Breve história da neurociência cognitiva- cazzaniga

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1 Você pensa sobre grandes questões, como o sentido da vida ou o significado do significado? Ou você é do tipo que não se preocupa com tais questões? Se você é do se- gundo tipo, não leia este livro (muito embora seria me- lhor que você o lesse). Este livro é para aqueles que se preocupam com o que representa a vida, a mente, o sexo, o amor, o pensamento, o sentimento, o movimento, a atenção, o lembrar, o comunicar e o ser. Melhor, este li- vro trata do estudo científico destas grandes questões. Então, prepare-se para aprender sobre uma fantástica história que ainda está sendo escrita. O campo científico da neurociência cognitiva rece- beu este nome no final da década de 1970, no banco tra- seiro de um táxi da cidade de Nova York. Um de nós, Mi- chael S. Gazzaniga, estava com o grande fisiologista cog- nitivo George A. Miller, a caminho de um jantar de con- fraternização no Hotel Algonquin. O jantar era oferecido por cientistas das Universidades Rockfeller e Cornell, que estavam se esforçando para estudar como o cérebro* dá origem à mente, um assunto que necessitava de um nome. Desta corrida de táxi surgiu o termo neurociência cognitiva, que foi aceito na comunidade científica. Agora a questão é: O que isto significa? Para respon- der a essa intrigante questão, precisamos voltar atrás e olhar não somente para a história do pensamento huma- no, mas também para as disciplinas científicas de biolo- gia, psicologia e medicina. Para compreender as propriedades miraculosas das funções cerebrais, você deve ter em mente que foi a Mãe Natureza que as criou, e não uma equipe de engenheiros racionais. Apesar da Terra ter sido formada há aproxima- damente 5 bilhões de anos, e da vida ter surgido há cer- ca de 3,5 bilhões de anos, os encéfalos humanos, na sua forma final, apareceram há somente 100.000 anos. O en- céfalo dos primatas apareceu há aproximadamente 20 milhões de anos, e a evolução tomou seu curso para construir o encéfalo humano de hoje, capaz de todo o ti- po de façanhas maravilhosas – e banais. Durante grande parte da história, os humanos esti- veram muito ocupados para ter chance de pensar sobre o pensamento. Embora não se tenha dúvida de que o encé- falo humano possa exercer tais atividades, a vida exigia atenção a aspectos práticos, como a sobrevivência em ambientes adversos, a criação de melhores maneiras de PENSANDO SOBRE AS GRANDES QUESTÕES Do que trata o campo da neurociência cognitiva? De onde surgiu? Para onde está indo? Começamos este livro com uma breve história das pessoas e das idéias que levaram ao novo campo da neurociên- cia cognitiva, aquele que tem suas raízes na neurologia, na neurociência e na ciência cognitiva. A neu- rociência cognitiva, atualmente, representa um híbrido de disciplinas, de maneira que um estudante da mente deve estar atento a ter conhecimento em várias áreas para entender completamente os tópi- cos nela estudados. E esta área muda rapidamente. Ao final deste capítulo, apresentamos a curta e muito recente história da neuroimagem. O imageamento do cérebro tornou-se um ponto central no estudo da mente nos últimos anos. Breve História da Neurociência Cognitiva * N. de T. Aqui, a palavra “cérebro” é utilizada de forma mais ampla, para expressar muitas vezes o encéfalo ou, até mesmo, o sistema nervoso como um todo.

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  • 1Voc pensa sobre grandes questes, como o sentido davida ou o significado do significado? Ou voc do tipoque no se preocupa com tais questes? Se voc do se-gundo tipo, no leia este livro (muito embora seria me-lhor que voc o lesse). Este livro para aqueles que sepreocupam com o que representa a vida, a mente, o sexo,o amor, o pensamento, o sentimento, o movimento, aateno, o lembrar, o comunicar e o ser. Melhor, este li-vro trata do estudo cientfico destas grandes questes.Ento, prepare-se para aprender sobre uma fantsticahistria que ainda est sendo escrita.

    O campo cientfico da neurocincia cognitiva rece-beu este nome no final da dcada de 1970, no banco tra-seiro de um txi da cidade de Nova York. Um de ns, Mi-chael S. Gazzaniga, estava com o grande fisiologista cog-nitivo George A. Miller, a caminho de um jantar de con-fraternizao no Hotel Algonquin. O jantar era oferecidopor cientistas das Universidades Rockfeller e Cornell,que estavam se esforando para estudar como o crebro*d origem mente, um assunto que necessitava de um

    nome. Desta corrida de txi surgiu o termo neurocinciacognitiva, que foi aceito na comunidade cientfica.

    Agora a questo : O que isto significa? Para respon-der a essa intrigante questo, precisamos voltar atrs eolhar no somente para a histria do pensamento huma-no, mas tambm para as disciplinas cientficas de biolo-gia, psicologia e medicina.

    Para compreender as propriedades miraculosas dasfunes cerebrais, voc deve ter em mente que foi a MeNatureza que as criou, e no uma equipe de engenheirosracionais. Apesar da Terra ter sido formada h aproxima-damente 5 bilhes de anos, e da vida ter surgido h cer-ca de 3,5 bilhes de anos, os encfalos humanos, na suaforma final, apareceram h somente 100.000 anos. O en-cfalo dos primatas apareceu h aproximadamente 20milhes de anos, e a evoluo tomou seu curso paraconstruir o encfalo humano de hoje, capaz de todo o ti-po de faanhas maravilhosas e banais.

    Durante grande parte da histria, os humanos esti-veram muito ocupados para ter chance de pensar sobre opensamento. Embora no se tenha dvida de que o enc-falo humano possa exercer tais atividades, a vida exigiaateno a aspectos prticos, como a sobrevivncia emambientes adversos, a criao de melhores maneiras de

    PENSANDO SOBRE AS GRANDES QUESTES

    Do que trata o campo da neurocincia cognitiva? De onde surgiu? Para onde est indo? Comeamoseste livro com uma breve histria das pessoas e das idias que levaram ao novo campo da neurocin-cia cognitiva, aquele que tem suas razes na neurologia, na neurocincia e na cincia cognitiva. A neu-rocincia cognitiva, atualmente, representa um hbrido de disciplinas, de maneira que um estudanteda mente deve estar atento a ter conhecimento em vrias reas para entender completamente os tpi-cos nela estudados. E esta rea muda rapidamente. Ao final deste captulo, apresentamos a curta emuito recente histria da neuroimagem. O imageamento do crebro tornou-se um ponto central noestudo da mente nos ltimos anos.

    Breve Histriada Neurocincia Cognitiva

    * N. de T. Aqui, a palavra crebro utilizada de forma mais ampla,para expressar muitas vezes o encfalo ou, at mesmo, o sistemanervoso como um todo.

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    Um problema lhe dado para ser resolvido. Sabe-seque uma fatia de tecido biolgico pensa, lembra, prestaateno, resolve problemas, deseja sexo, pratica jogos,escreve novelas, expressa preconceito e faz milhes deoutras coisas. proposto que voc descubra como issoacontece. Antes de comear, voc pode fazer algumasperguntas. O tecido trabalha como uma unidade, comtodas as partes contribuindo como um todo? Ou ele cheio de processadores individuais, cada um deles ten-do suas funes especficas, resultando em algo que pa-rece funcionar como uma s unidade? Lembre-se que,a distncia, a cidade de Nova York parece um todo inte-grado, mas na realidade ela composta de milhes deprocessadores individuais, que so as pessoas. Talvez as

    pessoas, por sua vez, sejam feitas de unidades menores,mais especializadas.

    Este tema central se o crebro funciona como umtodo, ou se partes dele trabalham independentemente,constituindo a mente o que alimenta muito das pes-quisas modernas. Como veremos, a viso dominantemudou nos ltimos 100 anos, e continua a mudar. Tudocomeou no sculo XIX, quando os frenologistas, lidera-dos por Franz Joseph Gall e J. G. Spurzheim (entre 1810e 1819), declararam que o crebro era organizado comcerca de 35 funes especficas (Figura 1.1). Essas fun-es, que variavam de funes bsicas cognitivas, comoa linguagem e a percepo da cor, at capacidades maisefmeras, como a esperana e a auto-estima, eram con-

    viver, inventando a agricultura ou domesticando ani-mais, e assim por diante. Entretanto, logo que a civiliza-o se desenvolveu a ponto de que o esforo dirio parasobreviver no ocupasse todas as horas do dia, nossosancestrais comearam a dedicar mais tempo construindoteorias complexas sobre as motivaes dos seres huma-nos. Exemplos de tentativas de compreender o mundo enosso lugar nele incluem Oedipus Rex (dipo Rei), a anti-ga pea do teatro grego que lida com a natureza do con-flito pai-filho e as teorias mesopotmica e egpcia sobrea natureza da religio e do universo. Os mecanismos ce-rebrais que possibilitam a gerao de teorias sobre a ca-racterstica da natureza humana prosperaram no pensa-mento dos ancestrais humanos. Ainda assim eles tinhamum grande problema: no possuam a habilidade de ex-plorar a mente de forma sistemtica por meio da experi-mentao.

    Em um trecho de um dirio de 1846, o brilhante fil-sofo Soren Kierkegaard escreveu:

    Um homem deve dizer simples e profundamente que nocompreende como a conscincia leva existncia perfei-tamente natural. Mas um homem deve grudar seus olhosem um microscpio e olhar e olhar e ainda assim no sercapaz de ver como est acontecendo ; ridculo, e parti-cularmente ridculo quando se supe que isto srio... Seas cincias naturais estivessem desenvolvidas nos temposde Scrates como esto agora, todos os sofistas seriam cien-tistas. Haveria microscpios pendurados do lado de foradas lojas para atrair fregueses e teria uma placa dizendo:Aprenda e veja atravs de um microscpio gigante comoum homem pensa (e, lendo esta placa, Scrates teria dito:Assim se comporta um homem que no pensa).

    O prmio Nobel Max Delbruk (1986) iniciou seufascinante relato sobre a evoluo do cosmos no livroMind from Matter? com esta citao de Kierkegaard. Del-bruck faz parte da tradio moderna que se iniciou no s-

    culo XIX. Observa, manipula, mede e comea a determi-nar como o encfalo faz o seu trabalho. O pensamentoterico algo maravilhoso e produziu cincias fascinan-tes, como as teorias da fsica e da matemtica. Contudo,para entender como um sistema biolgico funciona, necessrio um laboratrio, e experimentos tm de serrealizados. Idias derivadas da introspeco podem sereloqentes e fascinantes, mas elas so verdadeiras? A fi-losofia pode acrescentar perspectivas, mas estariam cor-retas? Somente o mtodo cientfico pode guiar um tpi-co por um caminho seguro. Pense sobre a riqueza de fe-nmenos a serem estudados. Pegue a percepo de faces,por exemplo. Alguns dizem que o crebro tem um siste-ma especial para reconhecimento de faces. Esse sistemaespecializado foi identificado porque pacientes com cer-tas leses cerebrais tinham dificuldade em reconhecerfaces de todo o tipo. Cientistas imediatamente debate-ram sobre a possvel existncia de um sistema especiali-zado. No, alguns disseram, o dano seria com a percep-o de objetos em geral, no com faces em particular.Eles mostraram pesquisas que sugeriam que pessoascom dificuldades em reconhecer faces tambm tinhamproblemas em reconhecer objetos ou faces de animais.

    Mas eis que surge um novo caso. Um paciente, comgrande dificuldade em identificar objetos do dia-a-dia,no tinha problema para identificar faces! De fato, se aface era composta de frutas arrumadas de modo a pare-cer uma face, o paciente dizia que via uma face, mas noreconhecia que ela era feita de frutas! Incrvel, mas real.Parecia, ento, que um sistema especial no crebro reco-nhecia faces; esse seria ativado para produzir a percepoem nossa conscincia por meio da configurao de ele-mentos. Este processador especial de faces no sabe eno se importa com os elementos que as compem: des-de que os elementos estejam de acordo, uma face per-cebida. O que poderia ser mais fascinante do que estudarcomo o crebro faz tais coisas?

    A HISTRIA DO CREBRO

  • cebidas como sendo mantidas por regies especficas docrebro. Alm disso, se uma pessoa usava uma das facul-dades com mais freqncia que as outras, a parte do c-rebro que representava esta funo devia crescer. Deacordo com os frenologistas, esse aumento do tamanhode uma regio cerebral causaria uma distoro no crnio.Logicamente, ento, Gall e colaboradores acreditaramque uma anlise detalhada da anatomia do crnio pode-ria descrever a personalidade de uma pessoa. Ele cha-mou esta tcnica de personologia anatmica (Figura 1.2).

    Gall, mdico e neuroanatomista austraco, no eraum cientista, pois no testava suas idias; a melhor par-te de seu esforo foi direcionada para a anlise do crtexcerebral, particularmente da sua superfcie, e para enfa-

    tizar a idia de que diferentes funes cerebrais so loca-lizadas em discretas regies cerebrais.

    O fisiologista experimental Pierre Flourens questio-nou a viso localizacionista de Gall (Figura 1.3). Umgrande nmero de pessoas rejeitou a idia de que proces-samentos especficos, como a linguagem e a memria,eram localizados em regies circunscritas do encfalo, eFlourens tornou-se seu porta-voz. Ele estudava animais,especialmente pssaros, e descobriu que leses em reasparticulares do crebro no causavam certos dficits du-radouros de comportamento. No importava onde fizes-se a leso no encfalo, o pssaro sempre se recuperava.Ele desenvolveu, ento, a noo de que todo o crebroparticipa no comportamento, uma viso conhecida pos-teriormente como campo agregado. Em 1824, Flourensescreveu: Todas as sensaes, todas as percepes, e to-das as vontades ocupam o mesmo espao nestas estrutu-ras (crebro). As faculdades de sensao, percepo evontade so, essencialmente, uma s faculdade.

    Trabalhos realizados no continente europeu e na In-glaterra ajudaram a retomada da viso localizacionista.Na Inglaterra, por exemplo, o neurologista John Hugh-lings Jackson (Figura 1.4) passou a publicar suas obser-vaes sobre o comportamento das pessoas com lesocerebral. Uma das principais caractersticas dos escritosde Hughlings Jackson foi a incorporao da sugesto deexperimentos para testar suas observaes. Ele notou,por exemplo, que durante o incio das convulses, al-guns pacientes epilpticos moviam-se de modo caracte-rstico, e parecia que as convulses estimulavam umponto correspondente do corpo no crebro; assim, mo-

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    Figura 1.1 Esquerda: Franz Joseph Gall. Um dos fundadores da frenolo-gia no incio do sculo XIX. Direita: O hemisfrio direito do encfalo, porGall e Spurzheim, em 1810.

    Figura 1.2 Esquerda: Uma anlise dos presidentes Washington, Jackson, Taylor e Mckinley, por Jessie A. Fowler; Phrenological Journal, junho1898. Centro: O mapa frenolgico das caractersticas pessoais no crnio; American Phrenological Journal, 1850. Direita: A publicao de Fowler eWells Company sobre compatibilidade matrimonial em conexo com a frenologia, 1888.

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    vimentos tnicos e clnicos dos msculos, produzidospelo disparo epilptico anormal dos neurnios no enc-falo, progrediam de maneira ordenada de uma parte docorpo para outra. Esse fenmeno o levou a propor umaorganizao topogrfica no crtex cerebral: nesta viso,um mapa do corpo era representado em uma rea corti-cal particular. Hughlings Jackson foi um dos primeirosa observar essa caracterstica essencial da organizaocerebral.

    Embora Hughlings Jackson tambm tenha sido o pri-meiro a observar que leses no lado direito do encfaloafetam processos visuoespaciais mais do que leses nolado esquerdo, ele no afirmou que partes especficas dolado direito do encfalo estavam intimamente ligadas aessa importante funo cognitiva humana. Hughlings

    Jackson, um neurologista clnico muito observador, no-tou que era raro um paciente perder totalmente umafuno. A maioria das pessoas que perdiam a capacidadede falar aps um acidente vascular cerebral, por exem-plo, ainda conseguia falar algumas palavras. Pacientes in-capazes de direcionar suas mos voluntariamente paralocais especficos do corpo ainda podiam coar nesse lu-gar caso sentissem coceira. Quando Hughlings Jacksonfez tais observaes, ele concluiu que muitas regies doencfalo contribuam para um dado comportamento.Nessa mesma poca, na Frana, talvez o mais famoso ca-so de neurologia da histria foi relatado por Paul Broca(Figura 1.5). Em 1861, ele tratou um homem que haviasofrido um acidente vascular cerebral; o paciente podiaentender a linguagem, mas no conseguia falar. Consis-

    Figura 1.4 John Hughlings Jackson, neurologista ingls que foi umdos primeiros a reconhecer a viso localizacionista.

    Figura 1.5 Esquerda: Pierre Paul Broca. Direita: As conexes entre os centros da fala, no artigo de Wernicke sobre afasia. B = rea motora da fa-la, de Broca; A = centro sensorial da fala, de Wernicke; Pc = rea relacionada linguagem.

    B

    A

    Pc

    Figura 1.3 Esquerda: Pierre Jean Marie Flourens (1794-1867), queapoiava a idia que depois se chamou de campo agregado. Direita: Aposio de um pombo destitudo de seus hemisfrios cerebrais comodescrito por Flourens.

  • NEUROCINCIA COGNITIVA 23tente com as observaes de Hughlings Jackson, entre-tanto, o paciente podia murmurar algumas coisas co-mo o som tam. Esses pacientes em geral falam auto-maticamente; assim, enquanto apenas dizem tam, tam,tam... em resposta questo quem voc?, podemfacilmente contar de um a dez de maneira normal.

    A exata parte do crebro que estava lesionada no pa-ciente de Broca era o lobo frontal esquerdo. Denominou-se, posteriormente, esta regio de rea de Broca. O impac-to de seus achados foi enorme. Aqui havia um aspecto ex-clusivo da linguagem que estava prejudicado por uma le-so especfica. Esse tema foi escolhido pelo neurologistaalemo Carl Wernicke. Em 1876, quando tinha apenas 26anos, ele relatou o caso de uma vtima de acidente vascu-lar cerebral que podia falar quase normalmente, diferen-temente do paciente de Broca, mas o que ele falava nofazia sentido. O paciente de Wernicke tambm no com-preendia a linguagem escrita ou falada. Ele tinha uma le-so numa regio mais posterior do hemisfrio esquerdo,na rea e ao seu redor, onde os lobos parietal e temporalse encontram. Hoje, essas diferenas sobre como o enc-falo responde a doenas focais j so bem-compreendi-das. Todos os neurologistas, em todos os hospitais, sa-bem dessas coisas. Contudo, h pouco mais de 100 anos,as descobertas de Broca e Wernicke fizeram tremer aTerra. Filsofos, mdicos e os primeiros psiclogos assu-miram um ponto de partida fundamental: doenas focaiscausam dficits especficos. Naquela poca, os investiga-dores eram limitados em sua habilidade para identificaras leses dos pacientes. Os mdicos podiam observar olocal do dano por exemplo, uma leso penetrante pro-vocada por uma bala , mas eles tinham de esperar o pa-ciente morrer para determinar o local da leso. A mortepodia levar meses ou anos, e, em alguns casos, geralmen-te no era possvel realizar a observao: o mdico perdiacontato com o paciente aps sua recuperao, e, quandoeste finalmente morria, o mdico no era informado e as-sim no podia examinar o encfalo e correlacionar a lesocerebral com os dficits de comportamento da pessoa.Hoje, o local da leso cerebral pode ser determinado empoucos minutos com mtodos de imagem que mapeiam e

    fotografam o encfalo vivo. Vamos aprender sobre essastcnicas conforme avanarmos na leitura deste livro. (Co-mo uma observao histrica interessante, o encfalo dopaciente famoso de Broca foi preservado. Mapeamentosrecentes do encfalo deste paciente revelaram que a lesoera muito maior do que aquela descrita por Broca.)

    Como acontece na maioria dos casos, os estudos emhumanos levaram a questes para aqueles que traba-lham com modelos animais. Logo aps a descoberta deBroca, os fisiologistas alemes Gustav Fritsch e EduardHitzig estimularam eletricamente pequenas partes doencfalo de um co e observaram que este estmulo pro-duzia movimentos caractersticos no animal (Figura1.6). Essa descoberta levou os neuroanatomistas a umaanlise mais detalhada do crtex cerebral e sua organiza-o celular; eles queriam apoio para suas idias sobre aimportncia de regies localizadas. Como essas regiesexecutavam diferentes funes, concluram que deviamolhar de modo diferente o nvel celular.

    Seguindo essa lgica, os neuroanatomistas alemescomearam a analisar o encfalo utilizando mtodos mi-croscpicos para ver tipos de clulas em diferentes re-gies cerebrais. Talvez o mais famoso no grupo fosseKorbinian Brodmann, que analisou a organizao celulardo crtex e caracterizou 52 regies diferentes (Figura1.7). Brodmann usou tecidos corados, como aqueles de-senvolvidos por Franz Nissl, que permitiram que ele vi-sualizasse diferentes tipos de clulas em diferentes re-gies cerebrais. Como as clulas diferiam entre as re-gies cerebrais, essa diviso foi chamada de citoarquite-tnica, ou arquitetura celular. Logo, muitos anatomistasagora famosos, incluindo Oskar Vogt, Vladimir Betz,Theodor Meynert, Constantin von Economo, Gerhardtvon Bonin e Percival Bailey, contriburam para este traba-lho, e muitos subdividiram o crtex ainda mais do queBrodmann havia feito. De maneira mais ampla, esses in-vestigadores descobriram que vrias reas cerebrais des-critas pela citoarquitetura realmente representavam re-gies cerebrais funcionalmente diferentes. Por exemplo,Brodmann foi o primeiro a distinguir as reas 17 e 18,distino essa que provou ser correta em estudos funcio-

    Figura 1.6 Esquerda: O fisiologista e ana-tomista Gustav Theodor Fritsch (1838-1907).Centro: O professor de Psiquiatria EduardHitzig (1838-1927). Direita: Ilustrao origi-nal de Fritsch e Hitzig do crtex de um cachor-ro, por Fritsch e Hitzig.

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    nais subseqentes. A caracterizao da rea visual pri-mria do crtex, rea 17, como sendo distinta da rea 18,demonstrou o poder do estudo da abordagem pela ci-toarquitetura, como vamos ver melhor no Captulo 3.

    No entanto, a grande revoluo na nossa compreen-so sobre o sistema nervoso estava ocorrendo mais aosul da Europa, na Itlia e na Espanha. L, uma luta inten-sa ocorria entre dois brilhantes neuroanatomistas. Estra-nhamente, foi o trabalho de um deles que levou com-preenso do trabalho do outro. O italiano Camillo Golgidesenvolveu uma colorao que impregnava neurniosindividuais com prata (Figura 1.8). Essa colorao per-mitia a visualizao completa de um nico neurnio.Usando o mtodo de Golgi, o espanhol Santiago Ramny Cajal descobriu que, ao contrrio da viso de Golgi eoutros, os neurnios eram entidades nicas (Figura 1.9).Golgi acreditava que todo o encfalo era um sinccio, ouuma massa contnua de tecido que compartilhava umnico citoplasma! Cajal estendeu seus achados e foi o

    primeiro a identificar no somente a natureza unitriado neurnio, mas tambm a transmisso de informaoeltrica em uma nica direo, dos dendritos para a ex-tremidade do axnio (Figura 1.10).

    Muitos cientistas genuinamente brilhantes estive-ram envolvidos na histria inicial da doutrina neuronal.Por exemplo, Johannes Evangelista Purkinje um tchecoeducado em Praga, poca ainda controlada pelos ale-mes, que teve de viajar para a Polnia para conseguiruma posio na universidade (Figura 1.11) descreveuno somente a primeira clula nervosa, mas tambm in-ventou o estroboscpio, descreveu fenmenos visuaiscomuns e encaminhou uma srie de outras descobertas.

    At mesmo Sigmund Freud entrou na histria do neu-rnio (Figura 1.12). Como um jovem cientista, ele estu-dou anatomia microscpica com o grande anatomista ale-mo Ernst Brcke. Freud escreveu um ensaio sobre seutrabalho subseqente e independente acerca do lagostim.Na realidade, algumas das biografias de Freud sugeremque ele tambm defendeu a idia de que o neurnio erauma unidade fisiolgica distinta e separada.

    Hermann von Helmholtz, talvez um dos mais fa-mosos cientistas de todos os tempos, tambm contri-buiu para os primeiros estudos sobre o sistema nervo-

    Figura 1.8 Esquerda: Camillo Golgi (1843-1926), co-vencedor doPrmio Nobel em 1906. Direita: Desenhos de Golgi de diferentes tiposde clulas ganglionares em cachorro e gato. Figura 1.10 Uma clula bipolar da retina.

    Axnio

    Corpo celular

    Dendritos

    Figura 1.7 As 52 reas distintas descritas por Brodmann, baseadas naestrutura e no arranjo celulares. Adaptada de Brodmann (1909).

    98

    64

    10 46

    1147

    45

    44

    38

    22

    21

    20

    4241

    3 1 2

    5

    4039

    37

    1918

    17

    7

    4352

    Figura 1.9 Esquerda: Santiago Ramn y Cajal (1852-1934), co-ven-cedor do Prmio Nobel de 1906. Direita: Desenhos de Cajal das afern-cias no crtex de mamferos.

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    Figura 1.13 Esquerda: Hermann Ludwig von Helmholtz (1821-1894). Direita: O aparelho de Helmholtz para medir a velocidade de conduonervosa.

    Figura 1.11 Esquerda: Johannes Evange-lista Purkinje, que descreveu o primeiro neu-rnio no sistema nervoso. Direita: Uma clu-la de Purkinje do cerebelo.

    Dendritos

    Corpo celular

    Axnio

    Figura 1.12 Esquerda: Sigmund Freud(1856-1939). Direita: Do seu trabalho como lagostim, Freud publicou esta ilustrao co-mo um exemplo de anastomose de fibrasnervosas, um conceito que Cajal mostrou es-tar errado.

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    Entrevista com Mitchell Glickstein, PhD. Dr. Glickstein professor de neuroanatomia e neurocincias noUniversity College, Londres. Ele escreveu extensamente sobre a histria da neurocincia.

    Autores: Voc assumiu a tarefa de estudar uma va-riedade de assuntos em neurocincias do ponto de vistahistrico. O que motivou esse interesse?

    MG: Duas coisas. Uma foi a minha graduao naUniversidade de Chicago, uma organizao batista on-de os professores judeus ensinaram o catolicismo a es-tudantes ateus. No existiam livros-texto (ou quase ne-nhum), somente resumo de artigos originais. Em hist-ria, por exemplo, lemos Lnin e Martov na RevoluoRussa. Em qumica, lemos Lavoisier. Eu sempre penseique as pessoas que criaram novas idias podiam ensinarmais efetivamente que autores de livros. A segunda in-fluncia foram as aulas de Harry Patton aos estudantesde medicina na Universidade de Washington. Ele ensi-nou brilhantemente sobre reflexos experimento porexperimento. Aps a sua aula, voc entendia que o ca-minho mais curto para o reflexo do martelinho en-volvia apenas uma sinapse, mas a evidncia que levou aesta concluso foi feita de maneira brilhantemente cla-ra. Patton ensinou no somente o que sabemos, mas,mais importante, como sabemos.

    Autores: Voc est agora muito ligado ao mundomoderno dos livros, TV, revistas e conferncias freqen-tes. Tudo isso leva a uma imagem sobre quais so os as-suntos importantes em neurocincias e como eles se tor-naram importantes. Voc est sugerindo que a investiga-o dos trabalhos originais e a histria das idias levam auma diferente interpretao do presente do que aquelaque a maioria das pessoas conhece? Se for, poderia darum exemplo?

    MG: H tanto para ser dito... Para comear, consi-deremos o experimento de Otto Loewi em Vaguss-toff. No tempo em que Loewi fez seu experimentocrucial, existia a suspeita de que os nervos podiam ati-var os msculos ou outros nervos liberando uma pe-quena quantidade de uma substncia qumica masno existia prova disso. Loewi desenhou um experi-mento simples na sua prpria casa aps ter tido a idiaenquanto estava dormindo. Sabia-se naquele momen-to que os coraes dos vertebrados, de sapos at ma-mferos, podiam continuar a bater se removidos docorpo e colocados em uma soluo adequada. Embora

    os coraes tenham um suprimento de nervos, eles po-dem continuar a bater mesmo quando estes nervosso cortados. O maior dos nervos autonmicos, o ner-vo vago, d inervao ao corao e causa diminuiodas batidas cardacas. Se o nervo vago estimuladoeletricamente, o ritmo do corao e a fora das bati-das diminuem. Todos esses fatos eram conhecidos napoca de Loewi. O que no se sabia era como o vagoagia. Loewi estimulou a preparao de um nervo-cora-o de um sapo em uma taxa muito alta, causando adiminuio do ritmo cardaco. Ele coletou o fluido dedentro do corao logo aps a estimulao eltrica.Ento, injetou este fluido no mesmo corao ou emum segundo corao e isso produziu o mesmo efeitode diminuio do ritmo cardaco e da presso. Quandoo fluido era removido sem que o vago tivesse sido esti-mulado, no havia efeito no corao ou no segundocorao. Loewi concluiu que alguma coisa devia estarsendo liberada quando o vago era estimulado, e eraesta substncia qumica que causava a diminuio doritmo e da fora. Ele a chamou provisoriamente de va-gusstoff, significando exatamente material do vago.Alguns anos depois, Loewi e outros demonstraramque a substncia era o neurotransmissor acetilcolina.Loewi primeiramente acreditou que o vagusstoff acetilcolina era especfico. Sir Henry Dale, WalterFeldberg (um estudante de Loewi) e Marthe Vogt (a fi-lha de Cecile e Otto) demonstraram que a acetilcolina tambm um neurotransmissor nas junes neuro-musculares voluntrias.

    Consideremos agora a auto-observao. Wollaston(1824) descreveu sua prpria hemianopsia transitria(perda parcial da viso) e a hemianopsia mais perma-nente de dois conhecidos, quando o conceito aindanem existia, e sua descrio foi colocada no Boston Me-dical and Surgical Intelligencer como uma curiosidade(depois disso, eles descreveram um menino na Filadlfiaque via uma chama de vela de cabea para baixo!). Wol-laston foi um dos gnios ingleses do sculo XIX, traba-lhando em uma poca em que as pessoas podiam fazercontribuies a diversas cincias. Ele inventou um tipode prisma para o trabalho ptico e tambm desenvol-

    MARCOS EM NEUROCINCIA COGNITIVA

    so (Figura 1.13). Ele foi o primeiro a sugerir que os in-vertebrados seriam bons modelos para entender osmecanismos cerebrais dos vertebrados. Helmholtztambm fez grandes contribuies para a fsica, a me-dicina e a psicologia.

    O fenmeno de um famoso cientista fazer contribui-es significativas para distintas reas pode ser algo dopassado. No que tais coisas no aconteam nos dias dehoje, elas somente no so facilmente reconhecidas. Acincia hoje um enorme empreendimento, e cada sub-

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    veu uma tcnica para puxar fios muito finos para usarem instrumentos de preciso. Antes do trabalho deWollaston, crina de cavalo havia sido utilizada. Wollas-ton fez uma simples auto-observao. Ele notou que svezes tinha um ataque de perda parcial da viso. A per-da visual era semelhante em ambos os olhos; metade docampo visual no podia ser visto. E era sempre a mesmametade em ambos os olhos. Wollaston deu este exem-plo: ele foi ver seu amigo chamado Hughlings Jackson e olhou o nome na placa da porta de Hughlings Jack-son. Ele disse que s conseguia ver a palavra son.Wollaston estava cego na metade esquerda de cadacampo visual em ambos os olhos. A meia-cegueira tran-sitria de Wollaston (agora chamada hemianopsia, lite-ralmente metade da viso sem ver) era transitria,mas ele sabia de outros dois indivduos que tinham ameia-cegueira permanente. Ambos os tipos de hemia-nopsia agora so bem conhecidos dos mdicos. Sir IsaacNewton, em seu texto sobre ptica, especulou que cadanervo ptico era dividido de tal maneira que o nervoptico ligado ao lado esquerdo de cada retina ia para olado esquerdo do encfalo, e o nervo ptico do lado di-reito ia para o lado direito do encfalo. As implicaesdas sugestes anatmicas de Newton nunca foram reco-nhecidas, e Wollaston no parecia saber de sua existn-cia. Suas observaes eram raras, e seus exemplos, no-usuais. Foi s aps outros 70 anos que essas duas contri-buies foram completamente integradas. A especula-o de Newton sobre o curso da fibra do nervo pticofoi verificada, os mdicos comearam a reconhecer o fa-to de que a hemianopsia era muito comum e relaciona-da com a anatomia.

    Consideremos a natureza transcendente e interna-cional da cincia. Ela no envolveu somente os alemesno sculo XIX. Foi um rapaz de baixa estatura, Cajal, deum pas com pouca tradio cientfica, quem colocou aneuroanatomia no curso certo por cem anos.

    Esses so alguns exemplos de por que eu uso recur-sos histricos. Eles ajudam a enfrentar o absurdo que uma pessoa de 35 anos com cinco ps-doutorados, bri-lhante nos ltimos cinco anos de pesquisa e um poucoconfusa nos cinco anos anteriores, que no sabe nada so-bre como tudo o que sabemos chegou a ser conhecido.Se voc quer ensinar sobre cincia, no uma m escolhaensinar como ns chegamos aqui.

    Autores: Com certeza, tudo isso verdadeiro emuito mais. Por exemplo, voc poderia comentar a dou-trina neuronal de Cajal? Embora ele seja amplamentecreditado como seu fundador, no seria realmente o ca-so de a idia estar no ar e muitas pessoas estarem fa-lando sobre isso naquele momento? Apesar de Cajal tersido, inquestionavelmente, um brilhante anatomista talvez o mais brilhante que tenha existido , ser queele simplesmente no cristalizou e divulgou, com muitosucesso, a idia vigente na poca?

    MG: Cajal foi mais que isso. Voc pode melhor apre-ciar Cajal pela leitura de seus contemporneos (Golgi,Dogiel, Klliker). Quando Cajal comeou seu trabalho, aviso dominante era a de um sinccio vago. Golgi pensa-va que havia anastomoses entre as colaterais de umaxnio e que o encfalo era uma rede fusionada. Re-centemente, dei uma aula sobre Cajal no Instituto Cajal um verdadeiro desafio. Foquei-me na visita de Cajal aInglaterra em 1894. Eu tinha todos os documentos rela-cionados ao seu convite, seu aceite e seu grau honor-rio em Cambridge. (Ele foi preso rapidamente em Cam-bridge, um episdio parte muito divertido.) A razopela qual eu passei um dia no Instituto foi para apresen-tar um assunto em particular a descoberta das espi-nhas dendrticas. Golgi certamente as viu, mas deixou-as de fora de suas figuras. Klliker revisou a questo emseu livro (1896) e concluiu solenemente que eram umartefato. Cajal escreveu um artigo brilhante no qual le-vantou a questo sobre por que os dendritos deviamaparecer, mas no os axnios. Por que o mtodo de Gol-gi e suas variantes (baseadas em mercrio) os mostra-vam? Para provar sua validade, ele disse que aquilo te-ria de ser mostrado por um mtodo independente. Eletentou com o mtodo de azul de metileno e conseguiuimpregnar (corar) as espinhas, da mesma forma que omtodo de Golgi corava. Eu fui a Madrid para olharseus desenhos. Como Cajal disse: Elas esto l com azulde metileno; elas esto realmente l. O problema estacabado. Mas existiam outros. Waldeyer, por exemplo,cunhou o termo neurnio, mas contribuiu muito pouco.Concordo com Cajal, que disse que o que Waldeyer fezfoi ... publicar minha pesquisa em um jornal mdico se-manal. Quantos livros escritos h cem anos ainda soteis hoje?

    Autores: Bem, somente o tempo ir dizer se este irse juntar aos outros. Obrigado.

    disciplina tem seu prprio quadro de heris e viles. Es-ses guardies de um determinado tema relutam em dei-xar estranhos entrarem em seus debates.

    Shepherd (1992) recontou a fascinante histria deCamillo Golgi e a comparou com a de Cajal. Nascido

    perto de Milo, Golgi, filho de um mdico, recebeu seudiploma de medicina aos 22 anos de idade, na Universi-dade de Pvia, na Itlia. Contudo, ele ficou de fora daspesquisas das grandes universidades alems um fatoque o perseguiu durante toda sua carreira. Mesmo as-

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    sim, Pvia foi o bero de cientistas espetaculares, comoo fsico Alessandro Volta, Christopher Columbus e umgrupo de grandes biologistas. Nesse brilhante grupo,Golgi era um mdico e cientista muito bem-formado.

    Apesar de sua carreira ter comeado de forma promis-sora, Golgi foi forado, devido a necessidades financeiras,

    a aceitar um emprego fora de Pvia, na cidade de Abbiate-grasso, onde trabalhou como mdico residente na Casados Incurveis. Nessas circunstncias, era muito poucoprovvel que Golgi continuasse sua carreira cientfica. Masele perseverou e, trabalhando sob a luz do candelabro desua cozinha, desenvolveu a mais famosa colorao de toda

    Ao escrever livros-texto, os autores usam amplaspinceladas para comunicar os marcos que setornaram importantes para o nosso pensa-mento durante um longo perodo de tempo. Seria bo-bagem, entretanto, no alertar o leitor sobre a com-plexa e intrigante rede de aspectos pessoais, culturaise intelectuais. Os problemas que atormentaram omundo dos primeiros cientistas permanecem, at ho-je, em total glria. Questes de autoria, ego, fundos ecrditos so todos integrantes da fbrica da vida inte-lectual. Assim como os adolescentes nunca imaginamque seus pais tenham tido os mesmos interesses e de-sejos que eles tm, os novatos em cincias acreditamque esto abordando novas questes pela primeiravez na histria humana. Gordon Shepherd (1992), emseu histrico livro Foundations of the Neuron Doctri-ne, detalhou a variedade de foras atuantes no traba-lho de cientistas que agora conhecemos em nossa bre-ve histria.

    Shepherd notou que a exploso de pesquisas so-bre o sistema nervoso comeou no sculo XVIII, co-mo parte de uma intensa atividade presente quandodo nascimento das cincias modernas. Robert Ful-

    ton, por exemplo, inventou a mquina a vapor em1807; Hans Christian rsted descobriu o eletromag-netismo. Mais interessante para o nosso campo foiLeopold Nobili, um fsico italiano que inventou oprecursor do galvanmetro o aparelho que permi-tiu as bases para o estudo de correntes eltricas emtecidos vivos. Muitos anos antes, em 1674, Antonvan Leeuwenhoek, na Holanda, usou um microsc-pio primitivo para observar tecidos animais (FiguraA). Uma das suas primeiras observaes foi uma se-o transversal de um nervo de vaca, no qual ele no-tou vasos muito pequenos. Essa observao foiconsistente com a idia de Ren Descartes, de que osnervos contm fluidos ou espritos; estes seriamresponsveis pelo fluxo de informao sensorial emotora no corpo (Figura B). Indo mais longe, entre-tanto, este trabalho revolucionrio teria de superaros problemas com os primeiros microscpios, no m-nimo a qualidade do vidro usado nas lentes. Aberra-es cromticas tornaram estes aparelhos inteis pa-ra a funo de aumento. Foi somente quando os fa-bricantes de lentes resolveram este problema, que aanatomia microscpica tornou-se novamente impor-tante na histria da biologia.

    MARCOS EM NEUROCINCIA COGNITIVA

    Interldio

    Figura A Esquerda: Anton van Leeuwenhoek. Direita: Umdos microscpios originais usado por Leeuwenhoek, compostopor duas placas de bronze que sustentavam a lente.

    Figura B Retrato de Ren Descartes, por Frans Hals.

  • NEUROCINCIA COGNITIVA 29a histria. Golgi descobriu o mtodo da prata para corarneurnios la reazione negra, a reao negra.

    A colorao de Golgi ficou famosa, assim como eleprprio. Seu grande interesse pelas doenas o levou a v-rias descobertas em patologia, e ele ento voltou a Pviapara ser professor. Porm seus escritos no eram muitoconhecidos fora da Itlia; ento, traduziu-os e publicou-os no Italian Archives of Biology que, curiosamente, eraeditado em francs. A reputao de Golgi cresceu, e em1906 ele recebeu o Prmio Nobel juntamente com Cajal.

    Neste meio tempo, Cajal era o impetuoso filho deoutro mdico. Somente a partir dos ensinamentos emcasa, realizados pelo pai, que Cajal desenvolveu alguminteresse pela biologia. Aps uma infncia complicada,Cajal emergiu como, conforme alguns chamam, o pai daneurocincia moderna. Ele recebeu os crditos por tersido o primeiro a articular, na sua totalidade, a doutrinaneuronal.

    A ironia nesta histria, como j mencionamos, queCajal fez muitas de suas descobertas utilizando a colora-o de Golgi. Ele viu pela primeira vez a colorao na ca-sa de um amigo, em Madri, Don Luis Simarro, que haviaaprendido a tcnica enquanto participava de um encon-tro em Paris. Cajal disse que foi l, no laboratrio da ca-sa de Simarro no muito diferente do laboratrio ondeGolgi inventou a colorao que ele viu pela primeiravez as famosas fatias de encfalo impregnadas com omtodo de prata do sbio de Pvia.

    A resposta de Cajal, ao ver a colorao, permanecefascinante (traduzida por Sherrington, em 1935):

    Contra um fundo claro apareciam filamentos negros, al-guns finos e lisos, outros grossos e espinhosos, em um pa-dro pontuado por pontos pequenos e denso, estreladosou fusiformes. Tudo era definido como um esboo de tintananquim em papel transparente japons. E pensar que es-te era o mesmo tecido que, corado com carmim ou campe-che, aparecia como um bolo emaranhado em que o olhartateava e tentava inutilmente exergar alguma coisa, termi-nando frustrado na tentativa de desvendar uma confuso ecompletamente perdido em sombria dvida. Aqui, ao con-trrio, tudo estava claro e simples como um diagrama.Uma olhada era suficiente. Como um tolo, eu no podia ti-rar os olhos do microscpio.

    Todavia, muitos anos depois, a cena na cerimnia doPrmio Nobel, em Estocolmo, foi horrvel. Golgi apare-ceu como um egocntrico e, sua maneira, negou-se areconhecer as descobertas de Cajal, que naquele momen-to j tinha estabelecido a doutrina neuronal. Ambos es-tavam usando a mesma colorao, o mesmo microscpioe estudavam o mesmo tecido. Um enxergou a resposta,o outro no. Golgi continuava a ver seu amado sincciode neurnios como uma s unidade, enquanto Cajal en-xergava cada neurnio como uma unidade independen-te, como depois foi comprovado.

    H quem fique desapontado em saber que os resultadosdos primeiros trabalhos de Cajal e de outros confundi-ram os cientistas na primeira metade do sculo XX. To-do o seu trabalho, especialmente quando visto retrospec-tivamente, argumentava sobre a importncia dos neur-nios isolados. Para saber como o sistema nervoso funcio-na, faz-se necessrio compreender como um nico neu-rnio interage e se comporta, assim como, para com-preender as protenas, necessita-se entender como osaminocidos so organizados. A excentricidade dos pro-cessos sinciciais, das redes nervosas e dos processos ho-lsticos no era necessria. O sistema nervoso no uma grande bolha; ele construdo de unidades distin-tas. Se pudermos compreender como esse sistema fun-ciona e descrever as leis e os princpios de suas intera-es, ento, o problema de como o encfalo d origem mente pode ser tratado e, finalmente, resolvido.

    Esta a viso ideal, isto , ao conhecer todos os ele-mentos de um sistema, podemos compreender esse sis-tema. Porm o encfalo humano composto de bilhesde neurnios, e pensar que precisamos saber a ao detodos eles para entender como o encfalo funciona seriairracional. Na realidade, foi um grande esforo com-

    preender como o gnglio somatogstrico da lagosta, comoito neurnios, produzia atividade rtmica. Os avanosso feitos trabalhando-se em diferentes nveis de organi-zao, eis a estratgia fundamental em neurocincia cog-nitiva. Sabendo-se qual comportamento realmenteproduzido, no precisamos conhecer todas as possibili-dades de interaes que ocorrem entre os elementos re-lacionados. Dessa maneira, um problema se torna restri-to e passvel de soluo. Mas essa no era a questo do-minante no incio do sculo XX. Apesar de o renomadofisiologista ingls Sir Charles Sherrington acreditar enfa-ticamente que o neurnio se comportava como uma uni-dade e criar o termo sinapse para descrever a juno entredois neurnios, os cientistas que trabalhavam em ques-tes mais amplas do encfalo e do comportamentomantiveram-se unidos idia do processo holstico. Le-vou tempo para que as novas idias fossem amplamenteaceitas, principalmente porque importantes figuras doincio dos estudos cerebrais estavam bastante divididasem suas teorias. Alm do mais, muitas das primeiraspropostas eram na realidade bem razoveis, levando-seem considerao o estado do conhecimento cientfico na-quele dado momento.

    O SCULO XX

  • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN30Tomemos como exemplo a idia de contempor-

    neos de Broca, como Pierre Marie. Enquanto Broca es-tava defendendo a importncia da localizao das fun-es, Marie demonstrava a variabilidade da localizaocortical. Marie relatou que somente metade de seus pa-cientes apresentava dificuldades de fala quando as le-ses eram localizadas no terceiro giro frontal do hemis-frio cerebral esquerdo a rea de Broca. Ele tambmnotou que muitos pacientes com leses que no atin-giam essa rea tinham afasia do tipo de Broca. Marieestava tanto certo quanto errado. Existe uma grandevariao no encfalo humano, mas, por meio da obser-vao da estrutura subjacente, ele poderia bem ter des-coberto que uma regio crucial do encfalo simples-mente trocava de um lugar para outro durante o desen-volvimento. A noo de localizao, portanto, no foirealmente modificada com o tipo de observao queMarie ofereceu.

    Ainda hoje, algumas pessoas simplesmente se recu-sam a aceitar que, compreendendo a funo de um niconeurnio ou de reas menores do encfalo, podemos ex-plicar como o encfalo funciona. Essa viso to comumhoje como era no incio do sculo XX. Todos os envolvi-dos no problema tinham o seu exemplo favorito das pro-fundas contradies vistas nesta lgica. Durante a pocade Broca, um professor de fisiologia alemo chamadoFriedrich Goltz levava seu cachorro em encontros cient-ficos (Figura 1.14). Goltz havia removido grande partedo crtex do animal, e, mesmo que alguns danos fossempercebidos, o comportamento do cachorro era perfeita-mente funcional. Mostrou-se, posteriormente, que a le-so do cachorro era bem menor do que aquela relatada,mas o exemplo no incomum. Em humanos com lesocerebral, comum nos surpreendermos com a ausncia

    de sintomas em um paciente, dada a extenso da lesovista em um exame de imagens do crebro.

    Ainda assim, um grande avano havia sido feito. Noincio do sculo XX, quase todos queriam provar que al-gum grau de localizao funcional ocorria no crtex cere-bral. Mesmo Goltz notou muitas diferenas nos seus ani-mais quando o lobo occipital era removido, em compara-o a quando o crtex motor era removido. Os crticosento diziam que era impossvel localizar funes corti-cais superiores, como o pensamento e a memria, dife-rente da viso original, que postulava a ausncia de qual-quer localizao de funes enceflicas. Essas ressalvasestavam de acordo com a primeira observao articuladapor Hughlings Jackson, isto , de que se deve distinguirentre a evidncia para localizao de sintomas e a idia delocalizao de funo. Com isso, Hughlings Jackson que-ria dizer que, enquanto uma leso cerebral pode produzirum sintoma bizarro, no quer dizer que a rea afetada se-ja especializada somente nessa funo. A leso pode mui-to bem afetar outras estruturas no encfalo, porque podedanificar neurnios conectados a outras regies. A distin-o de Hughlings Jackson foi tambm uma das primeirasevidncias de que comportamentos expressam uma cons-telao de atividades independentes, e no uma entidadenica. Essa distino crucial quando analisamos dadosde modernas imagens cerebrais, como veremos adiante.

    Stanley Finger (1994), em sua histrica descriodos eventos relacionados a este tema fundamental emOrigins of neuroscience, apresenta citaes dos antilocaliza-cionistas. Na virada do sculo, um movimento de amplasbases foi absorvido pelos processos de Gestalt, a idia deque o todo diferente da soma das partes. Um dos mem-bros desse movimento, o grande bilogo francs ClaudeBernard, escreveu em 1855:

    Figura 1.14 Esquerda: Friedrich Leopold Goltz (1834-1902). Centro: O cachorro que Goltz mostrou no Congresso Internacional de Medicina em1881. Direita: O crebro do cachorro do qual Goltz removeu uma poro do crtex.

  • NEUROCINCIA COGNITIVA 31Apesar de ser possvel dissecar todas as partes do corpo,isol-las para serem estudadas em suas estruturas, formase conexes, no a mesma coisa em vida, quando todas aspartes cooperam ao mesmo tempo em um nico propsito.Um rgo no vive sozinho, pode-se dizer que este noexiste anatomicamente, pois os limites estabelecidos someramente arbitrrios. O que vive, o que existe, o todo e,se algum estuda todas as partes de um mecanismo separa-damente, no sabe como este funciona. Da mesma manei-ra, anatomicamente, temos o organismo separado, mas nosabemos como ele funciona como um todo. Este todo spode ser visto quando os rgos esto em funcionamento.

    Esse tipo de pensamento motivou muito o trabalhoposterior de dois neurologistas, Constantin von Mona-kow e Sir Henry Head (Figura 1.15). Monakow o pai doconceito de disquise, a idia de que o dano de uma par-te do encfalo pode criar problemas para outras partes,um fato que tem sido bastante demonstrado. Head, quetrabalhava em Londres, tambm via o encfalo como umsistema dinmico, interconectado e mutvel. Quandohavia algum dano, Head acreditava que o comportamen-to resultante da leso se devia ao sistema como um todoestar em pane. Ele acreditava que um encfalo lesionadoera como um novo sistema, no um sistema antigo comuma parte faltando. Segundo Head:

    No que diz respeito perda de funo ou manifestaes nega-tivas, estas respostas no revelam os elementos com os quaiso comportamento original era composto... uma nova condi-o, conseqncia de um novo reajuste do organismo comoum todo aos fatores que funcionam em nvel fisiolgico parti-cular perturbados pela leso local.

    Apesar da derrota nessa batalha intelectual, esses bri-lhantes cientistas formularam argumentos transcenden-tais. Os pontos levantados pelo grupo holstico e suas ra-zes ainda hoje tm mrito. Com o aparecimento de KarlLashley, o grande psiclogo experimental, a importncia

    dos neurnios como unidade e funo localizada foi pos-ta em dvida. Seus estudos e escritos eram baseados emforte contexto acadmico e apoiados em seus dados expe-rimentais. O ponto assinalado por Lashley era de que asleses ocorridas no encfalo no pareciam criar proble-mas no aprendizado ou no desempenho de tarefas. O ani-mal escolhido por Lashley era o rato, e ele utilizou exclu-sivamente a tarefa de aprendizado em labirinto. Desdeento, aprendemos que as concluses de Lashley tm al-gumas falhas. Por exemplo, a tarefa de aprendizado emlabirinto requer muitas modalidades, que, por sua vez,requerem tanto do sistema nervoso, que nenhuma lesoisolada pode produzir um dficit de aprendizado. Se umanimal aprendeu a tarefa de locomover-se em um labirin-to usando informao visual e proprioceptiva, uma lesono sistema visual ou no sistema proprioceptivo pode noser suficiente para criar um dficit, pois uma das modali-dades pode compensar a leso. Seguindo essa lgica, casouma leso seja to grande que inclua todas as modalida-des, ento o dficit deve ser observado. Na verdade, essatambm foi a concluso de Lashley.

    De qualquer forma, a mensagem da escola holsticaainda tem lies vlidas. O pndulo lentamente se voltoupara a viso da localizao assim que a pesquisa neurofi-siolgica comeou a mostrar certas regularidades na or-ganizao do crtex cerebral. No incio da dcada de1930, Clinton Woolsey, Philip Bard e outros comearama descobrir os mapas sensoriais e motores no encfalo.Na realidade, tornou-se claro que cada modalidade tinhamais de um desses mapas. Nas dcadas de 1970 e 1980,aprendemos que os mltiplos mapas existem em cadamodalidade sensorial, chegando a um pico de complexi-dade no sistema visual dos primatas. At hoje, mais de 30mapas de informao visual foram encontrados no enc-falo de primatas. Ainda mais espetaculares so as desco-bertas de que reas bem localizadas no encfalo, como area mdio-temporal, so altamente especializadas no

    Figura 1.15 Esquerda: Sir Henry Head e W.H.R.Rivers no St. John College, em Cambridge, 1903. Head seccionou um ramo do seu prprio nervo ra-dial e fez Rivers realizar experimentos de perda sensorial. Direita: Citao de Sir Henry Head.

    O charme da neurologia, acima de todos os outros ramos da prticamdica, deve-se maneira como esta nos fora ao contato diriocom os princpios. O conhecimento da estrutura e das funes dosistema nervoso necessrio para explicar o mais simples fenme-no da doena, e isso s pode ser conseguido pensando-se cientifica-mente.

    Sir HENRY HEAD, Some Principles of Neurology, 1918.

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    processamento da informao visual de movimento. Pararesumir, a neurocincia continua a revelar a surpreenden-te complexidade e a especializao do crtex cerebral.

    Stephen Kosslyn, um dos fundadores da neurocinciacognitiva, resumiu meticulosamente o conflito entre os lo-calizacionistas e os holistas (Kosslyn e Andersen, 1992):

    O erro dos primeiros localizacionistas que eles tentarammapear o comportamento e a percepo em localizaes ni-cas no crtex. Qualquer comportamento ou percepo parti-cular produzido por muitas reas, localizadas em vriaspartes do encfalo. Assim, a chave para resolver este debate

    compreender que funes complexas, como percepo, me-mria, raciocnio lgico e movimento, so o produto de v-rios processos subjacentes, realizados em distintas regiesdo encfalo. Na realidade, as habilidades propriamente ditaspodem ser alcanadas de diferentes maneiras, o que envolvediferentes combinaes de processos... Qualquer habilidadecomplexa, ento, no alcanada por uma nica parte do en-cfalo. Neste ponto, os holistas estavam corretos. Os tiposde funes classificadas pelos frenologistas no se localizamem uma nica regio cerebral. Entretanto, processos simplesque so recrutados a exercer tais habilidades so localizados.Neste aspecto, os localizacionistas estavam corretos.

    Como na maioria dos campos cientficos, at recen-temente, poucas mulheres eram reconhecidas porsuas contribuies em neurocincias. Apesar de serfcil concluir que isso se deve pouca participao femi-nina, uma interpretao alternativa de que as mulhe-res, apesar de seu envolvimento, no foram completa-mente creditadas por seu trabalho. Consideremos o casodos microeletrodos. Ferramenta poderosa em estudoseletrofisiolgicos hoje em dia, os microeletrodos so uti-lizados para descarregar discretos estmulos eltricos ouqumicos em uma clula e gravar a atividade eltrica deum nervo ou uma clula muscular de um indivduo.Ralph Gerard ganhou o Prmio Nobel na dcada de1950, recebendo todos os crditos pela descoberta domicroeletrodo, entre outras tantas realizaes. Entretan-to, duas notveis mulheres fizeram grandes contribui-es para a descoberta dos microeletrodos, apesar deno terem sido reconhecidas formalmente.

    Em 1902, Ida Hyde (1854-1945) foi a primeira mulhera ser eleita para a Sociedade Americana de Fisiologia, epermaneceu sendo a nica mulher nesta sociedade at1914. Ela foi a primeira mulher a ganhar o ttulo de dou-tora em fisiologia de uma universidade alem (Universi-dade de Heidelberg) e a fazer pesquisa na Escola de Me-dicina de Harvard. Hyde inventou o primeiro microele-trodo para o trabalho intracelular com organismos infe-riores, combinando instrumentos usados por F.H. Pratt(1917) e M.A Barber (1912). Ela construiu um eletrodo dedimetro muito pequeno (3 mcrons ou menos), preen-chido com uma soluo salina, e conectou-o a uma pe-quena coluna de mercrio; o nvel da coluna podia ser al-terado pela introduo de quantidades variveis de cor-rentes eltricas negativas ou positivas. Esse mercrio, porsua vez, forava a soluo salina a favor ou contra a pon-ta do capilar e tambm transmitia estmulos eltricos pa-ra a clula atravs da soluo salina. Em 1921, usando es-se mtodo, Hyde demonstrou a primeira evidncia de

    que o princpio, na poca recentemente descoberto, dotudo-ou-nada da contrao no era universalmenteverdadeiro para todas as clulas contrcteis. Esse microe-letrodo foi subseqentemente perdido durante a guerrae teve de ser reinventado.

    O primeiro relato de que um microletrodo teria sidousado para gravar potenciais de repouso das membranasmusculares de um sapo foi publicado em 1942, por Ju-dith Graham Pool (1917-1975), G.R. Carlson e Ralph Ge-rard. Os eletrodos utilizados (2-3 mcrons de dimetro)tambm eram tubos capilares torcidos em uma das pon-tas e preenchidos com uma soluo salina isotnica decloreto de potssio, o que permitiu a Pool e Gerard regis-trarem os potenciais de repouso e de ao evocados comseu eletrodo. Embora Gerard tenha recebido todos oscrditos pela descoberta do microeletrodo, porque dimi-nuiu o seu dimetro para 0,25 mcron, parece que Poolfoi pelo menos instrumental nesta descoberta; de acordocom ela, a inveno foi sua, e ela no recebeu qualquercrdito pela descoberta.

    Alm de no serem reconhecidas por seu trabalho,as mulheres tambm foram colocadas sob a sombra deseus colegas contemporneos, como exemplificado pe-los estudos de registro de clulas isoladas. Embora amaioria dos livros-texto em neurocincias discuta o tra-balho de Hodgkin e Huxley sobre o axnio gigante delula, outra cientista menos reconhecida, Angelique Ar-vanitaki, fez contribuies significativas ao estudo dosneurnios isolados.

    Nos anos de 1940, os neurobiologistas tinham apren-dido a penetrar com microeletrodos clulas eletricamen-te ativas e queriam estudar as propriedades nervosas deuma clula isolada. Embora os nervos dos vertebradossejam muito pequenos e estejam dentro de um encfaloe de um sistema nervoso, o mesmo no se aplica a gran-des nervos de certos invertebrados. Angelique Arvanita-ki (1939) desenvolveu a preparao ganglionar de gran-

    MARCOS EM NEUROCINCIA COGNITIVA

    Figuras Femininas Histricas em Neurocincias

  • NEUROCINCIA COGNITIVA 33

    Enquanto a profisso mdica foi pioneira nos estudossobre como o encfalo funciona, os psiclogos comea-ram a defender que tinham condies de mensurar ocomportamento e sem dvida estudar a mente. At o co-meo da psicologia experimental, a mente era terrenodos filsofos, que questionavam a natureza do conheci-mento, sobre como conhecemos o que nos cerca. Os fil-sofos tinham duas posies principais: empirismo e ra-cionalismo. O racionalismo se desenvolveu no Sculodas Luzes (Iluminismo). Tomou o lugar da religio e, en-

    tre os intelectuais e cientistas, tornou-se a nica manei-ra de pensar sobre o mundo. Por meio do pensamentocorreto, os racionalistas podiam determinar suas verda-deiras opinies. Eles rejeitavam opinies que, mesmoque fossem reconfortantes, eram inexplicveis e total-mente supersticiosas.

    Embora o racionalismo freqentemente seja equipa-rado ao pensamento lgico, ele diferente. O racionalis-mo leva em conta alguns temas, como o sentido da vida,enquanto que a lgica no. A lgica simplesmente se ba-

    des nervos identificados nas lesmas Aplysia (lebre mari-nha) e Helix (lesma da terra). Arvanitaki tambm desco-briu que, em solues com pouco clcio, fibras nervosasisoladas do cefalpodo Sepia (um parente do polvo)produziam oscilaes eltricas regulares que se torna-vam periodicamente maiores e maiores, at que o nervocomeava, de tempos em tempos, a disparar potenciaisde ao. Ela foi a primeira a demonstrar que, esponta-neamente, a atividade rtmica recorrente pode ser umapropriedade inerente de um nico nervo sem a necessi-dade do circuito neural ger-la. Alm disso, ela notouque, quando dois ou mais nervos correm juntos, a ativi-dade de um nervo pode atingir a atividade do vizinho.Hodgkin e Huxley ganharam o Prmio Nobel de fisiolo-gia e medicina em 1963 por analisarem as bases inicasdo potencial de ao no axnio da lula e so reconheci-dos na maioria dos livros-texto de neurocincias, ofus-cando as significativas contribuies de Arvanitaki a es-ta rea de estudo.

    Desde o trabalho sobre memria de Brenda Milnerna dcada de 1960, muitas mulheres em vrias reas dasneurocincias tm sido reconhecidas como cientistas deponta em suas reas: Patricia Goldman-Rakic (neurofisio-logia e neuroanatomia do crtex frontal) ex-presiden-te da Sociedade de Neurocincias; Margaret Livingstone(neurofisiologia visual); Leslie Ungerleider (neuroima-gem cortical funcional); Carol Colby (viso e crtex parie-tal); Mary Hatten (neurofisiologia celular do desenvolvi-mento); Carla Shatz (neurofisiologia visual) ex-presi-dente da Sociedade de Neurocincias; Christine Nussel-lin-Volhard (neurofisiologia molecular), e, talvez a maisconhecida, Rita Levi-Montalcini, a neurobiloga que divi-diu o Prmio Nobel de medicina de 1986 pela descobertado fator de crescimento nervoso. Embora o campo dasneurocincias ainda tenha mais membros homens quemulheres, este desequilbrio est desaparecendo rapida-mente, como pode ser visto pelo nmero de estudantesmulheres realizando sua formao em neurocincias.

    Esquerda: Ida Hyde (1854-1945). Primeira mulher eleita para a Sociedade Americana de Fisiologia, 1902. Direita: Microeletrodo deIda Hyde (1921).

    a, bateria; b, comutador; c, bobina de induo; d, presilha; e, fio de platina;f, ponta da pipeta; g, presilha; h, tubo de borracha.

    a

    b

    c d

    e

    fg

    h

    A HISTRIA DA PSICOLOGIA

  • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN34seia no raciocnio indutivo, na estatstica e nas probabili-dades. Ela no trata de inquietaes a respeito de estadosmentais, como felicidade, interesses pessoais e bem-estargeral. Cada pessoa pesa essas questes de maneira dife-rente e, como conseqncia, uma deciso racional maisproblemtica do que uma simples deciso lgica. Clara-mente, o racionalismo uma atividade mental complexa.

    O empirismo, por outro lado, a idia de que todoconhecimento advm de uma experincia sensorial. Aexperincia sensorial direta produz idias e conceitossimples. Quando idias simples interagem e se associamumas com as outras, idias e conceitos complexos socriados em um sistema de conhecimento do indivduo.Os filsofos britnicos de Thomas Hobbes no sculoXVII, John Locke e David Hume, at John Stuart Mill nosculo XIX enfatizaram o papel da experincia. No surpresa, ento, que a principal escola de psicologia ex-perimental tenha nascido dessa viso associacionista.

    Um dos primeiros cientistas a defender o associa-cionismo foi Hermann Ebbinghaus. No final do sculoXIX, ele afirmou que processos complexos, como a me-mria, podiam ser medidos e analisados, saindo fren-te dos notveis psicofsicos Gustav Fechner e E.H. We-ber. Estes trabalhavam arduamente, relacionando aspropriedades fsicas de fenmenos, como a luz e o som,s experincias psicolgicas que produziam no observa-dor. Essas medidas eram rigorosas e reproduzveis. Eb-binghaus foi um dos primeiros a compreender que erapossvel medir processos mentais internos, como a me-mria (ver Captulo 8).

    Ainda mais influente foi a monografia clssica de Ed-ward Thorndike, Animal Intelligence: An Experimental Studyof the Associative Process in Animals (Figura 1.16). Nessevolume, publicado em 1911, Thorndike articulou sua leido efeito, que foi a primeira demonstrao sobre a natu-reza das associaes. De vrios pontos de vista, sua teo-ria era muito simples. Thorndike apenas observou que aresposta a uma recompensa estaria gravada no organis-

    mo como uma resposta habitual. Se no existisse recom-pensa aps a resposta, esta desapareceria. Assim, as re-compensas eram responsveis por disponibilizar um me-canismo que estabelecesse uma resposta mais adaptati-va. Essa idia se assemelha um pouco com a teoria da se-leo natural de Darwin na realidade, Thorndike foiprofundamente influenciado por Darwin.

    Ainda assim, o pai do pensamento associativo empsicologia misturou sua terminologia. Associacionismodificilmente combina com nativismo (isto , a idia deque muitas formas de conhecimento j esto presentesno organismo desde o nascimento). O associacionismo comprometido com a idia amplamente popularizadapelo psiclogo americano John B. Watson, que promo-veu a noo de que ele podia pegar qualquer beb etransform-lo em qualquer coisa (Figura 1.17). Apren-der era a chave da questo, ele proclamava, e todos ti-nham os mesmos equipamentos nos quais o aprendiza-do podia ser construdo. A psicologia americana foi to-mada por essa idia. Consumidos por isso, todos osgrandes setores da psicologia dos Estados Unidos eramliderados por pessoas que tinham essa viso.

    Todo esse tumulto na psicologia behaviorista conti-nuou, apesar da bem-estabelecida posio primeiramen-te articulada por Descartes, Leibniz, Kant e outros deque a complexidade estava embutida no organismo. Infor-maes sensoriais so meramente dados nos quais estru-turas mentais preexistentes agem. Essa idia, que dominaa psicologia atualmente, foi alegremente afirmada nessaidade de ouro. Com os associacionistas tomando a frente,foram realizados milhares de experimentos e, pelo volu-me de atividade, roubaram essa questo para eles.

    A couraa dos behavioristas comeou a quebrar, en-tretanto, quando os psiclogos da Gestalt, trabalhandocom o fenmeno perceptual, demonstraram que a per-cepo era melhor compreendida em relao s proprie-dades emergentes de um estmulo. O movimento aparen-te, por exemplo, era uma propriedade emergente dos es-tmulos do mundo real. Existia somente como uma fun-o das propriedades preexistentes no encfalo. No eraaprendido. Os psiclogos gestaltistas desenvolveram cen-tenas de demonstraes mostrando pontos similares.

    O verdadeiro fim da dominncia do behaviorismo eda psicologia do estmulo-resposta no veio antes do fi-nal dos anos de 1950. Quase de um dia para o outro, ospsiclogos comearam a pensar em termos de cognio,e no somente em comportamento. George Miller, queera um behaviorista assumido, ofereceu o que ele cha-mou de memrias muito pessoais daquele evento (Fi-gura 1.18). Miller provocou uma revoluo nos anos de1950. Em 1951, ele escreveu um livro muito influentechamado Language and Communication e observou: O vis behaviorista.... Onze anos depois, ele escreveu outrolivro, chamado Psychology, the Science of Mental Life, ttuloque reflete uma completa rejeio idia de que a psico-Figura 1.16 Edward L.Thorndike.

  • NEUROCINCIA COGNITIVA 35

    logia deveria estudar somente o comportamento. Con-forme as palavras de Miller: Meu despertar cognitivodeve ter ocorrido nos anos de 1950.

    Aps uma rpida avaliao, Miller colocou a exatadata de seu despertar em 11 de setembro de 1956, du-rante o Segundo Simpsio sobre Teoria da Informao,que ocorreu no Instituto de Tecnologia de Massachu-setts (MIT). Aquele foi um ano muito rico para vriasdisciplinas. Nas cincias da computao, Allen Newelle Herbert Simon lanaram com sucesso InformationProcessing Language I, um poderoso programa que si-mulava a prova dos teoremas lgicos. O guru da com-putao John von Neumann escreveu as Palestras Sil-liman em organizao neural. Um famoso encontrosobre inteligncia artificial aconteceu na FaculdadeDartmouth, com Marvin Minsky, Claude Shannon (co-nhecido como o pai da teoria da informao) e muitosoutros.

    Grandes iniciativas tambm estavam acontecendo napsicologia. Como resultado da II Guerra Mundial, novas

    tcnicas psicolgicas estavam sendo aplicadas. JamesTanner e John Swets utilizaram a deteco de sinais, teo-ria servo e a tecnologia computacional para estudar per-cepo. (Essas tcnicas foram desenvolvidas, em grandeparte, para ajudar o departamento de defesa americano adetectar submarinos.) Miller tambm escreveu seu cls-sico artigo The Magical Number Seven, Plus-or-Minustwo, no qual mostrou que existe um limite no volumede informao que pode ser captada em um breve pero-do de tempo. Igualmente, o psiclogo do desenvolvi-mento Jerome Bruner estava trabalhando no problemado pensamento. Ao mesmo tempo em que via uma utili-dade limitada das idias associacionistas no aprendizadoinfantil, ele acreditava em mecanismos superiores envol-vidos no pensamento, construdos por meio de represen-taes e mapas mentais. Talvez a mais importante reve-lao, entretanto, tenha sido o trabalho de Noam Chom-sky (Figura 1.19). Uma verso preliminar de suas idiasem teorias sintticas foi publicada sob o ttulo Three Mo-dels of Language. O esforo de Chomsky transformou o es-

    Figura 1.18 George A. Miller. Figura 1.19 Noam Chomsky.

    Figura 1.17 Esquerda: John B. Watson. Direita: John B. Watson e o Pequeno Albert, durante um de seus experimentos de condiciona-mento de medo.

  • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN36

    tudo da linguagem rapidamente. A mensagem funda-mental era a de que o aprendizado terico ou seja, o as-sociacionismo, extremamente defendido por B. F. Skin-ner no podia explicar como a linguagem era aprendi-da. A complexidade da linguagem era prpria do crebroe seguia regras e princpios que transcendiam todos ospovos e todos os idiomas. Era universal.

    Herbert Simon e Allen Newell tambm divulgaramseus esforos para simular um processo cognitivo, apre-sentado no contexto do trabalho lingstico. Uma formasimples de associacionismo estava em voga novamente.Curiosamente, no mesmo dia, ocorreu uma tentativa ini-

    cial de se testar a teoria neuropsicolgica de DonaldHebb sobre redes celulares, que sugeria que qualquergrupo de neurnios pode aprender qualquer coisa. Re-centemente, as idias de Hebb avanaram bastante gra-as neurocincia da computao. Ao mesmo tempo queesse campo de especializao se volta gradualmente emdireo importncia da estrutura neural interna e uni-versal que governa a vida cognitiva e perceptual, prosse-guem os esforos para demonstrar que leis de associaosimples so responsveis por nosso aprendizado sobre omundo. Retornaremos a esse assunto no Captulo 14,sobre perspectivas evolutivas.

    Entrevista com George A. Miller, PhD. Dr. Miller professor emrito na Universidade de Princeton e umdos fundadores da cincia cognitiva moderna.

    Autores: A psicologia passou por mudanas revolu-cionrias nos ltimos 50 anos. Aps anos de dominaopelos behavioristas, repentinamente houve um interessepela cognio. Alguns dizem que isso ocorreu em setem-bro de 1956. Poderia nos falar um pouco sobre isso?

    GAM: Eu escolhi, certa vez, o 11 de setembro de1956 como um aniversrio apropriado para a cincia cog-nitiva. Essa foi a data do encontro, no Instituto de Tecno-logia de Massachusetts, em que lderes cognitivistas dascincias da computao, da lingstica e da psicologia fi-caram juntos pela primeira vez e comearam a comparti-lhar seu interesse pela mente humana. O interesse nacognio estava crescendo na ltima dcada, mas essa foia primeira vez que nos demos conta de que esses dife-rentes campos eram parte de um todo, antes mesmo desabermos como denominar isso.

    Autores: Existia alguma determinao particular pe-la qual estudantes da mente eram pressionados a expli-car resultados cientficos em termos dos princpios beha-vioristas? Ou as pessoas estavam simplesmente ficandocansadas daquele tipo de explicao?

    GAM: Existiam muitos fenmenos desse tipo. Porexemplo, os lingistas achavam impossvel descrever aestrutura de uma sentena gramatical em termos de se-qncia linear de reflexos estmulo-resposta. Bruner ecolaboradores acharam claras evidncias de estratgiasde soluo de problemas que em nada se pareciam comestmulos objetivos, respostas ou reforos, e Simon e Ne-well eram capazes de programar um computador primi-tivo para rastrear um problema da mesma maneira co-mo as pessoas o fazem, mas no atravs de procedimen-to cego de tentativa-e-erro. Eu no podia explicar como

    as pessoas podiam sintonizar-se para discriminar oti-mamente entre um conjunto particular de estmulos al-ternativos sem falar sobre suas expectativas subjetivas.Ulric Neisser juntou exemplos destes fenmenos algunsanos depois em seu livro Cognitive Psychology (1967).Mas lembro que fiquei particularmente impressionadocom alguns experimentos que pareciam mostrar que aateno do gato poderia ser monitorada em termos deresposta do nervo auditivo. Acho que os resultados pos-teriormente mostraram ser artefatos, mas naquele mo-mento foi muito excitante pensar que alguma coisasubjetiva como a ateno podia estar refletida em algoto objetivo como um impulso nervoso. Durante osanos de 1950, tornou-se cada vez mais claro que o com-portamento simplesmente uma evidncia, no a ques-to principal em psicologia.

    Autores: interessante notar que o termo psicolo-gia foi amplamente abandonado, mesmo que a maioriadas universidades ainda tenha departamentos de psico-logia. Voc ouve falar de cincia cognitiva, embora a psi-cologia seja definida como cincia dos processos men-tais e do comportamento. Isso foi necessrio e delibera-do por alguma razo sociolgica?

    GAM: A psicologia tem sido definida de muitas ma-neiras. No sculo XIX, pensava-se que existiam trs rami-ficaes, que poderiam ser traduzidas para os dias de ho-je como emoo, motivao e cognio. O behaviorismopodia lidar com emoo e motivao, mas sua recusa emadmitir o mentalismo sob qualquer forma tornou muitodifcil uma abordagem plausvel da cognio. Alguns psi-clogos sentiram que uma psicologia sem cognio eraabsurda, e a comeou a contra-revoluo. Rapidamente,

    MARCOS EM NEUROCINCIA COGNITIVA

  • NEUROCINCIA COGNITIVA 37

    O termo neurocincia cognitiva foi criado dentro daqueletxi da cidade de Nova York, no final dos anos de 1970,porque naquele momento uma nova misso se fazia real-mente necessria. Os neurocientistas estavam desco-brindo como o crtex cerebral era organizado e como elefuncionava em resposta a estmulos simples. Eles eramcapazes de descrever mecanismos especficos comoaqueles relacionados percepo visual. Por exemplo,David Hubel e Torsten Wiesel, em Harvard, estavammostrando como um nico neurnio no crtex visualrespondia de maneira confivel a formas particulares deestmulo visual. A rea de estudo da mente avanou

    muito alm dos simples mtodos de leso para acessarquais distrbios perceptivos ou cognitivos poderiamocorrer aps uma leso cerebral. Os neurocientistas es-tavam comeando a construir modelos de como clulasunitrias interagem para produzir percepes. A maioriados psiclogos no mais levava o behaviorismo a srio,como uma maneira de explicar a cognio complexa. Pes-soas como George Miller abandonaram a abordagem ini-cial, que era totalmente behaviorista; ao invs disso, ten-tavam articular como a linguagem era representada. Nosendo mais considerada como simples produto de apren-dizado e associacionismo, a linguagem veio a ser aceita

    NEUROCINCIA COGNITIVA

    descobrimos aliados em outras disciplinas, particular-mente em lingstica e inteligncia artificial, mas tam-bm em filosofia e na neurocincia. Pessoalmente, fi-quei aliviado em comear a colaborar com estes novosprofissionais e suas novas idias e parar de perder tem-po em explicar o que estava errado com o behavioris-mo. Com o crescimento da colaborao, a necessidadede nomear esta nova iniciativa tambm cresceu. Portan-to, cincia cognitiva.

    Autores: E agora a cincia cognitiva uma foramajoritria no estudo da mente. Modelos sofisticadosda mente foram construdos como resultado de experi-mentos. Uma das motivaes para o desenvolvimentoda cincia cognitiva foi testar estes modelos em um sis-tema biolgico, para averiguar sua validade. Agora, osproblemas da mente podem ser denominados por meioda percepo fsica ou da percepo biolgica. Os fsicosbuscam por alguns poucos princpios gerais para explicarprocessos complexos, e essa atitude dependeria de al-guns poucos princpios da mente. Os bilogos mais oumenos abrem mo dessa idia e dizem que a criaturabiolgica um saco de truques, uma espcie de cani-vete suo com muitas funes especializadas. De que la-do voc fica nesse debate?

    GAM: Ambos esto corretos. A compreenso deta-lhada das funes especializadas provavelmente tem devir primeiro, antes dos princpios gerais poderem ficarclaros. O fato de no podermos intuir esses princpioscom antecedncia no significa que eles nunca serocompreendidos.

    Autores: Para aproveitar um exemplo especfico emcincia cognitiva: voc est trabalhando em um dicion-rio eletrnico que se tornou um modelo de como o lxi-co humano deve trabalhar no encfalo humano. Poderianos falar um pouco sobre ele e como isso pode levar compreenso de como o nosso prprio lxico trabalha?

    GAM: difcil ser conciso quando voc est to per-to de um trabalho como eu estou do conhecimento dolxico, mas deixe-me tentar caracterizar isso com umexemplo. H algum tempo, o filsofo ingls Grice notouque duas sentenas como Estou sem gasolina e Hum posto ali na esquina so imediatamente vistas comorelacionadas por pessoas com inteligncia normal. Aquesto : Como as pessoas preenchem a informaono-oferecida para esta relao? Uma explicao podeser em termos do alastramento da excitao no encfalo.A primeira frase ativa o nodo lxico para gasolina, e asegunda ativa o nodo lxico para posto. Essas ativa-es se alastram at finalmente se cruzarem em algumnodo lxico intermedirio, como carro, e ento umasentena intermediria pode ser construda: carros soabastecidos com gasolina nos postos.

    Quando voc tenta construir um sistema que vai fa-zer isso, entretanto, voc v que este alastramento resul-ta em muitas interseces. Estima-se que somente 1/10das interseces resultantes de uma ativao no especi-ficamente direcionada sero apropriadas. Claramente, seexistir essa excitao, a sua difuso guiada de algumamaneira. Assim, que tipo de informao um sistema vaiprecisar seja um sistema cerebral ou de computador de forma a ser capaz de restringir a difuso da excitaopelos canais apropriados?

    Nosso grupo aqui em Princeton tem buscado proporuma resposta a essa questo em termos de uma fina re-de interconectada de conceitos lxicos. No pensamosque o encfalo faa isso da mesma maneira que nossocomputador o faz, mas estamos ganhando uma visomuito mais profunda do problema que o encfalo temde resolver. Quando entendermos isso, os neurocientis-tas cognitivos tero uma idia bem mais clara do queprocurar.

  • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN38

    difcil entender a evoluo meterica das imagens ce-rebrais. Quando da 1a edio deste livro, o imageamentocerebral tinha algum apoio na neurocincia cognitiva,mas a maior parte do trabalho provinha de poucos labo-ratrios ao redor do mundo. Na poca da presente edi-o, a neuroimagem expandiu-se para dezenas de cen-tros. Na realidade, hoje, todo o tradicional departamen-to acadmico de psicologia possui um aparelho de resso-nncia magntica no seu subsolo, ou planeja ter um. Co-mo tudo isso aconteceu? Como o estudo do fluxo san-gneo cerebral por meio de imagens nos ajuda a enten-der processos como a ateno ou a leitura?

    Muitas coisas boas tiveram incio na Itlia, e isso in-clui a pesquisa do fisiologista Angelo Mosso, que traba-lhou em uma enfermaria de neurocirurgia e estudou pa-cientes com defeitos no crnio. Ele notou que a pulsaodo crtex humano aumentava regionalmente durante aatividade mental. Com esse trabalho, Mosso havia esta-belecido a correlao entre o fluxo sangneo cerebral ea atividade neural.

    Mas foi somente aps a II Guerra Mundial que arelao entre fluxo cerebral e funo neural comeou

    a ser quantificada. Seymour Kety, Lou Sokoloff, e mui-tos outros, a servio do Instituto Nacional de Sade,comearam a medir o fluxo cerebral no encfalo deanimais. Esse trabalho abriu caminho para o surgi-mento dos primeiros aparelhos de imagem cerebral.Primeiro, os pesquisadores escandinavos David Ing-var e Neils Lassen desenvolveram um capacete comcontadores de cintilao que envolvia toda a cabea epermitia a medida regional bruta de mudanas no flu-xo cerebral durante a atividade mental. Essa tcnicalogo deu lugar a uma tecnologia muito mais poderosae espacialmente mais acurada chamada tomografia poremisso de psitrons (TEP).

    Com a TEP, uma tcnica desenvolvida na Universi-dade de Washington, em Saint Louis, tanto o fluxo ce-rebral como o metabolismo podiam ser quantificados.Usando procedimentos desenvolvidos por Kety e Soko-loff, os pesquisadores podiam agora, de forma similar,retratar o encfalo humano. Rapidamente, entretanto,a medida do metabolismo perdeu espao para a medi-da do fluxo cerebral. Com o desenvolvimento de radio-frmacos (p. ex., H2

    15O) com meia-vida curta (123 se-

    como uma construo complexa realizada pelo encfalo.Desde o avano de Chomsky, ficou claro que a gramtica um instinto, enquanto o lxico aprendido.

    O extraordinariamente talentoso David Marr, doMIT, fez um grande esforo para ligar os mecanismos ce-rebrais e a percepo. Marr, que morreu tragicamentemuito jovem, deu uma viso do que seria a neurocinciacognitiva. Como Kosslyn e Andersen (1992) colocaram,naquele momento, o trabalho de Marr era unicamenteinterdisciplinar e particularmente importante porquepropiciou os primeiros exemplos rigorosos de teorias daneurocincia cognitiva.

    Marr reforou a idia de que a computao neuralpode ser compreendida pela anlise em mltiplos nveis.Filsofos das cincias tm observado, h muito tempo,que um nico fenmeno pode ser examinado em mlti-plos nveis de anlise. Ao considerar a psicologia, filso-fos como Jerry Fodor distinguiram nveis funcionais e f-sicos; o nvel funcional atribua papis e propsitos aoseventos, enquanto o nvel fsico caracterizava os compo-nentes eltricos e qumicos prprios desses eventos.

    Marr levou esses passos iniciais muito adiante. Eleatribuiu uma hierarquia aos nveis, baseado na idia deque o encfalo computa. Assim, dividiu o nvel funcionalem dois nveis, um que caracteriza o que computado eoutro que caracteriza como a computao realizada (is-to , algoritmos), e mostrou como esses nveis relaciona-vam-se ao nvel mais baixo, o de implementao.

    Apesar de moderna e arrojada, a abordagem deMarr no era muito precisa. Sua idia foi adotada pelostericos cognitivos porque ele sugeriu que poderamosentender o nvel cognitivo simplesmente com a racio-nalidade. Teorias que pretendiam explicar aptidesmentais como a linguagem, a memria ou a ateno re-queriam anlises mais profundas, incluindo algoritmos,para descrever como os processos neuropsicolgicosproduzem o estado cognitivo.

    Mas as idias de Marr no funcionaram completa-mente. A distino entre nveis isto , entre os algorit-mos e os mecanismos de implementao dos neurnios era muito vaga. No existe somente um tipo de neur-nio no encfalo; h muitos tipos, cada um com proprie-dades diferentes, acionado por diferentes neurotrans-missores, e assim por diante. Qualquer teoria computa-cional, por conseqncia, deve ser sensvel real biolo-gia do sistema nervoso e limitada pela maneira como oencfalo realmente funciona e ele funciona de maneiradiferente para diferentes funes.

    No que amplas generalizaes das funes do siste-ma nervoso no existam. Elas existem e permitem queos cientistas procurem por mecanismos especficos, oque levou ao crescimento rpido do campo de pesquisasde rede neural. Aqui, os cientistas constroem modelosde como o encfalo pode funcionar e tentam limitar co-mo as redes funcionam, incluindo informaes da neuro-fisiologia e da neuroanatomia.

    O SBITO NASCIMENTO DO IMAGEAMENTO CEREBRAL

  • NEUROCINCIA COGNITIVA 39

    Aprendemos como pelo menos dois campos acadmicosricos e poderosos se uniram para produzir outro campocientfico de pesquisa, a neurocincia cognitiva. A cin-cia do encfalo emergiu no sculo passado e deu-nos oconhecimento de que ele feito de unidades distintas os neurnios. Cajal uniu a histria sobre a importnciade entidades distintas, neurnios funcionais, e como elesdevem interagir para produzir o comportamento. Em umnvel mais geral, linhas de batalha foram travadas paradeterminar de que modo o encfalo, como um todo, eraorganizado. Alguns pesquisadores acreditavam que asfunes eram localizadas em reas distintas do encfalo;outros se opuseram duramente a essa idia e sustenta-ram a tese de que as funes eram representadas em to-do crtex cerebral.

    Como o debate a respeito da localizao continuouno sculo XX, os psiclogos comearam a pensar dife-rentemente sobre suas teorias. Colocando as idias deFreud de lado, os maiores cientistas experimentais quetrabalhavam em temas da psicologia passaram a acredi-tar em alguma forma de associacionismo. Em princpio,entendiam que tudo o que influenciava o organismo, nosentido de explicar por que e o que as pessoas aprendiame lembravam, era baseado na teoria da recompensa e pu-nio. Essa convico de que as contingncias do am-

    biente poderiam explicar tudo tornou-se parte essencialdesse pensamento. Afinal, isso refletia o sonho ameri-cano. Qualquer um podia tornar-se qualquer coisa noambiente certo.

    Tudo isso veio abaixo no fim da dcada de 1950. Oempirismo no conseguiu explicar funes mentais com-plexas, como a linguagem e outras funes perceptuais.Os cientistas comearam a considerar que a representa-o de informaes vinha embutida no encfalo pratica-mente desde o nascimento. Conseqentemente, surgiu apsicologia cognitiva, que promoveu a noo de que est-gios de processamento e atividade cognitiva podiam seranalisados levando em considerao seus componentesinterligados.

    Entretanto, toda essa atividade produziu uma novaviso. Se algum quisesse entender como o encfalo per-mitia a cognio, o pensamento da neurocincia no es-tava preparado para tal trabalho. Da mesma maneira, napsicologia propriamente dita, modelos estavam sendoconstrudos, e processos mentais estavam sendo simula-dos mas sem interesse a respeito de como o encfalofazia o trabalho. Ou seja, houve interesse em como amente devia funcionar, ou como podia funcionar, masno em como realmente funciona. Neste livro, explora-mos como realmente o crebro d origem mente.

    gundos), o fluxo cerebral podia ser medido rapidamen-te (

  • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN40

    associacionismobehaviorismocampo agregado

    citoarquiteturadisquiseempirismo

    frenologiaholismolocalizao

    racionalismosincciodoutrina neuronal

    TERMOS-CHAVE

    1. possvel realizar um estudo sobre como a mentetrabalha sem se estudar o encfalo?

    2. Os novos experimentos em imageamento cerebralpodero tornar-se a nova frenologia?

    3. O que os psiclogos cognitivos querem dizer com otermo representao? E o que os neurocientistasquerem dizer com esse termo?

    4. Voc consegue imaginar como o encfalo poder serescaneado no futuro?

    QUESTES PARA PENSAR

    KASS-SIMON, G., and FARNES, P. (1990). Women of Science:Righting the Record. Bloomington, IN: Indiana UniversityPress.

    LINDZEY, G. (Ed.). (1936). History of Psychology in Autobio-graphy, Vol. III. Worcester, MA: Clark University Press.

    RAICHLE, M.E. (1998). Behind the scenes of functional brainimaging: A historical and physiological perspective. Proc.Nat. Acad. Sci. U.S.A. 95:765-772.

    SHEPHERD, G.M. (1992). Foundations of the Neuron Doctrine.New York: Oxford University Press.

    LEITURAS SUGERIDAS