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O BUO -EM-PÉ .a por J osé Cardoso Pi r e s e J oão Abel BREVE DESCRIÇÃO DE ATENAS ·Manta e Tendo ouvido os dís- cursos dos Artolas e Car- telas, tão sublinhados por fitas de inauguração; tendo conhecido os dis- tintos irmãos Arnozello, embaixadores das artes itinerantes; muito atento . e venerador às diversas prosas de papel selado que floriam as secreta- rias de azul celestial - Paisaninho, brro-em- pé, decidiu aprender for- maturas pelo processo neogótico. E s c o I h e u Atenas-a-Ocidente por ser, para os devidos efei- tos. A LEGÍTIMA CIDADE DOS DOUTORES gar-lhe o passado. la im- pante, escusado ser� di- zer. Levado por uivos de corta-paisagem. Mas antes de chegar aos altos infinitos donde os bachareis lhe acena- vam com os seus canu- dos, Stop: houve que mu- dar de piloto num entron- camento. Depois de mui- tas negociações o maqui- nista errante deu lugar a um doutor em fato-ma- caco que se agarrou lo-. go aos comandos, reci- tando Camões e Bernar- dim, e os cinquenta mais ôelos artigos do Código Civil. Assim chegou a ATENAS! ATENAS-A-OCI- DENTE! de acordo com a sau- dação à guitarra de um tenor fardado que tinha Na data oportuna to- . como função receber os mou o comboio-expresso comboios no apeadeiro. mais audáz que encon- A cidade constava de trou nos horários e lá foi, dois parágrafos distin- . pilotado por um maqui- tos: Atenas-A e Ate- nista aventureiro. Comeu nas-8. Estava, toda ela, e dormiu a bordo, viu sobrevoada- por folhas campos, verdes campos, de sebenta, papagaios pouca-terra, pouca-terra, de sabedoria que os. es- deixando para trás um tudantes lançavam ao rastro de fumo a apa- vento lá na ponta das. co- finas. Recitavam-nas e lançavam-nas, recita- vam-nas e lançavam-nas. Paisaninho, já se vê, sentiu-se encantado co esta forma de decorar. Subiu por ruas apertadas e an_tigas, direito ao cu- me, à luz. Havia arcos de pedra e brasões a certas portas.Oratóriostambém: muitos. Ecuras. Curas, muitos curas. Mulheres é que pou- cas, raríssimas. À falta delas, a cidade procura- va animar-se com ban 7 do� de rapazes que brin- cavam ao vinho tinto e contavam anedotas de cio. Vestiam capas de lu- to e batinas iguais às dos padres, ou quase, embo- ra fossem estudantes. O mais curioso é que, tal- vez por não terem mulhe- res ou por andarem cheios de medo dos pro- fessores, vingavam-se constantemente uns nos outros, rasgando capas à tesourada, rapando o ca- belo aos mais fracos, fa- zendo trinta por uma li- nha. Nessas ocasiões soltavam brados de guer- · faiate de fita métrica ao ra pescoço. «EFE-ERRE-A...FRÁ!» outor, cá está a Mal- «EFE-ERRE-E ...FRÉ!» vada! dizia o estalajadei- «EFE-EFFE-1...FRI!» ro, apontando a ardósia procurando, assim, re- cordar as vogais. Longe, nos jardins, os que não andavam de te- soura apontada, canta- vam para chamar mu- lher. E, Jesus, era de ar- repiar. Ouvia-se a guitar- ra: gemia tremidos, miu- dinha; ouvia-se a voz: ti- nha trinados de ave do- méstica, toda mel e lua cheia. As esquinas e aos por- tais Paisaninho era as- saltado por comercian- tes da mais variada es- pécie: «PST, DOUTOR!» chamavam eles, e nem percebiam que se esta- vam a dirigir a um burro em pé, queriam lá saber. Assim, o alfarrabista anunciava nestes ter- mos: Sebentas em esta- do novo, doutorzinho! Caveiras e peças ana- tómícas! -, . Batinas!, gritava um ai- da ementa; enquanto que uma lavadeira, de trouxa de roupa à ca- beça, arrastava um pre- gão de estremecer as ca- sas pela calçada acima: Ouuuu- ladouuuu... Ve- nham à boa barrela, dou- tores! Estes brados cresciam pela cidade, endoidecen- do os habitantes. Levado na onda de cu- ras e aprendizes, sauda- do pelo comércio, envol- vido pelo cheiro do azei- te que ardia nos lampa- dários, Paisaninho Mos- quitela atravessou becos e quelhas, penetrou no antepassado, no luto. A própria Sé estava terrível e sombria, carregada de séculos. «EFE-ERRE...A! FRA«EFE-ERRE-E...FRE!» urravam, algures, os Ja- dravazes da-tesoura ran- cõrosa - e o Burro-em-Pé meteu o rabo entre as pernas e, depressa que faz tarde, continuou a marcha. la por passa- gens estreitíssimas, qua- se a pique e cheias de pessoas embuçadas, al- gumas com pastas e fitas de seda, como missais. Subiu, subiu, e neste an- dar deu de caras com um grande mosteiro ou coisa semelhante, visto que tinha ·sino na torre e claustros de pedra mo- rena. Silêncio e ponto fi- nar: estava-se na Univer- sidade, deduziu o nosso heroi. Empoleirados em altos cadeirais erguiam-se OS MESTRES Olhavam-no com fir- meza e pareciam pergun- tar: «QUEM É ESTE?» Somente não se lhes ouviu a mínima palavra, e nem era de esperar que se ouvisse porque aqueles mestres não di- ziam senão o que estava escrito nos livros antigos Côntfnua na pág. oito

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O BURRO -EM-PÉ .apor José Cardoso Pi r e s e João Abel

BREVE DESCRIÇÃO DE ATENAS ·Manta

e Tendo ouvido os dís­cursos dos Artolas e Car­telas, tão sublinhados por fitas de inauguração; tendo conhecido os dis­tintos irmãos Arnozello, embaixadores das artes itinerantes; muito atento

. e venerador às diversas prosas de papel selado que floriam as secreta­rias de azul celestial -Paisaninho, b\)rro-em­pé, decidiu aprender for­maturas pelo processo neogótico. E s c o I h e u Atenas-a-Ocidente por ser, para os devidos efei­tos.

A LEGÍTIMA CIDADE DOS DOUTORES

gar-lhe o passado. la im­pante, escusado ser� di­zer. Levado por uivos de corta-paisagem.

Mas antes de chegar aos altos infinitos donde os bachareis lhe acena­vam com os seus canu­dos, Stop: houve que mu­dar de piloto num entron­camento. Depois de mui­tas negociações o maqui­nista errante deu lugar a um doutor em fato-ma­caco que se agarrou lo-. go aos comandos, reci­tando Camões e Bernar­dim, e os cinquenta mais ôelos artigos do Código Civil. Assim chegou a ATENAS! ATENAS-A-OCI-

DENTE! de acordo com a sau­dação à guitarra de um tenor fardado que tinha

Na data oportuna to-. como função receber os mou o comboio-expresso comboios no apeadeiro. mais audáz que encon- A cidade constava de trou nos horários e lá foi, dois parágrafos distin­

. pilotado por um maqui- tos: Atenas-A e Ate­� nista aventureiro. Comeu nas-8. Estava, toda ela,

e dormiu a bordo, viu sobrevoada- por folhas campos, verdes campos, de sebenta, papagaios pouca-terra, pouca-terra, de sabedoria que os. es­deixando para trás um tudantes lançavam ao rastro de fumo a apa- vento lá na ponta das. co-

finas. Recitavam-nas e lançavam-nas, recita­vam-nas e lançavam-nas.

Paisaninho, já se vê, sentiu-se encantado coní esta forma de decorar. Subiu por ruas apertadas e an_tigas, direito ao cu-me, à luz. Havia arcos de pedra e brasões a certas portas.Oratóriostambém: muitos. Ecuras. Curas, muitos curas.

Mulheres é que pou­cas, raríssimas. À falta delas, a cidade procura­va animar-se com ban7

do� de rapazes que brin­cavam ao vinho tinto e contavam anedotas de cio. Vestiam capas de lu­to e batinas iguais às dos padres, ou quase, embo­ra fossem estudantes. O mais curioso é que, tal­vez por não terem mulhe­res ou por andarem cheios de medo dos pro­fessores, vingavam-se constantemente uns nos outros, rasgando capas à tesourada, rapando o ca­belo aos mais fracos, fa­zendo trinta por uma li­nha. Nessas ocasiões

soltavam brados de guer- · faiate de fita métrica ao ra pescoço.

«EFE-ERRE-A ... FRÁ!» o·outor, cá está a Mal-«EFE-ERRE-E ... FRÉ!» vada! dizia o estalajadei-«EFE-EFFE-1...FRI!» ro, apontando a ardósia

procurando, assim, re­cordar as vogais.

Longe, nos jardins, os que não andavam de te­soura apontada, canta­vam para chamar mu­lher. E, Jesus, era de ar­repiar. Ouvia-se a guitar­ra: gemia tremidos, miu­dinha; ouvia-se a voz: ti­nha trinados de ave do­méstica, toda mel e lua cheia.

As esquinas e aos por­tais Paisaninho era as­saltado por comercian­tes da mais variada es-pécie:

«PST, DOUTOR!» chamavam eles, e nem percebiam que se esta­vam a dirigir a um burro em pé, queriam lá saber.

Assim, o alfarrabista anunciava nestes ter­mos: Sebentas em esta­do novo, doutorzinho! Caveiras e peças ana­tómícas! -,. Batinas!, gritava um ai-

da ementa; enquanto que uma lavadeira, de trouxa de roupa à ca­beça, arrastava um pre­gão de estremecer as ca­sas pela calçada acima: Ouuuu- ladouuuu... Ve­nham à boa barrela, dou­tores!

Estes brados cresciam pela cidade, endoidecen­do os habitantes.

Levado na onda de cu­ras e aprendizes, sauda­do pelo comércio, envol­vido pelo cheiro do azei­te que ardia nos lampa­dários, Paisaninho Mos­quitela atravessou becos e quelhas, penetrou no antepassado, no luto. A própria Sé estava terrível e sombria, carregada de séculos.

«EFE-ERRE ... A! FRA!»

«EFE-ERRE-E ... FRE!»

urravam, algures, os Ja­dravazes da-tesoura ran-

cõrosa - e o Burro-em-Pé meteu o rabo entre as pernas e, depressa que faz tarde, continuou a marcha. la por passa­gens estreitíssimas, qua­se a pique e cheias de pessoas embuçadas, al­gumas com pastas e fitas de seda, como missais. Subiu, subiu, e neste an­dar deu de caras com um grande mosteiro ou coisa semelhante, visto que tinha ·sino na torre e claustros de pedra mo­rena. Silêncio e ponto fi­nar: estava-se na Univer­sidade, deduziu o nosso heroi.

Empoleirados em altos cadeirais erguiam-se

OS MESTRES Olhavam-no com fir­

meza e pareciam pergun­tar:

«QUEM É ESTE?»

Somente não se lhes ouviu a mínima palavra, e nem era de esperar que se ouvisse porque aqueles mestres não di­ziam senão o que estava escrito nos livros antigos

Côntfnua na pág. oito

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O BURRO -EM-PÉ .apor José Cardoso Pires e João Abel Manta

BREVE DESCRIÇÃO DE ATENAS

Continuação da pagina três

e nunca se dignavam no­mear pessoas ou factos que não tivessem sido nomeados por outros mestres (defuntos, de preferência) e com o de­vido respeito.

Vestiam paramentos negros e usavam estolas como as dos sumos sa­cerdotes, mais ou me­nos. Rostos rapados, cin-

zentos, olhos frios, olhos de muita vigília, alí esta­vam eles, bem no alto, como num friso de cate­dral. Cada qual empu­nhava seu bastão e á ma­neira de mitra tinha so­bre os joelhos um cha­péu conhecido por ca­pelo que só cabe na ca­beça dos muito sábios_ oão na de qualquer dos estudantes que circula-

vam aos pés deles, reci­tando a sebenta:

«PATATI... PATATÁ ... NO-

VES FORA, NADA.»

«PATATI. .. PATATÁ ... NO­VES FORA. NADA.»

Diga-se ainda que na­quela casa havia muito latim pelas portas, patati, e pelas paredes patatá e que se falava constante­mente nos mortos.

«AD GLORIA MAIOREM».

Então, sem perder tempo, Paisaninho ati­rou-se aos livros para aprender uma maneira de fazer frases que o tor­nasse inteligente e lhe desse passaporte para circular no tu-cá-tu-Já com a Comarca. A praxe iria encarregar-se do res­to quando lhe cortou o cabelo e o rabo.