BOCK Ana Mercês Bahia. A Psicologia a caminho do novo século

download BOCK Ana Mercês Bahia. A Psicologia a caminho do novo século

of 15

Transcript of BOCK Ana Mercês Bahia. A Psicologia a caminho do novo século

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    1/15

    Estudos de Psicologia 1999,4(2),315-329

    A Psicologia a caminho do novoseculo: identidade profissional e

    compromisso social'Ana Merces Bahia Bock

    Ponti ficia Universidade Catolica de Sao Paulo

    Resurnoo tema "A Psicologia a caminho do novo seculo: identidadeprofissional e compromisso social" foi desenvolvido aqui apartir de tres aspectos: urn pequeno resgate hist6rico sobre 0vinculo da Psicologia com a sociedade brasileira, buscandocaracterizar sua relacao com esta sociedade; em seguida,desenvolver a perspectiva da profissao comprometida com arealidade social, apresentando alguns criterios para se jul-gar 0 compromisso social de praticas e saberes da Psicolo-gia, alem da defesa de que a Psicologia, como saber e fazer,se desenvolva sempre vinculada a sociedade que a acolhe; epara finalizar, trazer a questao da identidade profissional dopsic6logo, partindo do principio de que identidade deve sersempre vista como metamorfose e como movimento perma-nente de transformacao, 0 texto pretende ser urna defesa deurna identidade para os psic6logos que seja movimento etransformacao, porque e reflexo do vinculo que a Psicologiadeve manter com a sociedade, que esta sempre em movi-mento, vinculo este de compromisso com as necessidades edemandas da maioria da populacao brasileira.

    Palavras-chave:Psicoiogia,proflssao,compromissosocial, identidadeprofissionai

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    2/15

    316 Evento

    Key-words:Psychology,

    pro fe s si on, s o c ia lcommitment,professional

    identity

    AbstractPsychology towards the new century: professional identi tyand social commitmentThe theme "Psychology towards the new century:professional identity and social commitment" was elaboratedhere from three foundations: 1. a short historical recovery ofthe links between Psychology and Brazilian society, aimingat the portrayal of its relationship with that society; 2. thedevelopment of a perspective of the profession committedto the social reali ty, including the presentation of criteria toevaluate the social engagement of practices andunderstandings of Psychology and the argument thatPsychology, as knowledge and doings, should always act independence to the society that hosts it; 3. the prompting ofthe question of psychologist's professional identity, from thestandpoint that identity should always be seen asmetamorphosis and a permanent movement oftransformation. The text intends to be a defense of an identityfor psychologists that implies movement and transformationbecause it is consequence of the linkage Psychology shouldentertain with society, which is always moving, a linkage ofcommitment to the needs and demands of the majority ofthe Brazilian population.

    A Psicologia a caminho do novo seculo: identidade profissio-nal e compromisso social. 0 tema desta palestra, que tomocomo urn desafio, demonstra claramente que estamos utili-zando 0marco da mudanca do seculo como urn momenta de reflexaosobre nosso futuro, enquanto categoria profissional e enquanto cien-cia. Estamos em urn momenta importante de construir planes, pro-jetos para 0 futuro; projetos estes que percebemos claramente comodefinidores de nossa identidade pro fissional. Estamos querendo de-finir quem queremos ser no proximo seculo, Pretensioso, sim, po-rem necessario e correto. E preciso aproveitar estes marcos e rituais

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    3/15

    Evento 317

    que a nossa cultura nos oferece para refletir sobre nossa atuacao comoprofissionais. Na verdade, ha apenas urna aparencia de que estamospensando apenas 0 futuro. Nao; estamos pensando tambem 0 pre-sente, 0 amanha de nossa profissao,

    Quem queremos ser? Que cara queremos dar a nossa profissao?Que insercao social queremos que ela tenha? Que vinculo queremoster com a sociedade que abriga e recebe nosso trabalho? Que finali-dade queremos imprimir as nossas acoes? Estas sao questoes que, ameu ver, estao embutidas no tema. Ou melhor, no desafio desta pa-lestra.Devo confessar, de inicio, que eu gosto deste desafio. Gosto depoder pensar que participo da definicao do futuro de minha profis-sao. Gosto de poder pensar que 0 futuro nao esta pronto e que mecabe participar de sua construcao. Isto, na verdade, me encanta. Fa-rei, portanto, esta reflexao com paixao; podem estar certos.

    Para comeear, gosto de estruturar minha reflexao para que todospossam acompanhar 0 caminho do meu pensamento e, quem sabe,chegarmos juntos no final. Isto e tambem urn ponto crucial, poisprojeto de futuro de urna profissao ninguem faz sozinho. Teremos deenfrentar este outro desafio: construir 0 futuro juntos.

    Pretendo, inicialmente, caracterizar 0 vinculo que nossa profis-sao tern tido com a sociedade para, em seguida, refletir sobre 0 apeloque esta sendo feito a ela, hoje. A que perguntas tern respondido eque respostas nossa profissao tern dado a sociedade brasileira? De-pois, discutir a perspectiva de uma profissao comprometida com arealidade social, para finalizar com a questao da identidade profissi-onal. Bern, vamos ao trabalho!

    A Psicologia e a sociedade: urn pequeno resgateSe voltarmos urn pouco mais no tempo, para "comecar do come-

    co", vamos encontrar no Brasil Colonial, de acordo com os estudosde Mitsuko Antunes (1999), estudos sobre fenomenos psicol6gicos,principalmente em obras de outras areas do saber (tais como Teolo-gia, Moral, Pedagogia, Politica e Arquitetura) escritos por autoresde formacao jesuitica, que tinham claramente a finalidade de contri-

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    4/15

    318 Evento

    buir para 0 controle dos indigenas. Sao estudos sobre emocao, senti-dos, auto-conhecimento, adaptacao ambiental, diferencas raciais eoutros temas relacionados diretamente a questao do controle politicoda populacao colonial.

    Com a vinda da Corte Portuguesa para 0Rio de Janeiro, grandesalteracoes sociais acontecem em urna cidade que se aglomera semcondicoes basicas de vida. Doencas infecciosas proliferam e campa-nhas de higienizacao da sociedade vao tomar importancia e forca. Egrande 0 desenvolvimento do saber medico, guiado pelas ideias dahigienizacao e saneamento fisico e moral da sociedade. as conteu-dos psicol6gicos aparecem entao nas producfies medicas para carac-terizar as doencas da moral, presente nas prostitutas, nos pobres enos loucos. E 0 periodo da criacao dos grandes hospicios.

    Como eliminar problemas que existem na sociedade? Comomanter mao-de-obra barata sem os efeitos indesejaveis que ela tra-zia? As producces cientificas caminhavam na direcao destas ques-toes e as respostas sao permeadas de racismo cientifico (como a teo-ria da degenerescencia: quanto mais inferior e a raca, mais propensoa degenerescencia os individuos estao, por isso 0 indice de alcoolis-mo e de loucura eram mais altos entre os negros).

    Na Primeira Republica, ultima decada do seculo XIX, a Psicolo-gia comeca a se separar como area. Na primeira metade do seculoXX, luta-se pela modernizacao da sociedade brasileira. Ravia urnenorme interesse em sair da producao agraria e ingressar namodemidade atraves do crescimento da industrializacao. Estavamoslutando por uma nova sociedade que precisava, para poder se desen-volver a contento, de urn homem novo. A defesa da educacao, dadifusao do ensino, das ideias escolanovistas, vao embasar as produ-~oes da epoca. A Psicologia vern, entao, dar fundamentos e elemen-tos para 0 desenvolvimento destas novas ideias educacionais. E apergunta para a Psicologia se modifica: que conhecimentos cientifi-cos sao necessaries para desenvolver as criancas na direcao destasociedade modema que queremos?Nocoes de diferenciacao das pessoas a partir da ideia de capaci-dades inerentes aos individuos vao crescer no seio da Psicologia, que

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    5/15

    Evento 319

    produzira muitos instrumentos capazes de fazer estas diferenciacoes,As influencias americanas tomam-se dominantes na Psicologia bra-sileira. As testagens psico16gicas trazem, tambem, a enorme possi-bilidade de respondermos adequadamente ao desafio da modemiza-~ao: 0 homem certo no lugar certo.

    Do controle do periodo colonial, para a higieniza~ao do iniciodo seculo XIX, para a diferenciaean no seculo XX.o inicio do seculo XX sent marc ado por urna credibilidade mui-to grande na educacao, A educacao foi vista como a grande respon-savel pelo desenvolvimento da sociedade. A relacao Pedagogia-estu-dos psicol6gicos sera, entao, altamente reforcada, A Psicologia per-mitia que a Educacao fosse pensada a partir de bases cientificas.Posteriormente, na decada de 30, os ideais escolanovistas vao acen-tuar esta relacao, A Escola Nova, movimento progressista na Peda-gogia modema, trazia uma nova proposta educacional, a partir deurna concepcao de infancia que abandonava a visao tradicional, emque a crianca era possuidora de urna natureza corrompida, necessi-tando ser "cultivada" para que 0 mal fosse desenraizado. A criancapassava a ser vista como possuidora de urna natureza pura e boa, queprecisava ser conhecida em sua profundidade para que 0 trabalhoeducacional pudesse contribuir para mante-la assim, pura, esponta-nea, livre. Conhecer seu desenvolvimento para poder corrigir seupercurso se tomou tarefa imprescindivel,

    Alern disso, todo poder de diferenciacao criado pela Psicologiacontribuiu para seu avanco tambem na area da PsicologiaOrganizacional ou do Trabalho. Era possivel atuar selecionando 0homem certo para 0 lugar certo. Institutos de selecao e orientacaovao surgir (como 0 ISOP, que comemorou ha pouco, seus 50 anos).

    A institucionalizacao da Psicologia era evidente. E e importanteregistrar que, ao lado de toda uma pratica e de urn conhecimento"diferenciador" e que via 0homem de forma muito simplificada, a-hist6rica, no qual 0 aspecto social era, na maior parte das vezes,relegado a segundo ou ultimo plano, convivia urn conhecimento cri-tico que concebia 0 homem e 0 fenomeno psicol6gico comoindissociaveis do processo de socializacao, entendendo 0psiquismo

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    6/15

    320 Evento

    como manifestacao e como instancia hist6rica e social. HelenaAntipoff, Manoel Bomfim e Ulisses Pernambucano representam essesetor da Psicologia, que nao foi vitorioso na Historia, mas que regis-trou suas ideias, permitindo-nos hoje resgata-los.

    Em 1962, a Psicologia foi definitivamente institucionalizada,atraves da Lei 4119, que regulamentou a profissao no pais. Nos anosque se seguem, cursos de Psicologia proliferaram no pais, associa-yoes profissionais e cientificas, campos de trabalho foram surgindo.Enfim, a Psicologia se desenvolvia com vigor.

    No final de decada de 70, com as grandes greves operarias, aclasse media tambem foi levada as suas organizacoes. Criou entida-des e fortaleceu as ja existentes. Nessa epoca, precisamente em 1979,os psicologos, inicialmente em Sao Paulo, mas seguidos pelo Rio deJaneiro, Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do SuI e, logo de-pois, Brasilia, Ceara, Parana, ocuparam ou criaram seus Sindicatos.Os Conselhos foram em seguida ocupados por grupos mais progres-sistas, que queriam a entidade trabalhando para que a Psicologia setornasse urn instrumento a service da populaeao brasileira.

    A decada de 80 trouxe novos desafios aos psicologos, A peque-na, mas significativa, abertura do mercado de trabalho no servicepublico de saude colocou aos psicologos e as suas entidades desafiosmuito grandes. Era preciso "reinventar" urna Psicologia que permi-tisse contribuir e responder as necessidades daquela populacao, coma qual nao estavamos habituados a trabalhar. Esse fato contribuiupara fortalecer nossas entidades. A decada de 80 foi, assim, fervilhantepara os psicologos, Os Sindicatos se uniram e criaram a FederacaoNacional dos Psicologos; os Conselhos tambem se fortaleceram, pro-duzindo material escrito sobre a profissao e organizando Congressos(como os CONPSI, que aconteceram em Sao Paulo). Psicologos in-gressaram e fortaleceram 0movimento da saude, chegando a colo-car na direcao desse movimento urna psicologa (Monica Valente),alem da participacao ativa no Movimento da Luta Antimanicomial.

    Estava dada a largada para urn periodo em que os psicologosiriam se perguntar e refletir sobre a relacao de seu trabalho e doproprio fenomeno psicol6gico com a realidade social. A realidade

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    7/15

    Evento 321

    social entrava na Psicologia para remexer tudo 0 que, durante tantosanos, ficou naturalizado e cristalizado. Estas questoes vao tomandoformas diferentes dentro da Psicologia, ate chegarmos ao momentaatual, no qual estamos colocando a questao do compromisso socialde nossa profissao e de nossa ciencia,

    Discutir 0 compromisso social da Psicologia significa, portanto,sermos capazes de avaliar a sua insercao, como ciencia e profissao,na sociedade e apontarmos em que direcao a Psicologia tern cami-nhado: para a transformacao das condicoes de vida? Para a manu-tencao?Para contribuir para este debate, pretendo responder a duas ques-toes:

    1. Por que hoje se coloca esta exigencia para a Psicologia, deatuar com compromisso social?

    2. Quais os criterios para se afirmar que a intervencao "demons-tra compromisso social"?

    Por que, hoje, se coloca esta exigencia para a Psicologia, en-quanto ciencia e profissao, de buscar uma producao e uma interven-c;:aoque denote "compromisso social"? Dois pontos me parecem im-portantes para responder a esta questao.

    Primeiro, e preciso comentar alguns dados sobre a situaeao denosso pais, para que possamos caracterizar a necessidade deste tipode intervencao.

    Considerando-se 0 Produto Intemo Bruto (PIB), 0Brasil ocupa,hoje, 0 lugar de l O " economia mundial. Entre 174 nacoes, 0Brasil ea 10' em producao de riqueza.

    Mas, se considerarmos, agora, 0 indice de DesenvolvimentoHumano (IDH), 0 Brasil tern outra classificacao: somos a 79' nacao,Somos a 86' em educacao; temos altos indices nas taxas de mortali-dade infantil, em analfabetismo, e baixos nas condicoes de moradiae saneamento basico, em atendimento a saude da populacao ... E 15,8%da populacao brasileira, ou seja, 26 milhoes de pessoas, nao ternacesso as condicoes minimas de saude, educacao e services basicos,Somos, para coroar esse quadro, a nacao campea em concentracaode renda. 0PIB per capita dos 20% mais ricos (US$18.563) e 32

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    8/15

    32 2 Evento

    vezes maior do que 0 dos 20% mais pobres (US$578). as 20% maispobres ficam com apenas 2,5% da renda, enquanto que os 20% maisricos detem 63,4% dela.

    Estes indices se traduzem em pessimas condicoes de vida para amaioria de nossa populacao, que nao tern acesso aos services basicosde saude e educacao, Temos, de 160 milhOes de habitantes, 46 mi-lhOes fora da escola, sendo 43 milhoes de adultos analfabetos (totaise funcionais) e 3 milhoes de criancas entre 7 e 14 anos. Se tomarmoso dado dos que estao na escola, vamos assistir a urna "mortalidadeescolar" (termo utilizado aqui para designar a perda de alunos que aescola sofre) impressionante: 38 milhoes no ensino fundamental;5,5 milhoes no ensino medio e 2 milhoes no ensino superior. Semdistribuicao de renda, nenhum outro problema e resolvido e todas asmedidas tomam-se paliativas.

    Temos urn pais no qual a media de imposto de renda das insti-tuicoes financeiras foi, em 1998, de R$630,00; 0 total de impostoterritorial rural em 1998 foi 250 milhoes, em urn pais que tern amaior area cultivavel do planeta (para comparar, 0 cigarro arreca-dou 1 bilhao de reais no mesmo ano!).

    E que politicas sociais temos tido em nosso pais? Estamos sob osditames do Banco Mundial e do Fundo Monetario Intemacional que,na busca de administrar e controlar os emprestimos feitos por gran-des financiadores intemacionais aos paises em desenvolvimento, verninterferindo em suas politicas domesticas. Sao medidas que visampermitir que 0 Estado va desinvestindo em setores nao-lucrativos,para poder aumentar suas possibilidades de pagamento da dividaextema.

    Que pais e este? Que situacao dramatica a que vivemos!E importante, aqui, fazer urna distincao semantica, Muitos tern

    dito que vivemos urna situacao tragica, Nao, nao vivemos. Tragediae urn termo que designa acontecimentos que despertam lastima, urnaocorrencia funesta, mau fado, infortunio ... Algo que 0 "destino" nosreservou, porque independe de nossa intervencao, Terremotos, ci-clones, tempestades sao tragedias, Devemos utilizar nestes casos,como e 0caso brasileiro, 0 termo drama, que tambem designa aeon-

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    9/15

    Evento 323

    tecimento terrivel, catastrofico, mas que aqui se ref ere it interferen-cia hurnana. Temos em nosso pais urna situacao dramatical

    Fechado esse parentese semantico, volto ao nosso drama. Poderi-amos ficar aqui horas descrevendo as caracteristicas de nossa situa-

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    10/15

    32 4 Evento

    vida em nosso pais podem estar piores, mas nunca estiveram boas.Por que agora esta exigencia?

    Porque a Psicologia vern se transformando e vern se aproximan-do de visoes concretas e historicas, abandonando as visoes naturali-zantes que ainda caracterizam nossa ciencia e nossas tecnicas.

    Vamos explicar melhor isto:A Psicologia em seu desenvolvimento esteve sempre presa a urna

    dicotomia entre objetividade e subjetividade; entre intemo e exter-no; entre natural e historico; objeto e sujeito; razao e emocao; indivi-duo e sociedade.Desde Wundt, temos vivido esse desafio de superar estas dicoto-mias e nosso desenvolvimento teorico pode ser registrado a partirdestas tentativas.

    Mantidas estas dicotomias, nao temos sido capazes de compre-ender 0 homem que nao de forma a naturalizar seu desenvolvimentoe seu mundo psicologico, Explicando melhor: porque mantemos urnavisao dicotomica, temos explicado 0movimento do mundo psicolo-gico como urn movimento intemo, gerado por si mesmo. E a ima-gem do Barao de Munchhausen que sai do pantano puxando pelosseus proprios cabelos, imagem esta que usei em meu trabalho dedoutoramento para simbolizar as ideias que a Psicologia ternconstruido, que veem 0 homem como urn ser capaz de, atraves deseu proprio esforco, se autodeterminar (Bock, 1999).

    Esta tradicao naturalizante do fenomeno psicologico nos jogouem uma perspectiva de profissao que sempre compreendeu nossaintervencao como curativa, remediativa, terapeutica, Temos nos li-mitado a ela nestes anos todos de profissao, Nao e para menos quetemos tido urn modelo medico de intervencao.

    Mas isto vern mudando. A realidade objetiva, 0mundo social ecultural vern invadindo nosso conhecimento e ja nao podemos maisfalar de mundo psicologico sem considerar 0mundo social e cultu-ral. Ainda estamos construindo urn modelo de relacao entre estesmundos, entendendo que estes se influenciam e nao que constituemurn ao outro. Isto significa que ainda nao superamos a dicotomia ...mas estamos caminhando.

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    11/15

    Evento 325

    A Psicologia tern se aberto para estas novas leituras. Queremosentender 0mundo psicologico como urn mundo constituido a partirde relacoes sociais e de formas de producao da sobrevivencia. Quero,aqui, explicar melhor, pois penso que este aspecto e fundamental.

    A Psicologia, ao pensar 0 individuo descolado de seu mundosocial e cultural, viu 0 desenvolvimento deste ser como produzidopelo seu proprio movimento. Algo dentro de nos nos movimenta. 0mundo social ficou isento. Construimos uma Psicologia que nao pre-cisa fazer qualquer referencia ao mundo social e cultural para falardo hurnano. Temos visto isto em pronunciamentos de psicologos queexplicam 0 que se passa com urn individuo sem fazer qualquer refe-rencia a questoes politicas, economic as e culturais de nossa socieda-de. 0 maximo que avancamos e ate 0 pai e mae do individuo, Nemna familia, enquanto instituicao social que se estrutura para respon-der as necessidades da sociedade burguesa e capitalista, chegamosainda. Mas estamos avancandol

    A Psicologia esta, entao, se abrindo para estas questoes e istocoloca 0 compromisso social como urna possibilidade, como urnaexigencia, como urn criterio de qualidade da intervencao.

    Penso que outros aspectos existem, mas me dou por satisfeitapara responder a primeira questao a que me propus com estes doiselementos: 0 pais exige nosso posicionamento politico no exercicioda profissao e a Psicologia comeca a nos possibilitar este posiciona-mento com seu avanco na critica da naturalizacao de fenomeno psi-cologico que caracterizou a historia de nosso conhecimento.Psicologia e Compromisso Social: uma tarefa necessaria

    Podemos partir, entao, para nossa segunda questao: quais os crite-rios para se afmnar que a intervencao demonstra "compromisso soci-al"?

    Nao tenho aqui a pretensao de esgotar os criterios possiveis paraesta classificacao, Mas you apontar alguns que me parecem importantes.

    Primeiro: 0 trabalho do psicologo deve apontar para a transfor-macae social, para a mudanca das condicoes de vida da populacaobrasileira. Friso que disse "apontar", porque e a finalidade do traba-

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    12/15

    326 Evento

    lho que importa ser caracterizada aqui. Estamos falando do compro-misso, portanto de urna perspectiva etica, Assim, vale a intencao, Afinalidade do trabalho.o psicologo nao pode mais ter urna visao estreita de sua inter-vencao, pensando-a como urn trabalho voltado para urn individuo,como se este vivesse isolado, nao tivesse a ver com a realidade soci-al, construindo-a e sendo construido por ela. E preciso ver qualquerintervencao, mesmo que no nivel individual, como urna intervencaosocial e, neste sentido, posicionada. Vamos acabar com a ideia deque mundo psicologico nao tern nada a ver com mundo social. Quesofrimento psiquico nao tern nada a ver com condicoes objetivas devida. Os psicologos precisam ter clareza de que, ao fazer ou saberPsicologia, estao com sua pratica e seu conhecimento interferindona sociedade. Temos exemplos de como nossos conceitos servirampara acobertar as desigualdades sociais. Diferencas individuais, pers-pectivas classificat6rias, nocoes abstratas de ser hurnano e de mundopsicologico nas quais a noyao de potencialidades estava dada de for-ma aprioristica it vida, a propria noyao de desenvolvimento, permiti-ram que as condicoes sociais que facilitam ou impedem 0 "des envol-vimento" do sujeito ficassem camufladas por detras de discursos abs-tratos e ideol6gicos. Na area da educacao existe urn exemplo bernevidente: falamos de fracas so escolar e de dificuldades de aprendiza-gem nos referindo sempre ao aluno. Como podemos acreditar queurna parte apenas de urn processo (a crianca) fracasse sozinha? 0processo de ensino-aprendizagem fracassou, nao 0 aluno. Nao temosduvida, hoje, de que a Psicologia contribuiu para ocultar as condi-yoes desiguais de vida no decorrer da Hist6ria.

    Precisamos escapar disto enos engajar politicamente atraves dafmalidade de nossa intervencao. Quero esclarecer que penso que sem-pre tivemos finalidades para nosso trabalho, mas nunca quisemoscoloca-las em debate. Nunca quisemos evidencia-las, Agora e hora!

    Outro criterio que podemos utilizar e verificar se a pratica esca-pa do modelo medico de fazer Psicologia. Isto e, se a pratica desen-volvida nao pensa a realidade e 0 sujeito a partir da perspectiva dadoenca, 0 psicologo pode e deve, hoje, pensar sua intervencao de

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    13/15

    Evento 327

    maneira mais ampla, no sentido da promocao da saude da comuni-dade - e isto significa compreender 0 sujeito como alguem que, am-pliando seu conhecimento e sua compreensao sobre a realidade queo cerca, se torna capaz de intervir, transformar, atuar, modificar arealidade. Claro que a doenca e uma possibilidade nesta realidade,mas nunca pode ser 0 eixo para a Psicologia.

    Urn terceiro criterio e 0 tipo de tecnica que se utiliza. Nossastecnicas tern sido construidas e utilizadas com uma determinada ca-mada social, em geral intelectualizada e muito verbal. A populacaobrasileira, na sua maioria, nao tern costume e facilidade para traba-lhar a partir das tecnicas com as quais estamos acostumados. E pre-ciso inovar - e inovar a partir das caracteristicas da populacao a seratendida. Nossa formacao tecnicista tern nos ensinado coisas pron-tas para aplicar. Precisamos nos tornar capazes de criar Psicologia,adaptando nossos saberes a demanda e a realidade que se nos apre-senta.

    Assurnir urn compromisso social em nossa profissao e estar vol-tado para urna intervencao critica e transformadora de nossas condi-yoes de vida. E estar comprometido com a critica desta realidade apartir da perspectiva de nossa ciencia e de nossa profissao, E rompercom 500 anos de desigualdade social que caracteriza a historia bra-sileira, rompendo com urn saber que oculta esta desigualdade atrasde conceitos e teorias naturalizadoras da realidade social. Assurnircompromisso social em nossa pratica e acreditar que so se fala do serhurnano quando se fala das condicoes de vida que 0 determinam.Termos praticas terapeuticas deve significar termos praticas capazesde alterar a realidade social, de denunciar as desigualdades, de con-tribuir para que se possa cada vez mais compreender a realidade quenos cerca e atuarmos nela para sua transformacao no sentido dasnecessidades da comunidade social. Assurnir compromisso social emnossa ciencia e buscar estranhar 0 que hoje ja parece familiar; e naoaceitar que as coisas sao porque sao, mas sempre duvidar e buscarnovas respostas. Compromisso social e estranhar, e inquietar-se coma realidade e nao aceitar as coisas como estao. E buscar saidas, E isto

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    14/15

    328 Evento

    que parte de nossa categoria profissional vern fazendo, 0 que e moti-vo de orgulho para todos nos.Movimento e transformacao: uma identidade profissionalpara os psicologos

    E, para terminar minha reflexao, trago a questao da identidadepro fissional do psicologo. Tenho resistido um pouco a discussoessobre a identidade da Psicologia, porque, em geral, essas discussoesbuscam uma cara para a Psicologia pensando em poder mante-ladepois de encontrada. Quero uma Psicologia que se metamorfoseie 0tempo todo, acompanhando as mudancas da realidade social de nos-so pais. Nao podemos querer uma Psicologia que seja a cristalizacaode uma mesmice de nos mesmos. Se entendermos que a identidade emovimento, e metamorfose, devemos entender que a identidade pro-fissional nunca estara pronta; nunca tera uma definicao. Estara sem-pre acompanhando 0 movimento da realidade. Na verdade, pensoque nos enganamos quando falamos que nao temos identidade pro-fissional. Temos sim. Temos uma identidade profissional que refletea pratica importante que temos tido, porem elitista, restrita, poucodiversificada e colada as necessidades e demandas de setores dominan-tes de nossa sociedade. Uma minoria que, possuindo condicoes decomprar nossos services, foi por muito tempo a unica usuaria deles.Queremos agora dar a volta por cima e construir uma profissao iden-tificada com as necessidades da maioria da populacao brasileira, umamaioria que sofre, dadas as condicoes de vida que possui; uma mai-oria que luta, dadas as condicoes de vida que possui. Identificar-secom as necessidades de nosso povo e acompanhar 0movimento des-tas necessidades, sendo capazes de construirmos, sempre e perma-nentemente, respostas tecnicas e cientificas. E este 0nosso desafio.

    Queremos estar em busca permanente, em movimento sempre.Queremos que 0movimento seja a nossa identidade e que a inquieta-yao seja nosso lema.

    ReferenciasAntunes, M. A. M. (1999). A Psicologia no Brasil: lei tura historica sobre

    sua constituiciio. Sao Paulo: Unimarco.Bock, A. M. B. (1999). Aventuras do Bariio de Munchhausen na Psicolo-

    gia. Sao Paulo: EDUC.

  • 5/10/2018 BOCK Ana Mercs Bahia. A Psicologia a caminho do novo sculo

    15/15

    Evento 329

    Nota 1 Versiio revista da palestra de abertura dallSemana Norte-rio-grandense de Psicolo-gia, realizada em Natal (RN) nos dias 16-18 de setembro de 1999, promovida peloCRP-13/Se,.iio RN, UFRN e UNP.

    Ana Merces Bahia Bock, Sobre 0 autordoutora em Psicologia Social pelaPUCSP, e psicologa e professorade Psicologia Social e da Educa-r;:aona PUCSP, diretora da Facul-dade de Psicologia (gestoes 93/97e 97/2001), presidente do Conse-lho Federal de Psicologia (gestoes97/98 e 98/2001). E co-autora dolivro Psicologias: uma introduciioao estudo da Psicologia, pela Sa-raiva, e autora do livro Aventurasdo Bardo de Munchhausen naPsicologia, pela EDUC/Cortez.Endereco para correspondencia:Pontificia Universidade Cat61icade Sao Paulo, Rua Monte Alegre,984,05014-901, Sao Paulo, SP. E-mail: [email protected].

    Recebido em 21.09.99Revisado em 18.10.99Aceito em 06.11.99

    mailto:[email protected]:[email protected].