Bento Antonio Carl Schmitt Teologia

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Teologia e Mitologia Política. Um retrato de Carl Schmitt * António Bento Universidade da Beira Interior Índice 1 Antiliberalismo 1 2 O Mito como realidade histórica: a impossibilidade da morte de Deus 8 3 A aurora boreal. 14 4 Dualismo e mito gnóstico. 18 5 A vocação intramundana da Europa. 20 6 Actualidade e falta de espírito. 24 7 Espírito e Instituição. 27 8 Amigo e inimigo e memória de Däu- bler. 28 9 A pneumatização do direito em A Vi- sibilidade do Espírito. 30 * Abreviamos como se segue : Der Wert des Sta- ates und die Bedeutung des Einzelnen, Tübingen, Mohr, 1914. [V.E.] ; Theodor Däublers “Nordlicht”. Drei Studien über die Elemente, den Geist und die Aktualität des Werkes, Duncker & Humblot, Berlin, 1991. [N]; Glossarium. Aufzeichnungen der Jahre 1947-1951. Duncker & Humblot, Berlin, 1991. [Gl]; Die Sichbarkeit der Kirche. Eine scholastische Erwä- gung. Summa. 1917. Tradução castelhana usada, la Visibilidad de la Iglesia. Una reflexión escolástica. In Δαιμων , Revista de Filosofía, n o 13, 1996, pp.11-17. [V.I.]; Ex Captivitate Salus. Experiencias de los años 1945-47, Porto y Cia. Editores Santiago de Compos- tela, 1960. [Ex.CS]. Wer von Politischen spricht, kann von Carl Schmitt nicht schweigen”. Frankfurter Allgemeine Zeitung, 5. 8. 93, p. 27. 1 Antiliberalismo É talvez de crer que Carl Schmitt - uma des- sas figuras de excepção e de completa ra- ridade que, por força de uma obscura e ir- reprimível necessidade histórica, irrompem por entre o carácter contingente das épocas e dos homens, acometidas pelo destino de ne- las virem a encarnar as mais ímpares e as mais sombrias, mas igualmente as mais fe- cundas e as mais luminosas contradições de um pensamento sempre activo e sempre de- sigual; esse singular jurista de profissão que, precisamente sob tal condição, se revelou um inactual e autêntico “homem sem qua- lidades” 1 ; esse académico crente que, auto- intitulando-se um “Epimeteu cristão” (por 1 Referindo-se aos fautores do jus publicum Euro- paeum, particularmente aos pais fundadores do Di- reito público, Bodin e Hobbes, enquanto, simulta- neamente, os criadores de uma nova potestas spiri- tualis e as figuras ou agentes de uma “situação in- termédia” (tanto teólogos quanto juristas, sem pro- priamente serem nem uma coisa nem a outra, com a situação de double bind que inevitavelmente de

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Teologia e Mitologia Política.Um retrato de Carl Schmitt∗

António BentoUniversidade da Beira Interior

Índice

1 Antiliberalismo 1

2 O Mito como realidade histórica: aimpossibilidade da morte de Deus 8

3 A aurora boreal. 14

4 Dualismo e mito gnóstico. 18

5 A vocação intramundana da Europa.20

6 Actualidade e falta de espírito. 24

7 Espírito e Instituição. 27

8 Amigo e inimigo e memória de Däu-bler. 28

9 A pneumatização do direito em A Vi-sibilidade do Espírito. 30

∗Abreviamos como se segue :Der Wert des Sta-ates und die Bedeutung des Einzelnen, Tübingen,Mohr, 1914. [V.E.] ;Theodor Däublers “Nordlicht”.Drei Studien über die Elemente, den Geist und dieAktualität des Werkes, Duncker & Humblot, Berlin,1991. [N]; Glossarium. Aufzeichnungen der Jahre1947-1951.Duncker & Humblot, Berlin, 1991. [Gl];Die Sichbarkeit der Kirche. Eine scholastische Erwä-gung. Summa. 1917. Tradução castelhana usada,laVisibilidad de la Iglesia. Una reflexión escolástica. In∆αιµων, Revista de Filosofía, no 13, 1996, pp.11-17.[V.I.]; Ex Captivitate Salus. Experiencias de los años1945-47, Porto y Cia. Editores Santiago de Compos-tela, 1960. [Ex.CS].

“Wer von Politischen spricht, kann von CarlSchmitt nicht schweigen”.

Frankfurter Allgemeine Zeitung, 5. 8. 93, p.27.

1 Antiliberalismo

É talvez de crer que Carl Schmitt - uma des-sas figuras de excepção e de completa ra-ridade que, por força de uma obscura e ir-reprimível necessidade histórica, irrompempor entre o carácter contingente das épocas edos homens, acometidas pelo destino de ne-las virem a encarnar as mais ímpares e asmais sombrias, mas igualmente as mais fe-cundas e as mais luminosas contradições deum pensamento sempre activo e sempre de-sigual; esse singular jurista de profissão que,precisamente sob tal condição, se revelouum inactual e autêntico “homem sem qua-lidades”1; esse académico crente que, auto-intitulando-se um “Epimeteu cristão” (por

1Referindo-se aos fautores dojus publicum Euro-paeum, particularmente aos pais fundadores do Di-reito público, Bodin e Hobbes, enquanto, simulta-neamente, os criadores de uma novapotestas spiri-tualis e as figuras ou agentes de uma “situação in-termédia” (tanto teólogos quanto juristas, sem pro-priamente serem nem uma coisa nem a outra, coma situação dedouble bindque inevitavelmente de

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oposição a alguns políticos “prometeicos”,com os quais lutou e com os quais perdeualgumas das árduas batalhas que marcaramtoda a sua longa existência), corajosamentese dispôs a frequentar o duro traçado dos ata-lhos e os imperceptíveis arabescos dos tri-lhos da vida para melhor poder ajuizar e ava-liar a obra - não reprovasse a intenção queaqui nos conduz a caracterizar a sua vastís-sima produção bibliográfica com aquele sub-til e perigoso traço de flexibilidade por meiodo qual ele próprio captou e formulou a espe-cificidade da política católica romana:com-plexio oppositorum2.

aí decorre), fornece-nos Schmitt uma adequada ima-gem das dificuldades e impropriedades com que nosdebatemos sempre que procuramos situar e classifi-car o seu próprio posicionamento político, ao mesmotempo clássico, e mesmo pré-moderno, e moderno ehiper-racionalista: “ [...] Ambos (Bodin e Hobbes) es-tão em luta encarniçada contra os teólogos. Por causadessa luta, ambos chegaram a ser os mais eficazes fun-dadores da crítica religiosa e bíblica. No entanto, am-bos permanecem fiéis à crença dos seus superiores, enão apenas exteriormente. Eles não foram para o Es-tado por capricho, mas por desespero, ao verem quea intransigência dos teólogos e dos sectários atiçavasempre de novo a guerra civil. Não lhes passou pelaimaginação fundar uma nova religião e, menos ainda,uma religião de laicismo ou de positivismo. Daquiprovem a sua situação intermédia. Estiveram entre ocompletamente antigo e o completamente novo, e fo-ram, por isso, injuriados e difamados por ambos oslados. Para os teólogos, eram ateus, e, para os ra-cionalistas, não passavam de hipócritas oportunistas.”Cf, Schmitt, C.,Ex Captivitate Salus, Porto y Cia Edi-tores, Santiago de Compostela, 1960, pp. 77-78.

2Como é sabido, o pensamento de Schmittestrutura-se em torno de um sistema de antagonismos,contraposições ou antíteses elementares. Contudo,deve referir-se que não existe, na arquitectónica con-ceptual de Schmitt, pelo menos a partir dos textos pos-teriores à Primeira Guerra Mundial, qualquer síntesede antíteses, no sentido hegeliano, como uma sínteseem cuja imediatidade se conjugaria a oposição de vá-

Todavia, se, porventura, nos limitássemosa um tal traço, talvez ficássemos apenas ameio do caminho. Flexibilidade, para quê,afinal? Perguntar-nos-iamos então. Nos mo-mentos mais lancinantes da suprema desola-ção - durante os interrogatórios de Nurem-berg -, esta mesma flexibilidade foi classi-ficada pelo próprio autor como uma aven-tura intelectual. Falou então da aspiraçãonão cumprida de chegar ao gabinete do So-berano e lamentou mesmo o ter-se quedado

rios momentos ou mediações antitéticos. Não existe,portanto, uma síntese a partir da mediação dos váriosopostos, como integração e negação – no sentido daAufhebunghegeliana – desses opostos enquanto mo-mentos ou passos de um qualquer progresso dialéc-tico. A noção decomplexio oppositoriumassinala tal-vez, por parte de Schmitt, a primeira tentativa conse-quente de demarcação do seu peculiar hegelianismode juventude. Ela designa o modo como a determi-nação das oposições existentes no seio do catolicismoromano se forma. Segundo Schmitt, a unidade cons-titutiva da complexio oppositoriumcatólica romanasurge a partir de uma vontade que constrange a umaunidade formal uma realidade em si mesma informe eirredutível a mediações, ou seja, a partir de uma forçaagregadora que, determinada como umavontade dedecisão< Wille zur Dezision>, se concretiza na dou-trina católica romana da infabilidade papal. Toda umademarcação heurística, portanto, relativamente à me-todologia e compreensão dialécticas. Cf,CatolicismoRomano e Forma Política, Huguin, 1998, pp. 22 esgs.

Quanto à singular e complexa relação do pen-samento de Schmitt com o hegelianismo, talvez amesma possa ser descrita por estas avisadas palavrasde Foucault: “Escapar realmente a Hegel supõe apre-ciar exactamente o que custa desligar-se dele; isso su-põe saber até onde Hegel, insidiosamente talvez, seaproximou de nós; isso supõe saber, no que nos per-mite pensar contra Hegel, aquilo que é ainda hegeli-ano, e avaliar em que medida o nosso recurso contraele é, talvez ainda, uma astúcia que ele nos opõe eao cabo da qual nos espera, imóvel e noutro lugar”.Cf, Foucault, Michel.,L’ordre du discours, ÉditionsGallimard, Paris, 1971, pp.74-75.

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sempre pela antecâmara. Ao inspector russoque então o interrogou, respondeu: “Bebi dobacilo nacional-socialista, mas não estava in-fectado”3. Quanto chegou a vez do interro-gador americano, explicou-lhe que semprese sentira superior a Hitler e que procuraraimpor-lhe a sua interpretação do nacional-socialismo. Tratar-se-ia, então, de uma flexi-bilidade para chegar ao poder? Bom, parecehaver, neste modo de apresentar asuasitu-ação, uma notória desfiguração elegíaca, senão mesmo masoquista, compreensível, bemvistas as coisas, uma vez que encontrando-seSchmitt numa situação de presumível culpá-vel, necessitava de chamar a atenção do fis-cal para o facto simples, mas a seus olhos de-terminante, de nunca haver pisado osanctasanctorumdo poder. Mas, encontrar-se-áaqui a verdade, ou, ao menos, aquela verdadeque Schmitt sabia tão distinta da irrefutabili-dade, ou mesmo da coerência?

Quando, num esforço de avaliação e dejuízo imparciais, lemos a sua prolífera, con-trastante e camaleónica obra, a evidência pa-rece ser de outra índole. Com efeito, mete-sepelos olhos adentro, o quanto os fins da pro-dução filosófica de Schmitt são obsessiva-mente permanentes e tenazmente persegui-dos: a feroz crítica ao liberalismo, com asua noção de um sujeito individual, român-tico, privado, invisível aos outros, incapazde intervir na configuração e disposição davida pública, incapaz, quer de reconhecer,quer de fundar autoridade, incapaz de en-tender quer o Estado quer a política, inca-paz ainda de tomar a seu cargo a essência darepresentação própria do político e de pre-ver, a longo prazo, os mais genuínos e es-

3 Cf, Lilla, Mark., “The Enemy of Liberalism”, inNew York Review of Books, May, 15, 1997.

pinhosos problemas da humanidade. Contraeste ponto cego da evolução e do desdobra-mento modernos, contra esse obtuso libera-lismo moderno, cuja controversa paternidadefilosófica caberia, ao menos em parte, a Ba-ruch Espinosa, o “primeiro judeu liberal”4,contra esse homem solitário e abandonado,que já emA Visibilidade da Igrejaera des-crito como o “homem perdido na nostalgiade Deus”5, contra essa figura encalhada nosrecifes da história por obra da pesada e fu-nesta âncora do individualismo burguês, foiSchmitt sempre perseverante e intransigente.

Quanto a Espinosa, e tendo em conta oconjunto da imensa obra de Schmitt, não sãomuitos nem extensos os lugares em que estese refere ao pensamento daquele. São, con-tudo, decisivos, claros e particularmente ju-dicativos. É, sobretudo, emO Leviatã na te-oria de Estado de Thomas Hobbes, obra de1938, que Schmitt apresenta a sua interpre-tação doTratado Teológico-Políticode Es-pinosa, lendo, de uma forma completamentenova, os capítulos 19 e 20.

Destacamos, desde já, três pontos que nosparecem essenciais: 1) Na metafísica de Es-pinosa vê Schmitt uma confirmação da suatese da existência de uma analogia estrutu-ral entre o pensamento teológico e o pensa-mento político, uma confirmação, portanto,da existência de uma “teologia política”; 2)Vê em Espinosa o verdadeiro pioneiro do li-beralismo político, ou seja, o remoto pai deuma corrente de pensamento político que, alongo prazo, haveria de desferir o rude golpe

4Cf, Schmitt, Carl.,El Leviatán en la teoria delEstado de Thomas Hobbes. Sentido y fracaso de unsímbolo político, p. 89 Ediciones Haz, Madrid, 1941.

5Cf, Schmitt, Carl.,El Leviatán en la teoria delEstado de Thomas Hobbes. Sentido y fracaso de unsímbolo político, p. 89 Ediciones Haz, Madrid, 1941.

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de misericórdia sobre o Estado, como o lu-gar da constituição da identidade política deum povo; 3) Vê em Espinosa o verdadeiroinventor da teoria da soberania do povo, con-cepção que representa o inevitável coroláriopolítico da ideologia democrática triunfantedesde o século XIX.

Parece-nos, todavia, que a questão, si-multaneamente mais controversa (qual pe-drada lançada ao charco da história dasideias político-filosóficas) e mais aguda (por-que dotada de um inigualável espírito de fi-nura), que o olhar genealógico de Schmittlança ao pensamento de Espinosa, assentano facto de a contradição entre o liberalismoe a democracia - contradição que Schmittmagistralmente analisa no seu livro de 1923Die geistesgeschichtliche Lage des heutigenParlamentarismus(A Situação Histórico-Espiritual do Parlamentarismo Hodierno) -estar já em potência na filosofia emanatistadaquele marrano de ascendência portuguesa.Expliquemo-nos. Por um lado, metafísicae filosoficamente, Espinosa apresenta-se aSchmitt como o primeiro adversário da idadeclássica do racionalismo abstracto, instru-mental e mecânico, da idade em que se ini-ciam essas movimentações profundas a queSchmitt chama “despolitizações e neutraliza-ções”, como o primeiro pensador a elaborarfilosoficamente os conceitos de uma indivi-dualidade concreta e de uma potência ines-gotável, próprias do fundamento da existên-cia. Daqui, ao primeiro esboço de uma con-cepção radicalmente democrática da sobera-nia popular, iria um passo muito pequeno.Por outro lado, Espinosa teria sido o pri-meiro liberal em política a proclamar a au-tonomia do espaço interior da subjectividade(por aqui se revelando como um insólito pre-cursor do trabalho de esteticização do polí-

tico levada, mais tarde, ao paroxismo, pelosromânticos), subjectividade que encontrariao seu pleno florescimento no âmbito socialna chamada liberdade de opinião (o próprioSchmitt recorda que no subtítulo doTracta-tus theologico-politicusse fala já delibertasphilosophandi6), a qual, por seu turno, in-

6“Poucos anos depois de publicado oLeviatã(deThomas Hobbes), o olhar do primeiro judeu liberalcaiu sobre a brecha quase indiscernível. De imediatose deu conta da grande brecha pela qual haveria deirromper o liberalismo moderno” (Ibidem, p.89). É,claro, de Espinosa, que Schmitt aqui fala, de um Espi-nosa que faz florescer “até à sua completa maturaçãoo que antes era um simples gérmen” (Ibidem, p. 90), o“gérmen letal que destruiu, a partir do seu próprio in-terior, o poderoso Leviatã” (Ibidem, p.89), ao “expan-dir” o enclave da interioridade do homem, inacessívelà autoridade do Estado “até fazer dele o princípio ge-ral da liberdade de pensar, de sentir e de exprimir aopinião” (Ibidem, p.90). São estes os termos empre-gues por Schmitt na sua análise aos capítulos 19 e 20do Tratado Teológico-Políticode Espinosa. O que,em Hobbes, possui ainda o estatuto de uma “últimareserva” (a liberdade individual de pensar), por rela-ção ao “primeiro plano” em que se encontram a “pazpública e o direito do poder soberano”, pelo facto de,segundo Schmitt, aquela permanecer ainda “na fé doseu povo”, torna-se, em Espinosa, num “princípio for-mador”, oposto ao “direito do poder soberano”, con-cebido como puramente restritivo. “Uma ínfima infle-xão do pensamento, provocado por uma exigência es-sencial do espírito judaico, transforma-se, num lapsode alguns anos, numa viragem decisiva no destino doLeviatã” ( Ibidem, p.91). Aqui, reside, segundo Sch-mitt, o ponto de partida de um empreendimento queinsistentemente procurou minar a autoridade do Es-tado. Schmitt enumera-lhe os principais vectores: “Asalianças e as ordens secretas, os Rosa-Cruz, os franco-mações, os iluminados, os místicos e os pietistas, ossectários de todos os tipos, os numerosos “silenciadosda Terra”, e, sobretudo, o espírito inquieto do judeu,que soube tirar o melhor partido da situação” (Ibidem,pp. 94-95). Cita ainda Schmitt Moses Mendelsshon,o qual, “Sem grande espírito, sem que a sua inteli-gência possa sequer comparar-se à de Espinosa, maspossuidor de um instinto infalível, pressentiu que, mi-

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duziria, senão o fim, pelo menos a crise doEstado enquanto representante terrestre doAbsoluto, crise que viria, nos nossos dias, aradicalizar-se até à agonia.

Por outras palavras, e nos termos da ci-ência política: se, como o quer Schmitt, oantagonismo entre a democracia e o libera-lismo, permaneceu obstinadamente invisíveldurante todo o tempo em que, quer a pri-meira, quer o segundo, reuniram forças ese aliaram contra o Estado monárquico feu-dal, como os dois aspectos fundamentais daemancipação burguesa, i. e., social, face aoEstado, e se, uma vez definitivamente ven-cido o seu comum inimigo político, o con-flito não pode deixar de emergir como umantagonismo entre o princípio da democra-cia no sentido rousseauista (princípio de umacomunidade formando um todo homogéneo)e o princípio do liberalismo (o princípio deuma sociedade individualista e pluralista) –se, portanto, um tal antagonismo se enraízana lógica desses dois princípios de organiza-ção política da sociedade, não podemos dei-xar de acompanhar as consequências da con-troversa, mas lúcida inferência da análise deSchmitt, de acordo com a qual Espinosa vema ser convocado como o iniciador e o teste-munho maior dasduasevoluções. Em suma:deve ser possível revelar a fissura no própriopensamento de Espinosa, deve ser possíveltrazer à luz do dia a mal dissimulada linhade fractura que estabelece a separação entreos dois domínios7.

Quanto à flexibilidade de Schmitt de que

nar o poder do Estado, esvaziá-lo da sua substância,constituía o melhor meio de paralisar o povo estran-geiro, servindo assim a emancipação do seu própriopovo, os judeus” (Ibidem, p. 95).

7Para uma síntese desta questão, consulte-se o ar-tigo de Manfred Walther “Carl Schmitt et Baruch Spi-

falávamos, ela aparenta-se antes com a da-quele que luta contra um inimigo que, talcomo aquela serpente da mitologia dos ín-dios, pode, de mil maneiras, asfixiar quem aela se chega, quem com ela se enlaça. Nou-tros termos, para vencer um mal flexível, elepróprio mimetizou e adoptou a flexibilidadedo mal.

Com efeito, todas as frentes do pensa-mento de Schmitt abordam e atacam um as-pecto letal do liberalismo individualista mo-derno. Uma atitude que, em alguns dos seusmovimentos, aparentemente se assemelha àdo seu antigo correspondente Leo Strauss,pesem embora os distintos pressupostos e asfinalidades explicitamente contrárias. E tam-bém a diferença - fundamental - de este úl-timo ter paradigmatizado e, por esse mesmogesto, fixado, a fonte da sua inspiração an-timoderna na filosofia clássica dapolis e deaí haver fortalecido e cultivado uma sereni-dade, uma atitude e até mesmo uma pose depuroscholar. Por sua vez, a fonte de Castáliade Schmitt brota por inteiro da tradição ro-mana, por natureza activa e mundana – numapalavra, viril. Inspirando-se e apoiando-seem obras sistemáticas e em textos coeren-tes, mil vezes retomados e manejados dentroda mais polida tradição de eruditismo aca-démico, Strauss construía assim, num laborpaciente, o seu ninho de conforto e de segu-rança teóricos. Schmitt, ao invés, querendoproduzir obras ígneas numa época afeiçoadaà dor e à tristeza (neste particular, muito pró-ximo de Ernst Jünger), bebia nas mais diver-sas tradições históricas e institucionais e, so-bretudo, nas próprias práticas, onde a volu-bilidade das circunstâncias da “arte do pos-

noza, ou les aventures du concept du politique”, inSpinoza au XXe siècle, pp. 361-374, PUF, Paris, 1993.

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sível” - a qual, de acordo com uma célebrefórmula de Bismarck, constitui a marca dopolítico - recorta, esfuma, altera e excepcio-naliza a normal e solene imperatividade dosprincípios e das formas. Para Schmitt, Ma-quiavel foi sempre algo mais e outra coisaque não oescritordeO Príncipee, com todaa certeza, alguém que nem sempre viveu re-tirado em San Casciano.

Talvez esta diferença nos conduza a umaoutra, de maior peso provavelmente e cer-tamente mais decisiva. Confrontado com apergunta obrigatória, a pergunta inevitável,qual seja a de saber como é que os textosclássicos podem desbravar o caminho queleva à realidade histórica, à prática, afinal,para aí actualizarem a sua potência, a atitudede Leo Strauss foi sempre a de um sintomá-tico encolher de ombros. A seus olhos, estanão era precisamente uma questão que pu-desse ser decidida a partir da própria filoso-fia. Os textos comentavam-se, reescreviam-se e... ponto final. Por meio dessas dis-cussões e da substância apurada desse con-fronto – julgava Strauss – formam-seelites,as quais, por seu turno, chamam a si a ta-refa, sempre por concluir, sempre inacabada,de criticar o regime necessariamente imper-feito dos nossos Estados. Portanto, a filo-sofia não era senão um derradeiro horizontenormativo, um modo distanciado de avaliar,de conferir um sentido geral, aos fins últi-mos de uma política, e tanto mais capaz defecundar a vida política se mostraria quantomais o seu arquitexto e os seus argumen-tos se revelassem aptos a resistir à voragemdos tempos e às situações históricas concre-tas que lhes determinam o sentido e a direc-ção. Numa palavra, a filosofia, na sua acep-ção criticista, kantiana, assumiria o vigilantesentido de uma metapolítica.

Esta atitude serena, aristocrática, que nãodeixa, por isso, de ser igualmente uma “ac-ção de Pilatos”, não é a atitude de Schmitt.Na verdade, o seuphatosnão é o de um do-méstico e privado heroísmo estóico, mas oda intervenção. Já a sua juventude fora ade um compromisso com o expressionismo enão a de um mais ou menos herético e quasesempre utópico judaísmo, o qual, próximode uma mística à maneira de um Franz Ro-senzweig, procurava, no firmamento do co-nhecimento, uma errante estrela da redenção.Muito pelo contrário: tudo, no jovem Sch-mitt, aponta para uma denúncia da român-tica fuga do mundo, da qual o judaísmo dasprimeiras décadas do século mais não é doque uma comprometida e singular variante8.Aliás, Politische Romantik(Romantismo Po-lítico), obra de 1919, escrita quando Schmittnão tinha ainda 27 anos, constitui um vigo-roso testemunho de como o preço a pagarpor essa caminhada que foi a do moralismodo século XVIII ao economicismo do séculoXX exige o momento intermédio do estético,momento do século XIX, o qual, na sua fun-ção de ponte, veio depois a absolutizar todasas esferas espirituais, contaminando, por ata-cado, todos os domínios da experiência e, demodo, diríamos nós agora, talvez irreversí-vel, o próprio âmbito e especificidade do po-lítico (donde a necessidade, no entender deSchmitt, de uma correcta definição das figu-ras do romantismo para a consequente tarefade uma desneutralização da política).

Quanto aos elementos antimodernos, nos

8Sobre as raízes hebraicas da modernidade e, emparticular, o modo como a herança judaica se enxertana cultura europeia da primeira metade do século XX,consulte-se o excelente resumo de Reyes Mate, DeAtenas a Jerusalén. Pensadores judíos de la Moder-nidad, Ediciones Akal, Madrid, 1999.

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quais assenta uma significativa porção dopensamento de Schmitt, os mesmos deviamservir o desígnio de reabrir o processo de in-tenções contra o liberalismo. Schmitt está vi-vamente interessado na formação de um su-jeito político. Strauss, aparentemente maishumilde, mas por este mesmo gesto profun-damente liberal, alheia-se completamente deum tal desiderato e a mais não aspira do quea procurar não deixar morrer o nostálgico eolímpico facho de uma norma ideal de bempúblico.

Postas assim as coisas, na luta contra oliberalismo individualista, que é também aluta contra o capitalismo ocidental enquantoforma moderna de acção, Schmitt não encon-trou outros apoios ou aliados que não aquelesque continuamente poderiam brotar de duasforças e grandezas históricas: a tradição ca-tólica romana e o mito. Não se trata, porém,como teremos a oportunidade de verificar, deduas forças isoladas, já que, num certo sen-tido, constituem e dão forma a uma mesma eúnica constelação conceptual.

Com efeito, Roma havia sido capaz detranscender o mito naoikouméne, a guerra napax romana, a violência na ordem jurídica,Júpiter num Deus-homem: Cristo. Conven-cido como estava de que estas forças, tensõese processos eram mais substanciais e congé-nitos ao homem do que a epidérmica trans-formação cultural moderna, de sua feição an-timitológica e antijurídica, a obra de Schmittconsistiu, em larga medida, em interpretaraqueles dois elementos, o mito e o Estado,com flexibilidade bastante para poder terçararmas contra o liberalismo e assim encontrarum kairóspropício em conformidade com oqual pudesse actuar a partir dasuaverdade.Ora, é certo que foi igualmente esta buscada ocasião aquilo que permitiu que a sua in-

tervenção teórica e prática pudesse ser rotu-lada de “ocasionalista”9, i. e., oportunista,e o seu pensamento de “bewegliches Den-ken”10. Não obstante, o certo é que não po-demos permanecer indiferentes ao facto deque, o que numa tal procura da oportunidadese jogava, o que Schmitt, finalmente, tentavamostrar, era justamente oefeito de verdadeque orientava o seu antiliberalismo.

Com o que atrás dissemos, não pretende-mos, no entanto, defender a ideia de que atradição romana e o mito constituam, na lo-gística conceptual de Schmitt, duas antilibe-rais armas de arremesso com idêntico pesoe estatuto teórico, de que o próprio lança-ria casuísticamente mão de acordo com uminescrupuloso sentido de oportunidade. Fa-lamos, portanto, de flexibilidade e dekairós,da tensão própria a um estado de elastici-dade, não de oportunismo nem de piedosos ehipócritas escrúpulos. As duas atitudes pos-suem, porém, um ponto em comum: ambasse jogam em situações declaradamente ti-das como indomáveis na sua especificidade,em circunstâncias históricas determinantesda acção. Ora, pressionado por tais contex-tos, um oportunista agiria mudando os fins.Ao invés, a flexibilidade própria da luta po-lítica e da agonística dos conceitos, mudaapenas os meios. E, estes são, em Schmitt,múltiplos e variegados, e não poucas vezesa sua metamorfose raia ou confina com acontradição. Na medida, porém, em que a

9Cf, Löwith, K., “Der okkasionelle Dezisionismusvon Carl Schmitt”, inSämtliche Schriften, Band 8, J.B. Metzlersche Verlagsbuchandlung, Stuttgart, 1984,p. 37.

10Cf, Löwith, K., “Politischer Dezisionismus”, inDer Mensch inmitten der Geschichte. Philosophis-che Bilanz des 20. Jahrhunderts, J. B. Metzer Verlag,Stuttgart, 1990, p. 47.

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luta político-ideológica possua uma inspira-ção constante e permanente - e é esse o caso- corresponde-lhe, por isso mesmo, um es-pírito filosófico. E não parece existirem dú-vidas de que a flexibilidade e o carácter po-lémico dos meios em Schmitt se apresentamcomo o símile de uma centelha que atesta avivacidade, o ardor e a tenacidade de um au-têntico espírito. Ao manejar as armas da tra-dição romana e do mito, Schmitt outorga àprimeira o primado sobre a segunda, porqueela, e só ela, foi capaz de descobrir a maneirade transformar o mito em teologia; porqueapenas ela soube transformar e transmutar aluta em direito.

2 O Mito como realidadehistórica: a impossibilidade damorte de Deus

A tese que neste ponto gostaríamos de pro-por é a de que o espírito que anima a obra deCarl Schmitt procede justamente da sua von-tade de erigir uma teologia política por so-bre os escombros dos efeitos destrutores dairrupção da individualidade - e dos seus alia-dos, aratio técnica e “o pensar económico”- própria da modernidade.

Na conferência de Barcelona de 1929 so-bre A Época das Neutralizações11, resumeSchmitt, de forma radical, a sua teoria damodernidade como uma destruição do espí-rito pelo espírito da técnica. Este espírito datécnica procede de um individualismo fáus-

11O texto dessa conferência foi posteriormente re-formulado e veio a ser integrado por Schmitt na suaobra de 1932Der Begriff des Politischen. Aí aparecesob o título “A era das neutralizações e das despoliti-zações”. Cf, Schmitt, Carl.,O Conceito do Político,Editora Vozes, Petrópolis, 1992, pp. 106-120.

tico, o qual - abismado, por um lado, no dua-lismo e na indecisão protestantes entre o es-tado de natureza e estado de graça, e desen-raizado, por outro, por força da relação abs-tracta que o judeu mantém com a terra - seseculariza como pragmatismo e utilitarismo,acabando assim por arrasar todo o campo dascrenças e da cultura e por abandonar o ho-mem à barbárie da omnipotência dos meiose da impotência dos fins objectivos. Abso-lutamente privada de tradição, hostil mesmoà aurática autoridade desta, a técnica tende adissolver o universo teológico daRepräsen-tationnuma mera delegação impessoal.

Com aquela frase final,Ab integro nasci-tur ordo, assinalava Schmitt a confrontaçãodas potências arcaicas com toda a violênciada barbárie, uma luta que só pode ser espi-ritualizada mediante formas muito primáriasde mito. Em todo o caso, já muito antes deSchmitt, havia Nietzsche anunciado a impos-sibilidade de excluir em definitivo o mito dasraças, o mais antigo, como fonte de ordem.

De certo modo, o regresso ao mito era aconsequência e o destino da destruição cultu-ral levada a cabo pela técnica desde há sécu-los. Não é que aquele seja um elemento de-finitivo do pensamento de Schmitt, um Sch-mitt que, diferentemente do que sucede nopensamento de um autor tão decisivo, no seuempenhamento, quanto o é Georges Sorel12,

12 A noção soreliana de mito diz respeito a uma de-terminada organização de imagens capaz de mobilizarcolectivamente a acção dos homens. Sob o influxodo pensamento de Giambattista Vico, e consciente daexistência de uma heterogeneidade entre os fins da-dos e os fins realizados, consciente, portanto, da obri-gatória distância e do necessário afastamento entre osentido inicial dado à potência mobilizadora de umarepresentação colectiva e os seus efeitos e resultadosconcretos, o que faz prova da existência de uma per-cepção aguda no que à necessidade de uma depura-

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ção prática e estratégica dos elementos utópicos ine-vitavelmente miscigenados no mito diz respeito, Ge-orges Sorel concebeu o mito dagreve geralcomo umagregado de imagens cuja força em bruto se revelariacapaz de evocar instintivamente os sentimentos maisnobres, profundos e motivadores na luta do proletari-ado socialista contra o segregacionismo da sociedademoderna, um mito capaz, portanto, de agir sobre opresente.

Uma outra característica da sua noção de mito, aqual se revela decisiva, quer no plano da forma querno plano dos efeitos, é o facto de apenas oconjuntodomito importar, não oferecendo as suas partes interessesenão pelo relevo que dão à ideia contida na constru-ção. Vejamos o tipo de efectividade de que o mito semostra capaz a partir de um exemplo do próprio Sorel:“Os primeiros cristãos esperavam o retorno de Cristoe a ruína total do mundo pagão, com a instauração doreinado dos santos, ao final da primeira geração. Acatástrofe não se produziu, mas o pensamento cris-tão tirou tal partido do mito apocalíptico, que algunsestudiosos contemporâneos gostariam que toda a pre-gação de Jesus tivesse tratado desse único tema”. Cf,Sorel, Georges.,Reflexões sobre a Violência, EditorialMartins Fontes, São Paulo, 1992, pp. 143-144.

Concepção análoga à do conceito demitoem Sorelé a noção defiguraem Ernst Jünger. Com efeito, afi-guraé, nas palavras de Jünger, “um todo que englobamais do que a soma das suas partes”, e é justamenteenquanto manifestação particular e orgânica de umatotalidade que uma figura revela todo o seu poder demobilização. Para além disso, e um pouco à imagemdo que sucede com a potência evocadora e mobiliza-dora do mito em Sorel, “No reino figura não é a leida causa-efeito que decide da ordem hierárquica, masuma lei de outro género, a lei do selo <Stempel> e docunho <Prägung> ”. Forçoso é pois reparar como ocarácter impressivo do mito e o aspecto pregnante dafigura se correspondem como outros tantos sistemasde óptica a partir dos quais se determina um sentidopara a acção. E conquanto Jünger haja igualmentemencionado as figuras doSoldado Desconhecido, doDesterradoe doAnarcaé, porém, nafigura do Traba-lhador que se manifesta, segundo ele, a fisionomia daépoca. Finalmente, uma última, mas não menos im-portante, afinidade entre o reino das figuras, em Jün-ger, e a potência do mito, em Sorel. Assim como paraJünger, tudo “na política depende de se combater com

sempre considerou o mito como um meroponto de partida da Teologia, regresso histó-rico e mediado a uma fonte imediata da vida.

Neste ponto, parece que Schmitt seguiusempre Hegel, a quem secretamente consi-derou como o genuíno pensador católico, oúnico a acreditar que Deus não pode aban-donar o tempo histórico, porque ao filósofo,pelo menos ao filósofo, incumbe a missãode recordar as fontes da verdadeira Tradição.E, consequentemente, também as da tradiçãodo próprio pensar. Por conseguinte, o seuproblema é o de saber como pode a Teologiavoltar a emergir numa época aparentementeencurralada econdenadaao mito e às suaslutas selváticas. Neste sentido, e logo desdemuito cedo, em alguns dos seus escritos dejuventude, os quais atestam a sua precoce edilacerada lucidez, Schmitt é absolutamenteconsciente de que o seu projecto de uma Te-ologia Política não pode deixar de pactuarcom uma potência negativa, perigosa, queaspira, de maneira bárbara, ao poder, medi-ante a hegeliana figura da luta de morte, daluta até à morte. De uma forma ou de outra,talvez Schmitt soubesse desde sempre que oque a ele lhe cabia, simultaneamente o seuquinhão e o seu dever de passagem de teste-munho, seria o momento posterior à luta, omomento da constituição de umaratio jurí-dica do poder.

Face ao talvez mais agudo dos seus inúme-ros leitores e interlocutores (entre os quais

figuras e não com conceitos, com ideias ou com sim-ples fenómenos”, não sendo o próprio conteúdo dahistória mais do que o destino agonístico das figuras,também para Sorel é sob o encantamento da luta e daviolência míticas que se pode constituir a verdade deuma vida política. Cf, Jünger, Ernst.,Werke. “Der Ar-beiter”, Band 6. Essays II, Ernst Klett Verlag, Stutt-gart, 1960-1965, p. 38.

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figuram nomes da têmpera de um MartinHeidegger, de um Ernst Jünger, de um LeoStrauss, de um Erik Peterson, de um HansBarion, de um Álvaro D’Ors, de um Ca-bral de Moncada, de um Jacob Taubes, deum Hans Blumenberg, de um Norberto Bob-bio, para nos ficarmos apenas por algunsdos que são hoje mais sonantes), esse WalterBenjamin que lhe confessará uma genuínaadmiração (admiração rasurada e excomun-gada dasObras Completas13 de Benjamin

13A relação (que se supõe meramente epistolar) en-tre Benjamin e Schmitt permanece, ainda hoje, obs-cura e não deixa de constituir uma permanente fontede equívocos. Com efeito, a sua admiração por Sch-mitt (bem como, num pólo oposto, a sua ligação aBertolt Brecht) é uma permanente dor de cabeça paraos seus executores literários. Adorno eliminou todasas referências a Schmitt quandoDer Ursprung desdeutschen Trauerspielsapareceu na primeira recolhada obra de Benjamin. Na correspondência de Benja-min, ao cuidado de Theodor Adorno e de GershomScholem, não aparece a carta (que a seguir transcre-vemos) nem qualquer indício da admiração que Ben-jamin manifestamente nutria por Schmitt. Em todoo caso, essa carta é hoje do conhecimento público edeita por terra algumas das nossas ideias feitas acercado história intelectual do período da República deWeimar. É nos seguintes termos que Benjamin ex-prime a sua dívida para com o pensamento de Sch-mitt:

“Caro senhor professor,Nos próximos dias, receberá do editor um exemplar

do meu livroDer Ursprung des deutschen Trauerspi-els (A origem do drama barroco alemão). Com estaslinhas, não quero apenas anunciar-lho, mas expressar-lhe a minha alegria por me sentir autorizado a enviar-lho por recomendação do senhor Albert Salomon. Re-parará o senhor de imediato o quanto este livro lhedeve na sua apresentação da teoria da soberania noséculo XVII. Permita-me ainda que lhe diga que, gra-ças aos seus métodos de investigação em filosofia doEstado, descobri, nas suas obras ulteriores, em parti-cular emDie Diktatur (A Ditadura), uma confirmaçãodos meus métodos de investigação em filosofia e his-tória da arte. Se a leitura do meu livro lhe permitir dar

por um Adorno demasiado zeloso e receosocom a reputação e com o juízo da posteri-dade), Schmitt aposta numa teologia políticaque, construindo uma ordem soberana e uni-tária, rompa provisoriamente com a tendên-cia endémica do mito para a luta e para o du-alismo. Benjamin, desesperadamente apoi-ado ao parapeito da janela da transcendên-cia judaica, confessa um Deus que nada sabede provisoriedades, de excepções e de parên-teses da violência do mundo. Para Schmitt,a acção política nos confins da modernidadetem que descrever uma equante, um pacto

conta deste sentimento, a intenção de lhe o enviar terásido atendida.

Com a expressão da mais alta consideração. O seudevotado Walter Benjamin”. Cf, Benjamin, Walter.,Gesammelte Schriften, Suhrkamp, 1974, vol. 1, t. 3,p. 887.

Quanto às razões que eventualmente estariam naorigem desta omissão, ouçamos agora, o testemunhode Jacob Taubes: “Depois de ter a carta nas mãos,chamei Adorno e perguntei-lhe: “Existem dois volu-mes de correspondência. Por que é que a carta não foipublicada?” A sua resposta foi que a carta não existia.Então replique-lhe: “Teddy, eu reconheço os caracte-res de impressão, conheço a máquina com que Benja-min escrevia. Não me contes histórias, porque eu te-nho a carta comigo.” Então, Adorno disse-me que issoera impossível. É uma resposta tipicamente alemã(subentenda-se: “Weil nicht sein kann, was nicht seindarf” [“O que não deve ser, não pode ser”], comodiz o verso de um célebre poema de Christian Mor-genstern). Fiz-lhe então uma cópia e enviei-lha paraFankfurt. O senhor Tiedemann, um arquivista, aindapor lá estava. Então Adorno chamou-me para me di-zer: “Sim, essa carta existe mesmo. Mas perdeu-se.”Fiquei-me por aqui”. Cf, Taubes, Jacob.,La théolo-gie politique de Paul. Schmitt, Benjamin, Nietzsche etFreud.Éditions du Seuil, Paris, 1999, p. 144.

Para as relações entre Schmitt e a Escola de Frank-furt, consulte-se, de Ellen Kennedy, “Schmitt e laScuola di Francoforte. La critica tedesca al libera-lismo nel XX secolo”, inFuturo Presente, no 3, au-tunno 1993, pp. 27-48.

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com a mitologia política, como única condi-ção de possibilidade de reconstruir a teologiapolítica do futuro. A sua vinculação à tradi-ção romana procede do facto de só ela poderfornecer modelos suficientes e exemplos va-riados capazes de inspirar uma tal transfor-mação.

Avisado leitor de Nietzsche, e do ensaioinaugural daGenealogia da Moral, Schmittnão alimentava ilusões relativamente à bar-bárie dos poderes do mito, com os quais teriaque aprender a lidar para os poder reconduzirdepois à esfera de umaratio e de uma ordemjurídica. Jamais supôs que aquela barbáriese mostrasse tão incapaz de compreender aideia de Estado ou a ideia de um Direito in-ternacional e dos seus derivados e, antes detudo, o intrínseco valor da justiça. Foi as-sim que, quando as mais cruas e genuínaspotências do mito bateram à sua porta e selhe apresentaram, julgou poder ser capaz deas reencaminhar em direcção a uma teologiapolítica de um Estado e de um Direito inter-nacional. Pelo menos, entendeu que não de-veria deixar de o tentar. A melhor obra terianecessariamente que ser igualmente a maisambígua e também a empresa mais arriscada.Seria então o momento certo para invocaraquele verso de Hölderlin, que tantos e tan-tos repetem sem a mais leve suspeita do ter-rível sentido nele contido: “Wo aber Gefahrist, / wächst Das Rettende auch” (Mas ondehá perigo, / cresce também o que salva)14.Aquele era, sem dúvida, um contexto apro-priado ao sentido do verso. O significadoexistencial desta passagem e as consequên-cias do seu fracasso, ele próprio as glosou em

14Cf, Hölderlin, “Patmos”, inPoemas, Edição bi-lingue, Relógio D’Água, Tradução de Paulo Quintela,Lisboa, 1991, pp. 406-407.

Ex Captivitate Saluse no seuGlossarium.Não é este, porém, o lugar e o momento paradesenvolvermos este ponto. Cabe-nos ape-nas lembrar que, em última análise, a sua po-sição foi, em parte, a de Hegel, e que o seupercurso o levou a mostrar como a natureza,dualista e mítica, se transcendia em justiça,direito, sujeito e Estado.

Neste passo, que conduzia à autotranscen-dência da Terra, Benjamin, claro, não po-deria segui-lo. Finalmente, ninguém o se-guiu. Senhor exclusivo da chave hermenêu-tica do seu gesto, ficou só, desta vez ele pró-prio afundado nos abismos da ilusão psicoló-gica que pressentira já emA Visibilidade daIgreja.

A pergunta implícita que aqui assoma eque ainda hoje não deixa de nos espreitar evisitar, a pergunta que se impõe e que nãopode deixar de ser feita, é a de se saber se,na sua época - e na nossa -, se abria um ca-minho alternativo ao da formação de um Es-tado e de um Direito internacional através domito, fosse este qual fosse, o das raças ouo das classes, o das nações ou o das tradi-ções, desdobrado e manifestado com toda aforça e a violência da sua consequente barbá-rie. Walter Benjamin também entendeu quenão. Este, contudo, enquanto refém que erade uma teologia negativa, interpretou o fer-mento da vontade de violência que por todoo lado então irrompia como uma violênciadivina e destruidora, como uma violência su-mária que dava a morte a um mito com a po-tência de outro, para que, desse modo, pu-desse apenas resplandecer por sobre a Terraa majestade de um Deus único, um Deus quereinaria na catástrofe global do mundo, ver-dadeiro estado de excepção do tempo.

A aposta mais profunda de Schmitt, a suaaposta romana, que é, em parte, também a

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sua aposta hegeliana, consistiu em defen-der que Deus não pode nunca abandonaro mundo – mesmo, ou sobretudo, nas pio-res circunstâncias. Alguma figura incarnariasempre a potência e a função doKat-echon,uma força capaz de retardar o fim dos tem-pos e de reprimir a catástrofe e o espírito domal.

O conceito deKat-echon- conceito cen-tral no pensamento de Schmitt, que aparecee atravessa os múltiplos lugares da sua vas-tíssima obra - refere-se a uma conhecida pas-sagem de São Paulo naII Epístola aos Tessa-lonicenses, 2: 6-7. Conta São Paulo que an-tes da chegada do fim do mundo há-de vir oAdversário que quer tirar Deus do seu trono:“Et nunc quid detineat scitis, ut ipse revela-tur in suo tempore. Nam mysterium iam ope-ratur iniquitatis; tantum qui tenet nunc, do-nec de medio fiat” (E agora vós sabeis o queo detém, para que o seu próprio tempo sejamanifestado. Porque já o mistério da injus-tiça opera; somente há um que agora resiste,até que do meio seja tirado).

Esta força que detém o Anticristo cumpreuma função providencial. Intérpretes de to-dos os tempos viram no Império Romano afigura dessa força. É a partir desta ideia queSchmitt enlaça a Teologia à política e é igual-mente dela que, segundo ele, o político ex-trai a sua legitimidade. De acordo com Sch-mitt, pode afirmar-se que é enquanto funçãodoKat-echonque a política encarna numa te-ologia da história, só assim adquirindo legi-timidade15.

15É como se segue que, Álvaro D’Ors, talvez omais fino interlocutor espanhol de Schmitt, se refereao uso final que Schmitt supostamente deveria dar aesta noção escatológica do cristianismo: “Que Sch-mitt busque una visión cristiana de la historia, muestrahasta qué punto el espírito de nuestro tiempo anhela

Que a violência do mito aspira sempre afundar um direito divino, parece ter sido acrença mais aguda de Schmitt. No fundo,talvez a sua tese mais persistente tenha sidoa hegeliana. Schmitt defendeu a imanên-cia de Deus ao mundo, a continuidade en-tre as potências naturais e as potências di-vinas. Nunca, em caso algum, acreditou naontologia do indivíduo. No dia 5 de Agostode 1948, escreveu: “Deus morreu, significa:o espaço morreu, a corporeidade morreu”[Gl.,187]. Deus morreupassou a significarpara elea Terra morreu. Talvez nunca se te-nha afirmado de forma mais sucinta o verda-deiro fim da religião de um Deus encarnado.Porém, ao ser posta nestes termos, a mortede Deus torna-se impossível e o cristianismo,desde que a Terra exista, não pode ser senãoverdadeiro. Escusado acrescentar que, paraSchmitt, espaço <Raum> e Roma <Rom>são a mesma palavra; escusado acrescentarque o ódio à palavra espaço é, para ele, umasimples variante do ódio à palavra Roma:“Há um afecto anti-romano”16. Com estaspalavras - as quais, de acordo com a própriaformulação schmittiana da essência do polí-tico enquanto o critério que permite distin-

encontrar laVia, la Veritas, y la Vita, incluso más alláde donde parece detenerse un jurista delius publicumEuropaeum. Meditada con simpatía la teoría delKat-echon, nos parece inevitable que el pensamiento con-secuente de Carl Schmitt penetre más allá, en el reinode la Parusía, y qué tras esa fase podamos esperar desu privilegiada inteligencia de jurista y de “histórico”,un nuevo libro, no ya sobre elnomosoriginario de latierra y sus manifestaciones, sino sobre el último actode la historia, allí donde ética e historia se hacen unasola realidad; un libro que lleve por título “Das Uni-versale Judicium””. Cf, D’Ors, Álvaro., De la Guerray de la Paz, Rialp, Madrid, 1954, pp. 187-188.

16Cf, Schmitt, C.,Catolicismo Romano e FormaPolítica, Huguin Editores, Lisboa, 1998, p.19.

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guir e discriminar o amigo do inimigo, nãopodem deixar de configurar uma autênticadeclaração de guerra - principia o livroCa-tolicismo Romano e Forma Política.

Este caminho que vai do mito a Deus podeser seguido e criticamente acompanhado aolongo de quatro partes da sua obra. A pri-meira, a galope sobre as obras de juventude- Der Wert des Staates und die Bedeutungdes Einzelnen(O valor do Estado e a sig-nificação do indivíduo), de 1914,TheodorDäublers “Nordlicht”. Drei Studien über dieElemente, den Geist und die Aktualität desWerkes(“Nordlicht”), de 1916 eDie Sicht-barkeit der Kirche. Eine scholastische Erwä-gung(A Visibilidade da Igreja. Uma reflexãoescolástica), de 1917 - é pouco conhecida erefere-se ao seu idiossincrático modo de sere de não ser hegeliano. A segunda é ligeira-mente mais frequentada e visitada e diz res-peito à sua peculiar forma de tratar oCato-licismo Romano, justamente durante os anosem que escreve o texto da primeiraTeologiaPolítica, de 1922, eO Conceito do político,de 1932. A peça central é precisamente opequeno livro intituladoRömischer Katholi-zismus und politische Form(Catolicismo Ro-mano e Forma Política), de 1923. A terceiraparte ocupa-se da produção durante a épocanazi, a qual inclui: 1) um pequeno texto so-bre Hitler enquanto protector da Constitui-ção,Der Führer schützt das Recht(O Füh-rer protege o Direito), de 13 de Julho de1934, com 3 páginas; 2)Die Deutsche Re-chtswissenschaft im Kampf gegen den jüdis-chen Geist(A ciência jurídica alemã em lutacontra o espírito judaico), de 4 de Outubrode 1934, publicado no “Deutsche Juristen-Zeitung”, igualmente com 3 páginas; 3)ICaratteri Essenziali dello Stato NazionalSo-cialista, de 1936, uma conferência proferida

no Circolo Giuridico de Milano. Ainda den-tro deste período, destacamos, entre outrasobras e inúmeros opúsculos e artigos igual-mente importantes, essa elegia pelo Estadomoderno que éDer Leviathan in der Staats-lehre des Thomas Hobbes(O Leviatã na teo-ria do Estado de Thomas Hobbes), de 1938.

Desta etapa pode concluir-se que as ten-sões entre o mito e a teologia política jánão passam pela mediação do Estado. Deacordo com Schmitt, o Leviatã entrara numestado de profunda sonolência, quase petrifi-cado, senão fossilizado ao menos em coma,existindo apenas como uma simples máscaramortuária de um mito que não pode aspi-rar já à teologia, uma vez que teria sido opróprio Hobbes a encarregar-se de o ferir demorte ao excluir do Estado aquilo que ini-cialmente tinha previsto alojar no seu pró-prio seio: a crença religiosa. A quarta etapaemerge do fracasso da aposta mitológica na-cionalista alemã, a qual, uma vez destruídoo recurso ao mito do Estado, põe à prova aflexibilidade schmittiana do uso da tradiçãoromana na sua batalha contra o liberalismo.Referimo-nos, claro, ao que alguns intérpre-tes convencionaram chamar o testamento deSchmitt: o trabalho dedicado a Johannes Po-pitz, o qual tem por títuloSobre a situaçãoactual da ciência jurídica, ensaio que con-tem já em potência, antecipando-lhe os con-teúdos e as posições, a chave para a compre-ensão do sentido inerente à inflexão presentenessa obra maior que éO Nomos da Terra(1950).

Pois bem, a hipótese que neste momentogostaríamos de formular, é a da existência,entre os quatro momentos mencionados, deuma afinidade electiva cujo denominador co-mum é a ocorrência de uma nítida interac-ção entre os elementos mitológicos e os ele-

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mentos teológicos. Diríamos mesmo que foipor meio da afirmação dos particularismosdesta relação, apresentada pelo autor desdeos primeiros passos da sua obra e mantidaao longo da sua vida e até ao último dos seustextos, que Schmitt conquistou o direito a serinterpretado como um grande autor. De certomodo, a flexibilidade do seu realismo polí-tico servia a unicidade de um fim. Analisa-remos, de seguida, o passo inicial e o gestofundador de uma tal relação contido no pri-meiro momento: aquele que se configura emtorno deNordlicht e das obras da época an-terior àTeologia Política.

3 A aurora boreal.

O texto da primeira edição deTheodor Däu-blers “Nordlicht”. Drei Studien über dieElemente, den Geist und die Aktualität desWerkes, apareceu em 1916, editado em Mün-chen, por Georg Müller. Quanto à sua ex-plícita inspiração hegeliana parece não exis-tirem duvidas, a começar pelomotto. Naverdade, a obra pretende ser uma definiçãoconceptual doZeitgeist. Com o apelativo en-tusiasmo e a expressividade próprios da ju-ventude, a daquela como a de qualquer outraépoca, cita-se Lucas,12: 56:Hipócritas, sa-beis discernir a face da terra e do céu; comonão sabeis, então, discernir este tempo?An-tes disso, na abertura, figura a dedicatória aFritz Eisler, a quem haveria igualmente deser dedicada aTeoria da Constituição, de1928, e o mesmo que emEx Captivitate Sa-lus surge como o amigo que, com ele, par-tilhou uma comum admiração por Däubler.Amigo de Franz Blei e de Hugo Ball, esteEisler fazia parte dos círculos boémios dosmovimentos expressionista e dadaísta que omesmo Schmitt frequentava por essa altura.

Pode, sem rebuço, dizer-se que Schmittsempre teve uma consciência aguda da im-portância, do significado e da função queeste pequeno livro desempenhava para umacorrecta apreensão da sua própria evoluçãoe maturidade como autor. De certo modoreferiu-se a ele como a umarcanumdo seudestino [Ex.CS.,52]. Pouco tempo antes dasua morte, confessou Schmitt a NicolausSombart: “Ninguém se pode permitir escre-ver sobre mim se não tiver lido o meu livrosobreNordlicht”17.

Qual é, então, a chave para abrir este livro?E por que é que não se pode escrever sobreSchmitt sem o dominar? Não há aqui qual-quer mistério. Já no seu talvez mais hegeli-ano livro,O valor do Estado e a significaçãodo indivíduo, cujo mottodizia “Primeiro é alei. Os homens vêm depois”, havia Schmittcitado Däubler. E com isto queria dizer algomuito concreto: que a lei faz parte do pa-raíso, que a leié o próprio paraíso, e não aconsequência do pecado e da culpa.

Estamos agora em situação de poder adi-vinhar que a tese deO valor do Estado e asignificação do indivíduoé radicalmente an-tiliberal. Também nele se defendem os ele-mentos da cultura romana [V.E.,102-103] ese apresenta, numa linha rigorosamente we-beriana, a necessidade de entender o carismade uma forma completamente diferente damoderna, a qual se funda num individua-lismo auto-referencial, permanecendo, porisso, cativa de formas extremas e obsessi-vas de certeza subjectiva. Por carisma, en-tendia aqui Schmitt o carisma sacramentalda função, próprio do catolicismo, absolu-

17Cf, Sombart, Nicolaus.,Die deutschen Männerund ihre Feinde,Hanser Verlag, München, 1991, pp.124-125.

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tamente independente da subjectividade dohomem. Se, após este hegeliano livro de1914 sobre o Estado, entendido como a ins-tância que outorga significação ao indivíduo,Schmitt regressa a Däubler, esse mesmo queantes lhe inspirara omotto do seu livro, éapenas porque o poeta, na sua impressio-nante obra - uma espécie de fenomenologiado espírito cósmico, substituição teogónicado idealismo alemão [Gl.,171, 28.6.48] -, re-gressava, na sua rapsódia, não só, nem tanto,às premissas do homem, mas às premissas daprópria lei, aos seus pressupostos implícitos.E enquanto Hegel se quedou pela explicaçãodo valor da lei e a isso se ateve, Däubler jul-gou necessária e urgente a tarefa de recuaraté ao originário e de, uma vez aí instalado,apresentar e expor o conjunto das potênciasmíticas da Terra e do Cosmos.

Eis-nos, então, diante do problema: é aprópria lei, o mandamento, o Estado, a com-preensão teológica da política, aquilo queconfere um valor aos indivíduos, é ela que seapresenta, por relação aos indivíduos, comooriginária. Por amor a si mesmo, o indi-vidualista liberal deveria compreender queapenas o Estado lhe outorga um valor e umsignificado, tornando assim possível a suavida. Se o indivíduo plenamente consci-ente de si mesmo é o ponto extremo de umaevolução, é o Estado que constitui ome-dium desta. Porém, se não se está na posseintegral dessa consciência, desse saber úl-timo, não cabe ao homem senão viver noimediato. Hegel sabia que assim era, masmesmo aquele que repousa na mera naturezanão pode eliminar aquele instinto geral quebusca aceder à autoconsciência. Apenas aodesdobrar-se em poderosas lutas pelo reco-nhecimento, pode esse instinto manter-se noseu elemento. Por conseguinte, também o

imediato experimenta a sua própria histori-cidade e também as forças naturais que aspi-ram a elevar-se a sujeito e a consciência mu-dam com o tempo, já que estas forças ime-diatas dependem, na sua presença como nasua figura, do potencial destrutivo das pró-prias forças históricas que as antecederam.Recordando Däubler, diz Schmitt, em 1948,que a lei inviolável é que “a cada destruiçãoestão necessariamente vinculadas tantas ten-tativas de restauração que a confusão é terrí-vel” [Gl., 89, 23.1.48].

Esta relação histórica entre a lei e as suaspremissas mitológicas, esta metamorfose dapotência imediata do mito e da sua aspira-ção a ordem jurídica, estava já pré-figuradano livro sobre o valor do Estado. Os tem-pos da mediação, diz-nos Shmitt nessa obra[V.E.,108], concedem ao Estado o valor su-premo e, daqueles, é, sem dúvida, Hegel, opensador mais característico e incisivo. Ostempos da imediatez não possuem este ele-vado pensamento discursivo, o qual revelaao homem todas as mediações, às quais, nofundo, ele próprio deve o seu ser. Ao invés,entregam-se a um pensamento intuitivo, emconformidade com o qual, de acordo com apoesia de Angelus Silesius, o Estado desa-parece como uma mera ilusão diante da luz.Nesta referência ao pensamento intuitivo ha-bita já a primeira invocação do mito.

Todavia, o que aqui existe de mais deci-sivo é a relação, a dialéctica entre ambos ospólos, o imediato e o mediato, o intuitivo eo discursivo, o mito e o Estado, as forças daTerra e a coroa da Justiça. Na última páginado seu livro de 1914, e enfrentando preci-samente este problema, Schmitt fala de umritmo histórico que ultrapassa as idades doshomens sem que ninguém saiba nem de ondevem nem para onde vai. Captar este ritmo

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é o que caracteriza um pensamento verda-deiramente histórico que vai mais além doque o discursivo ou do que o intuitivo. Sóna homenagem a Ernst Jünger, emDie Ges-chichtliche Struktur des heutigen Weltgegen-satzes von Ost und West(A estrutura histó-rica da presente tensão planetária entre Ori-ente e Ocidente), expôs Schmitt com abso-luta inteireza, que a sua flexibilidade procededa assunção de um pensamento responsávele respeituoso para com a forma da história,uma vez que apenas aí, no fluxo e na rítmicadessas duas correntes, a da imediatez e a damediatez, pode erguer-se o carácter morfoló-gico da verdade. Separadamente, cada um deestes dois pensamentos, apreende uma coisa:o pensamento da mediatez capta a fonte que,longe do mar, há-de, por entre toda a sorte deobstáculos, reencontrar o seu caminho, até seconverter numa corrente majestosa; o pensa-mento do imediato vê apenas que todas aságuas vão “desaguar no mar que é o morrer”,e os seus olhos ficam encandeados pelo mo-mento da conexão entre a vida e a morte. Averdade, no entanto, é o que acompanha arítmica na qual a vida emerge e morre, essapassagem dochaosao cosmos, do Gross-raum informe aoKleinraumordenado [Gl.,217, 27.1.49].

Sem esta compreensão do ritmo do tempo,sem este sentido da continuidade entre o nas-cimento, a morte e a ressureição, o catoli-cismo e a tradição romana não alcançariamtoda a plenitude do seu sentido. O que agorapretendemos sugerir está, portanto, intima-mente relacionado com o motivo doKat-echon, presente tanto noGlossariumquantona invocação de Däubler. Por fim, é destecontexto de questões que o tema do espaço- central no pensamento de Schmitt - extraitoda a sua força. Pois Roma, que éRaum, es-

paço [Gl.,317, 6.7.51], é justamente o maiseficaz muro, o poder, a força organizada, omais substantivoKat-echonface ao abismodestrutor do tempo, esse tempo que noGlos-sariumaparece comoHölle, inferno, face aoparaíso do espaço. Mas Roma,Rom, é igual-menteOrtung (localização, instalação, as-sentamento num lugar com espírito de per-manência), eOrdnung (ordem), em suma,nomoseRecht[Gl.,171, 28.6.48].

Não há dúvidas de que o paralelismo, in-sistentemente sublinhado por Schmitt, entreas duas palavras (Raum e Rom, espaço eRoma), enquanto meras palavras, é forçado.No entanto, a relação entre elas é uma chaveque nos permite entender o conceito de es-paço como conceito análogo, i.e., não idên-tico nem subsumível pelo conceito de espaçoda física. Com efeito, ao contrário do es-paço matemático, que é sempre um espaçoquantitativo e homogéneo, a noção de es-paço, em Schmitt, remete sempre para umespaçosituado (Ort), configurado e, comotal, não vazio. Um bom exemplo é a no-ção schmittiana deGrossraum, unidade deespaço-ordem-posição, ou seja, conceito es-pacial concreto. No pensamento de Schmitt,Raume Romconstituem um espaço físico-espiritual. É o Império Romano e a Igrejacomo modelo de forma eterna. A Igrejade Roma é visível, é um espaço ao mesmotempo terreno e espiritual. Se existe um es-paço eterno, esse espaço é o romano. E é porisso que Roma pode estar sempre em qual-quer lugar. Em última análise, para Schmitt,a deslocalização do espaço (Ent-ortung), le-vada a cabo pela técnica moderna, constituium grande perigo para o direito e para a po-lítica, uma vez que num tal espaço perde-sea noção de umaordem concreta, abrindo-se

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assim o caminho a todas as formas de arbi-trariedade e de oportunismo18.

Na esteira de Bodin e, como tal, sabedorde que tudo aquilo que brota da Terra aspiraa converter-se emMaestas, em soberania, econsciente de que na sua época não havia Es-tado, uma vez que não existia uma autênticamediação entre entre os dualismos que mar-caram encontro na Constituição de Weimar,nem tão-pouco entre os dualismos que o Tra-tado de Versailles radicalizara na França e naAlemanha, Schmitt manteve presente a me-mória conceptual que lhe permitiria orientare converter essa potência mitológica e míticaimediata em teologia, em Estado, em direitoe em lei.

Quando escreveuO Valor do Estado e asignificação do indivíduojá sabia que falavade algo que não existia, nem nos espíritosnem no presente. De facto, sabia perfeita-mente que o liberalismo e o romantismo ti-nham levado de vencida Hegel. O últimoKaiser era disso um bom exemplo. Mas acatástrofe anunciara-se já - como ele próprioo haverá de escreverO Leviatã na teoria doEstado de Thomas Hobbes- quando o an-tepassado doKaiser, o Rei da Prússia, cha-mou o velho e melancólico Schelling paraocupar a cátedra que Hegel deixara vaga emBerlim. Com este gesto, a monarquia prus-siana confessava a sua inclinação para umafuga romântica do mundo, abandonando to-

18Para uma correcta apreensão do significado e doalcance da noção de espaço em Schmitt, consulte-seo artigo “O Nomos da Terra” e ainda a sistemáticaobra de 1950Der Nomos der Erde im Völkerrechtdes Jus Publicum Europaeum,Greven Verlag, Köln,1950. Na tradução castelhana,El Nomos de la Tierraen el derecho de gentes del“Jus publicumeuropa-eum”, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid,1979.

das as mediações nas quais o Estado ancorao seu sentido e função. Era, portanto, ne-cessário, regressar à origem. Uma origem naqual se abre sempre oAbgrunddo mito. Oúnico problema será o de, uma vez caídas ouabandonadas todas as mediações, não haverninguém que dê mostras de ser capaz de con-trolar a forma como o mito se apresenta.

Chega agora a altura de abordarmos umtema decisivo, incontornável. Pois esta rít-mica que vai do mito a Deus, esta rítmicado tempo que transporta a imediatez à me-diatez, possuía um nome muito antigo, umnome muito significativo na antiga sabedo-ria. Tratava-se doéon19. Com efeito, navelha representação do complicado cristia-nismo primitivo, oKat-echonera a lei in-terna desseéon, a potência dominadora quemantinha o tempo até que a sua hora se cum-prisse. Como facilmente se adivinha, todaesta atmosfera conceptual é radicalmentegnóstica. Quando, emEx Captivitate Salus,Schmitt regressou ao livro da sua juventude,ao livro sobre Däubler, não pode deixar derecordar “os versos de um esplendor gnós-tico” desse “colosso de homem” [Ex.CS.,52].O facto de a forma por meio da qual Schmittacedeu ao problema do mito estar marcadapor uma linha que vai de Hegel a Nietzsche

19No sentido de lapso de tempo infinitamentelongo, de eternidade, de infinidade dos séculos e dostempos: “Oéoncristão, no seu conjunto, não é umlongo caminho; é uma longa espera, única no seugénero, um longo ínterim entre duas temporalidadesequivalentes, entre a manifestação do Senhor nos tem-pos do Imperador Augusto, e o retorno do Senhor nofim dos tempos. No seio deste grande ínterim nãoparam de surgir, de maneira ininterrupta, uma quanti-dade de novos ínterins terrestres, mais ou menos bre-ves: são tempos de transição”. Cf, Schmitt, Carl.,Théologie Politique, Éditions Gallimard, Paris, 1988,p. 138.

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e, sobretudo, pelo gnosticismo, é de uma ra-dical pertinência para o problema da política.No fundo, uma tal filiação outorgava ao con-fronto entre o mito e a teologia a dimensãonuclear da política entendida como luta e du-alismo.

4 Dualismo e mito gnóstico.

Na verdade, tratava-se disso, foi sempredisso que, afinal, se tratou, de mito gnóstico.Mas, será gnóstico todo o catolicismo? Nãoserá antes o catolicismo romano uma formaestratégica, fundamentalmente destinada asuperar aquela ameaça perene do mito queo gnosticismo representava? Não foi Roma,afinal, que venceu Marcião, esse filósofo queSchmitt cita emNordlicht e o mesmo que,desde o inicio, inspirou Schelling, o inimigode Hegel? Qual catolicismo vem a ser ode Schmitt? Não terá o próprio Schmitt le-vado demasiado longe a sua flexibilidade,ao ponto de, na sua intensa busca de ener-gias antimodernas, pouco o apoquentar o re-curso ao gnosticismo e, ao mesmo tempo, àforma romana do catolicismo? Acaso não éo gnosticismo a maior fonte de legitimidadepara o catolicismo? Que, finalmente, e apósuma tremenda experiência histórica, Romativesse vencido, contém, por si mesmo, umvalor sintomático decisivo para julgar o sig-nificado das relações entre mito e teologia.Finalmente, e não certamente por acaso, aobra que imediatamente se seguiu aNordli-cht não foi outra que não aquelascholasti-che Erwägungintitulada A Visibilidade daIgreja.

Mas não precipitemos o final. Em suma,trata-se, por agora, de filosofia da história,das formas em que a pluralidade da Terra setorna unidade da Terra e, mais ainda, das for-

mas que dão origem a umuniversuma partirde umpluriversumoriginário. Neste sentido,Nordlicht constituía já, para o jovem comen-tador, “a poesia do Ocidente” [N .,63]. Aquestão nuclear consiste, portanto, na identi-ficação da forma gnóstica deNordlicht. Poisque nessa forma se encontra a chave que nospermitirá inventariar o substrato mitológicoda aposta de Schmitt.

Ao contrário de N. Sombart, não julga-mos que a forma gnóstica de apresentar omito se concretize, emNordlicht, na “ques-tão cósmico-espiritual da contraposição dosgéneros”. Um tal dualismo é imediatamenteaceite por Schmitt [N .,40]. Além disso,qualquer um que se tenha aproximado dostextos gnósticos de Valentim ou dos comen-tários críticos de Tertuliano, sabe que o temado hermafroditismo está presente na própriaestrutura do Salvador gnóstico20. No poemade Däubler, este problema, a superação dopatriarcado da tradição mediante um matri-arcado que altere radicalmente a compreen-são dos géneros, é apenas uma manifesta-ção mais do eixo central da história univer-sal. EmNordlicht afirma-se que esse matri-arcado é a forma do luteranismo, ao passoque o catolicismo se vê ancorado no princí-pio masculino. Enquanto o primeiro nos falada Terra, o segundo fala-nos do Sol [N .,15].Esta é a tese de Görres, ao qual Schmitt, curi-osamente, chama “ein politischer Schriftstel-ler” [N .,13]. Também emA Visibilidade daIgreja nos são fornecidas sérias indicaçõesquanto à gravidade da divisão da Igreja e ànecessidade espiritual da sua reunificação.

Tudo isto parece indubitável. A começar

20Cf, os textos doEvangelho de Tomás, 22, citadopor Peter Brown inEl cuerpo y la sociedad. Los cris-tianos y la renuncia sexual, Muchnik Editores, 1993,p. 166.

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pela contraposição dos géneros. Todavia, emNordlicht, a polaridade é apresentada comoconstituinte da própria essência da Terra, eo duplo centro da elipse que governa os as-suntos do planeta é o símbolo central do li-vro, o qual não se concretiza num único fe-nómeno, qual seja o sexual. Ali se afirmaum “dualismo geral do mundo sensível, queregressa em numerosas contraposições: ho-mem e mulher, tempo e espaço, vertical ehorizontal, aritmética e geometria, electrici-dade e magnetismo” [N .,11]. Que os doisfocos da elipse procurem o centro sem, con-tudo, o alcançarem, é a explicação de toda avida. Aqui, nesta duplicidade da vida, aca-bará igualmente a Igreja por legitimar o seupapel decomplexio oppositorum. Pois já emNordlicht “Homo est duplex et si duplex nonesset non sentiret” [N .,11].

Trata-se, naturalmente, de mitos, da lin-guagem da imediatez, de uma linguagemque se separa do seu elemento sociológico,de toda a referência a uma realidade ex-terna a si própria, de todo o uso prático.O que neste poema de Däubler mais sur-preende Schmitt consiste nesta superação donaturalismo da linguagem, nesta eliminaçãode toda e qualquer referênciaad alterum,própria dos meios de comunicação quotidi-ana [N .,45], para se deixar apenas conduzirpor palavras vivas, por palavras que vivem.Neste sentido, é o próprio poema, com o seupeculiar modo de acesso à linguagem, que setorna explicável pela transfiguração da reali-dade e do homem na qual culmina a epopeiada Terra. Numa das séries citadas por Sch-mitt, já quase no fim do poema, quando umnovo céu e uma nova terra - na qual é su-posto viver o poeta, o qual dá, deste modo,um testemunho interno da verdade do poema

- emergem, alude-se ao modo como as pala-vras brotam do canto:

“A paisagem boreal coroa o sonho maissublimee todas as coisas começam então a cantar asua canção.

A coisidade está morta. A palavra enche oespaço.

Dentro de mim ouço o mundo ressoar.A clara espuma das estrelas adormece, voa

e canta.Da raiz materna pode agora a palavra res-

soar.Canta. Soa. A si mesma se canta.E de novo habita o espírito na palavra”.[Nordlicht, 54]Curiosamente, diz-nos Schmitt que esta

linguagem do mito renunciou já a toda a me-diação. Transformando o mundo inteiro emimagens e em símbolos, todo o fenómenoacha o seu significado no próprio seio dopoema, não tanto de uma maneira orgânica,mas na justa medida em que cada verso pos-sua a força interna de forjar a visibilidadede um sentido que permanece, em si mesmo,oculto.

E, no entanto, antes de chegar a este pontode transfiguração final, a forma mítica do du-alismo não conhece outro cenário que não oda tensão e o do conflito. Fala Schmitt daKampfplatz des Lebens, uma vez que a elipsejamais deixará de ter dois pólos, não alcan-çando nunca o seu centro. Como já antes emKant e em Hölderlin, é na elipse que se en-contra a própria lei do curso histórico, a con-dição dinâmica da história, sempre a meiocaminho entre a ordem e a desordem. Toda-via, essa elipse acaba por dar origem a umfenómeno perfeito, circular, luminoso: a au-rora boreal, a luz do norte, precisamente nopólo, no instante em que mais fina é a pele

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da Terra e mais facilmente pode surgir a luzque a habita, luz, em si mesma, solar. Essaluz boreal é o espírito, o culminar do cami-nho gnóstico da sabedoria. Coroada por essaluz e nela transfigurada, a Terra é uma novaTerra. Não é já um frio planeta, mas antesuma estrela luminosa que habita a sua pá-tria natal, a luz do sol que, no fundo, buscaráem vão, mediante a construção de um Estadosob a exortação de Ra. Com isto, verificamosque não é à justiça do Estado que, em últimograu, aspira o livro de Däubler, mas antes àreunificação da humanidade com o espírito.Esta é a representação escatológica que im-pregna o comentário do poema de Däubler.

O dualismo do mito gnóstico avança sem-pre através de uma organização triádica: oespiritual, o animal e o vegetal, aos quaiscorrespondem o sideral, o atmosférico e otelúrico. Por seu turno, o homem possuiigualmente uma parte sideral, o cérebro, umaparte atmosférica, o coração, e uma parte te-lúrica, as tripas [N .,12]. Todavia, a auroraboreal é uma luz telúrica contida no seio daprópria Terra, a qual emerge, na sua autên-tica irmandade, com a luz sideral do Sol,transformando assim a totalidade da Terra.Nesse caminhar da Terra em direcção aoNorte, em direcção à sua própria luz interior,é sempre a potência do Sol que, organizando-se em torno da cifra mítica de Ra, funda eforma o Estado: “Ra é o Deus dos poderesterríveis, dos soberanos violentos e viris, quefunda o Estado sobre a força bruta” [N .,18].

No poema de Däubler, o Estado é a ex-pressão do dualismo que percorre a Terrae atravessa todas as polaridades. No en-tanto, ele só pode surgir mediante o reco-nhecimento dos bens da Terra, reconheci-mento que não é possível sem essa duali-dade. Quando, no poema, se expressa a

vontade de fundar um Estado, refere-se, aomesmo tempo, que “a terra que nós saque-amos está repleta de bens íntimos” e, nomesmo lance, endeusa-se a mulher como ga-rantia do amor. Schmitt explica: “Com a ra-dical separação do homem e da mulher, oIrão cumpre o mesmo dualismo que levaraa cabo no mundo do pensamento filosóficoatravés da vida do deus bom e do deus mau,Ormuzd e Ahriman, e da guerra da luz comas trevas. Ulteriormente, as seitas gnósticasmaniqueias reelaboraram tudo isto como oDeus da justiça em contraposição ao deus doamor e, em particular, em contraposição aodemiurgo, ao criador deste mundo visível einsalvavelmente mau” [N .,32]. A especia-lização do varão na construção do Estado éum correlato da sua elevação à justiça e, numcerto sentido, da sua identificação com a po-tência da luz, enquanto a mulher, operandonos reinos da escuridão e do mal, se especi-aliza no amor. Assim, o mundo do Estadonão supera os dualismos, antes vive intensa-mente deles. Não supera o mito, vivendo, nofundo, sempre dele. Não supera a luta, antesse fundando nela. Embora, finalmente, sejapor seu intermédio que se avança no cami-nho que conduz à irrupção do espírito.

5 A vocação intramundana daEuropa.

É, contudo, da segunda parte do comentárioque se podem extrair as consequências maisrelevantes para se compreender a posteriorevolução de Carl Schmitt. Nela se levantae coloca o problema espiritual da Europa, arecusa da Europa em fugir do mundo, umaatitude que se encontra nos antípodas do quesucedeu no Oriente. A insistência na Terra,

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a busca - própria do Ocidente - da luz bo-real através de todas as lutas e polaridades, étambém a esperança na eternidade, a antigaaspiração idealista de fazer da terra um reinode Deus.

“No mais fundo envelhecem os esquemasda dúvida.

O mundo irmana-se e o espírito ressoa”[N .,53].

No final das contraposições, incluída acontraposição dos géneros, transparece a es-catologia da reconciliação hegeliana. Mas, oque é que sustém, afinal, este activismo in-tramundano do Ocidente, essa atitude éticaperante o mundo que Max Weber qualificoucomo oéthosdo racionalismo ocidental? Nofundo, Weber acreditava que se tratava de umespírito ético. Só queGeistsignifica, agora,algo muito mais preciso e concreto. Não ape-nas oLogos, mas oFilho; não apenas o co-nhecimento, mas o amor. Donde, a centra-lidade da síntese das contraposições e, an-tes de todas, a do masculino e do feminino.O Ocidente insiste no trabalho da terra e ar-rosta com os perigos provenientes de todasas lutas, com as consequências da cisão eda culpa. Fá-lo, porém, porque acredita noFilho. Tal é o fruto do cristianismo no seusolo: não haver herdado apenas o princípiodo sol, viril e luminoso, do Estado romano,mas também o feminino, amoroso e terreno,do cristianismo. Desta herança procede a suacrença no pensar humano, na “razoabilidadede todo o ser, nos bens inerentes à natureza,na humanidade, na sua história e desenvolvi-mento” [N .,55].

Carl Schmitt viu com toda a clareza queuma talcrençanão era a de Kant, para quemo fundamento último de todas as perguntasnão era uma afirmação, mas um silêncio.Para Kant não é uma certeza objectiva que

tudo seja bom e possua um sentido, uma vezque existe pelo menos um certa verosimi-lhança na tese segundo a qual o coração dacoisa em si não alberga um sentido humano.Por conseguinte, que o homem e a naturezasejam bons em si mesmos não é um enunci-ado metafísico radical que provenha da ori-entação do senso comum, apegado às duali-dades da vida e às suas ambíguas lutas. Ora,se uma tal crença se nos impõe de modo apa-rentemente tão imperativo é porque já vemostoda a Terra transfigurada. Assim, que a na-tureza nos conduza a uma luta de potênciasmitológicas não parece ser um caminho aoqual nos possamos ou devamos esquivar, an-tes faz parte da experiência que nos encami-nha até à luz boreal. Finalmente, tudo seriabom. A crença não admite excepções. Sch-mitt fala de uma universalidade que provi-ria de uma ilimitada credulidade <grenzen-losen Gläubichkeit>. Encontramo-nos, destemodo, em plena filosofia da história, e numafilosofia da história radicalmente antibenja-miniana, que se funda não na catástrofe dotempo, mas na sua transfiguração.

O texto decisivo diz assim: “O filósofoda história, que acumula séculos de histó-ria humana, parte do assombro relativo a umsegundo concreto, individual. Nada é tãomisterioso quanto este segundo. Que preci-samente neste instante acontece justamenteisto, que precisamente agora, em Veneza, alua ilumina o canto mais alto de um palá-cio gótico e uma mulher aparece por detrásdas cortinas, que Cristo, precisamente ali,naquele ano e precisamente ali, se faz ho-mem. Que abismo de mistérios! Que pre-cisamente sobre estas crianças, as quais, noseu assombro, são tão indefesas, desce a po-derosa força, a qual, numa abstracção po-derosa, salva a individualidade da situação

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desesperada, para que encontre em milhõesde segundos o sentido que não existe em ne-nhum deles em particular e para que acreditena plenitude dos tempos, apesar da insignifi-cância dos períodos particulares de tempo...”[N .,55-57].

Ora, para se poder chegar a esta conclusãoé necessário algo mais do que aAufklärungkantiana. Requer-se aVerklärung, a trans-figuração do tempo por obra do poder es-piritual da interpretação da história, o qualproduz o maior crente, o filósofo, ao reco-nhecer o momento em que Deus não aban-dona a história. Na verdade, Schmitt parece,aqui, levar muito a sério a capacidade, pró-pria da arte, de transfigurar a realidade. Acena pode descrever perfeitamente um frescopintado por Fra Angelico. Só que agora ocenário já não é o cavalete, mas a alma hu-mana. O que o pintor desenha, deve o filó-sofo acreditá-lo. É Hegel a imagem pairanteque ronda estas páginas, páginas onde o mitocristão da esperança na bondade de um vidanova é convocado. E, no entanto, trata-se deum Hegel muito pouco hegeliano, já que, di-ante desta arte, Schmitt continua a acreditarque se deve genuflectir e crer. A arte não pa-rece estar morta. Schmitt parece encontrarnela uma crença.

Mas, como transformar aAufklärungemVerklärung? Como aceder ao sentido da filo-sofia da história que salva o tempo? Comotranscender as lutas internas das potênciasmíticas na plenitude da reconciliação? Comoatingir o estádio último da gnose e do espí-rito, o qual, de acordo com a velha grada-ção, trespassou, finalmente, as dimensões te-lúrica e anímica? Como deter, parar, estetempo linear, mitológico, para dar entradaao tempo da plenitude, ao instante eterno?Como deter a história após a continuidade de

milhões e milhões de instantes sem uma ge-nuína e plena significação? Se este momentode transfiguração é a gnose, a autênticavisiodei, como chegar a ela através de “terríveislutas, necessidades e angústias”? [N .,60].

Talvez esta pergunta nos abra agora aoque de mais próprio e característico existana crença do Ocidente e, porventura, igual-mente, à mais secreta crença de Schmitt, asaber, a natureza radicalmente metafísica emque assenta todo o seu pensamento.

Com efeito,Nordlicht não é apenas a “po-esia do Ocidente”, mas a proposta revitaliza-dora, optimista, renovadora da metafísica doOcidente, em si mesma inocente, mas ple-namente autoconsciente. Pois um tal cami-nho de transfiguração diverge daquele queé próprio da luta, da actividade, da atitudeética intramundana, mantida e asseguradapela primordialidade do dever ser. Trata-se,portanto, aqui, de metafísica, não da éticaintramundana. Trata-se do assombro, nãoda certeza moral do puritano weberiano. Omoralista, diz-nos Schmitt, tem já a respostapronta na ponta da língua - o dever -, e comela empreende o caminho em direcção àscoisas para lhes mostrar o verdadeiro sentidoda sua existência. Ao invés, o gnóstico, oque conhece, o que vê Deus, tem uma atitudecontrária: em vez de ser activo, inclina-se,humilde, perante aquilo que o espanta e quereconhece comovoluntas Dei in ipso facto.

Mas, como pode uma realidadetransfigurar-se, como se fora, ela pró-pria, um testemunho directo de que Deusnão abandona o mundo, e um inequívocosinal de que é a presença da sua vontadeaquilo que ali se manifesta? Gnose é reve-lação, dádiva e graça, diz Schmitt [N .,59].Quando se escreve a interpretação quetransfigura o instante, obedece-se a uma

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ordem. O poeta é um novo evangelistae o comentador do poeta participa nesseseu conhecimento. A atitude dominante é,aqui, a de uma passividade acolhedora. Oconhecimento gnóstico é um deixar-se guiar,um deixar-se ir.

O mais próprio da crença ocidental estáem homem dever lutar, matar e morrer. E,para isso, deve percorrer o caminho do pe-cado e a todo o momento o reproduzir. Con-tudo, apesar das obras, apesar da luta e dosangue derramado, a natureza, a história, otempo e a Terra serão transfigurados pelagraça. As dores e as penas deste mundo ea bondade de Deus são o mistério. Porém,apenas na sua coexistência, se revela a ver-dadeiracomplexio oppositorum. No entanto,e ao contrário do que sucedeu ao homem ori-ental, o conhecimento do mal que domina aTerra inteira, as penas deste mundo e a ine-vitabilidade do pecado, não induziram o ho-mem ocidental a abandonar o mundo, a fu-gir da acção: “Os grandes europeus amam-na e acham-na boa (à Terra), apesar de todosos horrores; eles não querem nem a negaçãopassiva nem o descaminho pelagiano, com asua confiança racionalista nas suas própriasforças e no seu próprio bem; eles não com-preendem o problema da culpa moralmente,mas religiosamente, o seu optimismo - porcomparação com o pessimismo naturalista emundano dos orientais - não é superficial,mas - de maneira clara e livre, apenas nosmaiores - de um nível superior, a negação da-quela profunda negação oriental do mundo”[N .,62].

Na sequência de Agostinho, Lutero, Pas-cal e Hegel, Schmitt viu-se a si mesmo comoa um destes europeus. O seu caminho atra-vés do pecado, do mal e do crime poderiamuito bem não conhecer limites porque, gui-

ado pelo seu certeiro instinto de diagnostica-dor, compreendia que a sua alma era sufici-entemente forte para poder abismar-se nes-sas profundidades sem desesperar, suficien-temente sã para poder encontrar a transfi-guração da realidade e finalmente identifi-car um sentido de graça. Deste ponto devista, Schmitt sabia-se dotado do mais flexí-vel poder de interpretação, o verdadeiro po-der espiritual digno de tal nome. Este foi oseuarcanum. Seguindo a luz boreal do es-pírito, não deixou de se examinar a si pró-prio como se examina alguém que percorreo caminho que vai da natureza à graça, domito à plenitude do tempo. Nem simples-mente ancorado nas potências mitológicas daguerra, nem meramente esperançado na ir-rupção da graça como um pessimista scho-penhaueriano; nem simplesmente conscientede que atravessar a natureza significava per-correr um caminho sem Deus, nem tão de-sesperadamente transcendente que pensasseque Deus só poderia irromper no tempo coma violência divina da catástrofe final. Porisso, emNordlicht, reabilitou Schmitt um ca-tolicismo gnóstico que é muito pouco cató-lico, mas que é muito moderno. Porque, fi-nalmente, o que vincula a natureza e a graçaé omilagre da graça, a generosidade da dá-diva e do dom, enão a rectitude da pró-pria natureza, já insuperavelmente cheia depecado [N .,62]. O sereno equilíbrio de To-más de Aquino, de acordo com o qual o pe-cado do homem não é suficientemente po-tente para destruir a tendência para a ordem,imanente à natureza, a qual é, por seu turno,condição da recepção da graça, não é menci-onado como fazendo parte desta tradição dosgrandes europeus. Por aqui, facilmente se vê

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que Chesterton21, não é, certamente, um he-rói de Schmitt.

Neste sentido, Schmitt sabia que a possi-bilidade de reabilitar o catolicismo não equi-valia à possibilidade de reabilitação de umametafísica que se atrevesse a afirmar a conti-nuidade da natureza e da graça. Ao revelar ojogo das categorias de Däubler do ponto devista da actualidade, Schmitt mostrava assimas suas cartas.

O que significava, afinal, acreditar numanatureza capaz ainda de oferecer um cami-nho até Deus, num mundo dominado pelatécnica, pelo tráfico, pela organização capi-talista, mecanicista, relativista, entregue aocálculo e ao interesse subjectivo? Comocontinuar a acreditar no homem transfor-mado num pobre diabo [N .,64]? Daquiapenas poderia brotar a imediatez do mitoapresentando-se, na sua forma mais bruta,como pura incondicionalidade da luta.

6 Actualidade e falta de espírito.

De certo modo, a acusação que Schmitt lan-çara à actualidade (a que era a sua e a queé ainda hoje a nossa) não era senão uma: OOcidente rompeu acomplexio oppositorumconstitutiva da sua realidade. Na verdade,trata-se da redução utilitarista da íntima di-mensão religiosa da modernidade, tal qual ahavia diagnosticado o Weber daÉtica pro-testante. Com efeito, nunca como agora oOcidente apoiou tanto a acção ética intra-mundana, nunca como agora julgou ser ca-paz de realizar o reino de Deus na Terra. Na-turalmente, o abandono da dimensão com-plementar da Graça implica uma interpre-

21Cf, S. Tomás de Aquino, G.K. Chesterton, Livra-ria Cruz, Braga, 1958.

tação mesquinha e redutora daquilo que seapresentou como o reino de Deus. Apareceaqui, talvez pela primeira vez em Schmitt,a palavra secularização [N .,65], tomada naacepção geral de uma abandono da dimensãometafísica dos fenómenos mais importantese decisivos da Terra. Secularização, por-tanto, enquanto total naturalização e absolu-tização da vida e da acção humanas e con-sequente interpretação dos elementos funda-mentais da existência humana fora de qual-quer relação com o aparecimento do dom eda graça: “O direito converteu-se em poder,a confiança em calculabilidade, a verdade emcerteza universalmente reconhecida, a belezaem bom gosto, o cristianismo numa organi-zação pacifista. Uma falsificação e confusãodos valores domina as almas. No lugar dadiferença entre o bem e o mal, ergue-se autilidade e a nocividade diferenciadas até aoextremo” [N .,65].

São estas as dimensões secularizadas.O tom apocalíptico deste comentário a

Däubler expressa-se, de maneira clara, na in-terpretação do mecanismo de secularizaçãopropriamente dito. Pois que, para que umtal mecanismo funcione, é necessário atri-buir um sentido novo a cada um dos sentidosmais próprios do Ocidente, numa palavra,um sentido novo para cada um daqueles âm-bitos que o Ocidente nunca pensou à margemda Gnose e da Graça. Aliás, a própria pa-lavra “secularização” é gnóstica, porquantopressupõe que tudo o que procede de Deusconsuma o seu sentido numa referência au-tónoma ao mundo. Ora, ao propor uma inter-pretação radicalmente imanente e naturalistade todos os velhos elementos da metafísica,a actualidade assume como escusável, comointeiramente prescindível, uma sua interpre-tação transcendente, fazendo-o, além disso, à

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conta de uma generalizada impressão de queconservou, tem em conta e respeita tais ele-mentos. Finalmente, vem ao de cima a pala-vra decisiva da situação escatológica na qualvive Schmitt: o Anticristo impõe-se preci-samente quando consegue imitar Cristo, equando este mimetismo é o suficientementeperfeito de modo a que toda a suspeita possanele dissolver-se.

Com efeito, para Schmitt, essa imitaçãocumpriu-se na actualidade. A secularizaçãoé a estrutura do Anticristo. Com a invocaçãomaciça do Anticristo, a interpretação gnós-tica do presente adquire a sua coerência fi-nal. A técnica imita ofiat lux do Deus cria-dor, o conforto22 e a segurança imitam a pazda alma, a previsão e a planificação imitam aprovidência. E, todavia, o verdadeiro gnós-tico, aquele que, com Däubler, entende quea transfiguração do presente é sempre pos-sível, não se deixa armadilhar por este du-alismo. De certo modo, não é aqui que sepode encontrar a cifra hermenêutica do pre-sente. Com este gesto, distancia-se Schmittdo tom moral de Walter Rathenau: “Quempressentiu a significação moral do tempo e,ao mesmo tempo, se tomou a si próprio como

22Sobre a novidade do fenómeno do que os hotelei-ros franceses chamaramle confort modern, consulte-se, de Aldous Huxley, o curto e brilhante ensaio “OConforto”: “O que é que o conforto e o asseio têmque ver com a política, a moral e a religião? À pri-meira vista, uma pessoa diria que não havia nem po-deria haver nenhuma ligação causal entre as cadeirasde braços e as democracias, os sofás e o relaxamentodo sistema familiar, os banhos quentes e a decadên-cia da ortodoxia cristã. Mas olhe-se mais de perto edescobrir-se-á que existe a mais apertada ligação entreo aparecimento recente do conforto e a recente histó-ria das ideias”. Cf, Huxley, Aldous., “O Conforto”,in Sobre a Democracia e outros estudos, Livros doBrasil, Lisboa, s/d., p. 237.

filho do tempo, não podia deixar de ser dua-lista. Um crítico agudo do tempo descobriu acontraposição de mecânica e alma” [N .,68].

Já Max Weber insistira nesta contraposi-ção, com o propósito explícito de referir oinevitável definhamento da alma diante doferreteamento da dominação técnica. Ora,este caminho pessimista próprio da geraçãoanterior à sua, diz-nos Schmitt, só pode con-duzir a Marcião, o dualista, aquele que semostra incapaz de compreender uma trans-figuração possível para o sentido da Terra.Pois Marcião é interpretado como se hou-vesse acreditado na radical impotência deDeus, como se o mundo fosse definitiva e ra-dicalmente insalvável. Incapaz de se refugiarnuma fuga do mundo, incapaz de sair destaprisão, o homem deveria continuar conde-nado a padecer dos efeitos de uma criaçãoque, no fundo, seria a obra do macaco deDeus. Ora, este é o caminho do céptico,diz-nos Schmitt, o caminho daquele que nãoacredita ser possível sair deste mundo degra-dado, mas que possui, pelo menos, suficientepresença de espírito para não impulsionar,mais ainda, o processo de secularização.

E, no entanto, esse dualismo de Marciãosupera-se insistindo no próprio gnosticismo,só que, desta vez, num gnosticismo mais re-finado, mais completo. Pois o mundo, estemundo, possui o seuéon, e, a sua transfigura-ção, coincidirá com o tempo do Apocalipse.O céptico é aquele que não é capaz de verque o Apocalipse existe, aquele que se revelaincapaz de compreender o horror escatoló-gico presente já na primeira guerra mundial[N .,68]. Neste contexto, o livro de Däublerrevela todo o seu significado. É a outra faceda medalha, o rosto complementar do mo-mento apocalíptico, a nova revelação. Paraalém de constituir uma compensação espiri-

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tual em tempos de falta de espírito, é o livrodoéondeste mundo.

Mas, qual vem a ser, afinal, o significadode tudo isto? De maneira essencial, este livroencarnauma polaridade num mundo deses-piritualizado e quase transformado num cír-culo nihilista. Com a criação de este cen-tro denso de espiritualidade, o livro de Däu-bler permite o início de uma nova época,época capaz de produzir uma “epidemia re-ligiosa”, um estado de ânimo apocalíptico,produzindo assim a mais radical negação dotempo. Hegelianamente falando até ao fim,afirma Schmitt “Nordlicht aparece como anegação da última e da mais universal de to-das as negações” [N .,70].

Todavia, a negação da negação não é omero dualismo, mas a sua superação. Pormuito que a polaridade do espírito se opo-nha a este presente desalmado da máquina,o qual se revela em toda a sua força na lutamundial, nem tudo é dito com esta simplescontraposição: “A noite terrível é necessá-ria para conduzir a luz terrena e o sol ter-reno ao espírito. O espírito vence a dúvida; aúltima negação outorga a superação de todaa relatividade, a transcendência” [N .,75-76].Esta é a tese última, bem longe, por sinal, docepticismo. Mas talvez corresponda igual-mente ao sentir mais obstinado e mais se-creto de Schmitt, aquele que, afinal, melhoresclarece o caminho ziguezagueante da suaobra. Com efeito, se alguma atitude houveà qual Schmitt sempre se revelou profunda-mente alheio e a cujopathosjamais se ateve,essa é a atitude do céptico. Jamais lhe des-cobrimos uma palavra de dúvida que seja, eesse é certamente um dos motivos que con-fere à sua escrita uma luminosidade sem pre-cedentes no interior da tradição das gran-des obras escritas em língua alemã. Jamais

deu Schmitt à estampa, um pensamento quefosse, que, pela sua própria constituição, nãopareça estar convicto de si mesmo. Nada hánele dessa famosa escola da suspeita, dessemedo de ser enganado ou confundido, dessaparanóia da dúvida que o século herdou deFreud e que obstinadamente persiste em du-vidar. Se acaso padeceu desta enfermidade,jamais o confessou e muito menos forneceuo mínimo sinal de que nela estivesse interes-sado. Caso para, com Montaigne, afirmar-mos: “Que mole travesseiro é a dúvida parauma cabeça bem feita!”

Oculto nas suas crenças, por vezes nasmais díspares, ninguém descobre a pessoaSchmitt por detrás das suas opiniões. Aquelaconsciência infeliz e desditosa, que Hegeldesenhou com mão de mestre, afundada esepultada na paralisia e profundamente satis-feita com o mal em virtude do conflito da dú-vida e da finitude da decisão, não parece teralguma vez atormentado e perseguido Sch-mitt, que parece haver atravessado os pre-cipícios da vida com a consciência de pos-suir razão. Todavia, apesar de haver des-coberto em toda a manifestação da dúvidauma ocasião para não passar à acção, difi-cilmente se ilude a impressão de muitas ve-zes haver passado de facto à acção e só de-pois ter encontrado a motivação e a certezapara actuarassim. Em todo o caso, seNor-dlicht é, efectivamente, o seu arcano, talvezSchmitt tenha usado o poder de interpreta-ção que lhe coube para aproximar o reino deDeus [N .,76]. É claro que, sem esta atitudesubjectiva, sem esta quase universal credu-lidade, não é possível compreender as mar-gens éticas nas quais perigosamente se mo-veu.

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7 Espírito e Instituição.

Este gnosticismo, foi, pelo próprio Sch-mitt, guindado aarcanum do seu destino[Ex.CS.,52]. E, de certo modo, podemosmesmo afirmar que uma boa parte da suaobra procede de uma idiossincrática apropri-ação de umphatosexpressionista próprio doinício do século. Já aqui se podem identifi-car aErde, como potência feminina, e o mar,como potência masculina, potências não jámitológicas, mas míticas. A inspiração dorelato infantil deTerra e Maré precisamentedesta época [Gl.,141, 30.4.48].

Sempre que um Deus apareça de formatal que, reconhecido por todos os ho-mens, produza catolicidade e se transformeem caminho de salvação universal, o mitotranscende-se em teologia. Ora, o mesmopode suceder na teologia política quando daluta emerge a lei e o direito. A transforma-ção da terra em paraíso é, justamente, a pre-visão última deNordlicht. De acordo como poema de Däubler, isto deveria acontecerquando as ordens da terra e do mar, o princí-pio feminino e o masculino, o princípio cató-lico e o protestante, o princípio da justiça e odo amor, Roma como direito e Roma comoIgreja, viessem a convergir na configuraçãode uma ordem única capaz de reconstruir oandrógino primitivo, o Filho que confere ple-nitude ao tempo23.

É aqui que surgem as diferenças e se pro-duz a distância de Schmitt relativamente a

23Cf, para a figura do andrógino, oPrelúdio e oprimeiro volume deJosé e seus irmãos, de ThomasMann, Livros do Brasil, Lisboa, s/d., onde, de certomodo, se defende a ideia de que as potências redento-ras de José, e do mito humanista, procedem do esta-tuto hermafrodita do jovem adivinho. Estas potênciastelúricas encarnam-se num filho da terra cuja sexuali-dade reproduz o velho esquema do andrógino.

Däubler. Pois Schmitt não quer ouvir fa-lar das consequências anarquistas resultantesdas perspectivas utópicas de Däubler, com oseu paraíso hermafrodita na terra. A partirdo escrito imediatamente posterior,A Visibi-lidade da Igreja, a posição de Schmitt é a deque a dualidade mitológica e a luta devemdar origem a um direito e a um Estado he-gelianamente entendido como Deus na terra.O catolicismo não pode, portanto, ser rea-firmado com base nessa metafísica gnósticado espírito de Däubler, mas a partir de umaaustera consideração da Instituição. EmAVisibilidade da Igreja, proferirá Schmitt apalavra-chave dessa compreensão: trata-sede umaconcentração pneumática no jurí-dico.

Esta interpretação do jurídico como a ma-nifestação mais adequada e precisa da trans-figuração espiritual da terra revela a mais de-terminante e decisiva característica da supe-ração do seu anterior gnosticismo espiritu-alista. Por conseguinte, só agora se pode,com propriedade, falar de um catolicismoem Schmitt, catolicismo, todavia, que nãodeixa de se apresentar como o ponto terminalde todos os antecedentes gnósticos e, sobre-tudo, como o ápice da dualidade e da luta.Consequentemente, são o próprio elementoe a moldura onde o catolicismo se inscreve edá a ver que mudam: não se trata já do espí-rito enquantovisio Dei transfigurada no ins-tante, mas da instituição jurídica. Não obs-tante, nem a premissa, nem o caminho, sealteram: a luta e o horror de um mundo empecado. Esboça-se, assim, o cenário mais co-nhecido: a dualidade só pode dar origem auma luta que o direito soberano deve ser ca-paz de reduzir. Deste modo, é também a par-tir da temática formulada emNordlicht quepodemos chegar a uma efectiva compreensão

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dos fundamentos últimos deTeologia Polí-tica e deO Conceito do Político.

8 Amigo e inimigo e memória deDäubler.

Foi nesse trabalho fundamental, intituladoO Conceito do Político, que Schmitt tomouplena consciência e expôs de maneira clara esistemática a forma mitológica do presente.Não deveria, portanto, surpreender-nos quenessa angustiante reflexão sobre o ser e sobreo seu próprio percurso intelectual e existen-cial que é oGlossarium, chegasse Schmittà conclusão de que, com a sua famosa dis-tinção entreamigo e inimigo, mais não fa-zia, afinal, do que glosar, uma vez mais, asua antiga leitura de Däubler. Contudo, nãoparecem restar dúvidas de que uma efectivagenealogia deste par de conceitos schmitti-anos e uma rigorosa descrição das respecti-vas funções no que à caracterização da polí-tica diz respeito, deva, necessariamente, re-montar a Nietzsche. O próprio Schmitt oafirmou. Sem o conceito deGrande Polí-tica de Nietzsche, opathosde Schmitt é,desde logo, incompreensível. Deve, con-tudo, dizer-se que este elemento se joga numcontexto muito mais amplo, embora numaagonística precisa24.

24Assim - apesar de um constante posicionamentocontra o nietzscheanismo e contra Nietzsche, ao qualSchmitt dava uma interpretação técnica e a quem cha-mava “o mais alto sacerdote do sacerdócio privado”num mundo em que a metafísica se havia convertidoem estética -, nas últimas observações deGlossarium,revela-se-nos a procedência nietzscheana da tese queafirma o primado do espaço sobre o nada, a potên-cia obstinada do ser espacial face ao nihilismo. “WoRaum ist, ist Sein” (Onde há espaço, há ser), cita Sch-mitt, e chama à frase “herrliche Nietzschesatz” (mag-nífica frase de Nietzsche) [Gl.,317, 6.7.51]. A impor-

Como vemos, sempre que Schmitt reme-mora, inevitavelmente regressa a Däubler.Assim também neste caso. Na sua cançãosobre Palermo, escrevera Däubler:

“Der Feind ist unsere eigne Frage als Ges-talt

Und er wird uns, wir ihn zum selben Endehetzen”

(O inimigo é a nossa própria pergunta en-quanto forma e ele arrasta-nos, e nós a ele,para o mesmo fim)

[Gl., 213.25.12.48]Com o gesto atento de grande autor, que

continuamente coloca questões transcenden-tais aos seus leitores, Schmitt submete acompreensão e a admissibilidade da tese nu-clear do seuO Conceito do Políticoà provada verificação do sentido mais profundo con-tido neste verso de Däubler. A chave é opróprio texto deNordlicht que a fornece. Aquestão central reside na própria estruturainterna do ser humano enquanto dualidade.Como o diz o verso, o inimigo não é senãoa forma da nossa própria pergunta. Trata-

tância da asserção de Nietzsche não se reduz apenasà centralidade conceptual da configuração do espaço.É a sua própria filosofia que está aqui em jogo, e é elaque confere aoNomos da Terraa sua autêntica signifi-cação histórica, na medida em que o situa no projectode superação do nihilismo moderno.

Aqui, nesta revalorização da Terra, emerge igual-mente a questão do tempo, enquanto dimensão deri-vada, como a chave da regulação das tensões do mitoe dos seus dualismos. Pois que é no tempo que o con-ceito do político, da grande política, encontra a suaarena. “O tempo”, diz Nietzsche (1881-2), “assoma,ali onde se conduz a guerra pela soberania da Terra.Foi introduzido em nome de doutrinas filosóficas fun-damentais, isto é, em nome de uma luta ideológicapela unidade.” [Gl.,309, 29.8.50]. Todavia, no en-tender de Schmitt, Nietzsche não passou daqui, nemfoi consequente, perdido, como ficou, no desespero.Energicamente, recusou Schmitt o seu gesto.

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se da existência humana na sua forma depergunta, incompreensível como harmonia ecomo paz. O inimigo é carne da nossa carnee sangue do nosso sangue. E, no entanto, aforma da pergunta não é jurídica. Pois, comoveremos, a forma jurídica é decisão, infalibi-lidade, resposta, crença.

De um ponto de vista mitológico, a rela-ção amigo-inimigo é já a relação de Adãoe Eva. Regressamos aqui ao andrógino deDäubler, o qual, cindido e fracturado, repre-senta e fundamenta a luta originária. Desen-volvendo a passagem de Däubler, propõe-nos Schmitt, a 13 de Fevereiro de 1949, aseguinte entrada noGlossarium, particular-mente elucidativa: “Historia in nuce. Freundund Feind. Der Freund ist wer mich bejahtuns bestätigt. Feind ist, wer mich in Fragestellt (Nürnberg, 1947)”. É aqui notório oeco do verso anteriormente citado, aplicadoà mais terrível situação existencial. No quese segue, pergunta-se Schmitt o seguinte:Quem pode questionar-me a mim mesmo?Quem pode fazer-me uma pergunta? Quempode, em suma, ser meu inimigo? A res-posta não oferece dúvidas: “No fundo, ape-nas eu a mim mesmo”. De modo que, res-pondendo a si mesmo e, por esse mesmogesto, entregando-nos o resultado do exameao significado último do seuO Conceito doPolítico, responde Schmitt: “Só o meu irmãome pode por em questão e só o meu irmãopode ser meu inimigo. Adão e Eva tiveramdois filhos: Caim e Abel”. Ora, não haveráaqui uma metáfora radical do homem?

A mais elementar estrutura antropológicagera hostilidade. Esse parece ser o sentidomais profundo do mito da expulsão do pa-raíso, tão recorrente e tantas vezes objectodas mais variadas metamorfoses exegéticas.De facto, com as insistentes referências ao

matriarcado originário, os mitólogos român-ticos mais não faziam do que evocar cons-tantemente o Paraíso25. Todos os esquemasse encontravam neste cenário originário.

Com a própria cisão do homem originário,com a divisão dos géneros, com o reconheci-mento da diferença entre homem e mulher ea emergência do rubor e da vergonha recípro-cos, nessa imanência do mundo para sempresituada fora da magia do umbral guardadopelo anjo, aí brota a violência do homem, asua própria dualidade como amigo e inimigo,marido e mulher, filho e irmão.

Uma passagem de Johann Jacob Bacho-fen, reproduzida por Schmitt, diz assim: “Namagia deste ar do Paraíso satisfaz-se toda aexigência feita à vida e toda a esperança doalém” [Gl.,218]. A diferença entre amigo einimigo reproduz-se sempre que este ar doparaíso arrefece e congela. É por isso quenão existe, nesta experiência, qualquer lu-gar para a assimetria. Ao invés, tudo apontapara a mais absoluta igualdade, uma vezque o que quer que seja que afecte o amigoafecta igualmente o inimigo. Ambos parti-lham a mesma sorte até ao fim: na medidaem que compreendo o inimigo transformo-me nele, mas também ele se transforma emmim. Como um corpo e a sua sombra, não hásalvação apenas para um. Enquanto eu vivo,vive também o meu inimigo. É esta estru-tura, verdadeiramente existencial, que atra-vessa a imanência completa do mundo, noqual, apesar de tudo, Deus e o direito têmuma palavra a dizer.

No final do sua epopeia do espírito, Däu-bler escrevera uma frase que Schmitt não se

25Cf, Bachofen, Johann J., Mitologia arcaica yderecho materno, Anthropos del Hombre, Madrid,1996.

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cansa de recordar: “Agora, arrebentará a leiem pedaços” [Gl.,216,18.1.49]. Estas pala-vras devem ser postas em relação com umapassagem onde se cita o jovem Hegel e a suanoção de lei como fragmento da natureza hu-mana [Gl.,200,28.9.48]. Esse fragmento danatureza humana, ou essa natureza humanacaída e fragmentada, é o que resta quandoa vida originária do amor se desfaz em pe-daços. Tal como sucedia no jovem Hegel, ocrime de Caim sobre Abel é a essência dalei. No fundo, ambos os autores estão deacordo. Para Däubler, uma vez reproduzidaa unidade originária do amor e do espírito,a lei, fragmento da velha unidade, rebentarácomo o nada diante da nova vida. A tese defundo é a de que a lei não é nunca receptá-culo do espírito.

9 A pneumatização do direito emA Visibilidade do Espírito.

Vemos agora como o dualismo sobre o qualassenta a noção de política, procede de umesquema de pensamento essencialmente me-tafísico, o qual prevê a queda no mito comoconsequência da expulsão do paraíso. Na re-dacção deNordlicht, Schmitt havia já pre-visto uma transfiguração do mito em espí-rito e da história em tempo pleno, a qual,enquanto graça, se encontra para lá da jus-tiça, invocando uma utopia de amor. Nestemomento transfigurado, a função do direitoé nula. Posteriormente, e face à previsão deNordlicht, neste estertor da lei, nesta anar-quia utópica, descobrirá Schmitt o verda-deiro momento final da morte de Deus, umateísmo político consumado.

Para compreender esta passagem, que im-plica um verdadeiro reordenamento do jurí-

dico dentro do âmbito da teologia e da filoso-fia da história, será necessário analisar breve-mente o texto sobre aVisibilidade da Igreja.Pois só neste texto se produz a síntese en-tre o conceito de Deus enquanto espírito eo conceito de direito, e apenas ela nos per-mite falar, quer de Teologia política, quer decatolicismo político em Carl Schmitt. Toda-via, o mundo categorial deNordlicht conti-nua a agir subterraneamente, com todas assuas premissas e, sobretudo, com a sua von-tade de se manter fiel ao que de mais pró-prio o Ocidente possui, a essa fé, à qual,aquele que reconhece o pecado do homem,“está obrigado, pela encarnação de Deus, aaceitar a fé segundo a qual tanto o homemcomo o mundo são bons por natureza. Por-que Deus não quer o mau” [V.I.,16]. O cato-licismo oferecia agora a Schmitt um fim di-ferente para a luta do mito e para a vitória doespírito.

Pois para Schmitt, “o dualismo (é) intro-duzido no mundo pelo pecado dos homens”[V.I.,14]. Só que agora, esse dualismo e essaluta, dão origem a uma deformação do di-reito, a uma antítese entre autonomia e hete-ronomia, gerando a “irreconciliável oposiçãodas diferentes posições e interesses”. Destemodo, afundado no pecado e tendo perdido o“significado unívoco da vida, do pensamentoe da linguagem”, vive o homem na excisãoentre o poder e o direito, entre a facticidadee a validez [V.I.,14]. Agora e sempre, o dua-lismo do mito não é senão a consequência dopecado. Como o é, igualmente, a diferençaamigo-inimigo.

A partir daqui, estamos em condições depodermos reconstruir o contexto que se apre-senta emTeologia Políticae emCatolicismoRomano e Forma Política. Apenas o fun-dador do direito, aquele que está em condi-

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ções de recompor a síntese entre o fáctico e aideia, poderá refundar um paraíso teológicoque é, agora, a própria normalidade da lei.Todavia, só o conseguirá assumindo a repre-sentação segundo a forma do catolicismo ro-mano. Finalmente, o seu critério será o denão viver em pecado, o de não padecer daforma da dúvida, o de habitar na certeza ena verdade da decisão. A tese da representa-ção, que torna visível a ideia invisível, e quedota de legitimidade a facticidade da norma,será a forma em que se produzirá a “con-centração do pneumático no jurídico”, formaessa, em que o religioso, o autêntico âm-bito de Nordlicht, experimenta a passagemao eclesial. O Deus que antes era simples-menteGeist, faz-se agora carne, palavra, lo-gos carnal, igreja, comunidade. A relação dohomem com Ele não é subjectiva, nem pri-vada, nem aristocrática, mas comunitária. Aplenitude do tempo não é já um instante, masa historicidade enquanto continuidade da su-cessão jurídica. As cifras da teologia de Däu-bler reconvertem-se agora numa interpreta-ção política que alcança a unidade de Deusatravés da mediação dos homens mortais or-ganizados de forma jurídica. Não, porém,num acosmismo do amor, o qual fez com quea lei se estilhaçasse em mil fragmentos: nãoé aí que se encontra o paraíso.

De uma maneira radicalmente lúcida, re-corda agora Schmitt que a lei fora já dadae instituída no próprio seio do paraíso: “Naconcepção cristã, a legalidade do mundo vi-sível é boa por natureza. A regulamentaçãojurídica das relações humanas é anterior àmaldade e ao pecado, não a sua consequên-cia” [V.I.,16]. Impõe-se aqui a velha tesede Santo Agostinho, segundo a qual o matri-

mónio éante peccatum26. A utopia já não éagora anárquica, mas jurídica. Não se trata jádo amor do andrógino, mas da justiça de umainstituição. É este, doravante, o horizonte emque Schmitt se move.

Contudo, esta nova austeridade, que con-fere ao jurídico o poder formal de revela-ção do espiritual e que concebe o eclesiásticocomo forma religiosa comunitária, não é se-parável da configuração escatológica e apo-calíptica a partir da qual se interpretou a si-tuação da Europa entre o período das duasguerras. É, portanto, mister, analisá-la porrelação aos elementos característicos destecontexto. O primeiro, diz respeito a uma fi-losofia da história entendida como o fluxo eo refluxo do imediato configurado nas potên-cias do mito, mito este de natureza dualista egnóstica e centrado em formas de luta entre-gues a uma crescente auto-afirmação. O se-gundo, reporta-se a um diagnóstico do pre-sente definido como a época da dominaçãotécnica e da secularização de valores, a qual,destruindo a possibilidade de uma interpre-tação genuína do espírito, enraizava, destemodo, as forças mitológicas da vida imedi-ata na mais arcaica barbárie. Do jogo destesdois diagnósticos, destas categorias e destaatmosfera, haveriam de emergir os funda-mentos últimos que atravessam as principaisteses e conceitos deTeologia Política, Cato-licismo Romano e Forma Políticae O Con-ceito do Político.

No fundo, pode dizer-se que Shmitt ja-mais abandonou este territorialização espiri-tual, de que opathosdo Kat-echonconstituia mais expressiva formulação, sem o qual,

26Cf, Agostinho, S.,A Cidade de Deus, Livro XIV,Capítulo 22, p.1303. Vol. II, Edição da FundaçãoCalouste Gulbenkian, Lisboa, 1993.

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aliás, se torna difícil compreender o que demais pungente existe na sua excepcional fi-gura de pensador. De pensador do nossotempo.

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