BRINCADEIRA DE CRIANÇA NOS BARRACÕES …...o Brasil que designa um povo, uma nação, um conjunto...
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VI Seminário do PPGCS/UFRB
GT 01 Cultura Popular, Festejos e Rituais
BRINCADEIRA DE CRIANÇA NOS “BARRACÕES DIGITAIS”: identidade
nacional carnavalesca no Mundo do Bita
Cláudio Márcio Rebouças da Silva-UFRB
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VI Seminário do PPGCS/UFRB
GT 01 Cultura Popular, Festejos e Rituais
BRINCADEIRA DE CRIANÇA NOS “BARRACÕES DIGITAIS”: identidade
nacional carnavalesca no Mundo do Bita1.
Por: Cláudio Márcio Rebouças da Silva-UFRB2
RESUMO
Venham todos, pois, o carnaval já está nas ruas! Este convite para “carnavalizar a vida”
em solo brasileiro passa necessariamente por figurações que envolvem pertencimento
nacional, combinações-tensionadas do ato criativo dos sujeitos sociais e os processos de
controle coletivo e autocontrole em que estão inseridos. Logo, não é exagero dizer que
neste contexto especifico, o ato de criar carnaval é também um modo de criar a idéia de
um “povo-nação”. Desta forma, este artigo se propõe através da análise sociológica
compreender os significados e sentidos da identidade nacional carnavalesca e as
estratégias de produção-consumo de material audiovisual para o público infantil. Para
elucubrar esses assuntos faço um diálogo com Mundo do Bita (personagem de desenho
animado criado pela Mr. Plot\ empresa incubada no Porto Digital em que 2 dos seus 3
DVD’s conquistou o Disco de Ouro pela Sony Music). Desta forma, como estrutura da
personalidade, identidade nacional e economia criativa articulam-se em tom
entretenimento infantil? Isto é, como os “barracões digitais” fabricam-combinam
pertencimentos imagéticos carnavalescos através de música, cor, movimento, diversão e
aprendizado? De fato, o clipe Carnaval do Bita servirá como mote desta reflexão
pautada por autores do campo da sociologia cultura.
PALAVRAS-CHAVE: carnaval, nacionalidade, consumo, público infantil.
INTRODUÇÃO
“... vamos pra avenida desfilar, a vida carnavalizar”.
(Tribalistas)
1 Trabalho apresentado no VI Seminário da Pós Graduação em Ciências Sociais: Cultura, Desigualdade e
Desenvolvimento - realizado entre os dias 09, 10 e 11 de novembro de 2016, em Cachoeira, BA, Brasil. 2 Bacharel e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
Integrante do grupo de pesquisa Corpo, Socializações e Expressões Culturais (ECCOS-UFRB).
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“... enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do
carnaval... Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo
com suas leis, isto é, as leis da liberdade”. (BAKHTIN, 2010, p. 6)
No documentário A Raça Síntese de Joãosinho Trinta, dirigido por Paulo
Machline e Giuliano Cedroni em 2009, o barracão é uma espécie de pano de fundo em
que a “magia carnavalesca” é gerada, ou melhor, é o lugar em que “fabrica-se alegria”.
Ali, diversos profissionais e foliões prestam seus serviços numa complexa rede de
interdependência e interpenetrações de símbolos, emoções, desejos, saberes,
corporeidades e, não menos, processos de consumo da folia-entretenimento. Pode-se
enunciar que há um mutirão através de muitas mãos, isto é, costureiras, figurinistas,
marceneiros, soldadores, músicos, sambistas, motoristas, etc. Como assinala o sociólogo
Edson Farias (2016):
É preciso reconhecer que a participação nesses eventos de
congraçamento popular se define em sintonia tanto com a
profissionalização dos produtores culturais (artísticos ou não), quanto
pela racionalização técnico-administrativa e comercialização dos
serviços, em meio ao aumento nos comprometimentos com os
comércios turísticos e da diversão. Sem esquecer a decisiva
intermediação institucional exercida pelo ordenamento estatal de
poder, em seus três níveis (local, estadual e federal), fornecendo meio
financeiros a contratações de serviços necessários na montagem de
infraestruturas espaciais (palcos, camarotes e arquibancadas, por
exemplo) e de músicos, cenógrafos, designers, técnicos em áudio e
som, entre os muitos profissionais da complexa teia própria à divisão
do trabalho técnica mobilizada na realização dessas festas. Logo,
também, na instalação de equipamentos de iluminação, sonoridade,
alimentação, etc. Mas, igualmente, atua prestando serviços nas áreas
de segurança, higiene, atendimento médico-ambulatorial, limpeza,
divulgação, entre outras (FARIAS, 2016, p. 141).
Com efeito, grupos sociais, instituições, saberes e interesses articulam-se não só
pelas cores da bandeira da sua escola de samba, mas, assumem um ethos de vida
carnavalesca que extrapolou o processo de identidade local, ou seja, conquistou status
de nacionalidade. De algum modo, a “brasilidade carnavalesca” nos constitui como
“povo-nação”, entretanto, como sobreveio esse processo? Rememorando as palavras de
um dos maiores carnavalescos e intérpretes da “brasilidade-popular” Joãosinho Trinta
no documentário supracitado: “O carnaval é um exercício de criatividade. Cada carnaval
nos obriga a um ato de criação”, assim sendo, ele sugere-defende o período do carnaval
como uma possibilidade de se exercer “a revolução pela alegria”! Isso porque, um povo
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sofrido e humilhado cotidianamente, ao participar do carnaval, articula-se, reinventa-se
na folia e, por isso mesmo, insiste Joãosinho Trinta, “utilizando essa garra e criatividade
em outras dimensões da vida é capaz de tudo”! Além disso, ele abaliza: “a saída das
alegorias do barracão é um verdadeiro parto!”. Daí é preciso compreender o parto em
suas ambivalências e, uma delas, é a dor-alegria. Assumo então, que de um barracão
carnavalesco saem mais do que fantasias e carros alegóricos, saem “imagens nacionais”
No entanto, “como se constrói uma identidade social? Como um povo se transforma em
Brasil?” (DAMATTA, 1986, p. 16). Conforme o sociólogo Renato Ortiz:
... no Brasil, e na América Latina existe uma obsessão pelo nacional
que faz com que a problemática da identidade seja recorrente. A
pergunta ‘quem somos nós?’ recebe respostas diferentes em função da
inclinação teórica dos autores, do contexto histórico, dos interesses
políticos, mas permanece ao longo do tempo como uma inquietação
insaciável. (ORTIZ, 2015, p.139)
No final do século XIX e início do XX, a edificação do Brasil enquanto nação é
de uma complexa discussão que provocou muitos intelectuais. O antropólogo Darcy
Ribeiro buscou problematizar essa temática a partir da inquietação: “a coisa mais
importante para os brasileiros é inventar o Brasil que queremos, ou seja, porque o Brasil
não deu certo?”. Tal questão aparece em sua obra O Povo Brasileiro, nela, este autor
assinala “surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor
português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros
aliciados como escravos” (RIBEIRO, 2006, p.17).
De fato, houve uma mistura de corpos, saberes e fazeres, isso é, trata-se de uma
herança genética e cultural que proporcionou um gênero humano novo.
Semelhantemente Renato Ortiz (2012) ressaltou que aspectos da cultura popular se
vinculam à identidade nacional, assim sendo,
... o brasileiro será caracterizado como homem sincrético, produto do
cruzamento de três culturas distintas: a branca, a negra e a índia. O
conceito de povo permanece, no entanto, relativamente próximo
aquele elaborado anteriormente, uma vez que o brasileiro seria
constituído por esse elemento popular oriundo da miscigenação
cultural. (ORTIZ, 2012, p. 127-128)
Segundo o antropólogo Roberto DaMatta (1986), em sua obra: O que faz o
brasil, Brasil?, há elementos identitários que fazem com que nos reconheçamos como
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brasileiros nos pequeníssimos sinais. Quais seriam estes sinais? O Brasil deste autor é o
país do carnaval, do feijão com arroz, do jeitinho que engana a lei, da hierarquia
disfarçada pela cordialidade, da piedade religiosa, do sincretismo, no culto à ordem, da
malandragem, do trabalho duro e da preguiça. Ora, a ênfase estabelecida no seu olhar é
na especificidade e em dicotomias. Não utilizo tal perspectiva, pois estou em busca de
conexões e ambivalências, entretanto, constituo reflexões a partir de algumas
considerações deste teórico, pois o carnaval revela expressões de nacionalidade através
de símbolos e manifestações culturais populares, logo;
... será preciso estabelecer uma distinção radical entre um “brasil”
escrito com letra minúscula, nome de um tipo de madeira de lei ou de
uma feitoria interessada em explorar uma terra como outra qualquer, e
o Brasil que designa um povo, uma nação, um conjunto de valores,
escolhas e ideais de vida. (DAMATTA, 1986, p. 7)
Do mesmo modo o autor Jorge Amado (2011) ao escrever sobre O país do
carnaval no contexto de 1930 depara-se com questões da existência humana que passam
por dimensões de nacionalidade, religiosidade, manifestações culturais, influência de
outros países sobre o solo brasileiro. Aponta então através de um dos seus personagens:
“o maior problema do Brasil é saber se escreve seu nome com s ou com z” (AMADO,
2011, p.62).
De fato, é imprescindível sinalizar que a triangulação “tradição”, “modernidade”
e “popular” formam um ajuste tensionado da constituição do pertencimento nacional e,
se já não fosse o suficiente para mostrar a complexidade do assunto em questão, soma-
se a isso elaborações de linguagens, demarcações territoriais, dimensões culturais, ou
seja, em meio a esse emaranhado, a “alma do povo” e ou a ideia de povo-nação vai
sendo forjada. Este último aspecto foi (é) um tema em constante processo de
(re)significações, pois, são narrativas identitárias em disputas. Nesse sentido, “para que
cada nação seja idêntica a si mesma e diferente das outras é necessário que o ideal de
integração, que agrega aquilo que se encontra disperso, se realize. O espírito nacional é
um índice, um emblema de algo que transcende” (ORTIZ, 2015, p.141).
Cabe ressaltar que em solo brasileiro já se manifestou paradigmas políticos
coloniais com ênfase escravocrata, imperiais, republicanos, ditatoriais, democráticos e
redemocratizados. Evidentemente não são modelos fixos e acabados, mas processos
ambivalentes de mudança-permanência. Em cada momento desses, muito sangue foi
derramado. Não é exagero dizer (em hipótese alguma) que há um débito moral, ético,
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econômico com os povos indígenas e africanos em solo brasileiro. Sinalizo essas
questões apenas para refletir: Por que determinados elementos culturais (atribuídos a
tais grupos “subalternizados”) serem eleitos e utilizados como símbolos nacionais? Isto
é, o samba, o carnaval, a alegria, o futebol, a malandragem, a capoeira, a culinária, a
cachaça, a preguiça, etc. É importante sublinhar que a nação é inventada dentro de um
processo sócio histórico, daí: “... não há como não inventar culturas, do mesmo modo
que não há como manter as suas patentes intactas: elas aí estão para ser copiadas e
modificadas” (ANDERSON, 2008, p.14). A seguir, aponta Renato Ortiz:
... toda identidade é uma construção simbólica (a meu ver necessária),
o que elimina, portanto, as dúvidas sobre a veracidade ou a falsidade
do que é produzido. Dito de outra forma, não existe uma identidade
autêntica, mas uma pluralidade de identidades, construída por
diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos (ORTIZ,
2012, p. 8).
Ora, outra contribuição significativa sobre essa análise é dada por Benedict
Anderson (2008): as nações são inventadas e imaginadas, ou seja, não são essenciais e
naturais. Logo, não se busca uma narrativa “verdadeira” ou “falsa” da nacionalidade,
mas reverberar que tal vínculo e ou sentimento passa necessariamente por processos de
construção de memórias, isto é, conflitos entre o que é lembrado-esquecido a partir de
tensões, cumplicidades, mediações e, não menos, interesses diversificados. Portanto,
este autor aponta: “ela é tão limitada como soberana, na medida em que inventa ao
mesmo tempo que mascara” (ANDERSON, 2008, p. 12). E ainda:
Nações são imaginadas, mas não é fácil imaginar. Não se imagina no
vazio e com base no nada. Os símbolos são eficientes quando se
afirmam no interior de uma lógica comunitária afetiva de sentidos e
quando fazem da língua e da história dados ‘naturais e essenciais’;
pouco passíveis de dúvida e de questionamento. (ANDERSON, 2008,
p. 16).
Desta maneira, muitas foram as sínteses de “imagens nacionais” como tentativas
analíticas de uma realidade complexa e diversa. A ideia de mestiçagem ganhou muita
força. Se por um lado ela defende a mistura como algo relevante em um contexto em
que se defendia a “pureza racial”, por outro, ela mascara conflitos étnico-raciais,
político-econômicos e, não menos, dimensões religiosas de uma ambivalência
(des)integração desses corpos singular-plurais. Assim:
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... a noção de mestiçagem faz parte da tradição intelectual brasileira,
por isso o pensamento de Gilberto Freyre é exemplar. Para
compreender nossa realidade ele utiliza uma série de polaridades:
casa-grande e senzala, sobrados e mocambos, nação e região. O
senhor não se opõe ao escravo, a elite que habita os sobrados não é
uma negação dos mocambos e a região é uma realidade territorial que
complementa a nação. Tudo é parte do mesmo conjunto, a identidade
mestiça é uma síntese de todas as polaridades... O Brasil diverso
encontra na mescla, na mistura, o equilíbrio político e social (ORTIZ,
2015, p. 158).
Com efeito, algumas leituras do Brasil foram feitas por diversos intelectuais.
Destacam-se: “democracia social-racial” apontada por Gilberto Freyre; “cordialidade”
discutida por Sérgio Buarque de Holanda; “malandragem” identificada por Roberto
DaMatta, além dos diversos folcloristas que tornaram visível a questão do popular no
Brasil, apresentando “o que somos” mediante as diversas manifestações culturais. Tais
estudos são também reduções “do real”, uma vez que não problematizam outras
narrativas e possibilidades de resistência. Ora, um ato de recontar a história, como
sugere Darcy Ribeiro (2006), “ao contrário do que se alega a historiografia oficial,
nunca faltou aqui, até excedeu, o apelo à violência pela classe dominante como arma
fundamental da construção da história. O que faltou, sempre, foi espaço para
movimentos sociais capazes de promover sua reversão” (RIBEIRO, 2006, p.23).
Nessa perspectiva o autor Mikhail Bakhtin (2010) analisando a cultura popular
na Idade Média, percebeu que o riso era um ato de resistência, ou seja, o riso-festivo
manifesta-se como impiedoso e opõe-se ao poder instituído oficial do mundo religioso.
“O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se a cultura oficial, ao
tom sério, religioso e feudal da época” (BAKHTIN, 2010, p.03). Dessa forma, a crítica
social em “tom” de brincadeira apresenta um riso que desestabiliza as autoridades
normativas, sobretudo na festa, um riso subversivo, podendo potencializar ainda que
simbolicamente ou temporariamente a mudança. Com efeito, “os homens da Idade
Média participavam igualmente de duas vidas: a oficial e a carnavalesca, e de dois
aspectos do mundo: um piedoso e sério, o outro, cômico” (BAKHTIN, 2010, p. 82). Ou
seja, o espaço festivo aparece de alguma maneira como possibilidade de
“afrouxamento” da coercitividade das relações sociais.
De fato, a experiência da carnavalização é cheia de ambivalências, pois esse
processo ocorre na festa e confunde-se com a vida no seu cotidiano. Assim sendo, ainda
que por um breve momento, ocorre a suspensão da realidade como expressa DaMatta
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(1997) na ideia de crítica social através dos papéis sociais experimentados e
“invertidos”, até porque, para este autor, através do ritual carnavalesco, percebe-se a
centralidade cultural e os valores de uma sociedade. Daí:
... no Brasil, sabemos que o carnaval é uma festa especial e também
uma trapalhada, uma confusão, uma bagunça. Um momento em que as
regras, rotinas e procedimentos são modificados, reinando a livre
expressão dos sentimentos e emoções, quando se podem manifestar
individualmente (DAMATTA, 1997, p. 157).
Partindo desse pressuposto, o carnaval proporciona comunhão, liberdade,
anonimato e relativa autonomia, isto é, o carnaval é uma espécie de liberdade controlada
e, “inversão que pode permitir a subversão temporária, mas básica, da hierarquia secular
da sociedade, criando outras áreas e linhas de poder” (DAMATTA, 1997, p. 177).
Portanto, seja o ato de rir como subversão no contexto medievo e ou experiências
carnavalescas cariocas de suspensão da realidade temporária, a identidade nacional
carnavalesca foi (vai) sendo forjada e, conforme Renato Ortiz (1999 apud FARIAS,
2003) “a cultura popular contemporânea é, em boa medida, fabricada por esferas
especializadas que escapam ao domínio das localidades” (FARIAS, 2003, p.180).
Assim sendo, reverbera Edson Farias:
No decorrer de 500 anos, em especial durante o século XX, a folia
momêsca encontrou um lugar estratégico no delineamento da cultura e
da identidade nacionais. Sua ritualidade ancorou traços exaltados do
perfil do país e de seu povo: o sensual estilo tropical com apreço ao
comportamento lúdico de uma alegria irreverente. Não é de se
estranhar o fato de ter se consagrado um signo de brasilidade com
circulação mundial... Justamente por sua abrangência, vazando as
dimensões continentais do Brasil, capaz de atravessar estratificações
de classe, raça, gênero, idades e outras, o carnaval se firmou como
uma festa nacional por excelência. Entronada nesse posto, consolidou-
se amplo espaço de visibilidade composto pelos mais diferentes
gestos, linguagens e códigos, enfim. (FARIAS, 2016, p. 136)
Neste jogo de “fabricação da identidade nacional”, o rádio, a televisão, a
literatura, o cinema e, ultimamente, o material audiovisual vinculado ao “mundo digital”
junto às redes sociais são indispensáveis na produção de identidades. Além do mais,
"para se pensar como se estrutura atualmente o campo da cultura é necessário levar-se
em consideração a atuação do Estado brasileiro, que, sem dúvida alguma, é um dos
elementos dinâmicos e definidores da problemática cultural" (ORTIZ, 2012, p. 79). Ou
seja, as memórias são construídas em conversa com os aparatos tecnológicos que
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fortalecem e potencializam fabricações de oralidades e visualidades e consequentemente
pertencimentos. Ora, por se tratar de um lugar de debates compete indicar que:
O fato marcante é como a modernização do país, afinada no âmbito do
entretenimento-turismo, engata-se aos destinos tomados pelos
produtos rubricados como populares, tendo como destaque a festa
popular, calcada numa aliança entre grupos e classes de pessoas tão
heterogêneas e dispostas de maneira desigual na distribuição dos
resultados monetários e simbólicos. (FARIAS, 2003, p. 195).
Diante disso, este artigo se propõe através da análise sociológica compreender os
significados e sentidos da identidade nacional carnavalesca e as estratégias de produção-
consumo de material audiovisual para o público infantil, haja vista que atualmente vem
crescendo o campo de rentabilidade no que tange ao processo de difusão da cultura para
crianças e adolescentes com o uso da tecnologia. Ora cada vez mais cedo as crianças
mergulham no mundo tecnológico e escolhem o tablet, os celulares, os computadores, o
ipod como os brinquedos favoritos.
Conforme Alberto Moreira (2003), a produção-circulação de formas simbólicas
pela mídia tem um papel decisivo na vida social das pessoas, assim, numa
complexidade que envolve o jogo “midiatização da cultura e produção da cultura
midiática” concomitantemente, tecnologia, informação e consumo aparecem como
atividades do entretenimento por vias culturais na música, no cinema, nos shows, nos
livros, nas revistas e, de maneira mais específica, na indústria da fantasia infantil.
Ainda refletindo com este autor, ele aponta para o conceito de sistema midiático-
cultural, todavia, do que se trata efetivamente? Ora, são:
...essas corporações, cujas empresas conjugam televisão,
computadores, Internet, vídeo, cinema, aparelhos de diversão
eletrônicos, mas também rádios, revistas, jornais, outdoors,
banners e outras formas de comunicação imagética, sonora e/ou
virtual, são agentes sociais poderosos. Elas, mais pelas
características de sua atuação social que por sua organização
interna ou setorial, parecem estar constituindo um verdadeiro
sistema midiático-cultural. (MOREIRA, 2003, p. 1207)
Desta maneira, os “missionários da alegria”, isto é, os que difundem as boas
novas ocupam um lócus privilegiado no processo de (re)criação dos valores, dos gostos
e das visões de mundo, logo, criam personagens e estabelecem uma comunicação
imagética, sonora e virtual na rede de consumidores. Muitas são as metamorfoses
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societárias, assim, mesmo diante da complexidade conceitual da perspectiva cultural, o
autor supracitado defende que a arena cultural tem sofrido alterações, daí:
...a presença ubíqua desse sistema midiático-cultural, a sua ação
pervasiva e constante e o poder simbólico de que dispõe estão
provocando modificações profundas no âmbito da cultura, em
todos os seus aspectos. Talvez a mais importante dessas
transformações seja o fato de que a própria cultura é cada vez
mais midiatizada (MOREIRA, 2003, p. 1207).
Cabe ressaltar que as representações identitárias e simbólicas estão no
entrecruzamento das nossas vidas cotidianas com as relações sociais de poder que
perpassam dimensões econômicas, religiosas, políticas, territoriais, assim como,
marcadores sociais de classe, raça, geração e gênero, isto é, forjar o processo identitário
é assumir uma narrativa e ou estética política. Pode-se dizer que “ao influenciar o
processo de construção das identidades, ao estimular determinadas lealdades e
pertencimentos e ao favorecer determinada visão de mundo, o complexo midiático-
cultural tornou-se talvez, o principal agente no processo cultural” (MOREIRA, 2003, p.
1211). Com efeito:
...o sistema midiático tornou-se nas sociedades modernas talvez o
principal fator gerador e difusor de símbolos e sentidos. Símbolos e
sentidos estes que geram tanto sentimentos de identificação e de
pertencimento como de anomia e exclusão. Anúncios publicitários só
são eficazes porque têm apelo para os consumidores, porque fornecem
imagens com as quais eles podem se identificar. A presença da mídia
é decisiva porque suas histórias, mensagens e anúncios, como de resto
todas as práticas de significação que produzem significados,
‘envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir quem é
incluído e quem é excluído’. (MOREIRA, 2003, p. 1211)
E ainda:
...nossa imagem do mundo de fato se transformou. Sabemos que não
podemos mais pensar em termos simplesmente locais e isolados;
percebemos a realidade de povos e situações antes distantes no tempo
e no espaço, e de como estamos interligados. Surgiu uma realidade
nova na história humana: a constituição (real) de uma sociedade-
mundo, e uma percepção (ideal) do planeta Terra como casa dos
humanos e de toda a biosfera. Sem dúvida a atuação dos meios de
comunicação de massa foi fundamental neste processo, rompendo a
barreira dos Estados, das línguas e das culturas regionais.
(MOREIRA, 2003, p. 1212)
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Evidentemente não se trata de um rompimento total e ou uma não influência de
instituições como a família, a escola e a religião na socialização das crianças, todavia, é
possível afirmar que tal influência exerce graus variados, uma vez que, a maioria das
histórias que eram contadas pelos agentes dessas instituições, agora, é narrada por
personagens em produtos áudios-visuais gerando outras dinâmicas sociais como sinaliza
Alberto Moreira:
...inegável, contudo, parece-me o fato de que o sistema
midiáticocultural elabora e difunde, mesmo se de uma forma não
totalmente intencional ou planejada, visões de mundo, sentidos e
explicações para a vida e a prática das pessoas e, por isso, passa a
influenciar sempre mais seu cotidiano, sua linguagem e suas crenças.
Justamente o âmbito das crenças e da elaboração do sentido, da visão
de mundo como uma atitude fundamental perante o real, que
tradicionalmente foi um espaço ou uma função atribuídos à família, à
escola, às religiões e filosofias, está hoje, em boa parte, concentrado
nas mãos dos agentes midiáticos. (MOREIRA, 2003, 1212).
Para elucubrar esses assuntos faço um diálogo com Mundo do Bita, logo,
interessa-me compreender como estrutura da personalidade, identidade nacional e
economia criativa articulam-se em tom entretenimento infantil? Isto é, como os
“barracões digitais” fabricam-combinam pertencimentos imagéticos carnavalescos
através de música, cor, movimento, diversão e aprendizado?
VENHAM TODOS! O CARNAVAL JÁ ESTÁ NAS RUAS
FIGURA 1. Bita anunciando o Carnaval.
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“a felicidade do pobre parece a grande ilusão do carnaval, a gente
trabalha o ano inteiro, por um momento de sonho pra fazer a fantasia
de rei ou de pirata ou jardineira, pra tudo se acabar na quarta-feira”.
(Tom Zé)
Como um personagem feito para o aniversário de uma criança torna-se símbolo
para milhares crianças em território brasileiro? Conforme entrevista concedida ao Jornal
do Comércio3em 02-01-16, Chaps de Melo, criador do personagem infantil Bita, diz: “O
Bita surgiu antes da Mr. Plot4... Minha filha estava para nascer e queríamos um tema
legal para decorar o quarto dela. Não encontramos nada que nos interessasse, então eu e
a mãe dela criamos esse cara, o Bita, para isso”. Na realidade, o ruivinho Bita tornou-se
uma “celebridade” através da ousada criatividade e, não menos, mediações tensionadas
com saberes e interesses múltiplos de um grupo de sócios idealizadores da empresa Mr,
Plot formado por: Felipe Almeida, João Henrique, Chaps Melo e Enio Porto.
Com efeito, após algumas experimentações para o público infantil com
aplicativos e ebook, brotou a ideia de fazer clipes musicais com o personagem animado
e canções originais (autorais) compostas por Chaps e, neste momento, ocorreu uma
grande virada nos negócios. Houve uma combinação da tecnologia da informação com a
economia criativa através do Porto Digital. Todavia, o que tudo isso tem haver com a
“identidade nacional carnavalesca”?
Como se sabe, cabe ao cientista social desnaturalizar o seu mundo e o que era
para ser mais uma manhã com Guilherme (sobrinho de Jussi, minha esposa) ao assistir o
DVD Bita e os Animais, me trouxe aos olhos e ouvidos certa estranheza. Como assim o
Carnaval do Bita? O que faz essa temática em um DVD infantil? Confesso que
somando a essas inquietações, passei a cantarolar aquela e outras músicas o “dia todo”.
Declaro ainda que o mais estranho era cantar com alegria! Não se tratava daquelas
“músicas infantis infernais” que torturam nosso sono. Contudo, o que há nesta canção?
Quais imagens foram escolhidas e como foram utilizadas nesse processo de uma
“identidade nacional carnavalesca”? A canção anuncia:
3 Jornal do Comércio – Saiba como nasceu o Mundo Bita, animação feita em Pernambuco.
http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/economia/pernambuco/noticia/2016/01/02/saiba-como-nasceu-o-
mundo-bita-animacao-feita-em-pernambuco-214964. Acesso feito em 26 de outubro de 2016 4 Conforme explica o site do Mundo Bita: A Mr. Plot surgiu em 2011 como editora de livros digitais.
Antes mesmo dos clipes, o Bita já ilustrava historinhas como Circo Mágico do Bita e aplicativos
educativos como o ABC do Bita. Hoje, são 10 apps, com mais de 500 mil downloads, com um
destaque para o aplicativo Mundo Bita, que oferece todos os desenhos animados musicais da turma.
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O carnaval chegou, vamos correndo invadir a avenida. Já separei um
monte de confete e também de serpentina. Venha pra cá dançar, mas
não esqueça de trazer a fantasia. No carnaval é tudo colorido e cheio
de energia. Pula que pula que nem pipoca, pipoca como quem samba,
rebola diz que me ama, reclama não quero embora o carnaval tá na
avenida e eu nunca paro de dançar. Dança balança nessa magia folia,
eu acho é pouco seu moço, requebra o corpo, agora não quero embora
o carnaval tá na avenida e eu nunca paro de dançar. O carnaval taí e a
minha turma já tá toda reunida. O bloco agora sai distribuindo amor e
muita alegria. Na nossa troça vai: vampiro, índio, super-homem,
bailarina. Vamos simbora agora o carnaval só fica aqui por quatro
dias. Pula que pula que nem pipoca, pipoca como quem samba, rebola
diz que me ama, reclama não quero embora o carnaval tá na avenida e
eu nunca paro de dançar Dança balança nessa magia folia, eu acho é
pouco seu moço, requebra o corpo, agora não quero embora e o
carnaval tá na avenida e eu nunca paro de dançar [2x]
Ao observar o vídeo supracitado percebi como essa canção revela e fortalece
simultaneamente um ethos de uma “identidade nacional carnavalesca”. É uma espécie-
tentativa de “síntese nacional” a partir do carnaval em sua dinâmica multifacetada! O
vídeo inicia ao som de instrumentos percussivos e de sopro, ou seja, uma marchinha,
convocando todos para celebração nas ruas, em que o carnaval vai assumindo um
aspecto ambivalente espectral-pessoal, pois, nele, durante quatro dias, vida e folia
confundem-se como uma explosão de alegria mediante suas cores, seus personagens,
seus regionalismos, seus instrumentos e não menos suas fantasias. O Bita, por exemplo,
no carnaval, fantasia-se de bailarina (referenciando uma muquirana?), fazendo das ruas
seu palco. Já no sambódromo, tal personagem desfila no carro alegórico.
FIGURA 2. Bita no Carnaval.
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Desta maneira, foram escolhidas imagens como: rua, foliões, trio da Bahia,
sambistas, bumba meu boi, bonecões de Olinda, sambódromo carioca, confetes e
serpentinas, palhaços e piratas, muito colorido e alegria. A música sinaliza como os
grupos invadem as ruas para brincar-dançar. São dias de muita celebração!
Percebe-se ainda a realização do carnaval nas ruas (como algo público),
acessível ao folião que queira participar com ênfase nas fantasias e, ao mesmo tempo, a
imagem do trio e do sambódromo para o folião que (também) possa pagar-desfilar. Há
assim um processo de combinações tensionadas que envolvem respectivamente
mercantilização de bens culturais, “identidade nacional carnavalesca”, estrutura da
personalidade e entretenimento, Daí:
... se os membros de uma população territorial encontram-se separados
pela distância geográfica, pela origem da classe, pelo fato de serem
citadinos ou camponeses, um mesmo conjunto deve envolvê-los para
que façam parte de uma unidade comum. A cultura é a consciência
coletiva que vincula os indivíduos uns aos outros. (ORTIZ, 2015,
p.142)
De fato, no que diz respeito a festejar nas ruas, de acordo com o antropólogo
José Sávio Leopoldi (2010) há um “renascer da carnavalidade” na festa carioca com os
blocos de ruas proporcionando uma maior “liberdade” dos foliões. O carnaval carioca
vai se reinventando, ou seja, tanto no espetáculo de rua quanto no modelo do
sambódromo (carnaval para exportação), a criatividade, a liberdade controlada se
manifesta nos corpos dos foliões. E no caso do público infantil, como vai sendo
construído esse gosto? Segundo a socióloga Salete Nery (2015) em sua análise sobre as
princesas da Disney/Pixar,
... as produções cinematográficas voltadas para o público infantil são
simbólicas e, portanto, necessariamente políticas. Isso significa
afirmar que tais obras são, a um só turno, criadas pelo mundo e
criadoras do mundo, uma vez que fornecem uma síntese sócio-
histórica de seu percurso de constituição — daí seu caráter expressivo
—, ao mesmo tempo em que ajudam a construir condutas. (NERY,
2015, p. 15)
Há um projeto político-pedagógico nas narrativas do Mundo Bita em que os
profissionais dos “barracões digitais” constroem produtos originalmente (autorais)
voltados ao público infantil-adulto, assim sendo, “num mundo em que as demandas
15
sobre os pais são grandes e o tempo de dedicação aos filhos é curto, apostar nas
histórias para crianças, suposto primor na transmissão de bons comportamentos, parece
ser uma saída fácil” (NERY, 2015, p. 33).
Com efeito, o Carnaval do Bita propõe um gosto festivo carnavalesco aberto ao
processo imaginário das fantasias. Daí, a figura de Lila (a garotinha da turma do Bita
que é loira), assume o padrão do carnaval pernambucano e, invade as ruas, com uma
estética colorida e dançante do frevo. Percebe-se em Tito (outro personagem
representado por um menino ruivo) a fantasia de pirata e Dan (personagem que
completa a equipe e é apresentado por um garoto negro), celebra o bumba meu boi e,
torna-se, ainda que temporariamente no carnaval, o próprio Bita, haja vista o uso de
elementos simbólicos nas ruas como: cartola, gravata borboleta e suspensório.
FIGURA 3. Turma do Bita no Carnaval.
Assim, brincando com a matéria-prima principal do Carnaval do Bita que é a
imaginação, no meu caso a sociológica, pode-se abordar que a carnavalização revela
uma ideia de crítica social através dos papéis sociais experimentados e “invertidos” na
festa, até porque, através do ritual carnavalesco, percebe-se a centralidade cultural e os
valores de uma sociedade (DaMatta,1997). Por isso, Dan, representante do negro
brasileiro, que ao longo da História hegemônica vem sendo oprimido e marginalizado,
no carnaval pousa de rico e branco ao fantasiar-se de Bita que tem em suas
indumentárias e na barriga grande o símbolo do capitalismo e da fartura.
Desta maneira é correto alegar que os profissionais dos “barracões digitais”
criam narrativas, isto é, mundos através de músicas, cores, aprendizado e alegria.
16
Evidentemente, outros vídeos do Mundo Bita expressam reflexões e desnaturalizações
de questões de classe, gênero, raça. Exemplos não faltam para demonstrar como outras
construções sociais vêm sendo desenvolvidas em meio ao som, às imagens e a letra das
inúmeras canções do Mundo Bita. Meninas brincam de bola com muita destreza,
bonecas são fortes, valentes e descabeladas, bonecos são meigos e agem gentilmente
além de brincar de casinha. Também existe a inclusão social de crianças com
necessidades especiais colocando-as como heróis e heroínas, além de negros e brancos
possuírem as mesmas condições econômicas. Na música Ela e Ele, mais novo DVD, há
uma busca por desenvolver nas crianças e adultos a igualdade entre os gêneros. Vale
destacar que a roupa do Bita possui a cor rosa com muita presença.
Tal empreendimento, ainda que em tom de “brincadeira de criança”, deseja
consolidar-se diante de outras empresas concorrentes, logo, anseiam ampliar os
consumidores mirins junto aos pais e parentes, os amigos e vizinhos, os professores e
colegas de escola, logo, esses diferentes agrupamentos, revelam visões de mundo
distintas. Todavia, parece ser, ao menos, até aqui, uma estratégia acertada, isto é,
produzir material autoral numa fronteira entre o mundo infantil e o mundo adulto.
De fato, o Carnaval do Bita é um mundo criado e criador de mundo
concomitantemente. O que é moldado também molda o moldador, logo, “a estrutura e a
configuração do controle comportamental de um indivíduo dependem das estruturas das
relações entre os indivíduos” (ELIAS, 1994, p. 56). Ora, sabe-se que o processo de
socialização implica em figurações de interdependência e interpenetrações que se
combinam de forma tensionada em que inúmeras ambivalências se estabelecem. No
entanto, aqui enfatizarei apenas a dimensão de liberdade-controle que constituem tal
fenômeno social, deste modo, “a socialização é um processo de iniciação num mundo
social, em suas formas de interação e nos seus numerosos significados” (BERGER,
BERGER, 2008, p. 174).
Ocorre assim um paralelismo entre processos biológicos e modos de
socializações, ou seja, “cada criança, ao nascer, é produto de um destino que tem uma
dimensão natural e uma dimensão social” (ELIAS, 1994, p. 40). Assim sendo:
...a socialização é um processo de configuração ou moldagem. A
criança é configurada pela sociedade, é por ela moldada de forma a
fazer dela um membro reconhecido e participante. Mas é importante
que não se veja nisso um processo unilateral. Mesmo no início da
vida, a criança não é uma vítima passiva da socialização. Resiste à
mesma, dela participa e nela colabora de forma variada. A
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socialização é um processo recíproco, visto que afeta não apenas o
individuo socializado, mas também os socializantes (BERGER;
BERGER, 2008, p. 174).
A obra Mozart, A sociologia de um Gênio do sociólogo Norbert Elias (1995)
propõe a superação da “ilusão biográfica”, ou seja, para além de uma perspectiva que
naturaliza os indivíduos isoladamente de suas experiências no mundo, esse intelectual
defende com autoridade o pressuposto figuracional segundo o qual os indivíduos vivem
em redes invisíveis de poder em que se sofre e exerce-o ao mesmo tempo. Assim, este
autor desnaturaliza a suposta genialidade de Mozart como algo inato e sinaliza as
relações sociais estabelecidas que fizeram no processo sócio-histórico deste indivíduo
social alguém de prestígio na musicalidade europeia.
De fato, Norbert Elias em sua análise sobre Mozart buscou perceber o indivíduo
preso à totalidade do seu contexto social. Logo, interessou-se perceber como um
“vencido” (deixado pela esposa) repleto de débitos que não alcançou viver de sua arte
(musical) torna-se (em seguida) um emblema da “universalidade musical”. Como e por
que isso ocorre? Bem, “para se compreender alguém, é preciso conhecer os anseios
primordiais que este deseja satisfazer. A vida faz sentido ou não para essas pessoas,
dependendo da maneira em que elas conseguem realizar tais aspirações” (ELIAS, 1995,
p.13).
Então, o que aspirava Mozart? Almejava ser reconhecido como artista autônomo
e viver do seu talento, pois não esperava ser mais tratado de forma distinta
(estigmatizado por pertencer à burguesia) pelos cortesãos que patrocinavam sua música,
ou seja, cabe ressaltar que “era característico do grande artista burguês de corte viver,
até certo ponto, em dois mundos” (ELIAS, 1995, p.21). Contudo, viver entre a nobreza
e a burguesia não era suficiente para Mozart.
Com efeito, Elias enfatiza o conflito constante de padrões advindos da relação
entre nobreza e burguesia, mas também entre a criatividade pessoal e a sociedade
coercitiva. Desta maneira, o autor aponta que para compreender a música é necessário
perceber a estrutura do contexto.
...é preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais
que agem sobre o indivíduo. Tal estudo não é uma narrativa histórica,
mas a elaboração de um modelo teórico verificável da configuração
que uma pessoa – neste caso, um artista do século XVIII – formava,
em sua interdependência com outras figuras sociais da época. (ELIAS,
1995, p.18-19)
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Numa perspectiva figuracional, como ocorre o equilíbrio entre a criatividade
individual e a coercitividade do coletivo? Ora, “não é difícil compreender que o que
pretendemos conceptualizar como forças sociais são de facto forças exercidas pelas
pessoas, sobre outras pessoas e sobre elas próprias” (ELIAS, 2008, p. 17). E ainda;
Só dentro da estrutura de tal modelo é que se pode discernir o que uma
pessoa como Mozart, envolvida por tal sociedade, era capaz de fazer
enquanto indivíduo, e o que – não importa sua força, grandeza ou
singularidade – não era capaz de fazer. Só então, em suma, é possível
entender as coerções inevitáveis que agiam sobre Mozart e como ele
se comportou em relação a elas – se cedeu à sua pressão e foi assim
influenciado em sua produção musical, ou se tentou escapar ou
mesmo se opor a ela. (ELIAS, 1995, p.19)
Com efeito, o modo socialização promove a inculcação de valores que podem
influenciar as práticas sociais no cotidiano. “Desde o início a criança desenvolve uma
interação não apenas com o próprio corpo e o ambiente físico, mas também com outros
seres humanos. A biografia do indivíduo, desde o nascimento, é a história de suas
relações com as outras pessoas” (BERGER; BERGER, 2008, p. 169).
Desta maneira, se o horário de comer, de higienizar uma criança passa por
padrões societários que interferem no funcionamento de seu organismo, ou seja, a
criança como ser sócio-histórico vai se desenvolvendo em seus aspectos fisiológicos e
cognitivos a partir de influências culturais, políticas, religiosas, econômicas, geográficas
em que seus pais e ou responsáveis estão inseridos, logo, por que acreditar que o
habitus, numa linguagem eliasiana, ou seja, saberes incorporados de um “gosto festivo
carnavalesco” não é possível através de tecnologias contemporâneas? Sim! Pode-se
narrar que memória e estrutura da personalidade são construtos sociais que envolvem
aspectos sociais, biológicos e psicológicos ao mesmo tempo. Deste modo:
...o repertório completo de padrões sociais de auto-regulação que o
individuo tem que se desenvolver dentro de si, ao crescer e se
transformar em um indivíduo único, é específico de cada geração e,
por conseguinte, num sentido mais amplo, específico de cada
sociedade (ELIAIS, 1994, p. 8).
O Carnaval do Bita tornou-se símbolo dessa combinação da tecnologia da
informação, a economia criativa e o consumo como via de entretenimento. Ora, no
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início dos anos 70 consolidou-se a indústria cultural5, sacudida pelos meios de
comunicação, em especial a televisão, espetacularizando as culturas populares ou, como
afirmou Trigueiro (2005), os produtos culturais folkmidiáticos.
Em outra perspectiva da folkcomunicação tenho pesquisado
sistematicamente os processos de apropriação e incorporação das
manifestações culturais populares pela mídia e, em movimento
inverso, como os protagonistas das culturas populares se apropriam
das novas tecnologias para reinventarem os seus produtos culturais.
Essas aproximações, das culturas populares e midiáticas no mundo
globalizado são cada vez mais intensas. A essas cumplicidades
culturais, geradas em campos híbridos, passei a chamar de Produtos
Folkmidiáticos. Nesses campos estratégicos é que se dão as
negociações dialéticas, conflituosas e paradoxais mais importantes no
mundo globalizado. São campos operados por diferentes instâncias de
negociações que se deslocam em redes capilares de comunicação
comunitária interligadas às redes midiáticas. Ou seja, é nesses campos
híbridos, folkcomunicacionais que se dão as mediações entre as
culturas midiáticas e populares resultando em novos produtos de bens
culturais de consumo. São processos tensos e intensamente dialógicos
mediados pelos operadores das redes de comunicação cotidiana em
movimentos dinâmicos, onde se inventam e reinventam novas
manifestações culturais populares para as demandas de consumo da
sociedade midiática. (TRIGUEIRO, 2005, p. 2)
Torna-se importante salientar como no Carnaval do Bita, síntese das sínteses
nacionais, a festa carnavalesca é um modo de existência social e individual inseparável
na constituição no “brasileiro”, isto é, “a história é sempre história de uma sociedade,
mas, sem a menor dúvida, de uma sociedade de indivíduos” (ELIAIS, 1994, p. 45).
Segundo o sociólogo Edson Farias, “as festas são reconhecidas como figurações
de relações humanas, jogos entre valências dispostos como processos de trocas
múltiplas” (FARIAS, 2011, p.13). Assim, percebe-se cada vez mais que nas redes-
festivas há um modelo societário de consumidores que misturam-combinam expressões
culturais, profissionalismo e brincadeira.
5Termo usado para designar o modo de fazer cultura a partir da lógica da produção industrial, ou seja,
com a finalidade de gerar lucro. Dessa forma, somente após a Revolução Industrial juntamente com a
existência de uma economia de mercado - isto é, de uma economia baseada no consumo de bens - e,
enfim, o surgimento de uma sociedade de consumo, só verificada no século XIX em sua segunda metade,
é que se pode falar sobre a Indústria Cultural. Para Adorno e Horkheimer (os primeiros, na década de
1940, a utilizar a expressão "indústria cultural" tal como hoje é entendida), essa indústria promove a
alienação do homem, promovendo um processo no qual o indivíduo é levado a não refletir sobre si
mesmo e sobre a totalidade do meio social circundante, transformando-se com isso em uma marionete e,
afinal, em mero produto alimentador do sistema capitalista. Do outro lado, existe outra corrente que
defende a ideia segundo a qual a indústria cultural é o primeiro processo democratizador da cultura, pois
sendo popularizada torna-se também instrumento no combate dessa mesma alienação.
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... compreende o encadeamento espaço-temporal dotado de uma
figuração própria de equilíbrios de poder em que a lógica de
ampliação dos fatores de lucratividade do capital está articulada ao
peso adquirido por uma economia simbólica, na qual o comércio de
signos e a ludicidade são valorados na contrapartida da geração de
disposições práticas (e também estratégias), devotadas à elaboração e
ressignificação de coisas e pessoas em espaços definidos pela
finalidade do lazer. As identidades compactuam com a
institucionalização de grades taxonômicas delineadas na esteira de
distribuição de retenções várias dos elementos avaliados como raros e,
também, com os níveis de integração social por intermédio do grau de
acesso a bens e serviços inscritos na lógica monetário-mercantil de
posse e uso dos bens materiais e intangíveis”. (FARIAS, 2011, p.14)
E ainda:
... ao falar do circuito de festas populares regionais está em questão
situações de congraçamento e diversão populares identificados por
referência regionais, as quais vão constituindo em megaeventos de
entretenimento e turismo, inscritos numa economia do lúdico.
(FARIAS, 2011, p. 23)
De fato, o território nacional carrega uma “mística de brasilidade lúdica”
rubricada como “tradicionais” nos modos de vida e de produção-consumo de bens
culturais conectados a dimensões de diversão-lazer, logo, o personagem do Bita assume
essa mediação ampliando com processos educacionais. Neste sentido, o Bita (re)cria
através da ambivalência entre razão e fantasia um gosto festivo numa rede de disputas,
tensões e cumplicidades com os diferentes agentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“No carnaval a chuva não cai, não cai do céu, a gente joga confete e
cai chuva de papel” (Turma do Cocoricó).
Na música infantil Raios e Trovões (2007) da Turma do Cocoricó há uma faixa
que utiliza uma linguagem metafórica com elementos carnavalescos, para ensinar ao
público infantil sobre o fenômeno natural dos raios e dos trovões. Desse modo, ainda
que existam pontos semelhantes com o Carnaval do Bita como a marchinha, a fantasia,
o confete, a alegria, a rubrica autoral, fica explícito que o carnaval é secundário neste
jogo, uma vez que, as personagens brincam através de uma marchinha, utilizando a
fantasia de nuvem que ao chocar-se na outra passa a provocar aquilo que efetivamente é
significativo para aprendizagem, isto é, os Raios e os Trovões. Mas o intrigante é pensar
o porquê de utilizar-se do carnaval (objeto de estudos das ciências sociais e humanas)
21
para explicar um assunto até então integrante das ciências naturais? Que força tem a
identidade carnavalesca para os brasileiros?
Com efeito, muitos produtos voltados para os consumidores mirins tentam de
forma diferenciada voltar-se para o carnaval. Todos eles objetivam divertir com suas
cores, imagens e sons, mas também transmitir conhecimentos próprios da nossa
sociedade, garantindo então que a família aceite a entrada de tais elementos midiáticos
no espaço doméstico e enfim ampliando o mundo cultural das crianças. Dessa forma, se
o carnaval faz parte de uma cultura massiva na sociedade brasileira, inclusive é símbolo
identitário no que tange às outras sociedades, atraindo cada vez mais turistas-foliões e
finalmente exercendo poder econômico em nosso país, fica evidente que não poderia
deixar de participar do mundo infantil, ritualizando sua prática e garantindo a
“tradição”.
Na sugestão do antropólogo Roberto DaMatta (1997), o carnaval está ligado a
uma concepção de identidade nacional, daí, assumo que o Carnaval do Bita ajuda a
fazer isso ser internalizado pelas crianças através de elementos como letra da música,
marchinhas, ruas, fantasias, alegria, coloridos, etc, ou seja, narrativas criadas e criadoras
de mundo legitimando um gosto carnavalesco, por isso mesmo, seria um produto
nacionalmente vendável.
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