Caderno de Debates Carlos Marighella - n. 02

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Consulta Popular em São Paulo N° 02 – Jan. 2014

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Caderno de debates da CP

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Consulta Popular em São PauloN° 02 – Jan. 2014

“Quero ser apenas um entre os milhões de brasileiros que resistem”

Carlos Marighella

Camaradas da Consulta Popular do Estado de São Paulo, saudações!

É com muita alegria que apresentamos o segundo Caderno de Debates permanente “Carlos

Marighella”. Os textos aqui reunidos foram enviados por militantes da Consulta Popular em São Paulo

durante os meses de dezembro de 2013 e janeiro de 2014 e apresentam a diversidade de nossas lutas e

nossa formulação sobre a conjuntura, a luta dos jovens, das mulheres, por uma verdadeira

democratização dos meios de comunicação e por nosso aprofundamento nas temáticas de Agitação e

Propaganda.

Lembramos a todas e todos os militantes da Consulta Popular em São Paulo que estes Cadernos

são um espaço aberto para debates, reflexões e divergências, que deve estimular nosso poder de

formulação, reflexão e ação. Deve ser debatido nos núcleos e lido pela totalidade de nossos militantes,

servindo como importante ferramenta de formação política e debate ideológico.

Esperamos que todos os setores, núcleos e militantes da Consulta Popular em São Paulo se

sintam instigados a colaborar com estes debates e, portanto, com nossa política.

Um ótimo 2014, cheio de lutas, organização e vitórias!

Coordenação Estadual

Consulta Popular em São Paulo

Pátria Livre! Venceremos!

Índice

Democratização da comunicação: uma luta política....................................................................04Vivian Neves Fernandes

Construir uma “Escola de Tribunos Populares”..........................................................................21Guillermo A. Denaro

Da base ao topo: debate sobre a atual estrutura de classes no Brasil...........................................29Caio Santiago e Jonnas Vasconcelos

Juventude e Periferia......................................................................................................................38Barbara Pontes e Juliane Furno

Comentários sobre a política dos e nos EUA................................................................................45Jonnas Vasconcelos

Batucada Popular Carlos Marighella: uma experiência prática para a organização....................49João Victor Barison

A Reforma Política: passos para a despatriarcalização do Estado...............................................61Maria Júlia Montero

Democratização da Comunicação: uma luta política

Vivian Neves Fernandes*

O momento em que nos encontramos, em que as manifestações de junho inauguram as lutas

que trouxeram questionamentos sobre a cobertura midiática e o oligopólio dos meios de comunicação,

é fundamental para debatermos alguns aspectos da luta em torno da comunicação. A bandeira de

agitação do “Fora Globo”, levantada por movimentos sociais de juventude, aponta uma recusa ao

poder exercido por esse gigante veículo de mídia. Porém, se há uma recusa, o que se afirma em

contrapartida? Pelo viés da forma e do conteúdo das mensagens midiáticas, surge a afirmação dos

veículos alternativos e populares como proposta. Na recusa ao poder de concentração dos veículos da

grande mídia, em especial das Organizações Globo, que dominam quase tudo o que é produzido por

TV, rádio, impressos e na internet, a resposta está na luta por direitos e democracia.

A Democratização dos Meios de Comunicação é uma palavra de ordem clara, mas que precisa

ser compreendida em suas questões históricas, na abordagem no atual momento e para que possamos

apontar alguns eixos de reflexão para atuação e debates dentro da tática e estratégia da Consulta

Popular. Portanto, é a partir destes três tópicos que este texto se estruturará, como um complemento ao

debate no interior da nossa organização sobre o tema.

Para este artigo, é utilizado como referencial teórico a Teoria do Estado Ampliado, do

intelectual marxista italiano Antonio Gramsci. Nela, o Estado é compreendido enquanto uma relação

entre o Estado strictu sensu, o que seria a sociedade política, e a sociedade civil. O primeiro se caracteriza

enquanto a junção de aparelhos burocráticos administrativos e reguladores da luta de classes; dotado do

poder de coerção, através de aparelhos militares; além de representante dos interesses da classe

dominante. E na mediação entre a infraestrutura econômica e a sociedade política está a sociedade civil.

Dentro do âmbito da sociedade civil o ponto-chave de análise é a hegemonia, que é a disputa pela

liderança político-ideológica dentro da sociedade entre as classes sociais antagônicas, de acordo com

seus projetos societários. A classe dominante sustenta-se a partir de um bloco social e histórico (aliança

entre setores sociais e frações destes setores) e através da criação e construção de consenso, a maneira de

se criar aceitação coletiva na sociedade de interesses corporativos, de classe.

A forma de organização na disputa dentro da sociedade civil se dá através dos aparelhos privados de

hegemonia, que não possuem ligação direta com o Estado (sociedade política), no sentido que possuem

autonomia de organização em relação a ele por parte desses “sujeitos políticos coletivos de massa”, por

adesão voluntária e sem a necessária utilização de mecanismos coercitivos para tal. Estes aparelhos se

* Militante do núcleo Augusto Boal

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apresentam de distintas formas, como partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais, sistema

educacional, Igreja, organizações não governamentais (ONG’s), meios de comunicação de massas, entre

outros.

Esse Estado de maneira ampliada se estrutura através do estabelecimento de compromissos

entre as classes, com concessões materiais e culturais de equilíbrio que visam manter a classe

dominante-dirigente no poder, com certo grau de concessões que permitem que a classe dominada-

dirigida participe sem comprometer os interesses dominantes.

“Um mundo e muitas vozes”

O debate em torno da Democratização dos Meios de Comunicação tem início como tal em

fóruns da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), a partir

dos anos de 1960. A crítica para início do debate vinha dos chamados “países não alinhados” que

reivindicavam maior equilíbrio no fluxo de informações entre os países do “primeiro” e do “terceiro

mundo”.

Fruto desses debates, e da formação da Comissão Internacional para o Estudo dos Problemas

da Comunicação, presidida pelo irlandês Sean MacBride e composta por intelectuais do tema de todo o

mundo (como o colombiano Gabriel García Márquez), tem origem o Relatório MacBride, “Um mundo

e muitas vozes”, de 1980.

No documento, a comunicação é tratada como espaço fundamental de constituição da

sociedade moderna e nas relações entre indivíduos, grupos sociais e nações. O espaço de diálogo e

construção de discursos e valores da comunicação é apresentado como de disputas (polícias,

econômicas e culturais) para constituição de consensos. As desigualdades ocasionadas nesta área – em

função da falta construção democrática e de liberdade de expressão e participação – são tratadas como

uma problemática interna dos países; além de se desenrolar também entre as nações.

Portanto, a proposta é de uma Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação (NOMIC),

em que haja maior participação dos países em desenvolvimento (como os latino-americanos) no fluxo

internacional da comunicação. Além de políticas nacionais de aumento do acesso aos meios e incentivo

à comunicação alternativa. A partir dessas questões propostas, a comunicação passa a ser defendida

como um direito humano fundamental, que vai além do direito à informação, pois compreende que

deve ser garantido a toda pessoa o direito de informar, ser informado, participar de esferas públicas de

discussão, por qualquer meio de comunicação, sem qualquer restrição.

No âmbito da ONU o debate da NOMIC não proliferou, por negativa dos países

desenvolvidos, porém ele se espalhou pelo mundo, chegando ao Brasil, principalmente, através de

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pesquisadores da comunicação e se relaciona com movimentos da sociedade civil que atuam pela

redemocratização do país, nos anos de 1980.

Redemocratização e a Constituição de 88

Do início do rádio no Brasil na década de 1920 – com caráter associativo, comercial e,

posteriormente, estatal com Getúlio Vargas – ao início da TV nos anos de 1950 – pelas mãos do

empresário Assis Chateaubriand –, pularemos um tempo na história e abordaremos o período posterior

ao final da ditadura militar, que convém melhor para a análise da luta pela Democratização da

Comunicação.

Seguindo o caminho do processo da redemocratização pós-ditadura no Brasil, foram realizados

debates no Legislativo e Executivo sobre a nova Constituição Federal, que foi promulgada no dia 5 de

outubro de 1988. No que diz respeito à parte ligada à comunicação, no processo anterior à

implementação da Constituição, o jogo político era comandado pela Associação Brasileira dos

Empresários de Rádio e TV (Abert), representando seus interesses privados, e por políticos influentes

que viam no debate de comunicação uma forma de manutenção das elites no poder, com a garantia da

propriedade de meios de comunicação.

Tancredo recebeu de três congressistas um documento com propostas progressistas demudança nas políticas de comunicação. Os parlamentares também demonstrarampreocupação com a possibilidade da indicação de Antônio Carlos Magalhães ao cargo deministro e com a manutenção de Rômulo Villar Furtado na Secretaria Geral do Ministériodas Comunicações. Furtado era homem de confiança da Globo, e estava no cargo desde1974. A pressão política, no entanto, não surtiu efeito. (INTERVOZES, 2007)

A fim de tentar dar uma cara “moralizante” ao Ministério das Comunicações, Antônio Carlos

Magalhães (ACM), através da portaria 128, suspende todas as concessões dadas a partir de outubro de

1984, mas logo depois esses pedidos são chancelados e inicia-se um intenso processo de distribuição de

concessões de rádio e TV a políticos. Segundo o Coletivo de Comunicação Social Intervozes, nos três

anos e meio anteriores à Constituição, ACM e Sarney distribuíram 1028 outorgas, sendo que dessas,

25% no mês de setembro de 1988 e 59 concessões seis dias antes da promulgada a Constituição;

informações essas que foram divulgadas no Diário Oficial da União.

Com raras exceções, os beneficiados foram parlamentares, que direta ou indiretamente (pormeio de seus familiares ou sócios) receberam as outorgas em troca de apoio político aprojetos de Sarney, especialmente para a extensão do mandato do presidente para cinco anos.(INTERVOZES, 2007)

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Para elaboração do texto referente à Comunicação foi montada uma comissão, e esta foi a única

de todas as demais comissões que não terminou de elaborar o relatório de trabalho devido a disputas

internas de interesses. Entre as principais questões apresentadas nessa parte da Constituição estão a

inclusão do Congresso Nacional na tomada de decisão das concessões, junto do Executivo; proibição

de monopólios ou oligopólios dos meios de comunicação; diminuição de vencimento de concessão de

rádio para 10 anos e manutenção da de TV para 15; criação do Conselho de Comunicação Social;

proibição da participação de capital estrangeiro e limite de 30% de investimentos de pessoas jurídicas

nas empresas (ponto modificado posteriormente, por meio de uma Emenda Constitucional de 2002,

permitindo a entrada de até 30% de capital estrangeiro por intermédio de pessoa jurídica nacional e

100% nacional).

Uma articulação da sociedade civil conseguiu lograr algum tipo de participação dentro da

formulação do texto constituinte, foi o caso da Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de

Comunicação (FNLPDC). Ela surgiu articulada pelo movimento estudantil, professores universitários

da área e pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), no início de 1984 (oficialmente).

A partir de 85 iniciou o processo de discussão e formulação de propostas democráticas para

serem inclusas na Constituição, recebendo o apoio de 45 entidades, como a Associação Brasileira de

Imprensa (ABI), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Confederação Nacional dos Bispos do

Brasil (CNBB).

Em 1987, ocorreu o seu maior auge, conseguindo inserir pontos na Constituição, como a

criação do Conselho de Comunicação Social, um sistema público de comunicação e a regionalização da

produção cultural de rádio e TV. Propostas estas que quando implementadas não foram tão

democráticas quanto propunha a Frente, ou nem sequer saíram do papel.

Apesar de toda essa articulação, a FNLPDC não conseguiu expandir o debate para a população,

não contando com muito apoio popular, e nem avançar para outros setores que não os de alguma

forma ligados ao debate de comunicação. Sendo assim, após a aprovação da Constituição em 88 o

FNLPDC se desfez.

Movimentos sociais, sindicatos e setores populares também fizeram pressão junto ao ministro

das Comunicações para que entrasse na Constituição a outorga de canais comunitários para

organizações representantes dos interesses dos trabalhadores. Porém, o peso político dos grandes meios

e os interesses de ACM fizeram com que essas negociações não avançassem no sentido de uma

abertura democrática dessa área.

Ao final, nenhuma mudança estruturante ocorreu na base legal da utilização dos meios de

comunicação no Brasil e nas suas finalidades. O jogo de interesses dos empresários dos grandes meios,

organizados através da Abert, dos políticos representantes das elites e, também, de si mesmos e da sua

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manutenção no poder, continuaram prevalecendo, em detrimento da participação popular e do

processo democrático, que continuou restrito somente à recepção das mensagens, mas não de sua

produção.

Dentro do campo popular, esse período não foi de apatia, pois vários setores da classe

trabalhadora se mobilizaram para construir processos de crítica à mídia burguesa e de construção de

veículos populares e alternativos. Setores dentro da Igreja Católica ligados à Teologia da Libertação já

vinham atuando durante toda a ditadura na defesa da democracia e construção de outro Brasil. Através

das Comunidades Eclesiais de Base (CEB's) foram realizados processos de formação sobre leitura

crítica da mídia, organização e construção de comunicação popular. Chegou a ser fundado em 1969 a

União Cristã Brasileira de Comunicação (UCBC). Porém, na década de 90, estas iniciativas se

encontravam enfraquecidas, devido à ofensiva do Vaticano contra a Teologia da Libertação, e devido ao

processo de avanço do neoliberalismo no país.

Acompanhando esse processo, as formas de organização da sociedade civil para a disputa em

torno da Democratização da Comunicação sofreu um refluxo, tendo como um dos poucos pontos de

apoio o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), que surgiu em 1991 e

contava com a participação de várias organizações da área e classistas no geral.

O papel da mídia dentro da sociedade brasileira se já era grande anteriormente, cresce ainda

mais ao passar dos anos, em alcance e inserção dentro da audiência, e na influência no pensamento e no

comportamento da população. Além disso, cumpre um papel quanto à participação que desempenha

nas discussões e decisões políticas dentro do Estado strictu sensu.

Esse acompanhamento da relação entre meios de comunicação, enquanto um aparelho privado

de hegemonia dentro da sociedade civil e Estado pode ser analisado por diferentes ângulos, englobando

tanto a influência dos grandes meios, quanto a dos veículos dos setores populares.

Importante ressaltar também, dentro dessa relação, qual o papel desempenhado pela TV e pelo

rádio, como os meios mais influentes na formação da consciência do povo e na constituição da opinião

pública, ou melhor, do senso comum.

(EPCOM, 2002)

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Anos 90: grandes retrocessos e pequenos avanços

Mudanças significativas ocorrem na organização legal dos meios de comunicação nos anos 90

que vão influenciar no percurso pelo qual segue a história desses aparelhos privados de hegemonia.

Uma situação é a privatização da Telebrás, em 1995, quando o governo Fernando Henrique Cardoso

criou a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que cumpre a função de conceder outorgas,

regulamentar e fiscalizar os serviços de telecomunicações e radiodifusão no Brasil, questões antes

atribuídas ao Ministério das Comunicações. Esta alteração foi incluída dentro da Lei Geral de

Telecomunicações (Lei n 9.472/97), que passou a regular os serviços de tele, enquanto o Código de

1963 continuou sendo empregado para a radiodifusão. Essas alterações trouxeram maior abertura aos

processos de privatização dos setores de telecomunicações e uma maior concorrência entre as

empresas, confirmando a desresponsabilização total do Estado frente a políticas econômicas que

garantam a participação de setores oprimidos no processo de produção de informação.

Foram também instituídas a cobrança econômica para uso de concessões e licitação para sua

obtenção (Decreto 1720/95), mais um privilégio às elites na sua manutenção como detentoras desses

meios, pois apesar de no processo de licitação incluir uma análise da programação para conceder a

outorga, o fator que mais pesa no momento da escolha é o econômico, em que a empresa demonstra

que tem condições financeiras de sustentar o projeto de implementação do veículo. A partir disso, os

meios educativos e comunitários vão se tornar novas “moedas de troca” entre políticos em pleno

mandato e seus apoiadores para novos pleitos eleitorais. Através da concessão de um veículo de

comunicação, os representantes dentro do Estado vão manter um apoiador político, ao mesmo tempo

que garantem um meio de campanha eleitoral local.

Outras alterações significativas que tangem a base legal pela qual esses meios podem se

organizar dentro do regime democrático burguês ocorreram na década de 90. Uma delas foi a Lei do

Cabo (Lei n 8.977), de 1995 – governo de Itamar Franco, que abriu o mercado para a participação de

empresas estrangeiras em 49% dos serviços de telecomunicações a cabo. Mas, também garantiu a

obrigatoriedade de seis canais de acesso público dentro desse ramo, incluindo um canal comunitário.

Um dos pontos que pode se considerar um avanço obtido nessa Lei é que ela foi uma das

primeiras a ser negociada entre governo e organizações da sociedade civil, que representaram os seus

interesses de classe, na disputa com os grandes empresários do setor e entidades de defesa da

democratização dos meios de comunicação.

O canal comunitário permitido na Lei do Cabo é destinado para entidades sem fins lucrativos

que se interessem em produzir conteúdo dentro desse meio, e se organizam através de uma Associação

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de Usuários do canal, passando a se estruturar internamente para divisão e produção da programação.

Precisam se estruturar financeiramente e tecnicamente também, pois a empresa que controla a

transmissão do cabo não tem responsabilidade nenhuma quanto ao auxílio técnico e financiamento do

canal, mas simplesmente fornecê-lo.

Uma lei que à primeira vista parece um avanço no debate da comunicação é a Lei de Rádios

Comunitárias (Lei n 9.612), publicada em 1998. Nela é permitido o usufruto de um canal para entidades

sem fins lucrativos. Porém o que poderia sinalizar um avanço torna ainda mais burocrático e lento o

processo de apropriação popular dos meios de comunicação, com o prazo de concessão de dois anos

(contando a lentidão com que tramitam os processos de pedido a rádio funcionaria por dois anos e

esperaria dois anos ou mais para ganhar nova concessão, caso ganhasse), raio permitido de alcance do

sinal é de 1 km, potência de 25 watts e proibição de captação financeira através de publicidade, sendo

permitido somente apoio cultural, o que não gera uma renda periódica para o pleno funcionamento da

rádio.

Além desses fatores, ocorre que boa parte dessas rádios está nas mãos de políticos ou pessoas

ligadas a esses, assim como de igrejas, não alterando ou modificando muito pouco a correlação de

forças no meio comunicacional.

As rádios comunitárias, na sua maioria, são controladas, direta ou indiretamente, por políticoslocais – vereadores, prefeitos, candidatos derrotados a esses cargos, líderes partidários – vindo numdistante segundo lugar o vínculo religioso, predominantemente da Igreja Católica. Cerca de 70% de todos os novos atos de outorgas de radiodifusão, depois de 1998, sãoexatamente de rádios comunitárias. Paralelamente, estima-se que existam hoje no país cercade 18 mil rádios comunitárias “não-legalizadas” em funcionamento, cerca de 10 milprocessos arquivados e mais de 4 mil pedidos pendentes no Ministério as Comunicações(MiniCom) (Carvalho, 15/3/07). (LIMA e LOPES, 2007, p. 5)

O fator mais decisivo para implementação de uma legislação desse tipo foi o grande numero de

rádios ilegais em funcionamento em todo o Brasil na década de 90. E como reação o Estado brasileiro

legaliza as rádios antes que os setores populares se mobilizem com força e massivamente reivindicando

maior participação, ou seja, uma medida reativa a uma realidade já apresentada e ao mesmo tempo

preventiva de maiores reivindicações em torno de uma comunicação democrática. Porém, várias

organizações da área de comunicação já reivindicavam ações mais democráticas, mas sem tanto peso

político para influenciar decisivamente no poder Legislativo e Executivo, tanto que a lei aprovada não

representou um real avanço democratizante; e em certa medida foi conveniente aos grandes

empresários da comunicação no país.

Além de correia de transmissão das pautas político eleitorais, há a criação do consenso

ideológico mais amplo dentro das regiões, pois parte da programação, ou o conteúdo informativo

principal é proveniente das mesmas agências de notícias e grupos de comunicação nacionais. Na

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maioria das vezes, não é produzido conteúdo diferenciado, crítico e regional.

Emissoras de rádio e televisão, que são mantidas em boa parte pela publicidade oficial e estãoarticuladas com as redes nacionais dominantes, dão origem a um tipo de poder agora nãomais coercitivo, mas criador de consensos políticos. São esses consensos que facilitam (masnão garantem) a eleição (e a reeleição) de representantes – em nível federal, deputados esenadores – que, por sua vez, permitem circularmente a permanência do coronelismo comosistema. (LIMA e LOPES, 2007, p. 3)

Devido ao pequeno avanço de democracia dado e ao processo burocrático de concessão, muitas

rádios continuam funcionando ilegalmente, baseadas na necessidade de participação coletiva na

produção de mensagens midiáticas. E para coibir essas rádios comunitárias sem outorga, a Anatel,

fiscalizadora do funcionamento da radiodifusão, utiliza da Polícia Federal para reprimir as comunitárias,

lacrar ou apreender equipamentos e em alguns casos utilizar da violência física ou prender aqueles que

produzem comunicação livre.

É importante ressaltar a formulação da Lei de Radiodifusão Comunitária, pois se trata de uma

transformação conservadora, apresentada como sendo um importante passo na democracia, mas na

verdade pouca alteração resulta. Por mais que algumas experiências dessas rádios tenham sido positivas,

a grande maioria das concessões é destinada para políticos, além das medidas para implementação e

ocorrência serem burocráticas, limitadas e quase nada populares. O Estado enquanto regulador das

concessões de radio e TV, ou seja, da utilização do espectro aéreo de um país, utiliza dessa sua

obrigação para representar mais uma vez o interesse da classe exploradora, e mediar essa relação com

os trabalhadores, contribuindo diretamente para uma desproporção de produção de mensagens dentro

dos meios de comunicação e na formação de um quadro mais favorável para a classe trabalhadora na

disputa pelo consenso na sociedade.

TV e Rádio digitais: derrota e incerteza

Mais uma luta que tomou fôlego na esfera da democratização da comunicação é a em torno da

TV e do rádio digitais. A partir de 2003, entidades e pesquisadores da comunicação se debruçaram

sobre o tema, que envolvia questões tecnológicas, políticas e econômicas. Com debates em torno,

principalmente, da possibilidade de ampliação do número de emissores (garantindo participação de

mais setores da sociedade), e possibilidades de crescimento da pesquisa e indústria nacional com ênfase

na microeletrônica, o debate da TV Digital foi estabelecido pelos movimentos de área.

Porém, o que era uma gama de possibilidades de avanços tornou-se uma frustração, comandada

pelo então ministro das Comunicações Hélio Costa, nomeado pelo presidente da época, Luiz Inácio

Lula da Silva. Em 2003, Lula assinou o Decreto n.º 4.901, que criou o Sistema Brasileiro de TV Digital

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Terrestre (SBTVD) e o Comitê de Desenvolvimento, responsável pela sua implementação. Em 2006,

foi publicado o Decreto 5.820/06 que estabeleceu as regras para TV Digital, que sem consulta à

sociedade e sem grandes análises, ficou baixo a escolha do padrão japonês (ISDB), que disputava com

os modelos estadunidense (ATSC) e europeu (DVB). O início das transmissões oficiais foi em 02 de

dezembro de 2007, em São Paulo. Como o modelo japonês, as redes de televisão fariam a transmissão

direta, mantendo a concentração dos grupos de comunicação e o controle total sobre o processo – o

que é proibido por lei.

Antes mesmo da implementação, organizações da sociedade civil manifestaram a necessidade de

um amplo debate com a sociedade antes de qualquer decisão e o uso da tecnologia nacional produzida

pelas universidades brasileiras, já que foram obtidos excelentes resultados. Entre essas entidades,

figuravam a Sociedade Brasileira de Computação, Congresso Brasileiro de Cinema (CBC), Articulação

Nacional pelo Direito à Comunicação (Cris Brasil), Associação Brasileira de ONGs (Abong),

Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCOM), Intervozes, FNDC e CUT.

Entre as manifestações de repúdio anteriores à escolha do sistema da TV Digital, em 2006, “um

grupo de 63 estudantes de Engenharia de Telecomunicações do Instituto Nacional de

Telecomunicações (Inatel), instituição que lidera um dos consórcios de pesquisa do Sistema Brasileiro

de Televisão Digital, protestou em Brasília contra a decisão do governo de escolher um sistema

estrangeiro para o SBTVD. Inclusive, no dia 09, sete alunos se acorrentaram pelo lado de dentro da

porta da sede do Ministério das Comunicações. A exigência do grupo é que o governo debata o assunto

com a sociedade e leve em consideração o sistema brasileiro”1.

Após a publicação do decreto e da primeira transmissão da TV Digital, em 2007, o Intervozes

soltou a seguinte avaliação:

1. A implantação da TV digital terrestre no Brasil trazia o potencial de aumentar radicalmenteo número de programações televisivas e, consequentemente, democratizar o principal meiode comunicação do país. Com uma maior capacidade de compressão de sinais, seria possívelgarantir espaço para aqueles que hoje estão ausentes da programação da TV, em especial àsemissoras públicas e sem fins lucrativos, como as comunitárias e universitárias. Mas,infelizmente, essa não foi a opção do governo federal, que destinou às emissoras comerciaismais uma fatia do espectro, tornando o atual latifúndio um latifúndio improdutivo.2. Essa entrega do espectro não se deu por meio de uma nova concessão, mas porconsignação direta àquelas emissoras que já tinham concessões de TV aberta, já que a TVdigital não foi considerada um novo serviço. Com isso, ela não passou pelo Congresso (comoobriga a Constituição no caso das concessões) e ainda criou uma aberração, pelo fato de aTV digital possibilitar a oferta de outros serviços, como a multiprogramação ou recursosinterativos. Perdeu-se também a oportunidade de impor obrigações às concessionárias, queseguem utilizando um bem público sem praticamente nenhuma obrigação em relação aoconteúdo transmitido. Na prática, reforçou-se o modelo concentrador e permissivo

1 Texto “Sob pressão: escolha do modelo de TV digital no Brasil”, da Profª Eula D. Taveira Cabral, Editora do Informativo Eletrônico SETE PONTOS. Disponível em: http://www.comunicacao.pro.br/setepontos/32/digital_tv.htm

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atualmente praticado nas concessões de rádio e TV.(...)5.Da mesma forma, ao contrário do que se prometeu durante a assinatura do acordo com osjaponeses, não houve e nem haverá qualquer transferência de tecnologia para o Brasil. Oacordo formal assinado entre os dois governos também não sairá do papel, pelo simples fatode que não constam, no acordo, obrigações, mas somente intenções de ambos os governos.Internamente, não houve qualquer esforço para a criação de uma política industrialcompatível com as necessidades do país. Ou seja, a televisão digital brasileira não seráaproveitada como mecanismo de indução do desenvolvimento industrial nacional,infelizmente.2

Para o rádio digital, ainda não está certa a implantação de um modelo. Os primeiros testes

realizados com a tecnologia digital, a partir dos padrões DRM (europeu) e HD ou IBOC (norte-

americano), não alcançaram resultados satisfatórios e a expectativa de definição de um desses modelos

até o fim de 2012, falhou. Ainda em meados de 2007, o governo parecia sinalizar para a adoção do

modelo IBOC, com muitas empresas de grande porte se digitalizando a partir desse sistema. Naquele

ano, as entidades construtoras da Frente Nacional por um Sistema Democrático de Rádio e TV Digital,

criticaram a possibilidade de adesão a esse sistema, destacando que a emissora que utiliza o IBOC

poderia causar interferência em outras emissoras de baixa potência, principalmente em rádios

comunitárias. Outro ponto é o fato do padrão ser proprietário e possuir uma lógica de licenciamento

que inviabiliza economicamente emissoras públicas e comerciais de pequeno porte.

Em setembro de 2013, durante audiência pública na Comissão de Ciência e Tecnologia do

Senado, o representante da Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel), André Felipe Seixas,

declarou que ainda não havia sido encontrado um modelo de negócios adequado para a rádio digital no

país. O custo de implantação pode chegar a R$250 mil e é considerado muito elevado para os

radiodifusores, em especial os de cidades pequenas e de emissoras comunitárias.

O governo declarou que ainda realizaria mais testes nas faixas de FM e de radiodifusão

comunitária com o sistema digital, mas a adoção do modelo de rádio digital no Brasil ainda é uma

dúvida. O chefe de gabinete da Diretoria-Geral da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Braúlio

Ribeiro, afirmou, na referida audiência pública, que o rádio digital não pode ser apenas uma mudança

na qualidade de áudio, pois é necessário ter “implementados serviços diferenciados, como a

possibilidade de transmissão de imagens junto com o áudio e informações complementares de textos. É

isso que vai trazer incremento a serviço da população”3. Além disso, é preciso haver uma política

industrial adequada para que as pessoas possam comprar o receptor a custos baixos.

2 Texto: TV digital: oportunidade perdida para democratizar as comunicações. Disponível em: http://intervozes.org.br/tv-digital-oportunidade-perdida-para-democratizar-as-comunicacoes/

3 Reportagem “Implantação do rádio digital no Brasil ainda é dúvida”, veiculada na Agência Brasil em 17 de setembro de 2013. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-09-17/implantacao-do-radio-digital-no-brasil-ainda-e-duvida.

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Luta contra renovação das concessões

A utilização de qualquer concessão pública, como são os meios de comunicação, por

parlamentares é proibida, definida na Constituição de 88, mas essa é outra questão desrespeitada. Essa

já era uma decisão presente no Código Brasileiro de Telecomunicações de 62, em que estava colocada

que “aquele que estiver em gozo de imunidade parlamentar não pode exercer a função de diretor ou

gerente de empresa concessionária de rádio ou televisão (Parágrafo único do Artigo 38)” (LIMA, 2006).

Além disso, senadores e deputados que possuem concessões de rádio e TV participam de

comissões responsáveis por avaliar processos de renovação de outorgas e de aprovar as leis referentes

ao setor de radiodifusão, como a Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática

(CCTCI), na Câmara dos Deputados, por onde entram os pedidos de renovação no Congresso; e da

Comissão de Educação, do Senado.

Os processos e contratos de fornecimento da concessão e da renovação não são apresentados

publicamente pelo Executivo Federal, e o procedimento para consegui-las é burocrático e confuso. Em

parte, essa não publicação dos contratos é utilizada para cobrir diversas irregularidades presentes nessas

outorgas, além de algo que é muito presente na estrutura dos meios de comunicação de massa

brasileiros: o oligopólio. Pela legislação é proibida qualquer forma de monopólio e oligopólio, mas isso

parece não interferir na ideia de expansão de controle desses meios.

Os verdadeiros controladores das concessões têm recorrido a vários expedientes paraproteger sua identidade. Nomes de parentes e “laranjas” são recursos comuns não só paraesconder o patrimônio como para fugir das normas restritivas aplicáveis a deputados esenadores – e também daquelas que limitam a participação societária de “entidades” deradiodifusão a cinco concessões em VHF em nível nacional e a duas em UHF, em nívelregional (Artigo 12 do Decreto 236/67). (LIMA, 2006)

Até mesmo o discurso de controle por parte da população sobre a renovação das outorgas

desses grandes meios de comunicação é algo que praticamente passa em branco. Em 5 de outubro de

2007, venceram diversas concessões de televisão em todo o país, entre elas as outorgas de cinco

emissoras próprias da Rede Globo – no Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e Recife.

Uma campanha nacional pelo controle social das concessões de rádio e televisão foi realizada no

momento, na tentativa de evitar que o Congresso Nacional renovasse automaticamente essas

concessões, sem usar critérios transparentes e sem discutir a outorga com a sociedade. Participam da

campanha a Coordenação de Movimentos Sociais (que reúne CUT, UNE, MST, Central de

Movimentos Populares, Marcha Mundial das Mulheres e outras entidades), também grupos de área

como Intervozes, Campanha pela Ética na TV, FNDC, entre outros. Porém, sem grande inserção na

sociedade, a campanha não vingou.

14

Apesar de não haver obtido grande sucesso junto à população, campanhas contra a renovação

automática de canais de rádio e televisão são importantes momentos de debates com a sociedade sobre

o caráter público dos meios de comunicação, pautados por uma situação concreta.

Os concessionários teriam por obrigação prestar um serviço à população, e deveriam seguir

certos parâmetros culturais, educacionais, de produção de conteúdo regional e respeito aos direitos

humanos. Além de haver um limite temporal para essa utilização, de 10 anos para rádio e 15 para TV.

Confecom: pela primeira vez

Como um processo construído a partir das bases em todos os estados brasileiros, ocorreu em

2009 a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Considerada um avanço, o espaço foi o

primeiro organizado pelo Estado brasileiro que promoveu um amplo debate público sobre as políticas

de comunicação, além de diretrizes para as ações governamentais e um novo marco regulatório da área.

Foram envolvidas cerca de 30 mil pessoas ao longo das diversas oficinas e conferências municipais e

estaduais do processo. Diversos setores da sociedade enviaram seus representantes, como centrais

sindicais, movimentos de mulheres, negro, da juventude, de crianças e adolescentes, de pessoas com

deficiência, LGBT; além de pesquisadores e empresários. Reunidos, eles debateram temas como o

sistema público de comunicação, concessões de rádio e televisão, universalização da banda larga e

controle social da mídia.

Ao final do processo, foram aprovadas quase 700 propostas, sendo 600 por consenso ou mais

de 80% de aprovação. Entre as propostas aprovadas estão:

- afirmação da comunicação como direito humano e que esse direito seja incluído naConstituição Federal;- criação de um Conselho Nacional de Comunicação que tenha caráter de formulação emonitoramento de políticas públicas;- combate à concentração no setor, com a determinação de limites à propriedade horizontal,vertical e cruzada;- garantia de espaço para produção regional e independente;- regulamentação dos sistemas público, privado e estatal de comunicação, que são citados naConstituição Federal, mas carecem de definição legal, com reserva de espaço no espectropara cada um deles;- fortalecimento do financiamento do sistema público de comunicação, inclusive por meio decobrança de contribuição sobre o faturamento comercial das emissoras privadas;- descriminalização da radiodifusão comunitária e abertura de mais espaço para esse tipo deserviço, hoje confinado a 1/40 avos do espectro;- definição de regras mais democráticas e transparentes para concessões e renovações deoutorgas, visando à ampliação da pluralidade e diversidade de conteúdo;- definição do acesso à internet banda larga como direito fundamental e estabelecimentodesse serviço em regime público, que garantiria sua universalização, continuidade e controlede preços;- implementação de instrumentos para avaliar e combater violações de direitos humanos nas

15

comunicações; - combate à discriminação de gênero, orientação sexual, etnia, raça, geração e de credoreligioso nos meios de comunicação;- garantia da laicidade na exploração dos serviços de radiodifusão;- proibição de outorgas para políticos em exercício de mandato eletivo4.

Apesar do saldo positivo da Conferência, um dos problemas apontados pelas entidades

participantes foi a proporção desequilibrada na representação dos segmentos, com os empresários

ficando com 40% das vagas de delegados. Também, a regra de quórum qualificado para a votação dos

chamados “temas sensíveis” e a proibição de votação das propostas nas etapas estaduais, retirando

parte do peso político dos processos estaduais e levando as disputas para a etapa nacional. Apesar

desses benefícios, seis das oito organizações empresariais abandonaram a Comissão Organizadora

Nacional, alegando que a Confecom era autoritária e antidemocrática.

O passo seguinte à Conferência passou a ser transformar as propostas aprovadas em

proposições legislativas e políticas públicas; e cobrar dos poderes Executivo e Legislativo a

responsabilidade de acolher as recomendações definidas na Confecom. Além da implantação de

Conselhos Estaduais e Nacional de Comunicação, demanda que, ao que consta, ainda não foi

implementada em São Paulo.

Luta atual: “Para expressar a liberdade”

Como mais recente campanha pela Democratização dos Meios de Comunicação, surge em 27

de agosto de 2012, no aniversário de 50 anos do Código Brasileiro de Telecomunicações, a campanha

“Para Expressar a Liberdade”, que luta por uma regulação democrática das comunicações no país. Por

entender que o Código de Telecomunicações ainda vigente é limitado e está desatualizado, assim como

falta regulamentações a pontos importantes da Constituição de 1988, que em 2013, a campanha

apresentou um projeto de lei de iniciativa popular chamado de “Lei da Mídia Democrática”. O projeto

regulamenta os artigos constitucionais sobre a comunicação, propondo mecanismos de participação

popular na regulação e na criação de políticas públicas. Para entrar em debate no Congresso Nacional, o

projeto de lei precisa recolher um milhão e trezentas mil assinaturas. Baseadas nas definições da 1ª

Confecom, as diretrizes fundamentais do projeto para democratizar as comunicações no Brasil reúnem

20 pontos:

4 Informações retiradas do texto “Conferência Nacional de Comunicação: um marco para a democracia no Brasil”, publicado pelo Intervozes em 7 de maio de 2010. Disponível em: http://intervozes.org.br/conferencia-nacional-de-comunicacao-um-marco-para-a-democracia-no-brasil/

16

1. Arquitetura institucional democrática2. Participação social3. Separação de infraestrutura e conteúdo4. Garantia de redes abertas e neutras5. Universalização dos serviços essenciais6. Adoção de padrões abertos e interoperáveis e apoio à tecnologia nacional7. Regulamentação da complementaridade dos sistemas e fortalecimento do sistema públicode comunicação8. Fortalecimento das rádios e TVs comunitárias9. Democracia, transparência e pluralidade nas outorgas10. Limite à concentração nas comunicações11. Proibição de outorgas para políticos12. Garantia da produção e veiculação de conteúdo nacional e regional e estímulo àprogramação independente13. Promoção da diversidade étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de classes sociaise de crença14. Criação de mecanismos de responsabilização das mídias por violações de direitoshumanos15. Aprimoramento de mecanismos de proteção às crianças e aos adolescentes16. Estabelecimento de normas e códigos que objetivem a diversidade de pontos de vista e otratamento equilibrado do conteúdo jornalístico17. Regulamentação da publicidade18. Definição de critérios legais e de mecanismos de transparência para a publicidade oficial19. Leitura e prática críticas para a mídia20. Acessibilidade comunicacional

Atualmente, dados de novembro de 2013, o projeto conta com mais de 50 mil assinaturas e tem

o apoio de mais de 200 entidades da sociedade civil. Todo o material sobre a campanha, incluindo o

Projeto de Lei da Comunicação Social Eletrônica (de Iniciativa Popular) e listas de coleta de assinaturas

e de adesão de apoios, além do endereço da secretaria que centraliza as assinaturas da campanha

localizada em Brasília, encontra-se no site www.paraexpressaraliberdade.org.br.

A Consulta Popular, em nível nacional (Circular 13, de 22 de agosto de 2013), aderiu à

campanha “Para expressar a Liberdade” e lançou algumas orientações de atuação para coordenações

estaduais, núcleos e militantes. A participação indicada se dá tanto pela atuação no FNDC, quanto em

comitês da campanha; a construção de lutas que abordem o tema, como o “Fora Globo!” da juventude;

participar e organizar os movimentos em que atuamos para a coleta de assinaturas do projeto de lei; e

combinar a atuação com a formação política no interior da organização, assim como em “atividades

como seminários, assembleias de rua, aulas públicas, encontros, que podem ser realizados em conjunto

com as entidades que compõem a Campanha Para Expressar a Liberdade” (trecho retirado da Circular

n. 13). É dentro dessa orientação de formação política que esse texto visa se inserir.

No estado de São Paulo, avançamos muito pouco na construção da campanha até este

momento. Há sim uma predisposição dos nossos militantes em atuar nesta luta e é consensual a

importância estratégica da Democratização dos Meios de Comunicação. Porém, corremos o risco de

repetir a roda da história e relegarmos este debate aos militantes e movimentos oriundos do debate da

17

comunicação, e perdemos mais esta batalha, que entrará como apenas mais uma entre as outras já

perdidas nesse tema.

Há que se pensar internamente na Consulta Popular como garantir a construção conjunta desse

debate com outro colocado como prioritário para este período, que é o da Reforma Política. Se não,

pelo argumento da “insuficiência de pernas”, passamos a desconsiderar a construção de uma campanha

ousada, que bate de frente com os poderosos meios empresariais de comunicação e que ainda encontra

dificuldades para crescer no seio da sociedade. Esta campanha é a luta política em torno da

comunicação colocada de forma ampla e unitária para o momento. É nela que, enquanto organização

política de caráter revolucionário, devemos nos inserir.

Por fim, retomando o apontamento sugerido no início deste texto, sobre que devemos nos

debruçar sobre o tema da comunicação levando em consideração as mobilizações ocorridas no mês de

junho de 2013, coloca-se o desafio para os militantes da Consulta Popular de compreender o que foi

esse processo e o que reverbera e ainda irá reverberar, em especial no próximo ano.

Do ponto de vista da comunicação, foi evidente que a cobertura jornalística dos grandes meios

foi questionada, a partir da vivência prática nas ruas e, também, pela cobertura feita pela mídia

alternativa na internet. Não foi difícil ver frases como “Fora Globo!”, “Globo sonega” e “Globo

mente”; até jornalistas e cinegrafistas foram agredidos em manifestações (o que é um erro, mas

evidencia uma raiva acumulada da juventude contra os grandes meios). Desse questionamento a partir

do concreto do que se via, surgiu um questionamento mais amplo sobre o poder e a concentração

desses meios. Infelizmente, esse potencial de indignação e mobilização não gerou tantos frutos para a

campanha “Para expressar a liberdade”. Qual o motivo para isso, ainda é motivo de dúvida.

Logo, surge como desafio reflexivo e prático compreendermos qual foi o real acúmulo dessas

manifestações de junho para a luta pela Democratização da Comunicação. Além de buscarmos

identificar qual o cenário que se aponta para o próximo ano, tendo em vista que há uma potencialidade

de que ocorram novas manifestações massivas e um retorno do questionamento da cobertura,

credibilidade e poder da grande mídia (ou o acúmulo de junho no máximo chegou até agosto).

Portanto, como, dentro disso, abordaremos o tema da Democratização da Comunicação de forma

estratégica e não somente para agitação.

Aliada a essa bandeira, enquanto Consulta Popular seguimos na construção prática de mídias

alternativas que se somam à reivindicação do direito à comunicação. A construção de mídias

alternativas está intimamente ligada à defesa da Democratização da Comunicação, abordar uma sem a

outra é um erro que não podemos cometer. Por uma analogia, seria como defender a agricultura

familiar e a agroecologia sem ter o horizonte da Reforma Agrária. E ter todas essas bandeiras e práticas

sem um projeto de sociedade, também demonstraria limites.

18

Assim, para fazer valer nosso esforço prático diário de construção de veículos alternativos, e

para que eles deixem de ser de resistência para se tornarem de referência para amplos setores da

sociedade, atuando na disputa pela hegemonia, é necessário termos como horizonte estratégico e luta

cotidiana a Democratização dos Meios de Comunicação.

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19

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UNESCO. Um mundo e muitas vozes – Comunicação e Informação na nossa época (Relatório

McBride). Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1983.

20

Construir uma “Escola de Tribunos Populares”

Guillermo A. Denaro*

“... o agitador, partindo de uma injustiça concreta, engendrada pela contradição do regime capitalista, se esforçará por

suscitar o descontentamento, a indignação das massas contra essa gritante injustiça, deixando ao propagandista

o cuidado de dar completa explicação dessa contradição. Daí por que, o propagandista age sobretudo

pela escrita, e o agitador, de viva voz...”.

Lênin

Em 1979, ainda sob a ditadura militar, um grupo de jovens inicia a edição de um jornal que

pretendia ser uma revolução na imprensa. O jornal “Hora do Povo”. Aparecem então os “brigadistas”

para distribuição do jornal. Os brigadistas, como eram conhecidos, ficaram estimados em todo o país

pelo modo como enfrentavam a ditadura nas praças e nas ruas. Tratava-se de uma militância entorno a

um jornal através do qual se pretendia construir uma organização revolucionária.

Sob período ditatorial a luta política no terreno da informação era agravada pelo monopólio da

mídia e ainda pela semiclandestinidade. Se bem a ditadura militar estava em franca retirada, numa

conjuntura de avanço das lutas operárias e vitórias populares, a repressão ao movimento operário e a

perseguição às lideranças operárias dava claro sinal para não abandonar a preocupação com a segurança.

Isso implicava numa dificuldade para operar politicamente. Era necessário agir na semiclandestinidade.

Algumas atividades eram toleradas, ainda que vigiadas.

O Brasil superava o período de resistência á ditadura militar. Cresciam as lutas por liberdades

democráticas que ganhava impulso depois das eleições de 1974. No campo da esquerda nem todos

analisavam assim. A luta armada de resistência dava lugar às lutas populares, às lutas de massa. Foi a luta

contra a carestia, a luta sindical por reposição salarial, por aumento real de salários que pautavam a luta

política. O clamor por liberdades democráticas crescia par e passo às mobilizações populares, mas havia

dúvidas em torno ao tipo de organização necessária na conjuntura.

A construção de um jornal que fosse capaz de promover a unidade na luta se tornava essencial.

O Brasil viveu um período imediatamente anterior em que vários jornais de esquerda tentavam fazer

frente, entre todos, inclusive com grandes tiragens, mas com uma militância dispersa e igualmente

diversa politicamente. Vacilando sobre o instrumento político para lutar pelo poder.

Um jornal que tenta-se unificar a ação política, que tenta-se unificar a luta pelo poder significava

* Militante da Consulta Popular

21

um verdadeiro esforço de organização. Era preciso capacitar politicamente a militância presente nas

lutas populares, nas lutas economicistas. Era preciso discernir a conjuntura para alem do ascenso da luta

de massas prometido pelas lutas economicistas. Os editores, poucos eram jornalistas, a maioria era

militante das lutas operárias e estudantis o que significava uma importante vantagem. Foi aparecendo a

figura do repórter popular.

Tudo era artesanal. Era preciso organizar as tarefas. Eram publicadas as situações encontradas

pelos operários nas fábricas, pelas donas de casa nos lares operários, nos bairros, nas escolas e por

estudantes nas universidades. Também se publicavam matérias que falavam do sonho da maioria: ver o

Brasil livre dos grilhões da ditadura militar. Uma ditadura que afundava o país na divida externa pelas

mãos de Delfim Neto, então ministro de planejamento do general João Batista Figueiredo, e pelas

telinhas da TV Globo como principal porta voz dos entreguistas e opressores.

Os brigadistas do jornal “Hora do Povo” aumentavam em número galvanizando o repudio

crescente que gerava a ditadura militar, se reuniam para ajudar a pautar o jornal, depois para discutir as

matérias publicadas em aquele mês. Se criavam círculos políticos, brigadas de oradores acudiam ás

fábricas, levavam o periódico ao lar dos operários nos bairros, nas associações de moradores, nas

igrejas, etc. Nas reuniões se discutiam as manchetes, as matérias. Se organizavam as brigadas, se

escolhiam os locais de agitação, se indignava e enchia com ódio de classe o coração dos brigadistas que

a cada jornada de distribuição, a viva voz, em cada brigada cresciam como militantes e se

transformavam em verdadeiros “tribunos populares”, revolucionários. A tal ponto chegou que os

militares tentando calar a voz dos tribunos perseguia, prendia e soltava hostilizando os brigadistas na

vão tentativa de intimida-los. As brigadas se agrupavam num local, agitavam e corriam a outro

esquivando a repressão, que quando conseguia chegar aos “pontos de encontro” confiscava os

exemplares e os destruía.

A ditadura militar tentou conter os brigadistas e calar o jornal mediante o terrorismo de suas

bandas clandestinas. Com bombas tentou fechar a redação. Intimidava os jornaleiros incendiando as

bancas que divulgavam o periódico, até finalmente prender três dos editores enquadrados na lei de

segurança nacional por denunciar o Congresso de Senadores Biônico (escolhidos pelos militares para

obter maioria no Congresso) e as contas secretas da elite brasileira de militares e civis enquistados no

poder. Era necessário a cada dia se multiplicar e resistir às agressões e continuar a travar uma verdadeira

batalha de ideias. Denunciar a política entreguista dos militares. Escrachar o caráter golpista do regime e

agitar as bandeiras da democracia. Por liberdades democráticas, eleições Diretas e uma Constituinte.

Pela unidade popular.

Assim procurando as ferramentas para entrar em novo combate buscou-se na experiência de

22

luta de tradição revolucionária, pois como diz o revolucionário português Alvaro Cunhal “A experiência é

uma das mais sólidas raízes da teoria e uma das mais sólidas bases da orientação correta de um partido... ” e realmente

o que se procurava com o jornal era organizar um partido para lutar pelo poder. Um partido diferente,

herdeiro da tradição marxista-leninista.

Buscávamos então na tradição leninista a partir de uma questão fundamental. A consciência de

classe como base para a consciência política. Na esquerda todos reconhecem que segundo Marx, a

consciência de classe é base para a consciência política. Entretanto, no final da década de 70, em pleno

auge das lutas sindicais nos deparávamos com o economicismo e é exatamente sobre esse fenômeno

que encontramos em Lênin uma das mais importantes contribuições à teoria revolucionária. Diz Lênin:

abandonada a consciência de classe a si mesma encalha na “ luta econômica”, isto é, a consciência de classe

limitar-se-ia à consciência “sindical”. Isso era uma grande preocupação entre os que construíam o

Jornal “Hora do Povo”. Lênin deixa claro que se os trabalhadores ficassem apenas na luta sindical

ficariam atolados no terreno do economicismo sem atingir a consciência política.

Sabíamos e sabemos que é preciso despertar a consciência política entre os operários, educa-los

e orientá-los para a luta num âmbito mais largo que aquele constituído na luta por salários e condições

de trabalho. Sabemos também que essa tarefa no cabe ao sindicalista. Cabe sim aos revolucionários,

pois o sindicalista pode optar por ficar apenas no terreno das lutas sindicais e ser apenas um burocrata

sindical. Assim quando a luta é contra o desemprego o burocrata fica paralisado e, até mesmo a luta por

salário é engavetada. É substituída por PLR ou banco de horas, planos de demissão voluntária,

flexibilização, etc. Busca enfim resolver as contradições como se fosse um diretor de RH. Mesmo

construindo um partido dentro da arquitetura eleitoral criada por Golbery de Couto e Silva, último

grande estratega da ditadura militar, a suspeita que pairava era sobre o caráter que os sindicalistas desse

partido poderiam imprimir às lutas políticas. Ora, como burocratas sindicais que logo se revelariam, a

suspeita recaiam nas possibilidades e concessões que ofereceriam à burguesia para serem aceitos como

possíveis condutores dos destinos do país. Enfim hoje mesmo sendo uma vantagem para o povo

brasileiro a correlação de forças alcançada fala por si.

O Chico de Oliveira pode ter razão então quando diz que no Brasil, por força da burocracia

sindical (pelegos na política), hoje “...o operariado não é revolucionário, é sócio do êxito capitalista...”.

O revolucionário deve ser precisamente um militante para alem do sindicalismo. Deve ser o catalisador

dessa relação economicista, primária e conciliadora para não permitir que o operário seja o “sócio do

êxito capitalista”. Deve contribuir para elevar a consciência política dos operários para que estes sejam

realmente revolucionários. Promovam as mudanças necessárias. Para que sejam os Coveiros do

capitalismo.

Por exemplo, diante do desemprego na época neoliberal a tarefa não era nem é buscar “formas”

23

de contornar o problema o abordando exatamente pela forma, como foi o caminho empreendido pelos

burocratas sindicais como um todo, e sim deveria ser pelo conteúdo, ou seja denunciando o

desenvolvimento da ciência e da tecnologia não como desenvolvimento das forças produtivas e sim

como médios para aumentar a exploração dos trabalhadores, a concentração do capital e a miséria e o

desemprego entre os trabalhadores. O avanço e as conquistas da ciência e da tecnologia, antes

provocam o medo do desemprego entre os trabalhadores.

É claro que o avanço da ciência e tecnologia pode propiciar o desenvolvimento das forças

produtivas, mas em função da propriedade privada dos meios de produção, tal avanço tecnológico,

sabemos, não é incorporado para usufruto dos trabalhadores, da sociedade, pelo contrário promove um

ambiente de flexibilização das conquistas trabalhistas que beneficiam exclusivamente a concentração do

capital. É também verdade que isso pode acender um estopim, desde que se avance ao terreno da luta

política. A burocracia sindical atolada no economicismo incapaz de politizar a luta dos operários passa a

servir de amortecedor das lutas operárias (por isso pelegos de novo tipo, não tão novo). Com dirigentes

assim, sem opor resistência alguma ao apetite da burguesia, a tecnologia é expropriada pelos capitalistas

e subtraída ao povo. Esse aspecto é revelador do verdadeiro retrocesso ideológico experimentado pelas

forças revolucionárias. Pois fomos incapazes de fazer frente ao capital e aos pelegos nas lutas sindicais,

porque fomos também igualmente incapazes de politizar as lutas operárias.

Mas quais as tarefas diante disso? Quais as ferramentas? Sabemos também que, pela

experiência dos revolucionários, na história de luta pelo socialismo, desde a comuna de Paris, uma das

ferramentas para enfrentar as ações políticas dos capitalistas foi “a informação”, por tanto sempre foi

uma batalha no terreno das ideias, uma batalha de informação e contrainformação. Foi par e passo ao

desenvolvimento de novos instrumentos para a “informação” ou de “informação” que as forças

revolucionárias retrocederam. Os revolucionários continuaram a tentar formas de organização, para

enfrentar o imperialismo, mas não pararam de retroceder. Voltemos então a procurar em Lênin.

Uma organização de agitadores

Sobre a importância da informação. Lênin superando a experiência social democrata dos

partidos da segunda internacional, observa a necessidade de uma concepção dialética de organização,

uma “organização de agitadores”. Agitadores capazes de se vincular às massas de trabalhadores e do

povo. Uma organização de novo tipo. Nessa perspectiva, entendia a agitação e propaganda em um

sentido amplo isto é “numa organização” especializada na agitação e na educação política.

24

Especializada em informação. A construção desta organização, assim entendida, tornou-se a tarefa

principal, a correia de transmissão, que continuamente podia ligar os revolucionários às massas. Foi o

que possibilitou aos bolcheviques, caminhar pouco a pouco a aumentar suas forças de modo a unir-se

na compreensão da política e na ação revolucionária.

Esta “organização especializada” vista assim desde o ponto de vista dialético deve abarcar duas

questões essenciais na batalha de ideias: “a revelação política” ou denuncia das injustiças e atropelos e, “a

palavra de ordem”.

A revelação política

Seguindo os passos de Lênin as revelações ou denuncias consistem em destrinchar, por entre os

sofismas com que ideias as classes dominantes escondem seus interesses, a natureza real de seus apetites

e o real fundamento de seu poder, para dar às massas uma visão clara, uma “ representação clara” (diz

Lênin)

... não é nos livros que o operário poderá descobrir essa clara representação; não a encontrará senão nasexposições vivas, nas revelações ainda quentes acerca do que ocorre em torno de nós, e que se manifesta por esteou aquele fato, por tais e tais algarismos, vereditos e outros. Essas revelações políticas, que abrangem todos osdomínios, constituem a condição necessária e fundamental para a formação das massas tendo em mira suaatividade revolucionária...

Isto quer dizer que o agitador ou propagandista revolucionário, diante de qualquer

acontecimento de interesse para a vida das massas, deve elevar-se da aparência à realidade e, encontrar

na luta de classes os fatos a serem esclarecidos, sem deixar os espíritos se desviar ou se afogar em

explicações superficiais e falsas. Ou seja, deve organizar a informação a ser agitada e os fatos a serem

divulgados. Um tribuno revolucionário educado no método leninista deve esforçar-se por unir a parte

ao todo, denunciando infatigavelmente todas as injustiças suscitadas pelo regime capitalista.

O mundo todo hoje já não confia nas mentiras que emanam das “agencias de noticias”, todas

controladas pelos capitalistas. É patética a defesa do liberalismo econômico e a defesa do Estado

mínimo depois que o mundo todo viu o governo norte americano correr para salvar os bancos

privados. Até as pessoas mais simples não conseguem deixar de se indignar ao ver com quanto cinismo

as agências de “noticias” fabricam guerras. Enfim a cada dia é mais visível o caudal de escândalos que

sofregamente a mídia tenta ocultar. Com tudo é a partir de fatos mínimos e muito objetivos que

devemos demonstrar que aquilo que é apresentado de forma confusa pelos jornais da burguesia tem

25

uma causa política que atende a interesses de classe concretos. Atende aos interesses de classe dos

banqueiros, empresários e toda sorte de parasitas. Vivemos um período extremamente rico para a

denuncia, para a agitação e propaganda política.

Sobre a palavra de ordem

A palavra de ordem tem a ver com o aspecto combativo e construtivo da propaganda. Palavra

de ordem é a tradução verbal de uma fase da tática política. A palavra de ordem pode adquirir a

condição de força motriz para a mobilização de massas. Expressa o objetivo político mais importante

da conjuntura. De ai a necessidade da precisão na analise de conjuntura. Entretanto se sabe que não se

pode sintetizar demasiado a tática sob pena de ficar imobilizado em uma palavra de ordem que as

circunstâncias podem esvaziar. Assim a tática tem a ver com outros aspectos alem da palavra de ordem,

esta apenas pode catalisar a complexidade da tática e lhe dar uma dinâmica mobilizadora ás massas.

Vejamos o exemplo das mobilizações de junho originada pelo “passe livre”.

O movimento desencadeado ficou na palavra de ordem sem tática política que lhe possibilitasse

continuidade, pelo contrário bandos de oportunistas tentaram despolitizar as manifestações. Já a tática,

que a plenária dos movimentos populares observa na conjuntura deixa clara á necessidade de agitar a

desconfiança do povo no Congresso Nacional e os limites da representação política. É preciso agitar a

necessidade da consulta popular para uma reforma constitucional exclusiva e levantar a palavra de

ordem “por uma constituinte exclusiva”. E na atividade de propaganda demonstrar não apenas o limite

já percebido da democracia representativa e sim as possibilidades da democracia participativa. Mostrar

que existem outras possibilidades de organizar a sociedade. Isto tem o potencial de catalisar o clima

político que se sente no país.

A palavra de ordem deve condensar uma linha política conjuntural, ela deve ser precisa,

objetiva: Segundo Lênin “Toda palavra de ordem deve deduzir-se da soma das particularidades de

determinada situação política”. As palavras de ordem marcam momentos sucessivos que podem obrigar

outras forças políticas a tomarem posição a favor ou contra a mobilização, visando objetivos concretos

e possíveis para as massas.

Podemos lembrar o caso da luta “Contra a ALCA” em 2001. A luta por um plebiscito popular

ganhou várias organizações e, consequentemente as ruas, numa conjuntura de desgaste da política

neoliberal em curso no Brasil e na America latina. Uma conjuntura marcada pelo plebiscito contra a

dívida externa e as privatizações. Mesmo numa conjuntura de descenso das lutas de massas no Brasil, a

26

história mostra que uma linha política clara e objetiva foi capaz de energizar as possibilidades de

agitação e propaganda com palavra de ordem clara e reveladora para “um certo nível” de consciência

das massas. Possibilitou desencadear uma ofensiva em toda America latina com o avanço das forças

populares em vários países do Cone Sul.

As palavras de ordem que correspondem às agudas necessidades de uma época, quando

ganham as massas, podem levar a conjuntura a explodir. “O que não foi feito em séculos pode ocorrer

em semanas”. Criam-se milhares de ferramentas e instrumentos libertários. Na sociedade passamos a

observar a proliferação de canais por onde circulam as ideias. Segundo um político da época de Lênin

Era impressionante a pobreza de meios de que dispunha a agitação bolchevista. Como, comtão débil aparelho e diante do número insignificante da tiragem dos jornais, puderam impor-se ao povo as idéias e as palavras de ordem do bolchevismo? É bem simples o segredo desseenigma: as palavras de ordem que correspondem às agudas necessidades de uma classe e deuma época, criam milhares de canais. O meio revolucionário, tornado incandescente,distingue-se por alta condutibilidade de ideias.

O importante no entanto é que a experiência revolucionária nos mostra que para difundir

“revelações” e “palavras de ordem” é necessário distinguir dois tipos de ativistas e militantes, os

propagandistas e os agitadores. Plekhanov distingue estes dois tipo de militantes:

O propagandista procura inculcar muitas ideias em uma só pessoa ou em pequeno númerode indivíduos; o agitador não inculca mais que uma única ideia ou pequeno número deideias; em compensação, ele as inculca em numerosos grupos de pessoas.

Ao comentar essa definição, diz Lênin, que o agitador, partindo de uma injustiça concreta,

provocada pela contradição do regime capitalista, pode “...suscitar o descontentamento, a indignação

das massas contra essa gritante injustiça, deixando ao propagandista o cuidado de dar completa

explicação dessa contradição. Daí por que o propagandista age sobretudo pela escrita e, o agitador, de

viva voz”. Entretanto isto é apenas uma distinção prática. De modo algum deve ser uma distinção

teórica. Essa é uma questão na qual Lênin insistiu de modo a deixar bem claro:

... não se trata apenas de agitar e catequizar a classe operária, como em geral se contentamem fazê-lo os sociais-democratas, é preciso ‘ir a todas as classes da população comopropagandistas, como agitadores e como organizadores ’. Cumpre praticar denúncias, fazerrevelações políticas vivas que interessem ao povo inteiro: operários, camponeses, pequenosburgueses. E, para lográ-lo, ‘é necessário que tenhamos nossos homens’, sempre e por toda a parte,em todas as camadas sociais, em todas as posições que permitam conhecer as molasinteriores do mecanismo do nosso Estado.

27

Entretanto Lênin nos alerta que, mesmo construindo uma organização de agitadores ou

tribunos populares ou um exército de propagandistas e de agitadores, estes são insuficientes para lograr

a vitória se a ação deixar de apoiar-se numa linha política justa e em realizações práticas. Sem fatos

concretos em que se enxergue a possibilidade de mudança qualquer propaganda não passa de uma

verborragia criadora de perigosas ilusões que enterram a tática e desmoralizam o revolucionário. A

propaganda, deve ser autenticada por atos, e isso é fundamental para a massa dos que por longa

experiência manifestam dúvidas em relação aos partidos e programas políticos.

28

Da base ao topo: debates sobre a atual estrutura de classes no Brasil

Caio Santiago e Jonnas Vasconcelos*

Introdução

Nos últimos dois anos foram publicadas importantes obras de pensadores da esquerda sobre

classes sociais no Brasil. Obras que indicam tanto conflitos e diferenças entre frações no interior da

mesma classe social, quanto mudanças na estrutura de classes como um todo. Contradições que podem

provocar saltos na luta política - como vimos nas recentes mobilizações em Junho deste ano -, que não

podem ser compreendidos sem ter em vista as mudanças em curso na estrutura das classes sociais no

país.

Sobre esse tema, o Núcleo Luiz Gama, que leva o nome do negro advogado dos escravos no

Séc. XIX, organizou três encontros para debater as seguintes obras: “Os sentidos do Lulismo”, de

André Singer; “Nova classe média?”, de Marcio Pochmann; e “Governos Lula: a nova burguesia

nacional no poder”, de Armando Boito Jr. A partir do debates nesses encontros, esse texto busca

indicar alguns elementos importantes de cada obra e as possíveis relações destes com as resoluções e

ação política da Consulta Popular.

Lulismo: representação política do subproletariado

André Singer, ex-porta-voz da Presidência da República e professor de ciência política da USP,

foi um dos primeiros autores a trabalhar a idéia de Lulismo. Seu ponto de partida é que a classe

trabalhadora no Brasil é vasta e heterogênea, cindida em diversas frações. Nesse sentido, o

“subproletariado” constitui sua fração majoritária, em torno de 63% da classe trabalhadora segundo

dados da década de 1980.

A singularidade da classe trabalhadora no Brasil, como herança da escravidão, está no peso

numérico da fração do subproletariado. É caracterizado como os trabalhadores “sem possibilidade de

venda da sua força de trabalho por preço que assegure sua reprodução em condições normais”, cujo

recorte seria a ausência de assinatura da carteira de trabalho, que confere alguma estabilidade e

proteção. Então, pela sua condição social, o subproletariado teria aversão ao conflito social, por temor

* Militantes do núcleo Luiz Gama

29

da instabilidade. Em outras palavras, essa parcela da classe trabalhadora não teria condições objetivas de

participar de processos de luta social, e de se auto-organizar. Ao mesmo tempo em que busca a redução

de desigualdade e distribuição de renda, teria aversão ao conflito social por medo à instabilidade,

aspecto conservador ressaltado pelo Singer.

A esquerda historicamente teve dificuldades de lidar com o subproletariado. Ao analisar as

eleições de 1989, Singer aponta que o PT venceu em todos os estratos sociais, exceto o de renda familiar

mensal até 2 salários mínimos1. Como essa é a fração de classe mais numerosa da sociedade, foi o suficiente

para a derrota eleitoral. Em outras palavras, o Programa Democrático-Popular foi derrotado nas urnas

justamente pelos mais pobres, enquanto que a direita ganhou essa parcela dos trabalhadores com o

discurso do medo de instabilidade.

A vitória eleitoral em 2002 ainda repete o padrão da eleição de 1989: os votos do PT

continuaram concentrados nas camadas médias da população, apesar de terem crescido também entre

os mais pobres, fruto de uma lenta inserção do PT, ao longo da década de 1990, nas periferias das

grandes cidades.

Após a vitória eleitoral em 2002, com políticas sociais (“via Estado/pelo alto”) voltadas para o

subproletariado – como bolsa família, geração de empregos, crédito consignado e valorização do salário

mínimo – essa parcela da classe trabalhadora desloca-se e adere em bloco ao PT. Segundo Singer, é a

primeira vez na história que ocorre um descolamento, talvez parcial, entre os mais pobres e a direita. Ao

mesmo tempo, com a “crise do mensalão” e sua dimensão ética, a base eleitoral anterior do PT, a classe

média tradicional, teria se afastado. Dessa forma, cristalizou-se entre 2004 e 2005 um realinhamento

eleitoral que predominou nas últimas eleições: os mais pobres votaram em bloco no PT, enquanto que a

classe média tradicional passou a rejeitá-lo2.

O lulismo, que emerge no contexto do realinhamento eleitoral, pode ser definido como a

representação política do subproletariado por meio do Estado, com um líder que se comunica

diretamente com essa parcela dos trabalhadores. O projeto do lulismo seria o “reformismo fraco”: a

redução da pobreza sem confronto com capital.

Assim, os dez anos dos governos Lula/Dilma têm como marco a redução significativa da

1 Lula teve 41% das intenções de voto nessa faixa de renda, enquanto Collor teve 51%. Entre 2 e 5 S.M., Lula vencecom 49%, contra 43% de Collor; o que se repete na faixa entre 5 a 10 S.M. (51%/40%, respectivamente) e mais de 10S.M. (52%/40%); SINGER, André. Os sentidos do lulismo. pp. 224.

2 Nas eleições de 2006, Lula vence todos os outros candidatos somados apenas na faixa de renda familiar mensal até 2S.M., com 55% das intenções de voto, e perde nas faixas de renda acima de 2 S.M. (pp. 55). Em 2010, o mesmo repete-se com Dilma, que vence apenas na faixa de renda familiar mensal até 2 S.M. também, com 53% das intenções de voto,consolidando a “sobrevivência do lulismo sem Lula” (pp. 171).

30

desigualdade social, medida tanto pelo índice Gini (que reduziu de 0,58 em 2002 para 0,53 em 2010) 3,

quanto pela crescente participação do trabalho no PIB (que passou de 31,4% em 2002 para 35,1% em

2009) em detrimento da renda/especulação. Considerando esses e outros indicadores sociais, são

mudanças nada desprezíveis num dos países mais desiguais no mundo.

Ao mesmo tempo, tais mudanças ocorrem muito lentamente e sem qualquer processo de

mobilização, o que faz parecer que nada está mudando. O caráter anti-mobilizador e lento do lulismo

seria seu aspecto conservador, o que pode comprometer suas conquistas sociais em momentos de crise.

Na linguagem da Consulta Popular, que difunde o mote “só a luta muda a vida”, o lulismo teria

provado justamente o contrário: é possível mudança sem luta, sem conflito social.

Por fim, e talvez o mais importante, o lulismo tem um sentido contraditório e ambíguo,

inclusive de se esgotar em si mesmo. Ao mesmo tempo em que emerge de uma estrutura social

profundamente desigual, com predomínio numérico do subproletarido, as políticas sociais nos últimos

anos provocaram mudanças na estrutura de classes, com a geração de milhões de empregos com

carteira assinada, que implicaram na redução numérica do próprio “subproletariado”. Com isso, cada

vez mais trabalhadores teriam condições objetivas de ingressarem na luta social e se organizarem. Dessa

forma, a sociedade estaria caminhando cada vez mais para o acirramento do conflito entre as classes,

para uma radicalização social estimulada pelo lulismo, mas para o qual não necessariamente o lulismo (e

a esquerda) estaria preparado.

Nova classe média ou novo proletariado?

Os dados apresentados pelo Professor de Economia da UNICAMP, Márcio Pochmann, em sua

obra “Nova Classe Média?”, apontam para o retorno da mobilidade na estrutura social brasileira a partir

do Governo Lula. Diferentemente das décadas de 80 e 90, o conjunto das políticas econômicas voltadas

ao fomento do mercado interno e das políticas sociais a partir dos anos 2000 resultou no crescimento

do emprego e no aumento do peso do trabalho na renda nacional.

3 SINGER, André. Os sentidos do lulismo. pp. 231. O Índice Gini varia entre 0 e 1, sendo que quanto mais perto de 1,maior a desigualdade, e quanto mais perto de 0, menor a desigualdade.

31

Para as análises que utilizam critérios típicos das pesquisas de mercado4, este ciclo de mobilidade

social tem sido interpretado como a ascensão de uma “nova classe média”. Contra esta perspectiva

sociológica e política, a pesquisa de Marcio Pochmann analisa a ascensão social a partir do seu vínculo

com o mundo do trabalho. Nessa toada, não haveria de se falar em ascensão de uma nova classe média,

mas sim de um novo proletariado. Vejamos.

Nos anos 2000 foram gerados, aproximadamente, 22 milhões de empregos formais, que, em

números absolutos, representa a década da maior geração de empregos da história do Brasil. Destes,

por sua vez, 94% foram para atividades cuja remuneração mensal não ultrapassa o montante de 1,5

salário mínimo. Ainda, cerca de 70% desses empregos se concentram no setor terciário da economia,

englobando, por isso, atividades como construção civil, transportes, trabalho doméstico, temporários e

terceirizados etc.

Essa incorporação no mercado de trabalho se deu em setores e atividades que em muito se

diferenciam daquelas comumente compreendidas como de “classe média”. Trata-se, por exemplo, de

ocupações que não possuem correspondência necessária com a qualificação educacional do empregado.

4Essa metodologia, grosso modo, conjuga três variáveis: a) renda nominal (em 2008, por exemplo, quem recebia entreR$ 1.115,00 e R$ 4.807,00 era enquadrado no bloco da classe média); b)bens consumidos (carros, TVs, celulares, porexemplo); e c) pesquisas de opinião. Cf. NERI, Marcelo Cortes. A nova classe média. Rio de Janeiro: FGV, 2008.Utilizando esses critérios, pesquisas financiadas e/ou realizadas pelo Banco Mundial argumentam que as políticasliberais (!) dos anos 80/90 teriam sido as responsáveis pela ascensão de uma nova classe média no mundo,especialmente nos países em desenvolvimento. Ver, por exemplo: BANK, World. Global Economic Prospects 2007:managing the net wave of globalization. Washington, 2007. Vide também: SOUZA, Amaury; LAMOUNIER, Bolívar. AClasse Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade. Rio de Janeiro: Elsevier; Brasília: CNI, 2010.

32

Em uma ilustração: ao contrário do advogado, para o motorista de ônibus não há ascensão profissional

devido à realização de um curso de pós-graduação.

Como se pode depreender dos dados dessa pesquisa, faz mais sentido falar em uma entrada

maciça de novos trabalhadores na base da pirâmide social, uma nova fração da classe trabalhadora, do

que de uma nova classe média.

Em verdade, ao analisarmos a variação da renda, observamos que, nesse ciclo de mobilidade

social, foram justamente as ocupações com rendimento superior a 5 salários mínimos que sofreram

reduções (média de 3,3% ao ano), conforme ilustra gráfico abaixo. Ou seja, foi justamente a classe

média tradicional quem mais perdeu na década de 2000!

Por um lado, esta variação negativa nas ocupações de maiores rendimentos pode ajudar, ainda

que parcialmente, a explicar o descontentamento político de camadas médias frente aos governos

Lula/Dilma na última década. Isso porque, deste ponto de vista, há uma relativa piora da sua posição na

pirâmide social: os mais ricos se afastaram, já que se tornaram mais ricos graças às políticas econômicas,

e os mais pobres se aproximaram, já que ingressaram em esferas do mercado (de trabalho e de

consumo) antes cativas. Tal relação pode ser sentida na vivência dantesca da mobilidade urbana em

grandes cidades: aumentou tanto a frota de helicópteros e jatos particulares, quanto à de carros

populares e vôos comerciais.

33

Por outro lado, importa problematizar os significados da simbologia “nova classe média” na

base da pirâmide social. Sendo verdade que o termo comporta um aspecto conservador de negação à

subjetividade de classe trabalhadora, não deixa também de ser verdade que comporta um aspecto

progressista ao representar uma ascensão social. A junção do caráter progressista e da ofensiva

ideológica burguesa pode, assim, ajudar a compreender os resultados da ilustrativa pesquisa de opinião

abaixo, na qual apenas 19% dos entrevistados identificam-se espontaneamente como “classe

trabalhadora”, enquanto que a maioria se compreende como pertencente ao universo da classe média.

A chave para a disputa (ressignificação) da identidade de classe média junto a esses novos

trabalhadores está, por sua vez, na política. Para tanto, fundamental analisar em que espaços

organizativos, de vivência comum (e, por isso, política), esse novo proletariado participa. Nesse sentido,

alarmante o seguinte dado da pesquisa de Pochmann: a taxa de sindicalização desses novos

trabalhadores é muito baixa, sendo de apenas 18% (nos anos 80, a taxa correspondente foi de 35%).

Além disso, do ponto de vista das políticas sociais, lembramos que o PROUNI foi responsável pela

inclusão de aproximadamente 1 milhão de pessoas no ensino universitário, sendo que muitos deles

fazem parte desse universo de novos trabalhadores. Tudo indica que a participação nesse ambiente

universitário não implicou em crescimento do movimento estudantil.

34

Decerto, esmiuçar esses elementos nos auxiliará a desenvolver uma linha política mais acertada

para essa fração social em ascenso, como para as frações em descenso (os setores médios).

O topo: a Frente Neodesenvolvimentista e a Frente Neoliberal

Tão fundamental quanto destrinchar o universo da classe trabalhadora consiste em

compreender a dinâmica da grande burguesia brasileira. Nesta chave, insere-se o estudo “Governos

Lula: a nova burguesia nacional no poder”, do Professor de Ciência Política da Unicamp Armando

Boito Jr., no qual analisa a relação entre as diversas frações de classe e o poder político: o bloco no

poder.

Para Boito, a “Era Lula” é caracterizada pela melhora da posição relativa da Grande Burguesia

Interna (GBI) no interior do bloco no poder, impulsionando uma política econômica que pode ser

caracterizada como neodesenvolvimentista. O prefixo “neo” expressa três importantes diferenças em face

do ciclo de desenvolvimento do século passado (1930-1980), são elas: (i) a prevalência de índices mais

modestos de crescimento; (ii) a adequação às tendências de especialização regressiva da economia,

concentrando investimentos em setores de baixa densidade industrial e tecnológica (não à toa a política

de formação dos “campeões nacionais” está concentrada em setores de alimentos, construção civil,

minérios etc.); e (iii) a maior relevância ao mercado externo, como revelam os incentivos à

internacionalização das empresas brasileiras. Assim, essa política econômica representaria tanto os

interesses da GBI, quanto a adequação parcial desta com interesses das frações burguesas mais

acopladas ao circuito do capital financeiro internacional (frações que na “Era FHC” teriam exercido

hegemonia no interior do bloco no poder).

Importa esclarecer que a GBI deve ser entendida como uma fração do grande capital que possui

relativas contradições com os interesses do capital financeiro internacional, mas não a ponto de poder

ser caracterizada como uma espécie de “burguesia nacional” antagônica ao imperialismo, tal como foi

idealizada por boa parte da esquerda no séc. XX. Este conceito abrange basicamente a grande indústria

nacional, o agronegócio e os bancos nacionais. Trata-se de frações da burguesia que sofreram perdas

com as políticas econômicas ao longo dos anos FHC, fundadas no tripé neoliberal (juros altos, câmbio

flutuante e superávit primário) e na abertura comercial do mercado brasileiro ao capital internacional.

Estas perdas, por sua vez, ajudariam a explicar o complexo processo de alinhamento político

entre este setor social (mediada pelas suas organizações, como a FIESP, CNI etc.) com outro

igualmente prejudicado no período: o movimento sindical e popular. Este alinhamento de interesses em

35

torno do crescimento econômico e da proteção estatal perante o capital financeiro internacional,

conformou o que Boito chama de Frente Neodesenvolvimentista que se contrapõe à Frente Neoliberal5.

Contraposição que, em nível eleitoral, é expressa na oposição entre PT e PSDB.

Nesse sentido, a Frente Neodesenvolvimentista deve ser entendida como um alinhamento de

interesses entre frações da GBI e frações da classe trabalhadora em contraposição aos interesses das

frações burguesas mais intimamente acopladas ao regime de acumulação do capital financeiro

internacional. Os governos Lula/Dilma são expressão política dessa Frente, buscando implantar

justamente a política econômica de interesse dessa GBI. Política que, por certo, é constantemente

constrangida pelas pressões (desiguais) dos demais setores sociais, inclusive da classe trabalhadora.

Portanto, diferentemente da tese do André Singer que vê o Governo Lula como um “governo

de arbitragem”, supostamente acima das classes sociais e ao livre arbítrio das pressões sociais, Boito

caracteriza-o como um governo da Grande Burguesia Interna. Isso significa dizer que as ações do

governo atendem prioritariamente aos interesses dessa fração da burguesia, que passa a exercer

hegemonia no bloco no poder. Este é o sentido que norteia as políticas do governo de incentivo ao

mercado interno por meio de medidas protecionistas6, de financiamento público7, de internalização

tecnológica8, de desonerações fiscais9 etc.

Decerto, a GBI é um bloco que também possui contradições em seu seio e dentro da Frente. Em seu

seio, Boito exemplifica essas contradições apontando a “política de juros” opondo os interesses do

setor produtivo ao do sistema bancário nacional, a “política do comércio exterior” opondo os interesses

do agronegócio aos da grande indústria, e, ainda, as oposições entre os interesses privatistas e

estatizantes. Dentro da Frente, destaca a política de gastos públicos e a questão agrária opondo os

interesses do movimento operário e popular aos da GBI. O conjunto destas contradições ajuda a

iluminar a instabilidade no interior da própria Frente.

O exposto corrobora com as formulações da Consulta Popular acerca da nossa postura em face

5 Como alerta, o termo “Frente” conceitua uma relação dinâmica, fluída e relativamente informal, expressando maisuma confluência de interesses de frações sociais do que uma “aliança” em torno de um programa mínimo comum.

6 Por exemplo: as regras de “conteúdo local” no setor Petróleo e Gás (Resolução nº33 da ANP) e as margens depreferências em licitações públicas (Lei 12.349/10).

7 Papel largamente exercido pelo BNDES que, de banco financiador das privatizações, tornou-se, no Governo Lula, osegundo maior banco desenvolvimento do mundo, superior ao BID e ao Banco Mundial.

8Nesta chave estão os instrumentos da política de fomento à inovação tecnológica, eixo do Plano Brasil Maior, quedirecionam recursos públicos e privados para as empresas investirem em P&DI. Como exemplo: FINEP, Fundos deVentury Capitale Seed Capital, Inovar-Auto etc.

9Como exemplos de medias fiscais, temos as recentes desonerações dos produtos da chamada “linha branca” e da folhade pagamentos.

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da disputa entre as Frentes, disputa que hegemoniza a política brasileira do último período. Assim, dada

essa hegemonia, integrar de maneira independente a Frente Neodesenvolvimentista tem sido a solução tática

mais adequada para acumularmos forças. Acumular forças é uma necessidade para alterar o marco da

disputa na sociedade brasileira, substituindo a atual polarização entre as frentes hegemonizadas pela

grande burguesia por uma polarização real em face do que chamamos de Projeto Popular para o Brasil.

Conclusão

A título de síntese, é possível indicar pelo menos três movimentos na estrutura de classes no

Brasil: a) a incorporação gradativa do “subproletariado” ao proletariado, com a formação de uma nova

classe trabalhadora a partir da geração de empregos formais, de baixa-renumeração, precários e com

alta-rotatividade; b) o declínio econômico e perda de status social da classe média tradicional, quem mais

perdeu na última década, tornando-a mais suscetível ao discurso de “oposição ao governo”; c) a divisão

no interior da grande burguesia em relação à política econômica (questões como taxa de juros, superávit

primário, gasto público, câmbio, entre outras), permitindo a confluência transitória de interesses entre a

grande burguesia interna e a classe trabalhadora.

Não temos dúvidas de que quanto melhor identificarmos as contradições entre as distintas

frações de classes, melhor acertaremos na linha política para acumular forças para o Projeto

Popular. Assim, resgatando o sentido mais profundo da máxima leninista de “ir a todas as classes”,

esperamos ter apresentado análises e conceitos que possa auxiliar no aprofundamento da tática da

Consulta Popular.

Essa diversidade de interesses e de contradições tem movido a luta política nos últimos anos,

incluindo eleições, “crise do mensalão” e mobilizações de Junho, entre outros. Portanto, antes de ser

uma questão teórica, estamos em face de um desafio político-organizativo para a construção da

Revolução Brasileira.

Com isso, a nossa conclusão se torna, em verdade, um convite ao debate e às formulações.

37

Juventude e Periferia

Bárbara Pontes* e Juliane Furno**

A juventude da Consulta Popular tem se esforçado para construir o trabalho de base tanto no

meio estudantil quanto no meio popular, apontando o Levante Popular da Juventude enquanto o

instrumento para organização dos jovens destes setores. No estado de São Paulo já tínhamos algumas

iniciativas organizativas em torno do movimento estudantil antes mesmo da nacionalização do

Levante. Porém, em relação ao movimento popular as iniciativas eram muito tímidas. É a partir do

Acampamento Nacional do Levante que o trabalho de base no meio popular toma mais consistência.

Escrevemos este texto na tentativa de sistematizar e levantar reflexões a cerca das nossas primeiras

experiências no Estado de inserção nas periferias a partir da juventude.

Faz-se importante salientar que o trabalho popular urbano tem uma complexidade com relação

ao seu sujeito, podendo ser o estudante secundarista que tem sua ação prioritária no território, jovens

mobilizados por pautas como agitação e propaganda, cultura, agroecologia, assim como jovens

provenientes das periferias das cidades.

Nosso texto, portanto, reflete o trabalho popular urbano a partir de um recorte que é a atuação

nas periferias, sendo esse um dos pilares do trabalho popular urbano, porém não o seu único.

Por que é tão importante organizar a juventude hoje?

A) A juventude de hoje nasceu na década de 90 e, portanto, não vivenciou o ascenso das lutas de

massa do período anterior. Cresceu no auge do neoliberalismo. Não tem referência na mobilização de

massas e nas lutas enquanto possibilidade de mudança da realidade. Por outro lado, por não ter

vivenciado o momento anterior, também não traz os vícios desse processo.

B) A juventude possui disposição para a luta. São inúmeros os exemplos de processos revolucionários

que tiveram a participação da juventude. Por estarem em um período de transição da vida, onde há

ainda muitas coisas por definir, os jovens possuem melhores condições objetivas para se inserirem na

luta (não é arrimo de família, não possui filhos, pais idosos para cuidar, etc).

* Militante do núcleo Rosa Sundermann** Militante do núcleo Ruy Mauro Marini

38

C) A juventude possui seus problemas específicos. Em momentos de crise, as maiores taxas de

desemprego se dão nesta parcela da sociedade, há o problema da gravidez precoce, falta de espaços de

lazer e incentivo a cultura, violência policial, dentre outros.

D) A partir do trabalho com a juventude chegamos a vários outros setores sociais. Os jovens se

inserem em vários espaços, como no mundo do trabalho, universidades públicas e particulares, grupos

culturais, etc. Ao organizarmos os jovens, teremos acesso a esses espaços.

Por que fazermos trabalho no meio popular urbano, ou seja, nas periferias das cidades?

A) Primeiramente por que é necessário para a construção da Revolução Brasileira chegar até as massas

de trabalhadores e pobres das cidades. O Levante Popular da Juventude tem uma intencionalidade

com o trabalho popular, nós não o fazemos somente pela justeza de se trabalhar com os excluídos da

sociedade, com os pobres que estão marginalizados nas periferias. Por isso também, porém

acreditamos no trabalho do meio popular urbano por que lá encontram-se os sujeitos dinâmicos da

sociedade, se é sabido para nós que o sujeito da revolução socialista é o proletariado, por seu caráter

global e sua inserção da produção econômica, também devemos ter presente que a conjuntura ao se

transformar- prioritariamente nos momentos de crise do capitalismo- recai sobre os trabalhadores

pobres, trabalhadores informais e desempregados. Por tanto, no meio popular urbano estão os sujeitos

que tem mais condições de dar dinamicidade a conjuntura, posto que são eles os mais sensíveis as

transformações sociais, políticas e econômicas, e tem mais facilidade de movimentar-se por pautas não

estritamente econômicas e corporativas.

B) Por que a esquerda política brasileira, principalmente a caracterizada nos partido políticos, pouco

ou nada tem feito no que tange ao trabalho nas periferias. Desde o esgotamento do PT enquanto uma

alternativa de transformação social, nenhum outro partido político no Brasil dedicou-se a essa tarefa, e

consequentemente, nenhum outro teve a força e apoio social nas massas. O que tem ficado visível é

que as únicas organizações sociais que chegam até as periferias são as igrejas, os grupos culturais, as

associações de moradores e grupos locais. Ou seja, em termos de projeto político para além da

comunidade pouco se tem feito. O desafio que parece estar colocado para o Levante Popular da

Juventude, é o de uma organização nacional que tem experenciado e acumulado força em trabalhos

nas periferias. Com isso, trabalhamos na perspectiva do trabalho popular, territorializado e local, sem

perder de vista a construção de um projeto de sociedade que é nacional, e que envolve outros sujeitos

também que não só os da periferia.

39

C) Por último, nos dedicamos ao trabalho popular por que ele nos força a estar mais presente na

realidade do povo brasileiro. Esse elemento é importante, pois uma vez que a maioria de nós-

atualmente- é estudante universitário, advindo das classes médias, nossa tendência é olhar o mundo

com outros olhos, pois “a cabeça pensa onde os pés pisam” como diria Paulo Freire. Nesse sentido,

estar vivendo a vida das pessoas nas periferias nos abre diferentes percepções sobre a sociedade, e

passamos a entender as contradições sociais a partir de outra perspectiva. É fazendo trabalho popular

que identificamos, de fato, os mais latentes problemas sociais, como transporte, esgoto, infra estrutura,

saúde, violência, drogas...

Em que acumula para a Consulta e o Projeto Popular a atuação na periferia enquanto

Levante?

A) É muito importante para a estratégia da Consulta Popular a construção do movimento sindical,

principalmente nos setores estratégicos (metalúrgico, químico, construção civil, energia, etc). Nossa

militância ainda está no processo de convencimento da importância desta atuação. O avanço do

convencimento faz com que aos poucos vamos nos inserindo no mundo do trabalho e do movimento

sindical. No entanto, em virtude da formação acadêmica, ao adentrar no mundo do trabalho, em geral

nossa militância se insere no funcionalismo público, nas profissões liberais (jornalistas, advogados,

professores, etc), o que dificulta nossa capacidade de organização dos operários das fábricas. Somado

a este ponto, a reestruturação produtiva da década de 90 afetou profundamente a capacidade de

organização dos trabalhadores no local de trabalho. Neste sentido, a atuação no território possibilita

acessarmos os trabalhadores, principalmente dos setores mais precarizados e estratégicos, que, em sua

grande maioria, moram nos bairros populares das cidades. A juventude trabalhadora, ainda que com

dificuldades e tempo limitado (trabalha, estuda, namora, etc), possui maior disposição para luta do que

os adultos, que possuem maiores responsabilidades, filhos, família para criar, casa para manter, etc).

Ao atuarmos na periferia temos que estar atentos aos jovens trabalhadores, principalmente dos setores

estratégicos e estudantes de cursos técnicos e pensarmos em métodos para inseri-los no Levante, e,

com o amadurecimento destes, inseri-los na Consulta Popular.

B) Olhando para o interior do estado de São Paulo, percebemos que em geral a Consulta se constrói a

partir de estudantes de Universidades Públicas. É muito importante construirmos força própria nas

Universidades, pois se trata de uma instituição de poder que deve ser disputada e, além disso, um

espaço propício para a formação de militantes. Porém, é comum os estudantes do interior serem de

40

outras cidades. Assim, quando o curso acaba, se mudam de cidade para se aproximar da família ou

buscar melhores oportunidades de trabalho. Nesse processo, a consolidação da Consulta Popular no

interior paulista passa por grandes dificuldades, com os núcleos se reformulando a todo momento ou

até mesmo se dissolvendo. O trabalho de base na periferia possibilita aproximarmos do nosso campo

militantes que nasceram nas cidades, que construíram seus laços familiares e sociais nelas e que

dificilmente se mudarão. A organização desses militantes no partido ou no Levante contribui para

consolidação dos núcleos e força própria do Projeto Popular.

C) Se tivermos clareza dos nossos objetivos com o trabalho de base nas periferias, veremos que não

será em qualquer bairro que atuaremos. Temos que olhar para os diversos bairros e observarmos

aqueles que possuem melhores condições para atingirmos nossos objetivos. Por exemplo, nas regiões

mais precarizadas é comum os trabalhadores serem do setor informal ou desempregados. Se o nosso

objetivo for identificar e organizar a juventude operária, bairros com maior taxa de assalariados será

uma melhor opção. Devemos identificar os bairros que possuem forças políticas e sociais que melhor

favorecem a nossa atuação (pastorais sociais, associações de bairro progressistas, menor presença do

tráfico, menor presença de forças políticas de direita, etc). No atual estágio de desenvolvimento do

Levante no Estado, talvez não seja possível analisarmos profundamente a conjuntura dos espaços em

que pretendemos consolidar as células. Nesse estágio de desenvolvimento do Levante é natural

iniciarmos a atuação na periferia a partir da primeira porta que se abrir. Mas é importante nos

esforçarmos para elencar nossos objetivos e analisar a conjuntura dos espaços. Vale ressaltar que o

mapeamento dos bairros se dá através do estudo e da vivência.

Como atuarmos na periferia?

A) Num primeiro momento é bom buscarmos grupos de jovens já organizados, mas não em partidos

políticos ou no tráfico. É comum os jovens se organizarem em grupos culturais (teatro, bandas, hip

hop), grupos em igrejas, torcidas organizadas, etc. Além de buscarmos os grupos já organizados, é

importante nos aproximarmos dos espaços de reunião/socialização de jovens tais como praças,

campinhos de futebol, centros de juventude, escolas. A aproximação se dá principalmente a partir da

convivência, por freqüentar os espaços e participar das atividades onde os grupos de jovens estejam.

Mapear os grupos de jovens organizados e os espaços é um bom começo para nossa atuação.

B) Dos grupos de jovens organizados, o movimento Hip Hop merece destaque. Os jovens

identificados com o Hip Hop trazem consigo a idéia de resistência, de luta e uma leitura crítica da

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realidade do povo dos centros urbanos. O Hip Hop é a mística da juventude da periferia. O

movimento não tem organicidade, se identificam como movimento Hip Hop todos aqueles que

curtem rap, grafite, break, skate, literatura marginal. Ainda, os grupos que se identificam com o Hip

Hop possuem identidade para além do seu local de moradia. Por exemplo, grupos de rap de São

Carlos conhecem e se relacionam com grupos de rap de outras cidades e estados. Existem articulações

mais amplas como, por exemplo, a Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop. Ou seja, a aproximação

destes jovens em um local específico nos possibilita acessarmos a juventude da periferia de outras

cidades.

C) Quando não temos inserção no bairro, é fundamental sermos humildes, criarmos laços de

confiança, conquistar legitimidade e mapear as forças políticas e sociais presentes antes de sairmos

tocando as nossas pautas, organizando as nossas lutas e expondo o Levante. Nesse momento de

“conhecer o terreno”, atividades envolvendo cultura, esporte e lazer nos ajudam a criar laços e

conhecer o território, garantindo a nossa segurança. Aliás, são atividades de cativação que coincidem

com o método de trabalho de base do Levante. O Levante pode organizar um campeonato de futebol,

um sarau da periferia, uma apresentação teatral, etc. Além de propor atividades, ajudar a construir

aquelas já existentes, a partir do exemplo pedagógico, também contribui para atingirmos os mesmos

objetivos.

D) Ao longo da nossa construção, no Rio Grande do Sul, fomos acumulando em um método próprio

de construção do trabalho de base, o que não quer dizer que é uma receita, são apenas alguns passos

que podem auxiliar no nosso planejamento no trabalho popular. Segue abaixo:

1) Cativação: Precisamos cativar os jovens, mediante a nossa agitação e propaganda, oficinas, bateria,

nossas bandeiras de luta, nosso método de trabalho com a juventude, nossos valores, nosso projeto.

2) Acompanhamento: feito isso, é necessário, para não perdemos essa motivação inicial, acompanhar

esse jovem. Precisamos estar em contato semanal com ele, convidá-lo para as atividades. Além desse

acompanhamento mais político, precisamos nos aproximar desse jovem, ganhar a confiança dele. Isso

implica falar com ele sobre a vida pessoal, as dificuldades, as alegrias. Convidá-los para sair, frequentar

a casa e entre outros elementos que façam ele compreender que o Levante Popular da Juventude não é

só uma organização social, é, sobretudo, um espaço de vivência, de troca, de solidariedade e no qual

ele se sente bem e é motivado para seguir adiante.

42

3) Organização: O terceiro passo é organizar esse jovem, convidá-lo para ir na reunião da célula,

procurar refletir conjuntamente sobre a necessidade de se manter organizado. Na medida do possível

criar espaços de estudo com ele, alguns individuais (mas sempre com acompanhamento) e outros

coletivos.

4) Trabalho de base: Depois que o jovem é cativado, acompanhado, e passou a se organizar no

Levante Popular da Juventude, o próximo passo é que ele seja um reprodutor desse método, ou seja,

que ele- acompanhado de um mais experiente- abram uma frente de trabalho de base para que outros

jovens sejam cativados e ganhos para a nossa proposta organizativa.

Quais pautas dialogam mais?

A) Em geral, as pautas que se relacionam com a estrutura da cidade são as que dialogam mais com a

periferia. Afinal, são os sujeitos mais sensíveis aos problemas da sociedade. Para a juventude, pautas

como transporte, espaços de lazer, cultura e esporte, violência policial e drogas tem bastante inserção.

Toda forma, precisamos vivenciar mais, experimentar mais a construção do Levante nas periferias para

identificarmos quais são as pautas que mais acumulam e formularmos um plano de construção em

torno delas. Além disso, as pautas não se colocam como centrais apenas de acordo com a nossa

vontade, depende muito da conjuntura geral e de cada lugar.

Quais os desafios?

A) Tráfico. Em praticamente todas as periferias encontramos a presença do crime organizado,

principalmente o tráfico de drogas. Esses grupos, para além de se organizarem para sua ação, também

organizam o território e se colocam enquanto alternativa de poder ao estado. O Levante, ao organizar

jovens em torno do território, disputa este poder. Precisamos afinar uma linha de como lidar com esta

questão. Há pouca (ou nenhuma) possibilidade de disputa política do tráfico, tão pouco possibilidade

de enfrentamento.

B) Igrejas. São inúmeras, principalmente as evangélicas. Boa parte dos jovens freqüentam algumas

delas. Inclusive há grupos de jovens organizados dentro das igrejas. Como nos relacionamos com estes

jovens?

C) Trabalho de base feminista. A lógica do patriarcado está muito arraigada na periferia. Neste espaço

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as condições objetivas dificultam ainda mais a emancipação das mulheres. A violência sexista e

doméstica está muito presente. A presença massiva da igreja contribui para acentuar este cenário.

Dificilmente encontramos as jovens nos espaços de sociabilidade (espaços públicos, tais como praças,

campinhos, etc). Há um clima muito grande de disputa entre elas. Precisamos inserir no nosso

trabalho de base propostas que identifiquem onde as meninas estão, que promovam espaços de

sociabilidade entre as jovens e que as aproximem do Levante.

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Comentários sobre a política dos e nos EUA

Jonnas Vasconcelos*

Entender a política dos EUA é uma tarefa necessária para enfrentar o imperialismo, o “inimigo

número um da humanidade”. Trata-se, decerto, de uma tarefa complexa, uma vez que é necessário

atentar tanto para as relações externas (ofensivas militares, diplomáticas e/ou econômicas, por

exemplo), quanto para a correlação de forças internas.

Assim, ao olharmos a última década da política dos EUA, dois movimentos saltam aos olhos.

De um lado, observamos o aprofundamento do ciclo de ofensivas militares no Oriente Médio,

como, por exemplo, no Afeganistão, Iraque, Líbia e, mais recentemente, na Síria. Falamos em

“aprofundamento”, pois os EUA possui uma longa história de envolvimento em conflitos com países

dessa região, gestada principalmente no contexto da Guerra Fria. Contudo, diferentemente da “ameaça

comunista”, o eixo simbólico desses fronts passou a ser o do combate à “ameaça terrorista”. Sabemos

que o Governo Bush, após o “11 de setembro de 2001”, ganhou legitimidade e articulou tais ofensivas

nestes países e que, apesar das promessas eleitorais, o Governo Obama deu continuidade.

De outro lado, observamos importantes mudanças na conjuntura política interna dos EUA. A

própria eleição de Barack Obama, o primeiro presidente negro do país, pode ser entendida como um

marco desse processo. É verdade que o governo Obama não possui grandes diferenças com o dos seus

antecessores, especialmente ao olharmos para a política externa. No entanto, não deixa também de ser

verdade que, do ponto de vista interno, sua eleição se deu em um contexto de acirramento dos

conflitos sociais no país, da qual Obama conseguiu lograr representar a esperança de mudanças.

Portanto, a demanda por “mudanças” pode ser elencada como um elemento novo e importante

da conjuntura interna dos EUA. Nesse sentido, pesquisas recentes, inclusive, apontam para o

crescimento de forças mais à esquerda dentro do espectro eleitoral no país. Em novembro deste ano,

por exemplo, foi eleito para prefeito da cidade de Nova York o candidato do Partido Democrata, Bill

De Blasio, conhecido por ter, no passado, defendido o movimento sandinista e, mais recentemente,

apoiado as manifestações conhecidas como “Occupy Wall Street”. Além da questão simbólica

envolvida, trata-se de uma importante vitória do Partido Democrata, que, há mais de 20 anos não

ganhava eleições nesta cidade, centro nervoso do capital financeiro mundial.

Outro exemplo é o do crescente apoio popular e partidário angariado pela Senadora Democrata

Elizabeth Warren, forte candidata a suceder Obama nas próximas eleições presidenciais. Warren é uma

figura importante da esquerda no país, muito crítica ao poder das oligarquias financeiras, tendo,

inclusive, participado do documentário de Michael Moore chamado “Capitalismo uma história de

* Militante no núcleo Luiz Gama

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amor”.

Em vista desses movimentos, vale questionar: como articular, de um lado, o recrudescimento da política

externa estadunidense, e, de outro lado, o crescimento de forças mais à esquerda do espectro político-eleitoral no próprio

território EUA? Qual a relação entre esses dois movimentos?

Longe de responder essas questões, o objetivo deste pequeno texto consiste em apresentar uma

possível chave interpretativa para equacionar esses movimentos e, com isso, avançarmos no debate

político-organizativo.

Dito isto, a análise de David Harvey, geógrafo e marxista britânico e professor da Universidade

de Nova York, pode nos ser útil. Em sua obra “O novo imperialismo”, Harvey propõe enquadrar as

ofensivas militares dos EUA no Oriente Médio dentro de um contexto político-econômico mais amplo,

que poderíamos chamar de uma crise de hegemonia no bloco do poder capitalista.

Para Harvey, este ciclo de ofensivas militares deve ser compreendido como tática de uma

estratégia imperialista dos EUA para manter-se enquanto epicentro da dinâmica de acumulação

capitalista global. Isto porque o país estaria imerso em uma disputa de "longa duração" (desde meados

dos anos 70) no topo da pirâmide de países e regiões internacionais. Trata-se de uma disputa fundada,

em última instância, na movimentação espacial dos capitais no sentido Oeste-Leste (tendo a China e

Leste Asiático como principais territórios desse processo molecular de desague de capitais).

Contraditoriamente, movimentação de capitais viabilizada pelo próprio arranjo neoliberal propagado

pelos EUA e Inglaterra.

Como destaca, ainda que a lógica do capital desconheça fronteiras para acumular, existe uma

lógica política que busca ordenar espaço-territorialmente, isto é, em um determinado local e tempo, as

melhores condições para a sua acumulação (ou seja, os melhores lugares para investimentos, para

execução de contratos, para liquidez dos créditos etc.). Este descompasso entre lógicas impulsiona, por

sua vez, os conflitos intercapitalistas, estruturando uma determinada hierarquia entre os países e regiões

do globo. Trata-se de uma cadeia de contradições que engendra dinâmicas entre os países,

conformando um verdadeiro “bloco no poder” e, por sua vez, a luta pela hegemonia em seu interior.

Hegemonia que outrora foi inglesa, depois conquistada pelos EUA e que, agora, estaria em um

momento de crise, tendo a China como o principal concorrente.

Nesse contexto de relação de forças internacionais, a disputa pela primazia dentro do sistema

capitalista teria uma importância crucial para a estabilidade do sistema político interno dos EUA.

Estabilidade fundada, basicamente, no seguinte arranjo: as oligarquias políticas internas garantiriam a

sua posição por meio da capacidade de implantar uma política econômica que possibilitasse um sempre

crescente consumo das massas americanas.

Contudo, desde os anos 70, com o declínio dos anos dourados, o EUA encontra dificuldades

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para estabelecer uma política econômica do gênero, principalmente em razão da perda de

competitividade produtiva1. Para Harvey, essa contradição impulsionou as ofensivas externas

americanas, instaurando o que chamou de “acumulações por espoliação”, isto é, um processo de

ampliação da esfera do mercado para áreas até então ausentes, por meio do capital financeiro, para, com

isso, obter a “estabilidade interna”. As conquistas militares, que implicam em novos acessos a matérias

primas, como o petróleo, é uma medida crucial, pois a capacidade de controle sobre a sua oferta

garantiria, por um tempo, a supremacia americana. Importa destacar, ainda, que a ofensiva militar não é

o único método da espoliação. Podemos citar também as privatizações, os patenteamentos, a

mercantilização de várias outras esferas da vida (criatividade, arte), desvalorização abrupta de ativos

(crises financeiras controladas, por meio de ataques especulativos), entre outros.

Este ciclo de acumulação, por sua vez, enfrenta novas contradições, como as recorrentes crises

financeiras. Este quadro de crise econômica, crise acirrada com os colapsos financeiros, ajuda a

compreender o crescimento da desigualdade social e da pobreza nos EUA.

Recente pesquisa da agência AP Gfk (Associated Press GfK) apresenta o dado de que 4 entre 5

adultos nos EUA lutam contra o desemprego. Aponta, ainda, que a situação chamada de “insegurança

econômica”2 tem se espraiado por todo o tecido social, ainda que de maneira racialmente desigual,

tendo crescido 76% nos últimos anos. Mesmo sendo os “não-brancos” (latinos e negros, basicamente)

a população historicamente mais vulnerável da economia, a pesquisa constata o crescimento expressivo

do número de “brancos” que estão vivendo abaixo da “linha de pobreza”3, cerca de 19 milhões,

correspondendo a 41% da população de “indigentes” no país. Considerando todas as raças, destaca

também que o risco das pessoas entre 35 a 45 anos viverem em situação de pobreza no país saltou dos

1 Queda resultante, em linhas gerais, (i) do excesso de capacidade produtiva (situação decorrente do ressurgimento dacapacidade industrial de economias outrora destruídas nas guerras) e (ii) do aumento do custo da força de trabalho(resultado da intensificação das lutas sociais desde os anos 60). Na opinião do historiador econômico Robert Brenner,“a partir da segunda metade dos anos 1960, produtores de custos menores [Alemanha e especialmente Japão]expandiram rapidamente sua produção (...) reduzindo as fatias do mercado e taxas de lucro de seus rivais. O resultadofoi o excesso de capacidade e de produção fabril, expresso na menor lucratividade agregada no setor manufatureirodas economias do G-7 como um todo (...). Foi a grande queda de lucratividade dos Estados Unidos, Alemanha, Japãoe do mundo capitalista adiantado como um todo - e sua incapacidade de recuperação – a responsável pela reduçãosecular das taxas de acumulação de capital, que são a raiz da estagnação econômica de longa duração durante oúltimo quartel do século, [a partir] do colapso da ordem de Bretton Woods entre 1971 e 1973 (...). As baixas taxas deacumulação de capital acarretaram índices baixos de crescimento da produção e da produtividade: níveis reduzidos decrescimento da produtividade redundaram em percentuais baixos de aumento salarial. O crescente desempregoresultou do baixo aumento da produção e do investimento” vide, BRENNER, Robert apud ANTUNES, Ricardo. OsSentidos do Trabalho: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999, pp.30-31. Para um“roteiro da crise”, vide BEAUD, Michel. A História do Capitalismo: de 1500 aos nossos dias. São Paulo: Brasiliense,1991, pp. 335-336.

2 O indicador "insegurança econômica" é definido como a experiência de desemprego vivenciada em algum momentoda vida profissional ou como a de dependência da ajuda do governo por mais de um ano.

3 O indicador “linha da pobreza” é definido como rendimento familiar (família média de 4 pessoas) inferior a US$23.021,00.

47

17% nos anos 1969-1989 para 23% nos anos 1999-2009. Considerando o mesmo período, o riscou

saltou de 11,8% para 17,7% para as pessoas entre 45 e 55 anos.

Em suma, a deterioração das condições de vida de importantes parcelas da população

estadunidense é uma realidade que vem destruindo o american way of life. Com isso, parece que a análise

das contradições subterrâneas desse movimento de "longa duração", responsáveis pela incapacidade de

elevar o padrão de vida dos americanos, ajuda a posicionar algumas fissuras no campo político dos

EUA, o que pode iluminar a complexa dinâmica entre a política externa e interna da principal força do

imperialismo. Afinal, quanto melhor conhecermos as forças e fraquezas do inimigo, melhor será o

ataque.

48

Batucada Popular Carlos Marighella: uma experiência prática para a organização

João Victor Barison*

Introdução

“O mérito de um partido revolucionário não é apenas transmitiràs massas a sua experiência revolucionária mas saber receber e

assimilar a experiência revolucionária das massas.”(Álvaro Cunhal – O partido com paredes de vidro)

A ideia deste texto é entender a experiência desenvolvida na construção da Batucada Popular

Carlos Marighella e, a partir dela, extrair aprendizados que podem ser universalizados para a nossa

organização.

Não são exatamente coisas novas que serão expostas aqui. São princípios, metodologias de

trabalho em grupo e regras de convivência em uma organização política ou em um movimento social

que já conhecemos e já os defendemos, mas poucas vezes os praticamos. Uma experiência concreta

como a da Batucada pode ajudar a compreender melhor esses princípios organizativos.

A experiência da Batucada

A Batucada Popular Carlos Marighella é um sonho do Levante Popular da Juventude de São

Paulo. Desde a criação do movimento em São Paulo é que temos instrumentos de percussão e temos a

necessidade e o interesse de organizar a nossa bateria. Entendemos que ela é um instrumento essencial

de diálogo com a juventude. Transforma nossas ações, dá unidade em nosso bloco, coloca uma cara

nova nos protestos, mais jovem, musical, que se expressa não só através do microfone e do carro de

som, mas também através da arte e em uma linguagem bem brasileira que é o batuque.

Esse sonho, ao longo de 2012 e até junho de 2013, foi sendo alimentado pelas nossas ações de

rua, pelos escrachos e marchas que participamos. A cada ato, reuníamos a turma da animação um

período antes para, rapidamente, pensar em uma música (em geral, uma paródia de algum funk

conhecido) e ensaiar o ritmo. Isso cumpriu a função em vários atos que realizamos, inclusive tornando-

se a figura central em alguns.

Imagina o ato da Memória, Verdade e Justiça que realizamos na frente do DOI-CODI, na rua

Tutóia, em 2012, sem a batucada? Não tinha carro de som, microfone ou megafone. Se não tivessem os

instrumentos, seria um fracasso. Outro exemplo: imagina o escracho dos 20 anos do massacre do

Carandiru, quando fomos à casa do ex-governador Fleury, sem a batucada? Eramos no máximo 100

* Militante do núcleo Ruy Mauro Marini

49

pessoas, com uma pipoqueira. Sem a batucada, o ato provavelmente ocorreria, mas sem a animação que

teve e não marcaria nossa memória. Da mesma forma isso pode ser lembrado nos escrachos do David

dos Santos Araújo e do Maurício Lopes Lima.

Tínhamos 2 surdos, 2 caixas e várias latas. Podemos dizer que esse foi o período artesanal de

nosso trabalho com batucada.

Em junho de 2013, a conjuntura mudou. As manifestações pela redução da tarifa do transporte

público em São Paulo movimentaram as massas. Centenas de milhares de pessoas foram às ruas. Nossa

pequena e humilde batucada, de 4 ou 5 instrumentos, pouco ou quase nada ensaiada, não tinha

condições de dialogar com tanta gente. Seu som era abafado pela quantidade de pessoas nas ruas, por

gritos advindos de estádios de futebol ou pelo hino nacional. Nossa influência, em meio à massa de

manifestantes, foi muito pequena.

Servimos, basicamente, para garantir a unidade e segurança de nosso bloco. Ainda assim,

artesanalmente, nossa batucada conseguia arrastar alguns milhares de manifestantes conosco. Em um

determinado ato de massas, houve divergência entre os organizadores e parte da manifestação (milhares

de pessoas) seguiu para a prefeitura. Nossa batucada conseguiu garantir que milhares de pessoas

seguissem para a paulista.

Nessas grandes manifestações, por vezes não éramos nós, do Levante, quem tocávamos os

instrumentos. Ritmistas quase profissionais se aproximavam da bateria, pegavam instrumentos e saíam

tocando. Não conseguimos garantir um mestre que coordenasse nossos ritmistas nesses atos. De modo

que, me lembro, até nós estávamos nos atropelando: queríamos parar a batucada e, com o microfone e

a pipoqueira, politizar o ato, fazer alguma fala. Como não éramos nós que estávamos com os

instrumentos, nem tínhamos um mestre para coordenar os ritmistas, ocorreu de a própria batucada

boicotar a já pequena possibilidade de uma fala política no microfone.

Outro elemento importante dessa experiência: como os instrumentos rodavam muito nas mãos

de desconhecidos, chegamos a perder instrumentos! Não havia controle algum sobre eles, ou, se havia,

era espontâneo, de um ou outro militante mais preocupado com nosso “patrimônio”. Até mesmo a

questão da segurança de nosso bloco não pode ser garantida. Se houvesse repressão policial,

perderíamos todos ou quase todos os instrumentos, pois não estavam em nossas mãos. E no caso de

confrontos com a direita, também não tínhamos como garantir a segurança da bateria, ou usá-la para a

autodefesa.

Tudo isso nos fez refletir e compreender a necessidade urgente de profissionalizar nossa

batucada. Entre as grandes manifestações de junho de 2013 e os atos das centrais sindicais e pela

democratização dos meios de comunicação (ambos realizados no dia 11 de julho de 2013) é que

iniciamos nosso processo de organização. Já no dia 11 de julho nossa intervenção foi bem diferente:

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nossa Batucada do Levante, ainda pequena, mas já reforçada por novos instrumentos e por 2 ensaios,

somou-se a Batucada do Dolores e à Unidos da Lona Preta. Nos dois atos desse dia, tínhamos uma

Batucada com condições de dialogar com muito mais gente – quase 50 instrumentos ao todo, ritmo

bem definido, música própria com uma mensagem política clara, um mestre capaz de coordenar, 2

pipoqueiras funcionando e até organização para caso de briga. Infelizmente, as centenas de milhares de

pessoas não compareceram aos dois momentos.

Mesmo assim, avalio que nossa intervenção no ato das Centrais foi importantíssima: revelou,

para os outros e para nós mesmos, o quão arcaico está a estrutura de manifestação dos sindicatos. Já no

ato da Democratização dos Meios de Comunicação, o 1º Fora Globo, nossa participação foi

determinante: a batucada deu a cara do ato. Foi divertido, ao mesmo tempo que politizado; os

manifestantes não só ouviram as lideranças, mas também falaram, através da faixa, do cartaz, da música,

do instrumento musical, do próprio corpo.

Desse momento em diante, passamos a ter ensaios regulares, todas as segundas, na secretaria do

Levante. Compramos mais instrumentos, articulamos um grupo regular de ritmistas e garantimos a

frequência de nosso mestre Tiaraju. Ensaiamos samba, funk, axé/olodum, reggae, rap, murga.

Pensamos nossa identidade, definindo um nome para a batucada. Logo teremos os instrumentos

devidamente identificados, com um logotipo próprio que estamos em processo de criação.

Como nem todos os militantes do Levante interessados em batucar podem comparecer aos

ensaios regulares de segunda feira, nos propusemos a realizar ensaios em locais externos, abertos ao

público em geral, ao menos uma vez por mês, nos fins de semana. Creditamos importância para esses

ensaios pois ocorreu diversas vezes de militantes do Levante que não conseguem ir aos ensaios de

segunda-feira se somarem a Batucada, o que é ótimo, porém enfrentando dificuldade na garantia do

ritmo e do bom andamento das músicas.

Conseguimos realizar apenas dois ensaios, na praça Roosevelt. A ideia, além de permitir que

outros militantes do Levante também ensaiem, é que sejam momentos de descontração, de aproveitar o

domingo ou o sábado para confraternizar na praça, curtir um som, tomar uma cerveja (vendemos e o

dinheiro fica para as finanças da batucada), ao mesmo tempo em que é uma oportunidade de

dialogarmos com a juventude que utiliza a praça ou com os transeuntes, sendo, portanto, uma atividade

de Agitação e Propaganda.

As dificuldades e o aprendizado para a organização

Após julho de 2013, em todos os atos que participamos, e mesmo nos dois ensaios abertos que

realizamos, encontramos uma dificuldade muito patente: é preciso estar organizado. Se queremos de fato

51

influenciar a manifestação, precisamos estar muito bem organizados. E estar organizados significa ter

formação compartilhada, circular as informações, dividir as tarefas, ter a consciência da importância de

sua própria tarefa, ter a confiança no companheiro que vai realizar outra tarefa e, se necessário e

possível, ajudá-lo a cumprir, ter disciplina no cumprimento da sua tarefa, comunicar-se com seus

companheiros para que tudo dê certo. A Batucada é um ensinamento prático disso.

a) Formação

“Temos a obrigação de dedicar energias e priorizar um amplo programa de formação político-ideológica que abranja os diferentes níveis: base

social, militância e quadros. E intensificar os esforços para atingir milhares de pessoas. Sem a formação ideológica, não construiremos o

projeto político de longo prazo.”(Cartilha 21 da Consulta Popular)

Se não temos uma formação musical única, nossa intervenção sairá, no mínimo, confusa. Todos

que estão tocando caixa devem saber tocar a caixa, no mesmo ritmo, com a mesma batida, com o

mesmo andamento que os demais, sabendo a hora certa de parar, a hora certa de mudar o ritmo,

compreendendo os sinais de comunicação. Não dá para um tocar o tcha-cum-tcha-cum-tchá tcha-cum-

tchara-cum-tchá enquanto outro toca o tcha-tcha-cum-cum-tchara-cum-tchara-cum-tchá. Temos que

falar a mesma língua.

Da mesma forma, em nossa organização política, precisamos ter uma boa formação política e

uma base comum para todos os militantes. Não dá para termos, na mesma organização, quem defenda

a democratização dos meios de comunicação e quem defenda a monopolização dos mesmos. Não

falamos a mesma língua assim. Não dá para termos quem fale bem do agronegócio ao mesmo tempo

em que lutamos pela reforma agrária.

Na batucada, além de cada um saber tocar seu instrumento, deve saber ouvir o instrumento do

outro. A formação musical deve dar conta de ensinar a tocar seu próprio instrumento e a compreender

como são tocados os outros instrumentos. A batucada deve tocar toda no mesmo ritmo, assim como a

organização política deve avançar num ritmo que não deixe ninguém para trás. Não podemos ter as

caixas todas perfeitas tocando o samba corretamente, enquanto os surdos estão atravessando fora do

ritmo ou tocando funk. Não podemos, igualmente, ter uma organização que tem a linha teórica e a

prática mais acertada na luta pela reforma agrária ao mesmo tempo em que seus militantes expressam o

machismo. Não combina. O som sai ruim e não atrai as pessoas que queremos. É preciso que os

setores da organização, assim como os naipes da batucada, se comuniquem, se conversem, se

compreendam. Só assim teremos um samba bem tocado, só assim teremos uma organização cujos

militantes conseguem dedicar-se a uma tarefa específica sem perder a dimensão da totalidade de nosso

projeto político revolucionário.

52

b) Divisão de Tarefas

“O trabalho coletivo não só admite como exigenecessariamente a divisão e distribuição de tarefas,

a especialização, a realização por cada militantedas tarefas que lhe cabem.”

(Álvaro Cunhal – O partido com paredes de vidro)

Numa batucada e em uma manifestação, são várias as tarefas a que temos que nos dedicar para

garantir nossos objetivos de influenciar as massas, animar o ato, fazer propaganda, coesionar nosso

bloco e garantir a unidade e a segurança. Vejamos: precisamos ter quem coordene nosso bloco, quem

coordene a batucada, quem toque caixa, quem toque surdo, quem toque repinique, quem toque

tamborim, quem cante as músicas. Precisamos, igualmente, que alguém carregue as bandeiras do

Levante – se não nossa batucada fica sem identidade visual, perde uma grande possibilidade de diálogo

e de propaganda. Também precisamos que alguém distribua panfletos, ou então perderemos uma

grande possibilidade de diálogo com as massas. Alguém precisa ficar no microfone, cantando, ou nossa

intervenção mais parecerá uma festa do que algo político. Alguns militantes precisam ser destacados

para garantir a segurança do bloco da batucada, ao mesmo tempo que impedem que as massas

adentrem a batucada de modo a inviabilizar a comunicação interna. Alguns precisam ficar responsáveis

pela água para os ritmistas. Alguns precisam se responsabilizar pela filmagem e pelas fotos, para que

possamos repercutir nossas intervenções pelas nossas redes independentes dos meios de comunicação

monopolizados.

Como se vê, são várias as tarefas. Por isso, é essencial que nós sejamos muito bons em dividir as

tarefas. A batucada nos ensina essa necessidade pela prática. Não dá para coordenar a batucada ao

mesmo tempo em que carrega a bandeira do Levante. Não dá para tocar surdo ao mesmo tempo em

que distribui panfletos. Não dá para distribuir panfletos ao mesmo tempo em que carrega água para os

ritmistas. Por mais que o militante saiba e que queira, só consegue tocar um instrumento por vez, só se

consegue cumprir uma tarefa por vez.

Também na organização política a divisão de tarefas é essencial. Ocorre de modo um pouco

diferente, pois até dá para um militante se dedicar a luta antirracista e também se dedicar a luta pela

democratização das comunicações. É melhor, entretanto, que tenhamos um militante qualificado na luta

antirracista se dedicando exclusivamente a esta tarefa, se formando nela, tornando-se referência, sendo

responsável por puxar esse debate junto aos outros militantes e aos outros setores de nossa

organização, casando este debate com outros, etc., e termos um outro militante destacado para a luta

pela democratização das comunicações, se formando na pauta e responsável por puxar esse debate, do

que termos os dois militantes dedicados às duas pautas, sem muita especialização, sem a

53

responsabilidade que a tarefa exige. Se não dividimos tarefas bem na organização política,

sobrecarregamos alguns poucos militantes, o que é, por si só, ruim. Tanto a batucada intervindo numa

manifestação quanto o trabalho da organização política são, essencialmente, trabalho coletivo. Por isso

dividimos as tarefas, que são consequência de objetivos coletivamente estabelecidos, frutos de uma

formação política compartilhada.

c) A importância de cada tarefa

“Qualquer das grandes iniciativas e ações do Partido é um exemplo dessa profunda e coordenada atuação coletiva em que está presente a ação de todos os escalões do Partido (desde o

CC à base), cada qual com a contribuição correspondente à sua responsabilidade e competências, mas com um empenhamento

geral de tal forma sincrônico que dir-se-ia que o coletivo deixou de ser a soma dos empenhamentos individuais para

tornar-se um ser único com vida e vontade próprias.”(Álvaro Cunhal – O partido com paredes de vidro)

Carregar água, levantar a bandeira, segurar o cartaz, tocar o instrumento, cantar no microfone,

coordenar o bloco ou fazer o cordão de segurança são, todas, tarefas igualmente importantes para o

sucesso de nossa batucada. Os militantes destacados para as tarefas mais simples precisam saber e sentir

que sua tarefa é essencial, que sua participação é importante e que o bom cumprimento de sua tarefa

ajuda no bom cumprimento dos objetivos que nos colocamos. A consciência da importância da tarefa

é, portanto, fundamental. Essa responsabilidade, por menor que pareça, ajuda o militante a ter

disciplina no cumprimento de sua tarefa e ajuda o coletivo a garantir o cumprimento dos objetivos sem

ter de sobrecarregar ninguém.

A organização política, assim como na batucada, precisa reconhecer as pequenas contribuições,

as tarefas não tão “centrais”, como igualmente importantes para a realização dos objetivos que nos

colocamos. É o bom cumprimento de pequenas tarefas que vai formando os militantes e que vai lhes

dando a capacidade e a necessidade de tarefas maiores.

De nada adiantaria nossa batucada ter duzentos excelentes tocadores de tamborim se não

tivermos quem toque os outros instrumentos, se não tivermos quem garanta a água, se não tivermos

quem garanta nossa segurança. Do mesmo modo, se nosso partido tiver duzentos excelentes quadros

teóricos, não conseguiremos nada além de produzir boa teoria. É preciso que a organização saiba

utilizar a força de trabalho, por menor que seja, que seus militantes disponibilizam para a luta, da

melhor forma possível, e isso passa por dar o devido valor e responsabilidade às tarefas, sejam elas

grandes (como formulações da estratégia, direções políticas) ou pequenas (como a distribuição de um

jornal, o famoso “carregar piano”). É preciso que a organização respeite de maneira igual quem toca

uma grande tarefa e quem toca uma tarefa menor. Ambos são membros de nossa organização. Ambos

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constroem nossa organização e, portanto, ambos podem opinar e contribuir na realização de todas as

tarefas.

d) O companheirismo

Tem sido importantíssima a contribuição de cada ritmista em nossa batucada. Por vezes, na

ausência de nosso mestre Tiaraju, eu assumi a coordenação. Definitivamente, eu não estava preparado

para esta tarefa. Mas a ocasião impôs essa necessidade. Era uma tarefa que eu tinha muita – e ainda

tenho alguma – dificuldade de cumprir. Por isso tive necessidade de ajuda dos companheiros ritmistas.

E era possível que eles ajudassem. Com o companheirismo de todos, isto é, com um esforço a mais, de

cada um para o entendimento dos breques ou para que todos tocassem no mesmo ritmo e andamento,

conseguimos cumprir a tarefa, coletivamente. Mas, ainda que coletivamente, conseguimos ter uma

apropriação individual. Após um ou dois atos contando com a colaboração dos companheiros, já

podemos contar com mais um militante na tarefa de coordenar a bateria, na ausência do Tiaraju. Foi

formativo esse companheirismo. Formativo para mim, e, tenho certeza, ajudou na formação de cada

um dos ritmistas que me acompanharam. Quando eu e o Tiaraju estivermos ausentes, certamente

alguém já estará um pouco mais preparado para “assumir a responsa”.

Coisa semelhante deve ocorrer na organização política. Não é porque não é minha tarefa

coordenar o núcleo que eu não vou ajudar quem estiver com essa tarefa. Não é porque não é minha

tarefa organizar um seminário de formação que eu não posso contribuir com quem assumiu essa tarefa.

A cobrança, desde que fraterna, é uma forma de companheirismo, é uma forma de ajudar o

companheiro, responsável pela tarefa, a tocá-la. Somos uma organização jovem em que a maioria está se

formando no cumprimento das tarefas. Precisamos, portanto, do companheirismo de todos para

desenvolver as habilidades que cada tarefa exige.

e) A disciplina

“A coesão, a solidariedade, a ajuda recíproca, a abnegação, a generosidade, a combatividade, a determinação, a capacidade de

sacrifício, a disciplina, a confiança em si próprio e no futuro, são elementos éticos que resultam das próprias condições

de trabalho e de vida da classe operária, dos seus objetivos e da sua luta.”(Álvaro Cunhal – O partido com paredes de vidro)

Batucar é gostoso e divertido. Mesmo assim, exige-se uma grande disciplina dos ritmistas.

Caminhar junto com a batucada, cuidar dos instrumentos para que não se percam, manter a formação

do bloco, avisar quando for sair, e, principalmente, tocar o instrumento com disciplina. Tocar com

disciplina e tocar de acordo com o que pede o mestre. É tocar no mesmo ritmo, com a mesma batida e

no mesmo andamento que os outros ritmistas. A indisciplina de um só ritmista é suficiente para

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atrapalhar o todo da batucada. Por vezes aconteceu de dois ou três tocadores de caixa, sem aviso,

pararem de tocar a caixa por algum motivo (fumar um cigarro, conversar, ensinar alguma coisa para

outra pessoa, tomar uma cerveja, ler um panfleto, não interessa o motivo). Para quem tá de fora,

inexplicavelmente o som fica ruim de repente. O mestre também tem dificuldade em entender, até que

visualiza que há uma falta de som porque rolou uma indisciplina. No caso dos surdos então, é ainda

mais fácil de perceber. Como só temos três, se um deixar de tocar, o som cai na hora.

A luta política pode não ser tão gostosa quanto uma batucada, mas trabalhamos para deixá-la

assim, e, certamente, será. Pois nada pode ser mais gostoso do que o processo revolucionário de

libertação do povo brasileiro da exploração capitalista. Por isso lutamos com alegria. Da mesma forma

que na batucada, a disciplina é essencial para a construção desse processo. O militante de nossa

organização política tem que ter consciência de sua tarefa, saber da importância dela, e ter a

responsabilidade do cumprimento dela no tempo correto.

Se o militante se comprometeu a dar 100 reais por mês a organização todo dia 5 e ele atrasa ou

esquece, todo o coletivo da organização fica prejudicado e tem que se desdobrar para cobrir o buraco

deixado. Se o militante para de tocar uma tarefa por algum motivo, não passando-a adiante ou

comunicando quem deve ser comunicado, a organização fica sem referência e tem dificuldade de

entender porque as coisas não estão caminhando. É todo um processo até perceber que havia alguém

responsável e que agora está se ausentando. Comunicar a indisponibilidade ou a impossibilidade de

realização de uma tarefa é também disciplina.

O exercício da disciplina consciente torna as tarefas mais leves, para si e para o coletivo da

organização. De outra parte, cobrar disciplina não pode ser uma cobrança de patrão sobre empregado.

Temos que ter o companheirismo citado acima, para ajudar nossos camaradas a terem a disciplina de

cumprir as tarefas a que se propõem.

f) A comunicação

“Para uma organização política operária, como sindicatoou um partido político da classe operária, a necessidadede fazer propaganda das suas ideias é não só essencial,

mas absolutamente vital; sem propaganda a organizaçãodefinha e morre.”

(Vito Giannotti – O que é jornalismo operário)

Na Batucada Popular Carlos Marighella estamos o tempo todo nos comunicando. O surdo de

segunda comunica às caixas que é hora de elas entrarem. O repinique comunica à batucada que é hora

do samba. Além dessa comunicação entre os próprios instrumentos, temos a comunicação através do

apito do mestre, através do olhar e através de sinais. Como durante a execução de uma música é

impossível se comunicar pela fala, o olhar diz muito. Além dele, combinamos sinais: o vinte e dois

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cruzado significa que vamos entrar no funk, o sinal de 2 significa que vamos realizar a virada de dois

(ou convenção), a ondinha significa que vamos para o reggae, e por aí vai. Esses sinais visuais vem

combinados com o apito. Pois não basta todos saberem que vamos para o funk. É preciso fazer isso

todos juntos. Então o apito conta as batidas finais do ritmo atual, parando todos juntos e, em seguida,

iniciando o outro ritmo. Essa parada e as viradas são uma dificuldade legal da batucada, algo muito

gostoso de se ouvir quando bem executado. Além da comunicação interna, cada música comunica uma

ideia ao nosso público.

Para a organização política, a comunicação é uma peça chave, muito cara, fundamental, à qual

ainda temos muito a evoluir. Tanto para dentro, no trabalho de circulação de informações, quanto para

fora, usando-se dos meios de comunicação que temos para levar nossa política às pessoas.

Para dentro, é essencial que as informações circulem. Todos os militantes tem que ouvir o apito,

ver os sinais, compreendê-los, no mesmo tempo, para que a organização caminhe num mesmo ritmo e

andamento, assim como na Batucada. Em outras palavras, a coordenação nacional deve receber

informações regulares sobre o que estão fazendo os estados, como estão sendo tocadas as lutas, quais

as pautas, quem são as pessoas envolvidas, etc. Também deve informar com periodicidade seus debates

internos às instâncias inferiores. Deve fazer chegar aos núcleos e a cada militante sua agenda de

discussões, para que as construções da organização como um todo sejam uma construção coletiva,

apropriada por cada militante, construída por cada núcleo, e, consequentemente, de responsabilidade de

todos.

É fundamental, da mesma maneira, que os núcleos sejam capazes de informar sua atuação para

a coordenação estadual e para os setores da organização. “Prestar contas é dizer simplesmente o que se fez e por

que se fez no âmbito das tarefas estabelecidas e do trabalho coletivo. Ou o que se não fez e por que se não fez.” (Álvaro

Cunhal – O partido com paredes de vidro). Os debates realizados nos setores não podem ficar

fechados no setor, ou a organização caminhará mais rápido com uma perna do que com outra. E, claro,

uma das peças chaves para que toda essa comunicação interna funcione de maneira vigorosa e saudável

é os núcleos funcionarem bem: reuniões regulares; os militantes se comprometerem a prestar contas de

suas atuações no núcleo, para que esse possa, de maneira qualificada, opinar, corrigir, orientar sua

atuação; reuniões com pautas bem definidas, para que os militantes possam se preparar para a reunião;

registro das reuniões, tanto para garantir um acúmulo do núcleo, evitando a rediscussão, quanto para

facilitar na hora de informar as instâncias superiores.

Por outro lado, a organização política deve se comunicar para fora. De nada adianta nossa

Batucada ensaiar, ensaiar, ensaiar, e nunca tocar num ato de rua, não transmitir as mensagens que tanto

estudamos e tanto ensaiamos. De nada adianta a organização política muito discutir e ter a linha política

mais acertada se não consegue criar vários canais de comunicação da linha do partido para as massas.

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g) A unidade

“Embora existam dificuldades para a união das forçaspopulares, elas não podem ter o mesmo caráter das divergências que

nos separam das correntes políticas ligadas ao imperialismo.”(Carlos Marighella – Crítica às Teses do Comitê Central)

Nas grandes manifestações de junho de 2013 vivenciamos a necessidade concreta da

unidade entre as organizações de esquerda. Diante da ameaça fascista (skinheads, grupos

de extrema direita hostilizando os militantes da esquerda) e do crescimento do número de coxinhas nos

atos (aqueles, que nunca foram em manifestação alguma, fortemente influenciados pela mídia, que

tiraram muitas fotos para colocar no instagram/facebook, que iam mascarados como V de Vingança,

que vestiam a bandeira do Brasil), as forças de esquerda reuniram-se e

buscaram, basicamente, a auto-sobrevivência. Isso veio através do “direito” de vestir vermelho e de

empunhar bandeiras de partidos e movimentos sociais.

Corretíssimo. A rua foi historicamente ocupada pela esquerda e a democracia burguesa que

vivenciamos hoje só foi possível devido à ação e à luta da esquerda contra a ditadura militar.

É direito dos partidos de esquerda, desde o PSTU ao PT, do PSOL ao PCR ou o POR, estarem nas

ruas e empunharem suas bandeiras. É direito vestir vermelho.

Correto também foi tentar dar um sentido legal para tantos manifestantes ávidos por

bandeiras de luta. Para isso a unidade era elemento central, e devia, necessariamente, envolver todas as

forças organizadas da esquerda presente, em especial o MPL. Infelizmente, falhamos nesse momento.

Nossa unidade não foi forte o suficiente para falar mais alto que a mídia (que conseguiu impor a pauta

da PEC 37) e nosso elemento simbólico – o vestir vermelho – pode ter atrapalhado mais do que

ajudado.

Ao fazermos isso e não nos apropriarmos da bandeira nacional, do verde-amarelo, estamos

entregando, de bandeja, uma unidade dos fascistas com as massas que estavam nos atos. Não há que se

envergonhar de defender a bandeira brasileira. Ela representa o nosso universo cultural, do nosso povo

brasileiro, que vai desde o samba a batucada, do maracatu ao funk, do futebol à capoeira. Nos inserimos

nesse universo cultural e identificamos nele fortes elementos de resistência. Identificamos um histórico

de luta. Por isso os defendemos.

Na batucada, aprendemos a força da linguagem do samba. Pode ser apropriada e

retransformada, mas sua origem, seu histórico de lutas e resistências, sua simbologia, permanece. E,

como batucada ou uma roda de samba, não há sectarismo. Muito pouco nos serve termos duas

batucadas de esquerda tocando no mesmo ato se elas não estiverem ligadas, se comunicando e

comunicando a mesma ideia para fora. Por isso, sempre que possível, nos juntamos e nos somamos

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com outras batucadas nas manifestações que participamos. Fizemos isso no ato das centrais, no 11 de

agosto, juntando com a Unidos da Lona Preta e com a batucada do Dolores. Foi um momento mais

fácil por conta de termos o mesmo mestre. Mas fizemos isso também com a bateria do Juntos no ato

em defesa da educação, no dia 15 de outubro, e também na marcha da consciência negra, no 20 de

novembro. Foram experiências interessantíssimas. Quer exemplo pedagógico melhor que esse para as

lutas de massas e as relações entre as forças de esquerda? Fomos obrigados a ouvir o que eles tocam e a

tocar como eles. Eles foram obrigados a ouvir o que nós tocamos e a aprender a tocar conosco.

Sabemos o quanto a unidade das forças de esquerda é importante para trazer as massas para as lutas e

para iniciar um novo ciclo de ascenso.

h) A criatividade

A experiência da Batucada tem sido um estímulo à criatividade dos jovens do Levante Popular

da Juventude. Isso não é pouco. Trata-se de um exercício constante: como traduzir nossa ideia, nosso

pensamento e nossa política para as massas? Como passar a mensagem?

Exercitamos isso na construção de paródias. Fazemos FUNKs, RAPs, Sambas. E também

criamos músicas nossas mesmo. Do processo de criação das músicas, de composição das letras e de

escolha das melodias, extraímos o aprendizado: é preciso que nossa linguagem seja compreendida por

nosso interlocutor.

De outra parte, o próprio processo criativo é enriquecedor. Ajuda a formar os jovens,

debatendo o que deve e o que não deve ser dito nas músicas, estimulando ao estudo para que seja dito a

coisa certa.

O partido também precisa de criatividade. Precisa desse momento em que seus quadros pensam

a melhor maneira de traduzir uma linha política para as massas. O partido precisa criar as soluções para

os problemas novos, baseando-se, claro, na formação política e ideológica que desenvolve.

Conclusão

Este texto não se encerra aqui. Essa é uma experiência que estamos vivenciando e que

seguiremos tentando sistematizar e compreendê-la melhor. Seguiremos buscando os aprendizados que a

Batucada traz para nossa militância e para nossa vida.

Como diz o samba da Unidos da Lona Preta: “A luta é o tempero do meu samba”.

Terminamos este texto com um samba, também da Unidos da Lona Preta, que diz muito sobre essa

relação entre batucada, samba, movimento social, organização, divisão de tarefas, disciplina, etc.

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Unidos da Lona Preta - Carnaval 2012

“E fez-se a luta: uma homenagem à toda companheirada”

A vida muda a luta, a luta muda a vidaSou Sem-Terra com dignidade (Refrão)Batucada na avenidaConstruindo a unidade

De punhos erguidosA Unidos vem cantarPra quem tá na correria, no dia-a-diaPlantando a resistência popularInfância Sem-Terrinha é na cirandaCozinha coletiva faz comer a ocupaçãoO coração batendo ao som do sambaA foice e a baqueta na mãoO pulso firme e forte das mulheresDebate de idéia em reuniãoE nem mais um minuto de silêncioÀqueles que tombaram neste chão

Não matarão, nossos sonhos de criançaQue na nossa militância, para sempre prevaleça (Refrão do meio)O repique de Geraldo, o sorriso de Vanessa

Laércio, a justiça burguesa Não prenderá a consciênciaDa classe que em sua formação (formação)Fez Tio Mauro buscarA beleza e o pãoAlmerinda, a benção, madrinhaNegra, vem da dor o saber (o saber)Os teus olhos guerreirosNos fizeram entender (que)

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A Reforma Política: passos para a despatriarcalização do Estado

Maria Júlia Montero*

O mês de junho nos mostrou sinais de um ascenso da luta política de massas no Brasil.

Inúmeras pautas foram colocadas nos protestos por todo o Brasil, e ficou claro que o povo brasileiro

clama por reformas estruturais, que não foram levadas a cabo pelos governos petistas nos últimos dez

anos. Apesar de algumas reformas importantes, programas sociais que ajudaram a elevar o nível de

renda da população brasileira, o Estado permanece dominado pelo poder econômico, patriarcal,

empresarial.

Os protestos nos mostraram o quanto a população está cansada do modo atual de se fazer

política. Não se tratam somente de reivindicações pontuais como o aumento da passagem (mas

também sobre isso), mas sobre como se organiza o próprio sistema político – que acaba permitindo e

até facilitando a existência de problemas como esse.

Em resposta aos protestos, Dilma anunciou a proposta de se realizar um plebiscito para

uma constituinte sobre a Reforma Política. Infelizmente, por pressões da oposição e até por parte de

sua base aliada, a presidenta recuou na proposta.

Diversos movimentos sociais, partidos e outras organizações se reuniram, então, para

propor e organizar um Plebiscito Popular para uma Constituinte Exclusiva sobre a Reforma Política.

Nesse sentido, é preciso pensar em que tipo de Reforma Política que nós queremos. Nosso

objetivo é radicalizar a democracia, ampliando os espaços de participação da população. Nesse sentido,

é preciso que reivindiquemos uma Reforma Política que vá além de uma Reforma Eleitoral, mas que

sirva para questionarmos o modelo de Estado que temos.

Tendo isso posto, nós, feministas, temos uma tarefa de extrema importância: apontar

horizontes para a despatriarcalização do Estado. A Reforma Política é um momento crucial de colocar

em xeque as estruturas do Estado, que não só são capitalistas, como também patriarcais. Se queremos

fazer um real enfrentamento com as elites brasileiras, é preciso questionar a fundo o modelo de Estado,

e não é possível fazer isso sem fazer um questionamento norteado também pelo feminismo.

Este texto tem o objetivo, portanto, de fazer alguns apontamentos de como a Reforma

Política pode representar avanços na despatriarcalização do Estado no Brasil e na luta das mulheres por

autonomia. Para tanto, antes de entrar propriamente no debate sobre a despatriarcalização, passaremos

rapidamente por alguns conceitos necessários para o debate.

* Militante da Consulta Popular em São Paulo

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O que é o Estado

O Estado, segundo Lenin, é “produto do caráter inconciliável das contradições de classe”.

Ele surge justamente a partir do momento em que essas contradições não podem ser conciliadas. Suas

instituições servem, portanto, para segurar essas contradições, mantê-las “abafadas” e, assim, garantir a

manutenção da classe dominante. Ou seja, as contradições estão lá, e o Estado não acaba com elas, mas

consegue mantê-las sob controle justamente para perpetuá-las.

Nos opomos, portanto, à visão de Estado que afirma que ele é, justamente, aquele que

concilia as classes. Muito pelo contrário: o Estado é um órgão de dominação de classe, da opressão de

uma sobre a outra, e não de conciliação. “privar as classes oprimidas de certos meios e procedimentos

de luta com o objetivo de destruir os opressores” - que é o papel do Estado – não significa acabar com

as contradições existentes entre oprimidos e opressores, muito pelo contrário.

O Estado é, portanto, instrumento das classes dominantes. Ao considerarmos a existência

de uma dominação não somente de classe, mas também de gênero e raça, é preciso considerá-lo como

um instrumento não somente da dominação burguesa, mas também da dominação masculina e branca

– questão sobre a qual nos debruçaremos mais para a frente.

O que é o patriarcado

Antes de falarmos em despatriarcalização, é preciso que entendamos o que é patriarcado.

Trata-se de um sistema que estabelece uma relação antagônica entre homens e mulheres, colocado-as

como subalternas aos primeiros. Organiza a sociedade e o Estado ao redor da superioridade masculina.

Essa superioridade e o domínio masculino se dão em todos os âmbitos (econômico, político e cultural),

e em todas as relações sociais (família, comunidade, instituições etc); é pilar, portanto, da forma como

se organiza nossa sociedade, desde o Estado até os padrões de sexualidade.

Baseia-se, essencialmente, na divisão sexual do trabalho, que divide ocupações e

comportamentos segundo o sexo, estabelecendo, ainda, uma hierarquia entre eles. As ocupações ditas

masculinas são as mais valorizadas, relacionadas ao espaço público (política, igreja, posições de

“liderança”), e as ditas femininas são as mais desvalorizadas, relacionadas principalmente ao que diz

respeito aos trabalhos de cuidados, ao espaço privado, mais mal pagas etc. Baseia-se, ainda, em uma

construção social do corpo que objetifica as mulheres, justificando a violência e a apropriação do seu

corpo por parte dos homens – como a prostituição, por exemplo.

O patriarcado é maleável, e se adaptou às diversas formas de organização econômica,

social, cultural e política que surgiram ao longo da história, mantendo a relação de desigualdade entre

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homens e mulheres. Hoje, é parte estruturante do sistema capitalista, não sendo possível analisar um

sem o outro.

O que significa a despatriarcalização do Estado?

A partir de uma perspectiva que leva em consideração o nó gênero, raça e classe,

entendemos que as instituições vigentes não somente operam segundo interesses de classe, mas

também de gênero e raça. Nesse sentido, o Estado não é cego com relação ao gênero, ao contrário: por

baixo de uma suposta universalidade está uma estrutura que opera para manter e invisibilizar a

subordinação das mulheres aos homens.

Nesse sentido, é necessário a existência de mecanismos que mostrem, institucionalmente, o

reconhecimento do machismo enquanto presente na vida de todas as mulheres. Há, por exemplo, a

Secretaria de Políticas para as Mulheres, do Governo Federal, um indício de que, por parte do poder

público, há a percepção da desigualdade de gênero e da necessidade de superá-la – e de que, para isso, é

preciso que haja políticas específicas para as mulheres.

A despatriarcalização – considerando que se trata, ainda, de um conceito em construção –

consiste em, basicamente, criar políticas e iniciativas que desconstruam ao máximo o caráter patriarcal

do Estado. Por exemplo, a articulação dos diferentes ministérios com a SPM, a fim de transversalizar

uma perspectiva feminista, é uma iniciativa de despatriarcalização do Estado; podemos considerar como

parte desse processo também a Lei Maria da Penha.

Como a Reforma Política pode contribuir com a despatriarcalização do Estado?

Como dito inicialmente, a Reforma Política servirá para questionarmos profundamente as

estruturas do nosso Estado, portanto, servirá também para questionarmos suas bases patriarcais,

possibilitando mudanças estruturais.

Elenco, aqui, alguns pontos que acredito serem necessários para que a Reforma Política

paute a despatriarcalização do Estado. Obviamente, não são os únicos, portanto, o movimento

feminista deve se debruçar mais sobre essa pauta a fim de construí-la com mais firmeza.

1. A participação política das mulheres nos meios institucionais.

Este é o ponto que tem sido mais abordado pelo movimento feminista. A luta das

mulheres por mais espaço na política não começou hoje, muito pelo contrário; inclusive, nesse aspecto,

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a própria Reforma Política não é um tema novo para o feminismo.

A política tem sido, historicamente, um lugar predominantemente masculino. São inúmeros

os obstáculos impostos às mulheres com relação à participação política. Marlise Matos (2013) afirma

que a eleição de candidatas femininas é uma verdadeira corrida de obstáculos, tamanhas as dificuldades

A primeira seria a barreira da ambição política, a avaliação das próprias mulheres com

relação à possibilidade de competição – o que já é um indício de como a política se coloca para as

mulheres: algo desgastante, que faz muitas pensarem se vale ou não a pena se inserir nesse meio.

A segunda trata principalmente das barreiras impostas pelas estruturas do sistema político-

partidário e a da elegibilidade.

Podemos afirmar com tranquilidade que dificilmente os partidos colocam mulheres como

suas candidatas principais, dessa forma, não se esforçam em publicizar suas candidaturas, em dar apoio

básico. Ainda, aqueles que financiam as campanhas eleitorais dificilmente apostam suas fichas em

candidaturas novas, ainda mais femininas. Aqui, elencamos o primeiro ponto importante a ser pautado

pela Reforma Política: o financiamento público de campanha. Com ele, haverá igualdade entre

as/os candidatas/os, cuja eleição não dependerá do apoio de uma empresa ou outra, que terá

preferência por homens brancos e heterossexuais.

Outro ponto a ser considerado é a mudança de lista aberta para a lista fechada com

alternância de gênero. As cotas por sexo muitas vezes resultam em candidatas laranja, que estão lá só

para o partido cumprir com uma norma, mas não para de fato garantir a participação das mulheres nas

eleições. Dessa forma, a lista fechada é importante porque faz com que a votação não seja individual,

mas em um grupo – o que acaba (ou ao menos dificulta) com a personalização que ocorre nas eleições,

em grande parte responsável pela invisibilização das mulheres.

A alternância de gênero significa que essa lista será formada por homens e mulheres, de

forma alternada e paritária. O partido decidirá, de acordo com seus critérios, qual será o primeiro, o

segundo, terceiro candidato, mas, se o primeiro for homem, o segundo deverá ser uma mulher, e vice-

versa. Dessa forma, garante-se que as cotas por sexo não serão secundarizadas pelos partidos, e que as

candidatas mulheres tenham real possibilidade de se eleger.Podemos, ainda, falar sobre as possibilidades

de reeleição. O estimulo à renovação de mandatos abre maiores possibilidades para as candidatas

mulheres, afinal, a maioria dos que já participam da política e que poderiam se reeleger são homens.

Limitando essa possibilidade, grupos marginalizados da política, como as mulheres, a população negra,

lgbt e a juventude aumentam suas chances de eleição.

Muitos irão argumentar que a não eleição das mulheres é de responsabilidade do eleitorado,

que é conservador e não vota em candidatas femininas. Embora isso seja em parte verdade, não pode

ser colocado categoricamente como o principal motivo da não elegibilidade das mulheres. Na pesquisa

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“Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”1, foram feitas algumas perguntas com

relação à participação política das mulheres, com os seguintes resultados:

• 78% das mulheres e 76% dos homens entrevistados concordam com a frase “As

mulheres estão preparadas para governar o país, o estado e a cidade”

• 70% das mulheres entrevistadas concorda com a frase “A política seria melhor se

houvesse mais mulheres em postos importantes”. Já entre os homens, o número é 49%.

• No ponto “Potencial de voto x Rejeição”, 92% de mulheres e 91% de homens afirmam

que poderiam votar em uma mulher. Vale ressaltar que 96% e 94%, respectivamente, votariam em

candidatas/os negras/os.

Nesse sentido, podemos afirmar que a não eleição de mulheres não se deve somente ao

conservadorismo do eleitorado, mas também às dificuldades impostas pelo sistema eleitoral. Uma

Reforma Política deve, portanto, fazer as devidas mudanças nesse sistema para possibilitar um aumento

da participação feminina nas eleições.

2. A laicidade do Estado.

O princípio do Estado laico tem suas origens nos séculos XVII e XVIII, ascensão da

burguesia européia, com ápice na Revolução Francesa. Além do fato de que a Igreja era um

sustentáculo das monarquias - sendo, portanto, necessário o seu afastamento para que a burguesia

pudesse tornar-se a classe politicamente dominante -, o principal fato que motivava a separação do

Estado e da Igreja era a necessidade de uma igualdade formal, que garantiria, por exemplo, transações

comerciais amplas.

Como Engels e Kautsky afirmam, as mudanças das condições econômicas tornaramnecessária uma nova forma de organização estatal, com a qual não se adaptava a antigafundamentação teológica como parâmetro para todas as relações. As trocas comerciaisdesenvolvidas pela burguesia passaram a embasar todas as relações sociais. Ou seja, o queimporta nesta nova e incipiente sociedade é fazer circular produtos, independentemente dequem os adquira ou venda.

Nesta nova configuração, as particularidades dos indivíduos passam a importarmenos nas transações comerciais. Na sociedade capitalista que agora se forma, éfundamental que haja igualdade formal entre as partes negociantes, de maneira que se inicianeste período histórico a busca por um estatuto jurídico de igualdade, que possa seruniversalizado.(GONÇALVES; LAPA, 2008, p.66)

A separação entre Estado e Igreja significa, portanto, que o primeiro não mais deve ter suas1 Os resultados da pesquisa podem ser encontrados aqui: http://www.fpa.org.br/sites/default/files/pesquisaintegra.pdf

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ações norteadas pelos dogmas de uma religião. Possibilita-se, portanto, a liberdade religiosa, já que não

há a imposição de uma única religião através do aparato estatal. Os grupos religiosos não deixam de ter

a liberdade de manifestação, porém, não podem fazer com que o poder público manifeste-se de acordo

com suas crenças.

O ponto de partida para esta concepção moderna de Estado foi a proclamação daDeclaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. Com ela, estabeleceu-se que um Estado deveria possuir uma Constituição escrita que contemplasse a separaçãotripartite de poderes e contivesse uma carta de direitos a partir da qual todos sãoconsiderados iguais perante a lei. Esta igualdade é afirmada justamente em razão doreconhecimento de que na realidade concreta os indivíduos são diferentes, tanto no âmbitoeconômico e social como no religioso. Esta equiparação legal foi o permissivo para quedireitos fossem garantidos, como o próprio direito à liberdade religiosa. A partir destemomento, inicia-se um forte movimento constitucionalista, cujo objetivo era assegurar regraspara o exercício do poder estatal, garantindo sua separação em relação ao poder religioso.(GONÇALVES; LAPA, 2008, p.66)

O Estado basear-se-ia, portanto, no que chamam de “Razão Pública”,ou “os valores sociais

convergentes entre os diversos grupos sociais em toda a sua pluralidade e diversidade de entendimentos

sobre a vida e demais aspectos”.2

O Brasil define-se como um Estado Laico, ou seja, não deve agir de acordo com os valores

de nenhuma religião. Dessa forma, garante-se a liberdade religiosa. O Estado é, teoricamente, regido

pela “razão pública”, sobre a qual falamos anteriormente. Os agentes do Estado, portanto, têm o

compromisso com esse princípio.

Esse compromisso, no entanto, é difuso para os parlamentares, por não se tratarem

diretamente de agentes do Estado, mas sim de representantes eleitos pelo povo. Assim, torna-se

“aceitável” que alguém como ex-deputado federal Luiz Bassuma proponha um projeto como o

Estatuto do Nascituro. Afinal, ele está representando uma comunidade que é parte da população.

No entanto, suponhamos que esse projeto de lei seja de fato aprovado: o Estado brasileiro

passa, então, a ter que garantir o seu cumprimento, afinal, é lei. Logo, passa a reger-se pela moral cristã,

e não pela razão pública. Passa a impor uma moral religiosa específica a toda/os as cidadãs e cidadãos,

não respeitando diferentes crenças.

Dessa forma, é preciso resolver essa contradição existente no sistema político brasileiro, a

fim de garantir um Estado Laico de fato, e não somente no papel, pois esse é um pressuposto de um

Estado minimamente democrático.

A constituição mexicana, por exemplo, apesar de todos os problemas que o país enfrenta,

pode ser usada como exemplo: o texto afirma, por exemplo, que líderes religiosos não podem se

2 Para ler mais sobre a questão, sugere-se a leitura integral dos capítulos “Laicidade estatal”, “Brasil, um Estado laico” e “Igreja Católica e as leis sobre o aborto”, do livro Aborto e Religião nos Tribunais Brasileiros.

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candidatar, a não ser que se afastem da atividade por um determinado período, que os cultos religiosos

não devem servir de apoio a candidatos; além de versar sobre organizações políticas de caráter religioso

(como partidos religiosos).

Artículo 24. Toda persona tiene derecho a la libertad de convicciones éticas, de conciencia yde religión, y a tener o adoptar, en su caso, la de su agrado. (…) Nadie podrá utilizar losactos públicos de expresión de esta libertad con fines políticos, de proselitismo o depropaganda política. (...)Artículo 55. Para ser diputado se requieren los siguientes requisitos: (…)VI. No ser Ministro de algún culto religioso (...)

Artículo 130. El principio histórico de la separación del Estado y las iglesias orienta lasnormas contenidas en el presente artículo. Las iglesias y demás agrupaciones religiosas sesujetarán a la ley.

Corresponde exclusivamente al Congreso de la Unión legislar en materia de culto público yde iglesias y agrupaciones religiosas. La ley reglamentaria respectiva, que será de ordenpúblico, desarrollará y concretará las disposiciones siguientes:

(...) d) En los términos de la ley reglamentaria, los ministros de cultos no podrán desempeñarcargos públicos. Como ciudadanos tendrán derecho a votar, pero no a ser votados.Quienes hubieren dejado de ser ministros de cultos con la anticipación y en la forma queestablezca la ley, podrán ser votados.

e) Los ministros no podrán asociarse con fines políticos ni realizar proselitismo afavor o en contra de candidato, partido o asociación política alguna. (...)

Queda estrictamente prohibida la formación de toda clase de agrupaciones políticascuyo título tenga alguna palabra o indicación cualquiera que la relacione con algunaconfesión religiosa. No podrán celebrarse en los templos reuniones de carácter político. (MÉXICO, 1917, p.21, 50, 123, grifos meus)

Em seguida, trecho da “Ley de asociaciones religiosas y cultos públicos” que, entre outras

coisas, estabelece o tempo de afastamento exigido de um líder religioso para que possa se candidatar:

ARTICULO 14.- Los ciudadanos mexicanos que ejerzan el ministerio de cualquier culto,tienen derecho al voto en los términos de la legislación electoral aplicable. No podrán servotados para puestos de elección popular, ni podrán desempeñar cargos públicossuperiores, a menos que se separen formal, material y definitivamente de suministerio cuando menos cinco años en el primero de los casos, y tres en el segundo, antesdel día de la elección de que se trate o de la aceptación del cargo respectivo. Por lo que toca alos demás cargos, bastarán seis meses. Tampoco podrán los ministros de culto asociarse con fines políticos ni realizar proselitismo afavor o en contra de candidato, partido o asociación política alguna. (MÉXICO, 1992, p.4,grifos meus)

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Os pontos levantados não são os únicos que uma Reforma Política deve abarcar para

garantir a laicidade do Estado, bem como a despatriarcalização do Estado em geral, como reformas no

judiciário. Esses outros pontos serão abordados em outro texto, a ser escrito em breve.

Tratam-se, obviamente, de questões que precisam ser amplamente debatidos, inclusive para

fora do movimento feminista, tanto pelo fato de a reivindicação pela real laicidade do Estado não ser

uma pauta só nossa, como pelo fato de que, para conquistarmos mudanças, é preciso que toda a

sociedade, todos os movimentos, estejam engajados com unidade nas pautas.

Nos últimos anos, temos visto uma maior intervenção das instituições religiosas na política.

A bancada evangélica é uma das que mais tem crescido, e ainda projetam um aumento de 30% da em

2014.3 Nesse sentido, é preciso que toda a esquerda se coloque em defesa do princípio do Estado laico,

não só para defendê-lo, mas para expandi-lo, já que no Brasil mesmo no papel nossa laicidade ainda é

muito limitada se comparada a outros países. A partir daí, é preciso colocar isso em prática, o que não

será possível se não exigirmos isso nas ruas.

Uma análise totalizante deve ser feminista

Como falamos no início do texto, se queremos questionar o atual sistema político e o

Estado como um todo, é preciso fazer uma análise também feminista. Vivemos em um sistema que é

capitalista, mas também patriarcal e racista, dessa forma, se pretende-se realizar uma análise totalizante,

é preciso que essa análise se atente também a esses aspectos de nosso sistema, se não, será uma análise

pela metade.

Precisamos pensar como o patriarcado se encontra nas estruturas do sistema político,

pensando para além da sub-representação das mulheres, porque, ainda que seja uma pauta de extrema

importância, não basta mais mulheres na política para que nossos direitos sejam garantidos. É preciso

que tenhamos um projeto político de mudança, que passa por questionar o machismo que há em todas

as estruturas e instituições da nossa sociedade.

Dessa forma, é preciso que as organizações, partidos e movimentos sociais engajados na

construção do Plebiscito Popular para uma Constituinte Exclusiva sobre o Sistema Político abracem as

pautas feministas, pois não são somente nossas, mas pautas que visam uma mudança geral da sociedade.

3 Dados da reportagem “Bancada evangélica prevê crescimento de 30% nas próximas eleições”, disponível emhttp://jornalggn.com.br/noticia/bancada-evangelica-preve-crescimento-de-30-nas-proximas-eleicoes

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Fontes consultadas:

COUTINHO, Mateus, Bancada evangélica prevê crescimento de 30% nas próximas

eleições, disponível em: <http://jornalggn.com.br/noticia/bancada-evangelica-preve-crescimento-de-

30-nas-proximas-eleicoes>

GONÇALVES, A. T; LAPA, T. Aborto e religião nos tribunais brasileiros, São Paulo, Instituto

para a promoção da equidade, 2008.

LENIN, V.I. El Estado y la Revolución. In: _________. V.I. Lenin – Obras Escogidas, tomo 2.

Moscou, Editorial Progreso, 1978, p. 289 – 387.

MÉXICO, Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, 1917, disponível em:

<http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf

MÉXICO, Ley de Asociaciones Religiosas y Cultos Públicos, 1992, disponível em:

<http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/24.pdf>

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