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Covilhã, 2009

FICHA TÉCNICA

Título: Bioética? Da Relação entre a Vida e a BiologiaAutor: Américo PereiraColecção: Artigos LUSOSOFIA

Design da Capa: António Rodrigues ToméComposição & Paginação: Filomena S. MatosUniversidade da Beira InteriorCovilhã, 2009

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Da Relação entre a Vida e aBiologia

Américo Pereira

Índice

1. Bioética na relação com a Biologia 32. Que é a Biologia? 113. Que é a Vida: a questão da definição do Bios 234. Uma Bioética 294.1. Que é e que deve ser uma Bioética? . . . . . . . . . . . 29

– O termo «Bios» . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29– O termo «Ética» . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

4.2. Algumas considerações sobre o Horizonte da Bioética . 41

1. Bioética na relação com a Biologia

O discurso comum da bioética, fundado nos pressupostos especi-almente eleitos, que não naturais, para a sua fundamentação, 1 é

1Damos como conhecidas as principais doutrinas: Principialismo, Deontolo-gismo, Teleologismo, Consensualismo, Utilitarismo, Contratualismo ético, Per-sonalismo: ontologia da pessoa e bem-comum, etc.

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de uma manifesta precaridade, pois tais pressupostos, ao que pa-rece voluntariamente, são, salvo mitigadamente no Personalismo,de índole não ontológica, ficando, assim, necessariamente, de foraexactamente o que de fundamental está em causa: o ser do ser vivo,ou seja, precisamente, o ser vivo enquanto ser vivo, não apenas en-quanto ser ou enquanto vivo, mas enquanto ser e vivo, que é o queo ser vivo é, nisso que o distingue dos demais seres; fora isto, étão ser quanto os outros, sem qualquer diferença própria relevantedo ponto de vista em causa, exactamente o biológico. Se sobre oser vivo se pensar tudo menos o seu mesmo ser, poder-se-á obteruma série de conclusões interessantíssimas acerca de tudo o que foipensado, menos acerca do que interessa fundamentalmente nisso erelativamente a isso que está em causa e que é obviamente o seuser.

De que serve pensar tudo o que é acrescentado ao ser do viven-te, enquanto tal, se este mesmo, enquanto propriamente ser viven-te, não é pensado? Note-se que não se trata de pensar o ser indepen-dentemente de ser vivente ou o vivente independentemente de ser ede ser como vivente, mas necessariamente isso que é o ser vivente.Todo o pensamento que separe um de outro não pensa o ser vivo,pelo que não pode ser uma forma de pensamento biológico, masapenas de pensamento meramente físico, ou outra qualquer. Ape-sar de depender de uma tradição recente profundamente reducio-nista, o que precisamente a biologia não pode ser é reducionista,reduzindo, por vezes logo à partida, o âmbito da sua pesquisa ouas virtualidades heurísticas da inteligência humana como possívelinstrumento de tal pesquisa, sob pena de nem bio-logia ser. Escu-sado será dizer que grande parte do que passa por biologia e mesmopor biologia científica (bem como todas as suas decorrências, pu-ramente científicas e/ou aplicadas, mesmo no âmbito dos cuidadosde saúde) não é biologia alguma, mas apenas uma qualquer formasucedânea redutora: em vez de pensar a vida na sua máxima reali-dade possível, sem quaisquer restrições que não sejam ditadas pela

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eliminação como não pertinentes de realidades provadamente nãovivas, reduz a realidade pensável como vida a postulados que nãoderivam de sua mesma investigação, mas de âmbitos que nada res-peitam à biologia, sejam ideológicos, religiosos ou de outra qual-quer tipologia, sempre política, sempre de perversão do poder po-lítico.

Isto implica que uma qualquer bioética que queira ser dignadeste nome tenha de partir de uma biologia que seja não redutora;caso contrário, estará a reflectir não sobre a realidade biológica,mas sobre uma qualquer redução dessa mesma realidade e tudoo que disser participa da mesma irrealidade redutora da ciênciabase sobre que reflecte. Tememos que grande parte do discursode bioética existente padeça deste defeito, dado que assume acri-ticamente os dados de formas de biologia redutora, precisamentesem os criticar à luz de uma biologia não redutora, não podendosenão chegar a conclusões que, se bem que eventualmente fiéis aoseu substracto preconceptual epistemológico, são profundamenteinfiéis à realidade biológica, uma vez que os dados de que partemnão se referem a esta mesma realidade, mas a uma sua qualquerredução, por definição irreal.

Especificamente, no que diz respeito ao homem, dado que a bi-oética existente é uma disciplina antropológica e tão só (ou seriauma outra forma redutora, porque necessariamente “moralizado-ra”, de biologia e de ecologia gerais), que interesse tem pensartodas as dimensões da mesma entidade humana menos a sua di-mensão própria de entidade viva especificamente humana? Umabioética que não pense o bios do homem, isto é, o seu ser comoser vivo, o homem como entidade biológica, não é uma bio-ética,mas uma outra coisa qualquer. Há, pois, que pensar, antes de maise sempre, o ser do homem como ser biológico, isto é, como bio-lógico e como ser, mas como ser cuja entidade não se reduz à suabiologia, ou, melhor, como ser cuja biologia própria não se reduza uma mera materialidade diferenciada biologicamente, como nas

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demais espécies, mas a uma bioentidade que é capaz de se pôr asi mesma como objecto de seu próprio pensamento, assim, pro-priamente bio-lógico, de uma bioentidade que só o é porque servede suporte a uma capacidade intelectiva que lhe dá o acesso a simesma, acesso que é propriamente a colheita de seu sentido comoentidade viva, isto é, como biologia em acto,2 o que não acon-tece com qualquer outra espécie. Todo o acesso a qualquer formade pensamento acerca do que é, na universalidade e particulari-dade do ser, logo, acerca da própria biologia – seu sub-conjunto –só é possível porque há uma intelectividade possível e uma inteli-gência próprias do homem, sustentadas pela sua mesma biologia,mas que não são a esta redutíveis ou nunca a concreta biologia te-ria dado origem a esta outra de si própria como ciência, isto é, sehouvesse uma redução do pensamento à biologia, não haveria di-ferença alguma entre a biologia e o pensamento, pelo que, sendoaquela primeira quer cronológica quer ontologicamente, segundo

2Neste sentido, a biologia não é primária e fundamentalmente uma ciência,mas, muito antes de o ser, é fundamental e primariamente a forma própria deo homem ser: o homem é a única entidade bio-lógica que conhecemos, isto é,é o único ser que é capaz de se pôr como objecto em acto de seu mesmo actode sentido, em um único acto, que é ambos concomitantemente. Se há entidadea que o vetusto «no princípio, era o Verbo» se aplica é exactamente a humana,numa descoberta perfeitamente lógica do modo próprio de ser do homem, queé, antes de mais, logos, e que é, por ser logos, imediatamente um bios logos,um bios logikos, dado que se descobre imediatamente como um vivente que éporque pensa que é, quer dizer, que se descobre como ente e como ente vivoporque isto se lhe dá na forma de pensamento e do pensamento e unicamenteassim. Assim sendo, uma bioética não pode ser apenas uma reflexão ética sobrea biologia, mas a ética própria de uma entidade que é concomitantemente éticae biológica: o mesmo homem. A bioética entendida como disciplina acerca da“correcção” das práticas da biologia, em sentido lato, é apenas um sub-conjuntode uma forma bioética mais vasta e que coincide com o próprio logos da acção dohomem enquanto ser vivente, que é um ser ético por necessidade ontológica. A-liás, formalmente, uma tal “bioética” não seria propriamente uma «ética», talvezuma «deontologia», certamente uma qualquer forma de direito positivo, todo eleartificial e não necessariamente científico.

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as mesmas teses de uma biologia materialista, e não havendo di-ferenciação real, o pensamento nunca teria sido. Ilógica e inexpli-cavelmente, todas as correntes materialistas, em perfeita coerênciacom os ilógicos fundamentos das doutrinas que defendem, queremfazer derivar a diferença própria do pensamento de algo puramentediverso do mesmo pensamento, violando assim, como, aliás, todoo evolucionismo não teleológico, a mais básica das regras lógicasacerca da possibilidade da evolução ontológica, segundo a qual,não é possível explicar o mais pelo menos, sem recurso a formasde pensamento sempre necessariamente mágicas, ainda que muitobem disfarçadas de ciência. É claro que, não sendo possível, se-gundo linhas causalistas mono-lineares do menos para o mais, ex-plicar o aparecimento de maior riqueza ontológica, se recorre aoexpediente mágico do acaso ou também ao não menos mágico ex-pediente da qualificação pela simples quantificação.

O acaso, a ser real, implicaria o acto mágico de poder haverqualquer efeito sem causa própria e a pura quantidade, sem mais,nada mais gera do que uma diferenciação quantitativa. Por exem-plo, as famosas experiências de Miller acerca das possíveis ana-logias entre aquilo que se acredita ter sido a composição químicada atmosfera e da geosfera terrestre há alguns milhares de milhãode anos e um ambiente químico artificial composto em laboratórionada mais prova do que aquilo que foi observado: que certas pre-senças, em certas quantidades quer de matéria quer de energia querde interactividade entre os elementos presentes, produzem certostipos de moléculas. Nada mais. Não surgiu vida naquele labora-tório, como não surgiu vida no laboratório de Pasteur quando este,pela primeira vez, foi capaz de separar claramente o que era bioló-gico do que não o era, pondo fim ao pensamento mágico acerca daadveniência natural de vida a partir da simples matéria, ainda queseja matéria “ex-viva”.

Pensamos que certas teorias que querem forçar os dados – osque forem honestamente conseguidos são mesmo cientificamente

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bons – de certas descobertas ao serviço de teorias de tipo ideológi-co, que ensaiam substituir os antigos mitos biológicos e biogénicospor outros novos, nada mais são do que formas perversas de pen-samento pseudo-racional, constituindo, de facto, um retrocesso aformas de pensamento de tipo mítico-mágico anteriores ao adventodo pensamento racional. Por nós, preferimos a clareza de um pen-samento que se debruce sem quaisquer preconceitos acerca do quea realidade das coisas é, sempre tendo em conta as necessárias li-mitações da finita inteligência do ser humano. Os mitos, na suagrandeza de busca de uma explicação narrativa para o todo do sersegundo uma via poética, constituíram, no seu tempo e modo pró-prios, um grande avanço na história da humanidade e da sua cons-tituição como comunidade universal humana de sentido. A quedamítica de certas ciências, por manifesta impotência gnosiológicados pressupostos em que se baseiam, representa um sério retro-cesso na caminhada da humanidade no sentido de uma cada vezmaior inteligência em acto do ser em que vive.

É esta irracionalização o grande perigo de todas as formas depensamento reducionista e a biologia tem vivido nos últimos sé-culos num e de um clima de reducionismo, que necessariamenteobriga, mais cedo ou mais tarde, logicamente, a que se caia emcírculos viciosos, cuja única fuga é mágica, dado que o meca-nismo de redução obriga a que tudo o que se encontra de aparen-temente posterior esteja já, de algum modo, no anterior, reduzindotudo à potencialidade arqueológica presente no início e num inícioque é necessariamente finito, ou não seria início algum, mas umaeternidade ontologicamente plena, que a biologia que conhecemosnão aceita. Do suposto grande estoiro inicial de energia e maté-ria, ao homem e a uma qualquer possível posteridade de comple-xificação, o como material puramente quantitativo não conseguedar conta da imensa evolução complexificadora, observando nós,estupefactos, afirmações mágicas como, por exemplo e frequente-mente: «a espécie decidiu que...», como se as espécies decidissem.

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Tais afirmações, tal ambiente são profundamente anti-racionais equalquer ciência que em tal caia dificilmente reencontrará o seucaminho racional, pois encontrou um outro, de muito maior facili-dade, que permite, quando os pressupostos enformadores da ciên-cia já não respondem em termos de fundamentação, inventar saltosmágicos, que magicamente preenchem as elipses racionais e per-mitem a uma ciência já moribunda continuar a funcionar. Exige-sede qualquer ciência materialista e quantitivista que seja capaz deuma precisão semelhante à dos engenheiros informáticos que são,ainda, capazes de ir, por exemplo, do um e do zero da linguagemmáquina básica até às definições deste mesmo texto na pantalhado visor do computador. Tudo o mais é saltar por sobre a matériae fazer magia. A ciência tem de escolher: ou continua a quererser materialista e quantitivista e, então, tem mesmo de o ser coe-rentemente e até às últimas consequências, por mais absurdas quese venham a revelar, ou continua a ser semi-materialista e semi-magista; ou, finalmente, tem de alargar infinitamente o horizonte eo zénite da possibilidade heurística da humana inteligência, assu-mindo que é possível fazer ciência de vários e não apenas de ummodo, precisamente o modo único de que se reclama, o materia-lista. Precisamente, parece-nos que a biologia teria muito a ganharse retornasse a uma concepção muito mais alargada de possibili-dade de definição do vital, transcendendo a mera magia da vidacomo excreção ou secreção especial de modos especiais de encon-tros atómicos e moleculares.

Deste modo, a bioética conta, logo à partida, com um condi-cionalismo epistemológico fortíssimo, que consiste no modo re-ducionista que a biologia reinante tem de lidar com os problemasetiológicos que se lhe deparam, remetendo as explicações para umcomeço – mítico, dado que não se conhece nem se pode conhecer,aliás, dado que não há material histórico-científico suficiente quepermita o seu cabal conhecimento – tuti-explicativo e de onde tudotem as suas razões, nada mais sendo verdadeiramente original, mas

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apenas fruto de um desenvolvimento mecânico e material daqueletambém material e mágico princípio original. É este o pressupostoessencial e estrutural de todas as formas evolucionistas-passadistas,arqueocêntricas, puramente analépticas, de explicação da vida, emseu sentido mais lato, qualquer que seja a escola em causa, umavez que não é admitida a possibilidade de uma real teleologia mo-tora, essa, sim, aberta infinitamente a uma real novidade, dado quetudo o que haja de advir ainda não foi, ao passo que a perspectivaevolucionista arqueológica passadista implica necessariamente quetudo o que haja de ser seja apenas uma literal explicação de algo jáexistente num passado histórico real, movimento unidireccional ecujo sentido se pode reverter, verdadeiramente anulando realmentea aparente novidade, dissolvida retroactivamente no que foram osdegraus da evolução que até ela levaram, conhecidos como suas«causas».

O grande inimigo, e inimigo porque adversário mortal, de umabioética que vise realmente o bem comum da espécie que é supostoservir reside imediatamente neste problema epistemológico do re-ducionismo de uma das disciplinas base de que se serve – a funda-mental, aliás – e que anula, também imediatamente, o valor ou sen-tido ontológico próprio de cada entidade biológica, adjudicando oseu ser próprio (e realmente insubstituível no que é) a outros seres,seus substitutos, numa degradação crono-ontológica que esvazia desentido toda a biologia, porque anula o que é realmente próprio dasentidades que estuda. Este mecanismo redutor implica que o ob-jecto próprio da biologia seja vazio, melhor, que a biologia comoestudo redutor esvazie o seu objecto, à medida precisamente que ovai estudando, dado que este estudo consiste na redução do que oobjecto é ao que são – foram – as suas causas, de onde tudo pro-vém, sendo que, nesta linha de pensamento, nada mais pode vir dequalquer outro sítio que não das ditas causas analépticas, dado quenão há outras.

Este problema, cuja formulação é necessariamente abstracta, é

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tudo menos um problema abstracto, no sentido popular do termo,dado que, quando se constitui uma qualquer disciplina, é supostoque essa disciplina disponha de um objecto a estudar. Ora, umabiologia redutora destrói o que é o seu possível objecto, enquantorealidade própria, pelo que a bioética corre o sério risco de seruma “ética” ou uma deontologia ou um qualquer tratado de direitoaplicado que pensa uma realidade que não existe realmente, o que,de facto, é o que se tem vindo a registar, pois a realidade biológicapensada não é exactamente aquela que deveria ser pensada, masoutras suas substitutas de etiologia política, isto é, fruto de cons-truções elaboradas por conjuntos de entidades humanas.

2. Que é a Biologia?

Antes de avançarmos nesta reflexão acerca da bioética, há que pen-sar a essência da própria biologia. Como é óbvio, há muitas defi-nições manualísticas acerca deste tema, mas não é de uma dessasque necessitamos, mas de construir um percurso reflexivo que nospermita aproximar do que a biologia realmente é ou deve ser. 3

Não sendo possível saber quando começou o homem a pensarem si mesmo como ente vital, 4 não é descabido suspeitar que o

3Este «deve» não é um «deve» moral, mas epistemológico; este «dever» epis-temológico nada mais quer dizer do que a necessidade que qualquer ciência temde ser o mais fiel possível ao seu mesmo objecto de estudo, humildemente procu-rando, por meio de todos os modos possíveis à inteligência humana, acercar-seda realidade própria de isso que estuda, sem cair na tentação de poder de forçar“razões”, sem qualquer intento tirânico sobre isso que estuda. Infelizmente, nãoé este o procedimento mais corrente, por mais que se diga o contrário.

4A demarcação ontológica entre o que foi a história e o que a historiogra-fia é implica uma diferença ontológica necessariamente inultrapassável, nuncapodendo a segunda replicar a primeira, sendo a segunda apenas uma de infini-tas possíveis formas de memória da primeira. A narração histórica pode tentaruma aproximação infinitesimal ao que foi a história, mas nunca poderá coincidir

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tenha feito na aurora de sua vida como homem que se sabe comoacto que é, quer dizer, que é já uma entidade reflexiva, que se põea si próprio como objecto de seu mesmo pensamento. Ora, a vidaprópria e de seus semelhantes, bem como a vida de inimigos e en-tidades outras animadas, mesmo e talvez sobretudo daqueles quetem de matar para sobreviver, é um dado óbvio, sendo que prova-velmente, a morte e a incoativa reflexão acerca do que pudessseser há-de ter tido um papel importantíssimo para a descoberta dopróprio distintivo da vida: no fim de contas, só se pode matar oque está vivo e esta diferença entre o que está vivo e o que já nãoestá vivo é, a este nível, óbvia e imediata, não podendo escaparà atenção de um ente que precisamente necessita de uma extremaatenção a tudo, interna e externamente, 5 para continuar vivo.

Esta questão é de tal modo importante e fundamental e difícilque, ainda hoje, perturba a mente dos homens, não tendo até hojeencontrado qualquer resposta cabal de outra ordem que não a me-

com ela. Assim sendo, todas as reconstituições historiográficas mais não sãodo que esforços científicos (muito meritórios, se honestamente realizados) dereconstituição memorial de acontecimentos idos. O que se passou na mente dehomens num qualquer tempo anterior é impossível de se saber com rigor infi-nito. Tudo o que se possa dizer acerca de tudo o que humanamente foi da ordemdo pensado no passado é meramente especulativo. Mesmo acerca do que ficoumaterialmente registado temos de piamente acreditar que era mesmo isso que deisso percebemos que o registador queria “dizer”, significar...

5Pensar-se que «agora é que o “homem” ou a “humanidade” pensa e re-flecte» é talvez muito ingénuo, para além de autocomplacente: ninguém comoum ser humano cuja existência está permanentemente em causa é obrigado apensar constantemente quer a um nível de tipo mental-calculador-calculista (oparadigma da modernidade, paradigma muito primitivo...) quer a um nível refle-xivo, verdadeiramente estratégico, capaz de antecipar genérica e tentativamentemodelos de realidade nunca antes experienciados, o que implica não apenas for-mas de imaginação puramente replicativa, mas já criadora. Uma humanidadeposta a viver sem perigo de exposição vital rapidamente perde esta capacidade,tornando-se coisa entediada e incapaz de verdadeiramente criar, limitando-se arepetir o que foi criado por outros in illo tempore.

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tafórica: não há propriamente ciência da morte; resta saber se háverdadeiramente ciência da vida. Indaguemos.

Podemos afirmar sem grande risco de erro que todos os grandestextos antigos que conhecemos (pelo menos os que quem escreveestas linhas conhece) podem ser vistos como meditações muitopróprias acerca da vida, da sua mesma essência, sendo, neste sen-tido, textos profundamente biológicos. Não admira, pois, que mui-tos deles sejam textos fundadores de religiões, cosmogonias, an-tropogonias, etc.; textos fundadores de sentido e de um sentido emque vida e morte estão radicalmente presentes. Os exemplos abun-dam, mas fica o repto da prova em contrário. Temos, pois, que opensamento biológico, para não lhe chamarmos biologia, a fim deevitar equivocidade, é talvez tão antigo quanto a própria humani-dade, mas garantidamente tão antigo quanto a antiga humanidadeque se pôs definitivamente como auto-consciente de ser precisa-mente humanidade, isto é, uma forma de vida humana, o viventehumano, o vivente humano que sabe que é vivente humano, istoé, vivente, humano e que sabe que é tudo isto porque é humano,ou seja, a forma de vida em que há a possibilidade e a actualidadede haver sentido de e como vida, sendo que é precisamente estesentido que constitui a vida humana. Sem este sentido, nunca te-ria havido qualquer possibilidade de constituição de uma qualquerbiologia como forma de pensamento. Sendo esta reflexão neces-sariamente realizada no foro interior do ser humano, foro que seconfunde ontologicamente com o seu mesmo lar ético, é possíveldizer-se que a humanidade é incoativamente bioética, num sentidomuito mais profundo e vasto do que o da vigente bioética: o serhumano, desde que é o que é, pensa a vida como radical diferençaprópria sua e pensa-a na raiz ética fundamental de onde toda a acti-vidade nasce, de onde toda a actividade pode nascer. Neste sentido,a bioética é tão antiga quanto o mesmo ente humano.

Por exemplo e na nossa tradição intelectual, formas biológi-cas de reflexão aparecem um pouco por toda a parte na filosofia

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pré-socrática, na platónica e, por fim, a biologia acaba por nascercomo actividade e disciplina científica com Aristóteles. A sua pos-teridade é conhecida, com seus altos e baixos, com a moderna anegação de seu pai, que levou a biologia a ter de viver numa cons-tante tensão entre a herança genuinamente empirista de Aristótelese as reduções realmente anti-empíricas de uma biologia que se quermaduramente científica e empírica, mas que tem vivido de formasirracionais de redução do campo da experiência possível. Um re-torno a uma certa cósmica santidade e pureza holo-empírica aris-totélica será inevitável, se a biologia quiser poder dizer ainda algoacerca da realidade biológica do universo e não apenas acerca darealidade biológica das reduções que previamente define e de queultimamente tem partido.

Há uma holística essencial, substancial e necessária à qual abiologia não pode escapar: a sua integração numa continuidade econtiguidade ontológica, que vai desde a mais basal e aparente-mente simples física material, até ao domínio do espiritual, aquientendido laica e precisamente como o âmbito que permite, porexemplo, fazer biologia, reflectir sobre ela, fazer bioética, etc. Nãonecessitamos de fazer apelo a qualquer tema supostamente religi-oso (não discutimos isto aqui) para pensar a biologia na sua maiorprofundidade, pelo contrário e seguindo a ordem natural das coisas,é exactamente no aprofundamento do pensamento acerca da essên-cia das coisas – forma socrática-platónico-agostiniana-tomista depensar – que se pode chegar a uma dimensão religiosa, caso tal seimponha naturalmente. Em ciência, nada impede a revelação sobqualquer forma, sempre como forma de acto da inteligência hu-mana, mas aquela é sempre produto de um esforço (que deve serhumilde) do homem, não dom gratuito de algo que transcenda ohomem. Por tal, realmente se faz tão pouca ciência.

O domínio ontológico próprio da biologia situa-se indiscuti-velmente na sequência imediata do domínio de uma física não bio-lógica, em que energia e correspondente matéria são inanimados.

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A grande questão é, assim, em biologia, a da diferença entre oinanimado – o não vivo, o morto, porque não vivo – e o animado,o vivo. Deveria, pois, ser tarefa primeira e primária da biologiadefinir, sem qualquer ambiguidade, o seu mesmo objecto próprio,sem o que não pode ser considerada verdadeiramente uma ciência.Ora, esta tarefa está por fazer, o que implica imediatamente quea biologia não possa ser considerada uma verdadeira ciência, poislhe falta a definição do objecto próprio. O que existe sob o nomede «biologia» é um imenso conjunto de actividades, que, melhorou pior, seguem métodos aceites como científicos – sem reflexãometodológica, pois esta demonstraria que não há propriamente ob-jecto –, que vão servindo finalidades várias, mas que não podemdizer coisa alguma acerca da vida, dado que não foi definido issoacerca de que dizer alguma coisa. Diz-se muito acerca de muitasentidades tidas como “vivas”, mas não se sabe definir o que é a«vida» que supostamente faz com que se possa dizer que tais enti-dades são precisamente «vivas». De mal semelhante sofre a física,toda construída em torno da “energia”, mas que não sabe o queé a «energia» em torno de que está construída... Tais problemasnão são mera anedota para fazer sorrir epistemólogos cínicos, masa revelação da falta de fundamento das ciências contemporâneas,incapazes de sobreviver ao mero «como», mas impotentes para res-ponder ao «porquê», resposta para a qual foram propositadamenteimpreparadas, pois seus fundadores pensaram, mal, que a questãoacerca do «porquê» macularia metafisicamente a ciência.

No entanto, e na sequência daquela descoberta ancestral dadiferença própria manifesta do e pelo animado, há uma intuiçãoobscura acerca do que é isso que é vivo em sua diferença própria,sendo acerca de tudo o que se assemelha a tal tipo entitativo obs-curo que se refere o trabalho da biologia. A confusão epistemoló-gica é ainda maior em disciplinas que necessariamente têm de terum carácter misto como, por exemplo, uma bio-química, em quese estudam entidades não vivas que são suporte imediato ou me-

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diato de entidades vivas (por exemplo, o ADN), sem que se consigaperceber exacta e precisamente como esta relação fundamental sedá, uma vez que não é possível definir rigorosamente uma relaçãoentre entidades cujo estatuto próprio fundamental se desconhecerigorosamente.

Mas o mais estranho de tudo é a deriva magista que pareceviver-se em muitos ambientes hodiernos, em que aparentementese espera o surgimento mágico da vida, como vida mesmo, a par-tir de entidades totalmente não vivas, numa definição que se quermecânica da vida em seu acto, mas que é propriamente mágica:“juntam-se todas as peças físicas da célula e, só por isto, temosuma célula, isto é uma célula viva”. Se tal se verificar, há umamecânica própria para a origem da vida – tal aplica-se tambémàs especulações tipo milleriano acerca da origem absoluta da vidano universo, a partir de uma mera mistura mecânica de moléculas,moléculas já antigas, de “outros sóis”.

Mas são expressões como esta: «célula viva» que nos podemajudar a perceber o que está em causa. Pode habitualmente nãose notar, mas a expressão «célula viva» é redundante: só há célu-las vivas, não há células mortas, apenas cadáveres celulares de ex-células vivas. A diferença substancial entre uma célula viva e umcadáver de célula não é do tipo da que é sugerida pela audição ouvisão retóricas do contraste gramatical entre as expressões mate-riais «célula viva» e «célula morta»: aqui, há apenas uma distinçãode tipo gramatical, em que termos classificados como antagóni-cos qualificam (adjectivam) entidades substantivas deles aparente-mente independentes. Assim, haveria uma entidade substantiva, a“célula”, que poderia estar ou “viva” ou “morta”, mas não ambas ascoisas ao mesmo tempo (quanto à questão lógica de «sob o mesmoaspecto» é precisamente o que está em causa...). Nesta forma ma-nifestamente errónea de pensar, o estar vivo ou estar morto não sóé independente da entidade substantiva a que se refere como tam-bém é meramente adjectival; quem sabe, talvez mesmo alternativo,

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multi-sequencial, podendo estar uma vez vivo, depois morto e de-pois vivo, etc., o que talvez permita algo como “somas algébricasde vida e morte e respectivos saldos”, talvez mesmo não unitários(por ex., 1,3 ou 0,6 de vida...), no que é já uma forma anedótica depensar a realidade.

A vida, é aqui entendida como algo de meramente acessório,acidental, não essencial, não substantivo: é apenas uma proprieda-de possível de uma entidade dela ontologicamenbte independente.Note-se que usámos propositadamente as expressões «célula viva»e «célula morta», mas poderíamos ter usado as expressões, psico-logicamente mais contundentes, «pessoa viva» e «pessoa morta»,para as quais a reflexão tecida é perfeitamente válida, não interes-sando, de modo algum, para aqui, a questão da complexidade dosistema biológico ou bio-físico em causa.

Ora, a vida pode ser tudo, menos algo de não substantivo, denão essencial, de adjectival. Não sabemos o que a vida é, mas te-mos a obrigação intelectual de saber o que não é, que passa por,pelo menos, vislumbrar a sua importância ontológica própria. Semo recurso a magias, mais ou menos bem disfarçadas, é apenas à ex-periência que podemos recorrer e o que esta nos mostra é que a di-ferença entre a «célula viva» e a «célula morta» não é acidental ouadjectival, mas substancial. Uma observação minimamente atentae cuidada mostra que precisamente o que falta à «“célula morta”»é estar viva... De resto, no momento imediatamente (infinitesimal-mente) posterior a ter «morrido», está lá tudo, exactamente tudo oque de material havia na «célula viva»; não admitir isto, é necessa-riamente fazer apelo a qualquer acto mágico que, num “instante”retirou a parte material que fazia a diferença no sentido próprio davida. E, no entanto, apesar desta completude física, desta verda-deira igualdade material, a célula está não viva, está morta. Destemodo, não é material a diferença entre a célula e o seu cadáver.Esta conclusão não é logicamente rebatível e não há modo experi-encial de medir a suposta “matéria” em falta, não por falta de mé-

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todo ou de instrumentação, mas porque não há o que medir, dadoque, à parte a vida que falta, tudo o mais, do ponto de vista pura-mente material, está presente. 6 É este acto sem tempo próprio,sem duração, entre o estar vivo e o estar não vivo que define o ab-soluto da diferença que, por sua vez, define o âmbito próprio deuma biologia que queira ser uma biologia e não apenas um apên-dice pseudo-biológico de uma ciência física, essa sim, respeitandoseus mesmos pressupostos vigentes, rigorosamente material e ma-terialista.

A biologia pode, pois, medir todo o material presente antes damorte, isto é, enquanto a vida é, pode medir todo o material pre-sente depois da morte, isto é, quando a vida já não é, mas não podemedir o que faz a diferença entre um estado e o outro: não podemedir o que é precisa e propriamente a vida. Frustrante. Exami-nar um cadáver pode proporcionar saber tudo acerca de um com-plexo mero pedaço de matéria orgânica ou, mais propriamente, ex-orgânica e não só, isto é, também inorgânica, mas nada diz acercado que é propriamente a vida; a menos que se queira introduziruma noção biologicamente tão interessante como a de “vida docadáver”... Insistir nesta senda é cair no mundo mágico de Fran-kenstein. Ora, este ficcional senhor poderia ser um físico notávelque, sem a magia literária, nunca teria conseguido vida a partir damatéria orgânica não viva com que trabalhava. A vida pode ser umsalto ontológico no seio do cosmos, mas não é um salto mágico e,se tem todas as características que levam o homem a espantar-secom a maravilha que manifesta ser, esta maravilha representa umsalto qualitativo irredutível qualitativa e quantitativamente a qual-quer estado ou estádio anterior ou posterior. 7

6No entanto, esperaremos pacientemente pela construção de uma balançasubtilmente capaz de medir a diferença gravítica ao nível do mar entre a massa deum qualquer corpo vivo e a massa de seus imediatos restos mortais: certamenteessa diferença representará a massa (e a energia) da matéria que desapareceuquando o corpo morreu...

7O problema fundamental de qualquer teoria evolucionista não teleológica

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Pode-se dizer, no entanto, que, do ponto de vista material, «estálá tudo», é verdade, mas «estaticamente», faltando, assim, o as-pecto «dinâmico» ou «cinético» da vida, o movimento e movimentoautónomo que a vida necessariamente é. Tal afirmação inicial éperfeitíssima, em termos descritivos; mas dela não se segue logi-camente que este movimento seja necessariamente consequênciamaterial de uma qualquer materialidade presente: para que o seja,para ser consequência (necessariamente e necessariamente de tipocausal) da pura materialidade presente, a pura presença desta –sem coisa alguma mais, sob pena de magia – deveria fazer comque houvesse vida. Ora, precisamente, é o que se passa no cadáveracabado de “produzir”, estando lá a matéria toda, sem que aqueledeixe de ser cadáver. Este exemplo é definitivamente esclarecedoracerca da relação da matéria sem mais com a vida: pode ser apenasa de um a cadáver com a sua absoluta ausência de vida e nada mais,isto é, no que à vida respeita, positivamente, relação nenhuma, porausência de um dos relacionáveis.

A vida não é, pois, uma decorrência necessária e imediata dapresença de um determinado arranjo puramente material, que tam-bém pode estar e está presente num cadáver, sem que, por tal, esteesteja vivo.

é cair necessariamente em mecanismos mágicos, os únicos capazes de explicarcomo é que no grau evolutivo n+1 há mais riqueza ontológica do que no graun. A incapacidade de explicar etiologicamente o absolutamente novo emerso emcada nova forma biológica leva à utilização de palavras mágicas como «com-plexidade», «acaso», que nada dizem do ponto de vista racional, mergulhando abiologia numa irracionalidade fundamental que mina necessariamente a sua baserealmente científica. É interessante notar que, sendo incapaz de, por meio destas“noções”, explicar cabalmente quer a intensificação da riqueza ontológica de seubiológico reino (uma delas é a, esta sim, real complexidade e complexificaçãode organismos e ecossistemas), recorra a proposições do tipo: «então, a vidaenveredou por este caminho...», introduzindo uma tremenda cacofonia prosopo-paica e teleológica onde nunca o deveria fazer, querendo verdadeiramente conti-nuar fiel às suas supostamente únicas premissas materialistas e arqueo-pretérito-causalistas).

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A vida não é da ordem do puro material, no sentido comumdo termo, em que a matéria mais não é do que uma pura e meraconcentração de energia, vista esta, por sua vez e em vicioso ciclo,apenas como uma “matéria subtil” ou desconcentrada, mas, ainda,como uma forma “material”. A vida pode ser material, mas no sen-tido antigo do termo, em que se remete para uma potencialidade,potencialidade esta que, antes de ser física, é metafísica. Reduzidaa uma física material, a vida é simplesmente impossível ou então,surge nos termos (aliás comuns) de um paradoxal “cadáver ani-mado”. Infelizmente, é com este cadáver animado que a modernabiologia pensa poder lidar, mesmo ao nível heurístico da desco-berta da “essência” da vida. Uma bioética que assuma esta herançacomo base de trabalho mais não será do que uma bioética relativaa cadáveres “animados”.

Esta redução materialista repete a insensatez do pai de todoo verdadeiro materialismo, Demócrito de Abdera, contemporâneode Platão, que queria que tudo, incluindo a própria vida, fosse ex-plicado (coerentemente, e é por isto que é verdadeiramente ma-terialista e não materialista-magista, como grande parte dos mo-dernos e contemporâneos) pelos choques entre os átomos, únicoscomponentes do seu mundo. Nada, na pura atomicidade não in-tersecável dos átomos, permite mais do que uma combinatória demesa de bilhar – devido à necessária elasticidade dos choques – àstrês ou mais tabelas, nunca permitindo qualquer união, dado queos átomos são átomos isolados precisamente porque não são inter-secáveis e não são intersecáveis porque não são secáveis; quandose tocam, sempre ressaltam, nunca havendo, em termos de puraatomicidade, algo que permita explicar a possibilidade de encon-tros casuais mais demorados do que o puro e instantâneo toque erespectivo necessário ressalto. Aqui, nem o milagroso acaso vale,dado que pode haver uma infinita casualidade sem que, por isso,haja mais do que infinitos casuais ressaltos: nenhuma estabilidade,nenhuma forma, nenhum cosmos, nenhuma vida, portanto. Acei-

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tar, a partir deste esquema, a constituição de um qualquer cosmos,isto é, de uma qualquer forma ordenada minimamente estável dosátomos, é a primeira concessão a algo de tipo mágico, dado quenada, a não ser a mente do autor desta peregrina ideia, mostra arazão da existência de encontros diferentes de meros instantâneoschoques. Demócrito, ao aceitar a realidade qualquer do cosmos,foi infiel à pureza de seu esquema fundamental.

Mas é esta forma anedótica, modificada segundo os progressosda investigação das “partículas”, que persiste hodiernamente quernum esquema de tipo darwiniano puro quer num sistema expli-cativo de tipo milleriano; e estes dois bastam paradigmaticamentepara dar conta da matriz de pensamento da biologia triunfante. Ora,por mais que o acaso actue, nada no puro acaso dos ressaltantesencontros ou dos electromagnéticos ou outros quaisquer encontrospode materialmente explicar a vida: um choque entre dois átomosquaisquer é o que é, nada mais, mesmo que o choque seja, agora,uma forma mais refinada de “encontro” atómico ou molecular, norespeito de todas as “leis” da física quântica e relativista. O meroencontro entre partículas, sem mais, nada mais é do que um meroencontro entre partículas. Ou se postula uma qualquer informaçãomatricial presente na constituição dessas mesmas partículas, quecondiciona em forma macroscopicamente cósmica tais encontros,ou se acredita numa forma meramente mágica de constituição doque é macroscopicamente o nosso mundo. Repetir este processoindefinidamente é iterar algo que em si é o que é e nada mais. Di-zer que a vida surge, algures, no choque ou encontro n, e tem deser num n qualquer discreto, pois não é possível o estabelecimentode simultaneidades absolutas, é usar uma afirmação mágica. Es-tranhamente, na base de muito do trabalho “teórico” da modernabiologia está uma afirmação mágica. É interessante notar que éesta a biologia que acusa a antiga de ser irracional.

Mas mudemos de linguagem, modernizando-a: procurar a ori-gem da vida nas sequências arqueológicas puramente materiais

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associadas à “bioquímica” é esperar uma resposta mágica a umaquestão que deveria ter uma resposta racional e científica: de re-pente, depois de uma evolução puramente não viva, surge a com-binação premiada e isso que, até então, era não vivo, começou aviver. Como não pode ser “milagre”, só pode mesmo ser magia.Mesmo que este cenário fosse real, estaríamos na situação inversada relação entre a «célula viva» e a «célula morta»: uma não é re-dutível à outra com mais ou menos algo homólogo à não viva e adistância ontológica que vai da célula a isso que é parecido mate-rialmente com ela, mas não está vivo, é a mesma que dista de issoque é parecido com uma célula e não está vivo e uma célula. Acélula, qualquer, quando emergiu como tal emergiu já como vida,a vida não foi acrescentada a algo de preexistente, de um ou outromodo, tanto dá, a uma matéria não viva, “mortinha” por viver: istoé magia, indigno, portanto, de ser considerado pensamento cientí-fico.

A biologia estuda entidades vivas e condições não vivas am-bientais, não estuda a passagem de vida a não vida e de não vidaa vida, passagem que é simplesmente intangível, do ponto de vistada finita racionalidade humana, mormente da científica, cujas res-trições metodológicas a obrigam a cuidados ainda maiores com adefinição do objecto e do modo de acesso ao objecto, uma vezdefinido o objecto.

Há, obviamente, uma outra opção, a de voltar a assumir o termomatéria como potencialidade ontológica, o que implica assumirabertamente a possibilidade de uma teleologia, de cuja necessi-dade, aliás, a biologia não consegue livrar-se, sendo bastantes co-mo provas exemplares, todas as afirmações do género de «então,a espécie optou por ...», manifestamente impossíveis no regimecausalista arqueológico passadista em que quer viver, mas com oqual não consegue sobreviver, tendo de constantemente recorreraos “truques do inimigo”. Sem resolver a questão da definiçãodo objecto e de tudo o que esta definição implica epistemologica-

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mente a jusante, mas também a montante no plano dos princípios,a biologia nunca sairá deste impasse, com consequências nefastas,precisamente a jusante, sobre todas as disciplinas suas subsidiárias,mormente as aplicáveis à espécie humana e que interessam a umadisciplina de reflexão como a bioética.

3. Que é a Vida: a questão da definição do Bios

Não é obviamente possível construir uma bioética, digna do nomee digna de ser considerada ciência, sem haver uma prévia definiçãoda vida sobre que se quer construir uma ética. Sem esta definiçãotipológica ou, no caso de esta ser epistemologicamente impossí-vel (o que só se pode saber encetando uma investigação reflexiva,levando-a até onde seja racionalmente possível), sem manter a ten-são reflexiva no sentido de uma aproximação assimptótica ao quetal realidade possa ser, nenhuma ciência faz qualquer sentido racio-nal. Uma bioética ou uma outra disciplina qualquer sem uma qual-quer reflexão fundamental que a sustente não passa de um exercícioespúrio de falsa intelectualidade, habitualmente ao serviço de umqualquer interesse tirânico ou oligárquico. Muito do que se encon-tra sob a denominação de «bioética» pertence a esta categoria.

Que é, então, propriamente típico (em sentido forte, paradig-mático, necessariamente platónico) da vida? Que faz com que sepossa dizer que a entidade A é vida e a entidade B não é vida?Note-se, desde já, que a própria escolha do vocabulário e da sin-taxe usada não pode ser arbitrária. Não se pode, por exemplo, di-zer: «que faz com que se possa dizer que a entidade A é um entevivo?». Tal formulação formalmente divide, separa a entidade Ada vida, denotando que há uma qualquer entidade A que é vivaou que está viva, podendo haver essa mesma entidade A sem estarviva; entidade A viva e entidade A morta seriam, assim, a mesma

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entidade, uma vez viva outra não viva, permanecendo a mesmaentidade com vida ou sem ela, fazendo com que a vida seja mera-mente acidental ou acrescentada a uma entidade independente dela,aparentemente seu independente suporte.

É nesta intuição errada do que é a relação da entidade qual-quer com a vida que se baseiam as afirmações do tipo: «então, vio corpo morto do meu amigo», afirmação que não está errada ape-nas do ponto de vista biológico, mas constitui algo de aberrante doponto de vista antropológico. De facto, não há corpos biológicosque não estejam vivos: não há corpos mortos, 8 há cadáveres eum cadáver é um objecto puramente físico (salvaguardando a parteantropológica, que é importantíssima, ainda que não do ponto devista estritamente biológico, agora, aqui, em causa). Como já deveter observado quem tentou reanimar, não um corpo “inanimado”(expressão, aliás, incorrecta), mas um realíssimo cadáver – com ataxa de sucesso de zero por cento que é de esperar – a matéria ex-biológica do já cadáver não volta à vida e, em termos meramentehumanos, não há ressurreições. 9 Questões ditas de fronteira (e que

8Estando aqui em causa, como é óbvio, a relação entre o que é a vida e oque é isso que é vivo, na sua mesma entidade como vivo e não como outra coisaqualquer, de nada serve dizer que, por vezes, há partes do “corpo” que aindaestão vivas: tal só seria válido se o corpo fosse não uma unidade entitária viva,mas uma mera soma de partes, o que não se verifica nem em algo como umacolónia de fungos num vulgar cogumelo: só há partes de cogumelo no prato dobiólogo, não na realidade, nesta, ou há cogumelo como tal e tal é ser um cogu-melo como entidade individual própria e irrepetível (não interessa que seja umacolónia ou outra coisa qualquer) ou não há cogumelo algum, apenas bocadosmateriais ou biológicos do que foi um cogumelo, mas já não é um cogumelo. Ahabitual incompreensão desta manifesta evidência é uma das razões mais gra-ves da infantilidade epistemológica de muito do trabalho da biologia. Aqui, umretorno ao melhor do legado do fundador da disciplina far-lhe-ia muito bem.

9É enternecedor o modo como certas disciplinas, muitas delas voluntaria-mente positivistas, retomam um vocabulário que deveriam detestar: o caso da“ressuscitação” (por exemplo, «ressuscitação cárdio-respiratória») é um bom e-xemplo. É claro que o «paciente» só ressuscita se ainda não estiver mesmomorto. É por não estar ainda mesmo morto que é possível “ressuscitá-lo”, que

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o são verdadeiramente) como, por exemplo e paradigmaticamente,as relativas ao estatuto “biológico” dos vírus não complicam a re-flexão, antes a simplificam, pois o que que falta perceber – se é quefalta mesmo – é o que faz com que isso a que se chama «vírus»seja concomitantemente tão “simples” (alguém parece ter decre-tado que a vida tem de ser complexa ou complicada, mas não sa-bemos quem...), tão aparentemente “próximo” de algo puramentefísico, e que, em certas condições, “parece” não estar vivo; mas,mudando as circunstâncias, para obviamente circunstâncias favo-ráveis, “parece” já estar vivo e “parece” de tal modo que é capazde, por exemplo, parecendo mesmo estar vivo, matar toda a hu-manidade, mesmo os biólogos que defendem que não é entidadebiológica.

Repetimos, o que falta perceber é exactamente o que é que nes-tas entidades faz com que sejam entidades vivas, pois a vida não éalgo que tenha de corresponder a uma definição construída artifici-almente num laboratório ou numa escola qualquer, devendo, antes,a definição procurar coincidir com o que a vida é, em todas as suasmanifestações, mesmo nas mais “estranhas” ou “aberrantes” (ter-mos moralizantes, que nenhum valor epistemológico têm em biolo-

mais não é do que a retoma das funções necessárias à existência de vida, não umprocesso mágico em que se volta a “pôr” vida em algo de onde ela já se tinha“retirado”. Como é óbvio, para além da parte propriamente mágica em causa,há, ainda, a considerar mais dois aspectos relevantes: o primeiro confirma aforma duplicista e alienada da relação entre a vida e a “entidade” em que esta“mora”: a inquilina vida ausentara-se (não mais de quatro minutos, por favor...)e a equipa ou o socorrista faz com ela volte à sua morada – eis o paciente ressus-citado...; em segundo lugar, a manifesta necessidade, sobretudo de quem andano “terreno”, de recorrer a formas não positivistas de expressão, o que mitiga aangústia do trabalho – inevitável, se não se for um monstro mecânico, já não hu-mano – e dá, de novo magicamente, o mesmo tipo de enquadramento que a velhareligião dava aos que acreditavam “nessas coisas”, assumidamente assassinadaspelo senhor Comte e sua positivista posteridade. A propósito, aconselhamosque se veja o filme de Martin Scorcese Bringing out the dead. Só que ninguémverdadeiramente brings out the dead.

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gia), mesmo as mais “simples” ou “próximo-materiais” ou mesmo,pasme-se, as “impossíveis”, como as encontradas em sítios “extre-mos” como as nascentes de água mineralizada “venenosa” (parao homem, claro...), a altas temperaturas e altas pressões, em fun-dos oceânicos em zonas de grande actividade geomórfica – teorica-mente consideradas impossíveis, antes de serem descobertas (porvezes, a parte experimental da ciência tem destes aborrecimentosteóricos...).

Afinal, tudo isto é vida e o papel da biologia não é antecipardogmaticamente o que possa ser a vida, segundo os estreitos pa-râmetros do estudo pretérito sobre o que a vida historicamente foi,mas pensar o que é exactamente próprio da vida, isso que permiteao homem ser uma entidade viva, uma vida entitária, ao habitantedas profundidades abissais ser também uma entidade diferente dahumana, mas que também é vida, e ao vírus não ser apenas umacoisa física umas vezes “animada” outras “desanimada”, mas sertambém, a seu modo, 10 vida. Mais, mesmo que seja possívelproduzir entidades de tipo viral de modo artificial e que tenhamo mesmo “comportamento” dos vírus naturais, há que perceber oque é que na sua estrutura vital própria permite um corportamentovital e, portanto, vida. É precisamente o que está em causa.

Se não sabemos o que a vida é, na sua mesma essência, 11 sa-bemos o que ela não é: não é uma mera física inerte magicamentepromovida a algo de diferente, pois, se a realidade é toda ela física,

10Pobres dos vírus, se estiverem à espera de se encontrar algo neles que lhespermita entrar nas tabelas oficiais da vida... Pobre ciência que define primeiroas tabelas, sem saber isso que essencialmente deveria definir o que é tabelável.

11E as definições funcionalistas, como também no caso da «energia», podemsatisfazer técnicos e tecnólogos e a sua capacidade intelectual, mas não satisfa-zem o interesse fundamental da ciência, que é descobrir o que as coisas são, tantoquanto é humanamente possível, sem constrangimentos quaisquer impostos poruma qualquer oligarquia possidente; não confundir com as consequências eco-lógicas e antropológicas, não só relevantes como verdadeiramente inegociáveis,no que ao bem comum diz respeito.

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em sentido moderno, e nada mais, a física nunca é mais do quefísica e a realidade biológica é apenas uma outra forma de a purafísica ser pura física e nada mais, sendo que a biologia nada mais édo que um mero apartado de uma física mais geral. Sem se quererafirmar que a vida é «meta»-física, o que não é comprovável, a nãoser por meio de uma qualquer redução ao absurdo, que prove a in-suficiência etiológica da física para tal..., afirma-se, no entanto, quehá que procurar, na física, os instrumentos que permitem a relaçãoentre o que é o puramente não vivo e o vivo, precisamente como oque não é absolutamente não vivo. Caso contrário, não é possívelperceber-se o que é próprio da vida, caindo-se ou em absurdos má-gicos ou em absurdos totais, situação hodierna da biologia. Eis umimenso trabalho de reflexão sobre os dados da biologia, trabalhoque é o único que pode erguer a biologia da infantilidade episte-mológica em que vive, sem ser uma pura física, mas não sendo,muitas vezes, mais do uma forma de pensamento mágico acercadas propriedades “vitais” da física.

A resposta a esta magna questão não corresponderá à elabora-ção de discursos (como este nosso, aliás), ditos “teóricos” acercada biologia, mas à exploração e elucidação racional de questõesmuito básicas (que são sempre as fundamentais em qualquer ci-ência) como: que diferença fundamental existe para um átomo decarbono estar isolado, estar numa molécula constituída por um parde átomos de carbono, numa estrutura molecular como o metano(e todas as outras em que pode estar)? A que corresponde cadauma destas relações? Que relação têm, cada uma delas, com umapossível vida? Em alguma destas estruturas há vida? E numa estru-tura do mesmo tipo já usada em entidades vivas, já há vida? Quala relação de cada molécula ou mesmo de cada átomo com a enti-dade viva em que se encontra? Mas «encontra-se» ou «constitui-a»?; que diferença há entre estes dois enuncidos? Há alguma e-vidência experimental ou teórica destas relações? Em que difereuma qualquer destas moléculas presentes num cadáver e uma sua

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semelhante presente num corpo? Porquê? Qual a razão pela quala simples acumulação correcta de moléculas não faz com que ocadáver seja corpo? A organização física e molecular correcta pro-duz a vida ou a vida implica teleologicamente uma perfeição decorrecção da acumulação molecular? Do ponto de vista da lógicada vida, que está primeiro, a vida em acto (que implica a correctaacumulação molecular) ou a acumulação molecular (que implicanecessariamente o aparecimento da vida)? E em todos os possíveismicro-físicos mais finos e profundos, qual a relação entre as suasentidades e a vida? Repete-se: a resposta a estas questões não deveser especulativa, mas correctamente experimental. Como é óbvio,as questões podem multiplicar-se indefinidamente, sobretudo porcausa das próprias exigências da investigação. As que elencámossão apenas uma insignificante amostra.

Se a biologia quiser ser ciência digna do nome e não apenasuma forma tecnológica ou moralóide, que vai mudando de padrãode trabalho à medida que as exigências de mercado e das oligar-quias possidentes vão variando, terá de responder a estas questõesde fundamentação. No entanto, não tendo nascido, na sua formamoderna, como saber descomprometido e fundamental, o mais pro-vável é que continue a viver neste ambiente de indústria biotecno-lógica, em que pode perfeitamente ignorar as questões epistemo-lógicas de fundo. Mas, se nesses seus inícios pragmáticos estive-ram causas nobres e nobres homens como um Jenner ou um Pas-teur, hoje em dia, havendo ainda muitas causas nobres, a motivaçãofundamental vem sobretudo de impulsos mercantis ou ainda maisvis, como os ligados à tecnologia biológica militar, mais ou menosterrorista. Prestamos a nossa homenagem aos biólogos sérios queainda persistem em perceber o objecto a que a sua actividade osdeve ligar.

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4. Uma Bioética

4.1. Que é e que deve ser uma Bioética?

– O termo «Bios»

Antes de mais, há que pensar os termos associados no termo com-posto «bioética». A primeira parte do termo composto «bioética»,«bio», é proveniente do termo grego «bios», que, em seu sentidofundamental, remete para a vida, não apenas para um sentido re-lativo qualquer de vida, mas para a vida em si mesma, na sua irre-dutibilidade própria. Tal noção, anterior a qualquer possível con-ceptualização e de que esta necessariamente depende, adveio ló-gica e necessariamente da intuição precoce de algo de específicodiferenciador da entidade viva relativamente à entidade não viva.Dificilmente se pode pensar uma humanidade em acto que não te-nha noção da diferença entre o vivo e o não vivo. Deste modo,podemos arriscar dizer que o sentido do «bios» acompanha desdesempre a própria humanidade e marca indelevelmente toda a suaexistência exactamente como existência de um ente que se sabepossuidor de uma diferença fundamental relativamente ao não vivoe de uma semelhança fundamental relativamente ao restante vivo,seja ele qual for. Estas dissemelhança e semelhança fundamentaisconstituem o objecto fundamental de estudo de qualquer biologiae afins.

Tal noção fundamental é tão forte que não nos surpreendemosao encontrar nas tradições fundadoras de muitas culturas a defini-ção das potências superiores, muitas vezes de tipo propriamentedivino, como potências de vida, mesmo de pura vida, em oposiçãoradical a potências de não vida: desde muito cedo, senão mesmodesde sempre, o homem teve noção da importância ontológica fun-damental da «vida» e do seu contraditório, a morte. É importante

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notar que vida e morte não são contrários, que podem existir con-comitantemente, mas contraditórios, isto é, não podem existir con-comitantemente em sentido pleno. Quando a vida está presente emdeterminado objecto, a morte nele encontra-se totalmente ausente;quando a morte se encontra presente em tal objecto (que já não é«tal objecto» senão em artificialidade teórica e abstracta), a vidanão se encontra presente. Não há, pois, senão em más metáforasliterárias, intermédio entre a vida e a morte.

Deste modo, podemos perceber o peso imenso que o termo«bios» possui, não se confinando apenas a uma certa tradição, ada cultura que cunhou este preciso termo, mas possuindo relevân-cia ontológica, com matizes diferentes, em toda a parte em quese encontrem seres humanos. O termo «bios» não é apenas umareferência técnica de uma qualquer ciência ou área científica, deuma qualquer doutrina ou cultura, mas ensaia dizer aquilo que ohomem percebeu como sendo o cerne ontológico activo próprioda sua existência como irredutível entidade, isso sem o que, inde-pendentemente de qualquer estudo ou definição, não passa de umcadáver, isto é, de um pedaço de matéria inerte, física e quimi-camente indiscernível de qualquer outro pedaço de matéria inerte,tenha ou não essa “mesma” matéria tido uso como apoio físico-químico para a existência de vida, vida que, deste modo, sempre atranscende. Para mais, no homem, o «bios» atingiu precisamente acapacidade de se pensar a si próprio: com o homem, a vida atingiua possibilidade e a actualidade de algo que se pode pôr a si mesmocomo tema próprio seu, tema que é exactamente o tema fundamen-tal de tal acto. A vida, ao descobrir-se, descobre-se como o grandetema de si própria.

A reflexão sobre a vida, em seus multímodos modos, em dis-ciplinas várias, desde a poesia mitográfica, às mais variadas for-mas de arte, passando pela filosofia e pela teologia, bem como poruma multidão de disciplinas científicas, é provavelmente tão antigacomo o homem, não como entidade meramente viva, à maneira das

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bestas, mas como entidade viva que já não é precisamente umabesta, mas um ser vivo capaz de se pôr como ser e como vivo ecomo inteligência em acto de entidade propriamente viva. Desteponto de vista, a reflexão biológica é tudo menos uma disciplinamoderna e muito menos recente. A bioética, que não pode fugir aesta evidência de sua mesma funda arqueologia, possui antepassa-dos radicais do mais alto nível intelectual e deve, pois, ser capaz dese manter num nível de dignidade intelectual que os não deslustre.

A bioética lida, pois, necessariamente com uma realidade cujadefinição não pode ser dada por uma qualquer intervenção capri-chosa de índole político-crática, mas tem de ser encontrada atravésda observação da realidade, sem preconceitos ou condicionalismosde qualquer tipo, ideológicos, religiosos, etc. A bioética não lidacom problemas que não sejam os que se relacionam com a reali-dade do termo primeiro que constitui matricialmente o seu mesmonome: o objecto da bioética é a vida na sua relação com algo quetranscende a pura nocionalidade da vida e que é o poder de in-tervenção do homem sobre a vida. O seu âmbito coincide, pois,com o âmbito da abrangência total do conjunto intersectivo entre acultura e a vida: nada há na relação entre o homem e a vida quepossa ficar fora do âmbito de uma bioética que queira ser digna deseu nome. Não pode, pois, a bioética limitar-se a ser um forum dediscussão e encontro de normas políticas de deontologia relativasao campo da intervenção de cuidados de saúde e actividades afins.Se o for, nunca passará de uma disciplina menor nas mãos de en-doutrinadores políticos de vários tipos, que visam apenas controlara poderosíssima arma política que é a prestação de cuidados desaúde e sobretudo as suas extensões perversas de controlo políticode pessoas, como foi, por exemplo, o tristemente célebre exemplodos planos aparentemente piedosos «de higiene» biológica inven-tados sob a égide do Cabo Adolfo Hitler.

A presença do termo «bios» na designação desta disciplina o-briga-a, portanto, a ser uma disciplina que pensa, de determinado

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modo, possivelmente de muitos modos – tantos quantos os que fo-rem pertinentes para seu mesmo mister –, a vida e não apenas umasua qualquer limitação operativa. Se era esta forma limitada depensamento que se queria aquando da sua fundação, então, o nomeescolhido deveria ter sido outro, por exemplo, «deontologia dosactos de cuidado de saúde e afins» ou outro qualquer devidamenteadaptado à restrição de âmbito querida.

Enquanto a bioética não se tornar uma verdadeira disciplina dereflexão acerca da vida no que esta tem de relação com a acçãodo homem, universalmente entendidas ambas, mais não será doque uma tentativa de ganhar predomínio político sobre a adminis-tração de cuidados de saúde e sobre a definição daquilo que deveser a vida, especialmente a humana, velhíssima tentação de todosos tiranos. Tememos que uma bioética que não respeite o carác-ter holístico de seu objecto e de sua missão, que deve ser ditadapor aquele e pelo seu único e exclusivo interesse, se torne apenasnuma mera arma ao serviço de oligarquias e tiranias que na vidavêem apenas algo a dominar e a explorar em seu exclusivo benefí-cio. Tem sido esta atitude e acção que tem provocado as tragédiasecológicas, no sentido o mais lato possível deste termo e noção,de todos conhecidas, em que predomina a maior falta de respeitoprecisamente pela vida como tal e pela vida objectivamente mani-festada em entidades outras que a dos oligarcas ou dos tiranos.

Uma verdadeira bioética deveria ser uma verdadeira ecologia.Aliás, com o nome de «bioética», deveria ter nascido a ecologia,pois esta mais não é exactamente do que uma forma de conside-ração e de preocupação holística com o ambiente – e a acção hu-mana nele – como um todo e especialmente com a vida presentenesse ambiente, dado que, sem esta última, seria apenas uma me-teorologia ou uma geologia, por exemplo. Quer isto dizer que nabase de uma qualquer bioética digna de seu nome deveria exis-tir um fundado conhecimento biológico, sobre o qual se deveriafundar um profundo respeito pela vida, em todas as suas formas,

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mesmo quando a vida se torna prejudicial em parte ou no seu todoà vida humana. Parece claro que esta última só é possível e só éviável num horizonte bio-ontológico de ecossistematicidade holís-tica, em que necessariamente entram muitas espécies e indivíduos,não dependendo do mero arbítrio humano a decisão acerca da suapossibilidade.

Uma bioética reduzida a uma disputa acerca de questões políti-cas de administração sanitária e de limites quaisquer para a acçãode intervenientes quaisquer dentro desta administração será sem-pre uma disciplina menor, sem dignidade objectual e de impossí-vel verdadeira cientificidade, pois, sem a assunção plena de seuobjecto, o «bios», será, por muito bons métodos que use, semprevazia de conteúdo fundamental. Dedicada apenas ao que se temvindo a dedicar, mais não é do que um moralismo mais ou me-nos grosseiro acerca de realidades que não devem ser moralizadas,antes devem ser estudadas em sua dignidade ontológica total, demodo a que seja possível, então, a definição de padrões políticosobjectivos de acção. Esta definição objectiva não pode senão de-pender da pura objectividade ontológica do «bios» estudado, sobpena de se cair, mais do que num moralismo vazio, numa autênticatirania.

– O termo «Ética»

O segundo grande problema da bioética consiste em que, se bemque o termo «ética» conste da sua designação onomástica, ser tudomenos uma «ética»: desde o seu nascimento que é fundamental-mente de ordem política e não ética. Dirigindo-se necessariamenteao domínio da relação entre sujeitos humanos, a bioética exis-tente é necessariamente política. Uma ética biológica diria res-peito apenas ao domínio da pura interioridade pessoal de cada serhumano, foro único da ética, na sua relação pessoalíssima com a

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vida, enquanto tal, no estrito foro de sua mesma interioridade, semtranscendência intersubjectiva, esta imediatamente política. Sendopossível, seria apenas, enquanto ciência, uma “ciência” individual,cujo sujeito e objecto coincidiriam, dado que apenas cada pessoapode dizer acerca da realidade de sua mesma interioridade ética.Seria uma forma de, por exemplo, psicologia. Não sendo possí-vel um discurso acerca da interioridade de terceiros, teria de ser aprópria pessoa a assegurar a feitura desta “ciência individual”, deque não se percebe muito bem qual seria o interesse, pois mais nãoseria do que uma lírica em discurso, travestida de ciência.

Pode haver uma acepção racionalmente interessante para o ter-mo «bioética», acepção que não é científica no sentido comum mo-derno do termo, e que seria a da procura de um modo de sabedoriana acção, enquanto princípio subjectivo interior, na forma de cadapessoa lidar com a vida. Forma auto-pedagógica, esta bioética te-ria todo o interesse, mas dependeria sempre, dado que ninguémnasce propriamente ensinado, de uma qualquer formação base quepudesse fundar a capacidade auto-pedagógica da pessoa no sentidoda formação de um princípio de acção «bioético», de uma éticapessoal relativa à acção para com a vida.

Como programa pessoal, tal bioética seria muito interessante,sobretudo se fosse pedagogicamente conduzida no sentido da inte-ligência da vida como um bem comum a promover em toda a suaplenitude, mesmo quando interfere negativamente com essa outravida que é a humana, acção já política. Deste modo, minorar-se-iam imenso as repercussões negativas sobre a vida e o biossistematotal da acção humana que, recordemos, mais não é do que o soma-tório integrado, inter-integrado das acções de todos os seres huma-nos: melhorar, no sentido de um bem comum da vida ou da vidaentendida como bem comum, toda a acção de cada ente humanonão poderia deixar de ser positivo para a vida entendida na sua glo-balidade, pelo menos na sua globalidade conhecida. Este sentidopossível para uma bioética seria muito bem vindo. Mas pensamos

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que não existe e nunca existirá para além do espaço definido porestas poucas linhas.

O que a bioética, de facto é, é uma bio-política e é como bio-política que tem de ser pensada. A relação do homem com a vidaem seu sentido o mais universal possível não é uma questão mera-mente ética, mas uma questão fundamentalmente política, pois, sebem que toda a acção possível e real da pessoa humana nasça únicae exclusivamente, independentemente de quaisquer condicionalis-mos exteriores, de seu mesmo interior ético, é no âmbito da relaçãocom terceiras entidades, humanas ou não, que as questões funda-mentais se põem, salvo na questão do suicídio, questão bioética emsentido geral, mas que é fundamentalmente ética, sem mais.

Quando se discutem questões da chamada «bioética» corrente,normalmente discute-se algo relativo à interacção política entrepessoas. É a definição dos modos desta interacção que importaem termos de «bioética»; mas, se assim é, a designação está purae simplesmente errada. O erro, que não é novo, promana da con-fusão entre o que são regras deontológicas, políticas por essência,e o domínio da radical fundação ética dos actos das pessoas, do-mínio em que as regras nunca podem ser de etiologia política, sobpena de aniquilação da própria pessoa, por fundamental dependên-cia heteronómica. O âmbito da fundação da ética é sempre da or-dem do ontológico, da ontologia própria interna de cada pessoa,em que a mesma pessoa se constrói em actos de escolha pura-mente interiores, irredutíveis a qualquer outra fonte ou sede. Aobediência a regras meramente exteriores anula a mesma pessoa,transformando-a em escrava dessas mesmas regras a si totalmentealheias.

Esta evidência aplica-se a qualquer fonte de heteronomia, sejaela de ordem religiosa, civil ou outra, todas políticas, todas e-xercendo, se a sua influência for imediata, um trabalho de reduçãodo que é próprio da pessoa, escravizando-a a uma forma de tiraniacuja adjectivação se torna irrelevante. Sem a mediação do assen-

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timento livre da pessoa, qualquer forma de ordenação de etiologiaextra-ética é uma forma de aniquilamento da humanidade pessoaldessa mesma pessoa; e não há pessoas de forma diversa. Venha aordem de um presidente, de um rei, de uma assembleia ou de umdeus qualquer, será sempre uma forma de tirania, se não for me-diada pelo assentimento pessoal da pessoa a quem se destina. Esteassentimento é precisamente a parte ética em questão. Por tal, foiafirmado acima que uma verdadeira bioética se reduziria ao âmbitodefinitório deste mesmo assentimento e da acção (ou sua ausência,que é, ainda, uma forma de acção, se bem que pela negativa) deladecorrente.

Não é manifestamente este o panorama de isso que vulgar-mente se designa como «bioética», como é fácil de perceber con-sultando a vasta bibliografia existente. Desde os seus inícios, como oncologista holandês Van Rensselaer Potter, que a chamada «bio-ética» não é propriamente uma ética, mas uma forma tentativa-mente científica e inter-disciplinar de procurar meios de regularmovimentos de ordem política, sejam eles relativos aos procedi-mentos de cuidados de saúde, aos perigos de novas formas de mei-os militares de tipo biológico, à delimitação de âmbitos ou frontei-ras definitórios do que é a vida, mormente a humana, etc., numatentativa de síntese – sempre artificial – entre o que se pode desig-nar como o conhecimento biológico e os chamados «valores huma-nos».

Reside precisamente aqui o grande problema fundacional, epis-témico, mas também ontológico, desta nova “disciplina”. Este pro-blema não se encontra nas camadas superficiais de um relaciona-mento de tipo académico ou mesmo epistemológico entre sistemasde conhecimento: por um lado, o conhecimento biológico, por ou-tro, o conhecimento dos sistemas de valores humanos. Não, a ques-tão é muito mais profunda e reside exactamente na definição dosrelacionáveis, necessariamente anterior à sua possibilidade de rela-cionamento.

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O conhecimento biológico não constitui um qualquer reino e-pistemológico à parte: integra-se num esforço racional e epistémi-co universal que visa o entendimento das estruturas físicas do uni-verso em que nos encontramos e cujo sentido só pode emergirmediante o mesmo esforço racional do homem. Assim sendo,o conhecimento biológico tem de ter em consideração todos osâmbitos, digamos assim, ecossistémicos em que se situa, não po-dendo funcionar como disciplina científica isolada, antes tendo deassumir-se como conhecimento o mais holístico possível. Ora, paratal, e dado que a vida, seu objecto, precisamente se relaciona comtodas as formas entitárias contextuais, deve a biologia ter em consi-deração tudo o que for relevante, desde a mais bruta materialidadeaté às mais refinadas envolventes de tipo espiritual, todas elas re-levantes para o seu objecto em estudo. O universo, sabe-se já hámuito tempo, é um sistema imenso, em que tudo está, mais ou me-nos remotamente, integrado. Para um correcto conhecimento bi-ológico não é possível prescindir deste sentido integracional, peloque a biologia não pode não ser senão uma ciência ecossistémicaholística.

Ora, não é esta ciência que encontramos quando procuramos abiologia, pelo contrário, encontramos uma ciência redutora, acan-tonada em âmbitos ideologicamente pré-definidos, sem qualquerrespeito pela ontologia própria do objecto que lhe cabe, a vidacomo um todo, todo em que apenas qualquer uma das partes podefazer sentido e precisamente como parte integrante desse todo. Sea biologia e seus derivados não se podem alienar da sua necessá-ria base material, também não se podem alienar da sua base cul-tural, isto é, da consideração do biótopo geral que estuda comobiótopo em que a presença da cultura existe. No único biótopo quese conhece, é já, dada a universalização global da acção humana,muito difícil encontrar um biótopo regional qualquer em que a cul-tura não esteja presente – e a presença antiga é contemporânea, poisnão há acção qualquer que não deixe uma qualquer marca. Mas,

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abstractamente considerado, se houvesse um qualquer biótopo as-sim isolado, a acção investigativa da biologia sobre ele marcá-lo-iaculturamente, pelo que a biologia nunca pode mesmo prescindir dofactor cultura, ainda que a sua própria em acto sobre o objecto.

Ora, não há cultura sem os chamados valores, pelo que nãocompete a uma qualquer nova disciplina conciliar a biologia comquaisquer valores – e todos os valores criados pelo homem são ne-cessariamente humanos, mesmo quando são “desumanos” –, dadoque a biologia desde sempre teve de o fazer: lembremos, por e-xemplo, o trabalho e a vida do grande biólogo Louis Pasteur (1822-1895), precisamente o homem que concebeu e realizou a experiên-cia definitiva que mostrou a dependência da vida actual de umaqualquer forma de vida actual anterior, acabando com o mito irra-cional da geração espontânea da vida, biólogo que sempre soubeconciliar os valores não biológicos em que acreditava com valo-res biológicos que concomitante praticava, numa exemplar vidaverdadeiramente bioética. Aliás, uma bioética e uma biopolíticadecorrente poderiam muito bem começar estudando como foi pos-sível a acção correctíssima de um Pasteur, não um oficial medíocrede uma actividade hetero-normada, mas genial figura científica egrande benemérito da humanidade: pense-se nos milhões de vidasjá poupadas desde a invenção da pasteurização e da vacina contraa raiva, por exemplo.

Como nova tentativa conciliadora de ciência biológica e valoreshumanos, a bioética é irrelevante, dado que os grandes cientistasque foram também grandes filantropos sempre o fizeram, bastandouma ciência histórica e normativa para compilar em forma deon-tológica paradigmática tais comportamentos, já de si conciliadoresdo melhor que a ciência biológica possui com o que o amor pelobem comum implica na acção dos homens. Deste este ponto devista, a bioética não é original ou útil; pior, ao pretender um re-gime de reflexão que não recorre aos grandes exemplos de serviçoà ciência e à humanidade, trivializa e mediocratiza estes mesmos

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serviços, retirando o atractivo ético e político que a paradigmatiza-ção das grandes figuras sempre constitui.

Mas falta a questão do segundo termo a conciliar, precisamenteos chamados «valores humanos». Este termo composto situa-nosimediatamente em perigosos terrenos movediços, ontologicamenteentendidos; isto é, do ponto de vista da ontologia das coisas e so-bretudo da coisa propriamente humana, que é o mesmo homem,qualquer definição de valores implica também imediatamente o re-curso a formas de judicação, isto é, de avaliação do que o ser dascoisas é, atribuíndo-lhe um valor. Este sentido vem desde, de formailegítima, os tempos teocêntricos, em que o valor é posto, de formaabsoluta e indiscutível, pela mesma entidade absoluta que criouo universo e que, por isso, o conhece com uma precisão infinitae uma latitude também infinita, pelo que sabe exactamente qual o“valor” de cada coisa, sabe-o com precisão infinita. Mas esta preci-são infinita de saber coincide precisamente com o acto de criação,pelo que o “valor” da coisa, para a divindade criadora, mais não édo que a contemplação do seu mesmo acto criador: para um deus12 criador, o valor de cada coisa corresponde ao ser que lhe deu, àactualidade geral que nela pôs.

Assim sendo, a avaliação feita por um tal deus é infalível e aapreciação é sempre ontologicamente infalível. Tal não é o casodo homem, que não possui outra forma de ajuizar acerca do ser dascoisas senão através da contemplação das suas características pa-tentes às suas variadas formas de inteligência; na ciência modernae contemporânea, cujo especial paradigma epistemológico domina,estas características são, por opção da mesma ciência, todas físicas,materiais. Deste modo, qualquer valor dito pelo homem de ciênciaserá sempre produto de uma avaliação incompleta, porque mera-

12Propositadamente, grafamos «deus» sem maiúscula inicial, pois não se tratade uma referência concreta a um qualquer Deus de uma qualquer tradição, masapenas ao conceito de um «deus criador», conceito puramente intelectual, para-digmático e an-histórico.

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mente material, pelo que nunca poderá dar seja do que for umaapreciação realmente válida, quando muito uma aproximação, massempre infinitamente longínqua da realidade própria da coisa ava-liada. A valorização é e será sempre uma forma falsa de contactocom o real, pelo que todo o valor é, por comparação com aquiloque avalia, sempre falso, sempre uma redução da realidade a ava-liar a uma afirmação de um avaliador qualquer, a um seu juízo, auma sua qualquer tese. Nada mais.

O valor é, na melhor das hipóteses, uma falsidade ontológica,quando promana de um sujeito honesto, mas finito; na pior, umamentira ontológia, quando promana de um avaliador desonesto,que usa a sua finitude de forma perversa precisamente como meiode apoucar a entidade própria das coisas. De nada serve acres-centar ao termo «valor» adjectivos cosméticos como, por exemplo,«humano». A falsidade fundamental do valor não é minorada porse lhe acrescentar a «humanidade» ou outra adjectivação qualquer.Para mais, não pode haver avaliação feita por um homem que nãoseja propriamente humana, não podendo ser canina ou asinina, porexemplo.

Se por «valores humanos» se quer dizer algo como, por e-xemplo, «princípios de acção que tenham em consideração o bemcomum da humanidade», então que se diga isto mesmo, o que émuito diferente daquela expressão, cujo sentido é fundamental-mente diferente do daquela afirmação. De facto, a única maneirade a humanidade poder, não já viver – num sentido de plenitude–, mas apenas sobreviver é o respeito pelo seu mesmo princípioontológico, necessário para a existência da cidade humana univer-sal, princípio do respeito pelo bem comum, isto é, pelo bem detodos e de cada um dos homens concomitantemente, necessaria-mente concomitantemente. Se é isto que se quer dizer com «va-lores humanos», então, que seja isto que se diga, não uma outracoisa qualquer.

Ora, a bioética não é isto que tem feito, não tem procurado de-

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senvolver princípios universais de busca de um bem comum, alar-gado ecossitemicamente, no que à acção relativa à vida diz res-peito, mas apenas o estabelecimento tópico e assistémico de re-gras deontológicas não fundadas em bases ontológicas, antes re-correndo a formas consensualistas de definição de valores, formasque são perigosíssimas em termos da defesa do que é ontologica-mente a vida e o direito ontológico, não político, mas ontológico,à vida quer do homem quer de todas as espécies que com ele par-tilham o único biótopo geral de que há conhecimento. Entre sernova ciência de fundamentação ontológica do ser da vida e de pro-cura de estabelecimento de princípios universais, ontologicamentefundados, para o exercício da acção no âmbito da vida e ser apenasum instrumento ideológico nas mãos de oligarquias e tiranias rei-nantes, a bioética parece ter escolhido a segunda opção. Se não seconverter na primeira, mais valerá que deixe de existir.

4.2. Algumas considerações sobre o Horizonte daBioética

Há que fazer uma distinção básica fundamental entre modos depensamento acerca da chamada «bioética»: entre um conjunto detipos epistemológicos que não respeitam a ontologia própria do ho-mem e uma tipificação que respeita esta mesma ontologia. Todasas outras possíveis distinções decorrem desta primeira e são suassubsidiárias. O bem próprio de cada entidade, seja ela qual for,depende apenas do que é o seu mesmo ser e este depende querdas suas possibilidades ontologicamente definidas quer da actuali-zação destas mesmas possibilidades. Tanto mais rico é ontologi-camente este ser, em sua mesma realidade concreta, quanto maisrespeitadas forem as suas mesmas possibilidades ontológicas pró-prias, possibilidades que devem poder ser actualizadas ao máximo,

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no necessário respeito pelo mesmo ontológico direito de todas asoutras possíveis entidades que, com ela, constituem o mundo.

Assim, o que cada entidade pode ser e é realmente não devedepender senão de seu mesmo potencial ontológico próprio, na ne-cessária relação quer de possibilidade quer de actualização com to-dos os outros possíveis, as outras possíveis entidades. Tal implicaque o desenvolvimento ontológico de cada entidade, no sentido darealização do melhor de suas mesmas possibilidades ontológicas,obedeça apenas a uma lei perfeitamente natural, lei do melhor pos-sível, ontologicamente, quer para si quer para o universo total pos-sível. É a questão do bem comum que aqui está necessariamenteimplicada; necessariamente, isto é, sem que possa não estar, semque se possa sequer pensar que há um qualquer modo alternativo.

Tal evidência ontológica aplica-se a toda a entidade possívele real, sem qualquer excepção. Aplica-se às entidades não hu-manas como às humanas, com as necessárias devidas adaptações.No que ao conjunto total das entidades não humanas diz respeito,toda a decorrência ontológica puramente própria relacional dá-sesegundo um esquema que define prototipicamente a mesma natu-ralidade ontológica, sendo que todos os actos que ocorrem se dãona mesma intrínseca e necessária decorrência quer das potencia-lidades ontológicas de cada uma das entidades em causa quer daspotencialidades que a sua mesma inter-relacionalidade necessaria-mente implica. Nada neste esquema, nada nestes necessários actospode receber a qualificação quer de ético ou moral quer de político.

Ética e política referem-se única e exclusivamente ao domínioontológico do humano, domínio não estritamente natural, mas emque, a uma natureza incoativa dada e dada necessariamente em seumesmo acto de doação, se junta todo um novo mundo formadoa partir da acção não necessária, isto é, livre do homem, acçãotoda ela de ontológica fundamental base ética e também incontor-nável necessária repercussão ontológica política, sendo que o casode uma acção puramente ética e não política é apenas uma figura

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de razão, nunca actualizável nesta nossa dimensão, sempre polí-tica, em que somos verdadeiramente homens.

Assim sendo, todo o acto de qualquer homem possui necessa-riamente uma dimensão política, não havendo realmente qualqueracto de um qualquer homem que não seja também um acto político.O âmbito da chamada «bioética» não escapa, como qualquer outro,a esta evidência, pelo que a bioética é concomitantemente uma ten-tativa de disciplina quer ética quer política. Mas, se bem que sejano domínio ético, da interioridade própria de cada pessoa, que sejoga o fundamental em questão em bioética, isto é, a tomada dedecisão quanto à acção a realizar, não é no domínio propriamenteético que o fundamental das consequências da acção que à bioéticaimportam se joga, antes no domínio político, domínio em que a re-lativa bondade ou não bondade de nossos actos quaisquer se derra-mam, não apenas para nosso exclusivo maior ou menor bem, mastambém e fundamentalmente para o maior ou menor bem de al-guém que não nós: neste realíssimo trânsito do puramente ético daesfera interior do homem para o político da relação entre homens,tais relativos bens encarnam em absolutos actos, que definem paramelhor ou para pior a ontologia própria de cada homem que con-nosco se relaciona, mas também, por seu intermédio, de todos osoutros que com ele se relacionarem, numa virtualmente infindávelcadeia ético-política não dominável por qualquer agente finito aonível de suas consequências ontológicas. E todos os homens sãoprecisamente agentes finitos.

O âmbito fundamental de qualquer acto de qualquer ente hu-mano é sempre o âmbito ontológico de moldagem do acto própriode todos os homens, dado que não é possível saber precisamenteque homens cada acto vai moldar, em que medida, quando, a quedistância de qualquer tipo. Esta evidência é incontrovertível e vá-lida para todo o campo do acto de homem. É precisamente estaespecificidade que define o homem como é, na sua natural propri-edade de ser não totalmente natural, forjando a mesma cultura, no

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que esta tem de actualidade propriamente racional do acto própriodo homem. Não é possível definir humanamente o homem foradestes padrões.

É nestes padrões que toda a inteligibilidade própria do homemse joga, bem como toda a sua acção própria, apenas classificávelcomo propriamente humana se for manifestação de acto de inteli-gência propriamente humana. Inteligência que, provocada em seuacto de leitura do real pelas diferentes formas de carência humana,orienta a parte activa do homem no sentido da colmatação dessasmesmas carências, nascendo, assim, aquilo que se conhece comovontade. É do domínio próprio desta actividade inteligente do ho-mem que diz todo o discurso acerca do propriamente ético e polí-tico no homem. Tudo o mais pertence ao domínio do puramentenatural, em que o homem não escapa ao mesmíssimo “reino” natu-ral a que pertencem todos os demais entes, desde o mais simples eprimitivo ao mais sofisticado não humano (ambos desconhecidos).

A chamada «bioética» pertence, pois, a este mesmo domínioda acção própria do homem e é como tal que deve ser encarada ecriticada. Não é algo de “natural” ou de “sobrenatural”, mas algode cultural, no sentido em que é cultural toda a acção propriamentehumana, por oposição a tudo o mais, em que esta mesma acçãonão se faz absolutamente sentir. Como todas as actividades fun-damentalmente políticas, ou se preocupa com o bem-comum doshomens ou se preocupa com o bem exclusivo de alguns homens;assim sendo, ou é uma teoria do amor ou é uma teoria da tirania,esta última mais ou menos mitigada oligarquicamente.

Não é certamente uma teoria do primeiro tipo aquela que achamada «bioética» configura nas suas várias formulações ditaslaicas. Ora, é precisamente como disciplina trans-humana, capaz,portanto, de apelar a um nível cultural de tal modo profundo on-tologicamente que deveria ser capaz de poder transcender todas asformas regionais de ideologia ou de “religião”, que a bioética deve-ria instalar-se, a fim, não de se constituir em e como mais um ins-

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trumento de poder oligárquico ou tirânico, mas de contribuir parao real bem de todos os homens, que seria, deste modo, necessáriobem-comum, sem alternativa possível que não a tirânica. Para tal,teria de se constituir numa teoria geral do bem de todos os homens,indiscernível necessariamente de uma teoria do amor.

Adiantam-se mais algumas considerações acerca dos funda-mentos epistemológicos do referido tentame de disciplina. Comojá foi possível estabelecer, pouco do que à bioética diz respeitoreleva do campo de uma ética, sendo que o que se procura estabele-cer pertence, antes, ao domínio do político, isto é, da relação entre oser humano e algo que o transcende enquanto pura individualidadeética. Mesmo a possível definição como eventual nova ética mé-dica, ou, mais genericamente, de saúde aplicada implica imediatae logicamente a sua fundamental matriz política, pois, como é ób-vio, esta aplicação não é um mero e exclusivo retorno activo dosujeito ético sobre si mesmo. Deste modo, todas as questões fun-damentais de uma «bioética», como definida pelos seus fundadorese habituais cultores, são, não do âmbito de uma ética, mas de umapolítica e é assim que devem ser pensadas. É exactamente porquenão é do domínio de uma ética fundamental, isto é, de uma ontolo-gia do acto próprio interior do homem, que a bioética é tão frágil,sempre navegando nas águas baixas de uma política não ontologi-camente fundada – precisamente porque não fez o trabalho onto-antropológico fundamental – e por entre os escolhos da necessá-ria relatividade etnológica que uma política sem bases ontológicasimplica, sem possibilidade de saber o que seja um necessário bemcomum, pois não pode saber o que é o bem ontológico de cada ho-mem, que cada homem tem em comum com todos os outros, únicohorizonte ontológico, antropológico, ético e político sobre o qualse pode estabelecer, com um mínimo e um possível máximo (teo-ricamente paradigmático e ideal, mas não utópico), uma teoria deprincípios políticos gerais acerca da acção no âmbito das dimen-sões biológicas da vida humana e não só humana, dimensões que

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integram um todo ontológico mais vasto, que não aceita qualquerforma de reducionismo, sob pena de mortificar a mesma realidadehumana fundamentalmente em causa.

A necessária aplicabilidade e aplicação transcendente à pes-soa do sujeito ético em causa na acção em campo «bioético» fazcom que todo o trabalho de uma «bioética» tenha como finalidadenão um domínio ético, mas político: a acção no domínio da «bi-oética» visa fundamentalmente não o meu crescimento como enti-dade ética pessoal, mas o bem de outrem ou de ambos e é apenaspor meio da realização transcendente desse bem que o meu própriobem ético se pode realizar, numa como que corrente política de re-torno, em que o bem que fiz a um terceiro ente recai sobre mim,como imediata e directa compensação desse mesmo acto de bem.Pela negativa, o esquema aplica-se também ao mal politicamentetranscendido desde mim: o mal feito a um terceiro recai sobre mimexactamente como o bem; as consequências do mal ou do bem feitoa terceiros não se esgotam politicamente neles, mas, politicamente,recaem sobre mim, em meu íntimo foro ético e ontológico, comoseu autor. Mas também ontologicamente: o bem ou o mal que fizsão parte de meu acto – eu sou o bem que fiz, mas sou também omal que fiz, pelo menos até ao terreno fim de meus dias.

Assim, do ponto de vista ético, a primeira conclusão a tirar,quer em bioética quer em qualquer outro domínio da acção do ho-mem, é que todos os actos que eu fizer constituem-me ontologica-mente para o sempre de meu acto, independentemente do possívelhorizonte último que este acto tiver. Nada ou ninguém pode des-fazer em absoluto o que eu fiz: se salvei uma vida, salvei-a atéao fim de minha existência, qualquer que esta seja; se massacreialguém, massacrei esse mesmo alguém até ao fim de minha exis-tência, qualquer que seja esta. Ontologicamente, esta evidência éabsolutamente incontrovertível e de nada servem desculpas ou pa-naceias artificiosas: os actos, que são o material ontológico de quea minha dimensão ética pessoal é feita, constituem-me e nada pode

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fazer com que deixem de me constituir, sob pena de, elidido umqualquer acto, bom ou mau, o meu ser colapse no nada, pois ape-nas por meio do trânsito ontológico de acto para acto o meu ser sepode constituir como realidade ontológica contínua, continuidadesem a qual, seja ela qual for – e ninguém sabe o que é e como é –,a minha manutenção no ser é simplesmente impossível. Como e-xemplo, como agente de saúde, o paciente que salvei, salvei-o parasempre, independentemente do que lhe possa vir a acontecer poste-riormente, e do modo como entendo este «para sempre», que podeser finito ou infinito. Mas o mal que fiz a um qualquer paciente ficacom ele e comigo para um mesmo «sempre», de modo semelhanteao bem, só que negativamente, mas de modo também absoluto,dado que, positivamente, a cada acto de bem feito corresponde umabsoluto ontológico realizado (a mesma definição de bem), mas,negativamente, a cada acto de bem possível não realizado (mal)corresponde o absoluto negativo da ausência real desse mesmo bemrealizado. Mas os cuidados a ter com o mal são obviamente muitomais dramática ou tragicamente importantes porque, por exemplo,se sei que o paciente qualquer que salvei vai, mais tarde ou maiscedo morrer, também sei que o ente humano que abortei não vai po-der viver, mais cedo ou mais tarde. E tudo isto vale por si mesmo,independentemente de quaisquer colateralidades etiológicas ou ou-tras quaisquer justificativas ou pseudo-justificativas.

É esta a dimensão irredutível da ética e não há outra. É nestadimensão que todos os actos de qualquer homem nascem e é apartir dela que se pode dar a transcensão política para o forum dainter-relacionalidade com os outros seres humanos. Sem esta fun-damental dimensão ontológica e ética, pura e simplesmente não háqualquer acção humana possível. Sem esta dimensão ontológica, aantropologia, em qualquer das suas dimensões, doutrinas ou esco-las, configura apenas uma qualquer mecânica imprópria para sereshumanos, mas boa para autómatos materiais com figura humana,no entanto, já não essencial e substancialmente humanos. Ora, pa-

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rece ser precisamente para este modelo degradado de humanidadeque se encaminham epistemologicamente muitas ciências contem-porâneas, perspectivando o homem não como uma entidade funda-mentalmente semântica, mas como uma mera entidade mecânicaou mecânico-biológica, regida pelas mesmíssimas padronizaçõesestatísticas do restante da variedade material do universo.

Se for este o modelo a ter em consideração, modelo de umahumanidade reduzida a apenas mais um fenómeno – se mais oumenos complexo é fundamentalmente indiferente – puramente ma-terial, então uma disciplina como a actual bioética faz todo o sen-tido. Mas, se a humanidade for entendida como algo de diferentede apenas mais uma manifestação exclusivamente material, em queo sentido próprio haurido no seio da experiência de sua inteligên-cia não possa ser reduzido a uma mera excreção material, entãoreclama-se, não uma bioética, também mecânica, de mecânicos“princípios”, sempre deontológicos e nada mais, mas uma éticada acção para a vida que respeite fundamentalmente o carácterirredutível não apenas da entidade humana, mas, a partir da infi-nitizável inteligência desta e seu sentido haurido, que respeite ocarácter – por esta mesma inteligência percebido – de irredutibi-lidade de toda e qualquer entidade, num mundo em que nada é oupode ser igual, mas em que, sendo todos os entes diferentes e todoscontribuindo para a existência verdadeiramente solidária de todose do todo, todos os entes merecem o respeito que lhes é devido,cada um em seu lugar ontológico próprio, numa economia da re-lação que, ainda que tenha de permitir o uso das entidades, nuncapode consentir o seu abuso. Se a chamada «bioética» quer ser algoque tenha um mínimo de dignidade como ética, tem de evoluir nosentido de se tornar uma teoria da acção interior do homem, préviaa toda a “aplicação”, anterior à transcendência política de acto que,nascendo no interior semântico do homem, tem a faculdade de mo-dificar a ontologia própria de outros entes, para o bem ou para omal, não apenas do agente e do tópico, ocasional paciente, mas de

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todo o universo, próximo e longínquo, num realíssimo ecossistemageral, que é muito mais do que biológico: é universal, englobandoética, política, biologia (que inclui física, química e todas as suasdimensões ancilares).

Requer-se, pois, um trabalho em que se forme a interioridadeprópria dos seres humanos de modo a tornar cada homem fonteautónoma de inteligência própria, isto é, pessoa, capaz de visãoanalítica, mas concomitante e necessariamente sintética, capaz deponderação ética, mas ontologicamente alicerçada, sempre no res-peito pelo único princípio objectivo que é verdadeiramente univer-sal, o do bem comum, isto é, do maior bem possível, objectiva-mente, para todos os entes presentes em determinado momento daexistência de cada homem, que engloba necessariamente em si aexistência de todos aqueles que com ele estão presentes ao ser.

Não é tarefa fácil esta. É muito mais difícil do que possuir umaqualquer tabela de regras heterónomas de comportamento político:estas últimas evitam todo o trabalho de pensamento necessário paraa tomada de decisão, boa decisão, aquando do momento em que háque decidir. É muito mais fácil, do ponto de vista psicológico e so-ciológico, viver heteronomamente, apenas aplicando tabelas pro-tocolares de princípios determinados por outros quaisquer: o pesodo trabalho de deliberação e o peso ontológico da decisão tomadacomo que magicamente desaparecem e o homem sente-se muitomais leve na sua condição de instrumento de forças que o ultra-passam e a que se entrega de forma cega. Mas este homem já nãoé verdadeiramente um homem, apenas uma peça biológica numamáquina social que se limita a servir-se dele, precisamente comopeça biológica, enquanto esta for necessária, enquanto não encon-trar, para o exercício das mesmas funções mecânicas, uma peçajá não biológica, mas apenas meramente mecânica, que cumpra arespectiva tarefa de uma forma ainda melhor, pois, então, não en-cerrará qualquer perigo de poder vir a ser, ainda, instância crítica.E o homem, este homem, torna-se perfeitamente dispensável, o que

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é perfeitamente lógico e normal, neste esquema em que os homensjá não são homens-pessoas, mas simples homens-máquina, quandomuito homens-cidadão.

Foi no sentido da produção não já de pessoas peritas em cui-dados de saúde: médicos, enfermeiros, socorristas, técnicos auxi-liares vários, mas meros «técnicos de saúde», mecânicos biológi-cos à imagem dos mecânicos de coisas não biológicas como, porexemplo, de automóveis, que a bioética evoluiu: em vez de pro-curar formar pessoas para uma capacidade pessoal de judicaçãoacerca da acção a seguir, sempre no sentido do bem comum, procu-rou formas de reduzir esta mesma capacidade de julgamento autó-nomo, refugiando-se na produção de protocolos, bons tanto parahomens como para máquinas. O mesmo protocolo deontológicoque serve para a mecânica da decisão humana pode servir, postoem código binário, para programar máquinas sanitárias que sejamimpecáveis do ponto de vista bioético: deixando viver segundo oregulamento protocolar, deixando morrer ou matando segundo omesmo protocolo. Livra-se, assim, deste modo, a humaníssimahumanidade das angústias não mecanicamente redutíveis das deci-sões, ficando estas para as máquinas, que teriam apenas que pro-curar os parâmentros paradigmatizados protocolarmente, execu-tando, obviamente sem pensar, as consequências também proto-colarmente previstas. Ninguém, sobretudo depois de os inventoresdeste esquema terem morrido, ficará com quaisquer “problemas deconsciência”.

Tudo o que acabou de ser dito não é uma qualquer anedota iró-nica, sendo perfeitamente possível, já hoje. Este esquema, que fariaas delícias dos assassinos do Terceiro Reich de Hitler ou dos assas-sinos dos Gulags de Estaline, é hoje perfeitamente exequível e, seaqui o lembramos, é apenas porque representa o último estádio da-quilo para que a bioética se encaminha ao querer transformar-senuma disciplina de doutrina protocolar acerca de princípios mecâ-nicos para lidar com questões éticas e políticas, que nunca podem

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obedecer a meros protocolos redutores, venham eles de onde vie-rem, tenham eles a legitimidade jurídica que tiverem: lembremo-nos de que, no caso de Hitler, as suas ideias fundamentais, de quenunca se afastou, receberam um chamado «mandato democrático».Tal carta de apresentação é bastante para infirmar qualquer preten-são de necessária bondade por parte de qualquer norma que tenhaum mesmo fundamento jurídico de validação de bondade intrín-seca. Uma vez basta para qualquer pessoa inteligente perceber ovalor que determinados mecanismos de validação superficial dasdoutrinas possuem.

Tendo em conta tudo o que foi previamente afirmado, apenasuma bioética que se queira constituir como teoria fundamental dobem comum do homem, tendo que ter em fundamental conside-ração a ontologia própria da antropologia humana e da necessáriaacção para o serviço desse bem comum no âmbito da vida, podetornar-se algo mais do que um novo instrumento intelectual ao ser-viço de tiranias e oligarquias várias, papel que a bioética existentevai cumprindo. A bioética ou visa o bem comum do homem, istoé, da humanidade como um todo, aquela que está em acto em cadainstante presente no mundo político, mas também e talvez sobre-tudo aquela que é possível vir a estar, ou visa o bem de um qual-quer tirano ou de um grupo alargado de potenciais tiranos ou deuma qualquer oligarquia.

Não há outro modo possível para o desenvolvimento de umabioética respeitadora do bem comum senão o trabalho no sentidoda definição do que é o ser do homem, acompanhando este traba-lho com um enorme esforço pedagógico no sentido do desenvolvi-mento das virtudes para o bem comum, únicas capazes de promo-ver este mesmo bem comum. Falamos das vetustas virtudes car-deais, sem o uso das quais o homem mais não é do que um vorazente de destruição dos outros em benefício próprio, quer seja umtirano à maneira obviamente egoísta de um Giges quer à maneiranão tão obviamente egoísta, mas que o é também, de um Midas:

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em ambos os casos, é a humanidade que sempre desaparece: e éno segundo caso que o desenlace é verdadeiramente trágico, pois,não há como fazer reviver em carne humana todo aquele materiale estúpido ouro. A bioética que por aí anda parece oscilar estra-tegicamente entre a desumanização semântica do mundo de Gigese a desumanização material do mundo de Midas. Requere-se umabioética que seja capaz de uma humanização da vital ontologia dohomem, que tenha como meta algo como uma qualquer «cidade deDeus», em que os homens vivam não por mesquinhos interesses,mas pela vontade do bem de todos, definição mesma do amor. A bi-oética ou se converte a um sentido de amor recíproco, com todas asconsequências que tal amor acarreta, transformando-se numa ver-dadeira teoria da amizade na e para a vida, ou mais não fará do quecontribuir para a aceleração da morte do homem como homem.

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