Bonhoeffer

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BONHOEFFER

Traduzido por DaNiEl FaRia

ERiC METaXaS

PaSTOR, MÁRTiR, PROFETa, ESPiÃO

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CaPÍTulO 1

FaMÍlia E iNFâNCia

O mundo valioso de seus antepassados definiu os padrões de vida de Die-trich Bonhoeffer. Legaram-lhe os costumes e o bom senso que não podem ser adquiridos em uma única geração. Ele cresceu com indivíduos que acredita-vam na essência do saber, não por meio de uma educação formal, mas fun-damentada no compromisso familiar de manter, como guardiões, a tradição intelectual e um grandioso patrimônio histórico.

EbErhard bEthgE

no invErno dE 1896, antes do mencionado casal de idosos se conhecer, am-bos foram convidados para uma reunião social na casa do físico Oscar Meyer. “Ali”, escreveu Karl Bonhoeffer anos depois, “encontrei uma jovem loira, olhos azuis, de postura tão espontânea e natural, de uma expressão tão aberta e con-fiante, que, logo ao entrar na sala, deixou-me encantado. O momento em que meus olhos viram minha futura esposa pela primeira vez permanece em minha memória com uma força quase mística”.1

Karl Bonhoeffer chegara a Breslávia — hoje Wroclaw, na Polônia — três anos antes para trabalhar como assistente de Karl Wernicke, professor de psi-quiatria de renome internacional. A vida consistia em trabalhar na clínica e socializar com alguns poucos amigos de Tübingen, a charmosa cidade uni-versitária onde ele crescera. Mas, após aquela memorável noite de inverno,

1 Eberhard bEthgE, Dietrich Bonhoeffer: A Biography, p. 8.

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as coisas mudariam dramaticamente: para começar, ele passou a frequentar canais congelados, de manhã, para praticar patinação no gelo, com a esperan-ça de encontrar — o que acontecia quase sempre — a encantadora moça de olhos azuis. Ela era professora, e seu nome, Paula von Hase. Eles se casaram em 5 de março de 1898, três semanas antes do trigésimo aniversário do noivo. A noiva tinha 22 anos.

Ambos — o doutor e a professora — vinham de cenários ilustres. Os pais e a família de Paula Bonhoeffer possuíam ligações estreitas com a corte do imperador em Potsdam. Sua tia Pauline era dama de companhia da princesa Vitória, esposa de Frederico III. O pai, Karl Alfred von Hase, fora um capelão militar, e em 1889 se tornou capelão de Guilherme II, mas renunciou após criticar a declaração do imperador sobre a classe operária, descrita como “um bando de cachorros”.2

O avô de Paula, Karl August von Hase, teve grande importância na família e foi um famoso teólogo em Jena, onde lecionou por sessenta anos — na ci-dade, há uma estátua em sua homenagem. Ele fora chamado para o cargo pelo próprio Goethe — então ministro do duque de Weimar — e teve encontros particulares com o mestre alemão de oitenta anos, na época compondo a se-gunda parte de Fausto. O livro de Karl August a respeito da história do dogma ainda era utilizado pelos estudantes de teologia no século 20. Perto do fim da vida, o grão-duque de Weimar e o rei de Württemberg premiaram-no com diversos títulos de nobreza.

O lado materno da família de Paula incluía artistas e músicos. A mãe, Cla-ra von Hase, née condessa Kalkreuth (1851-1930), recebeu lições de piano de Franz Liszt e Clara Schumann. Legou à filha o amor pela música e pelo canto, amor que exerceria papel vital na história dos Bonhoeffer. O pai de Clara, conde Stanislaus Kalkreuth (1820-1894), foi um pintor conhecido por desenhar amplas paisagens alpinas. Embora tivesse vindo de uma família de nobres e aristocratas militares, o conde casou-se com uma Cauer, conhecida família de escultores, e tornou-se diretor da escola de artes do grão-ducado de Weimar. Seu filho, conde Leopold Kalkreuth, aperfeiçoou o sucesso do pai como pintor, e seus quadros de realismo poético estão hoje expostos em

2 Idem, p. 7.

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museus de toda a Alemanha. Os Von Hase também mantinham relações so-ciais e intelectuais com os notáveis Yorck von Wartenburg. O conde Hans Ludwig Yorck von Wartenburg3 era um filósofo cuja famosa correspondência com Wilhelm Dilthey desenvolveria uma filosofia hermenêutica da História, influenciando, entre outros, Martin Heidegger.

A linhagem de Karl Bonhoeffer não era menos impressionante. A família se inscrevera em 1403 nos registros de Nymwegen, no rio Waal, na Holanda, próximo à fronteira com a Alemanha. Em 1513, Caspar van den Boenhoff deixou a Holanda para se estabelecer na cidade alemã de Schwäbisch Hall. Mais tarde, a família passou a se chamar Bonhöffer, mantendo o trema até me-ados de 1800. Bonhöffer significa “agricultor de feijão”, e no brasão da família, bem evidente em alguns prédios ao redor de Schwäbisch Hall,4 há um leão, à frente de um cenário azul, segurando um pé de feijão. Eberhard Bethge nos diz que Dietrich Bonhoeffer costumava usar um anel de sinete com o brasão da família.

Por três séculos, os Bonhoeffer estiveram entre as principais famílias de Schwäbisch Hall. No início, trabalhavam como ourives; nas gerações pos-teriores, havia doutores, pastores, juízes, professores e advogados. Ao lon-go dos séculos, 78 membros do conselho municipal e três prefeitos de Schwäbisch Hall eram Bonhöeffer. Sua importância e influência podem ser visualizadas no memorial de mármore da família em Michaelskirche (Igreja de São Miguel), onde foram imortalizados nos epitáfios e esculturas barrocas e rococós.

Em 1797, veio ao mundo o avô de Karl, Sophonias Bonhoeffer, o último da família a nascer ali. A invasão de Napoleão em 1806 acabou com a condição de cidade independente de Schwäbisch Hall e dispersou a família, ainda que ali se tornasse uma espécie de santuário que as gerações posteriores, já sem o trema, tentaram restaurar. O pai de Karl Bonhoeffer levou o filho para visitar aquela cidade medieval diversas vezes e apresentava-lhe detalhes de sua história aristo-crática, desde a “famosa escadaria de orvalho negro da casa dos Bonhoeffer na

3 Seu neto, Yorck Peter von Wartenburg (1904-1944), foi primo do coronel Claus von Stauffenberg e desempenhou papel fundamental na conspiração para assassinar Hitler no dia 20 de julho de 1944.4 É possível visualizar um desses brasões na Klosterstrasse no 7.

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Herrengasse” até o retrato da “bela mulher de Bonhoeffer”5 pendurada na igreja, com uma cópia na casa que pertencera à família de Dietrich durante sua infân-cia. Karl Bonhoeffer, aliás, fazia a mesma coisa com os filhos.

O pai de Karl Bonhoeffer, Friedrich Ernst Philipp Tobias Bonhoeffer (1828-1907), foi autoridade jurídica de alto escalão em Württemberg e terminou a carreira como presidente da corte provincial de Ulm. Quando se retirou para Tü-bingen, o rei o premiou com um título de nobreza. Seu pai tinha sido “um pároco de bom coração, que dirigia por todo o distrito em sua própria carruagem”. 6

A mãe de Karl Bonhoeffer, avó Bonhoeffer, nascida Tafel (1842-1936), veio de uma família da Suábia devotadamente liberal que desempenhou papel fundamental no movimento democrático do século 19. A respeito do pai de sua mãe, Karl Bonhoeffer escreveu: “Nitidamente, meu avô e os três irmãos dele não eram homens medíocres. Cada um tinha uma característica especial, mas, em comum, todos possuíam uma verve idealista, dispostos a lutar sem medo por suas convicções”.7 Por culpa de suas tendências democráticas, dois deles foram banidos temporariamente de Württemberg. E, coincidência notá-vel, um deles, Gottlob Tafel, tio-avô de Karl, ficou preso na fortaleza de Ho-henasperg na mesma época que o bisavô de Dietrich, Karl August von Hase. O último, antes de embarcar na carreira teológica, passara por um período de ativismo político na juventude. No período em que estiveram presos, os dois antepassados de Dietrich Bonhoeffer chegaram a se conhecer. A mãe de Karl Bonhoeffer viveu até os 93 anos e tinha uma relação próxima com o bisneto Dietrich, que declamou uma oração no funeral dela em 1936, e a conservava na memória feito um elo vivo com a grandiosidade daquela geração.

As árvores genealógicas de Karl e Paula Bonhoeffer são tão carregadas de realizações valorosas que alguém talvez suspeitasse que as gerações futuras pudessem se sentir de algum modo pressionadas com aquilo tudo. Mas a pro-fusão de maravilhas legada por tal herança parece ter sido uma bênção tão grande que, a cada criança nascida, buscava-se não apenas rivalizar com os gigantes do passado, mas também superá-los, ir além deles.

E assim, em 1898, essas duas linhagens extraordinárias se entrelaçaram no ca-samento de Karl e Paula Bonhoeffer e trouxeram ao mundo oito filhos no

5 Mary bosanquEt, The Life and Death of Dietrich Bonhoeffer, p. 18.6 Idem.7 Idem, p. 19.

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espaço de uma década. No mesmo ano, nasceram os dois primeiros: Karl-Friedrich, no dia 13 de janeiro de 1899, e Walter — prematuro de dois meses —, em 10 de dezembro. O terceiro filho, Klaus, nasceu em 1901, seguido de duas meninas, Ursula, em 1902, e Christine, em 1903. No dia 4 de fevereiro de 1906, o quarto filho, Dietrich, nasceu quatro minutos antes de sua irmã gêmea Sabine, e a vida toda ele fez graça com essa vantagem sobre ela. O ex-capelão do imperador, o avô Karl Alfred von Hase, que vivia a uma distância de sete minutos de caminhada, batizou os gêmeos. Susanne, a última criança, nasceu em 1909.

Todas as crianças da família nasceram em Breslávia, onde Karl Bonhoeffer era titular da cadeira de psiquiatria e neurologia da universidade e diretor do hospital para doenças nervosas. No réveillon do ano em que nasceu Susanne, ele escreveu em seu diário: “Apesar de termos oito crianças — o que parece um número enorme em tempos como este —, temos a impressão de que não há tantos assim! A casa é espaçosa, as crianças se desenvolvem normalmen-te, e nos esforçamos para não mimá-las demais, mas tornar a infância delas agradável”.8

A casa da família, na Birkenwäldchen no 7, ficava próxima da clínica. Era uma mansão gigantesca de três andares, com telhado inclinado, diversas cha-minés, um alpendre e uma ampla varanda com vista para o espaçoso jardim onde as crianças se divertiam. Elas gostavam de brincar na terra, subir em ár-vores e montar barracas. As crianças sempre visitavam o avô Hase, que mora-va do outro lado de um braço do rio Óder. Sua esposa morreu em 1903, e sua outra filha, Elisabeth, cuidava dele. Ela também se tornaria parte importante na vida das crianças.

Apesar das ocupações profissionais, Karl Bonhoeffer conseguia arrumar tempo para se alegrar com os filhos. “No inverno”, escreveu, “nós jogávamos baldes d’água numa velha quadra de tênis de superfície asfáltica, de modo que os dois meninos mais velhos pudessem tentar patinar pela primeira vez. Não tínhamos uma carruagem com cavalos, mas usávamos o estábulo para manter todo tipo de animais”.9 Também havia animais dentro de casa. Um quarto, por exemplo, se tornou um pequeno zoológico para os animaizinhos de estima-ção das crianças, e incluía coelhos, porquinhos-da-índia, pombas, esquilos,

8 bEthgE, Dietrich Bonhoeffer: A Biography, p. 16.9 Renate bEthgE e Christian grEmmEls, ed., Dietrich Bonhoeffer: A Life in Pictures, p. 22.

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lagartixas e cobras, além de um museu de história natural para as coleções de ovos de pássaros e molduras de insetos e borboletas. As duas meninas de mais idade utilizavam outro quarto para montar sua casinha de bonecas, e no primeiro andar os três meninos mais velhos tinham uma oficina completa de carpintaria.

A mãe presidia a casa, que contava com um bom quadro de funcionários: uma governanta, uma babá, uma empregada para a casa e outra para o salão, e uma cozinheira. No andar de cima, existia uma sala onde Paula dava aulas aos filhos. Na época, foi algo chocante o fato de Paula Bonhoeffer, quando solteira, ter se formado professora,10 mas, depois de casada, fez uso do que tinha aprendido com grande êxito. Ela desconfiava abertamente das escolas públicas alemãs e dos métodos de educação prussianos. Paula acreditava no ditado que dizia que os alemães são esmagados duas vezes na vida, a primeira na escola e a segunda no exército. Não estava disposta a entregar os filhos, em seus primeiros anos, aos cuidados de outros com sensibilidade menor que a sua. Quando ficaram um pouco mais velhas, as crianças se matricularam em escolas públicas locais, onde, invariavelmente, se destacavam. Mas, até que cada uma completasse sete ou oito anos de idade, ela seria a única educadora.

Paula Bonhoeffer memorizara um repertório impressionante de poemas, hinos e canções populares, e repassou-o aos filhos, que jamais esqueceriam. As crianças gostavam de se fantasiar e encenar peças para os adultos. Havia um teatro de fantoches na família, e todo dia 30 de dezembro, data de seu aniversário, Paula apresentava uma performance de “O chapeuzinho vermelho”. Continuou a apresentá-la para os netinhos até a velhice. Uma das netas, Re-nate Bethge, disse que “ela era a alma e o espírito da casa”.

Em 1910, os Bonhoeffer decidiram procurar um local para passar as férias e escolheram um idílio remoto nas florestas das montanhas Glatz, próximo à fronteira com a Boêmia. Era uma viagem de duas horas de trem ao sul de Breslávia. Karl Bonhoeffer descreveu o lugar como “um pequeno vale aos pés do monte Urnitz, à beira da floresta, com um pasto, um pequeno riacho, um celeiro velho e uma árvore onde as crianças amarraram um banquinho em seus galhos mais altos e criaram um balanço”.11 O nome desse paraíso rústico

10 Ela recebeu o diploma do Colégio da Província Real de Breslávia, em abril de 1896.11 bEthgE e grEmmEls, A Life in Pictures, p. 24.

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era Wolfesgründ. Ficava tão distante da estrada que a família nunca via pessoa alguma, com exceção de um personagem singular, o “fanático oficial da flores-ta” que perambulava por ali vez ou outra. Anos depois, Bonhoeffer o recriaria como o personagem fictício Gelbstiefel (Botas Amarelas).

Temos nossas primeiras impressões a respeito de Dietrich nessa época, quando ele tinha quatro anos de idade. Vieram a nós através de sua irmã gê-mea, Sabine:

Minhas primeiras memórias remontam a 1910. Vejo Dietrich com seu roupão, acariciando a seda azul com sua mãozinha pequena. Depois, eu o vejo ao lado de nosso avô, que está sentado perto da janela com nossa irmã Susanne em seu colo, enquanto o sol da tarde emite sua luz dourada. A partir daqui, a memória se obscurece, e apenas mais uma cena se formará em minha mente: as primeiras brincadeiras no jardim, em 1911, Dietrich com o cabelo loiro-cinzento em volta de seu rosto bronzeado, queimado pelo sol quente, correndo para dentro de casa para fugir dos mosquitos, à procura de um lugar com sombra, e obe-decendo assim, muito sem querer, já que a brincadeira ainda não havia terminado, ao pedido da babá para que entrássemos. A intensidade da diversão era tanta que esquecíamos o calor e a sede.12

Dietrich foi o único dos filhos a herdar a pele e os cabelos claros da mãe.13 Os três irmãos mais velhos eram morenos como o pai. Klaus, o mais jovem dos irmãos de Dietrich, era cinco anos mais velho do que ele. Assim, os três irmãos e as duas irmãs mais velhas formavam, naturalmente, um quinteto, enquanto Dietrich uniu-se com Sabine e a pequena Susi no grupo dos “três pequeninos”. Nesse trio, Dietrich desempenhava o papel do protetor forte e cortês. “Jamais esquecerei a delicadeza do caráter de Dietrich”, escreveu Sa-bine, “quando, certa vez, colhíamos framboesas durante o verão. Ele encheria meu cântaro com as framboesas que havia colhido, caso eu tivesse menos que ele, ou então dividiria sua bebida comigo”. Quando os dois liam juntos, “ele colocava o livro à minha frente [...] ainda que isso atrapalhasse a sua leitura e, caso solicitado para qualquer coisa, era sempre gentil e prestativo”.14

12 bosanquEt, Life and Death of Bonhoeffer, p. 24.13 Wolf-Dieter ZimmErmann e Ronald G. smith, I Knew Dietrich Bonhoeffer, p. 25.14 Idem, p. 27.

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Tanto cavalheirismo não se restringia às irmãs. Ele adorava a srta. Käthe van Horn, sua governanta desde a infância, e “por livre e espontânea von-tade, ele assumia o papel dela com bom humor e passava a ajudá-la e servi-la, e quando o prato favorito dela era posto sobre a mesa, ele chorava, dizia que já tinha comido o suficiente e a forçava a comer a parte dele. Ele falava para ela: ‘Quando eu crescer, nós iremos nos casar, assim você irá sempre ficar conosco’”.15

Sabine lembra-se também de quando ele, aos seis anos, ficou maravilhado com a visão de uma libélula que pairava acima de um riacho. De olhos arre-galados, sussurrou para a mãe: “Veja! Há uma criatura sobre a água! Mas não tenha medo; eu vou proteger você!”.16

Quando Dietrich e Sabine tinham idade suficiente para ir à escola, Paula transferiu suas responsabilidades para a srta. Käthe, embora ela ainda presi-disse a instrução religiosa das crianças. As primeiras indagações teológicas de Dietrich surgiram em torno dos quatro anos de idade. Ele perguntou à mãe: “O bom Deus ama o limpador de chaminés também?” e “Deus também se sen-ta para almoçar?”.17

As irmãs Käthe e Maria van Horn vieram para a casa dos Bonhoeffer seis meses após o nascimento dos gêmeos, e por duas décadas exerceram papel es-sencial na vida da família. A srta. Käthe era normalmente a responsável pelos três pequeninos. As duas irmãs eram cristãs devotas escoladas na comunidade de Herrnhut, que significa “torre de vigília do Senhor”, e tiveram uma influ-ência decisiva na formação espiritual das crianças. Fundada pelo conde Zin-zendorf no século 18, Herrnhut dava prosseguimento à tradição pietista da Irmandade Morávia. Quando menina, Paula Bonhoeffer frequentou Herrnhut por um tempo.

O conde Zinzendorf defendia a ideia de um relacionamento pessoal com Deus em vez da ida formal à igreja do luteranismo. Zinzendorf usava o termo “fé viva”, o qual contrastava desfavoravelmente com o nominalismo em vigor da maçante ortodoxia protestante. Para ele, a fé era menos a respeito de um as-sentimento intelectual a doutrinas e mais um encontro pessoal e transformador

15 Idem, p. 24.16 bosanquEt, Life and Death of Bonhoeffer, p. 24.17 Sabine lEibholZ-bonhoEFFEr, The Bonhoeffers: Portrait of a Family, p. 37.

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com Deus. Os Herrnhütter, portanto, enfatizavam a leitura bíblica e a devo-ção no lar. Suas ideias influenciaram John Wesley, que visitou Herrnhut em 1738, ano de sua famosa conversão.

O papel da religião na casa dos Bonhoeffer estava distante do pietismo, mas seguia alguma das tradições de Herrnhut. Eles raramente iam à igreja; para batismos e funerais, voltavam-se ao pai ou ao irmão de Paula. A família não era anticlerical — as crianças, na verdade, adoravam “brincar” de batizar umas às outras —, mas o cristianismo deles se desenvolveu principalmente dentro de casa. Todos os dias, liam a Bíblia e cantavam hinos, conduzidos pela senhora Bonhoeffer. Sua reverência para com as Escrituras era tanta que ela lia histórias bíblicas para os filhos usando o texto tradicional, e não ver-sões simplificadas para crianças. Ainda assim, às vezes utilizava uma Bíblia ilustrada, mostrando as imagens ao decorrer da história.18

A fé de Paula Bonhoeffer se evidencia nos valores que ela e o marido en-sinaram aos filhos. A exposição do altruísmo, a expressão da generosidade e a ajuda ao próximo eram fundamentais para a cultura familiar. A srta. Käthe lembra-se que as três crianças gostavam de surpreendê-la ao fazer coisas que a agradassem: “Por exemplo, elas poriam a mesa para a ceia antes que eu pudes-se fazê-lo. Se Dietrich encorajava as irmãs a isso, eu não sei dizer, mas é de se suspeitar”.19 As irmãs van Horn descrevem as crianças como “bem-humoradas”, mas nunca, absolutamente, “rudes ou mal-educadas”. O bom comportamento, porém, nem sempre aparecia de forma natural. A srta. Käthe recorda:

Dietrich era muitas vezes arteiro e fazia brincadeiras em momentos inapropriados. Lembro-me que Dietrich gostava de fazer isso especial-mente quando as crianças deveriam tomar banho e se vestir com pressa porque nós havíamos sido convidados para ir a algum lugar. Então, um

18 Bonhoeffer conhecia bem os perigos do pietismo, mas se baseou na tradição teológica conservadora de Herrnhut durante toda a vida, sempre usando os Lemas diários dos morá-vios para suas devoções particulares. A cada dia, um versículo do Antigo Testamento e um versículo do Novo Testamento. Publicado anualmente desde o tempo de Zinzendorf, eles eram conhecidos por Bonhoeffer como Losungen (“palavras de vigília”), ainda que às vezes os chamasse simplesmente de “os textos”. Essas Losungen tiveram papel fundamental em sua decisão de retornar à Alemanha em 1939. Ele prosseguiu com essas devoções até o

fim da vida e introduziu à prática sua noiva e muitos outros. 19 bosanquEt, Life and Death of Bonhoeffer, p. 29.

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dia lá estava ele, dançando na sala, cantando, enfim, um verdadeiro in-cômodo. De repente a porta se abriu, sua mãe foi para cima dele, deu-lhe tapas na orelha e foi embora. Assim terminou aquela tolice. Sem derramar uma única lágrima, ele obedeceu e fez o que devia fazer.20

A mudança para Berlim

Em 1912,21 o pai de Dietrich aceitou a nomeação para a cadeira de psiquiatria e neurologia de Berlim. Tornava-se a maior autoridade de sua área em toda a Alemanha, posição que ocuparia até a morte, em 1948. É difícil mensurar o prestígio de Karl Bonhoeffer. Bethge diz que a mera presença dele em Berlim “transformou a cidade num bastião contra a invasão da psicanálise de Freud e Jung. Não que ele tivesse a mente fechada para teorias heterodoxas, ou negas-se, por princípios, a validade de esforços para estudar áreas inexploradas da mente”. Karl Bonhoeffer nunca rejeitou em público as teorias de Freud, Jung ou Adler, mas as mantinha a distância por meio de um elevado grau de ceticis-mo e de sua devoção a ciência empírica. Como médico e cientista, tinha uma visão negativa quanto ao excesso de especulação dentro do reino desconhe-cido da chamada psique. Bethge transcreve a citação de um amigo de Karl, Robert Gaupp, psiquiatra de Heidelberg:

Não havia ninguém superior a Bonhoeffer na psicologia intuitiva e na observação escrupulosa. Mas ele veio da escola de Wernickle, preo-cupada apenas com o cérebro, e não aceitava nenhuma orientação de pensamento em termos de patologia cerebral. [...] Ele não tinha vonta-de alguma de avançar no reino da sombria, indemonstrável, atrevida e imaginativa interpretação, onde há muito a se supor e pouco a se pro-var. [...] Manteve-se dentro das fronteiras que lhe eram acessíveis no mundo empírico.22

Karl Bonhoeffer desconfiava de qualquer coisa além do que era observável com os sentidos ou dedutível de tais observações. No que diz respeito à psica-nálise e à religião, poderia ser definido como agnóstico.

20 Idem.21 bEthgE, Dietrich Bonhoeffer: A Biography, p. 21.22 Idem, p. 22.

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