Branca e o amigo lobo

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Branca e o amigo lobo Os lobos sempre foram ferozes, rápidos, observadores e bons companheiros em alcateia. Disso depende a sua sobrevivência. Mas, no inverno, passam mal por falta de alimentos, e têm de descer da montanha ao povoado mais próximo para apanhar alguma ovelha ou até alguma galinha desprevenida…. Nas aldeias ninguém gosta deles pois, de cada vez que se acercam, desaparecem um ou muitos animais... Por isso, os habitantes organizam caçadas de vez em quando e festeja-se sempre que um lobo é apanhado. E assim os lobos também não gostam muito dos seres humanos…. Mas um dia…. … aconteceu uma coisa estranha: quando a alcateia se dispunha a entrar num redil para apanhar alguma ovelha, encontraram uma menina à porta. O líder estacou a uns metros dela e observou-a. Nunca tinha visto tão de perto um ser humano e muito menos uma criança, de modo que se aproximou lentamente. E não sentiu medo já que a menina não levava nenhum pau na mão nem nada com que o atacasse. Por isso, aproximou-se mais ainda. Para sua surpresa, a menina fez-lhe festas com a mão, dizendo: — Olá, lindo cão! Não tenhas medo, que eu não te faço mal... O lobo até se arrepiou e recuou ao sentir as carícias da menina. Era uma sensação nova para ele. Voltou a remirá-la de alto a baixo. Fixando-se nos olhos, apercebeu-se que a menina não podia ver. Era cega. — Anda cá, cãozinho, vem!... — e o líder da alcateia de novo se acercou lentamente enquanto o grupo assistia àquela cena insólita. — Chamo-me Branca. E tu, qual é o teu nome? O lobo disse: — Eu não tenho nome. Nunca ninguém me pôs nenhum. — Vou chamar-te Algodão, por teres o pelo tão suave como o algodão. Gostas do nome?

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Branca e o amigo lobo

Os lobos sempre foram ferozes, rápidos, observadores e bons companheiros em

alcateia. Disso depende a sua sobrevivência. Mas, no inverno, passam mal por falta de

alimentos, e têm de descer da montanha ao povoado mais próximo para apanhar alguma

ovelha ou até alguma galinha desprevenida….

Nas aldeias ninguém gosta deles pois, de cada vez que se acercam, desaparecem um

ou muitos animais... Por isso, os habitantes organizam caçadas de vez em quando e

festeja-se sempre que um lobo é apanhado. E assim os lobos também não gostam muito

dos seres humanos…. Mas um dia….

… aconteceu uma coisa estranha: quando a alcateia se dispunha a entrar num redil

para apanhar alguma ovelha, encontraram uma menina à porta. O líder estacou a uns

metros dela e observou-a. Nunca tinha visto tão de perto um ser humano e muito menos

uma criança, de modo que se aproximou lentamente. E não sentiu medo já que a menina

não levava nenhum pau na mão nem nada com que o atacasse. Por isso, aproximou-se

mais ainda. Para sua surpresa, a menina fez-lhe festas com a mão, dizendo:

— Olá, lindo cão! Não tenhas medo, que eu não te faço mal...

O lobo até se arrepiou e recuou ao sentir as carícias da menina. Era uma sensação

nova para ele. Voltou a remirá-la de alto a baixo. Fixando-se nos olhos, apercebeu-se que

a menina não podia ver. Era cega.

— Anda cá, cãozinho, vem!... — e o líder da alcateia de novo se acercou

lentamente enquanto o grupo assistia àquela cena insólita. — Chamo-me Branca. E tu,

qual é o teu nome?

O lobo disse:

— Eu não tenho nome. Nunca ninguém me pôs nenhum.

— Vou chamar-te Algodão, por teres o pelo tão suave como o algodão. Gostas do

nome?

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O lobo estava comovido. Pela primeira vez tinha sentido as carícias de um ser

humano e tinham-lhe posto um nome que até soava bem. Aturdido e confuso, afastou-se

a repetir o seu nome, e a alcateia seguiu-o sem se atrever a dizer nada.

Porém, já na sua guarida, o grupo todo começou a invetivá-lo:

— Porque não a atacaste? Era carne fresca. O que interessa ser menina ou ovelha?

— queixou-se o lobo mais esfomeado.

— E porque te deixaste acariciar? Revelaste uma grande debilidade. Até parece

mentira que sejas tu o nosso líder! — disparou o lobo mais atrevido.

— Se não querias atacá-la, nem entrar no redil, teríamos ido nós e agora não

estaríamos aqui cheios de fome... — resmungou o lobo mais novo.

— Se calhar, tiveste pena de uma menina indefesa! Vais ver que essa menina,

quando for grande, vai querer matar-nos! — disse o mais velho.

Depois de escutar os comentários e os protestos de todo o grupo, o chefe falou:

— Hoje pude ver que os seres humanos não são todos iguais. Aquela menina não

tinha medo de mim, talvez por não saber quem eu era e me ter confundido com um cão.

Mas digo-vos que, embora sem poder servir-se dos seus olhos, eu vi no coração dela a

minha nobreza. Não só me fez festas como me deu um nome que me agrada muito.

Começaram todos a murmurar, mas o líder da alcateia continuou:

— Qual de vós teria matado essa menina indefesa? Somos lobos, e devemos sentir

orgulho nisso, mas não matamos por matar, apenas quando temos fome. Como vosso

chefe ordeno-vos que respeitem a vida da menina.

Apesar de nem todos estarem de acordo, acataram a ordem e decidiram, mais

tarde, baixar ao povoado em busca de comida. Pelo caminho encontraram alguns

animais com que saciaram o estômago, não precisando, portanto, desta vez, de entrar na

aldeia. Todavia, a ansiedade do líder era manifesta: estava desejoso de voltar a ver a

menina e de saber mais sobre os seres humanos.

Ao aproximar-se a noite, decidiu ir sozinho. Queria vê-la uma vez mais.

Chegou ao pé do redil onde a encontrara, mas não estava lá ninguém. Chegaram

então até si vozes vindas da casa. Por isso, silenciosamente, abeirou-se da janela e

espreitou: lá estava Branca, sentada à mesa, a comer. O lobo não fizera qualquer ruído e,

contudo, a menina virou a cabeça na direção da janela, como se soubesse que o seu

amigo estava lá. Não tardou a sair de casa e, tateando, foi ter com ele.

— Olá, Algodão! — disse. — Ainda bem que vieste, tenho uma coisa para ti.

E tirou de uma saca uma coxa de frango e outras sobras do jantar que lhe deu. O

lobo comeu tudo, lambendo-se de prazer.

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— Anda comigo, Algodão, vamos passear.

Como se fossem velhos amigos, os dois lá foram pelo campo, enquanto o lobo tudo

fazia para que Branca não tropeçasse em nenhuma pedra. Quando havia perigo, punha-

-se à frente a protegê-la. E assim deram um longo passeio. Branca estava encantada

porque nunca tinha podido afastar-se tanto de casa, já que os pais temiam que ela desse

algum tombo ou não soubesse regressar.

— Obrigado, Algodão, se quiseres, amanhã damos outro passeio. Que te parece?

— Gostaria, mas primeiro tenho de dizer-te uma coisa: eu não sou cão, sou um

lobo.

Branca começou a rir e retorquiu:

— Um lobo? Se fosses um lobo já me terias comido. Julgas que me enganas? Sou

cega, mas parva não...

— É verdade, sou o chefe da alcateia que vive na montanha. Às vezes atacamos o

vosso gado para podermos comer quando não temos mais nada.

Branca estava desconcertada, sem saber em que acreditar: se no que se dizia dos

lobos, se na voz do seu coração…

— Não te posso ver, mas sinto dentro de mim que não és mau nem cruel como

dizem. Porque não me fizeste mal?

— Não tiveste medo de mim, fizeste-me festas e ainda me puseste um lindo nome,

Algodão. Senti a tua bondade e comovi-me. Como podia eu fazer-te mal?

— Sabes… ninguém vai acreditar que tenho um amigo lobo.

— Sou teu amigo? — perguntou-lhe o lobo.

— Claro que sim. Protegeste-me durante o passeio. Bem reparei como me ajudavas

para não cair. Vieste visitar-me e disseste-me quem eras. Contaste-me uma coisa que eu

nunca teria descoberto por mim mesma. Só os amigos é que fazem isto!

— Nunca tive como amigo um ser humano! — exclamou o lobo.

— Agora já tens um. E os amigos ajudam-se sempre. Diz-me, então, como posso

ajudar-te?

— Queria arranjar comida sem ter que matar nenhum animal vosso.

Branca ficou a pensar durante um bom espaço de tempo.

— Acho que sei como, mas vai ser um pouco arriscado para ti, Algodão.

— Diz lá, sou todo ouvidos — disse-lhe o lobo.

— Se as pessoas da aldeia nos virem juntos, pode ser que se convençam de que os

lobos não são tão perigosos como se julga!

Branca e Algodão combinaram encontrar-se no dia seguinte nesse mesmo lugar.

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Quando chegaram à aldeia, as pessoas desataram a correr e a gritar: Um lobo! Um

lobo! Vem aí um lobo! Fecharam-se em casa, espreitando pelas janelas, até que os dois

amigos, muito calmamente, entraram no largo.

Boquiabertos e de olhos arregalados, os habitantes nem acreditavam no que viam:

Branca, a menina cega, ao lado de um lobo, a passear tranquilamente!

— Não tenham medo! — gritou Branca. — Podem sair de casa! O lobo é meu

amigo e não faz mal a ninguém.

Aos poucos lá foram saindo, armados de paus. Com muita cautela….

Nesse momento, Algodão assustou-se e pôs-se a uivar.

— Deixem os paus — disse-lhes Branca. — Podem ver que a mim não me faz mal. E

ouçam: ele contou-me que, no inverno, quando escasseia a comida, passam muita fome.

É por isso que se veem obrigados a roubar-nos os animais. Por isso, pensei que entre

todos podíamos dar-lhes comida quando não tiverem nada, para que assim não tenham

que matar os nossos animais. Concordam?

Algodão estava assustado porque nunca vira tantos seres humanos juntos. Mas sabia

que Branca o defenderia como uma verdadeira amiga.

— E como sabemos nós que irão cumprir com a palavra e não roubar-nos mais

gado?

Então o lobo disse:

— Eu é que mando na alcateia que vive na montanha. Sei que muitos nos temem

porque temos atacado os vossos animais. Mas Branca falou verdade: nós só matamos

para comer. Se nos ajudarem a arranjar comida, nunca mais atacaremos. Dou-vos a

minha palavra! E outros lobos acatarão as minhas ordens.

Branca e Algodão esperaram pela resposta dos habitantes da aldeia e, ao fim de

algum tempo, o representante de todos disse:

— Decidimos confiar em ti, porque vê-se que não és cruel e que tens bom coração

ao respeitar a vida de Branca. Teria sido uma presa fácil, já que não vê e não pode

defender--se. Vamos fazer um acordo e, daqui para a frente, viver todos em harmonia.

E desde então houve paz entre lobos e humanos.

Branca tinha sido capaz de ver com o coração.

E assim descobrira a nobreza de um lobo.

Begoña Ibarrola Cuentos para sentir 2: Educar los sentimientos

Ediciones SM, 2003, Madrid (Tradução e adaptação)