósitos didáticos. Estas lexicalizações são transitórias. Os lexemas não se tornam termos na linguagem das ciências biológicas. No livro de Drlica esta analogia reforça o entendimento da emenda de genes. Os genes podem ser cortados e emendados em um laboratório da mesma forma que um fi lme ou uma fi ta pode ser editado em um estúdio (discutimos emenda detalhadamente em Temmerman (1998), capítulo 6).

3 Metáfora didática e criativa

As citações na seção 2, de textos escritos por cientistas e de textos de popularização científi ca, tornaram possível provar que um modelo metafórico tem uma estrutura interna (subdomínios). Alguns subdomínios têm o

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objetivo de auxiliar no entendimento (como o subdomínio do fi lme), outros servem a um propósito criativo de produzir um novo entendimento científi co. Deveria se distinguir: em primeiro lugar, entre artigos de pesquisadores, nos quais uma analogia é introduzida e neolexicalizações são o resultado do pensamento analógico consciente ou subconsciente; em segundo lugar, manuais especializados para usuários com formação científi ca nos quais a analogia está presente; e, em terceiro lugar, textos de popularização escritos por especialistas para uma grande gama de leitores, nos quais a analogia está mais explícita para atender a propósitos didáticos (Figura 7).

texto tipo 1: artigos de pesquisa a analogia é introduzidatexto tipo 2: manuais especializados a analogia está presentetexto tipo 3: textos de popularização científi ca a analogia está mais explícita

Figura 7. Como as analogias são realizadas em diferentes tipos de textos

4 Como traduzir a terminologia metafórica das biociências

Nas seções anteriores, mostramos que o pensamento analógico e as neolexicalizações metafóricas têm um papel importante na linguagem das biociências. Até aqui, consideramos apenas a língua inglesa. Para tradutores de textos das biociências, as seguintes questões são relevantes: 1) Essas analogias e suas consequentes lexicalizações são universais? (seção 4.1) e 2) Como se traduz a terminologia metafórica do inglês para outras línguas? (seção 4.2).

4.1 Essas analogias e suas consequentes lexicalizações são universais?

Para as línguas às quais temos acesso, pois as dominamos sufi cientemente bem para podermos analisar alguns de seus textos sobre as biociências (línguas germânicas e latinas) ou porque temos contato com informantes que dominam estas línguas sufi cientemente bem (línguas eslavas), podemos dizer seguramente que estas línguas e culturas têm acesso aos domínios-fonte para os quatro submodelos da informação que distinguimos na seção 2. Seria válido investigar como as línguas sem sistema escrito fonológico (como o chinês) dão conta da analogia das quatro letras para as quatro bases.

4.2 Como traduzir a terminologia metafórica do inglês para outras línguas?

A Figura 8 mostra alguns exemplos dos equivalentes em francês, holandês e português da terminologia metafórica em inglês. Encontramos equivalência total em traduções literais, traduções de empréstimos e de termos emprestados.

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Inglês Francês Holandês Português Genetic code Code génétique Genetische code Código genéticoTranscription Transcription Transcriptie TranscriçãoTranslation Traduction Translatie/Vertaling TraduçãoGenetic mapTo map

Carte génétiqueCartographier

Genetische kaartMappen/in kaart brengen

Mapa genéticoMapear

Sequencing Séquençage Sequencen/Sequeneren Sequenciação

Figura 8. Alguns neologismos metafóricos em inglês e seus equivalentes em francês, holandês e português

4.3 Conscientização de tradutores e terminógrafos em treinamento

Futuros tradutores e terminólogos devem ser apresentados ao fenômeno do pensamento com base em um modelo analógico e a seu impacto nos processos de lexicalização no desenvolvimento de novas tendências nas disciplinas científi cas como as biociências. Em Temmerman (2000b), mostramos como, na terminologia sociocognitiva, futuros terminólogos em treinamento são apresentados a vários métodos de análise textual. Em um desses métodos, a ênfase está em detectar os modelos de pensamento analógico subjacentes que deixam seus traços na terminologia metafórica. Os exemplos que mostramos neste artigo devem embasar o fato de que os tradutores que têm conhecimento sobre o modelo metafórico subjacente às biociências estão mais propensos a produzir traduções de maior qualidade.

Referências

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Os papéis foram a minha ruína: relações conceituais de sentidos polissêmicos1, 2

Devorah E. Klein3; Gregory L. Murphy4

Tradução: Tamara Melo5

Revisão da tradução: Dalby Dienstbach Hubert6, Danilo Nogueira Marra7 e Carolina Kuhn Facchin8

Revisão técnica: Ana Flávia Souto de Oliveira e Maity Siqueira9

Palavras polissêmicas têm signifi cados (sentidos) diferentes, mas relacionados entre si. Temos, por exemplo, a palavra paper com o signifi cado de jornal ou de material escrito. Seis experimentos examinaram a similaridade de sentidos de palavras, utilizando tarefas de categorização e de inferência. Os experimentos mostraram que os participantes não colocaram na mesma categoria sintagmas que usavam uma palavra polissêmica com sentidos diferentes, entretanto, eles o fi zeram quando a palavra era usada com o mesmo sentido. Diferentes sentidos de uma palavra foram colocados na mesma categoria não mais do que em 20% das vezes, uma frequência apenas um pouco maior do que a da categorização de diferentes signifi cados de pares homônimos. Expor previamente os participantes a uma relação polissêmica não aumentou a categorização de sentidos que tinham

1 Essa pesquisa recebeu auxílio do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA, bolsa NIMH41704. Estes experimentos foram relatados na tese de doutorado de Devorah Klein submetida à Universidade de Illinois, e ela gostaria de agradecer os membros de sua banca, Gary Dell, Adele Goldberg, Edward Shoben e Christopher Wickens. Richard Gerrig e Kristine Onishi forneceram comentários muito produtivos sobre o manuscrito.2 Traduzido com a permissão dos autores a partir do texto em inglês KLEIN, D. E.; MURPHY, G. L. Paper has been my ruin: conceptual relations of polysemous senses. Journal of Memory and Language, 47, p.548-570, 2002.3 University of Illinois (Estados Unidos da America).4 New York University (Estados Unidos da America).5 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS.6 Universidade Federal Fluminense, RJ.7 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS8 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS.9 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS.

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Devorah E. Klein e Gregory L. Murphy

aquela relação. Finalmente, a indução de um sentido de uma palavra para um sentido diferente também foi fraca. Os resultados são consistentes com a ideia de que sentidos polissêmicos são representados separadamente, em geral com pouca sobreposição semântica, o que ajuda a explicar resultados anteriores que mostram que o uso de uma palavra com um determinado sentido interfere no uso da mesma com sentido diferente, mesmo se os sentidos são relacionados entre si. Implicações para as representações lexicais também são discutidas.

Palavras-chave: Polissemia, ambiguidade, signifi cado da palavra, representação lexical

– Ah – disse o Sr. Smangle –, os papéis foram a minha ruína.– Era papeleiro? – perguntou, inocente, o Sr. Pickwick.– Papeleiro? Não, não, papeleiro, não. Não caí tão baixo assim. Nunca fui comerciante. Quando digo papéis, refi ro-me a letras de câmbio.– Oh, o senhor emprega a palavra nesse sentido. Já entendi – disse o Sr. Pickwick. (DICKENS, 1971, p.433)

Muitas pessoas pensam que a maioria dos vocábulos tem somente um signifi cado, com a rara exceção das palavras homônimas. Sentidos homônimos geralmente não são relacionados entre si (por exemplo, bank refere-se ao lado de um rio [margem] ou a uma instituição fi nanceira [banco]), sendo frequentemente resultantes de acidentes históricos. Menos familiar, porém muito mais frequente, é o fenômeno das palavras polissêmicas, aquelas com múltiplos sentidos10 relacionados entre si. A maioria das palavras lexicais apresenta algum grau de polissemia. Por exemplo, paper [papel], que originalmente se referia a um material para escrever, passou também a ter o sentido de substância normalmente usada para fazer esse material, de conteúdo de algo escrito, ou mesmo de uma apresentação oral de tal conteúdo – de modo que podemos deliver a paper [apresentar um trabalho científi co] em uma conferência sem usar nenhum papel para isso. Outras extensões de sentido de paper incluem a fonte de notícias (newspaper [jornal]), que foi ampliada para se referir à empresa que publica um jornal, um representante da empresa, e até mesmo as políticas editoriais desta (ver exemplos na Tabela 1). O sentido de material também se expandiu para incluir notas fi nanceiras, forrações de parede e embrulhos de presente. Essas extensões diferentes não são acidentais, como são os diferentes signifi cados de um par homônimo, e a progressão histórica é frequentemente clara (CLARK; CLARK, 1979; HEINE, 1992; SWEETSER, 1990). Existe um 10 Por convenção linguística, as diferentes interpretações de um par homônimo são referidas como signifi cados, enquanto as de palavras polissêmicas são referidas como sentidos.

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continuum de polissemia, no qual sentidos estreitamente relacionados entre si podem ser repetidamente estendidos, de modo que sentidos “adjacentes” estejam intimamente relacionados, e que os mais distantes tenham pouca ligação aparente (ver Cruse, 1986).

Esses sentidos diferentes estão tão bem estabelecidos na memória que as pessoas raramente questionam a diversidade de sentidos e a forma como somos capazes de entender uma palavra polissêmica quando ela é usada de muitas formas diferentes. Os linguistas, entretanto, há muito tempo discutem o problema de como palavras polissêmicas são representadas no léxico; disso resultaram explicações distintas, que competem entre si. Um dos debates gira em torno da representação dos diferentes sentidos de uma palavra polissêmica. Tais sentidos poderiam estar representados de maneira distinta (LANGACKER, 1987; RICE, 1992; TUGGY, 1993) ou subordinados a uma representação nuclear única, sendo o sentido específi co determinado pelo contexto (NUNBERG, 1979; para uma visão extrema, ver Ruhl, 1989).

A escolha do melhor modelo para descrever a representação de palavras polissêmicas tem implicações para as teorias de processamento de linguagem, já que as duas principais perspectivas apresentam diferentes vantagens e desvantagens quanto ao armazenamento e ao processamento. A representação de somente um núcleo é claramente mais efi ciente em termos de armazenamento, mas requer que o processador elabore consideravelmente a representação nuclear, para derivar o sentido específi co pretendido em cada enunciado. Por outro lado, a representação separada de diferentes sentidos faz do processamento um simples ato de seleção do sentido pretendido, mas difi culta a representação lexical e suscita o problema de determinar de que modo os sentidos são distinguidos.

Os experimentos neste artigo visam a aprofundar nosso entendimento das representações mentais de palavras polissêmicas. Eles são construídos com base em pesquisas experimentais anteriores, que sugerem que pelo menos alguns sentidos frequentemente ocorrentes são representados distintamente. Klein e Murphy (2001) descobriram, surpreendentemente, que o uso de uma palavra em um sentido não proporciona vantagens de processamento para seu uso em um sentido diferente. Na verdade, o uso de uma palavra em dois sentidos diferentes tende a retardar o segundo uso, em comparação com uma condição-controle. Esse resultado parece inconsistente com a noção de que sentidos polissêmicos são relacionados. A maioria dos falantes adultos de inglês percebe a relação entre paper usado para referir um jornal e paper usado para referir material para escrever, de modo geral. Além disso, o primeiro deriva-se historicamente do segundo. Se os sentidos são semanticamente relacionados, por que o uso de um interfere no uso do outro? A presente pesquisa explora a relação entre os sentidos, usando técnicas da psicologia dos conceitos com o intuito de entender melhor a estrutura semântica de palavras polissêmicas.

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Tabela 1. Sentenças que ilustram alguns dos múltiplos sentidos de paper

Sentido Sentenças que usam esse sentidoSubstância Th at statue is made out of paper [Aquela estátua é feita

de papel]Folhas do material He needs some paper to draw on [Ele precisa de papel

para desenhar]Material escrito Hand her that paper to read [Entregue aquele papel

para ela ler]Signifi cado do que está escrito

Did you understand that paper? [Você entendeu o texto?]

Apresentação oral I want to go hear his paper [Eu quero ir ouvir a apresentação dele]

Fonte de notícia I read the paper every morning [Eu leio o jornal todas as manhãs]

Empresa de jornal Th e paper might go out of business [O jornal pode fechar]

Representante da empresa de jornal

Th e paper called about doing an interview with you [O jornal ligou para fazer uma entrevista com você]

Políticas editoriais Th e paper is very pro-Illinois [O jornal é muito a favor de Illinois]

Trabalho de aula I have to go turn in my paper [Eu tenho que entregar meu trabalho]

Forração de parede She got the most beautiful paper for her bedroom walls [Ela escolheu o papel mais bonito para as paredes de seu quarto]

Embrulho de presente He tore open the paper to get at the present [Ele rasgou o papel para tirar o presente]

Título comercial Th e paper on that silver mine is worth 10¢ on the dollar [As ações daquela mina de prata estão valendo 10 centavos]

Panorama dos estudos sobre polissemia

Como mencionado anteriormente, linguistas e psicólogos têm questionado se os diferentes sentidos de uma palavra têm diferentes entradas lexicais, a visão do sentido separado, ou se existe apenas uma representação nuclear, com as diferentes extensões sendo construídas pragmaticamente de acordo com o contexto, a visão do sentido único. A afi rmação de que os sentidos são separados é paralela à suposição usual sobre como os homônimos são representados. Porque

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Devorah E. Klein e Gregory L. Murphy

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essas duas palavras são pronunciadas e escritas igualmente (por defi nição), elas compartilham um lexema, ou forma fonológica (Cutting e Ferreira, 1999; Levelt, 1989). Uma vez que os signifi cados são tão claramente diferentes, palavras homônimas teriam duas representações distintas no nível do lema, uma para cada signifi cado – isto é, elas seriam representadas como duas palavras diferentes, do mesmo modo como elas são listadas separadamente no dicionário.

Em um infl uente artigo sobre polissemia, Nunberg (1979) argumentou que não havia necessidade de se ter entradas lexicais separadas para os múltiplos sentidos de uma palavra; tudo que precisa ser armazenado é uma representação nuclear (embora Nunberg também questionasse se seria possível determinar qual sentido era o nuclear). Seu argumento é baseado no fato de que existem formas comuns de estender palavras polissemicamente. Algumas das relações mais frequentes entre sentidos incluem objeto/substancia, como em (1), e conteúdo informacional/objetos contendo tal informação, como em (2).

(1) a. Th e cotton was dying from weevils. [O algodão estava morrendo por causa dos carunchos.] (planta)b. Th e cotton of his sweater was warm against his skin. [O algodão de sua roupa estava quente em sua pele.] (substância)(2) a. Th e book was unbelievably tedious. [O livro era incrivelmente tedioso.] (conteúdo)b. Th e book was bright yellow. [O livro era amarelo vivo.] (objeto)

Em (1), a mesma palavra é usada para se referir à planta e ao material feito de tal planta. Note que são sentidos diferentes, já que somente a planta pode crescer ou morrer. Padrões semelhantes podem ser encontrados em outros nomes de plantas e animais (oak [carvalho], pine [pinheiro], wheat [trigo], chicken [frango], fi sh [peixe]). Em (2), a mesma palavra é usada para se referir a um objeto físico e ao conteúdo contido no objeto. Esses também são signifi cados diferentes, já que o conteúdo não é amarelo e o objeto em si provavelmente não é tedioso.

Se sentidos polissêmicos são baseados em padrões conhecidos de extensão de signifi cado, pode não ser necessário armazenar sentidos específi cos, já que eles poderiam ser facilmente derivados. Por exemplo, podemos não precisar representar mentalmente que elm [olmo] pode se referir a uma planta e ao material feito dessa planta, porque esse padrão é conhecido de forma mais geral. Se estendido a uma teoria psicolinguística, essa proposta sugeriria que apenas o sentido nuclear de uma palavra precisa ser representado no léxico mental, sendo o sentido específi co de um uso particular derivado do contexto e desses padrões familiares de extensão. De fato, as pessoas usam esses padrões de extensão para criar novos sentidos que nunca foram encontrados antes (Murphy, 1997), e isso pode ser visto quando formas familiares de polissemia se aplicam a novas

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palavras conforme elas entram no léxico. Por exemplo, com a entrada de novos termos na língua, como movie [fi lme], videotape [fi ta cassete], CD, e DVD, seguiu-se o mesmo padrão polissêmico que book [livro] – compare (3) com (2).

(3) a. Th e DVD was boring. [O DVD estava entediante.] (conteúdo)b. Th e DVD was scratched. [O DVD foi arranhado.] (objeto)

Então, há razão para acreditar que as pessoas representam tais padrões de extensão, e alguns pesquisadores supõem que esses padrões implicam que os sentidos gerados por eles não estejam representados no léxico: “Dicionários que pretendem ser parcimoniosos, ou espelhar o léxico mental, incluiriam apenas leituras não previsíveis de palavras polissêmicas, junto às regras subjacentes à polissemia regular” (Fellbaum, 2000, p.53, grifo nosso).

Em um importante estudo psicológico anterior sobre polissemia, Caramazza e Grober (1976) também argumentaram a favor de uma representação nuclear. Eles listaram 26 sentidos da palavra line [linha]. Por acreditarem que esse era um número excessivo de sentidos para serem representados, eles concluíram que deve existir apenas uma representação nuclear, com sentidos específi cos determinados online conforme necessário (ver também Miller e Johnson - Laird, 1976; Schreuder e Flores d’Arcais, 1989). Lehrer (1990) aceitou, de forma geral, a visão de Nunberg (1979), embora também identifi casse algumas limitações. Ela mostrou que existiam alguns casos que a extensão pragmática não poderia explicar, e tais exceções teriam que ser listadas separadamente. Por exemplo, o padrão material/produto feito desse material é razoavelmente produtivo, mas existem casos que envolvem conhecimento de mundo muito específi co em vez de serem derivados exclusivamente desse padrão. Quando vamos do material iron [ferro] ao produto iron [ferro], nos referimos ao produto específi co usado para passar roupas, não a qualquer coisa feita de ferro. De fato, muitos ferros de passar roupa não são mais feitos de ferro, ainda que mantenham o nome. Então, esse sentido de ferro deveria ser armazenado separadamente, e não derivado do signifi cado nuclear.

Outros pesquisadores argumentam que os diferentes sentidos de uma palavra polissêmica são, de modo geral, representados separadamente (LANGACKER, 1987; RICE, 1992; TUGGY, 1993), a menos que sejam muito similares (Cruse, 2000). Extensões frequentes não deveriam ter que ser derivadas do zero a cada uso, e esses usos comuns podem ter representações estabelecidas, tais como fazem os signifi cados diferentes de um par homônimo. Por exemplo, se o sentido de fonte de notícia é frequentemente usado para paper, ele deve ter sua própria representação, mesmo que não seja o signifi cado nuclear. Um dos principais argumentos para a representação isolada de sentidos é o de que sentidos diferentes são muito distintos para derivarem de um signifi cado

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Devorah E. Klein e Gregory L. Murphy

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comum. Na análise de preposições do Inglês feita por Rice (1992), ela argumenta que diferentes usos agrupam-se em torno de sentidos muito diferentes. Por exemplo, on [em] signifi ca algo bastante diferente na sentença ‘‘Th e book is on the table’’ [“O livro está na mesa”] do que signifi ca na sentença ‘‘Th e police offi cer is on duty.’’ [“O ofi cial de polícia está em serviço”]. Esses sentidos não têm muita sobreposição semântica, então não é claro de que modo um signifi cado nuclear poderia representar ambos. Em alguns casos, a similaridade de sentidos diferentes pode requerer uma análise sofi sticada para ser descoberta e, por isso, pode não ser conhecida por falantes comuns (KAY, 1992, p.326).

Uma abordagem híbrida para a polissemia também é possível. Tuggy (1993) (ver também Deane, 1988; Langacker, 1987) propôs um modelo no qual a informação é armazenada tanto sobre o sentido nuclear (schema [esquema] em sua terminologia) quanto sobre os sentidos diferentes.

Resultados psicológicos relevantes

Klein e Murphy (2001) encontraram suporte experimental para a visão de que diferentes sentidos de uma palavra polissêmica são representados distintamente. Os participantes tinham que julgar, o mais rápido possível, se sintagmas faziam sentido. Os sintagmas eram construídos em pares, nos quais ambos os sintagmas usavam o mesmo sentido ou sentidos diferentes de uma palavra polissêmica. Por exemplo, o sintagma wrapping paper [papel de embrulho] (que usa o sentido material da palavra paper) poderia ser seguido pelo sintagma de mesmo sentido shredded paper [papel picado] ou por um sintagma que usa um sentido diferente, daily paper [jornal diário] (que usa paper no sentido de fonte de notícia). Existia também uma condição inicial, que fornecia um priming de paper em geral, sem fazer especifi camente um priming de nenhum dos sentidos. Os resultados mostraram facilitação quando um sintagma que usava um sentido da palavra era seguido de um sintagma que usava a palavra no mesmo sentido, e interferência se o segundo sintagma usava a palavra em um sentido diferente. Esse resultado contradiz as predições de uma representação nuclear. Se existisse apenas um sentido nuclear, toda vez que um sintagma que usasse a palavra polissêmica fosse lido, o núcleo seria acessado e a extensão específi ca seria criada. Isso não prediria priming para sintagmas de sentido consistente, em comparação com a situação inicial. Embora um modelo nuclear pudesse ser modifi cado para permitir esse priming positivo (ver Klein e Murphy para discussão), a descoberta de interferência para sintagmas de sentido inconsistente é particularmente problemática para a visão do sentido único, porque não existe como fazer o priming de um sentido e inibir outro se eles não são funcionalmente separados. Os resultados são potencialmente compatíveis

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com um modelo núcleo-mais-sentidos. Entretanto, se existe interferência no uso de dois sentidos diferentes de uma palavra, o signifi cado nuclear não parece ter muito efeito: na medida em que os diferentes sentidos de uma palavra compartilham conteúdo semântico, poderíamos esperar facilitação ao invés de inibição. Então, se existe um signifi cado nuclear, ele não parece ser muito útil.

Os resultados de Klein e Murphy (2001) geram um problema para explicar a representação de sentido polissêmico. Por um lado, existe amplo acordo de que sentidos polissêmicos são altamente relacionados, de que eles são criados parcialmente por extensão semântica seguindo padrões previsíveis (NUNBERG, 1979; SWEETSER, 1990). Por outro lado, Klein e Murphy não encontraram priming para sentidos diferentes na tarefa de julgamento semântico, nem na de memória, sugerindo, então, mínima sobreposição semântica.

Uma maneira de resolver essa aparente contradição é questionar se os diferentes sentidos são relacionados da forma correta. Klein e Murphy (2001) sugeriram que os diferentes sentidos de palavras polissêmicas são relacionados, mas não são similares. Por exemplo, os sentidos de substância e fonte de notícias de paper são claramente relacionados, porque o jornal é impresso na substância. Entretanto, uma fonte de notícia não é, de fato, muito similar à polpa de madeira aplanada e alvejada. Uma extensão ainda mais distante é o uso ‘‘Th e paper fi red half its reporters,’’ [“O jornal demitiu metade de seus repórteres”], na qual paper signifi ca a companhia que publica um jornal. Uma corporação não tem sobreposição semântica com folhas de polpa de madeira, mesmo que exista uma relação temática entre os dois sentidos (a corporação imprime seu produto naquelas polpas de madeira). Como resultado, Klein e Murphy argumentam, os sentidos de palavras polissêmicas podem ser, de fato, bastante relacionados, como linguistas têm defendido, mas eles podem ser, ao mesmo tempo, bastante dissimilares. Quando eles são dissimilares, não é surpreendente que falantes representem tais sentidos separadamente. Se alguém descreve uma empresa editorial despedindo seus funcionários, a representação semântica de material escrito não ajudaria a entender o enunciado – ocorreria até o contrário.

Categorias de sentidos polissêmicos

Os presentes experimentos usam técnicas da psicologia dos conceitos a fi m de explorar a força e o tipo de relações entre sentidos polissêmicos. Se o argumento de Klein e Murphy está correto, então sentidos polissêmicos podem não ter sobreposição semântica, mas podem ser relacionados de outras formas. Existe uma relação próxima entre a representação psicológica de palavras e conceitos (CLARK, 1983; MURPHY, 1991). Em geral, pode-se pensar que as palavras selecionam categorias de objetos, eventos ou propriedades (MALT et al., 1999). Um modo de formular a questão sobre a estrutura de palavras polissêmicas, então, é perguntar

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que tipo de categoria ou categorias é selecionado quando a palavra é usada.Pesquisas sobre categorização têm revelado que existem múltiplas formas

de categorizar coisas. Em categorias taxonômicas, a forma de categorização estudada na maioria dos experimentos de categorização, os itens são agrupados de acordo com a relação entre os membros da classe. Itens nas categorias taxonômicas tais como dog [cachorro] ou furniture [mobília] são relacionados pela similaridade que têm entre si. Se estivermos certos ao dizer que sentidos diferentes de uma palavra são frequentemente dissimilares, então outros tipos de categorias também podem ter de ser considerados.

Em categorias temáticas, os itens são agrupados por coocorrência e relações funcionais em vez de agrupados por similaridade. Por exemplo, dog [cachorro] e bone [osso] ou umbrella [guarda-chuva] e rain [chuva] podem fi car juntos em categorias temáticas, mesmo que não sejam similares. Embora se pensasse que as categorias temáticas fossem um território apenas das crianças (ver Markman, 1989), pesquisas têm mostrado que elas são usadas de um modo mais geral, pelos idosos (ANNETT, 1959; SMILEY; BROWN, 1979), por populações não alfabetizadas (LURIA, 1976; SHARP; COLE; LAVE, 1979), e recentemente até por estudantes universitários (LIN; MURPHY, 2001; MURPHY, 2001; ROSS; MURPHY, 1999).

Outra forma de agrupar coisas é através de categorias derivadas de objetivo ou ad hoc (BARSALOU, 1983, 1991). Essas categorias juntam itens que satisfazem um mesmo objetivo, por exemplo, children [crianças] e jewelry [jóias] estão na categoria coisas para remover da casa em caso de incêndio. Essas são frequentemente categorias de momento, criadas e usadas instantaneamente. Apesar disso, há uma concordância geral a respeito de seus componentes. Uma última forma de relacionar coisas é vista em categorias radiais ou encadeadas (LAKOFF, 1987; MALT et al., 1999). Os itens em uma categoria radial adquirem um nome comum através de uma cadeia de itens similares. Então, uma caixa de papelão plastifi cado, contendo suco, pode ser chamada de juice box [caixa de suco] pela similaridade com caixas de papelão maiores, mas a próxima geração, feita de plástico, mantém o nome, bem como o faz a geração seguinte, que é feita de plástico colorido e tem a forma de um animal. Esse caso pode compartilhar poucas características com o que era inicialmente chamado de box [caixa], porém adquiriu tal nome pelo processo de extensão. Malt et al. (1999) argumentam que esse processo ocorre porque novas entidades precisam ser nomeadas e recebem nomes das entidades que são mais similares a elas. Como resultado de eventos de encadeamentos múltiplos, um nome original pode ser estendido para incluir objetos que não são similares entre si. Esse fenômeno se assemelha ao processo de extensão polissêmica, exceto por ser formulado por Malt et al. em termos de referência (nomes de objetos, em particular), ao passo que polissemia se refere a extensão para signifi cados novos. Por exemplo, recipientes de diferentes formatos, que são chamados de boxes [caixas], derivam do mesmo sentido geral da palavra, recipientes, mesmo se eles tiverem formas um tanto diferentes.

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Resumindo, existem diversos modos de formar uma categoria. Nos presentes experimentos, deixamos que os participantes decidissem quais tipos de categorias eles usariam para agrupar os sentidos. Mencionamos os diferentes tipos para mostrar que categorias baseadas na similaridade, que são as mais estudadas, não são a única forma de categorização. Assim, ao perguntar se sentidos formam categorias coerentes, não estamos exigindo que os sentidos sejam similares ou tenham qualquer relação particular esperada por nós. Como demonstrou uma pesquisa anterior, mesmo quando é pedido explicitamente aos participantes que se baseiem na similaridade taxonômica, eles podem se basear em outros critérios para formar categorias (LIN; MURPHY, 2001). Discutimos qual forma de categorização é a mais apropriada para descrever as relações entre sentidos na Discussão Geral.

Os experimentos de 1 a 5 solicitavam que os participantes formassem categorias baseados nos sentidos polissêmicos ou em outros tipos de relações categoriais. O experimento 6 observou se categorias polissêmicas fornecem uma base para inferência. Uma das principais funções das categorias é permitir inferência a novos membros. Se categorias polissêmicas têm alguma coerência, então elas deveriam permitir indução de um membro para outro, como é o caso das categorias taxonômicas (OSHERSONET al., 1990).

Experimento 1

Os três primeiros experimentos usaram uma tarefa de classifi cação de escolha forçada. Esse tipo de tarefa foi escolhido porque proporciona uma boa medida de como as pessoas escolhem agrupar itens com diferentes tipos de conexões entre eles e também é uma técnica muito comum em estudos de categorização (GELMAN; MARKMAN, 1986; LIN; MURPHY, 2001; MARKMAN, 1989; ROSCH et al., 1976; SMILEY; BROWN, 1979). Em nossa tarefa, foi dado aos participantes um sintagma alvo, que usava uma palavra polissêmica em um sentido, e dois sintagmas com potencial de escolha. Um dos sintagmas usava a palavra polissêmica em um sentido diferente, e o outro usava uma palavra que era ligada à palavra alvo taxonômica ou tematicamente. Ambas as palavras polissêmicas estavam em maiúsculas, assim como a palavra em posição correspondente na opção alternativa. Considere o exemplo a seguir:

wrapping PAPER [PAPEL de embrulho](1) liberal PAPER [JORNAL liberal] (2) smooth CLOTH [TECIDO macio]

A tarefa consistia em ler o sintagma alvo no topo e pensar sobre a palavra em maiúsculas no contexto do sintagma. Os participantes, então, decidiam qual das outras duas palavras em maiúsculas, no contexto de seus sintagmas,

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melhor se adequaria ao alvo para formar uma categoria. Por exemplo, se o paper de liberal PAPER ou o cloth de smooth CLOTH era mais parecido com o uso alvo de paper. Selecionar o sentido diferente de uma palavra polissêmica como relacionado ao alvo é uma indicação de que os dois são semanticamente similares, que talvez compartilhem uma representação nuclear.

Categorias taxonômicas ou temáticas foram usadas como a categoria alternativa porque elas são vastamente documentadas como sendo relações categoriais que as pessoas usam. As opções taxonômicas eram membros da mesma categoria superordenada que o alvo. Por exemplo, como mostrado acima, cloth foi escolhido como alternativa para o sentido material de paper, porque ambos são tipos de materiais. Como se sabe, categorias superordenadas são consideravelmente fracas e proporcionam poucos benefícios de processamento, na medida em que não têm muitas características em comum (ROSCH et al., 1976). Por exemplo, nomes superordenados não fornecem um priming efetivo numa tarefa de percepção, se comparados aos nomes de nível básico; além disso, eles são consideravelmente mais lentos em tarefas de classifi cação e são raramente usados para nomear objetos (ver Murphy e Lassaline, 1997, para uma revisão). Então, comparar sentidos polissêmicos a relações de categorias superordenadas não é um teste muito rigoroso da similaridade dos sentidos.

Na condição temática, um sintagma como sharp SCISSORS [TESOURA afi ada] seria a opção alternativa para paper. Se, como sugerimos, sentidos polissêmicos são relacionados sem que sejam muito similares, então, na condição de categoria taxonômica, é pedido aos participantes que comparem apples [maçãs] e oranges [laranjas], porque itens como cloth [tecido] e paper [papel] são, de certa forma, similares sem ter uma relação forte. A alternativa temática proporciona a situação oposta. Aqui, itens como paper e scissors [tesoura] ou tin [lata] e biscuit [biscoito] não são, de modo geral, similares, mas têm fortes relações espaciais ou funcionais. Se os participantes sentiram-se pressionados a escolher a alternativa da categoria taxonômica por causa de uma preferência por relações de similaridade, então isso não se daria na condição da alternativa temática.

Claramente, existe alguma relação percebida entre sentidos diferentes de uma palavra, embora remota. A questão analisada no Experimento 1 é se essa relação é tão forte e coerente quanto relações entre membros de categorias superordenadas ou itens tematicamente relacionados.

MétodoPré-teste. Foram criadas e testadas várias opções temáticas e taxonômicas para dois sentidos de cada palavra polissêmica alvo. Opções taxonômicas foram criadas pela determinação da categoria a qual o item do sintagma alvo pertencia e pela seleção de outro membro da categoria que não tinha uma relação temática

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aparente com o alvo. Por exemplo, para o sentido material de paper, a opção taxonômica selecionada foi cloth, outro material. Ao criar opções temáticas, nossa principal preocupação foi que a opção temática pudesse ser menos relacionada ao alvo do que a opção polissêmica, o que poderia causar mais escolha da opção polissêmica do que da opção temática no experimento. Por exemplo, a opção temática para o sentido material de paper foi scissors [tesoura]. Se essa opção temática não estivesse fortemente ligada ao alvo, os participantes poderiam se basear na palavra repetida presente na opção polissêmica. Para eliminar essa possibilidade, foi usado um pré-teste para selecionar itens de opção temática que fossem, pelo menos, tão relacionados ao alvo quanto o sintagma polissêmico. Os itens taxonômicos não foram testados quanto ao grau de relação, uma vez que eles são similares uns aos outros em vez de serem relacionados.

Um total de 204 sintagmas foi testado, com o objetivo de construir 180 sintagmas de opção para 30 palavras polissêmicas. Diferentes listas foram usadas para apresentar todas as palavras em todas as condições. Foram apresentados a quinze participantes um sintagma alvo e um sintagma de opção potencial, com a palavra polissêmica e a palavra da opção equivalente em maiúsculas na mesma posição. Eles classifi caram o grau de relação das duas palavras em maiúsculas no contexto de seus sintagmas com uma escala de sete pontos, sendo 1 nada relacionado e 7 altamente relacionado. As instruções explicavam que somente porque as duas palavras poderiam ser a mesma (como ocorreria nos casos onde a palavra polissêmica fosse uma opção), não signifi cava que elas eram necessariamente relacionadas, e a palavra modifi cadora deveria ser levada em consideração.

Através das medidas resultantes, foram selecionados alguns itens para melhor igualar o grau de relação entre opções temáticas e polissêmicas. A medida do grau médio de relação resultante para opções polissêmicas foi 2,64 e para opções temáticas foi 3,77. Essa diferença foi estatisticamente signifi cativa para os participantes e os itens, t (14) = 4,17, p < ,001; t (29) = 4,72, p < ,001. Ainda que o objetivo principal de as opções polissêmicas não serem mais relacionadas que as opções temáticas tenha sido atingido, o fato de as opções temáticas terem sido mais relacionadas pode ser preocupante. Particularmente, essa diferença poderia ser um problema se, no experimento em si, a opção temática fosse mais selecionada que a opção polissêmica, mas a opção taxonômica não o fosse.

Participantes. Trinta e dois falantes nativos de inglês, estudantes da Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign, participaram do experimento principal para cumprimento parcial das exigências da disciplina. Nenhum havia participado do pré-teste.Materiais. As palavras polissêmicas básicas e os sintagmas que distinguiam seus sentidos foram derivados de nosso trabalho anterior (KLEIN; MURPHY,

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2001), o qual verifi cou que os sintagmas, de fato, selecionaram diferentes sentidos de cada palavra. Para cada uma das 30 palavras polissêmicas, foi usado um total de oito sintagmas, sendo dois sintagmas alvo (um para cada um dos sentidos testados) e três sintagmas de opção possível para cada sentido: sentido polissêmico diferente, opção taxonômica e opção temática. Assim, havia quatro sintagmas que incluíam paper para compor os pares de sintagmas de mesmo sentido e de sentido diferente, como mostra a Tabela 2. O uso de ambos os sentidos como possíveis alvos garantiu que qualquer resultado não fosse devido ao fato de um sentido ser mais familiar ou preferido pelos falantes. Os participantes viram cada palavra polissêmica em apenas uma etapa, ou com uma alternativa temática ou com uma taxonômica. Metade das questões de cada participante tinha cada um dos tipos de opção (taxonômica ou temática).

Tabela 2. Exemplos de todos os sintagmas usados com a palavra paperSintagma Alvo Opção

Polissêmica Taxonômica TemáticaWrapping paper[Papel de embrulho]

Daily paper [Jornal Diário]

Liberal paper [Jornal liberal]

Shredded paper [Papel picado]

Smooth cloth[Tecido macio]

Evening news[Notícias da noite]

Sharp scissors [Tesoura afi ada]

Smart editor [Editor inteligente]

Nota. Cada etapa incluía um sintagma alvo e uma opção polissêmica, com uma opção taxonômica ou uma opção temática.

Procedimento. A tarefa era categorização de escolha forçada. Foi apresentado aos participantes o sintagma alvo, que continha uma palavra polissêmica usada em um de seus sentidos, no centro da tela; 750 ms depois, duas opções apareciam na tela abaixo do alvo. Como mostrado acima, a palavra relevante em cada sintagma estava em maiúsculas. Os participantes foram instruídos a decidir qual das duas palavras em maiúsculas contidas nas opções, como usada no sintagma, melhor formava uma categoria com o primeiro item. A posição dos sintagmas polissêmicos e das opções alternativas foi randomizada. Os participantes responderam digitando o número que correspondia à sua opção e pressionando a barra de espaço para começar a próxima etapa. Eles podiam utilizar tanto tempo quanto fosse necessário. Havia 30 etapas.

As instruções davam a seguinte defi nição de categoria (adaptado de Lin e Murphy, 2001): “Uma categoria é um conjunto de coisas que compartilham algumas semelhanças – sejam elas de composição genética, de funções, de propósitos, de características físicas e perceptuais, ou de comportamentos”. Os participantes também foram lembrados de que “Algumas palavras que,

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isoladamente, parecem relacionadas, podem não ser tão relacionadas no contexto. Você deve julgar a palavra como ela é usada no modo específi co sugerido pelo contexto”, para enfatizar que eles não deveriam agrupar automaticamente as palavras polissêmicas. O experimento foi rodado em um computador Macintosh usando PsyScope (COHEN et al., 1993).

Resultados e discussãoDado cada alvo, os participantes podiam escolher ou uma opção polissêmica

ou uma opção de categoria regular (ou taxonômica ou temática). Os resultados mostraram que as pessoas escolheram a opção polissêmica apenas em cerca de 20% das vezes, independentemente de a opção alternativa ser taxonômica (M = 20,2%) ou temática (M = 19,6%). Esse resultado é signifi cativamente menor do que o acaso para participantes e itens, tanto para as opções de alternativa taxonômica (t(31) = 9,96, p < ,001; t(29) = 12,36; p < ,001) quanto para as opções de alternativa temática (t(31) = 16,45; p < ,001; t(29) = 8,88, p < ,001). Esses resultados indicam que as pessoas geralmente não percebem os sentidos polissêmicos como uma categoria, mesmo que eles compartilhem a mesma forma. Os resultados também proporcionam uma averiguação de manipulação de que alternativas taxonômicas e temáticas eram de fato relacionadas ao sintagma alvo. Tanto as alternativas taxonômicas quanto as temáticas foram preferidas aos sentidos polissêmicos, e de fato são preferidas na mesma proporção. Sem dúvida, as relações temáticas razoavelmente fortes usadas foram parcialmente responsáveis pelo seu alto nível de seleção. Entretanto, a mesma preferência foi mostrada para relações de categorias superordenadas, tais como paper e cloth (ambos materiais) ou tin [lata] e basket [cesta] (ambos recipientes), o que nós apontamos ser um nível fraco de categoria taxonômica. Além disso, se se acredita que adultos deveriam evitar categorias temáticas, como tem sido tradicionalmente defendido (INHELDER; PIAGET, 1964), é muito surpreendente que os sentidos polissêmicos possam superá-las apenas em 20% das vezes.

Uma questão que se coloca é em que grau os resultados médios refl etem diferenças individuais nas respostas. Se poucos participantes fi zessem muitas escolhas polissêmicas, mas a maioria deles não fi zesse, a presença daqueles que preferiram escolhas polissêmicas seria mascarada. Na verdade, Lin e Murphy (2001) descobriram que participantes usualmente tinham preferência muito forte para um tipo de categorização, no caso deles, taxonômica ou temática, mas os resultados médios escondiam essas preferências. Um exame de nossos resultados não mostrou tal tendência. Apenas dois dos 32 participantes escolheram a opção polissêmica mais de 50% das vezes, sem diferenças claras entre as alternativas taxonômicas e temáticas. As drásticas preferências por respostas diferentes encontradas por Lin e Murphy não foram aparentes nesses dados.

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Experimento 2

O Experimento 1 demonstrou que as pessoas preferem não agrupar sentidos diferentes de uma palavra polissêmica. Existem muitas explicações não interessantes para esse resultado. As instruções podem, de alguma maneira, ter encorajado os participantes a escolher as opções de alternativa taxonômica ou temática. Talvez os participantes tenham pensado que os itens que compartilhavam uma palavra eram uma opção “muito óbvia”. Outra possibilidade é que, pelo fato de categorias taxonômicas serem mais tradicionais, os participantes acharam as opções taxonômicas tão convincentes que jamais agrupariam dois sintagmas polissêmicos, embora isso obviamente não explique a preferência equivalente pelas opções temáticas.

Para testar essas hipóteses, o Experimento 2 usou as mesmas instruções, alternativas e tarefas que o Experimento 1, mudando apenas os sintagmas críticos. Neste experimento, o alvo e a opção polissêmica usaram o mesmo sentido da palavra polissêmica. Por exemplo, anteriormente o alvo wrapping paper [papel de embrulho] (que usa o sentido material de paper) tinha sido pareado com liberal paper [jornal liberal] (que usa o sentido de fonte de notícia de paper). No presente experimento, wrapping paper [papel de embrulho] foi pareado com shredded paper [papel picado] (ambos usando o sentido material de paper), e daily paper [jornal diário] foi pareado com liberal paper [jornal liberal]. Note que exatamente os mesmos sintagmas foram usados no Experimento 1 – eles foram apenas repareados a fi m de que cada tríade tivesse sintagmas usando palavras no mesmo sentido. As opções taxonômicas e temáticas não foram mudadas. Se os resultados anteriores fossem devidos à evitação de palavras iguais, à preferência por categorias tradicionais ou às instruções, os mesmos resultados deveriam ser encontrados aqui.

MétodoO método usado foi idêntico ao do Experimento 1, exceto pelo fato de que os

itens foram repareados a fi m de que em cada tríade o alvo e a opção polissêmica usassem o mesmo sentido. Trinta e dois falantes nativos de inglês, estudantes da Universidade de Illinois, que não haviam participado do experimento anterior, participaram desse experimento para cumprimento parcial das exigências da disciplina.

Resultados e discussãoPara cada sintagma alvo, os participantes podiam escolher ou o sintagma

contendo a mesma palavra (agora usada no mesmo sentido), ou a opção alternativa (taxonômica ou temática). Nesse estudo, quando a opção polissêmica foi usada no mesmo sentido que o alvo, os participantes a escolheram em cerca

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de 70% das vezes, em contraste com os 20% do Experimento 1. A preferência pela opção polissêmica foi agora maior que o acaso para participantes e itens, tanto para as opções de alternativa taxonômica (M = 73,1%; t(31) = 8,81, p < ,001; t(29) = 6,54, p < ,001) quanto para as opções de alternativa temática (M = 69,4%; t(31) = 6,87, p < ,001; t(29) = 5,58, p < ,001). Lembrando que, no Experimento 1, tais escolhas foram realizadas com uma frequência signifi cativamente menor do que se esperaria ao acaso. Como no Experimento 1, as opções temáticas e taxonômicas foram escolhidas com a mesma frequência.

Esses resultados indicam que os resultados do Experimento 1 não foram devidos a qualquer viés de palavra repetida, preferência por categorias tradicionais ou efeitos de instruções, uma vez que esses fatores estavam igualmente presentes no Experimento 2. Em vez disso, eles podem ser atribuídos à independência dos sentidos diferentes.

Análise de similaridadeResultados muito diferentes foram encontrados para os sintagmas de mesmo

sentido do Experimento 2 e para os de diferente sentido do Experimento 1. Nós separamos os itens em pares de “mesmo sentido” e “diferente sentido”, mas sem dúvida existe um continuum de similaridade dos signifi cados de uma dada palavra em contextos diferentes. Alguém poderia, então, questionar se a similaridade tem um efeito nos itens de sentido diferente. Por exemplo, talvez os sentidos de material e de fonte de notícia de paper não sejam muito similares, ao passo que os sentidos de árvore e de material de oak [carvalho] o sejam. Isso poderia, por sua vez, afetar a percepção de relações categoriais entre eles.

Para testar isso, foram examinadas as taxas de similaridade dos pares de sintagma do Experimento 1, coletadas na etapa de seleção de estímulo de Klein e Murphy (2001). Nesta tarefa, vinte participantes avaliaram a similaridade dos sintagmas usando a mesma palavra polissêmica em uma escala de 1-7. Nós correlacionamos essas avaliações com os resultados de classifi cação obtidos no Experimento 1. Ou seja, para cada par, nós correlacionamos a similaridade de sintagmas de sentido diferente com a frequência com que esses dois sintagmas eram agrupados na mesma categoria. Essa correlação foi confi ável, tanto para as alternativas taxonômicas quanto para as temáticas, ambas apresentaram r’s = ,42; p < ,05. Para ilustrar esse efeito, os itens do Experimento 1 foram divididos em cinco grupos de mesmo tamanho, baseados na similaridade dos dois sentidos, como mostra a Tabela 3. Uma análise das taxas de classifi cação de polissemia para cada grupo mostra a tendência esperada: os itens geralmente classifi cados como menos similares foram menos classifi cados como membros da mesma categoria, e com o aumento da similaridade, também aumentaram os agrupamentos polissêmicos. No entanto, é importante notar que mesmo o grupo dos itens com mais similaridade foi classifi cado na mesma categoria

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menos de 30% das vezes. Deste modo, mesmo para os sentidos mais similares testados, os sentidos diferentes de uma palavra não foram em geral percebidos como membros de uma mesma categoria.

Tabela 3. Percentual médio das vezes em que os sintagmas polissêmicos foram escolhidos no Experimento 1 como uma função de similaridade (numa escala de 1-7, sendo a similaridade mais baixa correspondente ao número mais baixo)

Taxa de similaridade OpçãoTaxonômica Temática

1.6–1.92.0–2.252.3–2.652.7–3.13.2–4.3

7.316.025.025.927.1

6.39.026.326.828.1

A reanálise do Experimento 1, combinada com os achados do Experimento 2, demonstrou que a polissemia forma um continuum. Pares de mesmo sentido são frequentemente, mas não sempre, percebidos como membros de uma mesma categoria. Usos de uma palavra com sentidos diferentes são raramente colocados na mesma categoria, mas sentidos que são mais similares também foram classifi cados na mesma categoria com maior frequência na tarefa de classifi cação. Assim, polissemia não é uma questão de tudo ou nada, pelo contrário, refl ete uma gradação de proximidade entre os diferentes sentidos. Essa variação previsível na categorização também mostra que a tarefa de classifi cação é sensível à sobreposição semântica e, por isso, reforça a importante descoberta de que diferentes usos de uma mesma palavra não são, em geral, colocados na mesma categoria.

Experimento 3

Embora no Experimento 1 a classificação dos diferentes sentidos de uma palavra polissêmica na mesma categoria tenha sido muito inferior às classifi cações taxonômica e temática, a classifi cação polissêmica ainda foi encontrada em torno de 20% das vezes. Essa quantia é significativa? Argumentamos que essa é uma quantia muito pequena, mas parece que sintagmas completamente não relacionados raramente seriam colocados no mesmo grupo, e o fato de sentidos polissêmicos serem algumas vezes agrupados pode indicar uma relação fraca, mas não nula, entre eles. Entretanto, esse número também poderia refl etir alguma tendência de se colocarem na mesma categoria sintagmas que contenham a mesma palavra independentemente do signifi cado real dos sintagmas, ou por um simples erro ou falta de atenção.

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Responder a essa pergunta exige que estabeleçamos uma medida inicial da frequência com que as pessoas classifi cam na mesma categoria sintagmas não relacionados contendo a mesma palavra. Isso foi realizado através do uso das homonímias, as quais têm signifi cados não relacionados. Um sintagma contendo um dos signifi cados foi usado como alvo, e um sintagma envolvendo outro signifi cado foi usado como uma das opções. A outra opção usou uma palavra tematicamente relacionada ao signifi cado alvo da homonímia. Foram usadas opções temáticas porque foi encontrada nos Experimentos 1 e 2 uma preferência quase idêntica para opções taxonômicas e temáticas; e porque poderíamos igualar seu grau de relação nos itens polissêmicos e homônimos. Um exemplo de tríade com homônimos é:

national BANK [BANCO nacional](1) river BANK [MARGEM do rio] (2) checking ACCOUNT [CONTA corrente]

A questão de interesse era a frequência com que os participantes escolheriam o sintagma com a mesma palavra (river BANK), mesmo que seu signifi cado não fosse relacionado ao sintagma alvo. Para fi ns de comparação, os itens polissêmicos do Experimento 1 também foram incluídos.

Níveis equivalentes de escolha das opções polissêmicas e homônimas mostrariam que a tendência em agrupar sentidos polissêmicos diferentes se deve apenas ao compartilhamento da forma da palavra. Isso daria suporte a um modelo em que existem conexões praticamente não percebidas entre os sentidos de uma palavra polissêmica. A descoberta de um menor agrupamento de signifi cados homônimos indicaria que participantes reconhecem algumas sobreposições conceituais dos dois sentidos polissêmicos.

Um modo diferente de pensar esse experimento é como sendo uma forma de avaliar mais precisamente quão relacionados são os sentidos polissêmicos entre si. Se o grau de relação de sentido se situa em um continuum, a condição homonímica pode ser pensada como estando no limite mais baixo desse continuum. Os resultados irão determinar a posição dos sentidos polissêmicos em relação a esse limite mais baixo.

MétodoParticipantes. Trinta e dois novos falantes nativos de inglês, estudantes da Universidade de Illinois, participaram desse experimento para cumprimento parcial das exigências da disciplina.

Materiais. Foram utilizados nesse experimento os 30 itens polissêmicos do Experimento 1 em suas tríades de alternativa temática. Além disso, foram criados 24 itens homonímicos, juntamente com as opções temáticas correspondentes.

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Os itens homônimos foram encontrados na literatura sobre acesso lexical, e seu caráter homonímico era verifi cado de maneira independente através da confi rmação de que seus signifi cados tinham entradas diferentes no dicionário. Entre elas estão homonímias frequentemente testadas, como calf [bezerro/panturrilha], match [partida/palito de fósforo] e bank [instituição fi nanceira/margem do rio]. Elas estão listadas no apêndice de Klein e Murphy (2001). Ambas as interpretações de itens polissêmicos e homônimos foram usadas como alvo. As alternativas temáticas foram pré-testadas para assegurar que elas eram igualmente relacionadas quanto aos dois tipos de palavras. As opções temáticas estavam igualmente próximas no que diz respeito aos itens polissêmicos (taxa 4,11 de um máximo de 7) e homônimos (taxa 4,37) , t(8) = 1,84, p > ,10; t(52) = 1,04, p > ,30. Assim, se os resultados apresentarem diferenças entre os dois tipos de item, eles não terão se dado por diferenças de grau de relação com suas alternativas temáticas. Os participantes viram cada palavra em apenas uma tríade, e listas diferentes foram utilizadas para apresentar todas as palavras em todas as condições.

Procedimentos. A tarefa era idêntica àquela utilizada no Experimento 1, ou seja, uma categorização de escolha forçada com 54 etapas.

Resultados e discussãoOs participantes poderiam escolher a opção com a alternativa temática

ou a opção com a mesma palavra (polissêmica ou homônima). Os resultados mostraram que as pessoas escolheram a opção polissêmica em 14,1% das vezes, mas selecionaram a opção homônima em apenas 6,6% das vezes, e essa diferença foi confi ável tanto para os participantes quanto para os itens, t(31) = 3,66, p < ,001; t(52) = 3,47, p < ,005.

Quando os dados foram examinados mais atentamente, foram encontrados três itens homonímicos cujos signifi cados podem não ter sido bem distinguidos em seus sintagmas, resultando em níveis relativamente altos de escolha homonímica (19-28%). Esses itens se mostraram atípicos, e quando eles foram removidos, a diferença entre itens polissêmicos e homonímicos foi ainda maior, aumentando para 9,7%. Entretanto, os resultados mostram que mesmo usos não relacionados de uma palavra serão agrupados em algumas vezes, então uma medida inicial é necessária como comparação para os itens polissêmicos. Não se sabe se os 6,6% das escolhas homônimas são decorrentes de “erro” ou julgamentos legítimos quanto ao grau de relação (e esse não foi o foco do experimento).

Os resultados mostram que existe uma vantagem para as palavras polissêmicas em relação às homônimas, e que, deste modo, os itens polissêmicos compartilham mais conexões do que apenas uma palavra repetida. Os sentidos polissêmicos têm mais coerência conceitual do que os diferentes signifi cados

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homônimos. Entretanto, os resultados também revelam que essas conexões não são nada fortes. O agrupamento de sintagmas polissêmicos foi de apenas 20% no Experimento 1 e 14% neste experimento. Embora isso seja signifi cativamente maior do que uma medida inicial adequada, esse é um valor claramente baixo.

Em poucas palavras, esses resultados são tranquilizadores em dois aspectos. Primeiro, eles replicam a baixa quantidade de classificação de sentidos polissêmicos encontrada no Experimento 1. Entretanto, eles também confi rmam a intuição de que esses sentidos são mais relacionados do que os signifi cados de homonímias, e que a tarefa de classifi cação foi sensível o sufi ciente para revelar até mesmo pequenas diferenças no grau de relação.

Experimento 4

Os resultados até aqui sugerem que sentidos polissêmicos são relacionados, mas não de modo muito forte. Os resultados ajudam a explicar a falta de transferência positiva da interpretação de uma palavra em um sentido à interpretação em outro sentido (KLEIN; MURPHY, 2001). Os Experimentos 4 e 5 tentam caracterizar a natureza da relação entre os diferentes sentidos de uma palavra. Na visão do sentido único, as pessoas geram a maioria dos sentidos a partir de um signifi cado nuclear, então não se questiona como tais sentidos são relacionados na memória. Na visão do sentido separado, as pessoas armazenam os usos familiares de uma palavra separadamente. Como esses diferentes usos são representados e coordenados na memória? Uma possibilidade é que eles sejam simplesmente criados e armazenados independentemente, na medida em que as pessoas se deparam com eles. (por exemplo ver discussão em Kawamoto, 1993; Klein e Murphy, 2001). Outra possibilidade é a de que os sentidos estão conectados por algum tipo de ligação rotulada. Para explicar como isso é possível, precisamos analisar brevemente alguns trabalhos em linguística sobre polissemia.

Como foi explicado na introdução, palavras polissêmicas frequentemente seguem padrões familiares. Dentro de um campo semântico, um certo número de palavras pode ter uma forma consistente de polissemia. Por exemplo, palavras que se referem a animais podem também ser usadas (como substantivos incontáveis) para se referir à carne de tais animais:

(4) I saw a/I ate some. . . chicken, horse, fi sh, rat, squid. [Eu vi/comi um(a)... frango, cavalo, peixe, rato, lula.]

Quase todos os nomes podem ser usados para se referir a um único membro de uma categoria, bem como à categoria inteira, como em (5).

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(5) a. Th e dog has been domesticated for millennia. [O cachorro tem sido domesticado há milênios.] (a classe de cachorros)b. Th e dog is drooling on the baby. [O cachorro está babando no bebê.] (um membro da classe)

Dentro do domínio de fontes de informação, a maioria dos nomes que se referem ao recipiente da informação pode ser usada polissemicamente para se referir ao próprio objeto e à informação nele contida, como mostrado anteriormente em (2) e (3). Existem outros padrões produtivos dentro de domínios específi cos, como aqueles discutidos por Leher (1990), Numberg, (1979), e Sweetser (1990), entre outros.

O uso de padrões familiares de polissemia poderia infl uenciar a representação e o processamento de palavras polissêmicas. Considere primeiramente a visão do sentido único. Nessa visão, a maioria dos sentidos é fruto da derivação que se dá através dessas regras familiares de extensão de signifi cados (por exemplo, Caramazza e Grober, 1976). Se esse processo é semelhante à maioria dos outros processos mentais, a aplicação do padrão em um caso deveria afetar futuros usos do mesmo padrão. Por exemplo, se alguém aplica a extensão animal-carne em um caso, isso deve acelerar o uso dessa extensão em um caso subsequente, mas teria pouco efeito na aplicação da extensão objeto-conteúdo.

Da mesma forma, suponha-se que aqueles sentidos são pré-armazenados em ligações rotuladas. É possível que o cruzamento entre o sentido de animal para o sentido de carne em uma determinada palavra benefi cie o acesso da mesma ligação para outra palavra. Aqui, a predição não é tão certa, uma vez que diferentes ligações estariam envolvidas. (por exemplo dois sentidos de chicken [frango] em um caso e os dois sentidos de salmon [salmão] no outro). Entretanto, se assumimos que os padrões familiares de polissemia são explicitamente representados, então parece que a escolha de um padrão deveria benefi ciar outro padrão cuja rotulação é idêntica.

O Experimento 4 investigou essa possibilidade, perguntando se uma tarefa que serve para fazer priming de informação sobre a relação entre os sentidos diferentes resultará em mais escolhas polissêmicas. Mais especifi camente, ler um parágrafo que usa dois sentidos diferentes de uma palavra polissêmica pode levar os participantes a ver que os sentidos estão ligados e como um é uma extensão do outro. Essa informação específi ca sobre uma relação entre sentidos pode criar priming de uma relação similar na tarefa de categorização, levando os sentidos polissêmicos a serem colocados no mesmo grupo um número maior de vezes. A visão do sentido único claramente leva a tal predição, e a noção de ligação rotulada certamente seria consistente com tal achado. Então, este experimento deveria ajudar a revelar a natureza das relações de armazenamento, se há alguma, entre sentidos polissêmicos.

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Cada etapa teve três partes. Primeiro, os participantes liam um pequeno parágrafo que usava dois sentidos de uma nova palavra polissêmica. Depois, eles anotavam as semelhanças entre os dois sentidos. Isso foi feito para assegurar que eles haviam entendido os dois sentidos da palavra e haviam pensado sobre a ligação entre eles. Logo em seguida, eles realizavam uma tarefa de escolha forçada semelhante àquela usada nos experimentos anteriores. A variável independente foi a relação entre o primeiro parágrafo e a tarefa de classifi cação. Os dois sentidos da palavra polissêmica usada no parágrafo poderiam ser paralelos ou não à relação entre os dois sentidos na tarefa de escolha forçada. Essa palavra estava relacionada a uma das palavras experimentais por ter a mesma relação entre os sentidos diferentes. Por exemplo, videotape [fi ta de vídeo] pode ser usada com o sentido de material (disintegrating videotape [fi ta de vídeo se desintegrando]) ou fonte de informação (boring videotape [fi ta de vídeo entediante]), o que é paralelo aos sentidos de material e fonte de notícia de paper. Se as pessoas representam e utilizam tais padrões, então ler um parágrafo envolvendo esse padrão poderia levar à preferência por agrupar os sentidos análogos de paper na tarefa de escolha forçada.

Entretanto, é possível que o fato de ser forçado a considerar a mesma palavra em dois usos pudesse funcionar como uma característica de demanda, resultando em aumento na escolha das alternativas polissêmicas, independentemente do parágrafo precedente em particular. Ou seja, simplesmente repetir a palavra videotape poderia chamar atenção à palavra paper repetida no teste. Para eliminar essa possibilidade, foi usado um parágrafo controle que também continha dois sentidos de uma palavra polissêmica, mas que não envolvia a relação específi ca entre os sentidos testados. Por exemplo, o parágrafo poderia usar a palavra wrap nos sentidos de vestimenta [lenço] e culinária [panqueca], os quais não possuem a mesma relação que os dois sentidos de paper. Esse parágrafo não deveria, então, conduzir a uma tendência a colocar os dois sentidos de paper em um mesmo grupo.

A terceira parte de cada etapa foi idêntica à tarefa de escolha forçada usada no Experimento 1, usando apenas as alternativas taxonômicas (não foi encontrada diferença entre alternativas temáticas e taxonômicas nos Experimentos 1 e 2. Além disso, por causa da natureza da tarefa priming, havia a possibilidade de ligações temáticas serem evocadas de forma não consciente a partir do parágrafo anterior, o que alteraria a manipulação).

Por exemplo, os participantes leriam um dos seguintes parágrafos

Paralelo com paper: Th e videotape they were watching was very boring. Worse, the quality was poor and the videotape was disintegrating as they played it.[A fi ta de vídeo que eles estavam assistindo era muito chata. Pior ainda, a qualidade era pobre e a fi ta de vídeo se desintegrava quando era rodada.]

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Não-paralelo com paper: Rebecca pulled her wrap around her shoulders as they walked into the restaurant. Inside, she ordered a tortilla wrap with black beans.[Rebecca colocou seu lenço sobre os ombros enquanto caminhavam para o restaurante. Lá ela pediu uma panqueca de feijões pretos.]

Após escreverem as semelhanças entre os dois sentidos de cada videotape (usando o mesmo padrão polissêmico de paper) ou wrap (usando um padrão diferente), os participantes viram a mesma tríade para paper do Experimento 1 e realizaram a mesma tarefa. Se padrões polissêmicos são representados de maneira explícita, prediz-se que a classifi cação dos diferentes sentidos de paper (como membros de uma categoria) deveria ser maior após o parágrafo paralelo em comparação ao não paralelo.

MétodoParticipantes. Participaram deste experimento 24 falantes nativos de inglês, estudantes da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, que não haviam participado dos experimentos anteriores.

Materiais. Foram encontradas novas palavras polissêmicas que correspondiam ao conjunto original por terem a mesma relação entre os sentidos. Elas foram, então, inseridas em pequenos parágrafos que usavam os dois sentidos. Os itens do teste eram idênticos às tríades taxonômicas usadas no Experimento 1. Metade das etapas de classifi cação foi precedida de um parágrafo paralelo, e a outra metade, por um não paralelo, distribuídas igualmente entre os participantes.

Procedimento. Como foi descrito acima, havia três partes intercaladas em cada etapa do experimento. A primeira parte era ler um parágrafo curto. Então os participantes escreviam semelhanças entre os dois sentidos da palavra polissêmica usada no parágrafo. A terceira parte foi a tarefa de categorização de escolha forçada usada em experimentos anteriores. Então, a tríade de escolha forçada foi imediatamente precedida por seu contexto de priming. Os participantes receberam instruções de que essas tarefas não eram relacionadas e foram intercaladas para “se evitar o cansaço”. Um questionário informal após o experimento revelou que os participantes aceitaram essa explicação. Havia trinta etapas.

ResultadosA variável dependente nesse experimento foi a porcentagem de classifi cação polissêmica em relação a cada um dos parágrafos paralelo e não-paralelo. Os resultados mostraram que as pessoas escolheram a opção polissêmica apenas em 18% das vezes, sem levar em consideração o contexto anterior. Essa foi a

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mesma proporção encontrada nos Experimentos 1 e 3. Não houve diferença na porcentagem de classifi cação polissêmica quando ela era precedida pelo parágrafo paralelo (17,4%) ou pelo não paralelo (18,0%) (todos os t’s< 1).

Há diversos motivos possíveis para explicar porque a manipulação não teve efeito. Uma é que as relações usadas nos parágrafos de priming não eram similares o sufi ciente às palavras polissêmicas testadas. Para deixar a relação entre as duas partes da tarefa mais explícita e deixar o priming das relações de sentido mais exato, um experimento foi conduzido usando palavras polissêmicas idênticas no parágrafo e na tarefa de escolha forçada. A discussão será adiada até que os resultados sejam apresentados.

Experimento 5

Na tentativa de “chamar atenção” dos participantes para obter um determinado resultado, repetimos o experimento anterior, apenas utilizando os parágrafos priming que incluíam a mesma palavra que foi testada. Isso garantiu que os mesmos sentidos e as mesmas relações de sentido fossem envolvidos no parágrafo priming e na tarefa de classifi cação. Usar a mesma palavra também deu conta da possibilidade de a relação entre um videotape e seu conteúdo (ver o exemplo acima) não ser exatamente a mesma que entre paper e seu conteúdo. Se a informação concreta sobre as conexões entre sentidos é armazenada, ativar essa conexão deveria resultar em mais priming do que ativar a relação análoga de uma palavra diferente.

 Os parágrafos de controle utilizados no Experimento 4 não puderam ser utilizados aqui, pois eles incluíam palavras diferentes (por exemplo, videotape em vez de paper), em comparação com os parágrafos priming. Sendo assim, comparamos parágrafos que usavam a palavra alvo duas vezes, de uma forma que fosse paralela ou não paralela à tríade seguinte. A condição paralela usava a palavra em dois sentidos diferentes, enquanto que a condição não paralela (de controle) usava a palavra no mesmo sentido duas vezes e assim não faria prime da relação entre os dois sentidos. Por exemplo, os participantes veriam um dos parágrafos seguintes antes de fazer a tarefa de classifi cação com paper.

Paralelo: Bill fi nished reading the morning paper and went to go get ready for the birthday party. He got out some shiny paper to cover the gift in. [Bill acabou de ler o jornal matinal e foi se arrumar para o aniversário. Ele pegou um papel acetinado para cobrir o presente.] Não-paralelo (sentido material): Th e night before Christmas, Bill fi nished rolling the mug in paper and moved on to the next gift . He got out some shiny paper to cover the toy in.

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[Na noite anterior ao natal, Bill acabou de embrulhar a caneca em papel e seguiu para o próximo presente. Ele pegou um papel acetinado para embrulhar o brinquedo.]Não-paralelo (sentido de fonte de notícias): Bill fi nished reading the morning paper and went to go get ready for work. He got out yesterday’s paper for the train. He hadn’t fi nished the crossword puzzle. [Bill acabou de ler o jornal matinal e foi se arrumar para o trabalho. Ele levou o jornal de ontem para o trem. Ele não havia terminado as palavras-cruzadas.]

Os parágrafos não paralelos controlavam o número de ocorrências da palavra polissêmica, sem fazer prime para a relação entre os sentidos. Se há uma representação estabelecida na relação semântica entre os sentidos, o fato de a relação ser processada nos parágrafos paralelos, mas não nos não paralelos, deveria levar a um aumento das escolhas polissêmicas nos parágrafos paralelos.

Método O procedimento foi idêntico ao do Experimento 4, já que os participantes

liam parágrafos curtos contendo dois sintagmas que incluíam uma palavra polissêmica, seguidos pela tarefa de classifi cação. No entanto, desta vez os dois sintagmas incluíam ou os mesmos sentidos ou diferentes sentidos da palavra alvo. O parágrafo não paralelo usava o mesmo sentido da opção da tríade seguinte; entre os participantes, os diferentes sentidos foram usados como primes não paralelos com a mesma frequência. Havia 32 novos participantes da mesma população.   Resultados

Os participantes escolheram a opção polissêmica 15,2% das vezes quando recebiam um parágrafo que incluía ambos os sentidos, e 11,5% das vezes quando o parágrafo anterior incluía apenas o sentido alvo, o que não é uma diferença confi ável, t(31) = 1,47, p = ,15; t(29) = 2,01, p < ,06. A diferença entre os tipos de parágrafo chegou próxima a um valor confi ável na análise dos itens, mas dada a força da manipulação, esperava-se uma diferença muito maior. A diferença é pequena e os números absolutos são bem baixos, mostrando que a tarefa do parágrafo anterior não teve um grande efeito sobre a classifi cação. Por exemplo, a classifi cação polissêmica na condição primed é menor em termos absolutos do que aquela encontrada nos Experimentos 1 e 4. Mesmo se a diferença fosse mais confi ável com mais participantes, o impacto muito pequeno do efeito dá pouca segurança quanto à existência de relações rotuladas ligando os sentidos. De fato, esse efeito nulo é bastante surpreendente, já que os participantes podem ter percebido de maneira consciente a relação entre os parágrafos priming e as frases do teste.

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Discussão Os três primeiros experimentos mostraram que pessoas não veem ligações

fortes entre os diferentes sentidos de uma palavra polissêmica, embora as conexões fossem mais fortes do que nos diferentes sentidos de homonímias. Os experimentos 4 e 5 estavam voltados mais especifi camente para a questão da forma dessas relações. Se os sentidos fossem construídos ativamente pela aplicação de um padrão polissêmico ao sentido nuclear das palavras, deveria ter havido priming das relações quando esses padrões foram repetidos. Porém, não houve priming signifi cativo, o que é inconsistente com a noção de que os sentidos são construídos a partir de um núcleo. Assim, esse resultado é consistente com a conclusão de Klein e Murphy (2001) de que os sentidos são representados separadamente.

Para sentidos pré-armazenados, seria ainda possível que ligações fossem rotuladas de acordo com a forma de polissemia que as gera. Certamente, ligações desse tipo são bastante comuns em teorias de memória semântica desde Collins e Quillian (1969). Se algo como uma ligação do tipo carne-animal estiver envolvida na especifi cação dos sentidos relevantes de chicken [frango], então pode-se esperar que o uso do mesmo tipo de ligação na mesma (ou em outra) palavra apresente priming. Poderíamos questionar se a respectiva tarefa seria realmente capaz de apresentar tal priming, mas manipulações semelhantes em outros domínios apresentaram priming análogo. Especifi camente, ler e realizar uma tarefa com uma combinação conceitual (por exemplo, snake smile [sorriso de cobra] com o sentido de abrir um sorriso ao ver uma cobra) infl uencia a interpretação de combinações subsequentes potencialmente ambíguas (por exemplo, dog smile [sorriso de cachorro]) (GAGNÉ, 2001; GERRIG; MURPHY, 1992; KLEIN; SHOBEN, 1998). Como a interpretação da combinação tem a ver com fazer prime de um tipo de relação em particular (um sorriso em resposta a uma cobra), isso parece análogo à tentativa de fazer prime da relação entre sentidos de uma palavra (carne-animal; objeto-conteúdo) (ver também Murphy, 1990). Provavelmente, a diferença está no fato de os sentidos diferentes dessas palavras polissêmicas já estarem armazenados na memória semântica, em oposição a serem construídos online, como é o caso de novas combinações. Assim, o fato de tais efeitos serem alcançados em combinações conceituais sugere que um processo de construção online não seja a maneira como as pessoas processam sentidos familiares.

Assim como com qualquer resultado nulo, é obviamente possível que trabalhos futuros possam achar evidências para a existência de relações de sentidos armazenados, talvez utilizando uma tarefa diferente. Os valores marginais na análise dos itens do Experimento 5 sugerem que, se houver tal efeito, ele estará ligado a um item lexical em particular em vez de ser um fenômeno generalizado. Isto é, usar o padrão de polissemia carne-animal para

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uma palavra aparentemente não afeta o mesmo padrão em outra palavra. No entanto, usar chicken [frango] em ambos os sentidos pode ativar a relação entre os dois sentidos dessa palavra. Se for verdade, isso pode sugerir que a relação carne-animal não é consistente entre itens lexicais como os linguistas pressupõem. Por outro lado, isso poderia refl etir uma limitação do processamento, no qual a relação rotulada em uma palavra não afeta o uso da mesma relação em outra palavra. No entanto, especulações a respeito desse assunto são prematuras, dado o pequeno efeito encontrado no Experimento 5, o qual não alcançou níveis convencionais de signifi cância.

Experimento 6

Descobrimos até agora que as pessoas normalmente não percebem os sentidos diferentes de palavras polissêmicas como fazendo parte da uma mesma categoria, mesmo quando as relações entre esses sentidos passam por priming. No entanto, a tarefa de classifi cação usada nos estudos anteriores depende de decisões conscientes sobre o que constitui uma categoria: os participantes foram instruídos a pensar sobre os sintagmas e depois agrupá-los baseando-se em suas intuições. É possível que as relações entre os diferentes sentidos estejam presentes na estrutura semântica propriamente dita, mesmo que os participantes não acreditem que elas formam “uma categoria”. Assim, nós utilizamos uma tarefa diferente com um tipo diferente de decisão para tentar replicar os resultados do julgamento de categorização, isto é, a indução.

A capacidade de fazer inferências a partir de um membro da categoria para outro é uma função importante da categorização. Saber que cães são vivíparos ajuda a inferir que outros mamíferos, como ratos, também são vivíparos. É possível que a relação entre os diferentes sentidos de uma palavra polissêmica, apesar de não ser capaz de auxiliar em uma tarefa de classifi cação, possa ser encontrada em uma tarefa de indução.

Talvez Rips (1975) tenha sido o primeiro a mostrar que a relação entre os membros de uma categoria pode servir de base para a indução, um achado confirmado em numerosos estudos posteriores (por exemplo, Gelman; Markman, 1986; Osherson et al., 1990). Medin, Lynch, Coley e Atran (1997) examinaram o papel da especialização em inferências baseadas em categorias sobre tipos de árvores. Eles descobriram que paisagistas usavam uma taxonomia não especializada para uma tarefa de classifi cação, e usavam uma taxonomia científica como base para uma tarefa de indução. Para os paisagistas, a taxonomia científi ca tinha mais força indutiva do que as suas próprias categorias não especializadas, ao menos para as propriedades testadas. Isso levanta a possibilidade de que as informações que as pessoas utilizam como base para a

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indução sejam diferentes das que elas utilizam para a tarefa de classifi cação. No caso em questão, talvez a relação subjacente dos diferentes sentidos possa servir como base para inferências bastante consistentes, ainda que não seja usada para o agrupamento (ver também Proffi tt, Coley e Medley, 2000).

Lin e Murphy (2001) demonstraram que as inferências podem ser obtidas a partir de categorias temáticas, indicando que itens não têm que entrar em uma categoria taxonômica para servir de base para inferências. Eles sugeriram que essa indução era possível por causa das coocorrências em suas categorias temáticas. Se fosse dito aos participantes que um cat [gato] tinha um tipo de bactéria e lhes fosse perguntado se uma ninhada de gatinhos ou um leão tinham mais chances de ter a mesma bactéria, eles poderiam escolher ninhada de gatinhos, pois poderiam imaginar uma cadeia de contágio. Por outro lado, há pouco contato entre leões e gatos domésticos. Naturalmente, esse achado depende em parte da propriedade particular testada, que é um aspecto bem documentado da indução baseada em categorias (HEIT; RUBINSTEIN, 1994; KALISH; GELMAN, 1992; ROSS; MURPHY, 1999), e assim nosso experimento também tratou do efeito de diferentes propriedades.

Usando um paradigma semelhante ao de outros estudos sobre indução, os participantes do Experimento 6 foram informados sobre a presença de uma propriedade em um dos itens, descrita em um sintagma. Foram pedidos, então, para fazer inferências a respeito de um sintagma polissêmico ou homônimo que compartilhasse uma palavra com o primeiro item. Idealmente, a propriedade não dependeria das conexões entre os dois itens e, portanto, seria “em branco” (SMITH; SHAFIR; OSHERSHON, 1993). Infelizmente, nenhuma propriedade real é realmente em branco, já que os participantes podem ter expectativas até sobre propriedades bem abstratas (por exemplo, apenas coisas vivas podem ter doenças; apenas artefatos são feitos de metal). Por motivos de generalizabilidade, usamos três propriedades diferentes: biológica, de aumento de custo e de gosto. Embora algo como a propriedade biológica tenha sido usada em grande parte das pesquisas anteriores, as outras duas propriedades podem ser mais apropriadas para estímulos inanimados ou possivelmente mostrar um padrão diferente de indução.

As propriedades foram usadas para se criarem os problemas de indução usando sintagmas dos experimentos anteriores, nos quais uma palavra era usada em dois sentidos diferentes. Segue abaixo um exemplo da propriedade biológica com sintagmas polissêmicos:

Suppose that scientists fi nd the biotin bacteria inwrapping PAPER

[Suponha que os cientistas encontrem a bactéria biotina em PAPEL de embrulho]

Type in the probability (out of 100) that the biotin bacteria will also be in

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liberal PAPER[Digite a probabilidade (de 100) de a bactéria biotina também ser encontrada em um JORNAL liberal]

Para a propriedade de aumento de custo, a premissa foi “Suponha que há um aumento no custo de...,” e para a de gosto, foi “Suponha que alguém gosta de...”. Porque os participantes provavelmente já tinham expectativas prévias sobre a prevalência dessas propriedades, nós obtivemos medidas iniciais para calcular os valores básicos de cada propriedade na categoria alvo.

O Experimento 6 avaliou se os participantes usam informações sobre o grau de relação entre diferentes sentidos polissêmicos ao fazerem inferências, ou seja, se as ligações entre os sentidos têm algum papel na indução. Se as relações de sentido infl uenciam a indução, os participantes deveriam usar a informação dada sobre um sentido para tirarem conclusões sobre o outro sentido. Saber algo sobre wrapping paper [papel de embrulho] deveria, portanto, afetar a forma como eles julgam liberal paper [jornal liberal]. Homônimos foram incluídos como material de controle, seguindo a mesma lógica usada nos experimentos de classifi cação: os sintagmas homônimos também compartilham uma palavra, mas seus signifi cados não são relacionados. Assim, eles fornecem uma medida inicial para indução apenas baseados no compartilhamento de uma forma de palavra.

MétodoMedida inicial. O experimento principal examinou a força de indução partindo de um tipo de objeto descrito por um sintagma para outro tipo descrito por um sintagma usando a mesma palavra. Nossa atenção não estava voltada para a taxa básica geral da propriedade no sintagma alvo, mas para o quanto a atribuição dessa propriedade variou com base no primeiro sintagma. Uma das preocupações foi que as diferenças entre itens polissêmicos e homônimos pudessem surgir por razões totalmente externas à indução propriamente dita: os itens polissêmicos poderiam simplesmente ser intrinsecamente mais propensos a ter bactérias, a aumentar o custo, ou a ser fáceis de gostar. Avaliamos isso através da obtenção de medidas das taxas básicas das propriedades para os sintagmas polissêmicos e homônimos.

O experimento de medida inicial foi, portanto, realizado nos sintagmas alvo, nos quais simplesmente pediu-se aos participantes que estimassem a probabilidade de que alguém gostasse de liberal PAPER [JORNAL liberal], por exemplo, ou de que o seu preço pudesse crescer ou de que pudesse ter bactérias. Trinta e dois participantes realizaram os julgamentos de medida inicial.

Participantes. Os participantes do experimento principal foram 32 novos falantes nativos de inglês da Universidade de Illinois.

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Materiais. Os 30 itens polissêmicos e os 24 homonímicos usados previamente foram pareados com cada uma das três propriedades. Foram eliminadas algumas combinações de item e propriedade que não faziam sentido ou não pareciam aplicáveis, usando um critério conservador. Por exemplo, não faz sentido perguntar se um loud ring [som alto] possui bactérias. Para a propriedade de aumento de custo, quatro pares de sintagmas foram excluídos, e para a propriedade bacteriana, seis foram excluídos11. Cada etapa consistiu em uma indução de um sintagma para outro que compartilhava a mesma palavra. O teste pedia que os participantes digitassem a probabilidade como resposta (ver exemplo acima). Apenas pares de sintagmas de sentidos ou signifi cados diferentes foram usados. Os participantes viram apenas um item para cada propriedade. As etapas foram colocadas em blocos separados por propriedades, e, no início de cada bloco, os participantes foram instruídos a respeito da respectiva propriedade e tiveram a chance de fazer quaisquer perguntas para garantir que eles haviam entendido.

Procedimento. Antes do experimento, os participantes foram instruídos sobre a indução, e a eles foi explicitamente pedido que fi zessem seus julgamentos supondo que a propriedade era verdade para o primeiro item, independente de concordarem ou não com isso. Para ajudá-los a aceitar que os predicados eram de fato verdadeiros para os itens, foi dito aos participantes que eles deviam imaginar isso acontecendo em outro país, de diferentes práticas. As instruções forneciam uma escala de 0 a 100, na qual 0 signifi cava que a segunda afi rmação era impossível, 100 que era certa, e 50 “signifi ca que há uma chance igual de que a segunda afi rmação seja verdadeira ou falsa, baseado na primeira afi rmação.”

Resultados e discussãoA Tabela 4 mostra as taxas de indução médias para os dois tipos de sintagma

e para as três propriedades. Como pode ser visto, as taxas de indução para palavras polissêmicas foi 15 pontos mais alta do que as taxas de homonímias, uma diferença altamente signifi cativa, F(1,31) = 70.38, p <.001, F (2, 100) = 4.56, p < .02. Contudo, os sintagmas polissêmicos tiveram taxas mais altas nas três propriedades.

Lembre-se de que uma das preocupações que tivemos foi que as taxas básicas de cada propriedade poderiam ser diferentes para itens polissêmicos e homônimos. No entanto, como a Tabela 4 revela (segunda linha de cada seção), as medidas iniciais foram muito semelhantes para os dois tipos de

11 Isso não reduziu o número de itens na análise de item em mesma proporção, pois um item lá era um conjunto de sintagmas, como descrito no Experimento 1. Se ambos os sentidos de uma palavra foram eliminados por um predicado, a própria palavra deixaria de fazer parte da análise; caso contrário ela seria mantida.

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sintagma, diferindo em menos de 4%. Para garantir que os efeitos observados não fossem motivados pelas diferenças nas taxas básicas dos atributos, para cada etapa subtraímos, da estimativa de indução dos participantes, a força inicial da propriedade para aquele item. Isso será referido como o resultado corrigido. Como mostrado na terceira linha de cada seção na Tabela 4, muitos desses resultados foram de fato negativos. A razão para isso parece ser que os participantes estavam atribuindo classifi cações extremamente baixas para itens que eles não acreditavam ter força indutiva, mesmo se essa propriedade tivesse uma probabilidade independente e substancial de ocorrer. Por exemplo, participantes do estudo de medida inicial podem ter dado uma probabilidade razoavelmente alta de que um savings bank [banco de poupança] teria um aumento de custo. Entretanto, quando foi pedido aos eles, no experimento de indução, para julgar a probabilidade de um aumento de custo em um savings bank, dado que um sandy bank [banco de areia] havia subido de preço, eles podem ter atribuído uma probabilidade muito baixa para indicar a baixa força indutiva desse argumento. Por norma, os participantes deveriam ter apenas dado a taxa de probabilidade base quando os itens não eram relacionados. A estratégia observada leva, em muitos casos, a forças de indução negativas e é reminiscente de outras descobertas na literatura sobre indução (SLOMAN, 1994).

Tabela 4. Taxas Médias de indução no Experimento 6Propriedade MAumento de Custo

Biológica Gosto

Palavras Polissêmicas

InduçãoMedida inicialResultado corrigido

39.2447.18-7.94

39.6230.469.17

41.8249.55-7.74

40.2342.40-2.17

Homonímias InduçãoMedida inicialResultado corrigido

23.1040.15-17.05

21.1231.33-10.21

30.5444.72-14.19

24.9238.73-13.81

Polissêmicas menos homonímicas - resultado corrigido

9.11 19.38 6.45 11.65

Nota. Resultado corrigido = Taxa de indução – taxa da medida inicial.

Embora esses valores negativos possam parecer estranhos, a intensidade absoluta da medida de indução não é um problema – a comparação mais importante é entre a quantidade de indução para os itens polissêmicos quando comparados aos homonímicos, independente do fato de ser positiva ou negativa.

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Os resultados, mostrados na Tabela 4, revelam que as pessoas realmente fazem inferências mais fortes (uma vantagem de 12 pontos) sobre itens polissêmicos do que homônimos no resultado corrigido, sendo esses resultados confi áveis em relação a participantes e itens, F (1, 31) = 51.72, p < .001; F (1, 50) = 9.56, p < .005. As diferentes propriedades geraram diferentes forças indutivas, F (2, 62) = 18.47, p < .001; F (2, 100) = 12.94, p < .001. A propriedade biológica levou às inferências mais fortes, a propriedade de aumento de custo foi a segunda mais forte, e gosto foi a propriedade com inferências mais fracas. Além disso, houve também interação entre os fatores de tipo de palavra (polissêmicos ou homônimos) e propriedade, signifi cante em sujeitos e itens, F (2, 62) = 35.67, p < .001; F (2, 100) = 3.52, p < .05. Contudo, todas as três propriedades mostraram, mais uma vez, vantagem para os itens polissêmicos.

Em resumo, sintagmas polissêmicos geraram mais indução do que os homônimos tanto em taxas de probabilidade bruta quanto nos resultados corrigidos para a diferença entre a taxa e a base.

Outra análise dos dados do Experimento 1 mostrou que sentidos diferentes que eram mais similares também foram colocados na mesma categoria com mais frequência. Se a proximidade de sentidos relativos for um fator importante no modo como os sentidos são processados, ela também deveria ser correlacionada com a indução. Sentidos diferentes que são mais similares deveriam levar a inferências mais fortes do que aquelas cujos sentidos são menos similares (OSHERSON et al., 1990; SLOMAN, 1993). Para testar isso, as taxas de similaridade de sintagmas polissêmicos foram correlacionadas com os resultados corrigidos de força de inferência obtidos nesse estudo. Uma relação positiva entre similaridade e indução foi encontrada nos itens usando todas as três propriedades: aumento de custo, r = .55, p < .005; biológica, r = .51, p < .005; e gosto, r = .55, p < .005 (obviamente, a análise não foi feita para homonímias, que foram altamente dissimilares). Quanto mais próximos dois sentidos eram, mais forte foi a indução de um para outro, e isso foi verdade para todas as três propriedades.

Os resultados para indução são consistentes com os resultados encontrados na tarefa de classifi cação. Primeiramente, o nível absoluto de indução para itens polissêmicos foi muito baixo. Como mostrado na Tabela 4, não houve aumento geral nas taxas dos participantes como resultado do fornecimento da propriedade para um sintagma de sentido diferente (ou seja, a diferença entre as medidas de indução e inicial foi praticamente zero). Assim, a força absoluta dessa indução foi bem baixa, apesar de que não se deve dar muita atenção aos números absolutos em tal escala. A segunda descoberta, que itens polissêmicos tiveram indução mais forte do que homônimos, não está sujeita a essa preocupação. O fato de que itens polissêmicos tiveram julgamentos de indução mais altos mostra novamente que os participantes os perceberam como sendo, de alguma forma, relacionados

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entre si, quando em comparação a um controle não-relacionado. No entanto, o efeito foi, de novo, particularmente pequeno – apenas 11.6% nos resultados corrigidos. Esses números são aproximadamente os mesmos da diferença de categorização encontrada no Experimento 3, ou seja, algo em torno de 6%. Em terceiro lugar, tanto a categorização quanto a indução estavam moderadamente correlacionadas com a similaridade dos sintagmas. Assim, essas técnicas bastante diferentes apontam para a conclusão de que sentidos polissêmicos são percebidos como mais relacionados do que os homônimos, mas apenas levemente. É signifi cativo o fato de que esse resultado foi encontrado em uma tarefa que não pedia aos participantes que fi zessem um julgamento meta-conceitual sobre os itens serem ou não da mesma categoria. Em vez disso, os participantes tinham que usar qualquer similaridade ou relação que eles conhecessem entre os itens para fazer a inferência sobre as propriedades compartilhadas, que é o tipo de julgamento para o qual as relações entre membros de categorias cotidianas são usadas.

Discussão Geral

Antes de discutir as implicações teóricas desses resultados, notamos que os experimentos atingiram de forma plena um dos principais objetivos dessa pesquisa, que era de alguma forma explicar os resultados intrigantes de Klein e Murphy (2001). Nesses experimentos, descobrimos que não havia priming de um dos usos de uma palavra polissêmica para um uso envolvendo um sentido diferente: em experimentos de memória, uma palavra usada em um sentido não serviu de artifício para lembrar a palavra usada em um sentido diferente; em tarefas de julgamento semântico, os sentidos diferentes pareceram interferir um no outro. Esses resultados contrariam a intuição de que os sentidos de uma palavra polissêmica são altamente similares, que é o motivo pelo qual recebem o mesmo nome. Se os sentidos não são similares, então por que eles são representados pelo mesmo nome? E se eles são similares, por que não há, nesse caso, um priming mais forte entre eles?

Os presentes resultados ajudam a explicar o RT (Reaction Time - Tempo de Reação) e os experimentos de memória anteriores. Primeiro, os resultados mostraram que o nível de similaridade conceitual de sentidos polissêmicos é de fato muito baixo. Os participantes não agruparam sintagmas contendo diferentes sentidos de uma palavra, embora eles tenham considerado de mesma categoria sintagmas que usavam palavras no mesmo sentido. Os participantes também não formaram induções fortes de um item descrito pela palavra em um sentido para um item descrito pela palavra em um sentido diferente. Saber que um tipo de paper tinha uma propriedade não aumentou as expectativas dos participantes de que outro tipo a teria signifi cativamente. Em resumo, a proposta

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de Klein e Murphy (2001) para a falta de priming em seus experimentos recebeu suporte considerável nos experimentos deste trabalho: os sentidos de palavras polissêmicas não são muito similares, o que explicaria por que eles não são tão úteis como um artifício de memória ou como primes um para o outro.

Essa descoberta ainda não explica por que os diferentes sentidos têm o mesmo nome. Se eles são tão diferentes, por que não são lexicalmente distintos? Temos duas respostas. A primeira é que, embora a sobreposição de sentidos polissêmicos seja pequena, ela não é nula. Nas tarefas de categorização e indução, encontramos pequena, porém consistente, vantagem de itens polissêmicos sobre homônimos não relacionados, sugerindo que há ao menos alguma sobreposição conceitual, o que poderia explicar em parte o processo histórico pelo qual palavras são estendidas a novos sentidos.

A segunda resposta é que palavras podem se estender através de relações que não sejam necessariamente de similaridade, e essas relações podem não oferecer vantagens de processamento. Dois usos de uma palavra podem ter uma relação óbvia, mas eles podem, no entanto, ter conteúdos muito diferentes. Como mencionado anteriormente, se alguém procura por paper [papel] para escrever, o conceito de uma newspaper publishing company [editora de jornal] não será útil em orientar essa busca; se alguém precisa de novos glasses [óculos] para auxiliar na leitura, comprar champagne glasses [taças de champagne] não será muito útil; e se alguém está procurando uma tin [lata] para guardar biscoitos, o conhecimento do 50º elemento é supérfl uo. Historicamente, contudo, o fato de que recipientes de um certo tipo eram feitos de tin [estanho] parecia ser uma razão boa o sufi ciente para chamá-los de tins [latas], e as pessoas conseguiam prontamente desenvolver essa conexão e entender por que esses objetos recebiam esse nome. Pustejovsky (1995) descreve com algum detalhe a forma como tais relações podem causar polissemia. Ele afi rma que nosso conhecimento sobre um objeto complexo como um newspaper [jornal] inclui uma variedade de informação, como o fato de ser produzido por um grupo de editores e escritores, que são pagos por uma editora, com a venda do próprio produto impresso em um paper [papel]. Ele propõe que um processo de interpretação permite que o nome para todo esse complexo de informações seja estendido a algumas de suas partes críticas, tais como a editora ou o conteúdo do jornal12. Porém, não há nada nesse processo que garanta que os diferentes usos dessa palavra se refi ram a entidades conceitualmente similares. De fato, o caso é frequentemente o oposto, já que componentes importantes de um objeto, tais como sua substância, sua função, 12 Se olharmos para esse processo tentando descrever a derivação online de sentidos durante o uso da palavra, então a visão de Pustejovsky teria uma perspectiva semelhante à do sentido único e então estaria sujeita às críticas que fi zemos aqui e em Klein e Murphy (2001) sobre essa posição. No entanto, esse processo de interpretação poderia ser visto como algo acontecendo historicamente e/ou durante a aquisição da linguagem, o que não confl itaria com nossas afi rmações sobre a representação lexical.

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ou seu fabricante, são normalmente coisas distintas do objeto propriamente dito.Em resumo, embora palavras polissêmicas possam ganhar seus sentidos

por extensão de um sentido existente para um sentido novo relacionado, esse processo não resulta em um conjunto de sentidos similares, mas, em vez disso, em um conjunto de sentidos que estão relacionados por pares. Os resultados de processamento de pesquisas anteriores combinados com os resultados de categorização e indução dos experimentos presentes convergem nessa explicação.

Em contraste, a noção de que há um sentido nuclear substancial que é constante entre os sentidos (CARAMAZZA; GROBER, 1976; RUHL, 1989; SCHREUDER; FLORES D’ARCAIS, 1989) não é satisfatória como uma teoria de polissemia. Os experimentos presentes revelam fortes evidências contra essa visão. Primeiro, as taxas muito baixas de categorização de diferentes sentidos de uma mesma palavra mostram que os sentidos são ainda menos relacionados do que categorias taxonômicas de nível superordenado, um nível com uma pequena quantidade funcional de similaridade (ROSCH et al., 1976). Segundo, a fraqueza da indução entre sentidos confi rma essa conclusão usando uma medida diferente. Terceiro, a teoria do sentido nuclear deve defender que sentidos individuais são derivados por um processo semântico produtivo quando cada palavra é evocada. No entanto, não pudemos encontrar evidência desse processo aplicado a palavras diferentes (Experimento 4) ou mesmo à mesma palavra em sintagmas diferentes (Experimento 5). Não estamos negando que as pessoas sejam capazes de usar produtivamente os padrões animal-meat [carne-animal] ou object-content [conteúdo- objeto] de polissemia, por exemplo. Porém, os resultados sugerem que o uso ativo de tal regra possa ser confi nado a sentidos novos ou muito infrequentes de uma palavra, tais como as testadas por Murphy (1997). Se uma nova forma de armazenagem de informação chamada de nanodisc [nanodisco] passar a existir, as pessoas sem dúvida usarão esse padrão para dizer coisas como, “Eu vi um nanodisco ótimo ontem.” No entanto, se eles disserem tais coisas algumas centenas de vezes, eles vão armazenar os diferentes sentidos (o objeto e seu conteúdo) separadamente, de forma que ambos os sentidos possam ser resgatados em vez de construídos a partir do signifi cado nuclear.

A estrutura de categorias polissêmicasNa Introdução, discutimos o fato de que há diferentes tipos de relações

categoriais, e que sentidos polissêmicos podem se ajustar em qualquer um deles. Embora nossos experimentos não tenham tentado analisar o conteúdo dessas relações, nossos resultados ainda dialogam com as diferentes possibilidades que levantamos anteriormente. Concluímos que diferentes sentidos de uma palavra são provavelmente relacionados, mas não são, em geral, similares. Como isso se adapta às diferentes formas de estrutura de categoria descobertas em pesquisas anteriores?

Categorias taxonômicas são a forma mais proeminente de relação de categoria, contendo objetos que são similares entre si, pelo menos em certo

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grau (para maiores discussões, ver Lin e Murphy, 2001). Diferente dos membros de categorias taxonômicas, os sentidos polissêmicos podem se referir a tipos de coisas muito diferentes. Essa afi rmação é fortemente sustentada por nossos próprios dados de inferência e classifi cação, que mostraram pouca força para as categorias polissêmicas. Como as categorias taxonômicas fornecem uma base tanto para classifi cação (como mostrado pelas escolhas taxonômicas nos Experimentos 1, 4, e 5, assim como em inumeráveis estudos de categorização) quanto para inferência (OSHERSON et al., 1990), sentidos polissêmicos não parecem formar categorias taxonômicas.

Talvez os sentidos polissêmicos sejam organizados tematicamente. Afi nal, há muitas extensões polissêmicas que são temáticas por natureza, tais como paper sendo usado para se referir a newspaper [jornal] ou à empresa que publica o jornal. O problema, contudo, é que o conjunto completo dos sentidos de uma palavra não parece formar uma categoria temática coerente. Não se pode unifi car wood pulp [polpa de madeira], textual meaning [sentido textual], wall covering [forração de parede], publisher [editora], e oral presentation [apresentação oral] (ver Tabela 1) em uma única relação temática. Em vez disso, a maioria dos sentidos parece compartilhar uma relação temática com um ou dois outros sentidos, e essas relações temáticas são em si diferentes (ex., as folhas de papel são feitas da polpa da madeira, mas a editora não é feita da publicação). Assim, não parece correto chamar os sentidos polissêmicos de categoria temática. Um argumento muito semelhante se aplica a categorias ad hoc, já que sentidos diferentes não parecem compartilhar de um propósito ou objetivo comum.

Categorias polissêmicas aparentam ser mais semelhantes às categorias encadeadas discutidas por Lakoff (1987) e Malt et al. (1999) (ver também Heine, 1992). Os membros de categorias radiais, ou encadeadas, podem ser ligados de modos muito diferentes. Relações polissêmicas também são muito diversas (ver Nunberg, 1979), e os sentidos de uma palavra polissêmica podem se estender em diversas direções diferentes. Parece provável que novos usos para palavras polissêmicas sejam criados por um processo de encadeamento partindo de um sentido conhecido (CRUSE, 1986; MURPHY, 1997; SWEETSER, 1990). Os diferentes membros de uma cadeia são relacionados em diferentes graus e por uma variedade de diferentes relações. Até então, não há evidência de que as ligações conectando cada uso sejam armazenadas (ver os Experimentos 4 e 5). Os diferentes sentidos de uma palavra polissêmica parecem se desenvolver historicamente através de várias relações, mas essas relações podem não ser lexicalmente representadas.

Em resumo, os diferentes sentidos de uma palavra polissêmica não parecem corresponder a uma categoria unifi cada taxonômica, temática ou ad hoc. Isso não quer dizer que eles sejam completamente ilimitados e desestruturados, mas que a estrutura parece ser de alguma forma fraca e mais propensa a ser aplicada em

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pares do que em todo o conjunto de sentidos. Tal proposta é semelhante à ideia de categorias radiais (LAKOFF, 1987), porém é questionável se categorias radiais são categorias em algum sentido real. Se os membros não são similares (ex., polpa de madeira, palestras, e editoras), e se eles não são unifi cados por uma relação comum, então eles não parecem cumprir o requisito básico de associação entre membros de categorias: membros têm propriedades em comum (MURPHY, 2002; SMITH; MEDIN, 1981). Se os sentidos se acumulam com o tempo pelo encadeamento a sentidos pré-existentes, o grau em que quaisquer dois sentidos de uma palavra são relacionados e a natureza de sua relação dependeria grandemente do par de sentidos em questão. Nessa visão, não é surpreendente que sentidos diferentes pareçam ser representados separadamente.

Essa conclusão pode nos levar a questionar se a abordagem conceitual que tomamos é de fato proveitosa Se os sentidos diferentes não formam uma única categoria coerente, então por que alguém deveria considerar as relações conceituais entre os sentidos? Parte da resposta é empírica. Descobrimos que tanto o priming quanto a classifi cação foram previstos pela similaridade dos sentidos diferentes. Assim, mesmo que todo o conjunto de sentidos de uma palavra possa variar, a similaridade conceitual dos pares de tais sentidos pode determinar os aspectos do seu uso. Além disso, apesar de que muitos sentidos podem não ser similares, todas as teorias parecem concordar que a extensão de uma palavra de um sentido para um novo requer algum tipo de similaridade, analogia ou relação conceitual. Sem essa limitação, os sentidos de uma palavra poderiam ser completamente aleatórios.

O que é surpreendente com relação à polissemia como um fenômeno geral é que a grande diversidade dos sentidos não atrapalha o entendimento fl uente da linguagem cotidiana. Não parece incomodar os ouvintes o fato de que a palavra paper possa se referir a uma empresa, a um texto, a uma apresentação oral, ou a uma coisa. O porquê disso é uma questão importante para os modelos de compreensão, como discutiremos a seguir.

Implicações para modelos de processo de signifi cado de palavrasPesquisas em polissemia têm implicações para assuntos mais gerais

relacionados ao modo como o signifi cado de palavras é representado. Talvez a suposição mais básica nesse campo seja a de que cada palavra é ligada a “seu signifi cado”. Em muitos casos, a suposição de um sentido unitário não é determinada, mas a possibilidade de uma palavra ter numerosos sentidos diferentes é simplesmente desconsiderada. Por exemplo, representações pictóricas de estruturas lexicais frequentemente retratam cada palavra como sendo conectada a seu sentido singular (por exemplo, Levelt, Roelofs e Meyer, 1999, p.4). Embora tais retratações sejam claramente simplifi cações de uma teoria, elas fomentam a suposição de que a maioria das palavras tem “um” signifi cado e escondem um problema em coordenar os múltiplos sentidos relacionados.

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A principal questão a ser levantada é: o que é realmente ativado quando uma palavra é lida e seu sentido ativado? Se a palavra fosse completamente livre de ambiguidade, então seu signifi cado completo poderia ser ativado. No entanto, já que a maioria das palavras mais frequentes são polissêmicas, é necessário decidir se todos os diferentes sentidos são ativados, ou apenas um ou dois. Modelos linguísticos e lexicográfi cos tradicionais de polissemia suporiam que um signifi cado básico ou nuclear é ativado, com outros sentidos derivados quando necessário. Em seus estudos sobre a movimentação dos olhos durante leitura de sentenças com palavras polissêmicas, Frisson e Pickering (1999) (e Pickering e Frisson (2001)) sugerem que palavras polissêmicas inicialmente ativam um sentido “subespecifi cado” que contém elementos comuns aos diferentes sentidos. Então, “uma vez que os leitores usam esse signifi cado subespecifi cado para atribuir um valor semântico (razoavelmente abstrato) a uma expressão, eles conseguem voltar-se para o sentido pretendido apoiando-se em quaisquer características subespecifi cadas” através do contexto (FRISSON; PICKERING, 1999, p.1379). Frazier e Rayner (1990) chegaram a conclusões semelhantes.

No entanto, nossos resultados mostram que se há um núcleo, ele tem conteúdo mínimo. Como já mencionamos muitas vezes, há pouca sobreposição semântica entre alguns sentidos, e o desempenho dos participantes em classifi cação e inferência sugere que eles veem pouca associação entre sentidos. Como resultado disso, não está claro qual seria o signifi cado subespecifi cado. Se havia a intenção de que existisse uma representação semântica informativa e substantiva, então os resultados presentes (juntamente aos de Klein e Murphy, 2001) seriam altamente inconsistentes13. Existem outras possibilidades para o que poderia ser um signifi cado subespecifi cado; porém, é provável que isso seja mais consistente com os nossos próprios resultados.

Uma possibilidade é a de subespecificação radical, onde um tipo de referente qualquer, neutro, é ativado até que a informação desambiguadora seja encontrada. Por exemplo, se alguém lê “Th e paper. . .” [O papel/jornal...], a representação inicial pode ser um pouco mais que “algo chamado paper”, sem compromisso com qualquer interpretação particular da palavra. Na medida em que mais contexto emerge (“Th e paper reported in yesterday’s edition. . .’’ [O jornal relatou na edição de ontem...]), um sentido seria selecionado. Subespecifi cação radical seria consistente com nossa afi rmação de que há pouca sobreposição 13 Por exemplo, Klein e Murphy (2001) descobriram que o processamento de uma palavra usada em um sentido retardava o processamento da palavra em um sentido diferente. Embora haja várias formas possíveis de abordar tal efeito, a maioria deles parece requerer que os leitores tenham representações do sentido separado, que são então ativadas, inibidas, preservadas na memória de trabalho, ou qualquer coisa, como resultado do priming. Além disso, uma representação subespecfi cada de palavras polissêmicas incorreria no problema, identifi cado por linguistas, de sentidos imprevisíveis e idiossincráticos, que requerem uma listagem detalhada e explícita, já que não podem ser derivados de princípios gerais (LEHRER, 1990; RICE, 1992).

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entre sentidos. O que não é claro, no entanto, é por que isso aconteceria com palavras polissêmicas e não com homônimas. O pensamento corrente sobre homônimos sugere que os leitores rapidamente ativam ambos os signifi cados ou selecionam um com base em frequência e contexto (por exemplo, Duff y, Morris e Rayner, 1988), como discutido por Pickering e Frisson (2001). Por que os leitores selecionariam um signifi cado para homônimos, mas não fariam isso para palavras polissêmicas, cujos sentidos são mais relacionados do que signifi cados homônimos?

Uma versão diferente de subespecificação é uma abordagem mais multifacetária, na qual diferentes aspectos do signifi cado de uma palavra são ativados de forma fraca (na ausência de contexto desambiguador). Essa ativação difusa não selecionaria nenhum sentido singular, mas prepararia todos eles para seleção posterior pelo contexto. Por exemplo, para paper, informações sobre a substância, material de escrever, texto, jornal, e apresentação oral poderiam ser todas fracamente ativadas, talvez de forma proporcional a sua frequência. Essa ativação seria subespecifi cada já que nenhum sentido particular é escolhido, mas isso não seria um sentido nuclear. Esse tipo de processamento é reminiscente do que foi proposto para a compreensão de linguagem não literal: aspectos metafóricos e conotativos do signifi cado de uma palavra podem ser, em um primeiro momento, ativados de forma fraca, através de uma ativação de grande amplitude (especialmente no hemisfério direito), e eles são selecionados se outras palavras no contexto ativam as mesmas propriedades (ver Beeman, 1998; Brownell, 2000).

Nossos experimentos não abordaram a questão de quais sentidos são ativados, em que ordem, e em que grau, e, portanto, não podemos ir mais longe com essa questão. Entretanto, discutimos que nossos resultados se relacionam a propostas de como diferentes sentidos são processados, e em particular parecem causar problemas para a visão de que um sentido comum ou nuclear é inicialmente ativado. No entanto, é importante notar que nossos procedimentos e materiais são muito diferentes dos outros estudos de processamento polissêmico. Por exemplo, nossa medida online em Klein e Murphy (2001) foi o priming em uma tarefa de julgar se algo faz sentido, enquanto Pickering e Frisson (2001) e Frazier e Rayner (1990) fi zeram o monitoramento do movimento dos olhos durante leitura como medida. Portanto, comparações e conclusões entre estudos se tornam difíceis de fazer nesse momento.

O que é claro, no entanto, é que esse campo de conhecimento precisa abordar a questão da polissemia mais vigorosamente. Por exemplo, note que o exemplo prototípico de uma homonímia, bank, é também sistematicamente polissêmico. O signifi cado fi nanceiro de bank é usado para se referir tanto a uma instituição (Th e bank is broke [O banco está quebrado]) quanto a um edifício (Th e bank burned down [O banco incendiou]). O sentido físico de bank pode

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se referir tanto a encosta de um rio quanto a coisas empilhadas (Th e security guard viewed a bank of monitors [O segurança viu uma pilha de monitores]). Em experimentos com homonímias, não foi pedido aos participantes para distinguir os diferentes sentidos de bank, mas na vida real, ouvintes precisam não apenas escolher o signifi cado correto, mas também determinar qual sentido era pretendido dentro daquele signifi cado. Embora homonímias tenham sido estudadas extensivamente, o campo ainda não desenvolveu uma proposta completa de como o signifi cado completo de uma palavra é derivado. De forma mais geral, o que é mais necessário agora é um melhor entendimento de quais aspectos dos signifi cados das palavras são armazenados e quais são construídos com base em inferência pragmática e de contexto (GERRIG, 1986).

O estudo da polissemia requer um relato unifi cado das estruturas lexicais detalhadas de palavras polissêmicas, as relações conceituais dos diferentes sentidos, o processo de aprendizado envolvido em adquirir e distinguir esses sentidos, e os processos online de acesso e construção do signifi cado da palavra daquela estrutura quando a palavra é usada em um contexto específi co. Nossa própria pesquisa fez um pequeno progresso nas questões de relação conceitual e processamento online, mas muito mais ainda deve ser aprendido sobre como os sentidos polissêmicos são adquiridos e representados.

A distinção entre polissemia e homonímia.Comentamos no começo desse artigo que é importante manter a polissemia

distinta da homonímia. No entanto, é de se perguntar se nossos próprios resultados não questionam essa afi rmação. Dadas as pequenas diferenças encontradas entre sintagmas polissêmicos e homônimos e a falta de priming entre sentidos polissêmicos (KLEIN; MURPHY, 2001), talvez não haja razão para distingui-las.

Essa questão tem um aspecto teórico e terminológico. Em relação à terminologia, diremos que é necessário manter a distinção apenas porque é amplamente defendida em linguística e lexicologia. Além disso, nossos resultados se relacionam com alguns aspectos da distinção e não outros, e esses outros podem requerer que a distinção seja preservada. Por exemplo, Ravin e Leacock (2000, p.2) afi rmam, “A distinção entre polissemia e homonímia é importante, pois separa o que é baseado em princípios daquilo que é acidental e traz as seguintes questões: se sentidos diferentes de palavras polissêmicas são sistematicamente relacionados, como eles derivam um dos outros, e como eles deveriam ser organizados para refl etir essa regularidade?” Poderia ter sido facilmente previsto de antemão que a mesma palavra, CD, seria o nome para um formato, um disco, e o conteúdo desse disco, mas o fato de que bank se refere à instituição fi nanceira e ao lado de um rio não podia ser previsto. Embora os sentidos de palavras polissêmicas possam ser dissimilares, eles se desenvolvem

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através de processos previsíveis, e esses processos podem ser conhecidos e usados por falantes individuais (MURPHY, 1997). Assim, mesmo se palavras polissêmicas e homônimas são representadas de forma parecida, elas são distintas em seu desenvolvimento histórico e talvez na forma como aprendizes de língua as adquirem.

Além disso, é importante não exagerar a separação de sentidos polissêmicos em nossos resultados. Por exemplo, descobrimos que sentidos mais similares foram classificados juntamente e serviram de base para indução. Além disso, escolhemos sentidos polissêmicos que eram claramente distintos em sentido. Por exemplo, não usamos polissemia de tipo-símbolo (ver (5) acima), que participantes ingênuos poderiam nem identifi car como tendo sentidos diferentes. Também não usamos as diferenças sutis que Cruse (2000) chama de formas de ver, nas quais aspectos diferentes de uma mesma palavra são enfatizados dependendo da perspectiva do falante (ver Anderson e Ortony, 1975). É amplamente reconhecido que sentidos polissêmicos vão de praticamente idênticos a praticamente não relacionados, e parece provável que os últimos sejam processados de forma muito similar às homonímias, mas os primeiros não. Portanto, o estudo da polissemia possivelmente continuará distinguindo o fenômeno da homonímia, mas também reconhecendo que a linha entre os dois não é sempre clara.

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Construções: uma nova abordagem teórica para a linguagem1

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Tradução: Jéssica Aguirre3

Revisão da tradução: Rosalia Neumann Garcia4

Revisão técnica: Márcia Cristina Zimmer5

Nos últimos 10-15 anos, emergiu uma nova abordagem teórica da linguagem permitindo que observações linguísticas sobre pares de forma e signifi cado, conhecidos como “construções”, sejam postuladas objetivamente. Abordagens construtivistas visam dar conta de toda a gama de fatos sobre a linguagem, sem partir do pressuposto de que um subconjunto particular dos dados é parte de um “núcleo” privilegiado. Pesquisadores dessa área afi rmam que construções incomuns lançam luz sobre questões mais gerais e podem esclarecer o que é necessário para uma explicação completa da linguagem.

Construções – pareamentos de forma e signifi cado – têm sido a base de grandes avanços no estudo da gramática desde os tempos de Aristóteles. Observações sobre construções linguísticas específicas moldaram nossa compreensão sobre as línguas específi cas e a natureza da própria linguagem. Mas apenas recentemente uma nova abordagem teórica emergiu permitindo que observações sobre construções sejam feitas diretamente, fornecendo às tradições seculares uma estrutura que permite que tanto generalizações mais amplas como padrões mais limitados sejam analisados e contabilizados totalmente. Isso vai de encontro à abordagem “gerativa” predominante, que tem sido dominante nas últimas décadas, começando com Chomsky em 1957 [1].1 Traduzido com a permissão da autora a partir do texto em inglês GOLDBERG, A. E. Constructions: A new theoretical approach to language. Trends in Cognitive Science, vol.7, n.5, maio 2003.2 Princeton University (Estados Unidos da América).3 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS.4 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS.5 Universidade Católica de Pelotas, RS.

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Muitos linguistas de diferentes formações recentemente convergiram em vários insights fundamentais, dando origem a uma nova família de abordagens, aqui referidas como abordagens “construcionistas” [2-23]. As abordagens construcionistas compartilham certas ideias básicas com a abordagem gerativista. Ambas perspectivas consideram essencial ver a língua como um sistema cognitivo (mental), admitem a provável existência de uma maneira de combinar estruturas para criar novos enunciados e reconhecem a necessidade de uma teoria não trivial do aprendizado da linguagem.

Em outros aspectos, abordagens construcionistas contrastam fortemente com a abordagem gerativista. Essa última defende que a natureza da linguagem pode ser mais adequadamente explicada por meio do estudo de estruturas formais independentemente de suas funções semânticas ou discursivas. Camadas crescentes de abstração caracterizaram as representações formais. Afi rma-se que o signifi cado é derivado do dicionário mental de palavras, com diferenças funcionais entre padrões formais sendo amplamente ignoradas. Padrões semirregulares e padrões incomuns são vistos como “periféricos”, com uma estreita faixa de dados considerada relevante para o “núcleo” da linguagem. A teoria gerativista argumenta ainda que a complexidade do núcleo da linguagem não pode ser aprendida indutivamente por mecanismos cognitivos gerais e, portanto, aprendizes devem ser dotados de princípios mentais inatos que são específi cos à língua (“gramática universal”).

Princípios das abordagens construcionistas

Cada princípio básico descrito abaixo é compartilhado pela maioria das abordagens construcionistas. Cada um representa uma divergência substancial em relação à abordagem gerativista predominante e, em muitos aspectos, um retorno a uma visão mais tradicional da linguagem.

Princípio 1. Entende-se que todos os níveis de descrição envolvem pareamentos entre forma e função semântica ou discursiva, incluindo morfemas ou palavras, expressões idiomáticas e padrões frasais abstratos e completa ou parcialmente preenchidos lexicalmente. (ver tabela 1).Princípio 2. Enfatizam-se aspectos sutis da forma como concebemos eventos e estados de coisas. Princípio 3. Uma abordagem do tipo “o que você vê é o que você ganha” para a forma sintática é adotada: não são postulados nenhum nível subjacente de sintaxe ou quaisquer elementos fonologicamente vazios.Princípio 4. Entende-se que construções são aprendidas a partir do input e de mecanismos cognitivos gerais (ou seja, são construídas). Além disso, espera-se que variem translinguisticamente. Princípio 5. Generalizações translinguísticas são explicadas pelas restrições

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cognitivas gerais juntamente com as funções das construções envolvidas.Princípio 6. Generalizações específi cas de uma língua em construções são capturadas via redes de sucessão tal como aquelas que foram postuladas para apreender nosso conhecimento não linguístico. Pirncípio 7. A totalidade do nosso conhecimento sobre a linguagem é apreendida por uma rede de construções: uma “construct-i-con”.

Cada um desses princípios é explicado em uma sessão subsequente abaixo.

Construções: o que são

Construções são pareamentos armazenados de forma e função, incluindo morfemas, palavras, expressões idiomáticas, padrões linguísticos gerais, parcial ou completamente preenchidos lexicalmente. Exemplos são apresentados na tabela 1.

Tabela 1. Exemplos de construções do inglês, variando em tamanho e complexidade; forma e função são especifi cadas caso não estejam claras

Construção Forma/exemplo FunçãoMorfema e.g. anti-, pre-, -ingPalavra e.g. Avocado, anaconda, andPalavra complexa e.g. Daredevil, shoo-in

Expressão idiomática (completa)

e.g. Going great guns

Expressão idiomática (parcial)

e.g. Jog (someone’s) memory

Construção [10] Covariação-Condicional

Form: Th e Xer the Yer (e.g. Th e more you think about it, the less you understand)

Signifi cado: variáveis dependentes e independentes ligadas

Construção Bitransitiva (obejto duplo)

Form: Subj [V Obj1 Obj2] (e.g. He gave her a Coke; He baked her a muffin)

Signifi cado: transferência (pretendida ou real)

Passiva Form: Subj aux VPpp (PPby) (e.g. Th e armadillo was hit by a car)

Função discursiva: Tornar o sujeito-passivo central e o agente não-central.

Qualquer padrão linguístico é reconhecido como uma construção, dado que algum aspecto de sua forma ou função não seja estritamente previsível a

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partir das partes que o compõem ou das construções existentes. Além disso, muitas abordagens construcionistas afi rmam que padrões são armazenados mesmo se eles forem totalmente previsíveis, desde que ocorram com frequência sufi ciente [24-29].

Diferentemente da gramática gerativista, a perspectiva construcionista enfatiza a semântica e a distribuição de determinadas palavras, morfemas gramaticais e padrões frasais translinguisticamente incomuns . A hipótese por trás dessa metodologia é a de que uma descrição das ricas restrições formais complexas, semânticas e pragmáticas desses padrões prontamente se estende a padrões mais gerais, simples e regulares.

Como exemplo de padrão incomum, considere a construção de covariação condicional na Tabela 1 (por exemplo, na frase em inglês “The more you think about it, the less you understand” - Quanto mais você pensa a esse respeito, menos você entende). A construção é interpretada como envolvendo uma variável independente (identificada pelo primeiro sintagma) e uma variável dependente (identificada pelo segundo sintagma). A palavra “the” normalmente ocorre no início de um sintagma, seguida de um substantivo. Mas nessa construção ela requer um sintagma comparativo. Os dois principais sintagmas dessa construção não se enquadram nem na classificação de sintagmas nominais, nem na de orações. A exigência de que dois sintagmas desse tipo estejam justapostas sem conjunção é outro aspecto imprevisível do padrão. Uma vez que o padrão não é estritamente previsível, uma construção é postulada para especificar a forma particular e a função semântica envolvida [10].

Outras construções incomuns incluem as da tabela 2. Embora alguns dos padrões sejam utilizados primordialmente de forma coloquial, eles fazem parte do repertório de todo falante nativo de inglês (a construção da preposição solta é incomum não em virtude de ser prescritivamente preterida, mas por ser encontrada em apenas alguns idiomas germânicos).

Tabela 2. Construções produtivas ou semiprodutivas do inglês que são incomuns entre línguas e devem ser aprendidas com base no input

Construção time away Twistin the night away [13]“What’s X doing Y?” What’s that fly doing in my soup?

[30]Construção Nominal de Extraposição It’s amazing the diff erence! [31]Mad Magazine construction Him, a doctor?! [32]Construção Substantivo – Pronome – Substantivo (S P S)

house by house; day aft er day [12]

Construção da preposição solta Who did he give that to?

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Entende-se que padrões mais comuns como a passiva, a topicalização e as orações relativas são aprendidos como pareamentos de forma e função (semântica ou discursiva) – isto é, também são construções. Cada uma pareia determinadas propriedades formais com uma determinada função comunicativa.

Pode-se dizer que até mesmo padrões básicos de sentenças envolvem construções. Isto é, o verbo principal pode ser combinado com uma construção de estrutura argumentativa (por exemplo, construções transitivas, intransitivas, bitransitivas, etc.) [7]. A alternativa é supor que a forma e a interpretação geral de padrões básicos de sentenças são determinadas por informações semânticas e/ou sintáticas especifi cadas pelo verbo principal. Os padrões frasais dados em (1) e (2) na verdade parecem ser determinados pelas especifi cações de give e put respectivamente:

(1) Chris gave Pat a ball.(2) Pat put the ball on the table.

Give (dar) é um verbo de três argumentos. O ato de dar requer três personagens: um doador (ou agente), um recipiente e algo dado (ou “tema”). Dessa forma, espera-se que apareça com três sintagmas correspondentes a esses três papéis. Em (1), por exemplo, Chris é o agente, Pat é o recipiente e uma bola é o tema. Put (pôr, colocar), outro verbo de três argumentos, requer um agente, um tema (objeto que sofre a mudança de local) e a posição fi nal do movimento do tema. Ele aparece com três argumentos correspondentes em (2). No entanto, enquanto (1) e (2) representam, talvez, o caso prototípico, em geral a interpretação e a forma de padrões de sentença de uma língua não são fi elmente determinadas por especifi cações independentes do verbo principal. Por exemplo, não é plausível alegar que sneeze (espirrar) tem um sentido de três argumentos, e ainda assim pode aparecer, tal como em (3). Os padrões de (4)-(6) também não são naturalmente atribuídos aos verbos principais:

(3) ‘He sneezed his tooth right across town.’ (Robert Munsch, Andrew’s Loose Tooth)(4) ‘She smiled herself an upgrade.’ (Douglas Adams, Hitchhiker’s Guide to the Galaxy, Harmony Books)(5) ‘We laughed our conversation to an end.’ (J. Hart. Sin Ivy Books, New York)(6) ‘Th ey could easily co-pay a family to death.’ (New York Times, 1/14/02)

Não são necessários exemplos particularmente inovadores para sustentar nossa ideia. Verbos geralmente aparecem com uma grande variedade de

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confi gurações complementares. Considere o verbo slice (fatiar) e as várias construções nas quais ele pode aparecer (identifi cadas entre parênteses):

(7)a. He sliced the bread. (transitivo)b. Pat sliced the carrots into the salad. (movimento causado)c. Pat sliced Chris a piece of pie. (bitransitivo)d. Emeril sliced and diced his way to stardom. (forma de construção)e. Pat sliced the box open. (resultado)

Em todas essas expressões, slice signifi ca cortar com um instrumento afi ado. São as construções de argumento-estrutura que fornecem a ligação direta entre forma de superfície e aspectos gerais de interpretação, como algo agindo sobre outra coisa (7a), algo causando movimento em outra coisa (7b), alguém com a intenção de causar na outra pessoa o recebimento de algo (7c), alguém se movendo para algum lugar (7d), alguém causando uma mudança de estado em algo (7e) [7, 33].

Portanto, as construções podem ser vistas como essenciais para efetivamente dar conta tanto de padrões especialmente complexos ou incomuns como de padrões de linguagem básicos e regulares.

As funções das construções

Diferentes formas de superfície são tipicamente associadas com funções semânticas ou discursivas ligeiramente diferentes. Tomemos como exemplo a construção “bitransitiva”, que envolve a forma Sujeito-Verbo-Objeto Direto-Objeto Indireto, como em (1), (8b) e (9b).

(8)a. Liza bought a book for Zach.b Liza bought Zach a book.(9)a. Liza sent a book to storage.b. Liza sent Stan a book.c. ??Liza sent storage a book.

A forma bitransitiva evoca a noção de transferir ou “dar”. Isso contrasta com possíveis paráfrases. Por exemplo, enquanto (8a) pode ser usado para transmitir o signifi cado de que Liza comprou um livro para outra pessoa porque Zach estava muito ocupado para comprá-lo ele mesmo, (8b) só pode signifi car que

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Liza pretendia dar a Zach o livro. Da mesma forma, enquanto (9a) pode ser usado para implicar movimento causado a um local (causa-se a ida do livro ao depósito), o padrão bitransitivo requer que o argumento principal seja um ser animado, capaz de receber o item transferido (cf. 9b, 9c). Como fi ca claro a partir da consideração das paráfrases, a implicação de transferência não é um fato independente do uso das palavras envolvidas. Pelo contrário, a implicação de transferência vem da própria construção bitransitiva.

Outras interpretações para a construção bitransitiva também podem estar sistematicamente relacionadas com a noção de transferência, na medida em que implicam que a transferência ocorrerá se certas condições evocadas pelo verbo principal forem satisfeitas (10a), que a transferência não ocorrerá (10b) ou que a relação antonímica à de dar ocorre – a de tirar (10c). Mesmo exemplos como a expressão “Cry me a river” podem estar relacionados à noção de dar por meio de uma extensão metafórica [7].

(10)a. Liza guaranteed Zach a book. (Se a garantia for satisfeita, Zach receberá um livro)b. Liza refused Zach a book. (Liza causou a Zach o não recebimento de um livro)c. Liza cost Zach his job. (Liza causou a Zach a perda de seu emprego).

Além das generalizações semânticas, também existem generalizações sobre propriedades de “estrutura de informação” da construção ou o modo como as suposições do falante a respeito do estado de conhecimento e consciência do ouvinte no momento da fala são refl etidos na forma de superfície. Em especial, existe uma tendência estatisticamente confi ável de o argumento destinatário já ter sido mencionado no discurso (frequentemente codifi cado por um pronome) em comparação com paráfrases preposicionais [9, 34, 35]. Fatos sobre o uso de construções inteiras, incluindo registro (por exemplo, formal ou informal), variações dialetais e assim por diante, também são apresentados como parte da construção. Pelo fato de especifi carem uma forma de superfície e uma função correspondente, abordagens construcionistas fornecem uma maneira direta de explicar esses fatos.

A forma das construções

Para apreender as diferenças de signifi cado ou propriedades de discurso entre formas de superfície, teorias construcionistas não derivam uma construção da outra, como é comum na teoria gerativista predominante. Uma expressão real ou “construto” tipicamente envolve a combinação de pelo menos meia dúzia de

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construções diferentes. Por exemplo, a construção na fi gura 1a envolve a lista de construções indicadas na fi gura 1b.

Note-se que a “forma de superfície” não precisa especifi car uma ordem particular de palavras, nem mesmo categorias gramaticais particulares, embora haja construções que de fato especifi cam essas funções. Por exemplo, a construção bitransitiva (presente na fi gura 1 e discutida na seção anterior) é caracterizada em termos de um conjunto de tipos de argumentos. A ordem explícita de argumentos na construção bitransitiva na fi gura 1 é determinada por uma combinação da construção de um sintagma verbal (SV) com a construção interrogativa, essa última permitindo que o argumento “tema” (representado por O quê) apareça na posição inicial da frase.

(a) [ What did Liza buy the child? ]

(b) 1. Liza, buy, the, child, what, did constructions (palavras) 2. Construção Bitransitiva 3. Construção Interrogativa 4. Construção de Inversão Sujeito – Auxiliar 5. Construção VP 6. Construção NP

Figura 1. (a) Uma expressão, ou “construto”, que é uma combinação das construções apresentadas em (b), codifi cada por cores para as partes apropriadas da expressão (VP, VerbPhrase; NP, Noun-Phrase). Veja o texto para discussão

Construções podem ser combinadas livremente para formar expressões reais desde que não estejam em confl ito. Por exemplo, a especifi cação da construção bitransitiva que requer um argumento destinatário animado entra em confronto com o signifi cado de depósito em (9c) resultando na não aceitabilidade. A observação de que a linguagem tem um potencial criativo infi nito [1, 36] é corroborada, então, pela livre combinação de construções.

Construções de aprendizagem

Segundo o quarto princípio, entende-se que as construções são aprendidas com base no input positivo e variam entre línguas. Essa ideia destaca uma grande diferença entre a maioria das abordagens construcionistas e a maioria das abordagens gerativistas predominantes, pois essas postulam que aprendizes devem ter enraizados os princípios específi cos que capacitam a aprendizagem de uma língua, isto é, devem possuir uma “gramática universal” ([37]; ver também [21]).

Fundamentalmente, todos os linguistas reconhecem que uma ampla gama de construções semi-idiossincráticas existe em todas as línguas, construções essas

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que não podem ser explicadas por princípios ou restrições gerais, universais e inatas (ver exemplo na tabela 2). A teoria gerativista postulou que essas construções existem apenas na “periferia” da linguagem, e que, portanto, não precisam ser o foco de teóricos da linguística ou da aprendizagem [37]. Por outro lado, as abordagens construcionistas centraram seu foco nessas construções afi rmando que qualquer meio utilizado para aprender esses padrões pode ser facilmente estendido para dar conta dos chamados fenômenos “centrais”. Na verdade, os fenômenos centrais são, por defi nição, mais regulares e também tendem a ocorrer com maior frequência dentro de uma determinada língua. Portanto, a despeito de qualquer coisa, são provavelmente de mais fácil aprendizagem. Visto que todo linguista presumivelmente concordaria em que os casos “periféricos” e difíceis devem ser aprendidos indutivamente com base no input, as teorias construcionistas propõem que não há razão para supor que casos mais gerais, regulares e frequentes não possam ser aprendidos dessa maneira.

Na verdade, as teorias construcionistas afi rmam que a linguagem deve ser aprendível a partir de input positivo em conjunto com habilidades cognitivas relativamente gerais [18, 29, 38], já que a diversidade e a complexidade observadas não abrem espaço para relatos que partem do princípio de que as variações translinguísticas podem ser caracterizadas em termos de um conjunto fi nito de parâmetros [37]. Pesquisas nessa área estão rapidamente ganhando impulso. Vários construcionistas têm feito jus à promessa de explicar como determinadas construções são aprendidas [26, 27]. Acontece que o input não precisa ser tão pobre como às vezes se supõe [39]; nota-se que processos analógicos podem ser viáveis uma vez que tanto a função quanto a forma são levadas em conta. [40, 41]; existem boas razões para se pensar que a gramática inicial das crianças é um tanto conservadora, com generalizações surgindo apenas lentamente [29, 42, 43]; e a habilidade de registrar probabilidades de transição e generalizações estatísticas no input tem se mostrado um poderoso meio pelo qual se aprendem certos tipos de generalizações [44].

Esta abordagem tem uma visão um pouco diferente da teoria gerativa predominante no que diz respeito ao que é universal sobre a linguagem. Linguistas falam de certas construções como existentes em muitas línguas, como a construção da voz passiva, a construção da oração relativa, a construção interrogativa e assim por diante. No entanto, duas construções em diferentes línguas podem ser identifi cadas como instâncias da mesma construção se, e somente se, sua forma e função forem idênticas, uma vez que outras construções na língua que podem diferir são descartadas. Na verdade, isso raramente ocorre, exceto em casos de história diacrônica compartilhada ou de contato entre línguas [20, 45, 46]. O que é realmente marcante é o grau em que as línguas humanas diferem umas das outras, uma vez que todas precisam expressar de certa forma os mesmos tipos de mensagens. Abordagens construcionistas antecipam essa

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ampla variabilidade através das línguas [47, 48].Podemos entender o que realmente se busca com referências às “mesmas”

construções em línguas não relacionadas como tipos de construções. Duas construções podem ser, por exemplo, do tipo passiva na medida em que elas partilham certas características formais e funcionais, mesmo que elas não sejam idênticas; ou seja, duas construções em diferentes línguas podem ser identifi cadas como instâncias do mesmo tipo de construção se e somente se apresentarem forma e função estreitamente relacionadas.

Generalizações translinguísticas

Uma pergunta motriz por trás de grande parte das pesquisas linguísticas é “o que é a tipologia de possíveis construções e o que a restringe?” Abordagens construcionistas recorrem frequentemente a explicações externas à gramática, como pressões funcionais universais, princípios icônicos e restrições de processamento e aprendizagem para explicar tais generalizações translinguísticas observáveis empiricamente. Por exemplo, certas generalizações sobre como forma e signifi cado tendem a ser ligados ao longo das línguas podem ser explicadas por processos icônicos e analógicos [6, 35, 49 – 51]. Restrições em construções de dependência de longa distância (tradicionais “restrições insulares”) parecem resultar em explicações processuais que levam em conta a função das construções envolvidas [19, 52 – 54]. Sugere-se que explicações processuais também possam explicar certas opções alternativas de ordem de palavras [55,56].

Mesmo entre linguistas gerativistas existe uma tendência a postular que muitas das restrições à linguagem – tradicionalmente vistas como necessitando recursos para estipulações inatas específi cas à língua – podem na verdade ser explicadas por mecanismos cognitivos gerais. Por exemplo, o fato de todas as línguas parecerem ter categorias de substantivo e verbo (e possivelmente adjetivo) talvez possa ser explicado pela existência de categorias semânticas básicas correspondentes [57]. Em um artigo recente, Hauser, Chomsky e Fitch chegam a sugerir que a única capacidade inata específi ca à língua absolutamente necessária é a recursão, além de levantarem a questão de que mesmo isso pode vir a não ser específi co para a linguagem [58] (ver também caixa 1. Questões para pesquisas futuras).

Generalizações intralinguísticas

Hierarquias de hereditariedade há muito tempo têm sido úteis para a representação de todos os tipos de conhecimento, por exemplo, nosso

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conhecimento de conceitos. A perspectiva baseada em construções captura generalizações linguísticas dentro de uma determinada língua através do mesmo tipo de hierarquia de hereditariedade [2, 59, 60]. Amplas generalizações são capturadas pelas construções que são herdadas por muitas outras construções; padrões mais limitados são capturados pela postulação de construções em vários pontos médios da rede hierárquica.

Padrões excepcionais são capturados por construções de baixo nível. Por exemplo, a construção “What’s X doing Y?”, que tem uma forma fi xa e conota algum tipo de imprevisibilidade, captura um padrão na gramática do inglês. Ela herda propriedades de várias outras construções mais gerais, incluindo o Isolamento à Esquerda, a Inversão Sujeito-Auxiliar, as construções Sujeito-Predicado e construções de sintagma verbal [30].

Caixa 1. Questões para pesquisas futuras- Existem generalizações sobre forma que não tenham sequer uma

semelhança familiar abstrata ou uma generalização do tipo de categoria radial sobre função associada a elas?

- A aprendizagem de uma construção facilita o aprendizado de outras construções relacionadas?

- Qual é a relação entre frequências de tipo e de ocorrência na aquisição?- Se os princípios que são específi cos para a linguagem não estão inatos em

nosso cérebro, como exatamente diferimos de outros primatas que não desenvolvem linguagem humana?

- Quão grande é o papel que os princípios gerais de processamento cognitivo desempenham na determinação de possíveis línguas?

Construções que abrangem uma totalidade

O que faz com que uma teoria que lida com construções possa ser considerada uma teoria “baseada em construções” é o princípio 7: a ideia de que a rede de construções captura nosso conhecimento de linguagem in toto – em outras palavras, são construções que abrangem uma totalidade.

Conclusão

As teorias construcionistas procuram explicar todo nosso conhecimento de linguagem como padrões de forma e função. Isto é, a abordagem construcionista não presume que a linguagem deva ser dividida em gramática “nuclear” e “periferia” a ser ignorada. Ao identifi car construções, põe-se uma ênfase sobre aspectos sutis de interpretação e sobre forma de superfície. Generalizações

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translinguísticas são explicadas recorrendo-se às restrições cognitivas gerais em conjunto com as funções das construções envolvidas.

Generalizações específicas a uma língua ao longo de construções são capturadas por meio de redes de hereditariedade. Entende-se que o inventário de construções – que inclui morfemas ou palavras, expressões idiomáticas, padrões frasais totalmente abstratos lexicalmente preenchidos de forma incompleta – é aprendido com base no input juntamente com mecanismos cognitivos gerais.

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A chave está na cognição social1

Michael Tomasello2

Tradução: André Luiz de Souza3

Revisão da tradução: Aline Aver Vanin4

Revisão técnica: Heliana Ribeiro de Melo5

Introdução

Quando se pesquisa a evolução e a história do ser humano, é difícil encontrar uma boa analogia para a linguagem. Porém, a mais próxima seria o dinheiro. Atividades econômicas – no amplo sentido de pessoas trocando bens e serviços uns com os outros – pré-datam, em milênios, a invenção da moeda. Ademais, atividades econômicas absolutamente não requerem dinheiro. No entanto, a invenção do dinheiro como um símbolo para as trocas, e o seu desenvolvimento histórico em formas mais complexas tais como dinheiro de papel e dinheiro eletrônico, é claramente responsável por algumas das novas formas de atividade econômica. Certamente, as economias modernas não poderiam existir da forma como existem hoje sem algo parecido com o sistema simbólico monetário em uso corrente.

Vamos tentar uma outra analogia mais cognitiva. Habilidades quantitativas básicas são possuídas por todos os mamíferos e até mesmo por algumas espécies de pássaros. E essas atividades, com certeza, não dependem de símbolos e notações escritas. A partir do momento que os seres humanos inventaram os símbolos e notações escritas para auxiliá-los na tarefa de contar e calcular, de repente, eles começaram a contar e calcular de maneiras novas e mais complexas. 1 Traduzido com a permissão do autor a partir do texto em inglês TOMASELLO, M. Th e Key is Social Cognition. In: GENTNER, D; GOLDIN-MEADOW, S. (Orgs.), Language in Mind: Advances in the Study of Language and Th ought. Massachusetts: MIT Press, 2003. 2 Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology (Alemanha). 3 Th e University of Texas, Austin (Estados Unidos da América).4 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, RS.5 Universidade Federal de Minas Gerais, MG.

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E sabemos bem que alguns sistemas de notações permitem certos tipos de cálculos que outros não permitem. Por exemplo, é basicamente impossível imaginar álgebra e cálculos (sem mencionar divisões longas) com algarismos romanos; algo tipo numerais algébricos, baseados no sistema de valor posicional (com um zero), é necessário para a matemática moderna.

Assim, a maneira como os seres humanos se comportam e pensam muda quando símbolos, incluindo os lingüísticos, se tornam envolvidos. Dinheiro e matemática são dois exemplos bons, mas a analogia com a linguagem não é perfeita. A língua falada é mais básica do que esses exemplos. De muitas maneiras, dinheiro cunhado e numerais arábicos são mais parecidos com a língua escrita do que com a falada – além disso, a invenção de símbolos escritos para a fala, atividades matemáticas e atividades econômicas está intimamente inter-relacionada. Ontogeneticamente, seres humanos adquirem competência com a língua falada muito antes do que com símbolos escritos, e isso ocorre em estreita consonância com seus primeiros entendimentos acerca de muitos aspectos de seu mundo físico e social.

Eu tenho uma hipótese específi ca sobre como a língua transforma a atividade cognitiva durante a ontogenia do ser humano. (Talvez a hipótese possa ser estendida para a evolução do ser humano, mas isso é uma outra história). Ela é baseada na convicção de que as duas principais funções da língua – comunicação e representação cognitiva – estão fortemente inter-relacionadas. A chave está na natureza única de cognição social do ser humano e a maneira como ela possibilita o aprendizado e o uso de símbolos lingüísticos para fi ns da comunicação inter-pessoal que começa no segundo ano de vida. Gradualmente, esses instrumentos inter-pessoais são internalizados e usados intra-pessoalmente, se tornando o maior meio representacional para certos tipos de cognição humana. Assim, a hipótese é explicitamente Vygotskiana em espírito, mas meu foco está em crianças muito mais novas do que as de Vygotsky ([1934] 1962, 1978) e argumento acerca de aspectos da cognição humana muito mais fundamentais.

A atenção conjunta como cognição social

Todas as espécies de primatas representam cognitivamente o mundo. Eles se lembram onde coisas estavam localizadas após signifi cativos espaços de tempo, antecipam eventos impendentes, utilizam desvios espaciais e atalhos de forma criativa (mapas cognitivos), categorizam objetos novos com base em semelhanças perceptuais, e resolvem problemas novos com base em processos mentais de tentativa-erro ou insight (TOMASELLO; CALL, 1997). Todas essas atividades envolvem a habilidade de representar cognitivamente o mundo no sentido de que experiências sensório-motoras passadas podem ser preservadas

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e, em alguns casos, ativamente re-apresentadas e consultadas como um guia para comportamentos tais como navegação, procura e resolução de problemas.

Antes de começar a usar a língua, crianças representam cognitivamente o mundo de muitas dessas maneiras, e – é importante dizer – de nenhuma outra maneira. No entanto, social e comunicativamente, a criança pré-lingüística está fazendo coisas que as outras espécies primatas não fazem. De maneira específi ca, ela está tanto seguindo o foco de atenção do adulto para objetos e eventos externos – por exemplo, através do acompanhamento do movimento de apontar ou através da imitação da ação de adultos sobre objetos – quanto ativamente direcionando a atenção do adulto para objetos e eventos externos – por exemplo, através do gesto de apontar e mostrar objetos e eventos para os outros. Nenhuma outra espécie no planeta aponta ou mostra objetos e eventos para seus co-específi cos dessa maneira. Esse é um fato com implicações profundas para nossa compreensão sobre a língua e sua relação com a cognição humana.

Carpenter, Nagell e Tomasello (1998) acompanharam longitudinalmente a emergência de nove comportamentos diferentes de “atenção conjunta”, juntamente com a emergência de habilidades lingüísticas em crianças dos 9 aos 15 meses de idade. Os comportamentos de atenção conjunta incluíram tanto aqueles em que a criança acompanhava a atenção ou comportamento do adulto (i.e. acompanhamento da direção do olhar, imitação de ações sobre objetos) quanto aqueles em que a criança direcionava a atenção do adulto via ações do tipo apontar e mostrar. A compreensão e produção de linguagem também foram avaliadas. Os achados mais relevantes foram seguintes: (1) Todos os nove comportamentos não-lingüísticos de atenção conjunta surgiram nos indivíduos como um grupo (grande parte no espaço de tempo de três e quatro meses). (2) Esses comportamentos emergiram em uma ordem previsível: primeiro, os comportamentos que envolviam a criança checando o foco de atenção do adulto; em seguida, aqueles em que a criança acompanhava a atenção do adulto para eventos e objetos externos; e fi nalmente, aqueles em que a criança ativamente direcionava a atenção do adulto para eventos e objetos externos. (3) Houve uma correlação alta entre as habilidades da criança em se engajar em atividades de atenção conjunta com suas mães e a emergência da compreensão e produção da linguagem.

Carpenter, Nagell e Tomasello (1998) argumentam em favor de dois pontos teóricos chave e relevantes para a presente discussão. Primeiro, eles argumentam que a razão pela qual todos esses comportamentos de atenção conjunta emergiram juntos é que todos eles representam – cada um a sua própria maneira – manifestações da recente compreensão de crianças de que as outras pessoas são agentes intencionais, assim como elas mesmas, e que podem ter a atenção acompanhada, direcionada e compartilhada. Outras espécies primatas não compreendem os outros de sua espécie dessa mesma maneira, logo, eles

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não se engajam nesses comportamentos complexos de atenção conjunta. Segundo, Carpernter, Nagell e Tomasello argumentam que a razão pela qual as habilidades lingüísticas emergiram no encalço dessas atividades de atenção conjunta – e se correlacionaram fortemente com elas – é que a língua em si é uma forma de atividade de atenção conjunta. A primeira compreensão da criança acerca da língua nada mais é que sua compreensão emergente das falas como indicadoras das intenções dos outros de que ela se junte a ele na atenção a alguma coisa. A primeira produção lingüística da criança nada mais é que sua habilidade emergente de expressar sua própria intenção comunicativa de que as outras pessoas juntem-se a ela na atenção a alguma coisa. Em outras palavras, a língua consiste em compartilhar e direcionar a atenção, e assim, não é nenhuma surpresa que ela surja juntamente com as outras habilidades de atenção conjunta.

Vale a pena parar por um momento para mencionar que as teorias sobre desenvolvimento da linguagem que negligenciam essas habilidades de atenção conjunta, basicamente não têm uma explicação para o porquê de a língua surgir quando surge. Crianças pré-lingüísticas, e muitas outras espécies animais, são capazes de (1) perceber entidades externas, (2) perceber vocalizações discretas, e (3) associar sons a experiências visuais. Então, por que eles não aprendem a língua? A razão é que associar sons às experiências não é língua. É simplesmente associar sons às experiências – da mesma forma que um cachorro de estimação associa o som “comida” com a experiência de comer. Aprender uma língua requer que o aprendiz entenda que a outra pessoa está fazendo esse som com o intuito de direcionar sua atenção para algo no qual ele, o falante, já está focado. Teorias que não valorizam o papel essencial e, sobretudo, constitutivo, desse tipo de cognição social no processo de aquisição de linguagem simplesmente não conseguem explicar por que a maioria das crianças começa a aprender a língua apenas depois do primeiro aniversário e não antes.

Assim, o primeiro ponto é que a língua é adquirida como uma atividade de atenção conjunta para compartilhar e direcionar a atenção de outras pessoas. A habilidade sócio-cognitiva que permite tais atividades – a compreensão de outras pessoas como agentes intencionais como si mesmo – é específi co dos seres humanos e emerge confi avelmente por volta dos 9-12 meses de idade na ontogenia humana.

A organização da cognição para fi ns da comunicação linguística

O que torna as habilidades de comunicação lingüística diferentes das outras habilidades de atenção conjunta, claro, é o fato de que a língua que a criança está aprendendo é anterior à sua chegada em cena. Cada uma das mais de 6.000 línguas do mundo é uma coleção de símbolos e construções que alguma

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comunidade de pessoas criou através dos tempos para fi ns de compartilhar e direcionar a atenção um dos outros. O que é de difícil compreensão acerca das línguas é o inacreditável número de formas diferentes que cada uma delas acumulou para dar conta dessas tarefas.

Para concretizar a discussão, vamos enfocar no processo de estabelecer um tópico por meio do que os fi lósofos chamam de “ato de referência” – nesse caso, a um único objeto no mundo. Alguém poderia imaginar uma língua em que isso fosse feito apenas com nomes próprios. Isso é, da mesma forma que nos referimos a pessoas, lugares e coisas altamente familiares utilizando nomes próprios, tais como Bill, Fluff y, Disneyland e Big Bertha (um clube de golfe), poderíamos nos referir a cada objeto do mundo com seu próprio nome. No entanto, provavelmente, isso iria, em algum ponto, sobrecarregar a memória humana. Como conseqüência, as pessoas usam nomes próprios apenas para algumas centenas de pessoas, coisas e lugares especialmente familiares no mundo (um conjunto diferente para cada indivíduo) e, ademais usamos alguns milhares de rótulos de categorias (substantivos comuns). Para usar esses rótulos de categorias a fi m de direcionar a atenção de uma outra pessoa para um objeto específi co (nos casos em que sua identidade está em jogo), as pessoas devem então utilizar alguns métodos extras de especifi cação, tanto lingüísticos (i.e. o X está no quarto) quanto não-lingüísticos (i.e. apontar).

Uma propriedade surpreendente desses rótulos de categorias é que eles são usados para se referir a objetos de muitas perspectivas diferentes dependendo tanto do contexto da comunicação quanto dos objetivos comunicativos do falante. Só para exemplifi car, substantivos comuns incorporam interpretações6 atencionais baseadas em coisas do tipo (1) granularidade-especifi cidade (coisa, móvel, cadeira, cadeira da escrivaninha), (2) perspectiva (costa, beira-mar, praia, área de férias)7, (3) função (pai, advogado, homem, americano) (LANGACKER, 1991).

Então, uma vez que o falante e o ouvinte estabeleceram uma atenção compartilhada com relação a um objeto particular X, eles podem fazer referências futuras a esse mesmo objeto no mesmo contexto, com um símbolo pequeno e fácil de usar: ele/ela8.

O resultado é que um usuário particular de uma língua olha para uma árvore e, antes de direcionar a atenção de seu interlocutor para aquela árvore, precisa decidir, com base na sua avaliação do conhecimento e expectativas correntes do ouvinte (e em seu objetivo comunicativo), se vai utilizar aquela árvore ali, o 6 A tradução do substantivo construal e do verbo to construe no escopo dessa abordagem é algo que ainda tem gerado discussões. O termo designa a operação mental do falante ou ouvinte em “conceber” uma cena, evento ou objeto já com uma certa perspectiva. Nesse texto, o termo foi traduzido como interpretar, construir, conceber ou conceptualizar dependendo da estrutura da frase em português.7 Coast, shore, beach, vacation lot8 No inglês o símbolo it.

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carvalho, aquele carvalho de cem anos, a árvore, aquela coisa no jardim da frente, o ornamento, aquela ali, aquela, ela9, ou uma dezena de outras novas expressões. Em termos da nova informação que está sendo comunicada, quando o falante quer predicar (focalizar a atenção do ouvinte) sobre alguma a respeito da árvore, ele deve decidir se a árvore está, está em pé, está crescendo, está localizada, está fl orescendo – ou qualquer outra coisa – no jardim da frente. E na construção escolhida para unir tópico e foco, muitas outras perspectivas surgem na medida em que o falante tenta enfatizar ou colocar em segundo plano referências específi cas (i.e. Uma árvore está no jardim vs. No jardim está uma árvore) – e, muito mais que isso, quando múltiplos participantes estão envolvidos, como em Ele quebrou o vaso, O vaso quebrou, Foi ele que quebrou o vaso, Foi o vaso que foi quebrado, e assim por diante. Finalmente, baseado em categorias de função consistente em construções, os falantes podem na verdade interpretar/conceptualizar coisas de formas diferentes da sua classe ontológica “normal”. Por exemplo, o falante pode conceptualizar coisas como ações (como em Ele envarandou o jornal10), ações como objetos (como em O esquiar é divertido), e atributos como objetos (como em Azul é minha cor favorita). Finalmente, usuários de uma língua se tornam capazes de conceptualizar todos os tipos de situações abstratas em termos de construções metafóricas concretas – por exemplo, O amor é uma viagem, Eles estão me pressionando, ou Estou nas alturas11 (LAKOFF, 1987).

O ponto principal é que decisões de interpretar um referente ou predicado de uma forma e não de outras formas possíveis não são tomadas com base no objetivo direto do falante em relação ao objeto ou atividade envolvida; na verdade, elas são tomadas com base no seu objetivo com relação ao interesse e atenção do ouvinte acerca do objeto ou atividade. O falante sabe que seu interlocutor, como um usuário da mesma língua, compartilha com ele a mesma gama de escolhas para interpretações; estas escolhas estão na forma de uma miríade de perspectivas que são simbolizadas nos símbolos e construções conhecidas na língua compartilhada, mas que nessa ocasião não foram escolhidas. Assim símbolos lingüísticos humanos são tanto intersubjetivos (ambos os usuários conhecem, e cada um sabe que o outro conhece, uma gama de possibilidades) e perspectivos (cada símbolo incorpora uma maneira, dentre várias outras maneiras simultaneamente disponíveis, em que a situação pode ser concebida para um dado propósito comunicativo). É difícil imaginar como ou por que, na falta de comunicação lingüística, uma criança ou um adulto escolheria construir todas das várias diferentes perspectivas das coisas que são rotineiramente simbolizadas nas línguas humanas.9 No original Tomasello ainda inclui as expressões the bagswing tree e the embarrassment que não foram incluídos na tradução por falta de conhecimento dos respectivos correspondentes que caberiam em português.10 He porched the newspaper.11 Love is a journey, Th e offi ce is pressing on me, My spirits are high

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Novas formas de pensar

A hipótese específi ca de desenvolvimento é essa. Ao que a criança internaliza um símbolo ou construção lingüística – ou seja, ao que ela culturalmente aprende a perspectiva humana incorporada nesse símbolo ou construção – ela representa cognitivamente não apenas os aspectos perceptuais e motores de uma situação, mas também uma forma, dentre outras formas das quais ela também está ciente, em que a presente situação pode ser atencionalmente concebida por “nós”, os usuários do símbolo. A natureza intersubjetiva e perspectiva dos símbolos lingüísticos, então, cria uma quebra nas representações cognitivas perceptuais e sensório-motoras diretas. Ela as distancia, em grande medida, da situação perceptual imediata, de maneira muito mais profunda do que o fato que as representações cognitivas podem representar objetos ou eventos fi sicamente ausentes (ou outras formas simples de deslocamento espaço-temporal12. Ao invés, a natureza intersubjetiva e perspectiva dos símbolos lingüísticos na verdade enfraquece todo o conceito de uma situação perceptual quando coloca sobre ela as perspectivas multitudinária e variada que são comunicativamete possíveis para aqueles de nós que compartilha um certo conjunto de símbolos lingüísticos.

É nesse sentido que, como foi proposto inicialmente, as funções cognitivas e comunicativas da linguagem estão inseparavelmente coadunadas (ver Tomasello, 1999). Porém, deve ser enfatizado que adquirir habilidades de comunicação lingüística não cria, por mágica, novas habilidades e representações cognitivas do nada. Adquirir uma língua em primeiro lugar requer uma vasta gama de habilidades cognitivas básicas de primatas tais como percepção, categorização, memória, compreensão relacional, resolução de problemas e assim por diante. Ademais, adquirir uma língua requer a forma unicamente humana de cognição social – compreender as outras pessoas como agentes intencionais como si próprio – sem a qual não haveria nenhuma forma de atividade simbólica ou cultural como a do ser humano. Mas então, em minha hipótese, à medida que essas habilidades são utilizadas para adquirir o conjunto de construções e símbolos lingüísticos historicamente desenvolvidos, as crianças começam a pensar fundamentalmente de novas maneiras.

Claro que esse não é o fi m da estória ontogenética. Nós podemos também considerar crianças de alguma forma mais velhas e examinar como elas internalizam seus diálogos simbólicos e lingüísticos com outras pessoas à moda Vygostkiana. Em Tomasello (1999), eu tentei mostrar como esse “segundo 12 Devido a difi culdade na tradução desse trecho, trago o trecho como apareceu no original: Th e intersubjective and perspectival nature of linguistic symbols thus creates a clear break with the straightforward perceptual and sensorimotor cognitive representations. It removes them to a very large extent from the perceptual situation at hand, and in ways much more profound than the fact that they can stand for physically absent objects and events (and other simple forms of spatiotemporal displacement).

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estágio” de internalização leva a criança a engajar em novas formas qualitativas de atividades cognitivas como classifi cações múltiplas de objetos e eventos, interpretações metafóricas de situações e eventos abstratos, pensamento dialógico, e refl exão sobre o próprio pensamento. Eu também tentei mostrar que o processo de internalização não é algo místico, como alguns parecem acreditar; na verdade, é simplesmente o processo normal de aprendizagem cultural a partir dos outros quando a atividade que está sendo aprendida é do tipo que envolve tomada de perspectiva. Refl etir sobre o próprio pensamento deriva da internalização no caso especial de uma atividade na qual outra pessoa toma uma perspectiva sobre você e suas atividades cognitivas – como no conhecido aprendizado instruído13 (TOMASELLO; KRUGER; RATNER, 1993).

Mas tudo isso é um propulsor no topo de uma realidade primária que emerge no fi m da infância: as formas intersubjetivas e perspectiva da comunicação lingüística que as crianças engajam com outras pessoas – e a internalização dessas formas em um tipo de representação cognitiva fl exível e poderosa, característica da, e somente da, espécie Homo sapiens.

Cognição linguística

Podemos pensar que pensar é essencialmente a atividade de operar com signos.Ludwig Wittgenstein

Não temos o poder de pensar sem signos.Charles Sanders Peirce

Apenas em termos de gestos como símbolos signifi cantes que é possível a existência da mente ou da inteligência.George Herbert Mead

Pensamento não é meramente expressado em palavras; ele vem a existir através delas.Lev Vygotsky

Esses quatro pensadores refletiram sobre o pensamento tanto quanto qualquer um. O que possivelmente eles queriam dizer ao afirmar que pensamento só é possível através de símbolos? Eles provavelmente não queriam dizer que um chimpanzé ou uma criança que usa uma ferramenta não esteja pensando de alguma forma, mas somente que essas criaturas não-simbólicas não estão pensando da mesma forma que criaturas simbólicas; existem formas 13 Instructed Learning

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de atividades cognitivas que eles não conseguem engajar. Em minha opinião, talvez o que esses quatro pensadores querem dizer é que símbolos intersubjetivos e perspectivos que são aprendidos e usados em interação comunicativas com outros usuários desses símbolos criam a possibilidade de examinar as coisas de diversas perspectivas simultaneamente, de antecipar as diferentes perspectivas das pessoas em relação às coisas, e mesmo, de refl etir sobre o próprio pensamento também com diferentes perspectivas. São esses tipos de pensamentos que criaturas não-lingüísticas são incapazes de se engajar. Eles são incapazes, pois eles não possuem o meio de representação através do qual conduziriam tais formas dialógicas e multilógicas de atividades mentais; isso quer dizer que eles não possuem o meio representacional que emerge assim que as crianças humanas começam a comunicar simbolicamente com seus co-específi cos por volta do primeiro ano de vida.

Alguém pode refutar essa proposta dizendo que uma criança pré-lingüística ou um primata não-humano pode conceptualizar um objeto ou uma situação de mais de uma maneira: uma hora um co-específi co é amigo e noutra hora é inimigo; uma hora a árvore é para subir a fi m de fugir de predadores e noutra hora é para se fazer um ninho. Nessas diferentes interações com a mesma entidade, a pessoa está certamente empregando sua atenção de forma diferente dependendo de seu objetivo no momento – tomando uma perspectiva diferente se você preferir. Mas mudar a atenção sequencialmente dessa forma em função do objetivo no momento não é a mesma coisa que saber/conhecer simultaneamente um número distinto de possibilidades nas quais alguma coisa pode ser conceptualizada. Um chimpanzé ou uma criança pré-lingüística entende que um objeto na sua frente é simultaneamente uma laranja, um pedaço de fruta, uma refeição, um objeto, um presente de um amigo, uma esfera ou uma tentação – dentre outras coisas? Um chimpanzé ou uma criança entende que um evento que ocorre na sua frente é simultaneamente uma luta, um ato de caça, uma interação social, um ato de retribuição, um ato de agressão, uma tragédia, um assassinato impendente – dentre outras coisas? Se ela não entende, em que isso implica a respeito de como ela pode pensar, e representar cognitivamente, objetos e eventos que estão presentes a sua volta?

Desde Whorf (1956), a problemática sobre linguagem-cognição tem focado na questão de que se aprender uma língua, ao invés de uma outra língua, afeta a cognição não-lingüística. O teste de fogo é se aprender uma língua ao invés de outra leva a alguma diferença visível na maneira como as pessoas agem em tarefas não verbais que avaliam sua percepção de cores, do espaço, ou de formas de um objeto (GUMPERZ; LEVINSON, 1996). O que eu estou falando aqui – através da invocação de primatas não-humanos e crianças pré-lingüísticas – é algo diferente, e até agora nem estou sendo agonístico com relação à questão Whorfi ana em particular. Do que estou falando é o que Slobin (1991) chama

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de “pensar para a fala”14. Nessa perspectiva, a cognição não-lingüística não é privilegiada como algo real – e que então vemos se a língua afeta. Nessa perspectiva é preferível dizer simplesmente que a cognição toma várias formas dependendo de vários fatores, e uma forma – que é única da espécie humana depois dos 2 anos de idade – é a cognição lingüística na qual pessoas estruturam seus pensamentos por meio de uma ou outra coleção de símbolos e construções intersubjetivos e perspectivos desenvolvidos historicamente. A língua não afeta a cognição; é apenas uma forma que ela pode tomar.

Para sumarizar, as três principais proposições feitas nesse capítulo – que juntas justifi cam o título – são:

1. A evolução da comunicação lingüística na espécie humana e a aquisição de língua por crianças humanas se baseiam crucialmente nas habilidades unicamente humanas de cognição social. Essas habilidades permitem aos indivíduos compreender tanto as intenções comunicativas do outro, incorporadas em seus comportamentos simbólicos, quanto culturalmente aprender esses comportamentos simbólicos.2. Quando utilizadas em atos de comunicação, essas habilidades sócio-cognitivas servem para criar símbolos lingüísticos entendidos intersubjetivamente e perspectivamente, os quais podem ser usados para convidar as outras pessoas a conceptualizar fenômenos de alguma das várias perspectivas simultaneamente disponíveis. A internalização de tais atos de comunicação simbólica cria formas de representação cognitiva especialmente fl exíveis e poderosas, e essas então, mais tarde na ontogenia, permitem pensamentos metafóricos, dialógicos e refl exivos.3. Comunicar com outras pessoas linguisticamente então leva os seres humanos a conceptualizar coisas e eventos no mundo de uma miríade de maneiras complexas e diferentes. Sem essas atividades comunicativas, os seres humanos não teriam por que conceptualizar coisas e eventos dessas maneiras, e então eles simplesmente não o fariam.

REFERÊNCIAS

CARPENTER, M., NAGELL, K.; TOMASELLO, M. Social cognition, joint attention, and communicative competence from 9 to 15 months of age. Monographs of the Society for Research in Child Development, Volume 255, 1998.

GUMPERZ, J.; LEVINSON, S. C. (Eds.). Rethinking linguistic relativity. Cambridge: CUP, 1996.

14 Th inking for speaking

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LAKOFF, G. Women, fi re and dangerous things: What categories reveal about the mind. Chicago: UCP, 1987.

LANGACKER, R. Foundations of cognitive grammar. (Vol.2.) Stanford, CA: Stanford University Press, 1991.

SLOBIN, D. Learning to think for speaking: Native language, cognition, and rhetorical style. Pragmatics, 1, 7-26, 1991.

TOMASELLO, M. Th e cultural origins of human cognition. Cambridge, MA: HUP, 1999.

___; CALL, J. Primate cognition. Oxford: OUP, 1997.___; KRUGER, A. C.; RATNER, H. H. Cultural learning. Behavioral and Brain

Sciences, 16, 495-552, 1993.VYGOSTKY, L. Th ought and language. Cambridge, MA: MIT Press, 1962.

(Trabalho original publicado em 1934).WW

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A abordagem da metáfora à luz da dinâmica do discurso e análise do discurso à luz das metáforas1

Lynne Cameron2, Robert Maslen3, Zazie Todd4, John Maule5, Peter Stratton6 e Neil Stanley7

Tradução: Vitor Dias, Nina Luiza Moraes, Fillipe Dória de Mesquita8

Revisão da tradução e revisão técnica: Luciane Corrêa Ferreira 9 e Ana Cristina Pelosi10

Resumo: O uso da metáfora como dispositivo para revelar ideias, atitudes e valores de pessoas através da análise do discurso é demonstrado e ilustrado com dados coletados num projeto de pesquisa no âmbito das Ciências Sociais. Foi desenvolvida uma abordagem da metáfora à luz da “dinâmica do discurso” dentro de uma perspectiva de sistemas dinâmicos/complexidade. Esta abordagem se transforma num método de “análise do discurso à luz das metáforas”, que é descrita em detalhes, utilizando-se uma discussão em um grupo focal para ilustrar o procedimento: transcrição; identifi cação da metáfora; codifi cação das metáforas e uso do soft ware; busca de padrões de uso de metáforas a partir dos dados codifi cados. O raciocínio que justifi ca decisões em cada estágio do procedimento é explicitado, de forma que a confi abilidade do método possa ser maximizada. O Método da Análise do Discurso à Luz das Metáforas tem se desenvolvido por meio de uma série de projetos empíricos para que sejam acessíveis e relevantes para os pesquisadores das Ciências Sociais, bem como para estudiosos das metáforas.

1 Traduzido com a permissão dos autores a partir do texto em inglês CAMERON, L.; MASLEN, R.; TODD, Z.; MAULE, J; STRATTON, P; STANLEY, N. Th e Discourse Dynamics Approach to Metaphor and Metaphor-led Discourse Analysis. Metaphor and Symbol, 24(2), p.63-89, 2009.2 Th e Open University (Reino Unido).3 Th e Open University (Reino Unido).4 University of Leeds (Reino Unido).5 University of Leeds (Reino Unido).6 University of Leeds (Reino Unido).7 University of Leeds (Reino Unido).8 Universidade Federal de Minas Gerais, MG.9 Universidade Federal de Minas Gerais, MG.10 Universidade Federal do Ceará, CE.

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Pesquisadores das Ciências Sociais usam, cada vez mais, o discurso como um dado para investigar fenômenos sociais, incluindo tópicos como relações familiares, pobreza e desigualdade social, prática educacional e soluções, radicalização e terrorismo. Como estudiosa das metáforas, a autora principal quis contribuir para os esforços dos pesquisadores das Ciências Sociais, impulsionada pela convicção de que, como metáforas revelam algo sobre como as pessoas pensam e se sentem, elas podem ser usadas como uma ferramenta empírica. A Teoria da Metáfora Conceitual ofereceu a possibilidade tentadora de descobertas sobre as ideias das pessoas através da investigação das metáforas usadas por elas. Contudo, a teoria cognitiva minimiza drasticamente a infl uência da linguagem na metáfora, bem como a importância das especifi cidades da situação de uso da língua na qual a metáfora ocorre. Essa teoria está mais preocupada com a metáfora no nível conceitual através de comunidades de fala inteiras do que com as dinâmicas complexas do uso da linguagem no mundo real, em situações sociais, sendo assim sua contribuição limitada na compreensão das especifi cidades das questões sociais.

Desenvolvimentos recentes da Teoria da Complexidade e Teoria dos Sistemas Dinâmicos sugerem maneiras alternativas e poderosas de se entender os mundos psicológicos e sociais, através do foco na mudança e em como a mudança acontece. Uma perspectiva da complexidade/sistemas dinâmicos destaca mudança e conectividade em sistemas sociais e cognitivos e, aplicada às Ciências Sociais, identifi ca sistemas dinâmicos complexos em todas as escalas, desde a cultural até a individual. A perspectiva também muda a maneira como vemos a metáfora: ela não é mais um mapeamento estático e fi xo, mas uma estabilidade temporária, que emerge da atividade de se interconectar sistemas de usos de linguagens socialmente situados e atividade cognitiva. Esta perspectiva dinâmica da metáfora abre novas possibilidades de investigação da metáfora no discurso, contribuindo deste modo para a pesquisa das Ciências Sociais.

Este artigo responde à pergunta: como a metáfora pode ser usada como uma ferramenta para desvelar ideias, atitudes e valores das pessoas através da análise do discurso? Ele descreve uma abordagem da metáfora à luz da “dinâmica do discurso”, situado numa perspectiva de complexidade/sistemas dinâmicos, e seu método de “análise do discurso à luz das metáforas”, que vem sendo desenvolvido através de uma série de projetos de pesquisa em Ciências Sociais, incluindo o que se desenha neste artigo. Explica também a teoria por trás da abordagem das metáforas à luz da dinâmica do discurso e então mostra, com algum detalhe, como a abordagem se torna uma metodologia para trabalho com dados de discurso, usando-se uma discussão num grupo focal para ilustrar, e explicitando o raciocínio que justifi ca decisões em cada estágio do processo da pesquisa.

Lynne Cameron et al.

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Um Olhar Dinâmico da Relação entre Metáfora, Discurso e Ideias, Valores e Atitudes das Pessoas

“Quando temos, de fato, uma visão geral do maravilhoso fl uxo de nossa consciência,

o que nos espanta, em primeiro lugar, é o diferente ritmo de suas partes. Como a vida

de um pássaro, ela parece ser feita de uma alternância de voos e pousos”.

(William James, 1890)

No centro de uma abordagem de complexidade/sistemas dinâmicos há uma compreensão dos fenômenos linguísticos e cognitivos mais como processos, fl uxos ou movimentos do que como objetos (CAMERON, 2003, 2007a; CAMERON; DEIGNAN, 2006; GIBBS; CAMERON, 2008; LARSEN-FREEMAN; CAMERON, 2008). Os construtos-chave de uma perspectiva de complexidade/sistemas dinâmicos incluem: sistemas interconectados em mudança contínua; margens de tempo contínuas e níveis de atividade dentro de sistemas; sistemas e subsistemas encaixados ou interconectados; auto-organização de sistemas e a emergência de estabilidades temporárias na atividade dos sistemas, com variações ao longo da estabilidade.

Para ilustrar como essas ideias podem ser aplicadas ao discurso, o excerto 1 apresenta uma pequena sessão de fala de uma discussão em grupo focal, coletados como dados num projeto de ciências sociais sobre a percepção que as pessoas têm do risco do terrorismo11. As perguntas de pesquisa para essa parte do projeto foram: como as pessoas usam metáforas na fala sobre tópicos relacionados ao terrorismo? O que as metáforas revelam sobre suas ideias, atitudes e valores?

Os tópicos relacionados ao terrorismo foram:• a ameaça do terrorismo e terroristas;• comunicação sobre terrorismo pela mídia e pelas autoridades;• respostas ao terrorismo;• grupos dentro da sociedade.

Por um período de 90 minutos, os oito participantes homens responderam a uma série de perguntas apresentadas pelo moderador, concebidas para se evocar falas sobre como eles se sentem e agem em resposta à ameaça do terrorismo nas 11 No projeto, doze grupos focais e oito entrevistas com especialistas foram analisados. Para os propósitos metodológicos deste artigo, nos debruçamos sobre apenas um dos grupos focais. A aprovação ética deste estudo ocorreu pelo Instituto de Ciências Psicológicas, Universidade de Leeds ( Institute of Psychological Sciences, University of Leeds). O uso das discussões ocorreu com o consentimento dos participantes sob as diretrizes da Sociedade de Psicologia Britânica, e todos os nomes foram trocados por pseudônimos.

A abordabem da metáfora à luz da dinâmica...

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suas vidas. O excerto se inicia bem perto do começo da discussão, num ponto onde os participantes ainda não se conhecem, tendo apenas se apresentado com seus nomes (aqui substituídos por pseudônimos) e o lugar de onde vêm. O moderador abre a discussão perguntando sobre as reações iniciais relativas à ideia de terrorismo (linhas 76-77). As palavras e frases sublinhadas no excerto são aquelas que foram identifi cadas como uso metafórico. Voltaremos mais tarde aos detalhes de como se organizou a transcrição e como as metáforas foram identifi cadas.

Excerto 174        Mod   ok.75        Mod   ... Terry,76        Mod   .. qual é a primeira coisa,77        Mod   que vem à sua mente?78        Terry é --79        Terry terrorismo pra mim,80        Terry é --81        Terry .. é uma maneira desonesta --82        Terry .. é quase como bullying,83        Terry .. porque você não sabe quando vai acontecer,84        Terry você não pode .. fazer leis contra isso,85        Terry .. você não pode controlar --86        Terry não é como uma guerra,87        Terry .. onde você tem dois .. lados opostos.88        Terry .. terrorismo .. é apenas um --89        Terry um inimigo invisível.90        Terry .. quase.91        Terry .. digo você não sabe quando vai acontecer,92        Terry .. onde vai acontecer,93        Terry .. mas você sabe,94        Terry que pessoas serão,95        Terry ... assassinadas.96        Terry mutiladas.97        Terry o que for.98        Mod   ... e,99        Mod   .. Phil?100      Phil     olá.101      Phil     .. er,102      Phil     é --103      Phil     muita er,104      Phil     muita matança,

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105      Phil     .. erm,106      Phil     que você obtém disso.107      Phil     ..erm,108      Phil     ... eu também diria que é uma falha no sistema,109      Phil     além disso.110      Phil     alguém não está fazendo seu trabalho direito.111      Phil     .. porque se alguém estivesse fazendo seu trabalho direito,112      Phil     em primeiro lugar isso não teria acontecido.

A abordagem da dinâmica do discurso considera essa transcrição como um ‘vestígio’ de atividade do discurso que aconteceu em tempo real. A atividade do discurso é vista como desdobramento do Sistema Dinâmico Complexo que é o grupo de pessoas engajadas em sua discussão. Como os falantes constroem suas ideias sobre as dos outros ou sobre suas próprias ideias, ou discordam e oferecem alternativas, o sistema dinâmico do discurso desenvolve-se, se adapta e fl ui. O sistema da dinâmica do discurso surge da interação dos subsistemas de cada falante. Em cada falante podemos identifi car outros subsistemas que interagem enquanto as pessoas participam na fala: sistemas de linguagem complexos e dinâmicos, sistemas cognitivos complexos e dinâmicos, sistemas físicos complexos e dinâmicos. Esses sistemas interconectados também se conectam para fora em sistemas ambientais e sócio-culturais. Sistemas dinâmicos podem ser identifi cados em (pelo menos) duas escalas: de tempo e organização social. Medidas de tempo relacionadas com a discussão do grupo focal vão desde milissegundos de atividade cerebral ao longo da escala da expressão até episódios de fala conectada, que duram de vários minutos à hora e meia do evento discursivo, ou por meses e anos de fala e atividade nas vidas das pessoas. Níveis de organização social vão desde o mais minúsculo sistema biológico dentro do indivíduo até os grupos sociais, comunidades e nações.

Uma forma útil e impactante de se conceitualizar a atividade de um sistema dinâmico é pensar nos estados sucessivos do sistema como pontos numa paisagem. O sistema cria uma trajetória nessa paisagem enquanto se move pelos estados sucessivos; a paisagem ao redor representa possíveis estados que o sistema poderia ter ocupado, mas, não o fez – palavras que poderiam ter sido faladas e ideias que poderiam ter sido discutidas, mas não foram. A trajetória ou caminho representa os estados atuais através dos quais o sistema se move, e permanece como um vestígio da atividade do sistema após o evento, tal como a trilha brilhante deixada por um caramujo é um vestígio do seu movimento ou como a fumaça que um jato deixa no céu é um vestígio do seu voo. As palavras ditas e as metáforas utilizadas na discussão são deixadas pra trás como vestígios do sistema do discurso em sua paisagem. O percurso ou trajetória da metáfora conecta-se em sistemas múltiplos de pensamento e uso da linguagem em outras

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medidas de tempo e níveis de organização social. Através do rastreamento dessas conexões, temos como objetivo explorar as possibilidades da metáfora como ferramenta para se entender mais sobre ideias, valores e atitudes das pessoas.

Ao descrever o terrorismo como “uma maneira desonesta” na linha 81 do excerto 1, Terry usa uma metáfora convencionalizada de movimento, “maneira”12, para dizer algo sobre o método ou forma de terrorismo; modifi cando-a com “desonesta” ele evoca um sentido de movimento de alguma forma suspeito e oculto, tentando fazer-se passar desapercebido. Como metáfora sobre terrorismo, “desonesta” lança sobre ele uma atitude negativa, dissimulada e enganosa. Terry imediatamente segue com uma comparação entre terrorismo e “bullying”, como um exemplo específi co de “comportamento desonesto”. Bullying (tal como usado atualmente no inglês britânico) se refere a uma prática cultural onde uma criança maior ou mais velha oprime uma vítima menor ou mais jovem, geralmente num cenário escolar. O exercício injusto de poder no “bullying” é considerado tanto covarde quanto socialmente inaceitável. Terry, ao usar “desonesta” e “bullying”, monta seu enquadramento negativo do terrorismo enquanto apela ao conhecimento social e cultural mútuo no grupo. Nas linhas 83-85, ele procede à justifi cativa de sua avaliação do terrorismo como “desonesto” e como “bullying” elaborando aspectos particulares: imprevisibilidade (“você não sabe quando vai acontecer”) e incontrolabilidade (“você não pode controlá-lo”). O discurso se move numa direção levemente diferente com a comparação negativa, ou contraste, na linha 86 entre terrorismo e “guerra”13; mais uma vez um aspecto particular, agora de diferença, se faz presente e é elaborado: a guerra tem “dois lados opostos” enquanto no terrorismo o “inimigo” não é visto através do espaço metafórico do confl ito14, mas é “invisível” (89). Terry encerra seu turno com uma reiteração da diferença entre terrorismo e guerra, a imprevisibilidade no tempo e lugar dos eventos terroristas, e similaridade: nas consequências previsíveis de ambos - “pessoas serão assassinadas... mutiladas” (linhas 93-97).

Nos Sistemas Dinâmicos Complexos, a organização em camadas e o acomodamento de sistemas dão suporte à emergência de fenômenos auto-organizados de um nível - ou escala - para outro. No mundo natural, exemplos 12 N.T.: No original, “maneira desonesta” é “sneaky way”. “Way”, por sua vez, é uma palavra que signifi ca “caminho”, “trilha”, daí a associação com movimento.13 Faz-se necessário um comentário metodológico neste ponto das questões de identifi cação, levantado pelo raciocínio “é quase tipo bullying” e pelo raciocínio posterior “não é como a guerra” (86). Tais comparações positivas e negativas entre terrorismo e bullying/guerra não são afi rmações metafóricas, mas são verdades literais: o terrorismo não é como a guerra. Entretanto, pode se dizer que trazer em cada caso duas ideias ou conceitos distintos – terrorismo ~ bullying; terrorismo ~ guerra – é um ato metafórico, e isso justifi ca sua inclusão como metáfora.14 Historicamente, “lados opostos” é uma expressão metonímica, uma vez que batalhas ao longo dos tempos de fato costumam envolver dois grupos de pessoas se enfrentando. Contemporaneamente, entretanto, lados opostos são características menos associadas à guerra e mais a vários esportes e jogos, incluindo futebol e xadrez (HOWE, 2008; RITCHIE, 2003).

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de auto-organização e emergência incluem: o cupinzeiro que surge da atividade de cupins individuais; a nuvem que emerge da interação de vento, umidade e temperatura; a fl oresta que emerge da interação de diferentes espécies de fl ora e fauna. Fazer uma analogia entre o mundo natural e o mundo do discurso nos leva a ver a discussão no grupo focal como algo que emerge da interação dos falantes individuais. Num nível mais detalhado, certas formas de enquadramento metafórico de ideias podem emergir através dos falantes e do tempo da discussão, tal como concordado e compartilhado. Como veremos a seguir neste artigo, seguindo a articulação inicial de Terry no excerto 1, o enquadramento do terrorismo como covardia emergiu da conversa no grupo e ao longo do tempo da discussão.

Metáfora, seja conceitual ou linguística, a partir da perspectiva da dinâmica do discurso se torna processual, emergente, e aberta a mudanças. Ao invés de ver a metáfora como uma ‘ferramenta’ ou algum outro tipo de objeto que é colocado em uso, um olhar processual se atém à atividade da metáfora. Uma metáfora não é uma parte do sistema colocada em uso; numa perspectiva dinâmica, há apenas o uso15. Através de auto-organização e emergência, metáforas e sistemas de metáforas podem se estabilizar fora do uso. Essa estabilidade, no entanto, é dinâmica, aberta a mudanças posteriores, e acompanhada por fl exibilidade. A fl exibilidade ou variabilidade em torno dos fenômenos estabilizados permite a possibilidade de mudanças posteriores no fl uxo contínuo do discurso. Metáforas linguísticas, ou melhor, metaforemas (CAMERON; DEIGNAN, 2006), se estabilizam como formas idiomáticas ou preferidas e como características associadas da Pragmática e Semântica que emergem a partir da interação. Dependendo da atividade comunicativa, elas podem continuar a mudar ou podem seguir na forma estabilizada por um longo período de tempo (BOWDLE; GENTNER, 2005). A frase que Phil usa na linha 108, “uma falha no sistema”, provavelmente estabilizou-se linguisticamente, e poderíamos checar isso num grande corpus, se assim desejássemos. Metáforas conceituais e metáforas primárias, como fenômenos cognitivos emergentes, também se estabilizam através da interação sociolinguística ao longo do tempo, e se mantêm abertas a mudanças contínuas (BARR, 2004; GIBBS; CAMERON, 2008). A compreensão da vida política/social como um sistema parece ser uma ideia estabilizada para Phil, e provavelmente para a maioria dos falantes britânicos do inglês16.15 Somos, sempre e em todo lugar, reféns da tendência da língua inglesa de se preferir nomes sobre verbos. A frase “uso da metáfora” mesmo sugere um objeto posto em uso. Poderíamos descrever uma perspectiva dinâmica mais precisamente com verbos como metaphorising “metaforização”, mas essas construções não vêm de forma fácil ou elegante. (N.T.: o gerúndio, em inglês, tem também usos que, na língua portuguesa, cabem aos substantivos, como no caso em questão.)16 É interessante observar que a metáfora da sociedade como sistema estendeu-se recentemente para incorporar ideias de sistemas dinâmicos complexos (BYRNE, 2002), o que mostra como uma metáfora estabilizada não é fi xa e estática; é, ao contrário, aberta a mudanças.

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O contraste metafórico entre terrorismo e guerra enunciado por Terry apela para o conhecimento compartilhado no grupo que se conecta À arena global sociocultural; a “guerra ao terror” metafórica é atribuída ao ex-presidente dos EUA George W. Bush e esse termo tem sido usado em larga escala pela mídia e pelos políticos desde 2001 (BREWSTER SMITH, 2002; LAKOFF, 2001; JACKSON, 2005).

Na abordagem da dinâmica do discurso, a conexão entre metáfora linguística e metáfora conceitual não é mais somente uma das instanciações feitas de cima pra baixo, do pensamento para a linguagem (e.g. Kövecses, 2005; Lakoff e Johnson, 1980); é, ao invés, uma das interações entre linguagem e pensamento. O que é dito tanto refl ete quanto afeta o pensamento. Uma perspectiva dinâmica da relação entre pensamento e fala, nos leva a ver que palavras que pessoas falam como verbalizações fl uidas e experimentais de ideias podem ser elas próprias fl uidas e experimentais. Ideias e atitudes são infl uenciadas pelas circunstâncias do discurso no qual os falantes estão envolvidos, incluindo-se aí outros participantes, e pela linguagem em uso (CAMERON, 2003, 2004; SLOBIN, 1996; SPIVEY, 2007). Quando Phil começa seu turno nas linhas 100-104 falando sobre a “matança que você obtém disso”, ele provavelmente está afetado pelas referências imediatamente anteriores feitas por Terry a pessoas como sendo “assassinadas, mutiladas ou o que seja” (linhas 95-97). Um pensamento enunciado pode ativar outro.

Para se levar em conta a inevitável infl uência de outros participantes do discurso no que é dito, precisamos adicionar o quadro teórico do dialogismo, com sua visão bakhtiniana da linguagem como algo continuamente moldado pela interdependência de si e do outro (LINELL, 1998; MARKOVA et al., 2007). O dialogismo vê expressões e interações, não só como infl uências das reações dos outros participantes, mas também das percepções dos falantes sobre o que seus ouvintes pensam e como esses ouvintes podem interpretar o que eles dizem: “adentrando o território perceptivo do outro” (BAKHTIN, 1981, p.282). Numa discussão em grupo focal, por exemplo, falantes expressam ideias que são parciais ou incompletas, testando-as com vários graus de assertividade e empirismo enquanto avaliam e reagem à sua recepção por parte dos outros participantes, a quem acabaram de conhecer.

Desse quadro teórico da dinâmica do discurso, ilustrado com um curto excerto de fala, procedemos à visão geral do método empírico no qual as metáforas são utilizadas para investigar ideias, atitudes e valores das pessoas.

Método de Análise do Discurso à Luz das Metáforas: Visão Geral

“o método das teorias dinâmicas é a heurística, ou seja, a arte da descoberta”(Markova et al., 2007, p.199)

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Processos de Análise

O método de análise das metáforas por meio da dinâmica do discurso funciona com uma linguagem que usa metáforas e, mais especifi camente, como vimos no excerto 1, com veículos linguísticos da metáfora. Após a preparação dos dados com a transcrição das gravações, as metáforas linguísticas são identifi cadas. Então, as metáforas são codifi cadas através de suas várias características, e as metáforas codifi cadas são analisadas procurando-se padrões ou alguma sistematicidade que possa produzir informação sobre ideias, atitudes e valores dos participantes.

Estudos empíricos iniciais dão suporte à premissa de que as metáforas dos falantes revelam informação útil sobre suas ideias, atitudes e valores. Cameron (2003) demonstrou como as metáforas dos professores em sala de aula revelam suas atitudes em relação ao ensino e o que esperavam dos estudantes, bem como proporcionavam aos estudantes maneiras de se pensar sobre o conteúdo do currículo. Cameron (2007b) mostrou como metáforas em conversas sobre reconciliação moldaram ideias-chave e mudaram, enquanto as atitudes dos participantes em relação ao processo de reconciliação evoluíram. As metáforas dos participantes também podem trabalhar implicitamente, invocando “entendimentos convencionais compartilhados” (HOWE, 2008, p.19; STRAUSS; QUINN, 1997). Numa escala maior de organização social, estudos de dados de corpus demonstraram como as metáforas são usadas em conversas sobre conceitualização de questões políticas, e como elas trazem consigo atitudes e valores (CHARTERIS-BLACK, 2004, 2006; MUSOLFF, 2004; SEMINO, 2002)17.

Con forme revelam outros estudos baseados no discurso (STRAUSS; QUINN, 1997; QUINN, 1991), e conforme nossos próprios estudos de metáforas e fala têm demonstrado repetidamente (e.g. Cameron, 2003, 2008), a fala metafórica e a não metafórica interagem na conquista dos objetivos do discurso, e as metáforas se deslocam e mudam nos falantes e por meio deles. Afi rmar que Terry usa, na linha 86, a metáfora conceitual “TERRORISMO É GUERRA” seria uma afi rmação 17 Pode se distinguir a Análise do Discurso à Luz das Metáforas (ADLM) dos estudos das metáforas na tradição da Análise Crítica do Discurso (ACD), chamado Análise Crítica da Metáfora (ACM) por Charteris-Black (2004), em relação a métodos e pressupostos teóricos. A ACM centraliza sua preocupação na ideologia e relações sociais de poder/dominância, e apresenta afi rmações sobre tais assuntos no tocante a grupos de pessoas; a ADLM pode se aplicar a qualquer questão relativa às Ciências Sociais, e a grupos ou indivíduos. A ACM trabalha dentro da Teoria da Metáfora Conceitual e explica a conexão entre ideologia e linguagem através das metáforas conceituais deduzidas a partir dos dados do corpus. A ADLM, por sua vez, trabalha dentro do enquadramento da dinâmica do discurso, atualizada pela Teoria da Complexidade/Sistemas Dinâmicos; explicam-se as conexões entre ideias, atitudes, valores e a linguagem das pessoas através de padrões de metáforas linguísticas vinculadas encontradas nos dados do discurso. Por fi m, apesar de desenvolvida em projetos de pesquisa estimulados por um interesse em justiça social, a ADLM não adota a postura política explícita da ACD.

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incompleta, e nesse caso claramente induziria ao erro; precisamos dos detalhes da dinâmica do discurso: que o falante explicitamente discorda da metáfora, oferece uma alternativa (“bullying”), e que ele usa tanto a alternativa quanto a discórdia para expressar seus sentimentos negativos acerca do desconhecimento, da incontrolabilidade e da injustiça inerente à ação terrorista. Cada instância de metáfora está fi rmemente inserida em seu contexto imediato de discurso. Enquanto identifi camos, ao longo do fl uxo da fala, padrões de uso de metáfora que sugerem padrões de construção de sentido, precisamos encontrar formas de manter o contexto vivo e ativo. Mesmo se listadas ou ordenadas, as metáforas precisam de alguma forma reter seu contexto; como veremos depois, isso fornece um critério para seleção de ferramentas que ajudem na análise.

O método de análise da metáfora à luz da dinâmica do discurso continuamente se move ao longo de níveis e tempos dos sistemas dinâmicos envolvidos: o micro-nível de uma metáfora particular, os níveis médios de episódios de fala ou fi os de tópicos, o macro-nível da conversa como um todo, e mais amplamente o nível sócio-cultural. A análise não é nem indutiva de baixo pra cima (“bottom-up”) (como seria uma abordagem que ignorasse a possibilidade de metáforas conceituais) nem dedutiva de cima pra baixo (“top-down”) (como seria uma abordagem cognitiva que supusesse que qualquer instância de metáfora na fala signifi casse a expressão de metáforas conceituais implícitas). É, ao invés disso, um processo interativo e recursivo que continuamente se move entre as provas na fala transcrita e o contexto geral.

O analista da metáfora precisa trabalhar com o conhecimento do evento discursivo inteiro e, geralmente, combina a análise da metáfora com outros tipos de análise do discurso, como análise da conversa ou teoria do posicionamento (CAVALCANTI; BISON, 2008; LOW, 2008). No projeto aqui desenhado, fazemos uso da análise dialógica “retórica e interacional” das discussões no grupo focal desenvolvidas por Markova e colegas (MARKOVA et al., 2007, p.133). Eles descrevem grupos focais como construtores, através de sua fala, de “uma intrínseca rede de construção e criação de sentido” (ibid, p.3). A análise da metáfora acessa essa rede intrínseca através da dinâmica do discurso do uso da metáfora, e pela interpretação do uso da metáfora à luz da atividade do discurso. Instigados pelas análises de Mar kova et al., pesquisamos a metáfora na atividade do discurso com a expectativa de que a interação do grupo mostrará “tensões, contradições, vagueza e ambiguidades, bem como regularidades e temas recorrentes” (ibid, p.46), com pessoas escondendo ou mostrando suas múltiplas identidades pessoais e sociais na fala. A dinâmica do “diálogo de ideias” pode ser rastreada pela análise de como os tópicos são moldados, como o enquadramento evolui, como as pessoas se posicionam sobre tópicos e enquadramentos, sobre tópicos recorrentes que produzem temas na fala, e como temas culturalmente inseridos e compartilhados estão

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subentendidos na fala. As pessoas trazem à discussão seus enquadramentos cognitivos e afetivos do terrorismo, que Marková et al. (ibid, p.48) chama de “enquadramentos externos”; em contraste, “enquadramentos internos” são aqueles que se desenvolvem dentro da discussão no grupo focal18.

Confi abilidade na Análise do Discurso à Luz das Metáforas

Garantir a qualidade da análise das metáforas requer atenção a diferentes aspectos da confi abilidade em diferentes estágios (LINCOLN; GUBA, 1985, 2000). A validade, bem como conexões rigorosas entre teoria e processo empírico, se aplica a todos os estágios; a transcrição e identifi cação das metáforas têm por objetivo ser rigorosa e fi el; o processo interpretativo de se encontrar padrões deve oferecer nos dados provas claras o sufi ciente para garantir inferências feitas a partir de ideias, valores e atitudes. Voltaremos a falar de como a confi abilidade se maximiza enquanto procedemos aos detalhes dos vários passos.

Análise do Discurso à Luz das Metáforas: Transcrevendo Interação Falada

Como rastro da atividade do discurso, a transcrição retém alguma informação sobre a dinâmica do evento, mas perde muito do que pode ter sido fi sicamente ou afetivamente relevante na hora, incluindo informação visual a partir de roupas, gestos e expressões faciais, infl uências situacionais como o design da sala ou a temperatura, e infl uências afetivas sobre os falantes, como temperamento ou consumo de álcool.

A forma textual que usamos para a transcrição deliberadamente tenta representar algo da dinâmica temporal de forma icônica, através do uso de unidades de entonação e layout. Uma unidade de entonação (tal como descrita por Chafe, 1996, e Du Bois et al., 1993) é frequentemente o discurso produzido sob um único contorno de entonação, mas nem sempre com uma única respiração. Unidades de entonação costumam coincidir com unidades sintáticas de oração, mas algumas vezes são sintaticamente truncadas. Chafe propõe realidade cognitiva para unidades de entonação sugerindo que cada uma seria uma unidade de ideia; ideias são faladas aproximadamente uma de cada vez. Como unidade mente-corpo, a unidade de entonação é teoricamente apropriada para a perspectiva incorporada da metáfora na dinâmica dialógica.

Algum sentido de temporalidade na fala original é representado nas unidades de entonação de leitura verticalmente ao longo da página, como a 18 Na realidade, enquadramentos externos e internos podem não ser simples de se distinguir. Reafi rmamos: o pesquisador precisa de provas no discurso que justifi quem qualquer afi rmação.

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barra de rolamento de uma tela de computador para baixo. Ao longo de largos trechos de discurso, o tempo gasto para produzir uma unidade de entonação é de dois segundos em média, de forma que o número da unidade da entonação multiplicado por dois retorna o tempo aproximado daquela unidade em relação ao início da conversa. Pelo fato de as unidades de entonação serem por natureza limitadas em seu tamanho máximo, as linhas de transcrição cabem perfeitamente em colunas de programas como o Excel ou ATLASti, um epifenômeno de qualquer forma útil para análises posteriores.

A transcrição para unidades de entonação requer treinamento e, com tempo e esforço, produz resultados confi áveis (STELMA; CAMERON, 2007). O nível de detalhe, no qual a gravação é transcrita, depende dos objetivos da pesquisa. Em nossa transcrição (ver excerto 1), marcamos os fi nais das unidades de entonação com quatro tipos de entonação: uma parada total/ponto indica uma entonação fi nal; uma vírgula indica uma queda leve ou nível de tom e entonação contínua; uma interrogação indica entonação crescente; traços indicam uma unidade de entonação incompleta. Falas sobrepostas são marcadas com colchetes. Pausas são consideradas importantes o sufi ciente para fi ns de transcrição, particularmente uma vez que metáforas deliberadas ou novas costumam ser precedidas de uma pausa. Micro-pausas mínimas são marcadas com dois pontos “..”, micro-pausas um pouco maiores com três pontos “...”, e pausas superiores a um segundo com o número de segundos entre parênteses, p.ex. (2.0) indica uma pausa de aproximadamente dois segundos. Nesta transcrição, não marcamos sílabas tônicas ou transcrevemos detalhes da pronúncia.

Os dados do grupo focal incluíram várias instâncias de enunciação quase reportada, nos quais o falante adota a voz de alguma outra pessoa ou organização; tais expressões estão contidas entre divisas “<Q . . . Q>”. O símbolo “<X . . . X>” representa um trecho de fala indecifrável para a pessoa que transcrever.

A transcrição dos 90 minutos de discussão do grupo focal tem 5490 unidades de entonação.

Análise do Discurso à Luz das Metáforas: Identifi cação das Metáforas

O Processo de Identifi caçãoUma vez completa a transcrição, o próximo passo é identifi car metáforas

linguísticas19 e sublinhar os termos-veículo. São as palavras ou frases que podem 19 “Metáfora linguística” se refere a metáforas no uso da linguagem, em contraposição a metáforas no pensamento. Em nosso trabalho, o termo não se refere a instanciações linguísticas de metáforas conceituais.

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ser justifi cadas como sendo de alguma forma anômalas, incongruentes ou estranhas no discurso em andamento; elas têm algum outro sentido que é algo mais básico e que contribui para sentido no contexto através da comparação (PRAGGLEJAZ GROUP, 2007)20. Termos-veículo são o que a Teoria da Metáfora Conceitual chama de termos do domínio-fonte. Termos-tópico explícitos podem se fazer presentes, mas é mais comum que veículos pareçam anômalos confrontados mais com o fl uxo, relacionado com o tópico da fala em andamento do que em relação às palavras ou frases do tópico domínio em específi co (KITTAY, 1987).

A abordagem da dinâmica do discurso afi rma que a metaforicidade depende da evolução do contexto do discurso, e que só podemos entender a metáfora no discurso examinando como ela funciona no fl uxo da fala (ou texto). Como pesquisadores, quando identifi camos a metáfora na fala transcrita, já teremos participado do evento discursivo ou ouvido sua gravação, transcrito ou checado a transcrição, e então trazemos à identifi cação de familiaridade com o todo do evento discursivo; usos metafóricos de palavras são identifi cados em contraste com o conhecimento antecedente do evento inteiro.

As complexidades e dificuldades de identificação agora estão bem documentadas (p.ex. Cameron, 2003; Pragglejaz Group, 2007). Os problemas surgem na identifi cação porque metáforas não podem ser defi nidas por condições necessárias e sufi cientes que criem divisões claras de categoria (CAMERON, 1999). A identifi cação das metáforas na fala apresenta todos os problemas comuns, e algumas decisões em particular que devem ser tomadas: sobre a inclusão ou exclusão de palavras e frases altamente convencionais como locuções verbais e preposicionais, e decidir onde uma metáfora se inicia e onde termina. No projeto sobre percepção do terrorismo, decidimos incluir preposições como “in” (“em”), “on” (“sobre”), “around” (“por/em volta de”), mas excluímos “by” (“por”) e “to” (“para”); excluímos também verbos não lexicalizados como “have” (“ter”), “do” (“fazer”) e “get” (“pegar”)21. Ao contrário do procedimento do Pragglejaz, sublinhamos termos-veículo, ao invés de palavras individuais. O que está sublinhado é a palavra ou frase que se está usando metaforicamente. O verbo e a(s) partícula(s) de uma locução verbal estão incluídos como um só veículo, “get from” (“pegar de”); a frase “falha no sistema” é mantida junta como um só veículo.

O início e o fi m dos veículos metafóricos muitas vezes é indeterminado; por exemplo, o veículo estende-se ou não até o determinante – “uma (falha no 20 N.T.: Existe uma tradução brasileira, publicada nos Cadernos de Tradução, nº 25. Instituto de Letras – UFRGS: 2009, pp.77-120.21 N.T.: optou-se por deixar as preposições e verbos não traduzidos porque, nas diferentes metáforas existentes ao longo da fala e da própria língua inglesa, tais palavras podem ter diferentes traduções no português. As traduções entre parênteses são as literais.

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sistema)”. No fl uxo da fala, o tópico domínio se mistura ao veículo ou domínio-fonte, ao invés de ser independente dele, e é inerentemente problemático tentar delimitar fronteiras claras e garantidas a termos veículo. Desta forma, estendemos o sublinhamento do veículo para a inclusão de tudo o que parece relevante, enquanto aceitamos a impossibilidade de poder decidir sempre onde os pontos iniciais e fi nais deverão ser marcados. Por contarmos termos usados metaforicamente, e não palavras, a indeterminação do início e fi m não costuma ser um problema; a medida numérica que usamos para comparação através dos tipos de discurso, a densidade das metáforas (CAMERON, 2003), é calculada como o número de veículos metafóricos por mil palavras transcritas.

Trabalhar com termos-veículo, ao invés de palavras nos apresenta uma questão diferente – metáforas encaixadas em metáforas. Por exemplo, o termo “falha” pode ser considerado metafórico quando usado para se referir a “sistema”, uma vez que “falha” parece ter um sentido básico de falha natural, enquanto “sistema” sugere uma organização não-natural. Tais metáforas embutidas ou encaixadas são identifi cadas mais efi cientemente a partir da lista de termos metaforicamente usados na segunda fase de identifi cação.22

A abordagem da dinâmica do discurso considera todos os candidatos possíveis a metáforas, ao invés de restringir-se a tipos de metáforas ou tópicos específi cos. Por exemplo, não procuramos apenas palavras e frases relacionadas ao domínio “GUERRA” e então as checamos como uso metafórico. As justifi cativas para se considerar todas as metáforas linguísticas possíveis são, em primeiro lugar, confi abilidade: checar cada palavra minimiza o risco de se deixar passar metáforas; em segundo lugar, teórico: mais adiante na análise, não sabemos quais metáforas podem vir a contribuir para temas emergentes na interação. Por exemplo, as múltiplas metáforas preposicionais na fala, apesar de aparentemente insignifi cantes individualmente, contribuem para uma visão metafórica da sociedade como uma paisagem física, por exemplo, “in the city” (“na cidade”); “people in gangs” (“pessoas em gangues”); “coming from over there” (“vindo dali”)23.

1140 veículos metafóricos linguísticos foram identifi cadas na transcrição da discussão do grupo focal.

Confi abilidade na Identifi caçãoA confi abilidade na identifi cação das metáforas é maximizada através de

uma série de técnicas. Decisões sobre o que incluir e não incluir como metáfora são registradas em notas de projeto que todos os analistas usam para seguir as mesmas linhas de raciocínio. Todos os pesquisadores identifi cados recebem 22 Metáforas embutidas tendem a ser altamente convencionalizadas.23 N.T.: Vale para as metáforas preposicionais o mesmo que vale para as preposições em si. Ver nota n. 10.

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um treinamento inicial que é reforçado através de checagem cruzada de todos os dados. Nessas checagens, outro analista examina uma amostra de cada transcrição (aproximadamente 10%), primeiro separadamente e depois em conjunto com o primeiro analista para se chegar a uma conclusão conjunta. Discussões podem ter o auxílio de um dicionário ou de um grande corpus como fontes adicionais de informação sobre signifi cados básicos de palavras e frases. Uma vez que todos os casos problemáticos foram resolvidos, cada transcrição recebe uma checagem fi nal. A confi abilidade então se torna um processo contínuo de refi nar habilidades, mais do que um processo fi nalizável que pode ser adequadamente capturado através de uma medida numérica.

Análise do Discurso à Luz da Metáfora: Codifi cação das Metáforas

Codifi car e encontrar padrões são processos hermenêuticos e recursivos que dialogam, não são passos independentes nem sequenciais. Apesar da codifi cação formal não poder ser iniciada até que a transcrição e identifi cação tenham terminado, e apesar da codifi cação e busca de padrões serem aqui descritos numa sequência linear, na prática começamos a perceber padrões e questões que podemos perguntar a partir dos dados sobre possíveis padrões, mesmo no estágio de coleta de dados. Por exemplo, o excerto 1 nos leva a perceber uma atitude acerca do terrorismo de forma tão covarde, e mais tarde rastrearemos os dados para ver se essa atitude tem a concordância do grupo, e se essa visão é desenvolvida mais profundamente ou de forma mais abrangente.

Usando Soft ware para Codifi car as MetáforasA codifi cação condensa os dados em uma forma mais gerenciável do que a

transcrição; ela permite que o pesquisador classifi que e reclassifi que os dados para investigar possíveis padrões e temas.

Cada metáfora é codifi cada várias vezes conforme seu tópico, veículo, falante e posição na fala. Demonstramos aqui como o projeto de percepção do terrorismo usou o programa Excel. Este programa direto e amplamente disponível permite que os dados sejam classifi cados por cada um de seus códigos, ou por vários deles ao mesmo tempo. Na captura de tela mostrada na fi gura 1, as metáforas do excerto 1 foram classifi cadas pela coluna E, a linha ou número da unidade de entonação, para que apareçam na mesma ordem que na transcrição. Os veículos metafóricos sublinhados estão listadas na coluna D, com a unidade de entonação/número da linha na coluna E e o falante na coluna F. Unidades de entonação inteiras aparecem na coluna G, provendo uma conexão que faz referência ao contexto discursivo da metáfora. A coluna H contém o código da questão que, segundo a agenda do moderador, está sendo

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respondida naquela hora: aqui, MENTE representa a questão. “O que lhe vem à mente quando você pensa sobre terrorismo?” A coluna C contém o código para o grupo focal em particular, uma vez que eventualmente colocamos dados de 12 grupos no mesmo banco de dados. Enquanto essas colunas e códigos são diretos, coluna A, o “tópico chave”, e coluna B, o “agrupamento de veículos”, necessitam explicação mais detalhada.

Figura 1. Imagem da planilha do Excel de metáforas no excerto 1.

A transcrição completa continua disponível do início ao fi m, como planilha no mesmo documento do Excel, planilha codifi cada ou, como prefere o primeiro autor, em cópia impressa.

A Codifi cação dos TópicosO tópico de uma metáfora linguística é o referente de uma palavra ou

frase veículo no mundo real. Muitas vezes, na interação oral não há um tópico explícito verbalizado (veja-se em Cameron, 2007a, para possíveis implicações deste resultado empírico). Quando, por exemplo, na linha 108, excerto 1, Phil diz “eu também diria que é uma falha no sistema”, nós temos que inferir o referente de sistema, usando o que ele diz nas próximas unidades de entonação para guiar a nossa interpretação. A informação adicional não é por si só muito específi ca: “alguém não está fazendo o seu trabalho direito”. Apesar de a interpretação disto como uma referência à polícia ou a outras autoridades nacionais parecer justifi cada, não há evidência que garanta uma interpretação

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mais específi ca. Também levando em consideração que nós estamos lidando com mais de 1000 metáforas linguísticas em cada transcrição, torna-se inviável desenvolver e associar um tópico específi co com cada veículo. A nossa solução foi simplifi car a codifi cação dos tópicos, através da construção e uso de um conjunto limitado de tópicos discursivos chave relevantes para o tema e para as nossas perguntas de pesquisa. Assim, sistema foi atribuído ao tópico chave Resposta ao terrorismo (código 3) e a um dos seus dois subtópicos, Resposta ao terrorismo pelas autoridades (código 3A); (o outro seria Resposta ao terrorismo que afeta os muçulmanos, código 3M). Os outros três tópicos discursivos chave eram: Terrorismo (incluindo atos de, risco de, causas de, agentes causadores; código 1); Comunicação sobre o terrorismo (código 2; com os subtópicos: Comunicação sobre o terrorismo pela mídia, 2N, e Comunicação sobre o terrorismo pelas autoridades, 2A); Sociedade e grupos sociais (código 4; com um subtópico: Muçulmanos na sociedade; 4M). Um tópico adicional classifi cado como Outros daria conta de todo o resto.

Na coluna A da fi gura 1, estão os códigos dos tópicos. Se todo o banco de dados for ordenado pela coluna A, podemos ver todas as metáforas usadas em relação a cada um dos tópicos chave.

A Codifi cação dos Agrupamentos de VeículosNós codifi camos palavras ou frases veículo de acordo com o seu conteúdo

semântico. Essa etapa é inspirada e embasada na Teoria da Metáfora Conceitual, mas com uma diferença: não há um pressuposto inicial de que certa metáfora conceitual está ativa quando um falante produz uma metáfora linguística (e seria impossível encontrar a evidência empírica para tal atividade em dados do discurso). Neste tipo de estudo discursivo, estamos mais preocupados com as especifi cidades do que com a comunidade de falantes em geral (modos específi cos de falar metaforicamente, e as atitudes e ideias de pessoas específi cas). Não se presume que uma metáfora linguística seja licenciada por uma metáfora conceitual pré-existente que conecta um domínio alvo a um domínio fonte. Na abordagem dinâmica do discurso, o veículo da metáfora linguística é a unidade básica de análise, com agrupamentos de veículos desenvolvidos pelo analista para auxiliar na descoberta de padrões e sistematicidades nas metáforas. Para marcar as distinções ontológicas e empíricas entre as construções teóricas das metáforas conceptuais, convencionalmente escritas em caixa alta, e os agrupamentos que emergem do trabalho com termos veículo, nós formatamos estes em itálico.

Os agrupamentos de veículos são desenvolvidos por meio dos dados, tendo em vista os tipos de domínio-fonte encontrados na literatura em linguística cognitiva, mas sempre guiados pelas particularidades da interação falada real.

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Quando os agrupamentos de veículos são usados para procurar por padrões nos dados codifi cados, eles continuam conectados através das tabelas do Excel às palavras realmente ditas e às unidades de entonação nas quais elas ocorreram. Cada linha de dados fornece oito tipos de informação para o veículo metafórico. A presença ativa de toda a unidade de entonação e da transcrição mantém o analista conectado às palavras dos falantes originais.

Cada termo veículo é atribuído a um agrupamento que capture a essência do seu sentido semântico: “maneira” (“way14”) é atribuído a “MOVIMENTO (CAMINHO)”24 e “bullying” a “AÇÃO VIOLENTA”. Já que não pressupomos que os veículos são resultados de domínios-fonte fi xos e estáticos, no processo de codifi cação, os agrupamentos são mantidos como tentativas, maleáveis e temporários e só realmente defi nidos no último momento. No estágio fi nal da análise, quando os agrupamentos são confi rmados, é feita uma última checagem, para garantir uma codifi cação consistente. Antes de chegar a este ponto, os agrupamentos podem se modifi car através de decisões como as seguintes:

• Fusão de grupos: ex. inicialmente nós separamos os grupos de veículos “ANIMAIS” e “NATUREZA”, que mais tarde emergiram em um só: “MUNDO NATURAL”.

• Divisão e subdivisão de grupos: ex. “MOVIMENTO” foi subdividido em “ORIGEM”, “CAMINHO” e “OBJETIVO”.

• Adição de novos agrupamentos: ex. “EDIFÍCIO” (“BUILDING”) apareceu em um grupo focal depois da análise de vários outros, nos quais ele não havia sido usado. Uma vez que ele foi adicionado, nós voltamos e recodifi camos palavras tais como apoio (“support”).

Assim como outros estudiosos já observaram, mesmo trabalhando dentro da tradição cognitiva não há resposta correta para a pergunta de como atribuir e rotular uma determinada metáfora, nenhum “nível único e adequado de abstração ao qual cada metáfora individual possa ser atribuída” (VERVAEKE; KENNEDY, 1996; RITCHIE, 2003). Em alguns casos, os veículos podem ser colocados em mais de um agrupamento: “lados opostos” seria atribuído a “LUGAR”, já que expressa uma ideia de posição (relativa), mas foi decidido que o sentido de oposição na frase era mais importante no contexto discursivo e ele foi atribuído a “CONECTAR/SEPARAR”. Em projetos mais recentes, usando a análise qualitativa mais fl exível do soft ware ATLASti, alguns veículos tem sido atribuídos a mais de um agrupamento, para que possamos ver quais aspectos dessa sobreposição são interessantes, mas no projeto descrito aqui, os veículos foram atribuídos a um 24 N.T.: A palavra way, em inglês, tem sentido original de “caminho”, “trilha”, daí o agrupamento ao qual pertence. Ver nota n. 2, na p. 7.

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só – quando houve mais de uma possibilidade, a coerência foi garantida pelas anotações feitas em cada decisão e pelo cruzamento de dados.

Cinquenta e nove agrupamentos de veículos emergiram do processo de codifi cação, incluindo uma pequena categoria “Outros” (Apêndice 1). Os agrupamentos são uma mistura das nomenclaturas dos domínios fonte, conhecidos através da Teoria da Metáfora Conceitual, como “MOVIMENTO” e “VER”, e daqueles mais específi cos ao tipo e aos tópicos da fala sobre o terrorismo, como “VIOLAR/LIMITES” (“she was taking it to extremes”), e “LOUCO-SELVAGEM” (“our lives would be chaos”). Por causa dos objetivos da nossa pesquisa, “AÇÃO VIOLENTA” foi mantido separado de “AÇÃO MILITAR” e de “AÇÃO FÍSICA”. O uso frequente, pelos participantes, de contrastes para enfatizar argumentos levou a grupos que incluem antônimos, como “CONECTAR/SEPARAR” e “DAR/TIRAR”.

Confi abilidade dos Agrupamentos de VeículosDecidir o alcance de cada agrupamento e selecionar uma nomenclatura que

melhor o descreva é central para a análise da metáfora e envolve considerar as conexões entre metáforas e as evidências discursivas para embasar as decisões tomadas. Estas, por sua vez, contribuem para a percepção de padrões e temas nos dados. Para ser confi ável, cada decisão sobre os agrupamentos segue cuidadosamente um princípio central desse tipo de análise interpretativa – uma avaliação rigorosa da qualidade e dos limites da evidência discursiva que justifi ca aquela decisão. Como dito anteriormente, a coerência é maximizada através de discussões, cruzamento de dados por colegas e anotações do projeto, que auxiliam na consistência. Entretanto, nós também temos que levar em consideração, na hora de responder às perguntas da pesquisa sobre as ideias, atitudes e valores das pessoas, como a natureza e os resultados do processo vão impactar na maneira com que nós trabalhamos com os dados codifi cados para encontrar padrões e temas no uso da metáfora. Apesar de nos esforçarmos para manter o máximo de rigor possível, o processo de agrupamento de veículos é hermenêutico e envolve imaginação e criatividade na descrição de como as metáforas melhor se encaixam. Por causa disso e por causa da natureza dinâmica da língua em uso, os agrupamentos de veículos que nós construímos terão, inevitavelmente, limites turvos e um grau de sobreposição.

Os Resultados da Codifi cação de MetáforasDepois de atribuir um conjunto completo de códigos a cada metáfora na

transcrição, os dados foram reduzidos ou condensados de forma que possam ser separados de muitas maneiras diferentes, para testar hipóteses ou descobrir tendências. As metáforas não foram separadas do seu contexto discursivo, mas

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permaneceram conectadas a ele através das colunas nas planilhas do Excel, assim como na transcrição.

Análise do Discurso Guiada por Metáforas: Encontrando Padrões nos Dados Codifi cados

Os dados codifi cados podem ser usados de duas maneiras: para fornecer uma descrição quantitativa dos dados, e para explorar redes de metáforas qualitativamente.

Descrição Quantitativa Devido à natureza hermenêutica da codificação, especialmente no

agrupamento de veículos, não seria apropriado utilizar estatísticas complicadas aos dados. Nós podemos, entretanto, comparar números e, se vantajoso, checar o status das diferenças com os testes qui-quadrado. Nós podemos, por exemplo, encontrar para cada grupo focal e comparar entre múltiplos grupos focais o seguinte:

• o número de metáforas produzidas por cada falante;• o número de metáforas de determinado agrupamento de veículos

usadas para falar de diferentes tópicos;• o alcance das metáforas (ou seja, o número de diferentes agrupamentos

de veículos) usadas para falar sobre cada um dos tópicos discursivos chave.

Exploração Qualitativa do Uso das MetáforasA análise dinâmica e dialógica usa os dados codifi cados para encontrar

provas de padrões metafóricos e temas emergentes que respondam às questões da pesquisa. Durante o estágio de codifi cação, certos padrões de uso de metáforas terão começado a se revelar para os analistas. Nesta fase qualitativa e interpretativa do trabalho empírico, tais padrões sugestivos são examinados de perto para ver se há provas sufi cientes que possam garanti-los como descobertas, e se procuram outros padrões nos dados codifi cados. Esta parte do trabalho empírico transita entre a tabela do Excel e a transcrição, e é interpretativa, e requer novamente imaginação (rigorosa) e criatividade da parte do pesquisador. A análise semântica permitida pelo agrupamento de veículos é combinada com a análise das metáforas em ação à luz das dinâmicas do discurso. Um intervalo conectado de metáforas na lista pode nos incitar a voltar à transcrição e lançar um olhar mais próximo à interação, e à função discursiva das metáforas: as ideias, atitudes ou julgamentos de que metáforas são usadas para afi rmar, negociar, endossar ou resistir. A análise da dinâmica do discurso e interpretação de metáforas acontece no nível de episódios (p.ex.

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trechos de fala em torno do mesmo tópico, que podem durar no máximo alguns minutos até que se mude o tópico ou o falante) e no nível do evento discursivo (aqui, a discussão do grupo focal). Nós examinamos conexões das metáforas através dos episódios e através do evento, procurando metáforas de enquadre, quais sejam: grupos de metáforas que se usam sobre temas importantes na fala, e algum tipo de resumo conclusivo sobre o uso de cada metáfora de enquadre. Então, por exemplo, poderíamos dizer que “os participantes do grupo focal contrastam metaforicamente o terrorismo com a guerra para enfatizar sua imprevisibilidade, incontrolabilidade e injustiça”. No processo de extração de metáforas de enquadre, olhamos as trajetórias da metáfora e as metáforas sistemáticas.

Como exemplo inicial, tomamos o veículo metafórico “falha no sistema”, usado por Phil ao fi nal do excerto 1 e que, na codifi cação, foi agrupado como uma metáfora de “MÁQUINA”. Uma pesquisa no banco de dados nos mostra um total de 12 metáforas de “MÁQUINA”, sete das quais foram usadas por Phil. Esse veículo metafórico lingüístico em específi co foi usado uma segunda vez25, a mesma forma pelo mesmo falante num lugar posterior da discussão (excerto 2), onde Phil trabalha numa descrição feita por Eddie de como os ataques terroristas de 11 de setembro afetaram sua esposa:

Excerto 2870 Phil quando as Torres --871 Phil .. Torres Gêmeas, eh,872 Phil .. foram atacadas,873 Phil isso874 Phil … (1.0) criou uma falha no sistema.875 Phil … ninguém tinha feito isso antes.

O tópico da metáfora, assim como no excerto 1, não é explicitado e é, de certa forma, vago, se referindo a algum tipo de distúrbio da ordem estabelecida. A trajetória dessa metáfora linguística é limitada a essas duas instâncias, por algo em torno de 25 minutos dentro da discussão, e muda levemente seu tópico no seu segundo uso. Se expandirmos nossa análise às outras metáforas de “MÁQUINA” mostradas na Figura 2, descobriremos que Phil parece pensar sobre a sociedade usando metáforas de um sistema mecânico; para ele, há uso sistemático de metáforas conectadas ao longo da fala e essas podem ser ligadas como uma trajetória ou traço maior, que chamei “metáfora sistemática” e que aqui seria descrita como “SOCIEDADE É UM SISTEMA MECÂNICO”. A metáfora sistemática é a coleção dinâmica de metáforas linguísticas 25 Numa abordagem dinâmica, não se diz que um segundo uso é uma “repetição”, uma vez que o contexto do discurso muda, é mais preciso dizer que o segundo uso é uma “reutilização”.

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conectadas, uma trajetória de uma metáfora à próxima ao longo da dinâmica da fala. Não é uma metáfora conceitual; pelo menos é diferente teoricamente e ontologicamente.

Figura 2. Imagem da Planilha do Excel para as metáforas de “MÁQUINA”:

Porque não há uma prova clara, a partir dos dados, de que outros falantes usam esta metáfora de forma sistemática e, além disso, ninguém discorda de maneira explicita ou oferece alguma metáfora alternativa para esse tópico, e porque o tópico não é central em relação aos objetivos da pesquisa do estudo, esta metáfora sistemática não será um resultado importante. Ela pode, porém, levantar questões que poderão ser investigadas em outros estudos, com outros tipos de dados e métodos, p.ex. análise de corpus do seu uso na mídia.

Uma trajetória de metáfora mais produtiva que surge no excerto 1 começa com a descrição que Terry faz do terrorismo como sendo covardia (“maneira desonesta”), que então é contrastada com a guerra (“não é como a guerra”). Ilustramos a dinâmica do discurso dessas metáforas enquanto segue a discussão. A fi gura 326 traça instâncias de metáforas relacionadas à covardia (agrupadas sob “OCULTAÇÃO” e “AÇÃO VIOLENTA” na tabela do Excel) e à guerra (agrupadas em “MILITAR”).26 A fi gura 3 usa um soft ware de visualização de metáforas, VisDis, especialmente desenvolvido para um projeto anterior na Universidade de Leeds (CAMERON; STELMA, 2004).

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Figura 3. Visualização das metáforas que expressam covardia e do agrupamento “GUERRA/MILITAR”

Os números do lado esquerdo são unidades de entonação, e representam o tempo. Cada instância de uma metáfora é representada por um diamante (covardia) ou um círculo (guerra), com cores diferentes (ou sombreamento, se vistas em preto e branco) para falantes diferentes. Apenas cinco dos oito falantes lançaram mão dessas metáforas, e dois deles, Finn e Josh, somente usaram metáforas do domínio “MILITAR”. As linhas que juntam as metáforas representam a trajetória da metáfora. Podemos ver a trajetória movendo-se de um feixe (cluster) inicial de metáforas, no começo da conversa – no e subsequente ao excerto 1 – a um segundo feixe (cluster) por volta da linha 1100 e terminando com um par isolado de metáforas por volta da linha 3200.

Aproximamos, então, nossa visão da trajetória da metáfora para o nível da dinâmica do discurso dos dois feixes (clusters), um “micro-nível”. O excerto 3 segue a fala do excerto 1 e inclui respostas de Eddie e Ray.

Excerto 3 115 Mod .. Eddie? 116 Eddie … é, er… 117 Eddie bombas me vêm à mente,

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118 Eddie com certeza, 119 Eddie e, er, 120 Eddie acho que é uma maneira -- 121 Eddie .. maneira desonesta de fazer isso, 122 Eddie também. 123 Eddie .. envolve covardia, 124 Eddie .. bater e correr, 125 Eddie só que eles, 126 Eddie .. nem se importam em correr agora, 127 Eddie sabe, 128 Eddie … e, er,129 Eddie eles, 130 Eddie .. te atacam por trás. 131 Eddie eles não podem -- 132 Eddie não podem dizer, 133 Eddie .. quem eles são. 134 Eddie .. não vão dizer -- 135 Eddie então você não conhece o inimigo. 136 Eddie .. então você não tem nenhuma maneira de revidar.137 Int Um hum. 138 Int Ray? 139 Ray Penso em ameaça, 140 Ray XX 141 Ray me salta à cabeça primeiro. 142 Ray .. e então -- 143 Ray … é uma forma de chantagem,144 Ray .. ou, erm, 145 Ray ou extorsão, 146 Ray e se não acontecer do jeito deles, 147 Ray … alguém vai se machucar, ?148 Ray como você diz.149 Ray .. é -- 150 Ray .. é loucura, 151 Ray mas, er -- 152 Ray é uma forma de bullying,

Eddie se atém à ideia de “maneira desonesta” e “covardia” (linhas 120 a 123), e adiciona um outro exemplo de ação violenta em “bater e correr”. Da linha 125 ao fi m do seu turno (linha 136), ele desenvolve a metáfora. Na linha 135, se refere aos terroristas como “o inimigo”, o que se atém ao esquema da guerra, mencionado na linha 86, e então conclui com uma volta à parte de “bater”

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da metáfora, enfatizando a falta de poder face ao terrorismo. Ray adiciona dois outros exemplos de comportamento desonesto: “chantagem” (linha 143) e “extorsão” (linha 145). Na linha 146, um sentimento de egoísmo – “se não acontecer do jeito deles” – é adicionado ao sentimento de covardia. Ray conclui seu turno reiterando a comparação de Terry com “bullying” (expressada na linha 84). A ideia de egoísmo e indiferença ecoam na fala de Reece logo a seguir: “eles não se importam com quem eles explodem” (excerto 4) Excerto 4156 Reece nome <X fulano X> disse, 157 Reece ..[TOSSE] eles não se importam com quem --158 Reece .. eles não se importam com quem, 159 Reece ele- eles explodem

Egoísmo e covardia desonesta são recorrentes no turno posterior de Josh (excerto 5), com uma reutilização da comparação metafórica com “chantagem”, e da metáfora de Eddie (“jeito”) numa forma ligeiramente diferente: “eles querem do jeito deles”.

Excerto 5185 Josh eles podem, 186 Josh .. te explodir. 187 Josh .. é, 188 Josh er, 189 Josh .. é, 190 Josh .. chantagem mental. 191 Josh .. eles querem do jeito deles,

A discussão do grupo focal então muda para outros tópicos, voltando ao terrorismo, covardia e guerra no segundo feixe (cluster), visível na Figura 3. O episódio (excerto 6) está incluído no Anexo 2, uma vez que cobriu 165 unidades de entonação (algo em volta de seis minutos de fala). A contribuição de Finn neste episódio é uma perturbação na dinâmica de ideias, pois ele oferece um ponto de vista bem diferente, tentando entender como os terroristas veem as próprias ações27. Então, Ray, Eddie, Terry e Josh entram no debate iniciado por Finn. As ideias e atitudes que foram enunciadas até então e que foram por nós examinadas – terrorismo como covardia, egoísmo e insensibilidade, ao contrário 27 Finn era um estudante, diferente dos outros membros do grupo focal, trabalhadores manuais ou não qualifi cados. Provavelmente foi escolhido para o grupo (não pelos pesquisadores, mas por uma empresa de pesquisa de mercado contratada para o recrutamento) com base no seu salário ou trabalho de meio período.

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da guerra – são retomadas e discutidas novamente, e um novo tipo de metáfora entra na conversa: terrorismo como um esporte desleal. Podemos acompanhar o entrelaçamento dessas formas diferentes de enquadrar o terrorismo por meio da dinâmica do discurso do episódio.

Ao longo deste episódio, a avaliação da ação terrorista como covarde e desleal é contínua e reforçada pela ênfase na inocência de suas vítimas e pelo desrespeito às convenções de guerra. Metáforas de “ESPORTE” se somam às metáforas de “OCULTAÇÃO” e “MILITAR”. O que é mais impactante, em termos da dinâmica do discurso, é a tentativa feita por Finn de fazer com que os outros pensem sob a perspectiva do terrorista e as reações negativas que isso gera por parte do resto do grupo.

Terry começa o episódio com a frase “eles não ligam pra quem é o alvo.” A palavra “alvo” foi incluída como metáfora no agrupamento de veículos “MILITAR” quando foi usada, e não no seu sentido básico de objeto concreto para o qual um militar com uma arma apontaria, mas como referência às pessoas que os terroristas poderiam matar usando bombas ou com outras ações. Ele dá um exemplo de “alvos” desleais: um “aposentado idoso” (1060); “uma criança de cinco anos” (1063); “uma jovem com um carrinho e um bebê de três meses” (1066). Ele enfatiza a insensibilidade com uma metáfora (parcial) na linha 1071: “eles não dão a mínima”28. Em resposta à fala altamente enfática de Terry, Finn sugere que os terroristas estão “vendo isso como uma guerra”. Ele usa, então, uma citação hipotética para ilustrar as implicações de ver o terrorismo como uma guerra: <Q Eu estou certo, você está errado, você é o inimigo Q> (1079-1081), expressando a atitude e posição de um terrorista imaginado que construiria grupos opostos de si e dos outros como “nós e vocês”. Terry responde dizendo “não é justo” (1084), como se Finn estivesse efetivamente adotando tal ponto de vista. A resposta de Eddie para Finn, que vai ao encontro da resposta de Terry, é que os terroristas não “se declaram como inimigos” e ele, ou alguém, adiciona a metáfora do “ESPORTE”: “é um campo de jogo desnivelado” (1087) como um comentário sobre a ética de não se declarar. Um campo de jogo desnivelado põe um time em vantagem e outro em desvantagem; o terrorismo é desleal sob um prisma analógico, uma vez que um lado sabe que está lutando ou está em guerra enquanto o outro, não. Finn responde e continua, citando ações britânicas e americanas no Iraque, reiterando seu ponto de vista na linha 1150 que terroristas “veem isso sim como uma guerra”, inferindo que é por isso que eles não se importam com vítimas como as mencionadas por Terry: “mulheres e crianças” (1154). Finn luta, na tentativa de apresentar o ponto de vista dos terroristas ao grupo, que parece responder para Finn como se ele próprio concordasse com tal ponto de 28 A expressão original é “they don’t give a monkey’s”, que signifi ca não ligar, não dar a mínima. Entre as palavras que poderiam completar a expressão estão “toss”, “fart”, “uncle” e “curse”.

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vista. Josh apresenta, como objeção, uma pergunta retórica: “afi nal, há alguma diferença entre guerra e terrorismo?” (1156-1158). Eddie, Terry e, depois, Finn, discutem se terroristas podem ser vistos como inimigos se eles não se “declararam” como tais. Josh sugere, nas linhas 1184-1185, que o terrorismo se parece com uma forma específi ca de guerra – a guerrilha. Terry então retorna ao tema da covardia, citando a metáfora de Eddie de “bater e correr” (1193), falada bem antes, na linha 124, e então desenvolve um cenário contrastante de bravura no qual os terroristas, citados hipoteticamente, se declaram como o “time” adversário e declaram o início da luta. Em outra alusão à fala anterior de Eddie, Terry dá voz ao terrorista supostamente não-covarde: “este é o nosso time, esse é o seu time, vamos lá” (1201-1203), desenvolvendo a metáfora “ESPORTE” no “campo de jogo nivelado”. Tendo passado da covardia à bravura, Terry então retorna à covardia com outra metáfora “OCULTAÇÃO”: “se escondem debaixo das traves”29. Finn mais uma vez tenta questionar o argumento, ampliando a metáfora “ESPORTE” e perguntando quem iria “escalar os times” (1211).

Concluímos nosso exame da dinâmica do discurso das trajetórias na Figura 3 olhando as três metáforas fi nais (excerto 6). Elas são ditas por Terry, sendo que duas envolvem o uso metafórico do “alvo” e a outra se refere às vítimas como “peões num tabuleiro” (3276). A força atitudinal dessa metáfora “JOGO” não tem poder algum; peões no xadrez são as peças menos valiosas, que podem ser sacrifi cadas para garantir ou ganhar peças mais valiosas.

Excerto 63226 Terry Eu acho que se, 3227 Terry .. vai ter um alvo, 3228 Terry .. vai ser algo assim. 3229 Terry mas isso… não me incomoda. 3260 Terry .. e aquele em Wigan, 3261 Terry por exemplo, 3262 Terry .. há alguns anos, 3263 Terry .. acho que o alvo deles, 3264 Terry é comércio, 3272 Pat a economia. 3273 Pat é o lado comercial disso.. 3274 Pat Acho que as -- 29 A expressão original é “they hide in the woodwork”. Poderia ser agrupada também como “MUNDO NATURAL”, uma vez que seu sentido original provavelmente tem a ver com pequenos animais ou insetos (ratos, baratas, cupins etc) que se escondem atrás das paredes de madeira, incomuns no Brasil, para depois aparecerem e destruírem coisas materiais. Julgou-se que a força atitudinal da metáfora tem mais a ver com o sentido de ocultação do que com o sentido animal.

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3275 Pat as vítimas estão lá, 3276 Pat .. peões num jogo, 3277 Pat por assim dizer,

Um exame mais apurado da tabela do Excel “JOGO/ESPORTE”, “AÇÃO VIOLENTA” e “MILITAR” mostra que, após esse ponto da conversa, nenhuma outra metáfora desses agrupamentos foi usada em referência ao tópico discursivo chave do terrorismo. Usos subsequentes se referem a outros tópicos: respostas ao terrorismo, outras ameaças na sociedade e comunicação sobre terrorismo.

Traçando a dinâmica dessas metáforas na conversa sobre terrorismo, mostramos alguns dos fi os entrelaçantes de ideias que os falantes trazem à conversa, enfatizam e desenvolvem com metáforas, e como as ideias e metáforas podem passar de um falante a outro. Vimos como uma perturbação no sistema dinâmico da discussão, através de um ponto de vista muito diferente expressado por um participante, resulta num reforço das atitudes, construído através da reutilização e desenvolvimento de metáforas já utilizadas e da introdução de metáforas novas. A análise de metáforas pela dinâmica do discurso traz provas que garantem uma descoberta que podemos expressar assim:

Para alguns neste grupo focal, o terrorismo é enquadrado em oposição à guerra, com suas convenções claramente demarcadas de jogo limpo entre lados opostos. Por outro lado, o terrorismo é tido como covarde e desleal, e a falta de clareza sobre quem está lutando contribui para o sentimento de ameaça.

Esta descoberta veio à tona a partir da detecção ou rastreamento de uma linha de raciocínio da conversa que se desenvolve ao longo do tempo, linha esta que se divide ou se mescla em outras linhas de raciocínio. Outros resultados virão à tona a partir de outras trajetórias de metáforas, e esses resultados podem ser comparados entre grupos diferentes para responder às perguntas da pesquisa.

Resumo e Conclusão

Nosso objetivo neste artigo foi descrever a abordagem da metáfora à luz da dinâmica do discurso, e demonstrar como a metáfora pode ser usada como uma ferramenta para se desvelar ideias, atitudes e valores das pessoas através da análise do discurso à luz das metáforas.

Utilizamos dados de uma discussão de grupo focal para ilustrar os procedimentos de análise do discurso à luz das metáforas: da transcrição, passando pela identifi cação e então codifi cação das metáforas, até a exploração

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da trajetória das metáforas no diálogo dinâmico de ideias ao longo do evento discursivo. Mostramos como pesquisadores podem tentar a maximização da confi abilidade da análise das metáforas, complementando a imaginação numa interpretação cuidadosa e rigorosa.

Esperamos que outros pesquisadores sintam-se tentados a examinar a dinâmica do discurso das metáforas, usando e adaptando o método aqui utilizado para investigar “a intrínseca rede de criação e construção de sentido” que acontece quando as pessoas se engajam no discurso espontâneo. A metáfora, argumentamos, é especialmente adequada para este uso como uma ferramenta delicada de pesquisa para se investigar a rede de sentidos sem removê-la do discurso no qual foi construída.

Agradecimentos

Os autores agradecem a Graham Low pelos comentários a uma versão inicial. Os dados foram coletados como parte do projeto “Percepção e comunicação do risco do terrorismo”, fi nanciado pelo Conselho de Pesquisa Social e Econômica do Reino Unido, como parte de seu Programa Desafi os da Nova Segurança, ESRC RES 228250053.

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Anexo 1Agrupamentos de veículos

BALANCE “EQUILÍBRIO”BLOW “EXPLOSÃO”BODY-FOOD-CLOTHES “CORPO-COMIDA-ROUPAS”BUILDING “CONSTRUÇÃO”CIRCLE “CÍRCULO”CLEAN - DIRTY “LIMPO - SUJO”COMMERCE “COMÉRCIO”CONCEALMENT “OCULTAÇÃO”CONCRETISING “CONCRETIZAÇÃO”CONNECT - SEPARATE “JUNTAR - SEPARAR”CONSTRAINT “RESTRIÇÃO”CONTAINER “RECIPIENTE”CRAZY / WILD “LOUCO / SELVAGEM”DEPTH “PROFUNDIDADE”DIMENSION “DIMENSÃO”FEELING “SENSAÇÃO”FINDING - LOSING “ACHAR - PERDER”FOLLOWING - LEADING “SEGUIR - LIDERAR”

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FORM “FORMA”GAME “JOGO”GIVING - TAKING “DAR - TOMAR”HARD “DURO”HOME “LAR”HORIZONTAL (LANDSCAPE) “HORIZONTAL (PAISAGEM)”HOT - COLD “QUENTE - FRIO”INCLINE “INCLINAR”LABEL “RÓTULO”LOCATION “LOCAL”MACHINE “MÁQUINA”MILITARY “MILITAR”MOVEMENT “MOVIMENTO”NATURAL WORLD “MUNDO NATURAL”NUMBER “NÚMERO”OPEN - CLOSE “ABRIR - FECHAR”PHYSICAL ACTION “AÇÃO FÍSICA”POINT “PONTO”READING - WRITING “LEITURA - ESCRITA”RELIGION “RELIGIÃO”SEEING “VER”SORT “ORGANIZAR”SOUND “SOM”SPEAKING / LISTENING “FALAR / OUVIR”STRENGTH “FORÇA”SUPPORT “APOIO”THEATRE / STORIES “TEATRO / ESTÓRIAS”VIOLATE / LIMITS “VIOLAR / LIMITES”VIOLENT ACTION “AÇÃO VIOLENTA”WATER “ÁGUA”COMPONENT PARTS “PARTES INTEGRANTES”THING “COISA”EXPLETIVE “PALAVRÃO”OTHER “OUTROS”

Anexo 2

Excerto 71050 Terry eles não ligam,1051 Terry pra quem é o alvo.1052 xx XX

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1053 Terry se eu não gosto de vocês1054 Terry .. e quero matar vocês todos,1055 Terry .. beleza.1056 Terry .. mas .. esses,1057 Terry .. eles não sabem,1058 Terry poderia ser um --1059 Terry .. poderia ser u um u- --1060 Terry um idoso aposentado,1061 Terry poderia ser .. alguém de,1062 Terry .. noventa e cinco anos,1063 Terry poderia ser alguém de cinco anos.1064 xx mm.1065 Terry ou poderia ser uma jo- --1066 Terry uma jovem com um carrinho de bebê,1067 Terry .. e uma criança de três anos.1068 Terry ... quando aquela bomba explode,1069 Josh verdade,1070 Terry eles não --1071 Terry .. eles não dão a mínima.1072 xx eles não ligam.1073 Terry e é isso que X1074 Finn X1075 Finn eles vêem isso como uma guerra.1076 Finn é assim que eles vêem isso.1077 Finn ... eles veem isso como,1078 Finn tipo,1079 Finn .. <Q eu estou certo,1080 Finn você está errado,1081 Finn você é o inimigo Q>.1082 Finn ... nós moramos na Grã-Bretanha,1083 Finn nós X1084 Terry [ mas não é justo1085 Eddie [ eles não se declaram como inimigos1086 xxx [ <XXXX>1087 xx [ não é um campo de jogo nivelado1088 Finn [ não, não é, mesmo1089 Finn mas tipo,1090 Finn .. quem vai dizer1091 Terry XX1092 Finn então1093 Finn .. eles não vão ver como,

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1094 Finn <Q tá bem,1095 Finn .. justo,1096 Finn .. vamos lá jogar uma bomba Q>,1097 xx XX1098 Finn <Q vamos lá jogar uma bomba XX,1099 Finn porque eles se alistaram pra isso Q>,1100 Finn .. eles não veem assim.1101 Finn .. é como qualquer país.1102 Finn tipo como --1103 Finn .. vamos fi ngir que estamos --1104 Finn .. digamos, no Iraque,1105 Finn .. nós <X abríssemos X> aquilo,1106 Finn .. aquela coisa de <Q choque e pavor Q>,1107 Finn .. nós não --1108 Finn .. nós não estávamos atacando lugares específi cos.1109 Finn estávamos atacando qualquer lugar --1110 Finn tipo,1111 Finn qualquer lugar que se --1112 Finn como eles dizem,1113 Finn X,1114 Finn fi zesse o maior estrago.1115 Finn .. é assim que,1116 Finn .. é assim que eles veem isso.1117 Finn é uma guerra.1118 Ray não,1119 Ray eles estavam atacando lugares específi cos.1120 Finn sim,1121 Finn atacaram lugares específi cos,1122 Finn mas,1123 Finn .. eles não estão dizendo tipo,1124 Finn só tem soldados morando nesses lugares.1125 xx XX1126 Finn [ XX1127 Finn existem pessoas .. verdadeiramente inocentes1128 xx [ XX1129 xx tem todo tipo de gente que foi <X atacada X>1130 Finn sim, mas há --1131 Finn o que estou dizendo é,1132 Finn tem pessoas inocentes que,1133 Finn tipo,1134 Finn .. que moram lá,

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1135 Finn em primeiro lugar.1136 Finn .. p- porque,1137 Finn ... podemos justifi car,1138 Finn dizendo,1139 Finn <Q olha só,1140 Finn é uma guerra Q>.1141 Finn e isso é,1142 Finn tipo,1143 Finn ... (1.0) tá certo --1144 Finn bem, consegui dar a eles,1145 Finn algum tipo de,1146 Finn .. X tipo,1147 Finn o que eu --1148 Finn .. o que eu acho que pode ser.1149 Finn .. tipo esses1150 Finn .. tipo, terroristas veem isso como uma guerra sim.1151 Finn .. eles não ligam --1152 Finn eles --1153 Finn eles não se incomodam,1154 Finn se são mulheres e crianças,1155 Finn ou qualquer coisa X1156 Josh existe uma diferença,1157 Josh entre guerra e terrorismo,1158 Josh afi nal? [20.54]1159 Finn tem sim.1160 Finn tem uma <X diferença defi nida X>1161 Eddie X se estivéssemos em guerra1162 Eddie .. e- e era --1163 Eddie era1164 Finn [ quem vai dizer X1165 Eddie [ XX1166 Finn quem vai dizer,1167 Finn que os terroristas não acreditam,1168 Finn que estão em guerra,1169 Finn eles mesmos?1170 Eddie bem eles possivelmente acreditam,1171 Eddie mas não se declaram,1172 Eddie como um inimigo.1173 Eddie isso é o que estou dizendo.1174 Terry eles não declaram,1175 Terry mas são <X um inimigo X>

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1176 Finn Não acho que o Iraque1177 Finn s- se declarou como um e- --1178 Finn inimigo ao me- --1179 Finn naquela época.1180 Finn .. de toda forma,1181 Finn se declarou?1182 Terry eles não saem e dizem isso1183 xxx [ <XXXX>1184 Josh [ é tipo guerrilha --1185 Josh é tipo guerrilha1186 Eddie X terroristas em geral1187 Terry é --1188 Terry é tipo,1189 Terry como Eddie disse antes,1190 Terry é --1191 Terry .. há uma certa dose de covardia,1192 Eddie isso.1193 Terry .. é bater e correr,1194 Terry X1195 xxx <XXXX>1196 Terry se eles --1197 Terry se eles --1198 Terry se eles fossem assim corajosos,1199 Terry .. certamente diriam,1200 Terry <Q certo,1201 Terry .. este é o nosso time,1202 Terry .. esse é o seu time,1203 Terry ... vamos lá Q> []1204 xx XX1205 Terry mas não fazem isso,1206 Terry .. porque se escondem atrás das traves.1207 xx mm.1208 xx mm.1209 Finn quem vai --1210 Finn quem --1211 Finn quem vai <X escalar >X os times?1212 Finn .. quem vai dizer1213 Finn qual é o --1214 Finn qual está --1215 Finn quem está em qual time?

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