Brasileiro Fala Banto - Bagno

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www.portuguesegramatica.com.br 1 http://marcosbagno.com.br/site/ Marcos Bagno: Linguista Prof. da Universidade de Brasília http://marcosbagno.com.br/site/ Textos e Artigos para a Revista Caros Amigos Brasileiro fala Banto? http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=415 Marcos Bagno Revista Caros Amigos Out/2009 Dia desses, uma gaúcha veio me contar, entusiasmada, que tinha aberto uma escola de línguas em Porto Alegre, que não queria se limitar ao ensino das línguas europeias (inglês, francês, espanhol, italiano, alemão) mas pensava em oferecer também o iorubá, para ser uma escola “politicamente correta”, que contemple as línguas que “influenciaram” o português brasileiro. Pensei com meus botões: “Mais uma iludida”. O desconhecimento, por parte da maioria dos brasileiros, inclusive linguistas profissionais, da história linguística do nosso país é impressionante. Quando, com base nos excelentes estudos de Yeda Pessoa de Castro, digo às pessoas que, das línguas africanas trazidas para cá com o tráfico de escravos, a que menos impacto exerceu sobre o português brasileiro foi o iorubá, as reações costumam ir da surpresa à indignação. O iorubá é uma língua oeste-africana. Seus falantes só começaram a ser trazidos para o Brasil no final do século XVIII, com a destruição do reino de Queto, e também depois de 1830, quando foi arrasado o império de Oió. Ficaram concentrados nas zonas litorâneas, com especial destaque para a região do Recôncavo baiano. Com os falantes de iorubá e de outras línguas oeste-africanas vieram os cultos religiosos que se tornaram conhecidos como candomblé. Por causa do prestígio cultural que essas manifestações religiosas alcançaram é que se fixou, entre nós, o mito de que o iorubá é a principal (quando não a única!) língua africana que exerceu “influência” sobre o português brasileiro. Desse mito decorrem inúmeras distorções como, por exemplo, a do filme “Quilombo”, de Cacá Diegues (1984), em que Zumbi dos Palmares e demais quilombolas falam iorubá, em pleno século XVII, quando ainda não tinham chegado ao Brasil os falantes dessa língua. O mesmo se pode dizer dos inúmeros cursos de iorubá oferecidos Brasil afora e que muitas pessoas vão frequentar na crença de que, assim, se aproximariam mais das raízes africanas da nossa população e da nossa cultura. Ora, as línguas que de fato mais confluíram para a formação do português brasileiro são de uma outra família, a família chamada Banto. São de línguas bantas (quicongo, quimbundo, umbundo) a maioria dos escravos trazidos a partir do século XVII e que serão distribuídos por todo o território brasileiro. A antiguidade da presença dos bantos é que explica a grande quantidade de vocábulos plenamente integrados ao falar brasileiro do dia-a-dia e referentes aos mais diversos campos da vida humana. As palavras do iorubá que empregamos, por outro lado, se referem quase exclusivamente ao universo religioso e têm uma difusão muito mais restrita geograficamente. Com isso, se quisermos de fato nos aproximar das nossas raízes africanas mais profundas, é nas línguas do grupo banto que devemos procurá-las. É delas que vêm, entre tantas outras, as já brasileiríssimas caçula, carimbo, cachaça, dengo, samba, sacana, biboca, maconha, bagunça, jiló, cachimbo, cafungar, fungar, cabular, catinga, catimba, ginga, lambada, cangaço, mocambo, moleque, miçanga, moqueca, muamba, olelê-olalá, tutu, titica, xingar, quiabo, quitanda, quitute, muxoxo, cochilo, banguela, beleléu, zanzar, ziquizira, songamonga, moringa, camundongo, babaca, senzala, mucama, macaco, babau, caxumba, capanga, canga, tanga, lengalenga, mandinga, coroca, cotó, fubá, moleque, cafuné, jagunço, meganha… sem falar, é claro, da grande unanimidade nacional a bunda!

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Marcos Bagno, éprofessor do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília, doutor em filologia e língua portuguesa pela Universidade de São Paulo, tradutor, escritor com diversos prêmios e mais de 30 títulos publicados,1 entre literatura e obras técnico-didáticas. Atua mais especificamente na área de sociolinguística e literatura infanto-juvenil, bem como questões pedagógicas sobre o ensino de português no Brasil. Em 2012 sua obra As memórias de Eugênia recebeu o Prêmio Jabuti. Escreve uma coluna sobre língua portuguesa na revista Caros Amigos.

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    Marcos Bagno: Linguista Prof. da Universidade de Braslia http://marcosbagno.com.br/site/

    Textos e Artigos para a Revista Caros Amigos Brasileiro fala Banto? http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=415 Marcos Bagno Revista Caros Amigos Out/2009

    Dia desses, uma gacha veio me contar, entusiasmada, que tinha aberto uma escola de lnguas em Porto Alegre, que no queria se limitar ao ensino das lnguas europeias (ingls, francs, espanhol, italiano, alemo) mas pensava em oferecer tambm o iorub, para ser uma escola politicamente correta, que contemple as lnguas que influenciaram o portugus brasileiro. Pensei com meus botes: Mais uma iludida.

    O desconhecimento, por parte da maioria dos brasileiros, inclusive linguistas profissionais, da histria lingustica do nosso pas impressionante. Quando, com base nos excelentes estudos de Yeda Pessoa de Castro, digo s pessoas que, das lnguas africanas trazidas para c com o trfico de escravos, a que menos impacto exerceu sobre o portugus brasileiro foi o iorub, as reaes costumam ir da surpresa indignao.

    O iorub uma lngua oeste-africana. Seus falantes s comearam a ser trazidos para o Brasil no final do sculo XVIII, com a destruio do reino de Queto, e tambm depois de 1830, quando foi arrasado o imprio de Oi. Ficaram concentrados nas zonas litorneas, com especial destaque para a regio do Recncavo baiano. Com os falantes de iorub e de outras lnguas oeste-africanas vieram os cultos religiosos que se tornaram conhecidos como candombl. Por causa do prestgio cultural que essas manifestaes religiosas alcanaram que se fixou, entre ns, o mito de que o iorub a principal (quando no a nica!) lngua africana que exerceu influncia sobre o portugus brasileiro. Desse mito decorrem inmeras distores como, por exemplo, a do filme Quilombo, de Cac Diegues (1984), em que Zumbi dos Palmares e demais quilombolas falam iorub, em pleno sculo XVII, quando ainda no tinham chegado ao Brasil os falantes dessa lngua. O mesmo se pode dizer dos inmeros cursos de iorub oferecidos Brasil afora e que muitas pessoas vo frequentar na crena de que, assim, se aproximariam mais das razes africanas da nossa populao e da nossa cultura.

    Ora, as lnguas que de fato mais confluram para a formao do portugus brasileiro so de uma outra famlia, a famlia chamada Banto. So de lnguas bantas (quicongo, quimbundo, umbundo) a maioria dos escravos trazidos a partir do sculo XVII e que sero distribudos por todo o territrio brasileiro. A antiguidade da presena dos bantos que explica a grande quantidade de vocbulos plenamente integrados ao falar brasileiro do dia-a-dia e referentes aos mais diversos campos da vida humana. As palavras do iorub que empregamos, por outro lado, se referem quase exclusivamente ao universo religioso e tm uma difuso muito mais restrita geograficamente. Com isso, se quisermos de fato nos aproximar das nossas razes africanas mais profundas, nas lnguas do grupo banto que devemos procur-las. delas que vm, entre tantas outras, as j brasileirssimas caula, carimbo, cachaa, dengo, samba, sacana, biboca, maconha, baguna, jil, cachimbo, cafungar, fungar, cabular, catinga, catimba, ginga, lambada, cangao, mocambo, moleque, mianga, moqueca, muamba, olel-olal, tutu, titica, xingar, quiabo, quitanda, quitute, muxoxo, cochilo, banguela, belelu, zanzar, ziquizira, songamonga, moringa, camundongo, babaca, senzala, mucama, macaco, babau, caxumba, capanga, canga, tanga, lengalenga, mandinga, coroca, cot, fub, moleque, cafun, jaguno, meganha sem falar, claro, da grande unanimidade nacional a bunda!