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BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E SUA RELAÇÃO COM A CONSTRUÇÃO DO
BIODIREITO BRASILEIRO, NA PÓS-MODERNIDADE, A PARTIR DE UMA
PESQUISA DOCUMENTAL
Frederico Andrade Brant1
RESUMO: O presente trabalho aborda os recentes avanços tecnológicos e o crescente progresso científico, como responsáveis por inúmeras transformações nas diversas áreas do conhecimento humano, sobretudo, nas pesquisas da saúde. Enumera suas implicações sociais, ambientais, éticas e jurídicas, seus benefícios e malefícios. Para tanto, identifica as fases de desenvolvimento histórico da bioética, desenvolve uma reflexão sobre sua teorização, sistematiza seus princípios, tece considerações sobre a história e teoria dos direitos humanos e descreve sua atuação no cenário nacional. Introduz a disciplina jurídica do biodireito, seus conceitos e aplicação, reflete sobre seu caráter transdisciplinar e analisa a lei de biossegurança. Assim, tem-se que seu objetivo geral caracteriza-se por verificar quais as contribuições da bioética e dos direitos humanos para a formação do biodireito brasileiro, na pós-modernidade. O presente estudo, caracterizado por uma pesquisa qualitativa, bibliográfica e eminentemente documental, obteve como resultados a constatação de que o biodireito brasileiro é uma derivação jurídica da bioética e que a Constituição Federal de 1988 decorreu diretamente dos princípios descritos nas declarações internacionais de direitos humanos, que embasaram as normas jurídicas de proteção à vida, delineadas no biodireito. Observou-se também a indissociável relação entre a tríade de disciplinas mencionadas, como balizadoras dos aspectos decorrentes da experimentação científica. Palavras-chave: Bioética; Direitos Humanos; Biodireito; Contribuições; Biodireito brasileiro.
1 INTRODUÇÃO
Os avanços científicos surgidos na pós-modernidade são responsáveis por inúmeras
transformações em todas as áreas do conhecimento humano, gerando novos valores e
perspectivas que refletem diretamente no seio social, sobretudo nas áreas econômicas,
políticas e também no meio ambiente.
Em virtude desses avanços, diversas foram as conquistas alcançadas pela ciência,
sobretudo nas áreas da saúde, as quais trouxeram novas técnicas, no auxílio da humanidade,
como a fertilização in vitro, a criação de novos medicamentos para erradicar as enfermidades 1Mestre em Tecnologia, Ambiente e Sociedade pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM, Especialista em Docência no Ensino Superior pela Faculdade Venda Nova do Imigrante, Docente dos cursos de Direito e Administração da Faculdade Mato Grosso do Sul –FACSUL, e-mail:[email protected].
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ou melhorar a qualidade de vida das pessoas, o uso de vídeo em cirurgias, o raio X, a
radioterapia, as tomografias e tantas outras inovações que antes pareciam ser inconcebíveis.
Entretanto, o que de início parecia ser um bem inegável a todos, como o decorrer dos
anos revelou outras facetas, onde os problemas advindos da tecnologia se anunciaram de
imediato: a engenharia ou desenho de embriões, a intervenção na reprodução humana, a busca
de aperfeiçoamento de características humanas e eugenia, a discriminação de base genética, o
patenteamento de genes, injustiça na distribuição de recursos pela exclusão econômica de
usuários de possíveis produtos de pesquisa, a ameaça da privacidade individual e a violação
da confidencialidade de informações genéticas.
Em decorrência dos aspectos negativos do avanço tecnológico nas ciências médicas e
os impactos sociais deles decorrentes, surgiu a necessidade de se atender a princípios éticos
para garantir a dignidade da pessoa humana, resguardar a vida, a integridade física e os
direitos fundamentais das pessoas.
Tendo como fundamental essa compreensão, surge nesse meio a bioética, para
disciplinar e regulamentar a defesa da vida no campo da moral, resguardando todos os seres
vivos de qualquer ameaça, potencial ou real, para introduzir a questão ética no âmbito da vida
e questionar os avanços biotecnológicos, com vistas a proteger a biodiversidade, em particular
o homem e sua descendência.
A convicção de que todos os homens têm o direito a ser respeitados pelo simples fato
de sua humanidade é também a idéia central dos direitos humanos, que tem como objetivo
resguardar os valores absolutos da pessoa humana, como a liberdade, igualdade, a
fraternidade e a dignidade, possibilitando as necessidades materiais e espirituais de todos.
No entanto, nenhuma proteção pode se efetivar substancialmente se não vier
acompanhada por mecanismos jurídicos apropriados. Somente inserindo-se no processo de
elaboração de leis a dimensão da ética e dos direitos humanos é que a ordem jurídica poderá
atender as necessidades sociais.
Surge, deste modo, a nova disciplina do biodireito, ramo do direito público que tem a
vida como objeto principal de proteção. Assim, essa área do saber jurídico tem como base a
inter-relação com as diversas áreas do conhecimento para condicionar e direcionar os avanços
propostos pela biociência.
Ao refletir sobre alguns problemas que envolvem a humanidade, despontam-se nesse
meio assuntos de extrema relevância no âmbito das pesquisas relacionadas às ciências
biológicas e médicas. As múltiplas definições e abordagens que tem recebido a bioética, os
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direitos humanos e o próprio biodireito demonstram os dilemas a que estão sujeitos os
profissionais das diversas áreas de atuação, justificando a realização de trabalhos científicos
envolvendo a experimentação da biotecnologia, para verificar suas implicações sociais e
ambientais. A estreita vinculação do âmbito da bioética e de sua regulação normativa com a
idéia de direitos humanos faz-se tão importante, vez que tal categoria de direitos diz das
exigências mais fundamentais de todos.
No que pertine à metodologia, tem-se que o presente trabalho representa um estudo de
caráter qualitativo, com metodologia eminentemente bibliográfica e documental, com
intenção de refletir sobre a produção científica nas áreas do Direito, Ética, Biotecnologia e
Ciências da Saúde.
Seguindo a direção proposta por essas considerações preliminares, o presente trabalho
desenvolve, a partir deste ponto, o seguinte problema de pesquisa: quais as contribuições da
bioética e dos direitos humanos para a formação do biodireito brasileiro, na pós-modernidade?
2 BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA BIOÉTICA
No mundo atual, o homem continua a desfrutar de descobertas, estudos e inovações
tecnológicas que continuadamente a ciência lhe proporciona, acreditando no seu potencial
benéfico, investindo no seu fomento, aceitando-a como dogma de seu tempo.
A fundação das leis gerais da hereditariedade, a descoberta do modo de transmissão
dos cromossomos, a demonstração da estrutura molecular do DNA por Rosalind Franklin na
década de 50 e a manipulação dos genes representam pontos de transformação em torno das
ciências da vida, mais precisamente na Medicina e Biologia, ao longo dos anos.
Tais descobertas apontam para o Projeto Genoma Humano, que se caracterizou pelo
mapeamento e sequenciamento do conjunto de genes dos seres humanos, visando a
determinação de doenças de etiologia genética, com o consequente desenvolvimento de
terapias e tratamentos específicos na busca de uma redução da incidência das mesmas.
Em alusão à experimentação com células humanas, Corrêa (2002, p. 278) afirmou que:
a genética e os desdobramentos do Projeto Genoma Humano, em termos de pesquisas ou de produtos, vêm sendo construídos como um dos principais campos de inovações biotecnológicas. A possibilidade de incorporação dessas inovações pela medicina representaria um salto de qualidade: com a genética teríamos uma busca mais profunda das causas de doenças, testes de diagnósticos mais específicos, terapêuticas mais eficazes, enfim mais e mais.
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As referidas pesquisas científicas desencadearam questionamentos de cunho social,
legal, político, ético e econômico, gerando discussões acerca da definição de seus limites
teóricos, objetivos, linhas de trabalho e ação. Desta forma, diante das novas possibilidades de
pensar a ciência e o próprio futuro da espécie humana, surgiu a bioética.
Em 1970, o bioquímico norte-americano Van Rensselaer Potter cunhou a palavra
bioethics, utilizando-a em um artigo de sua autoria, Bioethics: science of survival, publicado
no periódico Perspectives in Biology and Medicine, da Johns Hopkins University Press, nos
Estados Unidos. No ano seguinte, esse estudioso divulgou seu segundo trabalho, sob o título
de Bioethics: bridge to the future. Os referidos estudos apresentaram a bioética como ponte
entre a biologia e a ética, visando à preservação da espécie humana, por uma sociedade mais
decente e sustentável (PESSINI, 2013).
Sob outra perspectiva, André Hellegers, obstetra de origem holandesa, utilizou o termo
“bioética” numa concepção internalista, voltada para ética médica, especificamente para as
descobertas recentes no campo da reprodução humana.
Nesse sentido, Goldim (2006, p. 86), em sua publicação Bioética: origens e
complexidade, afirmou que:
a bioética teve uma outra origem paralela em língua inglesa. No mesmo ano de 1970, André Hellegers utilizou esse termo para denominar os novos estudos que estavam sendo propostos na área de reprodução humana, ao criar o Instituto Kennedy de Ética, então denominado de Joseph P. and Rose F. Kennedy Institute of Ethics.
Assim, de um lado Potter elevou a relação entre o homem e seu meio, na busca pela
sobrevivência. Por seu turno, Hellegers se preocupou com a investigação científica e
assistência médica na reprodução humana. Essa dualidade de pensamento contribuiu para a
formação da macrobioética, voltada para a concepção de Potter, considerada numa esfera
ampla (ecológica) e permitiu também o surgimento da microbioética de Hellegers, cujos
estudos foram baseados na bioética clínica, na relação médico-paciente.
Recentemente, outros estudos apontaram para uma origem da bioética diferente das
acima analisadas, antecipando-se, assim, seu surgimento em 47 anos.
De acordo com Flórez (2011, p. 71), cronologicamente: el primer registro encontrado sobre la aparición del término bioética corresponde al año 1927 cuando Fritz Jhar, filósofo y educador alemán utilizo este término; él centró su atención em lo que se denominó “el imperativo bioético”, la expresión fue propuesta en el artículo Bio-ethik: Eine Umschau über die ethischen Beziehungen
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desmenschen zu Tierund Pflanzae (Bio-ética: uma panorámica sobre la relación ética del hombre con los animales y las plantas)2.
O conceito acima exposto foi veiculado em 1927, em um artigo intitulado “Bioética:
uma revisão do relacionamento ético dos humanos em relação aos animais e plantas”, na
Revista Kosmos, de autoria de Fritz Jhar, descoberta por seu neto Rolf Löther, professor da
Universidade de Humboldt, Alemanha e divulgada por Eve Marie Angel, da Universidade de
Tübingen, no mesmo país.
Sobre a referida publicação, verificou-se que:
o editorial da revista foi mencionado pela primeira vez pelo professor Dr. Rolf Löther, em 1997, numa palestra na Universidade de Humboldt, Berlim. Posteriormente a filósofa Eve-Marie Engel (Universidade de Tübingen, Alemanha), incluiu o termo bioética [Bio-Ethik] – segundo a concepção de Jahr – no dicionário de termos filosóficos e passa a divulgá-lo em suas exposições. Em 2002, num evento realizado em Porto Alegre, RS, pelo Instituto Goethe e o PPG em Filosofia da PUCRS, a Dr.ª Eve-Marie Engel falou sobre o artigo de Fritz Jahr, de 1927. A partir desta data, inicialmente através do Prof. Dr. José Roberto Goldim (PUCRS, UFRGS), o imperativo bioético de Fritz Jahr começou a fazer parte das exposições e conteúdo da bioética (HOSS, 2003, p. 13).
Ao analisar os conhecimentos científicos e filosóficos de sua época, Fritz Jhar
redefiniu as obrigações morais com todas as formas de vida humana e inanimadas, incluindo-
se as plantas, ampliando o conceito de bioética como disciplina acadêmica, virtude, cultura e
moral. A consequência do referido estudo foi a equiparação dos métodos de pesquisa entre
seres humanos e animais, analisados em contextos e culturas diferentes.
Jhar (2011, p. 244) alegou que “por meio da biopsicologia começa-se a construir
elementos para a bioética, como, por exemplo, a assunção de obrigações morais frente a seres
humanos e todas as formas de vida”.
Uma vez analisada e discutida a origem da bioética, abordam-se, a seguir, os
acontecimentos históricos que contribuíram para o seu surgimento, impondo a necessidade de
um controle ético nas pesquisas e nas aplicações de procedimento médicos, na defesa da
pessoa humana, frente aos avanços da ciência.
Uma vez analisada e discutida a origem da bioética, abordam-se, a seguir, seus
princípios basilares, que dispõem regras de cunho moral para o controle ético nas pesquisas e
2 Tradução nossa: o primeiro registro encontrado sobre o surgimento do termo bioética corresponde ao ano de 1927, quando Fritz Jhar, filósofo alemão e educador utilizou a expressão; o centro de sua atenção ao que se denominou “imperativo bioético”, que foi proposto no artigo Bio-ethik: Eine Umschau über die ethischen Beziehungen desmenschen zu Tierund Pflanzae (Bio-ética: uma visão geral da relação ética do homem com animais e plantas).
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nas aplicações de procedimento médicos, na defesa da pessoa humana, frente aos avanços da
ciência.
2.1 PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA
A partir da publicação do livro Principles of Biomedical Ethics, de autoria do filósofo
Tom Beauchamp e o teólogo James Childress em 1979, a bioética consolidou sua força
teórica. A obra mencionada foi o primeiro passo para instrumentalizar os dilemas
relacionados às opções morais das pessoas no campo da saúde. O pluralismo de valores e a
virtude da tolerância frente à diversidade cultural foram indicadores para criação de critérios
de referência nas experimentações com seres humanos, em virtude do desenvolvimento
tecnológico.
A importância dessa obra para a bioética foi descrita por Neves e Osswald (2007, p.
84) quando afirmaram que:
Principles of Biomedical Ethics3 é o primeiro livro de teorização dos princípios reguladores da ação no âmbito da biomedicina, já não restrita ao âmbito da experimentação, mas antes centrada no da relação assistencial e abrindo-se amplamente às políticas de saúde. É a obra que inaugura efetivamente o desígnio de teorização da bioética pelo nível de desenvolvimento e de sistematização que evidencia, pela sua solidez filosófica, e também pela apresentação de uma metodologia decorrente da teoria e que os autores colocam em prática na análise e resolução de uma diversidade de problemas concretos ilustrativos. Trata-se de uma teoria simples de compreender e fácil de aplicar – fatores que ainda hoje justificam o sucesso ímpar desta obra no domínio da bioética.
É relevante destacar que o modelo ético principialista de abordagem teórica foi o
precursor dos demais existentes e não serão discutidos neste trabalho, de maneira que se
limita aqui a discorrer somente os princípios de Beauchamp e Childress, face seu pioneirismo
na teorização da bioética.
Assim, o primeiro princípio que compõe a bioética é o da autonomia, que sugere a
liberdade de escolha das pessoas nos procedimentos médicos nos quais serão submetidos,
como pré-requisito para o exercício das moralidades, resguardando-se as liberdades e
garantias individuais.
De acordo com Diniz e Guilherm (2002, p. 28-29), o referido princípio:
[...] é o que maior peso assumiu na bioética desde então, e sugere que o pré-requisito para o exercício das moralidades é a existência de uma pessoa autônoma. [...] Para o exercício da autonomia é necessário que o indivíduo seja autônomo; o princípio
3 Tradução nossa: Princípios da Ética Biomédica
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aponta para dois valores considerados fundamentais no pensamento liberal, especialmente o de inspiração estadunidense: a competência e a liberdade individuais.
Já o princípio da beneficência, segundo preceito decorrente da obra de Beauchamp e
Childress é o que estabelece a obrigação de fazer o bem aos outros e determina que os
procedimentos médicos devam ser realizados somente para o bem do paciente, ou seja, não é
permitido causar nenhum dano intencional ao paciente, devendo-se maximizar os benefícios e
aliviar sofrimentos. Este comando moral relaciona-se ao dever de ajudar os outros, de fazer ou
promover o bem a favor de seus interesses, através do reconhecimento moral das pessoas,
onde o profissional de saúde compromete-se a avaliar os riscos e os benefícios individuais e
coletivos.
Sobre o referido princípio, Schaefer (2008, p. 39) afirmou que o mesmo:
explica-se na atitude positiva de assistir o paciente ou pesquisado, incluindo-se o dever de impedir ou remover possíveis danos e de promover benefícios e qualidade de vida presente ou futura. Trata-se, numa visão naturalista, de promover benefícios, ponderando-os frente aos riscos da ação ou omissão médica ou científica, ou seja, maximizar benefícios e minimizar danos. É considerado delimitador de padrões de conduta, com o fim primário da Medicina, cuja necessidade é de efetivamente de fazer o bem e não apenas desejá-lo. Está baseado na regra da confiabilidade em seu médico, [...] levando-se em consideração o bem do indivíduo prioritariamente.
O terceiro princípio bioético que aqui se analisa é o da não maleficência. Considerado
preceito hipocrático de caráter negativo, consiste na abstenção de uma ação. Determina,
portanto, a obrigação de não conferir dano intencionalmente, onde o médico deve abster-se de
prejudicar e fazer mal a seu paciente.
De acordo com Diniz (2009), o princípio da não maleficência, consectário do da
beneficência, consiste na obrigação de não acarretar dano intencional e deriva da máxima da
ética médica primum non nocere4.
O último princípio bioético delineado por Beauchamp e Childress, o da justiça, se
refere à igualdade de tratamento e à justa distribuição de verbas do Estado para a saúde e
pesquisa. A este princípio acrescenta-se a definição de equidade, ou seja, dar a cada pessoa o
que lhe é devido segundo suas necessidades. A perspectiva aqui observada é a da justiça
distributiva, ou seja, distribuição equitativa de ônus e bônus decorrentes da experimentação
científica, de maneira que implica na justa e igualitária distribuição dos encargos e vantagens
nas pesquisas e experimentos da prática médica.
4 Tradução nossa: antes de tudo, não prejudicar
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Sobre o preceito acima mencionado, Brauner (2003, p. 159) afirmou que “a justiça
seria o princípio que garante a todos a distribuição justa, equitativa e universal dos benefícios
da ciência, oferecida amplamente pelos serviços de saúde”.
Os princípios bioéticos foram caracterizados como guias gerais de ação, desenvolvidos
para solucionar dilemas morais de cunho médico e fundamentaram a bioética segundo uma
concepção pluralista visto que, como instrumentos práticos, analisam os conflitos surgidos na
experimentação científica na área da saúde.
Após a análise de alguns aspectos dos princípios da bioética e considerações sobre os
mesmos, o trabalho aborda, a seguir, a bioética no cenário nacional.
2.2 A BIOÉTICA NO BRASIL
O progresso científico mundial foi caracterizado pela rápida evolução de técnicas e
procedimentos de estudo na experimentação humana, de maneira que inúmeras pesquisas
despontaram no cenário internacional, no campo da bioética. Com o advento da biotecnologia
moderna, os avanços dela decorrentes criaram um cenário de incertezas morais,
potencializadas pela globalização, de modo que a sociedade passou a exigir respostas em
virtude das profundas e significativas modificações ocorridas.
A bioética brasileira, por sua vez, ao contrário do desenvolvimento científico mundial,
deu-se tardiamente, na década de 1990, de forma fracionada, através de diferentes
acontecimentos históricos que contribuíram para sua formação, sob forte influência dos
princípios estadunidenses de Beauchamp e Chidress.
De acordo com Garrafa (2000, p. 171), a bioética brasileira é:
tardia, tendo surgido de forma orgânica somente nos anos 90. Atualmente, algumas poucas iniciativas isoladas haviam acontecido, sem registros significativos. Não existe, por outro lado, um ponto de partida ou momento específico de referência histórica para o seu desenvolvimento. Pelo contrário, alguns episódios isolados foram acontecendo e ao mesmo tempo ocasionando repercussões positivas no sentido de divulgação e disseminação da disciplina. Nos seus primeiros anos de vida, [...] tomou como referência conceitual a chamada corrente principialista estadunidense. Na medida em que foram implantados grupos de pesquisa e núcleos de estudo nas universidades e em outras instituições, no entanto, este panorama começou a mudar. Embora a maioria dos centros que se dedicam à bioética ainda sigam basicamente a teoria dos quatro princípios [...].
A realidade brasileira foi particularmente construída sobre paradoxos sociais e
econômicos, que colocaram o Brasil como um dos países responsáveis por várias tecnologias
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e pesquisas modernas e ao mesmo tempo como nação que padece de inúmeros problemas de
natureza social, econômica e ambiental.
Esse foi o entendimento de Chagas e Andrade (2011, p. 210) ao afirmar que a
realidade nacional foi:
peculiarmente construída sobre paradoxos sociais e econômicos que colocam o Brasil como um dos países responsáveis por várias tecnologias e pesquisas “de ponta” e, ao mesmo tempo, sofre com problemas típicos da Idade Média, como doenças infecto-contagiosas transmitidas por parasitas, insetos e outros animais que proliferam graças às precárias condições de higiene e saneamento; problemas ambientais causados pelo mal aproveitamento de recursos naturais, contribuindo para uma situação de agravamento da miséria, entre outros.
A noção de direitos humanos, adotada pela bioética de intervenção brasileira, é
relevante para a humanidade, na medida em que permitiu o surgimento da necessidade de
garantir a todas as pessoas as mesmas prerrogativas, vedando-se qualquer espécie de restrição
em virtude de fatores sociais, econômicos, políticos ou religiosos, razão pela qual passou a ser
considerado elemento essencial à vida de grupos, pessoas e sociedades distintas.
Considerando a noção acima abordada, analisa-se, a partir da próxima seção, o
desenvolvimento histórico e a teorização dos direitos humanos.
3 DIREITOS HUMANOS
Na compreensão de que todas as pessoas são iguais, a importância dos direitos
humanos revela-se como reconhecimento universal que precisa ser resguardado a todo
cidadão, na garantia de um nível básico essencial de existência, através do reconhecimento
das liberdades fundamentais, no respeito à diversidade, na proteção dos vulneráveis e no
direito à justiça, educação, previdência e assistência social.
O acolhimento dos direitos humanos é resultado de um longo processo histórico que,
paulatinamente, promoveu sua afirmação e reconhecimento. Vários foram os documentos que
contribuíram para seu desenvolvimento até sua concretização como direito universal, desde a
sua justificativa através da concepção de pessoa humana até sua regulamentação por diversos
documentos internacionais, posteriormente ratificados pelos Estados.
Bobbio (1992, p. 2) já assinalou a importância de se tratar os direitos humanos como
construções históricas, que nasceram em determinadas circunstâncias e, por isso, não
surgiram “todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.
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Nesse sentido, é acolhendo tal perspectiva que se esboçará a trajetória histórica
empreendida pelos direitos humanos, a fim de captar as transformações ocorridas no âmbito
das declarações de direitos e suas inter-relações com mudanças no plano social ao longo dos
limites cronológicos apresentados.
Assim, o período compreendido entre 1728 e 1786 a. C. foi o marco histórico onde se
desenvolveu uma das primeiras e mais concretas manifestações de reconhecimento dos
direitos humanos: o Código de Hammurabi, outorgado pelo rei da Mesopotâmia, que
compendiou um conjunto escrito de leis, regulamentando direitos comuns a todos os homens,
tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade e a família.
De acordo com Kramer (1969, p. 53), o referido código, escrito durante o período do
reinado de Hammurabi, no período entre 1728 e 1786 a. C, proclamava que a Babilônia era
“soberana no mundo” e os alicerces de sua realeza eram “tão firmes quanto os do céu e da
terra”. Para o citado autor, de acordo com o Prólogo do referido compêndio de normas, os
deuses é que haviam instruído a fazer “justiça presente na terra, a destruir o mal e os maus, a
fim de que os fortes não pudessem oprimir os fracos”.
Já o segundo momento de afirmação histórica dos direitos humanos se deu na Idade
Média, entre os séculos XI e XII, período marcado pela limitação do poder dos governantes, o
que, posteriormente, veio a reconhecer a existência de direitos comuns a todos os indivíduos.
Diante deste quadro, ocorreram diversas manifestações, como as declarações da Corte de
Leão, em 1118, e a Magna Carta Libertathum inglesa de 1215, cujos objetivos eram garantir
liberdades ao clero e a nobreza.
Sobre o tema, asseverou Silva (2000, p. 185) que
foi, no entanto, no bojo da Idade Média que surgiram os antecedentes mais diretos das declarações de direitos. Para tanto contribuiu a teoria do direito natural que condicionou o aparecimento do principio das leis fundamentais do Reino limitadoras do poder do monarca, assim como o conjunto de princípios que se chamou humanismo. Aí floresceram os pactos, os forais e as cartas de franquias, outorgantes de proteção de direitos reflexamente individuais, embora diretamente grupais, estamentais, dentre os quais mencionam-se, por primeiro, os espanhóis: de Leon e Castela de 1188, pelo qual o Rei Afonso IX jurara sustentar a justiça e a paz do reino, articulando-se, em preceitos concretos, as garantias dos mais importantes direitos das pessoas, como a segurança, o domicílio, a propriedade, a atuação em juízo etc.; de Aragão, que continha reconhecimento de direitos, limitados aos nobres (1265); o de Viscaia (1526), reconhecendo privilégios, franquias e liberdades existentes ou que por tal acordo foram reconhecidos. O mais famoso desses documentos é a Magna Carta inglesa (1215-1225).
A partir do século XVII, verificou-se na Inglaterra profundos questionamentos às
tradições existentes, onde a Europa conheceu pela primeira vez o recrudescimento do poder,
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através da defesa das liberdades individuais, ainda que somente direcionadas ao clero e a
nobreza. A mudança da consciência européia fez ressurgir em seus limites geográficos o
sentimento de liberdade, reafirmando o valor da harmonia social. A partir do Bill of Rights5
britânico, a idéia de um governo representativo, ainda que não de todo o povo, mas apenas
dos estamentos superiores, firmou no cenário mundial a defesa das liberdades civis.
Já na Idade Contemporânea, ocorreu a consagração normativa dos direitos humanos
fundamentais, inicialmente em 04 de julho de 1776, com a independência dos Estados Unidos
da América, através de sua Declaração de Independência, considerada o primeiro documento
de dimensão internacional das liberdades e direitos fundamentais do ser humano, com o
objetivo de atingir toda a humanidade. Já em 26 de agosto de 1789, treze anos depois, durante
a Revolução Francesa, a Assembléia Nacional Constituinte Francesa promulgou a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, inspirada na Declaração de Independência dos Estados
Unidos, afirmando que todos os homens são livres e iguais em direitos.
Deste modo, de acordo com Silva e Castro (2011, p. 129-130): foi logo nos primeiros anos dessa era humana ocidental que ocorreu a consagração normativa dos direitos humanos ocidentais, quando em 26 de agosto de 1789, na França, durante Revolução Francesa (05 de maio de 1789 a 08 de novembro de 1799), a Assembléia Nacional Constituinte Francesa promulgou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, composta de dezessete artigos inspirados na Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 04 de julho de 1776. A Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 04 de julho de 1776, sendo considerada a primeira declaração de dimensão internacional, das liberdades e dos direitos fundamentais do ser humano, com o objetivo, desde seu nascimento, atingir toda a humanidade. [...] A Assembléia Nacional Constituinte Francesa, formada em 09 de julho de 1789, ou seja, logo no início da Revolução Francesa, aprovou no dia 26 de agosto de 1789 (voto definitivo em 02 de outubro do mesmo ano), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Se de um lado a declaração de direitos norte-americanas e a Declaração francesa de
1789 representaram a ascensão do indivíduo na história, de outro modo contribuíram para
reafirmar as discrepâncias sociais, marcadas pela luta de classes, fruto da sociedade capitalista
que se formava.
Nesse sentido, afirmou Comparato (2010, p. 65) que: o resultado dessa atomização social, como não poderia deixar de ser, foi a brutal pauperização das massas proletárias, já na primeira metade do século XIX. Ela acabou, afinal, por suscitar a indignação dos espíritos bem formados e provocar a indispensável organização da classe trabalhadora. A Constituição francesa de 1848, retomando o espírito de certas normas das Constituições de 1791 e 1793, reconheceu algumas exigências econômicas e sociais. Mas a plena afirmação desses novos direitos só veio a ocorrer no século XX, com a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. [...] Os direitos humanos de proteção aos trabalhadores são, portanto, fundamentalmente anticapitalistas, e, por isso mesmo,
5 Tradução nossa: Declaração de Direitos.
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só puderam prosperar a partir do momento histórico em que os donos do capital foram obrigados a se compor com os trabalhadores. Não é de admirar, assim, que a transformação radical das condições de produção no final do século XX, tornando cada vez mais dispensável a contribuição da força de trabalho e privilegiando o lucro especulativo, tenha enfraquecido gravemente o respeito a esses direitos em quase todo o mundo.
Depreende-se, portanto, que os direitos humanos de cunho econômico foram uma das
grandes conquistas dos movimentos sociais da primeira metade do século XX, visto que foi a
partir deles que se reconheceu, pela primeira vez, as mazelas sociais que assolavam a classe
trabalhadora. O grande impacto causado pela industrialização, aliado aos problemas sociais e
econômicos dela decorrentes e o fortalecimento dos movimentos socialistas resultaram no
surgimento de amplos movimentos de defesa da justiça social, como as Constituições de
Weimar e a mexicana .
Após o período armamentista da Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos que
eram regulamentados somente pelas normas internas dos países passaram a ser incorporados
progressivamente no plano internacional, a partir de 10 de dezembro de 1948, com o advento
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral das Nações
Unidas, onde a dignidade da pessoa humana passou a ser considerada como valor supremo. Se
as primeiras décadas do século XX foram momentos históricos de reconhecimento
constitucional dos direitos, em cada Estado, o que caracterizou sua evolução no pós-guerra foi
sua incorporação internacional.
De acordo com Dornelles (2004, p. 178-179)
a internacionalização das relações políticas e econômicas e o desenvolvimento dos princípios de direito internacional público levaram à valorização do tema dos direitos humanos também na esfera das relações entre os Estados, entre as nações e entre grupos e indivíduos na ordem internacional. É verdade, no entanto, que somente depois da Segunda Guerra Mundial é que a questão dos direitos humanos passou do tratamento nacional, através da ordem constitucional, para a esfera internacional, incorporando todos os povos. Assim, enquanto o século XIX e as primeiras décadas do XX foram os momentos do reconhecimento constitucional dos direitos, em cada Estado, o que caracterizou a evolução dos direitos humanos durante o século XX, principalmente no pós-guerra, foi a sua progressiva incorporação no plano internacional.
Após a breve exposição do desenvolvimento histórico dos direitos humanos, desde sua
incorporação interna nos Estados até sua internacionalização, considera-se importante
destacar de que maneira os mesmos ocorreram no Brasil.
3.1 OS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
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Com a aceitação da pessoa humana como sujeito de direito internacional, foram
criadas inúmeras possibilidades de proteção e defesa da liberdade, dignidade, solidariedade,
fraternidade e igualdade, através de acordos e tratados que tiveram como objetivo maior
resguardar os direitos considerados fundamentais do homem.
Conforme asseverou Dornelles (2004), a internacionalização das relações políticas e
econômicas, bem como o desenvolvimento dos princípios de direito internacional público
levaram à valorização do tema dos direitos humanos na esfera de relação entre os Estados,
entre as nações e entre os grupos e indivíduos também na ordem interna.
Assim, os referidos direitos passaram a ser reconhecidos e positivados na esfera
constitucional dos países, como ocorreu com o Brasil, com o advento da Constituição de
1988.
Em seus ensinamentos, Mazzuoli (2002) afirmou que a Constituição de 1988 foi o
marco fundamental para o processo de institucionalização dos direitos humanos no Brasil. De
acordo com o referido autor, o constitucionalismo contemporâneo, na tendência de igualar os
tratados de proteção dos direitos humanos às normas constitucionais, deu um grande passo
rumo à abertura do sistema jurídico brasileiro.
Com o mesmo entendimento, Leal (1997, p. 131) observou que a partir do
reconhecimento constitucional dos direitos humanos no Brasil, iniciou-se a concretização de
um Estado democrático de Direito. Para ele:
pode-se afirmar que, como referencial jurídico, a Carta de 1988 alargou significativamente a abrangência dos direitos e garantias fundamentais e, desde seu preâmbulo, prevê a edificação de um Estado Democrático de Direito no país, com o objetivo de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
O referido texto constitucional de 1988 trouxe ao Brasil um avanço legislativo de
consolidação dos direitos humanos. A Constituição cidadã, como ficou conhecida, elencou
um rol de direitos sociais e civis que foram consideradas invioláveis até mesmo pelo
legislador, possuindo o atributo de intangibilidade.
Afirma-se, também, que a Constituição brasileira de 1988 trouxe de fato uma melhoria
considerável na proteção dos direitos humanos no cenário nacional. Entretanto, no que diz
respeito à sua real efetivação, considera-se não existir no Estado brasileiro uma política de
internacionalização destas prerrogativas, conforme se verifica na Europa há alguns anos.
Nessa perspectiva, Piovesan (2007) afirmou que, apesar do esforço de atuação do
Poder Judiciário e dos demais poderes em relação à efetivação dos direitos humanos no
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Brasil, ainda não existe aqui uma política de internacionalização destes direitos, algo que, de
acordo com Lima (2010), ocorre no continente europeu há mais de 50 anos, através da
Convenção Européia de Direitos Humanos e a jurisprudência da Corte Européia dos Direitos
Humanos.
Desta maneira, a discrepância entre a efetividade dos direitos humanos na Europa e
Brasil, conforme se mencionou, permite concluir que, em virtude de ser recente a
internacionalização de tais prerrogativas, muito ainda deverá ser feito para que se reconheça,
no plano internacional, os direitos fundamentais consagrados no texto constitucional.
Essa discrepância somente será reduzida a partir do momento em que a sociedade
brasileira e suas autoridades reconhecerem efetivamente o direito internacional dos direitos
humanos, através de políticas públicas e medidas governamentais para resguardar os bens
mais preciosos do homem previstos em lei.
O próximo objetivo específico do presente trabalho é refletir sobre o biodireito e,
posteriormente, discorrer sobre a contribuição da bioética e dos direitos humanos para sua
formação.
4 BIODIREITO
Apesar da relevante contribuição da bioética e dos direitos humanos para constituição
de princípios reguladores da experimentação científica no campo da saúde, verificou-se que
essas duas áreas do conhecimento atuam especificamente no âmbito da moral e, portanto, são
desprovidas de coercitividade para defender valores supremos como a vida e a dignidade do
homem, não se tornando suficiente para regulamentar o comportamento humano. Assim,
tornou-se necessário estabelecer um controle legal capaz de coagir aqueles que ultrapassam os
limites impostos ao mundo científico.
Deste modo, surgiu o biodireito, em consonância com ordenamento jurídico vigente,
sob a forma positivada, para regulamentar os procedimentos que possam afetar a vida e seus
atributos mais importantes.
A esfera do biodireito compreende, portanto, o caminhar sobre o tênue limite entre o
respeito às liberdades individuais e a coibição de abusos contra a espécie humana. Isso porque
não se poderia admitir que o Estado ficasse inerte diante do poder da ciência sobre o genótipo
do cidadão, do mercado genético, do desrespeito à dignidade humana, das práticas abusivas
das experiências científicas com seres humanos, da possibilidade de um manejo incorreto do
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Projeto Genoma Humano, dos danos advindos da alta tecnologia na terapêutica, da
possibilidade de patenteamento do ser humano e das discriminações causadas pela diagnose
genética, bem como na área securitária e trabalhista.
O biodireito emerge, desta maneira, como nova disciplina jurídica que visa
regulamentar, ainda que através de leis esparsas, mas específicas, as ações provenientes dos
avanços biotecnológicos que colocam em risco a vida, a dignidade humana e demais atributos
inerentes à pessoa.
No que diz respeito à ampliação de sua área de atuação, o biodireito, para Machado
(2008, p. 110), é descrito como “conjunto de normas que regulam a atividade científica e
tecnológica em interferência direta com a vida animal e vegetal do planeta, disciplinando seus
usos, seus limites e seus reflexos jurídicos na vida do ser humano”.
Considerando o caráter protecionista do biodireito, a disciplina se associa a diversas
áreas do saber para alcançar seu propósito de proteção da vida. Partindo-se da premissa que
esse novo ramo das ciências jurídicas tem como foco responder normativamente os dilemas
advindos do uso da tecnologia, o diálogo entre direito e outras especialidades é necessário, a
fim de se evitar o reducionismo no pensamento.
De acordo com Maluf (2010, p. 16), o biodireito: associa-se principalmente ao universo de cinco matérias: Bioética, Direito Civil, Direito Penal, Direito Ambiental e Direito Constitucional (à luz do art. 5º, inciso IX da Constituição Federal de 1988, que proclama a liberdade da atividade científica como um dos direitos fundamentais, sem contudo deixar de penalizar qualquer ato perigoso (imperícia) na relação médico-paciente e imperícia do cientista, levando em conta questões conflitantes como aborto, eutanásia, suicídio assistido, inseminação artificial, transplante de órgãos, OGM6 e clonagem terapêutica e cientifica).
Dado o exposto, o que se pretende nas próximas linhas é tecer uma reflexão em torno
da Lei 11.105/2005, a qual se relaciona intimamente com todas as abordagens desenvolvidas
neste trabalho, em especial com o biodireito.
4.1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEI DE BIOSSEGURANÇA
No dia 24 de março de 2005 entrou em vigor no território nacional a Lei 11.105/2005,
conhecida como Lei de Biossegurança, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do artigo
225 da Constituição Federal, estabelecendo normas de segurança e mecanismos de
fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados e seus
6Refere-se aos organismos geneticamente modificados, previstos na Lei 11.105 (Lei de Biossegurança).
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derivados. A citada lei criou o Conselho Nacional de Biossegurança, reestruturou a Comissão
Técnica Nacional de Biossegurança e tutelou sobre a Política Nacional de Biossegurança,
revogando a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de
agosto de 2001, e os artigos. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de
2003, conforme descrito em seu preâmbulo.
O intuito do legislador, ao promulgar essa nova lei, foi readequar as normas de
biossegurança, criando mecanismos de fiscalização sobre as condutas que envolvam os
organismos geneticamente modificados, visando o estabelecimento da proteção para o uso da
biotecnologia nos diversos experimentos realizados em laboratórios e nos testes de campo que
possam implicar risco biológico e situações indesejáveis para a saúde humana. Ampliou de
igual modo o rol das atividades abrangidas pela revogada Lei nº 8.974/1995, que não
regulamentava as atividades de produção, transferência, exportação, armazenamento e
pesquisa de organismos geneticamente modificados.
Percebe-se, entretanto, que apesar da criação dessa nova lei, o legislador regulamentou
os limites das pesquisas científicas através de breves e sintetizados artigos, conforme se infere
da leitura do texto legal, apenas dispondo em seu corpo situações pontuais, o que gera críticas
severas por parte dos doutrinadores e jurisconsultos.
Por fim, não é incorreto afirmar que, apesar da Lei de Biossegurança apresentar falhas
técnicas, de conteúdo e de carecer de maior regulamentação, apresentou um grande avanço
para o mundo jurídico brasileiro, na medida em que estabeleceu mecanismos de restrição ao
uso da ciência. Inspirado pelo positivismo jurídico, o biodireito, por meio da Lei 11.105/2005,
objetivou compreender o fenômeno jurídico empenhado na promoção da vida humana,
estendida aos animais e ao meio ambiente, o que caracterizou a pluridimensionalidade dessa
lei.
5 REFLEXÕES ACERCA DA FORMAÇÃO DO BIODIREITO BRASILEIRO A
PARTIR DA BIOÉTICA E DOS DIREITOS HUMANOS
As transformações da ciência possibilitaram a crítica e a construção de certos
conceitos fundamentais do direito, abrindo espaço à construção do biodireito, cuja finalidade
é regulamentar os limites da licitude do progresso científico, notadamente na biomedicina,
impondo sanções para seu descumprimento e se faz necessário na medida em que resguarda
os direitos fundamentais dos indivíduos, além dos elementos necessários para uma concepção
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de vida digna e tem como uma de suas fontes de inspiração as discussões propostas pela
bioética e seus princípios.
Outra fonte jurídica do biodireito é a própria Constituição da República Federativa do
Brasil, promulgada em 1988, considerada elemento maior do ordenamento jurídico do país.
Diversos estudiosos brasileiros já trataram sobre o tema e demonstram possuir
posicionamento congênere, como é o de Diniz (2010, p. 7-8), quando afirmou que o biodireito
é:
[...] estudo jurídico que, tomando por fontes imediatas a bioética e a biogenética, teria por objeto principal, salientando que a verdade científica não poderá acobertar crimes contra a dignidade humana, nem traçar, sem limites jurídicos, os destinos da humanidade.
Nesse mesmo sentido, Namba (2009) alegou que o biodireito é estritamente conexo à
bioética, ocupando-se da formulação das regras jurídicas em relação à problemática
emergente do progresso técnico-científico da biomedicina, questionando os limites jurídicos
da licitude da intervenção técnico-científica existente.
Idêntico posicionamento foi o adotado por Potter (1971), ao afirmar que o termo
“biodireito” é uma derivação jurídica da bioética, que objetivou aproximar a ciência das novas
questões humanitárias.
Dessa maneira, a reflexão sobre o agir humano, as descobertas da ciência e as
considerações jurídicas incorporaram a bioética para buscar prioritariamente uma reflexão
sobre a vida humana, cujos estudos também dizem respeito à biosfera, abrangendo toda a
complexidade científica que se propõe na atualidade. Com isso, infere-se que para que a
bioética seja bem sucedida em seus objetivos, necessária se faz sua vinculação estrita com
políticas públicas e movimentações jurídicas, que dão origem ao biodireito, para regulamentar
as relações sociais e resguardar os direitos fundamentais do homem.
Já a dignidade da pessoa humana, objeto de estudo comum entre bioética, direitos
humanos e biodireito, foi elevada a fundamento da República Federativa do Brasil, norteando,
desta maneira, todo o ordenamento jurídico vigente no país. As normas referentes ao
biodireito seguem esta linha, de maneira que a vida, conforme entendimento da própria
bioética e de ramos das ciências jurídicas configura-se no bem maior a ser protegido, que se
concretiza através da criação de parâmetros legais.
Assim, o biodireito configura-se como a nova fronteira dos direitos humanos, cujo
ambiente conquistado amplia-se também na perspectiva do reforço da consciência ética da
humanidade, especialmente quanto aos contornos do respeito à dignidade humana, princípio
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do qual devem convergir às prerrogativas em torno da unidade e indivisibilidade dos direitos
da pessoa (SILVA, 2002).
Como conseqüência também dos direitos humanos, o biodireito ocupou-se em
participar do desenvolvimento tecnológico, atentando aos limites que lhe são impostos. E aqui
sua função obedece aos parâmetros da precaução, visto que a biotecnologia, em relação aos
seus interesses, dificilmente prescinde da normatização jurídica para seus feitos.
Tanto é que, enquanto princípio balisador, a dignidade humana foi abordada por
Rocha (2001, p. 57) como:
fórmula jurídico-normativa que impede a reificação do homem, tendo em vista que por esse comando o sistema de direito absorve um conteúdo ético axiomático para impor a igualdade humana e a singularidade da pessoa, como dado universalmente sujeito ao respeito de todos.
Infere-se, portanto, que a influência dos direitos humanos e da bioética nas normas
jurídicas tornam evidentes as interfaces e confluências entre ética e direito, sendo exatamente
através dessa troca de informações entre esses campos do saber que o biodireito é auxiliado a
enfrentar e responder as questões sociais propostas pela sociedade atual.
Por fim, cumpre salientar que os valores antes restritos à esfera da ética passam a ser
incorporados ao âmbito jurídico, tanto na esfera internacional, através dos direitos humanos,
expressos em declarações de direitos e tratados, como no âmbito nacional, pelo direito
positivado, na forma de princípios constitucionais e direitos fundamentais elaborados,
sobretudo, a partir do valor da dignidade humana, para embasar as normas do biodireito,
sobretudo o brasileiro.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por intermédio desta pesquisa, refletiu-se acerca das fases de desenvolvimento
histórico da bioética, sistematizaram-se os princípios morais dela decorrentes, descreveu-se o
histórico dos direitos humanos e sua atuação no Brasil, introduziu-se a disciplina jurídica do
biodireito e sua incorporação no cenário nacional, para ao final, inferir acerca da real
contribuição dos direitos humanos e da bioética para a construção do biodireito brasileiro,
através de uma perspectiva documental, na pós-modernidade.
Nos termos em que foram propostos, apurou-se que esta investigação atingiu seu
objetivo, porquanto ficou demonstrada a indissociável relação entre bioética, direitos
humanos e biodireito, na qual este, impulsionado por aquelas, se firmou como novo ramo
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jurídico, posicionando-se como balizador dos aspectos decorrentes da experimentação
científica.
O presente trabalho, ao expor alguns problemas envolvendo seres humanos, trouxe à
tona assuntos relevantes no âmbito das pesquisas relacionadas às ciências forenses e
biológicas. As múltiplas definições e abordagens que receberam a bioética, os direitos
humanos e o próprio biodireito demonstraram o caráter fundamentalmente multidimensional
dessas disciplinas, o que permitiu discutir a relação entre elas.
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