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INTRODUÇÃO

u acredito em milagres. Não apenas nas maravilhas da criação, como meu filho recém-nascido em casa,

mamando nos braços de minha esposa, ou nos prodígios da natureza, como o sol poente no horizonte. Refiro-me também aos milagres reais, como transformar água em vinho ou trazer os mortos de volta à vida.

Meu nome é Florio Ferrente. Meu pai, um bombeiro, batizou-me em homenagem a São Floriano, o padroeiro de nossa profissão. Como meu pai, trabalhei durante toda a minha vida para a Companhia 5. na rua Freeman, em Revere, Massachusetts. Fui um humilde servidor de Deus. Ia para onde o Senhor me enviava, salvando as vidas que Ele queria que fossem salvas. Pode-se dizer que eu era um homem com uma missão, e me orgulho do que fazia to-dos os dias.

Às vezes chegávamos a um incêndio tarde demais. Jogávamos água no telhado, mas a casa ardia até o final. Em outras ocasiões, cumpríamos o nosso dever, salvando vidas, protegendo bairros inteiros.

A maioria das pessoas nos imagina carregados de e-quipamentos, entrando em prédios em chamas. E isso acontece. É a parte séria do nosso trabalho. Mas nos mo-mentos mais sossegados também temos nossa quota de risadas. Acima de tudo, contamos histórias. E a história a seguir é a minha predileta. Conta o que aconteceu há 13 anos na ponte levadiça General Edwards, não muito longe

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do quartel de tijolos vermelhos que eu chamo de lar. Não foi a primeira vez que corri até lá para tirar pessoas de destroços de carros.

Minha primeira viagem à ponte foi na nevasca de 1978, quando um velho não reparou no sinal de aviso de que a ponte estava sendo levantada. Seu Pontiac passou direto pela barreira, voou pela beira da ponte, afundou e ficou 29 minutos submerso. Soubemos disso, porque foi essa a hora em que seu Timex tinha parado quando os mergulhadores o tiraram de debaixo do gelo. Ele estava congelado, a pele azulada, sem pulsação. Iniciei o esforço de incutir a vida de volta em seu corpo. Em poucos ins-tantes, sua pele foi se tornando rosada e os olhos se abri-ram, piscando. Eu tinha 24 anos na ocasião, e foi a coisa mais espantosa que já havia visto.

O Revere Independent disse que foi um milagre. Gosto de pensar que foi a vontade de Deus. Nessa profissão, a verdade é que você tenta esquecer a maioria das missões, sobretudo as mais tristes, em que pessoas morrem. Mas há alguns casos que você nunca mais tira do pensamento. Permanecem com você pelo resto da vida. Contando com o velho no gelo, tive três casos assim.

Quando era apenas um novato, tirei o corpo sem vi-da de uma menina de cinco anos de um incêndio infernal na estrada Squire. Seu nome era Eugenia Louise Cushing. Tinha as pupilas reduzidas a pontos mínimos, e não dava para detectar a pressão arterial. Mesmo assim, tentei res-suscitá-la. Insisti no esforço, mesmo depois que o legista no local declarou-a morta e começou a preencher o for-mulário. Até que de repente a pequena Eugenia sentou-se na maça, tossiu, esfregou os olhos e pediu um copo de leite. Esse foi meu primeiro milagre.

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Peguei o atestado de óbito amassado de Eugenia e guardei-o na carteira. Seria para mim como um lembrete de que tudo é possível.

Isso me leva ao caso de Charlie St. Cloud. Como eu disse, começa com uma calamidade na ponte levadiça so-bre o rio Saugus, porém há muito mais que isso. É uma história sobre devoção e sobre o vínculo indissolúvel entre irmãos. Sobre a descoberta de sua alma gêmea onde você menos espera. Sobre vida interrompida e amor perdido. Algumas pessoas chamariam de tragédia, mas sempre ten-tei encontrar o melhor nas situações mais desesperadas, e é por isso que a história desses rapazes permanece em minha mente.

Você pode pensar que uma parte é exagerada, até mesmo impossível. Mas sei que todos nós nos apegamos à vida, e não é fácil, nesta época de ceticismo, descartar a dureza e a insensibilidade que nos permitem atravessar os dias. Mas abra os olhos, e verá o que posso ver. E se al-guma vez você especulou sobre o que acontece quando uma pessoa muito próxima é levada cedo demais — sem-pre é cedo demais —, pode encontrar outras verdades a-qui, verdades que são capazes de afastar a tristeza de sua vida, que podem libertá-lo da culpa, que podem até tra-ze-lo de volta a este mundo, onde quer que se esconda. E depois você nunca mais se sentirá sozinho.

A maior parte da história ocorre aqui, na pequena e aconchegante cidade de Marblehead, Massachusetts, quase uma aldeia, numa faixa rochosa que se projeta pelo Atlân-tico. É quase crepúsculo agora. Estou parado no antigo cemitério da aldeia, no alto de uma ladeira, onde dois sal-gueiros-chorões e um pequeno mausoléu pairam sobre a

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enseada. Os veleiros atracam nos ancoradouros, enquanto os meninos lançam do cais as linhas de pesca.

Bem perto, vejo um velho de cabeça branca pôr um ramo de malvas no túmulo da esposa. Um historiador des-venda segredos de inscrições numa pedra desgastada pelo tempo. As fileiras impecáveis de monumentos descem até uma enseada no mar.

Começaremos por uma volta de 13 anos ao passado, até setembro de 1991. Na sala de descanso do quartel, es-távamos limpando as tigelas do famoso spumone de minha esposa, torcendo pelo Red Sox, que disputava o campeo-nato de beisebol com o Blue Jay. E foi nesse momento que ouvimos o alarme. Corremos para os caminhões e partimos.

I

CORRER PARA A LUA

harlie St. Cloud não era o garoto mais brilhante do condado de Essex, mas era sem dúvida o mais pro-

missor. Era vice-presidente de sua turma, titular do time de beisebol Marblehead Magicians e co-diretor do clube de debates. Com uma covinha provocante num dos can-tos do rosto, nariz e testa sardentos do sol, olhos cor de caramelo, cabelos acobreados sempre despenteados, já era bonito aos 15 anos. Não se podia negar que Charlie St. Cloud era ágil de mente e de corpo, um jovem fadado às melhores coisas.

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A mãe, Louise, aplaudia-lhe cada feito. Charlie era ao mesmo tempo a causa e a cura para os desapontamentos de sua vida. Os problemas começaram no momento em que ele fora concebido, uma gravidez que levara o homem que ela amava — um carpinteiro com boas mãos — a pas-sar pela porta para nunca mais voltar. Em seguida, Charlie teve problemas para ingressar neste mundo — foi neces-sária uma cirurgia para seu nascimento. Não demorou muito para que um segundo filho nascesse, de outro pai. Os anos tornaram-se indistintos, numa luta interminável. Mas, apesar de todos os pesares, Charlie apagava a angús-tia da mãe com olhos faiscantes e um permanente oti-mismo. Louise passara a depender dele como seu mensa-geiro de esperança. Ele não podia fazer nada errado.

Charlie cresceu depressa. Estudava com afinco, cui-dava da mãe e amava o irmão mais novo, Sam, mais que qualquer outra pessoa no mundo. O pai de Sam — um homem que emprestava dinheiro para o pagamento de fi-anças — também sumiu. Quase não deixou vestígios de sua passagem, exceto pelos cabelos castanhos e crespos de Sam e por equimoses azuladas no rosto de Louise. Charlie estava convencido de que ele era o único e verdadeiro protetor do irmão. A diferença de idade era de três anos, mas eram os melhores amigos um do outro, unidos em seu amor pela pesca, pela escalada em árvores, por um cão beagle chamado Oscar e pelo time do Red Sox.

Até que um dia Charlie cometeu um erro desastroso, um erro que a polícia não podia explicar e que o juizado de menores fez o possível para ignorar. Para ser mais pre-ciso, Charlie arruinou tudo numa sexta-feira, 20 de setem-bro de 1991.

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A mãe trabalhava no último turno no supermercado Penni’s, na rua Washington. Os meninos voltaram da es-cola querendo se divertir. Não tinham que se preocupar com os deveres de casa até a noite de domingo. Já haviam pulado a cerca e se aventurado pela propriedade do refu-giado tcheco que alegava ter inventado a bazuca. Ao pôr do sol, jogaram bola durante algum tempo, entre os pi-nheiros de seu próprio quintal, na alameda Cloutman, como faziam todas as noites desde que Charlie dera a Sam sua primeira luva de beisebol, em seu sétimo aniversário. Mas logo ficou escuro, e as aventuras se esgotaram.

Sam poderia se contentar em assistir ao clipe de Wic-ked game, de Chris Isaak. Mas Charlie tinha uma surpresa. Tirou dois ingressos do bolso. Ingressos do Red Sox. O time enfrentaria os Yankees.

— Incrível! Onde conseguiu? — perguntou Sam. — Tenho meus recursos. — Como vamos chegar lá? Voando? — Não se preocupe com isso. A Sra. Pung está de

férias. Podemos pegar sua caminhonete emprestada. — Emprestada? Você nem tem carteira de motorista! — Quer ir ou não? — O que vamos dizer para mamãe? — Não se preocupe. Ela nunca saberá. — Não podemos deixar Oscar sozinho. Ele vai ficar

nervoso e sujar a casa toda. — Oscar pode ir também. Como era de se prever, dali a pouco Charlie, Sam e o

beagle estavam a caminho de Boston, na caminhonete da Sra. Pung, a vizinha. Sem a presença dela, claro.

A viagem levou trinta minutos. Charlie teve um cui-dado especial na rota 1A, onde havia um policiamento

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mais intenso. Os meninos escutaram no rádio as reporta-gens antes do jogo, conversaram sobre a última vez que haviam ido ao estádio e contaram seu dinheiro, calculando se teriam o suficiente para dois cachorros-quentes cada um, uma Coca-Cola e saquinhos de amendoim.

Agora, com seus tijolos vermelhos e vidros tremelu-zentes, Boston esperava do outro lado do rio Charles. Desceram pela avenida Brookline, avistando a distância as luzes nebulosas do estádio, o Fenway Park. Oscar inclina-va a cabeça para fora da janela, aspirando o ar frio.

No estacionamento, os meninos puseram Oscar nu-ma mochila e seguiram para as arquibancadas. Seus luga-res ficavam no lado direito, bem atrás de um cara que de-via ter mais de dois metros de altura. Mas não importava. Nada podia estragar o espetáculo do gramado, as linhas brancas, a área de terra e o Monstro Verde... o famoso muro do estádio, no lado esquerdo do campo.

Um de seus heróis, Wade Boggs, estava fora do jo-go, com uma lesão no ombro direito, mas Jody Reed ar-remessou uma bola espetacular e conseguiu fazer o home run, o circuito completo das bases. Cada menino comeu dois cachorros-quentes, com uma satisfação extra. Oscar ganhou alguns biscoitos de uma mulher sentada na fila de trás. Um homem enorme e barbudo, ao lado, ofere-ceu-lhes uns goles de cerveja.

Roger Clemens impediu que os Yankees marcas-sem, permitindo apenas três rebatidas em dez arremessos. A multidão aplaudiu, e Oscar latiu. Com uma vitória por 2 X 0 no final, os torcedores começaram a se dispersar. Mas os meninos permaneceram sentados, reconstituindo os pontos altos do jogo. O time estava agora, milagrosamen-te, perto da decisão em Toronto.

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— Algum dia teremos ingressos para toda a tempo-rada — comentou Charlie. — Bem ali, por trás da base do batedor, na primeira fila.

— Não me importo de ficar no alto da arquibancada — disse Sam, comendo os últimos amendoins. — Desde que você e eu estejamos juntos. É isso que torna o beise-bol sensacional.

— Sempre vamos jogar bola juntos, Sam. Não im-porta o que aconteça.

As luzes do estádio começaram a apagar. Os funcio-nários tinham acabado de estender a lona sobre o campo.

— É melhor irmos embora — disse Charlie. Os meninos foram para o estacionamento, onde a

caminhonete branca estava sozinha. A viagem levaria meia hora. Chegariam em casa por volta das 22h30. A mãe não voltaria antes da meia-noite. A Sra. Pung, na Flórida, nun-ca saberia.

Viajaram em silêncio por algum tempo, até que Sam perguntou:

— Quanto tempo vai demorar até eu me tornar cres-cido?

— Você já é um menino crescido. — É sério. Quando deixo de ser um garoto? — Quando faz 12 anos, você vira homem e pode

fazer o que quiser. — Quem disse? — Eu digo. — Sou um homem e posso fazer o que quero — de-

clarou Sam, gostando do som das palavras. Uma enorme lua cheia pairava sobre o rio Saugus.

Sam baixou a janela e disse:

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— Dê uma olhada. A lua parece maior esta noite. Deve estar mais perto da gente.

— Não é isso — explicou Charlie. — É apenas uma ilusão de óptica. A lua continua a uma distância de 363.223 quilômetros.

Ele não tinha a menor dificuldade com números, por isso acrescentou:

— Em nossa velocidade neste momento, levaríamos cerca de 170 dias para chegar lá.

— Mamãe ficaria furiosa — murmurou Sam. — E a Sra. Pung não ficaria nem um pouco feliz

com a quilometragem. Os meninos riram. Depois, Sam disse: — Não é ilusão de óptica. Juro que a lua está mais

perto esta noite. Dá até para ver um halo, como se fosse de um anjo.

— Não existe halo nenhum — garantiu Charlie. — É apenas uma refração dos cristais de gelo na parte supe-rior da atmosfera.

— Puxa, pensei que fosse uma refração dos cristais de gelo no seu traseiro!

Sam caiu na gargalhada, e Oscar latiu. Charlie verificou os espelhos e lançou um rápido o-

lhar para a direita. A lua cintilava entre as grades de ferro da ponte levadiça, acompanhando o ritmo do carro, en-quanto voltavam para casa. Parecia mesmo mais perto que nunca naquela noite. Ele virou a cabeça para ver melhor. Achou que a ponte estava vazia, e por isso acelerou mais um pouco.

Entre todas as decisões temerárias daquela noite, es-sa foi sem dúvida a pior. Charlie correu para a lua e, no derradeiro segundo, antes do final, viu a imagem perfeita

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da felicidade. O rosto inocente de Sam estava virado em sua direção, com a luva de beisebol na mão. E, depois, havia apenas vidro quebrando, metal contorcido e escuri-dão.

Com um vento frio soprando entre os vãos da ponte levadiça General Edwards, Florio Ferrente tirou da traseira de seu veículo a ferramenta de corte Hurst, que pesava cerca de 20 kg. Suas lâminas podiam cortar o aço, mas ele manejava-a como se fosse uma tesoura.

Florio ajoelhou-se um instante e fez a oração do bombeiro, que lhe aflorava aos lábios cada vez que come-çava a trabalhar. Dê-me coragem. Dê-me força. Por favor, Senhor, durante todo o caminho, permaneça ao meu lado.

Depois, veio a ação vertiginosa. Ele avaliou a gasoli-na derramada e a possibilidade de uma faísca e explosão. Avaliou a maneira mais rápida de abrir caminho pelo carro avariado: através do pára-brisa, do capo ou das portas? E fez o cálculo sobre o tempo de que dispunha para o res-gate. O tempo, precioso tempo...

Florio passou pelas marcas de derrapagem e pelo caminhão-reboque dobrado no meio. Não se deu o traba-lho de parar e ajudar o motorista do caminhão, encostado na divisória da ponte. O homem recendia a cerveja e san-gue. Era uma das regras do resgate: o céu protege os tolos e os bêbados. O homem ficaria bem.

A verificação instantânea da placa da caminhonete Ford branca revelara que pertencia à Sra. Norman Pung,

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da alameda Cloutman, em Marblehead. Idade: 73 anos. Vista deteriorada. Talvez a primeira pista.

O veículo estava todo amassado e de cabeça para baixo, a frente esmagada contra a grade da ponte. Florio podia determinar, pela trilha de vidro e metal, que a ca-minhonete capotara pelo menos duas vezes. Espiou por uma janela esmagada. Não ouviu ruído lá dentro. Nenhum som de respiração ou gemido. O sangue escorria pelas a-berturas no metal.

Em movimentos rápidos, enfiou uma espátula hi-dráulica no espaço estreito entre o capo e a porta. Com um golpe do polegar, o instrumento entrou em ação. A estrutura da caminhonete rangeu, enquanto a enorme es-pátula separava o metal. Florio enfiou a cabeça pela aber-tura e viu dois meninos, de cabeça para baixo, presos nos cintos de segurança. Os braços envolviam um ao outro. Nenhum sinal da Sra. Pung.

— Duas vítimas na frente! — gritou ele para o par-ceiro, Trish Harrington. — Um cachorro atrás. Tirar e le-var. Prioridade l.

Ele saiu dos destroços. Ajeitou a ferramenta Hurst nas dobradiças da porta. Uma pressão do polegar, e as lâ-minas deram duas mordidas poderosas. Florio arrancou a porta.

— Dê-me dois coletes para a coluna — pediu ele. —E duas pranchas para as costas.

Florio tornou a rastejar para o interior do veículo. — Pode me ouvir? — perguntou ele ao menino

menor. — Fale comigo. Não houve resposta. Nenhum movimento. O rosto e

o pescoço do menino estavam cobertos de sangue, olhos e lábios inchados.

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Florio prendeu um colete em torno do pescoço do menino, ajeitou a prancha para a coluna e cortou o cinto de segurança com a faca. Baixou o paciente com todo o cuidado e puxou-o para o pavimento da ponte.

— As pupilas estão dilatadas — informou Florio, verificando com a lanterna. — Corpo contorcido. Sangue saindo pelos ouvidos.

Todos maus sinais. Era hora de buscar a outra víti-ma. Ele tornou a entrar no veículo. O adolescente estava imobilizado sob a barra de direção. Florio enfiou outra espátula hidráulica de separação e apertou o botão. Ajei-tou o colete no pescoço do menino e prendeu a prancha nas costas. Depois saiu e puxou a vítima para o pavimen-to.

— Pode me ouvir? — perguntou ele. Nenhuma palavra. — Aperte minha mão se puder me ouvir. Nada. Os dois jovens acidentados estavam agora estendidos

lado a lado. O cachorro no banco traseiro morrera, esma-gado entre o eixo traseiro e a mala.

— São Francisco — murmurou Florio —, abençoe esta criatura com a sua graça.

Florio olhou para seu relógio. Aquele era o momento crucial: menos de sessenta minutos para salvar a vida dos meninos. Se conseguisse estabilizá-los e levá-los o mais depressa possível aos cirurgiões da traumatologia, pode-riam sobreviver.

Ele e seu parceiro levaram o primeiro corpo para a ambulância. Depois, o segundo. Trish deu a volta para o banco do motorista. Florio embarcou pela traseira. Incli-nou-se para fora, a fim de puxar e fechar as portas. A

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ambulância partiu, com a sirene ligada. Por um instante, os dedos de Florio apertaram o velho medalhão de ouro pendurado no pescoço. Era de São Judas Tadeu, o padro-eiro das situações desesperadoras. Encostou o estetoscó-pio no peito do menino menor. Escutou por um instante e compreendeu a verdade pura e simples.

Aquele era um momento para milagres.

Uma neblina cobria o chão, abafando os sons do mundo. Charlie, Sam e Oscar encolhiam-se na escuridão e na umidade. Não havia mais ninguém por perto. Podiam estar em qualquer lugar, ou em lugar nenhum. Não im-portava. Estavam juntos.

— Mamãe vai nos matar por isso — murmurou Sam, estremecendo. Ele bateu com o punho na luva. — Ficará furiosa.

— Não se preocupe, homenzinho. — Charlie afas-tou os cachos do rosto do irmão. — Eu cuidarei de tudo.

Ele podia imaginar o desapontamento da mãe: a testa ficando vermelha, as veias nas têmporas pulsando.

— Vão nos mandar para a cadeia por isso — disse Sam. - A Sra. Pung nos obrigará a pagar, e não temos di-nheiro.

Ele virou a cabeça para a caminhonete toda arreben-tada. O que não fora destruído na batida fora cortado pela equipe de resgate.

— Você não vai para a cadeia — assegurou Charlie. — Não puniriam um menino de 12 anos dessa maneira.

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Talvez me prendam, porque eu estava guiando, mas não você.

— Mas a culpa foi minha — insistiu Sam. — Eu o distraí, falando da lua.

—Você não teve culpa. Eu deveria ter visto o cami-nhão e saído da frente.

Charlie olhou ao redor, tentando encontrar um sen-tido na paisagem. Não havia sinal da ponte, nem da curva do rio, nem dos contornos da cidade. O céu era um man-to negro. Só dava para divisar vultos se movendo a distân-cia, sólidos na fluidez da noite.

E depois, através da semi-escuridão, ele começou a perceber onde estavam. De alguma forma, misteriosa-mente, haviam sido transportados para uma pequena co-lina, com dois salgueiros-chorões por cima da enseada. Charlie reconheceu a curva da praia, com sua confusão de mastros balançando na água.

— Acho que estamos em casa — murmurou ele. — Como é possível? — Não tenho a menor idéia. Mas ali está o cais de

Tucker. Charlie apontou, mas o irmão não estava interes-sado.

— Mamãe vai nos dar uma surra. Acho melhor a gente inventar uma boa história, ou ela vai usar o cinto.

— Não, não vai. Já estou pensando num plano. Con-fie em mim.

Mas ele não tinha a menor idéia do que fazer ou de como sair daquela encrenca. Foi então que avistou outra luz, a distância, fraca a princípio, mas se tornando cada vez mais forte. Talvez uma lanterna ou um grupo de res-gate. Oscar começou a latir, alegremente a princípio, de-pois deixou escapar um longo uivo.

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— Olhe ali — disse Sam. — Quem está vindo? —Ai, merda! Charlie nunca dizia palavrões, e Sam ficou tenso. — É mamãe? — Acho que não. — Então quem pode ser? Estou com medo. A luz era quente e brilhante, e estava cada vez mais

próxima. — Não precisa ter medo — murmurou Charlie

Eles estavam mortos. Sem pulsação. Sem respiração. Mortos. Florio ilu-

minou mais uma vez as pupilas do garoto mais velho. Eram pretas e insondáveis. Ele prendeu os eletrodos nos pulsos e no peito es-

querdo do menino, depois apertou o botão do monitor. A linha na faixa do ECG de seis segundos era reta.

— Aqui é Paramédico 2 — disse ele pelo rádio. — Tenho duas vítimas de acidente de carro. Sem pulsação, sem respiração.

Florio pegou o equipamento de entubação e enfiou a lâmina curva de aço do laringoscópio na boca do menino. Empurrou para o lado a língua inerte e visou a entrada da traquéia, uma pequena abertura entre as cordas vocais. Pressionou o instrumento para a posição correta. Com um movimento rotativo, inflou o manguito e começou a ven-tilar.

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A ambulância seguia a toda velocidade para o pron-to-socorro de North Shore. Florio pegou os eletrodos do desfibrilador Zoll, pôs no peito nu do menino e aplicou uma descarga de 250 joules.

Droga! O monitor não indicava nenhuma conversão cardíaca. Em movimentos mecânicos e rápidos, Florio prendeu um torniquete no braço do menino, encontrou uma veia, espetou uma agulha, prendeu no tubo de soro e injetou adrenalina. Depois, programou uma descarga de 300 joules.

Apertou o botão, e o corpo teve uma convulsão. Mais uma vez, não teve sorte. Mas Florio já passara por isso antes. Salvara incontáveis diabéticos em crise de hi-poglicemia e ressuscitara dezenas de viciados em heroína. Nunca desistir. Nunca era tarde demais para milagres.

Por isso Florio aumentou a carga para 320 joules e apertou o botão. O corpo à sua frente arqueou com o choque. Era a última chance. A menos que pudesse levar o garoto de volta ao ritmo cardíaco, estava tudo acabado.

A escuridão se desvanecera, e a luz os envolvia quase por completo.

Sam tremia agora e abraçava Oscar. — Estou com medo, Charlie. Não quero me meter

numa encrenca. Não quero que mamãe brigue com a gen-te. Não quero que estranhos nos levem.

— Tudo vai ficar bem, Sam. Confie em mim.

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Ele sentia o calor da luz atingi-lo por dentro. A dor começou a passar.

— Prometa que não vai me deixar — pediu Sam, pegando a mão do irmão.

— Prometo. — Jura por tudo que é mais sagrado? — Juro. E agora você tem de prometer que também

não vai me deixar. — Nunca. Sam tinha os olhos arregalados e claros. O rosto es-

tava tranquilo. Nunca parecera tão sereno antes. Os dois abraçaram-se um instante, depois ficaram

lado a lado, sentindo a luz envolvê-los, intensa, brilhante, branca e dourada.

— Não se preocupe — disse Charlie. — Prometo que tudo vai acabar bem.

FLORIO OUVIU o monitor bipar. Talvez fosse São Floriano. Ou São Judas Tadeu. Ou

simplesmente a graça de Deus. A tira de ECG mostrava que o coração do menino voltara subitamente a ter uma frequência regular. Depois, de uma forma inacreditável, os olhos dele se abriram, devagar. Eram da cor de caramelo, raiados por vasos capilares arrebentados. Ele tossiu e o-lhou para cima.

— Seja bem-vindo de volta — disse Florio. O menino parecia confuso e preocupado. — Onde está Sam? — murmurou ele. — Eu con-

versava com Sam. — Qual é o seu nome? — Prometi a Sam que nunca o deixaria.

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— Diga seu nome, filho. — St. Cloud... Charlie St. Cloud. — Você vai ficar bom, St. Cloud. Estou fazendo o

melhor que posso por Sam. Florio fez o sinal-da-cruz e rezou silenciosamente.

Foi então que ouviu o menino perguntar de novo: — Onde está Sam? Onde está meu irmão? Não

posso deixá-lo...

As PALAVRAS não faziam muito sentido, mas Charlie compreendia a urgência na voz do homem. Era uma ten-são que os adultos exibiam quando as coisas não iam bem. O paramédico trabalhava em Sam, ao seu lado.

Charlie sentiu uma onda de dor nas costas e no pes-coço. Fez uma careta e gritou.

— Estou aqui com você — disse o paramédico. — Darei uma coisa para deixá-lo sonolento. Não se preocu-pe.

Charlie sentiu o calor espalhar-se por seus ombros, descer pelas pernas. Tudo se tornou indistinto, mas de uma coisa ele tinha certeza. Dera sua palavra ao irmão. A promessa de cuidar dele. Os pais podiam ter ido embora e sumido, mas ele nunca deixaria Sam, não importava o que pudesse acontecer.

Na mente atordoada, o pescoço envolto por um co-lete, a agulha do soro espetada em seu braço, Charlie ima-ginou os dias e anos pela frente... os dias e anos com o irmão ao seu lado, sempre juntos, independentemente de todo o resto. Não havia alternativa. A vida sem Sam era simplesmente inconcebível.

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Ele estendeu o braço pela divisória estreita da ambu-lância, passando pela cintura larga de um paramédico. Encontrou o braço fino de Sam, a agulha do soro, a luva de beisebol espremida ao lado do corpo. Pegou a mão do irmão, inerte e fria. E Charlie apertou-a, com toda a força de que era capaz.

II

MERGULHAR PARA OS SONHOS

s bandeiras no cais tremulavam no mesmo ritmo quando Tess Carroll parou sua avariada picape Chevy

Cheyenne 1974. Ela saltou e estudou as bandeiras esta-lando ao vento. Constatou que era uma brisa na direção sudeste, calma, não mais que quatro nós. Começava nas banquisas da Nova Escócia, soprava através da Nova In-glaterra e alcançava o Caribe.

Tess foi tentar abrir a traseira, mas a porcaria estava emperrada. Comprara a velha picape num ferro-velho, e o pai fizera com que ela voltasse a andar, usando um motor de segunda mão. Quando a picape precisara de outro motor, o pai aconselhara a trocá-la por outra. Ela não a-ceitara o conselho. Anos mais tarde, quando o pai morrera de repente, Tess compreendera que nunca iria se desfazer daquela Chevy.

Tess inclinou-se pela lateral, pegou uma enorme bolsa de náilon, contendo uma vela, e levantou-a. Era uma mulher alta e esguia, de cabelos escuros e lisos, presos

A

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num rabo-de-cavalo que se projetava pela abertura atrás do boné dos Patriots, seu time de futebol americano. Pendurou a bolsa no ombro, virou-se e encaminhou-se para o cais. Mais à frente, alguns veteranos ratos do cais, como eram chamados, jogavam cartas. Eram pescadores aposentados, que se reuniam à beira d’água todas as tar-des.

— Oi, princesa! — gritou um deles, a voz rouca. — Como anda a sorte, Bony? — perguntou Tess. — Estou perdendo a camisa — disse ele, largando as

cartas. — Precisa de uma tripulação para a tarde? — Eu gostaria de poder lhe pagar. —Trabalho de graça. Não suporto continuar aqui

nem mais um minuto. — Ele não suporta ter outra mão perdedora — co-

mentou outro homem, rindo. — Por favor, Tess, deixe-me ir com você. —Quer ter outro infarto? — Tess ajustou a bolsa no

ombro. — Sabe muito bem que serei demais para o seu coração. Ela piscou e acrescentou:

— Até mais tarde. — Tome cuidado com o tempo! — gritou Bony,

enquanto ela se afastava. —Vou tomar todo o cuidado... e tente não partir co-

rações durante a minha ausência! Os pescadores riram, enquanto Tess continuava a

andar. Ela usava uma calça caqui com remendos florais nos joelhos, uma camiseta branca e uma enorme camisa azul de botões. Os olhos tinham uma tonalidade suave de verde-esmeralda. O nariz era afilado e arrebitado, o tipo pelo qual as mulheres de Nova York pagavam milhares de dólares para ter no rosto.

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Tess encaminhou-se para sua reluzente chalupa de 34 pés, uma Aerodyne com o casco azul-ardósia, o convés branco imaculado, o nome QUERENCIA pintado em le-tras douradas na popa.

— Vai ajudar ou prefere continuar sentado aí? —perguntou ela a um homem pesado, sentado no barco, com os pés pendendo para fora.

— Está se saindo muito bem sem a minha ajuda. Tink Wetherbee levantou-se. Tinha 1,93 m de altura,

o peito tão estufado quanto uma gafetope enfunada pelo vento, o rosto barbudo e cabelos castanhos desgrenhados, que ele mesmo aparava. Tess gostava de brincar dizendo que se Tink pendurasse um pequeno barril no pescoço se-ria confundido com um são - bernardo.

— Quer saber de uma coisa? — disse Tink, quando ela entrou no barco, carregando a bolsa. — Até que você é bastante forte para uma mulher.

— O que está querendo dizer é que sou bastante forte para uma mulher que assina o cheque do seu salário e pode dar um chute em seu traseiro triste.

Tess jogou a bolsa para ele. Bateu em sua prodigiosa barriga, fazendo-o cambalear para trás.

— O que há de tão triste em meu traseiro? Tink segurou a bolsa e esticou a cabeça para trás,

para checar. — Confie em mim, Tink. É uma visão triste. Tess foi para a cabine, dando-lhe uma cotovelada de

leve na barriga ao passar. — Só mais uma semana — comentou ela, enquanto

desamarrava a roda do leme. — Mais uma semana e vou embora. Vai sentir saudade?

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— Sentir saudade? Os escravos sentiam saudade de seus amos?

— Muito engraçado... — Tess tirou as capas dos instrumentos de navegação. — Como está a nossa vela mestra? Pronta para a grande viagem?

— A melhor que já fizemos. Você será a inveja do mundo.

— Gosto dessas palavras. Ela alongou os braços e as costas. O corpo doía de

todos os preparativos dos últimos meses. Fizera milhares de supinos e exercícios para os bíceps. Correra e nadara centenas de quilômetros. Cada passada e braçada fora calculada com cuidado para que tivesse condições de bai-xar velas em ventos de força 10, manter longos períodos de vigília em alto-mar e içar âncoras.

Na semana seguinte, com o disparo do canhão de partida, Tess zarparia para uma corrida solo ao redor do mundo. Se tivesse sorte, viajaria nas asas do vento por mais de cinquenta mil quilômetros. Era a maior aventura — o sonho de uma vida inteira — e uma enorme oportu-nidade para sua empresa de fabricação de velas. Menos pessoas haviam navegado sozinhas na volta ao mundo que a quantidade de alpinistas que escalaram o monte Everest. O objetivo de Tess era tornar-se uma das dez primeiras mulheres a realizar a façanha. Até agora, apenas oito ha-viam alcançado êxito.

Toda a comunidade torcia por ela, promovendo vendas de bolos e festivais de lagosta para levantar o di-nheiro necessário. A regata começaria na enseada de Bos-ton, com a cobertura de todas as emissoras de TV da No-va Inglaterra. Jornalistas do mundo inteiro acompanhari-am seu progresso.

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Tink ajoelhou-se no convés e tirou a vela mestra da bolsa. Estava dobrada como um acordeão, e ele começou a estendê-la. Tess abaixou-se para ajudar.

— É espetacular... — murmurou ela, afagando a ca-mada externa, de tafetá verde.

Não era uma vela comum, ao estilo tradicional, mas fabricada com tecnologia de ponta, usando fibras de Ke-vlar, projetada para resistir ao pior tempo do mundo.

— Espero que tenhamos escrito meu nome direito — acrescentou Tess.

Ela puxou o canto da vela até o mastro. Desatarra-xou um pino e prendeu o cabo da vela. Ajoelhou-se no convés, virou o guincho e começou a dar vela para Tink. Centímetro por centímetro, a vela verde foi subindo pelo mastro.

Tess sorriu quando o triângulo com o nome de sua empresa — CARROLL SAILS — subiu ao céu. Seria vis-to por navegadores de cinco continentes, que, com um pouco de sorte, encomendariam velas iguais.

Ela passou a virar o guincho mais devagar agora. A vela mestra já subira por quase dois terços do mastro. Mesmo sem conferir no cata-vento, ela sabia que o vento soprava de nordeste, e a coceira na nuca lhe dizia que seria mais forte depois, em pleno mar.

Tess adorava o vento e seus efeitos. Dominara o ar em todas as formas, voando em asa-delta e parapente, praticando windsurfe e navegando em catamarãs, adoran-do a emoção do salto de pára-quedas em queda livre. De fato, fizera com que o vento se tornasse seu meio de sub-sistência.

Ao sair da universidade, com um diploma de Física, Tess fora trabalhar na Hood Sails, em Newport, empe-

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nhando-se na ciência mais avançada da moderna fabrica-ção de velas. Idolatrava Ted Hood, natural de Marblehead e comandante na regata America’s Cup, que sabia fazer a curva em uma gafetope melhor do que qualquer outra pessoa no mundo. Mas, depois de dois ou três anos, ela compreendeu que não gostaria de passar seus dias proje-tando modelos de computador para calcular proporções de impulso e resistência. Com 18.640 dólares no banco, Tess pediu demissão.

O pai foi seu avalista num empréstimo bancário, e ela abriu sua empresa de fabricação de velas na rua Front, em Marblehead. Um ano depois havia contratado os me-lhores designers, cortadores e costuradores da área. Pagava melhor do que os outros e incentivava o pessoal a sonhar com maneiras de fazerem os barcos navegarem mais de-pressa.

Agora o vento aumentava de intensidade, e Tess gi-rava a manivela, mas a vela pareceu emperrar de repente. Ela fez mais força no guincho. Tink foi ajudar, mas a vela não se mexia.

— É melhor subir até lá para dar uma olhada — disse Tess.

— Quer me içar? — perguntou Tink, afagando a barriga.

— Ninguém é tão forte assim. Tess foi até um dos armários, pegou a cadeira de

contramestre, prendeu-a em outro cabo e acomodou-se no banco de madeira.

— Podemos subir, Tink. Com alguns puxões no cabo, ele levantou-a pelo ar.

Uma gaivota pairava acima de Tess, enquanto ela subia pelo mastro de 14 metros. Ela segurou-se no mastro, tirou

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do bolso o canivete do exército e inseriu a ponta por bai-xo do cabo emperrado, fazendo um pouco de pressão pa-ra que voltasse ao sulco da roldana.

— Já endireitei — gritou ela para Tink. — Só me dê mais um instante, porque adoro ficar aqui em cima.

Tess contemplou a aldeia, fazendo uma curva em torno da enseada. Avistou pescadores nas rochas, à pro-cura de percas listradas, No outro lado da enseada, garo-tos empinavam pipas em Riverhead Beach. A distância, divisou os mausoléus e obeliscos do cemitério de Water-side, a encosta descendo até o mar. O pai estava enterrado ali, à sombra de um bordo-japonês.

Marblehead era sem dúvida o seu lugar predileto no mundo, e era um mundo em si mesmo. Por mais que a-masse a aldeia, no entanto, Tess achava que havia mais para ela além dos rochedos. Havia um mundo para ver e, Deus querendo, um grande amor para encontrar. Ao lon-go dos anos, dera uma boa olhada em todos os candidatos disponíveis na aldeia... todos os sete. Saíra com homens de Boston e Burlington, e agora sonhava em conhecer um lindo milionário, em um lugar como Austrália ou Nova Zelândia, um homem que falasse três línguas, restaurasse barcos clássicos de 57 pés e fosse bastante alto para girá-la com os pés no ar.

— Ei, menina, você não está ficando mais leve de passar tanto tempo aí em cima! —- gritou Tink.

— Desculpe! Só estava tentando memorizar essa paisagem!

De volta ao convés, sem as correias que a manti-nham na cadeira, Tess foi à cabine. Pegou a prancheta com a lista das coisas que tinha de verificar. A viagem da-quele fim de semana era sua última oportunidade de se

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assegurar de que estava tudo certo. Inspecionaria velas, piloto automático, instrumentos eletrônicos, equipamen-tos de sobrevivência. Depois tiraria uns poucos dias de folga com a família e os amigos. Tentaria relaxar, antes de ouvir o disparo do canhão, na semana seguinte.

Pôde sentir a respiração de Tink em seu rosto quan-do ele espiou a lista por cima de seu ombro.

— Tem certeza de que não quer que eu a acompa-nhe, Tess? Para o caso de se sentir solitária ou de fazer muito frio no meio do mar?

— Obrigada pela oferta, mas não preciso de mais lastro a bordo.

— Quem vai içá-la quando a vela emperrar de novo? — Encontrarei uma solução. Agora me fale sobre

aquela frente de baixa pressão. Qual é o problema? — A perspectiva não é nada boa. — Ele tirou do

bolso um impresso de computador e desdobrou-o. — Parece que uma zona de baixa pressão está descendo do Maine. Dá para ver a linha isobárica.

— Isso significa mais vento — comentou Tess, sor-rindo.

— Preferiria que você não saísse. Mas, como vai par-tir de qualquer maneira, acho melhor seguir para sudoeste, à frente da tempestade. Não vai querer quebrar nada no barco antes de ser necessário.

— Até domingo, grandão. — Se precisar de mim, avise pelo rádio. Tink foi para a amurada e saltou para o cais, en-

quanto Tess virava a chave na ignição. O motor de popa pegou na hora. Ela pôs a mão no acelerador, pronta para dar a partida, quando ouviu uma voz gritar do cais:

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— Ei, maruja! — A mulher tinha quase sessenta a-nos, tufos de cabelos grisalhos projetando-se por cima da pala de proteção contra o sol. — Tem tempo para um beijo de despedida de uma velha?

Grace Carroll era tão alta quanto a filha. Subiu pela prancha em passos ágeis.

— Eu estava na cozinha, olhando pela janela, e vi você no mastro. Resolvi descer até aqui para dar um alô.

— Oi, mamãe. Peço desculpa por não ter telefonado, mas ando tão ocupada...

— Não se preocupe comigo. — Grace entrou no barco. — Também ando ocupada, preparando tudo para a reunião de levantamento de fundos na próxima semana.

Há anos Grace integrava o conselho da Sociedade Humanitária Feminina, fundada depois que uma tempes-tade transformara 75 mulheres de Marblehead em viúvas, no início do século XIX.

— Só peço que tome cuidado, pois estou contando com você para receber todas aquelas velhinhas — acres-centou Grace.

— Estarei presente — assegurou Tess. — Não se preocupe.

A mãe correu os olhos pelo Querencia. — Seu pai ficaria orgulhoso... e com a maior inveja. Era verdade. Ele ficaria mesmo orgulhoso, mas

também invejoso. Ensinara-a a navegar numa banheira que tinha um mastro igual a um cabo de vassoura. Aplau-dira-a quando ela ganhara, aos cinco anos, sua primeira série de regatas, num Turnabout. Acima de tudo, estimula-ra-a a viver com ousadia e a descobrir até onde podia ir no mundo. O pai costumava citar o poema de e.e. cummings: “mergulhar para os sonhos... e viver pelo amor.”

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Quando o infarto o levara, dois anos antes, abriu-se um enorme buraco no universo de Tess. Ela tentara de tudo para preencher o vazio, mas em vão. Por isso resol-vera fazer o que o pai lhe dissera: pressionar os limites para descobrir até onde podia ir. A regata ao redor do mundo era em homenagem ao pai.

— Quando voltará? — perguntou Grace. — No domingo para jantar, talvez mais cedo. De-

pende do vento. — Quer que eu faça uma sopa de mariscos com ba-

tatas? — Mais que qualquer outra coisa no mundo. Grace passou as mãos pelos cabelos da filha. — Diga uma coisa... quem eu vou alimentar nas noi-

tes de domingo, durante sua ausência? — A resposta é fácil. Tink e Bobo. — Bobo! Aquele velho cão? Ele pode comer o que

eu fizer, mas fora de casa! Tem certeza de que não pode levá-lo na viagem?

— Eu gostaria que fosse possível, mas é contra o regulamento. Não são permitidos companheiros.

- Regras absurdas. Qual o sentido de navegar sem um companheiro?

Os olhos claros de Grace conseguiam de alguma forma fazer perguntas sem palavras. Tess sabia exatamen-te o que a mãe especulava: “Por que você ainda não encontrou um companheiro? Por que ainda não assentou?” Mas logo a expressão de Grace mudou.

— Eu amo você. Tenha uma boa viagem. E não se esqueça de que precisa procurar Nana quando voltar. Ela bem que precisa de um abraço da neta.

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Grace virou-se para descer pela prancha, mas Tess deteve-a, com a mão em seu ombro.

— Venha cá, mamãe. Ela abriu os braços. Foi um abraço bem apertado, do

jeito que o pai sempre gostara. Tess pensou por um mo-mento que a mãe poderia quebrar em seus braços. Era como se o corpo de Grace tivesse encolhido da falta de contato físico e da ausência do companheiro de sua vida. Tess também podia sentir os braços da mãe ao seu redor, apertando como se não quisesse mais largá-la.

Depois de alguns momentos, elas se soltaram. Grace deu um beliscão de leve na face de Tess, beijou-a e desceu para o cais.

Tess inclinou-se para a frente, outra vez com a mão no acelerador. O barco afastou-se do atracadouro e entrou no canal de navegação, passando pelos outros barcos, an-corados na enseada. Verificou a prancheta com a carta meteorológica e o curso calculado por Tink. Era uma rota fácil, afastando-se da zona de baixa pressão que descia do norte.

Mas Tess queria ação. Queria as velas enfunadas, queria sentir a velocidade. Podia avistar no horizonte uma vasta extensão de nuvens altos-cúmulos, com pequenas arestas por baixo, como se fossem escamas de peixe. Pensou na cantiga do marinheiro: “Crina de égua e escama de cavalinha deixam os navios altos com velas baixas.” Dentro de poucas horas, estaria ventando forte, do jeito que ela gostava.

Quando saiu da enseada e passou pelo farol, Tess virou o barco para um curso improvável. A bússola indi-cava uma direção de 58 graus, para o canal da ilha Eagle e a bóia de Powers Rock. Para Tess, o curso fácil nunca era

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uma opção. Se não podia passar por um pouco de baixa pressão, como poderia enfrentar todas as circunstâncias numa viagem ao redor do mundo? Por isso ela virou o barco, para enfunar a vela mestra.

Tess observou os mostradores dos instrumentos sal-tarem, à medida que o Querencia adquiria velocidade, se-guindo com o vento crescente direto para a tempestade.

A mulher de vestido preto chorava. Ajoelhou-se ao lado de uma sepultura, a mão estendida para a lápide de granito. O corpo frágil tremia a cada soluço, enquanto os cabelos grisalhos, presos num coque cuidadoso, pareciam se desprender, fio a fio.

Charlie St. Cloud observava de trás de uma sebe de buxo. Reconheceu a mulher, mas manteve-se a distância, respeitoso com o sofrimento. Haveria um momento para oferecer uma ajuda, mas não agora.

Ele abrira aquela sepultura pela manhã, carregara o caixão do carro fúnebre, baixara-o para a terra e tapara a cova, depois de encerrado o funeral. Fora o único enterro do dia no cemitério de Waterside. O trabalho era bastante tranquilo. Um dos homens de Charlie estava aparando a sebe. Outro lavava os monumentos, com jato de água sob pressão. Um terceiro recolhia os galhos que haviam sido derrubados pela tempestade. Setembro era sempre o mês do ano de menor movimento no ramo fúnebre. Charlie não podia dizer exatamente a razão, mas os meses de de-

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zembro e janeiro eram sempre os mais movimentados. As pessoas morriam com mais freqüência nos meses mais frios, e Charlie não sabia se era por causa da queda da temperatura ou pelo excesso de feriados.

Treze anos haviam se passado desde que Charlie chegara a Waterside pela primeira vez. Treze anos desde que os paramédicos haviam falhado na tentativa de res-suscitar seu irmão mais novo. Treze anos desde que Sam fora enterrado num pequeno caixão, perto da Floresta de Sombras. Treze outubros. Treze anos cumprindo a pro-messa.

Charlie ainda era um jovem bonito, com uma massa de cabelos louro-avermelhados. Aquela covinha sempre aparecia quando ele sorria, e os olhos cor-de-caramelo a-inda derretiam o coração de todas as pessoas que ele co-nhecia. A cada ano que passava, a mãe insistia que ele se parecia mais e mais com o pai, o que de certa forma era um elogio, porque a única foto que Charlie já vira do pai mostrava um homem rude, montado numa motocicleta.

Charlie tinha agora l ,90 m de altura. Seus ombros eram largos e os braços, musculosos, de levantar caixões e pedras. O único legado do acidente era uma manqueira quase imperceptível.

Depois do acidente, concluíra o curso secundário e passara dois anos na Faculdade Estadual Salem, tirando o diploma de medicina de emergência. Era um paramédico licenciado, mas nunca se afastava muito de Waterside.

O cemitério era seu mundo, oitenta acres de relva e granito, cercados por ferro batido. Morava no chalé do zelador, à beira da floresta, e comandava toda a operação, os enterros, os cuidados com o gramado, a manutenção em geral. Agora, aos 28 anos, Charlie passara toda a sua

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vida adulta cuidando dos mortos e dos vivos em Watersi-de. Sacrificara muita coisa para cumprir a promessa que fizera a Sam.

Hoje, como todos os dias, ele observava alguém chorar com um aperto no coração. Era sempre assim. Jo-vens, velhos, saudáveis ou enfermos: todos vinham, vivi-am e partiam.

A mulher fez um esforço para manter-se de pé, mas cambaleou e depois caiu, apoiada num joelho. Aquele era o momento de oferecer ajuda. Charlie adiantou-se. Vestia o uniforme do cemitério, camisa pólo azul-clara, com o logotipo de Waterside, calça caqui com vinco, botas de trabalho.

— Sra. Phipps? Ela levantou os olhos, surpresa. Parecia ver através

de Charlie. — Sou eu. A mulher balançou a cabeça, perplexa. — Charlie St. Cloud. Lembra? Inglês, primeiro ano? Ruth Phipps enxugou os olhos, para depois acenar

com a cabeça em sinal de reconhecimento. Naquele tem-po, era conhecida como a Implacável Ruth, o terror da escola secundária, a Marblehead High, renomada por ar-ruinar as médias dos alunos com suas terríveis provas fi-nais.

— Vim oferecer meus pêsames — murmurou Char-lie. — E dizer que escolheu um dos pontos mais belos do cemitério.

Ela sacudiu a cabeça. — Foi tão repentino... tão inesperado... Nem tive

tempo de me despedir.

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A Sra. Phipps enxugou as lágrimas que lhe escorriam pelas faces. Seus braços eram tão frágeis quanto os galhos de um salgueiro, os olhos tão castanhos quanto o tronco de uma árvore.

— Sinto muito — disse Charlie. — O que acontecerá comigo agora? O que vou fa-

zer? — O corpo ainda tremia. — Como será minha vida sem meu doce Walter?

— Pode ter certeza de que tudo acabará bem. Ape-nas leva tempo. Vai ver só.

— Tem certeza, Charlie? A voz era um sussurro quase inaudível. — Não tenho a menor dúvida. — Você era um garoto brilhante. Sempre quis saber

o que aconteceu com você. — Moro ali, naquele chalé, à beira da floresta. Será

bem-vinda sempre que quiser aparecer. — É bom saber disso. — Ela levou uma mecha de

cabelos de volta ao coque. — Obrigada por sua ajuda, Charlie.

— O prazer foi meu. É para isso que estou aqui. A Sra. Phipps desceu a colina, devagar, na direção

dos enormes portões de ferro na estrada de West Shore.

ERA A HORA de fechar. Charlie guiou o carrinho de manutenção de um lado para outro dos caminhos estrei-tos, fazendo as curvas como se fosse um piloto de Fór-mula 1. Nos primeiros dias a pé, ele levava mais de uma hora para cobrir toda a área, à procura de visitantes imer-sos em pensamentos, pessoas que tinham feito piquenique adormecidas nos gramados, adolescentes escondidos por

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trás de lápides. Para acelerar essa rotina, ao longo dos a-nos, ele modificara o pequeno veículo, dotando-o secre-tamente de mais potência. Agora podia percorrer toda a área em vinte minutos.

Sempre começava pela extremidade norte, no alto da colina, e descia para o sul, por campos de pedras, dispos-tas em simetria. Cada quilo de granito, cada begônia em flor, pensou Charlie, era prova da persistente necessidade que o homem tem de ser lembrado. Ele seguia agora pelo Vale da Serenidade e olhou para a enseada, onde uma moderna escuna estava atracando. Parou em seguida, para cumprimentar um idoso cavalheiro, que segurava um re-gador vermelho.

— Boa noite, Sr. Guidry. — Olá, Charlie. Palmer Guidry tinha cabelos brancos e ondulados, o

rosto barbeado de forma irregular, como costuma acon-tecer com os velhos. Era um dos visitantes habituais. A-parecia todos os dias para arrancar o mato da sepultura da esposa e limpar a poeira da lápide. Um velho toca-fitas estava encostado numa árvore, tocando Brahms.

— E hora de fechar — disse Charlie. — Quer uma carona?

— Quero, sim, obrigado. É muita gentileza sua. Charlie saltou do veículo e aproximou-se do Sr.

Guidry. — Deixe-me ajudá-lo com suas coisas. Era uma conversa repetida quase palavra por palavra

todos os dias, ao final da tarde. Charlie estudara a condi-ção do Sr. Guidry. Ele tinha um princípio de doença de Alzheimer, o que afetava sua memória de curto prazo.

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O Sr. Guidry dobrou com todo o cuidado o pano de pó e guardou-o na bolsa. Desligou o toca-fitas e fez uma última inspeção.

— Adoro estas malvas-rosas. — Ele passou a mão por uma flor rosada. — Eram as flores prediletas de Betty.

— Acho que já me contou uma vez — disse Charlie, pegando a bolsa e o toca-fitas.

— Alguma vez lhe contei sobre a ocasião em que Betty plantou malvas-rosas em nosso quintal dos fundos? — O Sr. Guidry ajeitou o regador vermelho debaixo do braço e encaminhou-se para o carrinho, em passos arras-tados. — Cresceram até dois metros de altura.

— Creio que já mencionou uma vez. — Boa noite, Betty — disse o velho, sentando-se no

banco da frente. — Doces sonhos, meu amor. Volto logo. Enquanto desciam a colina, o Sr. Guidry relatou a

história das malvas-rosas pela milésima vez. Charlie ado-rava a maneira como os olhos do Sr. Guidry faiscavam a cada palavra, como as lágrimas sempre escorriam quando passavam pelos portões de ferro para a West Shore.

— Obrigado pela história, Sr. Guidry — disse Char-lie, quando o velho saltou.

— Não quer jantar comigo esta noite? Farei um dos pratos prediletos de Betty. O melhor bolo de carne desta Terra verde de Deus.

— Agradeço, mas já tenho um compromisso. Charlie observou o Sr. Guidry embarcar em seu

Buick dourado e afastar-se lentamente. Olhou para o reló-gio. Eram 18hl2. Faltavam exatamente 13 minutos para o pôr do sol. Os portões de ferro rangeram quando ele os fechou. Estava na hora de lubrificar as dobradiças. E,

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como sempre, havia alguma coisa tranquilizadora no som familiar.

Ele girou a chave mestra na fechadura. Waterside es-tava agora fechado para a noite, e só reabriria às 8 horas da manhã seguinte. Charlie voltou para o carrinho e sen-tou-se. Correu os olhos pelo terreno ao redor, onde os s-prinklers projetavam uma neblina pelo ar. A serenidade ali era palpável. Agora tinha todo aquele paraíso só para ele... 14 horas até que o mundo voltasse. Era tempo para si mesmo. Tempo para ser. Tempo para pensar. Mas, acima de tudo, tempo para sua atividade mais importante, oculta no meio da floresta.

A Floresta das Sombras era a última parte ainda não ocupada de Waterside: vinte acres de carvalhos, es-pruces, bordos e ciprestes, uma propriedade muito valiosa. Charlie ouvia frequentes rumores de que algum incorpo-rador estava sempre ansioso por comprar a área. Mas o entusiasmo arrefecera poucos meses antes, quando um corretor morrera misteriosamente e um potencial com-prador sofrerá uma hemorragia cerebral. Agora as pessoas comentavam que a floresta era mal-assombrada.

Charlie sabia que não era. A floresta era o lugar mais perfeito de Waterside, e era conveniente para ele que nin-guém ousasse aventurar-se por ali. Naquela noite ele guiou o carrinho pela trilha esburacada e parou ao lado do es-pruce azul. Um bando de gansos-do-canadá passou gras-

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nando pelo céu. A claridade, débil, salpicava o chão. Char-lie olhou para trás, por uma questão de hábito. Claro que ninguém o seguia, mas precisava ter certeza. E certeza absoluta.

Depois, rapidamente, ele tirou o uniforme e vestiu um velho blusão, uma calça jeans e tênis. Enfiou a mão por baixo do banco do veículo, tirou a bola e a luva de beise-bol, para depois entrar na mata. Ninguém mais seria capaz de perceber a trilha entre as árvores. Começava no outro lado de um tronco em decomposição, depois se alargava numa trilha sem vegetação, feita por seus pés passando por ali todas as noites, há 13 anos. Seguia até o topo de uma pequena elevação e passava por uma concentração de bordos, para descer, em seguida, ao lado de uma cascata e de um sorvedouro.

Charlie, que conhecia cada buraco, cada raiz que a-florava na trilha, poderia correr por ali de olhos fechados. Passou pelo sorvedouro e por alguns ciprestes que se a-briam para uma clareira. Ali ficava o maior segredo de Waterside, sem a menor sombra de dúvida — um lugar que ele criara com as próprias mãos. Naquele tempo deci-dira fazer ali uma réplica exata do quintal de sua casa na alameda Cloutman. Havia um gramado de trinta metros, com o montinho do lançador, a borracha e uma base.

Ele foi até um balanço pendurado de um sicômoro, acomodou-se no banco de madeira, deu impulso com os pés e começou a balançar. Com a brisa soprando abaixo, a sensação era a de voar. Depois, saltou do balanço e pegou a luva. Jogou a bola para o céu que escurecia. Alcançou as copas das árvores, antes de cair. Tornou a lançá-la para cima. No momento em que estava prestes a cair em sua luva, houve uma súbita rajada de vento. A bola foi desvi-

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ada pela clareira, rolou pela relva e foi parar na beira da floresta. E foi nesse instante que um pequeno milagre a-conteceu, como vinha ocorrendo todas as noites, ao pôr do sol.

Sam St. Cloud saiu da escuridão da floresta e pegou a bola. Permanecia inalterado, depois de tanto tempo: ainda tinha 12 anos, cabelos castanhos cacheados, uma luva de beisebol debaixo do braço fino. Usava um boné do Red Sox, camisa e short folgados. Oscar saiu correndo do mato, o rabo levantado. Com seus olhos tristes e o latido carac-terístico, ele também continuava como antes. Esbarrou nas pernas de Sam e depois latiu para Charlie.

— Vamos logo, irmão — disse Sam, exultante. —Vamos jogar.

Uma muralha de água de dez metros de altura de-sabou sobre a cabine, derrubando Tess e arremessando-a para as cordas. Ela ofegou para respirar, enquanto o mar gelado a envolvia, sugando-a para a beira do olvido. De-pois, graças a Deus, o arnês e a corda conseguiram sus-tentá-la. Momentos antes, ela pusera o traje de sobrevi-vência laranja, essencialmente uma balsa salva-vida para uma só pessoa, projetada para a navegação em circunstân-cias perigosas, que lhe permitiria sobreviver no mar por até uma semana.

Tess tossiu e cuspiu água salgada. Com um grande esforço, voltou à roda do leme. O Querencia avançava pela

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escuridão uivante com os mastros vazios. A vela mestra fora recolhida e amarrada na retranca. Ondas enormes quebravam com fúria em séries de vinte segundos, atin-gindo o casco e lançando jatos de água no ar. Manchas fosforescentes surgiam no céu, no espetáculo de fogos de artifício da tempestade. O mar à frente parecia uma su-cessão interminável de montanhas e precipícios, correndo em sua direção a 70 km/h. Os picos monstruosos desa-bavam sobre o barco com a força de uma avalanche.

Tess não se preocupava com a intensidade do vento, o mar confuso ou o sal ardendo em seus olhos. Não se importava com a dormência nas mãos nem com a dor no quadril, da última queda. Não se sentia alarmada porque o radar mostrava outra depressão profunda, por trás daquela zona de baixa pressão. Toda a sua atenção se concentrava em um único problema, irritante: as botas novas, que de-veriam ser impermeáveis.

— Mas que droga! — resmungou ela, furiosa. — Pago quinhentos dólares, e essas porcarias vazam!

Tess preparou-se para o impacto da próxima onda. Mesmo enquanto se abatia sobre o Querencia, cobrindo-o de lado a lado, ela se manteve firme na roda do leme. Não restava a menor dúvida, pensou ela, era mesmo um bom treino para o oceano Austral, que cerca a Antártica, onde enfrentaria tempestades de neve e icebergs. Isto é, se con-seguisse chegar lá. Durante toda a noite, as ondas sopra-das pelo vento violento vinham passando sobre o barco, espumantes, mas agora quebravam em cima dele, inter-mináveis. Isso só podia significar uma coisa: a tempestade ganhava força.

Perigosamente à beira de adernar, o Querencia avan-çou para uma onda gigantesca, num ângulo quase vertical.

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Tess prendeu a respiração enquanto mergulhava na de-pressão, com a onda seguinte, também enorme, erguen-do-se à sua frente. Ouviu um estrondo alto. Levantou os olhos para ver que o indicador da direção do vento e os instrumentos no alto do mastro haviam sido arrancados. No momento seguinte, o barco virou na direção do vento, enquanto uma onda o atingia a boreste. Tess perdeu o controle da roda do leme e foi projetada para fora da ca-bine até a beira do barco, inclinado num ângulo extremo. Seu corpo estava envolto por cabos, e ela podia sentir o mar agitado a poucos centímetros de seu rosto.

O Querencia parecia deslizar de lado mais depressa que para a frente. O cordame estalava ao vento. O mar estava quase todo branco, e Tess compreendeu que era o momento de descer. Pouco a pouco, subiu pelo barco in-clinado até a cabine. Ligou o piloto automático e ajustou o curso para correr à frente da tempestade. Depois esperou por uma pausa na investida do oceano. Teria apenas dez segundos para entrar.

Ela correu para a escada do tombadilho, abriu e le-vantou a tampa. Pôs os pés no primeiro degrau e baixou a mão para soltar o cabo de segurança. Dentro das luvas grossas, tinha os dedos dormentes do frio. A popa come-çou a subir; restavam uns poucos segundos para o impac-to. No momento em que uma onda violenta atingia o barco, ela soltou o cabo e desceu os degraus, acompanha-da por uma torrente de água do mar. Com um movimento rápido e preciso, derivado de muita prática, ela puxou a tampa e fechou a entrada da escada.

Tess esperou por um momento, no escuro, ouvindo o barulho da tempestade, os pingos e rangidos dentro do barco, além das batidas de seu coração. O Querencia pare-

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cia protestar contra o ataque implacável. Ela cambaleou para bombordo, sentou-se no posto de navegação e acen-deu uma luz. Puxou o zíper do capuz e tirou as luvas.

Verificou a carta no monitor do laptop e calculou que estava a três horas da costa de New Hampshire. Estendeu a mão para o rádio. Era hora de transmitir informações para Tink. Ela ligou para o operador marítimo, deu o nú-mero de Tink e esperou pela conexão. Teria de admitir que ignorara seu conselho. Seguira direto para a zona de baixa pressão. Tink ficaria furioso.

A menos que mentisse. A voz de Tink saiu crepitando pelo alto-falante. — Como vai minha garota? O barco deu uma guinada violenta, mas Tess man-

teve a calma. —Tudo correndo bem. Uma navegação sem pro-

blemas. —A verdade só serviria para deixá-lo preocupado. —Só estou ligando para conferir.

Ela fazia um esforço para permanecer imperturbável. — Como está o tempo? — Há muito vento — respondeu Tess, escutando o

estrondo das ondas. — E a vela mestra? — Ajustou-se com perfeição, aproveitando o vento

ao máximo. Diga a todos que fizeram um grande trabalho. — Direi. — É melhor eu correr agora. — O barco inclinou-se

para a frente e mergulhou por uma onda íngreme. — Li-garei de novo amanhã.

— Adios, menina. Cuide-se. A mentira não o deixaria magoado, pensou Tess.

Voltaria a tempo para o jantar no domingo e Tink nunca

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saberia a verdade. Ela largou o microfone no gancho e foi até a cozinha, onde prendeu o cinto de segurança. Senti-a-se cansada e um pouco nauseada de ser jogada de um lado para o outro, mas sabia que precisava de energia. Pegou uma barra de cereais num dos armários. Os dedos mal conseguiam segurar o invólucro. Rasgou-o com os dentes, e a comeu em quatro mordidas.

Não havia nada a fazer agora, a não ser esperar. Ela soltou o cinto de segurança, foi para a frente da cabine e baixou o zíper da parte de cima do traje de sobrevivência. Deitou-se no beliche, que era como um casulo, cercado por redes para impedir que caísse, e começou a compor uma lista de todas as coisas que faria quando voltasse para casa. A comida era um item da maior importância na lista. Durante a expedição ao redor do mundo, teria de subsistir com rações desidratadas, e provavelmente perderia de seis a nove quilos. Durante a última semana em terra, queria se permitir uma farra alimentar. Pipoca caramelada e choco-late com menta na E.W. Hobbs, em Salem Willows. Hambúrgueres na Flynnie’s, em Devereaux Beach. Lula e lagosta no Porthole Pub, em Lynn. Ela sorriu pela gula. Para aliviar o sentimento de culpa, faria longas corridas em torno do farol e caminhadas com a mãe pela Cause-way.

E visitaria a sepultura do pai em Waterside, é claro. Ia lá quase todas as semanas desde que ele morrera, havia dois anos. Às vezes parava durante uma corrida matutina com Bobo.

Tess não acreditava em fantasmas ou espíritos. To-das essas coisas psíquicas não passavam de recursos in-sensatos para pessoas desesperadas. Era o sentimento de estabilidade que a levava ao cemitério, assim como a sere-

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nidade. Era um lugar sossegado e bonito, ainda por cima. Sentia-se em paz ali.

Desta vez, quando voltasse, ia sentar-se no banco, sob o bordo-japonês, e falaria ao pai sobre a decisão estú-pida de navegar direto para a tempestade. Sabia que ele a repreenderia, onde quer que estivesse. Podia até elevar a voz. Mas nunca a condenaria, apesar de todos os seus de-feitos e sua insensatez. Seu amor pela filha sempre fora incondicional.

Os olhos de Tess começaram a ficar pesados, e ela sentiu-se tentada a tirar um cochilo. Mas, subitamente, o beliche tombou, quando o barco mergulhou numa de-pressão. Ela flutuou por um segundo, depois bateu de costas no beliche. O Querencia adernou, sacudindo violen-tamente. Tess foi arremessada contra a vigia. Teve medo de que o barco adernasse por completo, com o mastro entrando na água. Mas logo o peso da quilha levantou o barco. Ela saiu do beliche e encaminhou-se para a escada. Precisava verificar se o mastro fora danificado. Levantou o zíper do traje de sobrevivência, prendeu o capuz e co-meçou a subir.

Foi nesse momento que o mundo virou ao contrário.

Era um ritual dos dois há 13 anos. E um segredo também. Encontravam-se todas as noites para jogar.

Zum.

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Sam pegou a bola com a luva e jogou-a de volta... um lançamento rápido, de dois dedos. Começara há muito tempo, na noite do funeral de Sam. Ao pôr do sol, Charlie estava sozinho ao lado da sepultura. E, de repente, o im-possível acontecera, o inacreditável: Sam aparecera, o corpo machucado do desastre, ainda segurando a luva e a bola. Oscar o acompanhava.

— E agora, irmão? — dissera ele. — Vamos jogar? O momento deixara Charlie tão transtornado e in-

consolável que os médicos lhe deram drogas poderosas para evitar as visões. A princípio os especialistas disseram que eram sonhos, depois chamaram de delírios. Nunca acreditaram que ele podia ver. Mas Charlie via, e tinha certeza de que não eram ilusões ou alucinações. Ele mor-rera e ressuscitara com um choque. Cruzara para o outro lado e voltara. Fizera uma promessa a Sam e recebia o poder para cumpri-la.

Poucos meses depois, quando mais um adulto recu-sara-se a acreditar no que ele podia ver, Charlie fingira que havia acabado. Os médicos decidiram que ele estava bem de saúde e suspenderam as drogas. Charlie jurara que nunca mais falaria a ninguém sobre Sam. Seria seu segredo para sempre.

Daquele dia em diante, Charlie e Sam jogavam bola todas as noites. O encontro ao crepúsculo, Charlie acredi-tava, era a chave para seu dom; ele temia que o perderia se faltasse uma única noite. Enquanto jogasse bola todas as noites, ele poderia ver Sam, e Sam poderia vê-lo. O tempo juntos era confinado a Waterside, pois Charlie logo com-preendera que o dom não se estendia além dos muros e portões do cemitério. Funcionava assim há 13 anos.

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Com o passar do tempo, ele compreendera que seu dom se expandira, ao começar a perceber outros espíritos, que passavam pelo cemitério a caminho do próximo nível. Apareciam em todas as formas e por todos os motivos, mas cada um partilhava uma característica expressiva: tremeluziam com uma aura de calor e luz. Ajudar aquelas almas reluzentes em sua transição, Charlie passara a pen-sar, era seu propósito e sua punição.

— Como foi seu dia hoje? — perguntou Sam. — Muito bom — respondeu Charlie. — Lembra-se

da Sra. Phipps, a Implacável Ruth? — Sua professora de inglês? — Exatamente — confirmou Charlie, arremessando

a bola. — Eu a vi hoje, pairando junto à própria sepultura. — Essa não! — Sam arremessou uma bola rápida.

Strike 1. A bola que passa pelo batedor. — O que aconte-ceu com ela?

— Infarto. O arremesso de Sam foi alto, e Charlie teve de pular

para pegá-lo. Bola fora l, o lançamento que não passa pela zona de rebate. No arremesso seguinte, Sam ergueu a perna e disparou uma bola rápida. Strike 2.

— Como ela recebeu? — perguntou Sam. — Tem dificuldade para aceitar. Arremesso em curva, baixo e fora da zona. Bola fora

2. — Quando ela vai fazer a travessia? — Não sei. O marido, Walter, continua no outro la-

do. Bola rápida batendo no chão. Bola fora 3. Contagem

plena.

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— Vamos, Sam — disse Charlie, batendo com a mão na luva. — Está três a dois. Quero ver você arremessar para valer.

Os dois jogaram bola até estar quase escuro demais para ver, sempre contando histórias sobre seu dia um para o outro. Como espírito, Sam podia vaguear para onde qui-sesse, viajar pela Via Láctea, tremeluzir com um arco-íris sobre os lagos de Killarney, na Irlanda, pegar sol na Grande Barreira de Coral, na Austrália, e passear com a lua sobre Machu Picchu, no Peru. As possibilidades eram infinitas. O universo conhecido, com sua centena de bi-lhões de galáxias, era seu recreio.

Mas Sam sacrificara tudo isso. Passava os dias e as noites em aventuras em Marblehead, sentado atrás da base no campo de beisebol da Pequena Liga, em Seaside Park, descendo a ladeira de Gingerbread Hill de skate.

— Vamos embora! — disse ele. —- Temos de nadar um pouco antes que seja tarde demais. Aposto que chego primeiro!

E ele disparou na direção da lagoa, com Oscar e Charlie em seu encalço. Era o sentimento mais prazeroso do mundo, os três voando por entre as árvores, sem ne-nhuma preocupação... como acontecia tantos anos antes na alameda Cloutman, e como sempre seria.

Tess descobriu-se comprimida contra o teto, com a água do porão turbilhonando em torno de sua cabeça. O

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equipamento de rádio batia de um lado para o outro, pa-nelas e talheres retiniam. O caos prevalecia na cabine. Lá fora, o mar e o vento rugiam. E, de repente, as luzes se apagaram.

Ela podia ouvir o mar entrando no barco, mas o medo não era sua maior preocupação. O Querencia, fora projetado para emborcar e tornar a levantar. E havia bombas a bordo para tirar a água.

Tess encolheu-se no teto, joelhos e cotovelos na á-gua, e murmurou para o barco:

— Por favor, vire logo, está bem? Vamos, vamos, endireite agora, por favor!

Mas nada aconteceu. Por isso ela engatinhou até o posto de navegação. Encontrou o transmissor de rádio de emergência, emitindo um sinal que indicava sua posição, uma espécie de farol sonoro. Detestava pedir ajuda, mas empurrou a pequena alavanca amarela e viu o led piscar. O dispositivo enviava agora um pedido de socorro via satéli-te, que seria um ponto luminoso e sonoro em todas as te-las de radar da Nova Inglaterra. Subitamente, ela não se sentia mais sozinha.

“Espere um pouco”, disse a si mesma. O Querencia não estava afundando, e ainda não havia necessidade real de um SOS. Se o barco começasse a afundar, haveria tempo para chamar a Guarda Costeira. Por isso Tess em-purrou o pino, e a luz de socorro parou de piscar.

Passou-se um minuto, depois outro. Ela estava nau-seada com o cheiro de enxofre do ácido vazando das ba-terias. Por que o barco demorava tanto para voltar à posi-ção correta? O peso da quilha deveria ser o suficiente para virar o Querencia.

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Tess não era muito religiosa. Ia à igreja Old North aos domingos, sobretudo porque era importante para sua mãe. Mas não gostava das convenções da fé organizada e preferia fazer tudo à sua maneira. Considerava-se uma pessoa espiritual, com um relacionamento próprio com Deus.

Agora, virada de cabeça para baixo no Atlântico, descobriu-se a orar na escuridão. Começou por pedir desculpas por sua arrogância. Sabia que assumira um risco grande demais. Fora descuidada, e agora sentia-se enver-gonhada. Não era assim que queria que tudo terminasse, sozinha no barco, numa viagem de fim de semana, no meio de uma tempestade que poderia ter evitado. Orou para que Deus fosse misericordioso. E, depois, invocou o pai: “Por favor, papai, ajude-me. Diga o que devo fazer.” Ele sempre a salvara de situações desesperadas. Tess fe-chou os olhos e prometeu que, se voltasse à enseada, nunca mais faria qualquer coisa precipitada. Adotaria uma margem de segurança na regata ao redor do mundo, mesmo que isso a obrigasse a ser mais lenta. E, quando saísse daquela situação crítica, iria direto para Waterside e faria um juramento: tinha de mudar.

— Mostre-me o caminho para casa — sussurrou ela, na escuridão turbulenta. — Por favor, papai, ajude-me.

O dia era cinzento e o terreno estava encharcado de uma noite de chuva forte. A tempestade soprara uma

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confusão de folhas e galhos por todos os gramados. Char-lie, com o capuz amarelo na cabeça, olhava para a sepul-tura que um de seus coveiros escavava. Era um trabalho extenuante num dia normal, mas se tornava ainda pior quando a terra ficava encharcada e a pá não operava di-reito. Agora, para piorar, Elihu Swett, o diretor do cemité-rio, aparecera para uma inspeção inesperada.

— O grupo do funeral de Ferrente deve chegar a qualquer momento — avisou Elihu, sob seu enorme guar-da-chuva.

Ele era pequeno e irrequieto. Vestia uma capa casta-nha e uma calça azul de veludo cotelê, e usava galochas. Tomou um gole da garrafa de bourbon Mountain Dew, que parecia ter a metade de seu tamanho, antes de perguntar:

— Quanto tempo ainda vai demorar para que você apronte tudo?

— Não se preocupe, estaremos prontos na hora marcada. — Charlie abaixou-se para examinar a abertura. — Como está indo, Joe?

— Muito bem — respondeu Joe Carabino, do fundo da cova. — Mas é com Elihu que estou preocupado.

Ele piscou. — Qual é o problema? — indagou Elihu, aproxi-

mando-se da beira da cova, cauteloso. — Uma dose letal de cafeína tem dez gramas — dis-

se Joe, apoiando-se na pá. — Se continuar a beber isso, vai afundar mais e mais o pé na cova.

Ele fez uma pausa, para efeito dramático. — Está se sentindo bem? Parece um pouco pálido. Antes que Joe pudesse zombar ainda mais de seus

olhos injetados, Elihu guardou a garrafa no bolso da capa e encaminhou-se para o seu Lincoln Continental.

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Com um movimento rápido, Joe saiu da cova. Bateu na mão levantada de Charlie, no gesto de vitória, com sua mão enlameada.

— O velho truque da dose letal de cafeína sempre funciona — comentou ele. — O pobre Elihu sempre cai.

Joe tinha trinta e poucos anos e era forte como um touro. Seu rosto rude era escurecido pelo sol, e trazia os cabelos ralos armados em tufos orgulhosos e presos com gel. Durante o dia, trabalhava com a terra e os mortos. De noite, andava atrás das mulheres de um lado a outro de Cape Ann, com um repertório descarado de estratégias e táticas. Sua única outra devoção era uma variedade pessoal de ateísmo evangélico. Não havia problema, desde que ele mantivesse o trabalho missionário além dos portões de ferro. Mas Charlie já o ouvira resmungar, algumas vezes, junto a uma cerimônia religiosa à beira da sepultura:

— O paraíso não existe. Podia também murmurar “Que desperdício!” quan-

do uma cruz dourada de três metros de altura era levanta-da por um guindaste para o topo de um mausoléu.

— Qual será sua história esta noite? — perguntou Joe, quando acabaram de aprontar a sepultura. — Vai me acompanhar num trago depois do trabalho? Vou levar o Horny Toad para Rockport. Conheço duas mulheres que têm um bar ali. Você não acreditaria nas coisas que elas fazem.

— Dê-me uma ajuda aqui com o guincho — disse Charlie, andando até o pequeno caminhão no caminho de serviço.

Em todos os cemitérios do mundo, o aparelho de aço inoxidável era usado para baixar os mortos para o descanso final, no fundo da sepultura. Com tiras de náilon

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e um botão de controle, um homem podia realizar o tra-balho de muitos, baixando meia tonelada para uma sepul-tura.

— Já ouviu falar nas irmãs Dempsey? — Nunca. — Garanto que vai gostar de Nina e Tina. — Vamos ver se dá para ir hoje. — Você sempre diz isso, mas desaparece na hora de

ir. A mesma história de sempre. Você deveria viver um pouco. O CAPACETE de cabelos pretos da diretora da agência funerária era tão lustroso quanto a tinta preta do novo Cadillac fúnebre.

— Como vocês estão? — perguntou Myrna Doliber, saltando e batendo a porta da frente.

— Melhor do que a maioria — respondeu Charlie. Ele metera a camisa dentro da calça e enfiara as luvas de trabalho no bolso traseiro. — E você?

— Muito bem. Duas crianças com catapora e uma terceira com o braço quebrado.

Os ancestrais de Myrna, os Doliber, haviam sido os primeiros colonos a chegar na península, em 1629. Em algum momento ao longo do caminho haviam entrado no ramo funerário, passando a ter o monopólio até Beverly, ao norte, e Lynn, ao sul. Nos dias de maior movimento, todos os Doliber trabalhavam no negócio, até mesmo Myrna, que era conhecida como a pessoa mais supersti-ciosa do condado de Essex, com uma lista permanente de maus presságios.

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— Oi, Myrna, contei 13 carros em seu cortejo fúne-bre — disse Joe, com um sorriso malicioso. — Isso signi-fica que alguém vai morrer hoje, ou qualquer coisa pare-cida?

— Corta essa. Myrna foi para a traseira do carro fúnebre. Abriu a

porta e recuou. Charlie inclinou-se, soltou a tranca, pegou uma alça do caixão e puxou-o para a carreta.

Os dois homens empurraram o caixão pelo gramado, parando ao lado da sepultura. Charlie levantou o pé do caixão, que era sempre mais leve, enquanto Joe pegava o lado da cabeça, mais pesado. Era uma questão de orgulho: Joe era o trabalhador mais forte de Waterside e gostava de demonstrá-lo. Carregaram o caixão para o dispositivo que o baixaria à sepultura. Tudo estava pronto agora para o funeral.

— Hora da folga — disse Charlie. —- Eu me en-contrarei com você à beira d’água.

—Às 15h50, chefe. Joe tirou um cigarro Camel de detrás da orelha e

começou a descer a encosta. Charlie subiu uma elevação e parou sob uma amo-

reira, para ter uma visão melhor da cerimônia fúnebre. Portas de carros eram batidas, e homens e mulheres su-biam para a sepultura. Havia dezenas de bombeiros em uniformes de gala. Gaitas-de-foles tocavam uma música triste. Charlie viu as lágrimas escorrendo por muitos ros-tos. Fez uma última avaliação do local. Joe e ele haviam feito um bom trabalho, disfarçando a pilha de terra com um tapete de grama artificial, espalhando rosas e cravos em torno da cova. Mas onde estava o morto? Com bas-tante frequência, Charlie avistava o falecido circulando

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entre as fileiras, ou se esgueirando pelas lápides, enquanto as pessoas assoavam em lenços de papel. Com sua aura familiar, o falecido podia sentar-se sob uma árvore ou en-costar-se no caixão, para observar os presentes. Elogios mentirosos e falsas lágrimas podiam levar o morto a pro-testos veementes. Com mais frequência, porém, ele ficava comovido, até mesmo surpreso, ao descobrir o quanto sua vida havia significado para os outros.

Charlie sempre podia avistar os recém-chegados lu-minosos. Os que haviam sofrido morte violenta às vezes exibiam os ferimentos ou claudicavam de ossos fratura-dos. Os que haviam sofrido uma doença prolongada eram fracos e cambaleavam a princípio, mas logo recuperavam o vigor. Charlie lembrou-se de como Sam surgiu todo machucado logo depois do enterro, mas se recuperara depois de alguns dias.

Para alguns, é claro, assistir ao próprio funeral era demais. A princípio, mantinham-se a distância. Depois de um ou dois dias, voltavam a Waterside e aceitavam o pró-prio fim. Até que finalmente desapareciam no céu, passa-vam para o nível seguinte ou para onde quer que fossem pela eternidade.

Tudo dependia da rapidez com que queriam deixar tudo para trás

Charlie ouviu o padre Shattuck iniciar a cerimônia. Os poucos cabelos que lhe restavam eram tão brancos quanto o colarinho clerical e haviam sido arrumados em torno da cabeça com todo o cuidado, como se formassem um halo. Seu desempenho dramático era idêntico em to-das as ocasiões... até as pausas solenes no Salmo 23, en-quanto ele caminhava pelo vale da Sombra da Morte.

Não temerei o mal...

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Depois, ele leu do Eclesiastes: — “Há um tempo para tudo. Um tempo para cada

ocupação sob o céu. Um tempo para dar à luz, um tempo para morrer... um tempo para as lágrimas, um tempo para o riso, um tempo para lamentar, um tempo para dançar... um tempo para procurar, um tempo para perder... um tempo para amar, um tempo para odiar...”

E, Charlie pensou, um tempo para novo material... O padre Shattuck terminou. Don Woodfin, coman-

dante dos bombeiros de Revere, adiantou-se. Era magro, com um enorme bigode por baixo de faces encovadas.

— Em nossos 119 anos de história sofremos seis mortes no cumprimento do dever — disse ele. — Esta-mos aqui reunidos por causa da sétima.

Ele baixou a cabeça. — Nós agradecemos, Senhor, pela vida de um gran-

de homem. Agradecemos por sua devoção ao dever de um bombeiro, por sua dedicação à preservação da vida e pela maneira como enfrentava o perigo.

Na primeira fila, uma mulher e seu filho pequeno choravam.

— Pedimos o conforto de sua bênção para esta fa-mília. Que todos possam ser amparados pelas boas recor-dações, uma esperança viva, a compaixão dos amigos e o orgulho do dever cumprido. Amém.

Um homem veio postar-se ao lado de Charlie, sob a árvore. Vestia o uniforme azul de gala dos bombeiros e parecia perdido em seus pensamentos. Havia uma tênue aura ao seu redor; era o morto, em seu funeral.

— Pode me ver? — perguntou o homem, depois de um momento.

— Posso — sussurrou Charlie.

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— Também está morto? —Não. O homem coçou o pescoço. — Você me parece familiar. — O rosto era pálido e

a voz áspera. — Espere um instante... Você é o garoto St. Cloud, não é? Charlie St. Cloud. Eu sou Florio. Lembra-se de mim?

— Desculpe, mas minha memória é péssima. Perto da sepultura, o comandante dizia a oração dos

bombeiros. Florio cruzou os braços e baixou a cabeça. O comandante deu a deixa, e Charlie adiantou-se. Empurrou o pino de controle, e o caixão iniciou a descida, lenta e digna.

Charlie olhou para a inscrição entalhada na lápide.

FLORIO FERRENTE MARIDO — PAI — BOMBEIRO

1954 — 2004

E foi então que ele se lembrou: Florio fora o bom-beiro que lhe salvara a vida.

O caixão bateu de leve no fundo da sepultura. Char-lie removeu as correias e meteu-as por baixo do tapete de grama. Depois voltou para baixo da amoreira, enquanto as pessoas jogavam rosas sobre o caixão.

— Peço desculpa por não o ter reconhecido — murmurou Charlie.

— Não se preocupe com isso. Foi há muito tempo, e você não estava em boas condições na ocasião.

— O que aconteceu com você? Eu não sabia...

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— Era um resgate fácil, numa unidade residencial. Arrombamos a porta da frente com o aríete. Salvamos uma menina e sua mãe. A menina começou a gritar, de-sesperada, pelo gato e pelo cachorro. Entrei para bus-cá-los, e o teto desabou. — Ele deu um sorriso hesitante. — Isto é, as luzes se apagaram.

Bombeiros enxugavam as lágrimas com a manga dos trajes. Alguns ajoelharam-se, para uma prece silenciosa. Uma mulher adiantou-se, com um bebê no colo.

— Minha esposa, Francesca, e nosso filho. Tenta-mos durante anos que ela engravidasse, até que finalmente aconteceu. Não há melhor mulher no mundo, e Júnior é meu orgulho e minha alegria. — A voz de Florio começou a tremer. — Só Deus sabe o que farei sem eles.

— Ainda é muito cedo para pensar a respeito — disse Charlie. — Dê algum tempo.

Eles observavam a esposa e a criança se afastarem da sepultura, passarem pelos outros e embarcarem numa li-musine. Charlie começou a jogar terra na cova, uma pá após a outra, enquanto Florio observava.

— Pensei muito em você ao longo dos anos — murmurou Florio, depois de algum tempo. — Eu me sen-ti muito mal por não ter conseguido salvar seu irmão. E sempre especulei sobre o que teria acontecido com você. Casou? Teve filhos? O que fez com sua preciosa vida?

Charlie manteve os olhos no chão. — Não tenho esposa, não tenho família. Trabalho

aqui e sou bombeiro voluntário. — É mesmo? Também é bombeiro? — Fiz um curso de paramédico. Fico de plantão al-

gumas noites por semana. Gostaria de fazer mais, mas não posso me afastar muito daqui.

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—Também fui paramédico durante mais de 25 anos. Testemunhei muita coisa, mas só vi duas outras pessoas voltarem dos mortos, como você. — Florio fez uma pau-sa. — Foi uma dádiva de Deus, filho. Deus tinha uma ra-zão para salvá-lo. Tinha um propósito. Alguma vez pen-sou sobre isso?

Um longo minuto se passou, enquanto Charlie joga-va mais terra na sepultura. Claro que ele pensara a respei-to. Em todos os dias de sua vida, perguntara-se por que não fora levado, no lugar de Sam. Qual seria a razão de Deus? Que propósito Deus tinha em mente? Mas Florio rompeu o silêncio de novo.

— Não se preocupe, filho. Às vezes é preciso algum tempo para descobrir as coisas. Mas você ouvirá o cha-mado. Saberá quando chegar o momento. E isso o liber-tará.

Os cantos dos olhos e da boca estavam escamosos do sal ressequido da água do mar. Tess removeu os depó-sitos, recordando a última vez em que ficara assim. Na ocasião, o resíduo branco fora deixado pelo fluxo de lá-grimas depois do enterro do pai. A mãe limpara seu rosto, dizendo que aquilo era um lembrete de que as lágrimas e a água do mar misturavam-se há dezenas de anos.

Tess também sentia uma tremenda dor de cabeça e tinha o corpo todo preto e roxo de ter sido arremessada de um lado para o outro. Mas os vergões e as equimoses

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não pareciam ter nenhuma importância agora. O pensa-mento que prevalecia em sua mente era estar de novo em terra firme, exatamente onde queria: o cemitério de Wa-terside, perto de seu pai.

Ela sentou-se à sombra do bordo, ao lado da sepul-tura. O gramado estava molhado, mas ela não se importa-va. Exultava pelo simples fato de continuar inteira. Es-tendeu as pernas e olhou para a lápide. Sabia que devia a vida ao pai. Depois da terrível tempestade, ele a conduzira de volta para um porto seguro.

— Nunca parei de falar com você durante toda a-quela noite — murmurou Tess. — Deve ter me ouvido.

Claro que ela não acreditava que o pai estivesse cir-culando pelo cemitério, à espera de sua visita. Nada disso. Ele se encontrava por toda parte, uma espécie de força ou energia.

Tess levantou os olhos para as folhas cor-de-ferru-gem. Aquele era o único lugar seguro no mundo. O vento soprava em rajadas do norte, e grandes nuvens em forma de couve-flor preenchiam o céu, numa daquelas tardes excepcionais na Nova Inglaterra, frescas e revigorantes.

Uma imagem da noite passada predominou em sua mente: o Querencia virado, o mundo invertido.

— Jesus! — exclamou ela. Esfregou uma equimose no braço. Aprendera a lição.

Três horas emborcada, sem eletricidade nem rádio, havi-am-na deixado apavorada. Agora tinha de cumprir a pro-messa ao pai.

Ela atravessou o gramado e encostou-se na lápide. Era fria contra as costas doloridas, proporcionando uma sensação agradável. Tess virou a cabeça e passou os dedos pela inscrição.

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GEORGE CARROLL

1941 — 2002

— Eu sabia que você me ajudaria — murmurou ela, as lágrimas aflorando-lhe aos olhos.

Tess enxugou os olhos. Tinha uma regra simples so-bre lágrimas. Chorar era para as pessoas fracas. Mas na frente do pai era diferente. Ele a confortara no sofrimento e no desapontamento. Fora a única pessoa que realmente a compreendera. Ninguém jamais chegara perto.

— Prometo que mudarei. Não farei mais loucuras no mar. — Uma pausa. — Finalmente fiquei apavorada.

Ela passou os dedos pelos cabelos e sentiu um galo atrás da cabeça. Ui! Era sensível ao toque. Quando acon-tecera? Devia ter sido no momento em que o barco virara. Os detalhes da noite eram indistintos, e ela ainda se sentia atordoada por lutar contra as ondas e os vapores do diesel. Precisava de um banho e de um bom sono.

Pensou em todas as coisas que precisava fazer antes do canhão de partida na semana seguinte. Sua primeira parada, na manhã de segunda-feira, seria na Lynn Marine Supply, na rua Front. Diria poucas e boas para Gus Swanson. Aquelas botas vazando eram indesculpáveis.

Depois, teria de confrontar Tink. Temia o momento. Ele faria um interrogatório completo, e depois examina-riam o barco da proa à popa, para avaliar os danos. Claro que os cabos teriam de ser trocados. A vela mestra seria emendada. Sua equipe teria de trabalhar em horas extras a tempo de realizar os reparos para a regata.

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— Já sei — disse ela em voz alta. — Um desperdício de trabalho e dinheiro.

Era o que fazia com que se sentisse pior. O pai dei-xara algum dinheiro e recomendara que o usasse para co-nhecer o mundo. Não era muito, mas ele trabalhara bas-tante para economizá-lo e não ficaria nem um pouco feliz ao vê-lo desperdiçado em reparos.

Ela permaneceu sentada em silêncio por alguns mo-mentos. Podia ouvir a voz do pai. Era apenas um som distante em sua mente agora, mas a lembrança fazia com que tudo ficasse bem. E, de repente, ela ouviu o barulho de um motor, um zumbido terrível. Parecia uma motos-serra. E vinha do outro lado da colina.

Tess levantou-se de um pulo e foi verificar o que es-tava causando tanto tumulto.

O QUE FEZ com sua preciosa vida? As palavras de Florio ainda pairaram no ar por muito tempo depois que Charlie foi para o quartel dos bombeiros, a fim de participar de uma recepção em homenagem a Florio. Independente-mente das tarefas que havia para distraí-lo, a questão o as-sediava. No espaço reservado à família Dalrymple, ele despejou a fundação de cimento para uma nova lápide, enquanto procurava as respostas. No Monte da Memória, cortou um carvalho derrubado pela tempestade e especu-lou. O que fizera com sua segunda oportunidade?

Observou um bando de gansos passar numa forma-ção em V circular o cemitério e depois atravessar a ensea-da. Uma coisa era certa: passara muito tempo de sua pre-ciosa vida batalhando contra aquelas terríveis criaturas, que pisoteavam a relva, devoravam as flores, sujavam os

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monumentos e até atacavam os que vinham lamentar os mortos.

Naquela linda tarde, Charlie estava sentado num banco à beira do lago, com Joe, o Ateu, que inventara um engenhoso método para afugentar as aves abomináveis. Envolvia a disposição de uma esquadra de barcos de brin-quedo com motor, acionados por controle remoto.

— PT. 109, pronta para o ataque — disse Joe. Os pensamentos de Charlie não estavam ali. — Acha que algum dia fará qualquer coisa impor-

tante com sua vida? — Mas do que está falando? Isto é importante. Te-

mos um trabalho a fazer. Joe olhou por um binóculo militar e posicionou em

seu colo uma caixa de metal, com um joystick. — Falo sério. Acha que algum dia valerá alguma

coisa? Que Deus tem um plano para você? — Deus? Está querendo me gozar? Acredito na sor-

te. E é só. Ou você tem ou não tem. Lembra-se do ano passado? Só faltou um número para eu ganhar os 34 mi-lhões de dólares da loteria de Massachusetts. Acha que Deus tem alguma coisa a ver com isso? Não há a menor possibilidade.

Ele sorriu e inclinou-se para a frente. — Olhe ali! Mais uma esquadrilha de gansos na po-

sição de duas horas em relação à ilha da Solidão. Solici-tando permissão para atacar.

— Permissão concedida — disse Charlie. Joe empurrou para a frente o bastão de controle. Um

barco de patrulha cinzento avançou direto para os gansos. O motor fazia barulho, e uma buzina soou.

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— Sessenta metros e se aproximando — avisou Joe, espiando pelo binóculo.

Como sempre, o barco funcionou com perfeição. Em pânico, as aves correram pela superfície, batendo as asas, e alçaram vôo. O pequeno barco fez uma curva, a-proximando-se da praia e levantando uma onda de espu-ma. E foi nesse instante que Charlie avistou a mulher pa-rada no outro lado. Era alta e bonita, e acenava para ele. Parecia gritar alguma coisa, mas as palavras eram abafadas pelo barulho do motor. Era Tess Carroll.

— Eu me encontro com você mais tarde — disse ele a Joe, que estava concentrado em levar a lancha de volta ao pequeno cais.

— Às 15h50. Charlie foi para o carrinho e contornou o lago, na

direção de Tess. Ela era uma espécie de celebridade na ci-dade, e Charlie tinha de admitir a verdade: há muito que a admirava a distância. Haviam sido contemporâneos na escola secundária, mas Tess era dois ou três anos mais moça. Dois anos antes, Charlie sepultara o pai dela. Desde então, Tess aparecia quase todas as semanas para visitar o túmulo. Vinha sempre sozinha ou acompanhada por seu golden retriever. E não queria ser incomodada.

Mas ali estava ela agora, deslumbrante de jeans e ca-misa de botões, avançando pelo caminho de cascalho, o rabo-de-cavalo balançando atrás da cabeça. Ele passou a mão pelos cabelos e diminuiu a velocidade, até parar. An-tes que pudesse dizer qualquer coisa, Tess descarregou:

— Deus Todo-Poderoso! Precisa mesmo fazer todo esse barulho? Uma pessoa vem até aqui em busca de sos-sego, e o que encontra? A invasão da Normandia!

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— Na verdade, é o nosso programa de controle dos gansos.

A frase soou muito engraçada da maneira como saiu de seus lábios. Tess repetiu, mal conseguindo conter uma gargalhada:

— Programa de controle dos gansos? — Isso mesmo. A população de gansos-do-canadá... Charlie parou no meio da frase. Ela oferecia o sorri-

so mais extraordinário. — Não, continue, por favor. Estou fascinada. Fa-

le-me mais sobre a população de gansos-do-canadá. Tess mexeu no rabo-de-cavalo com uma das mãos,

ao mesmo tempo que inclinava a cabeça para o lado. Uma mistura efervescente de atração e embaraço aflorava em Charlie.

— Deixe-me começar de novo. Lamento muito pelo barulho. Às vezes ficamos tão entusiasmados que exage-ramos. — Ele sorriu. — Sou Charlie...

— St. Cloud. Eu me lembro. — E você é Tess Carroll, a que vai dar a volta ao

mundo. Charlie mostrou-se um pouco entusiasmado demais.

Lera a respeito de Tess no Reporter. Uma reportagem na primeira página descrevia sua viagem sozinha ao redor do mundo, com uma foto colorida na cabine de um Aerody-ne 38.

— Você tem um barco espetacular — acrescentou ele.

— Obrigada. — Tess afastou os cabelos dos olhos. — Você veleja? Não me lembro de tê-lo visto no mar.

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— Já velejei. Sabe como é... Optimists, 110s... Nada mais que isso. Lamento tê-la perturbado. Não vai aconte-cer de novo.

— Não se preocupe com isso. — Tess contraiu o rosto. — É que estou chata demais hoje, com uma dor de cabeça de matar.

Ela esfregou a testa, enquanto o sol se refletia em seus olhos.

Charlie vivia num mundo verde, cercado por todas as tonalidades imagináveis. Mas os olhos de Tess eram a perfeição. De um verde-claro como as folhas da tília nas bordas, ricos como o verde da esmeralda no centro. Fas-cinado, ele se viu dizendo o oposto do que pretendia:

— Acho melhor eu ir agora. — Qual é a pressa? Outro ataque àqueles pobres

gansos? Charlie riu. — Pensei que você quisesse um pouco de sossego.

Só isso. Charlie sentiu que aqueles olhos verdes avaliavam-no

de alto a baixo. Sentiu-se contrafeito pela lama nas botas e as manchas na calça.

— Meu pai foi enterrado aqui. No alto daquela coli-na. — Tess apontou. — A vista lá de cima é muito bonita.

Sem dizer mais nada, ela começou a andar, o ra-bo-de-cavalo balançando. Charlie não sabia se deveria acompanhá-la. Ela o convidara para dar uma olhada? Ou encerrara a conversa? Mas ele se viu a subir pela encosta. Quando chegou lá em cima, Tess já havia se sentado na grama, pernas esticadas. Olhava para a enseada, onde os barcos ancorados apontavam para nordeste. À distância, um pescador recolhia uma armadilha de lagosta.

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— Parece que Tim Bird teve um dia proveitoso hoje — comentou Tess. — A popa está bem baixa.

— Seu pai também pescava lagostas, não é? — murmurou Charlie, sentando perto.

Ela fitou-o. — Como sabe? Charlie não sabia se devia responder. Não queria pa-

recer estranho, mas se lembrava de todos os enterros em que trabalhara.

— Como sabe o que meu pai fazia? — insistiu Tess. — Eu estava de serviço no dia em que ele foi enter-

rado. — Ahn... — Tess esfregou a testa e empurrou os

cabelos para trás. — Eu estava tão atordoada que quase não me lembro de nada.

Mas Charlie se recordava de todo o funeral e do fato de o pai falecido não ter aparecido no cemitério. O que não chegava a ser surpreendente, porque muitas pessoas optavam por passar imediatamente para o nível seguinte.

Ele estudou o rosto de Tess. Ela era mais adorável e mais real que qualquer outra pessoa que conhecera em muito tempo. Ele começava a se sentir mais confiante.

— Pode parecer estranho, mas adorei aquele poema que você recitou.

— Ainda se lembra? — Era “mergulhar para os sonhos”, de e.e. cum-

mings. — O poema predileto de papai. — Fui ler depois. Charlie fez uma pausa, depois recitou alguns versos:

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confie em seu coração se o mar pegar fogo (e viva pelo amor mesmo que as estrelas andem para trás)

—... e viva pelo amor mesmo que as estrelas andem para trás — repetiu Tess.

— É lindo, mas nunca tive muita certeza do que sig-nifica — comentou Charlie.

— Eu também não. O rosto de Tess relaxou; os olhos faiscaram, os lá-

bios se contraíram. Ela inclinou a cabeça para trás e soltou uma risada, que ressoou pelo cemitério. Charlie tinha cer-teza de que era o melhor som que já ouvira em muitos e muitos anos.

— Diga-me, Charlie St. Cloud, o que um homem como você está fazendo num lugar como este?

ERA DE IMAGINAR que ela encontrasse um homem atraente na semana anterior à partida. Era o que sempre acontecia. Ou o momento se mostrava impróprio, ou os homens de quem ela gostava se revelavam um peso insu-portável.

Ela estava estendida na grama e começava a gostar de Charlie. O que era estranho. Vivera naquela pequena cidade durante toda a vida, mas até então nunca o notara realmente. Na escola, todos conheciam a história dos me-ninos St. Cloud. Eram os irmãos mais promissores do condado de Essex, até que o mais velho matara o mais moço na ponte levadiça General Edwards. Fora um aci-

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dente, uma terrível tragédia, e as pessoas comentavam que Charlie nunca conseguira superá-la.

Mas ali estava ele agora, e parecia muito bem. É ver-dade que trabalhava num cemitério, o que era um pouco estranho, mas era divertido, gentil e lindo, num estilo um tanto rude. Podia ter as mãos um pouco enlameadas, mas havia nele uma gentileza extrema, uma ternura profunda. E havia também a maneira como ele a fitava.

— Pare de me olhar desse jeito, Charlie, e responda à pergunta.

Ele piscou. — Que pergunta? — O que está fazendo aqui? Por que trabalha no

cemitério? — Por que não? É melhor do que um emprego num

escritório. Passo o dia todo ao ar livre, e é bom sempre ser o chefe.

Ele pegou uma haste de relva, ajeitou-a entre os de-dos, levou as mãos em concha aos lábios e soprou. Foi um apito estranho... e no instante seguinte as árvores pa-receram adquirir vida. Aquele homem era demais. Até os passarinhos cantavam para ele. Tess pegou um punhado de relva e levou-o ao rosto.

— Adoro este cheiro. — Eu também. — Era de esperar que engarrafassem e vendessem. — Só é preciso um pouco de hexanol, metanol, bu-

tano... — Muito bem. Você fala com os passarinhos. Co-

nhece as substâncias químicas da relva. Você é real? Charlie riu. — Claro que sou. Tão real quanto você.

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Tess examinou a covinha no rosto de Charlie. Os cabelos caindo sobre os olhos. Ele era mesmo real.

— O que me diz de todos esses mortos? Não é um pouco assustador trabalhar aqui todos os dias?

Ele riu de novo. — Nem um pouco. Os hospitais lidam com a morte.

As agências funerárias também. Mas aqui é diferente. Este lugar é como um parque. Quando as pessoas chegam aqui, estão em caixões e urnas.

Tess tirou o elástico do rabo-de-cavalo, deixando que os cabelos caíssem em torno dos ombros. A dor de cabeça ainda persistia, e estava meio grogue da falta de sono, mas queria saber mais.

— O que me diz de seu irmão? — Meu irmão? O que há com ele? Foi quase imperceptível, mas Tess sentiu que ele se

retraía. — Ele não está enterrado aqui? É por isso que tra-

balha no cemitério? — É meu emprego — disse ele, dando de ombros...

— Paga as contas, e é melhor do que vender seguros num escritório, se você me entende.

Tess fitava-o nos olhos. Compreendeu que aquela resposta era apenas camuflagem. Charlie levantou-se.

— Foi uma conversa muito agradável, mas tenho de voltar para o trabalho agora.

— Peço desculpas. Não era da minha conta. Eu e minha boca grande.

— Acredite em mim... não há nada de errado com sua boca. Talvez possamos conversar de novo em outra ocasião.

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Tess também se levantou e fitou Charlie. Subita-mente, a intrépida navegante não sabia que rumo seguir.

— Eu gostaria muito — murmurou ela, depois de um longo momento de silêncio.

— Boa sorte na viagem. — Obrigada. Espero vê-lo de novo quando voltar. — Quando voltar? — Como sabe, partirei dentro de poucos dias. Ela observava atentamente o rosto de Charlie, que

tinha a testa franzida... e a surpreendeu outra vez, ao per-guntar:

— Se não tiver planos, gostaria de jantar comigo ho-je à noite? Posso pôr um peixe no fogo.

— Você também cozinha? — Nada muito refinado. — Eu adoraria — disse ela, sorrindo. — Combinado. Moro ali, à beira da floresta. —

Charlie apontou para o chalé, aninhado entre as árvores. — Esperarei por você no portão da frente. Oito horas es-tá bom?

— Claro. Charlie acenou e desceu para o carrinho, deixando

Tess sozinha na colina. Há meses ela se isolara do mundo, concentrada nos preparativos para a regata. Era a última pessoa no condado de Essex que deveria ter um encontro romântico naquela noite.

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As manchas em púrpura e rosa no céu prenunciavam problemas. Há anos Charlie organizava sua vida em torno do encontro com Sam ao pôr do sol. Sabia que naquela noite o prazo seria até as 18h51, o exato momento do crepúsculo, quando o disco do sol baixava seis graus além do horizonte e o campo de beisebol ficava escuro. Isso lhe dava 21 minutos para correr em seu velho Rambler 1966, para comprar filés de peixe-espada na Lobster Company, em Little Harbor, e depois disparar até o outro lado da cidade, a fim de comprar os ingredientes para a salada e a sobremesa no Crosby’s. Seria um prazo apertado.

Ele pensou em Tess, parada lá em cima, no alto da colina, e não pôde acreditar em sua ousadia. Convidara-a mesmo para jantar, em sua casa, e os olhos verdes de Tess haviam se iluminado quando ela aceitara.

Charlie estacionou o Rambler numa vaga na rua Or-ne, olhou para o céu e verificou o relógio. Ainda tinha 17 minutos. Saltou do carro e constatou, pela luz baixa refle-tida na água, que o sol já baixara da linha das árvores. Desceu apressado pela rua e abriu a porta da Lobster Company. Depois de entrar, foi envolvido pelo cheiro de salmoura e peixe. Enormes tanques cheios de lagostas borbulhavam no meio da loja. O chão de concreto estava molhado da água que derramava pelas bordas.

Bowdy Cartwright estava no outro lado do balcão. Sempre fora o dono da Lobster Company. Tinha uma e-norme papada, com três queixos pelo menos. Divertira

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várias gerações de crianças com sua fantástica imitação de um baiacu.

— O que está procurando hoje? — perguntou ele. — Temos um bom hadoque para uma sopa com batatas e mariscos para um ensopado...

— Levarei dois filés de peixe-espada, com cerca de 200 g cada um — respondeu Charlie.

— É para já. Acaba de chegar de Grand Banks. Uma jovem veio dos fundos da loja. Margie Cart-

wright jogou os cabelos louros para o lado e exibiu um sorriso vermelho de batom. Ela foi direto para a caixa re-gistradora, inclinou-se sobre ela e virou o rosto na direção de Charlie.

— Vamos, Charlie. Dê um beijo em sua antiga garo-ta.

No passado, antes de Charlie estragar tudo, Margie era sua namorada. Ela era um ano mais velha, e haviam se encontrado num gelado Dia de Ação de Graças, no gran-de jogo contra Swampscott. Margie era uma animadora de torcida que insistia em usar saia curta e suéter justa em qualquer clima. O romance fora bastante inocente, com noites passadas em conversas na House of Pizza. Depois, ocorrera o acidente, e Charlie se retraíra. Margie tentara reconquistá-lo, mas ele a afastara.

Charlie inclinou-se para a frente e beijou-a. — Grande garoto... Ela bateu as pestanas compridas. Charlie sentiu o

cheiro do perfume Chloë. Sob muitos aspectos, Margie permanecia em seus anos de glória. Os cabelos louros es-tavam inalterados, e ela usava um suéter rosa bem justo, saia preta bem curta e botas de saltos bem altos.

— Vai cozinhar esta noite?

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— Nada demais. — Aqui está — disse Bowdy, entregando o saco de

papel a Charlie. — Dois filés de peixe-espada, Margie. Quase meio quilo.

— Peixe para duas pessoas? — Margie alteou uma sobrancelha bem desenhada. — Quem é ela, Charlie?

Charlie pôs uma nota de vinte dólares na caixa regis-tradora.

— Desculpe, Margie, mas tenho de correr. — Qual é o grande segredo? Você sabe que vou

descobrir de qualquer maneira. É melhor me contar logo de uma vez.

Charlie pensou por um instante. Ela tinha razão. Sua rede de espionagem descobriria tudo em poucos dias. Que mal havia em contar? Na verdade, talvez até ajudasse.

Charlie olhou para o relógio — faltavam 11 minutos — e decidiu cortar a ida ao Crosby’s, ficando sem a salada e a sobremesa. Ele inclinou-se para a frente, com um ar conspirador.

— Jura que não vai contar? — Com o sinal-da-cruz sobre meu coração católico. — Está bem. — Charlie baixou a voz. — O que sa-

be sobre Tess Carroll?

— Nana, pode me ouvir? Nana? Tess inclinou-se para a frente e fitou os suaves olhos

verdes da avó. A velha estava numa poltrona reclinável, perto da janela, em seu quarto em Devereaux House, um

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abrigo para idosos. Tess decidira passar por lá ao sair do cemitério, antes de ir para casa.

— Sou eu, Nana. Não vai acreditar, mas acabo de conhecer um homem maravilhoso!

A avó piscou e olhou pela janela. A mão enrugada procurou a caixa de suco de laranja com um canudo. Ela levou-o aos lábios e tomou um gole. Havia dias em que ela reconhecia Tess. Mas de vez em quando parecia que nem via a neta.

— O que está procurando lá fora? — A janela dava para um estacionamento, onde havia um passarinho pou-sado numa cerca. — Está olhando para aquele pardal? É isso o que você vê?

Nana sorriu, fechou os olhos e logo tornou a a-bri-los.

— Vim me despedir, Nana. Lembra? Vou partir na-quela grande regata ao redor do mundo. — Tess fez uma pausa. Olhou para o colar de contas da avó. Todos os di-as, Nana queria usar um chapéu colorido e jóias alegres. — Trarei jóias do Oriente para você. O que acha disso?

Os lábios de Nana se contraíram. Os olhos faisca-ram. Tess especulou o que ela estaria pensando. Teria ou-vido suas palavras?

— Sabe que estou aqui, não é? — murmurou Tess. — Sabe que estou bem aqui ao seu lado.

Houve silêncio no quarto, até que Nana disse, a voz firme:

— Claro que sei. Tess ficou atônita. Era a primeira vez em meses que

a avó reconhecia sua presença. — Você está bem, querida? — indagou Nana.

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Tess ainda não foi capaz de encontrar palavras para responder. Os olhos de Nana entraram em foco, e ela a-crescentou:

— Não se preocupe, querida. Tudo vai acabar bem, e a verei muito em breve.

Depois, ela fechou os olhos e sua cabeça começou a pender. Não demorou muito para que estivesse roncando baixinho. Tess levantou-se e deu um beijo no rosto da a-vó.

— Eu amo você, Nana. Até breve.

Charlie largou a corda e voou pelo ar. Assumiu a cha-mada posição de bala de canhão, com os braços compri-mindo os joelhos contra o peito, prendeu a respiração e mergulhou na água fria. Com algumas pernadas firmes, foi até o fundo coberto de musgo, segurou-se na pedra e-norme que havia ali e escutou o som das bolhas de ar e das batidas de seu coração

Conseguira chegar à floresta pouco antes do pôr do sol, com apenas uns poucos segundos de margem. Mas agora enfrentava sentimentos desconhecidos por estar ali. Quando os pulmões começaram a arder, ele largou a pe-dra e começou a subir. Aflorou à superfície com algum barulho. Assim que as ondulações diminuíram, ele ouviu a voz de Sam, na margem:

— Um minuto e 27 segundos! Charlie St. Cloud bate o recorde de Waterside!

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O irmão estava sem camisa, sentado num tronco, ao lado de Oscar. Charlie saiu da água. Pegou a toalha e ajei-tou-a em torno dos ombros. Passava um pouco do pôr do sol na Floresta de Sombras, e feixes de luz violeta passa-vam pelas árvores. O short jeans rasgado ia até os joelhos, onde, em faixas esbranquiçadas, se cruzavam as cicatrizes do acidente. Tess chegaria ao portão dentro de sessenta minutos.

— Há tempo para mais um mergulho — disse Char-lie. — Vamos lá, homenzinho.

Sam pulou, estendendo os braços compridos e finos para a corda. Também usava um short jeans cortado. Era tão magro que parecia todo formado por saliências e arti-culações.

— Dê-me um empurrão — pediu ele. Charlie atendeu-o, e Sam voou sobre a água. No

momento exato, quando subia pelo ar, largou a corda. Como uma folha ao vento, subiu mais e mais, desafiando a gravidade. Depois, deu um salto-mortal, com um giro de 540 graus.

E caiu na água. Desapareceu lá no fundo por mais tempo, e exibia

um enorme sorriso quando voltou à superfície. Saiu da água e pegou a toalha.

— Quer tentar o triplo mortal? — Não há a menor possibilidade. É muito difícil. — Acho bem fácil. — Fácil? Não se esqueça de que você tem certa van-

tagem em matéria de vôo. — Não banque o fracote. Garanto que é fácil. Eu lhe

mostrarei como se faz. — Não. Já cansei.

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Charlie vestiu o blusão pela cabeça. — O que há com você esta noite? — perguntou

Sam. — Quase não jogamos bola, e agora já quer ir em-bora.

— Não há nada. — Claro que há. Você está se comportando de uma

maneira estranha. — Não estou, não. — Está, sim. — Já chega, Sam. Charlie sentou-se no tronco. Calçou um tênis e co-

meçou a dar o laço no cordão. Detestava ser impaciente com o irmão, mas naquela noite estava cansado da rotina de sempre. Os olhos de Sam arregalaram-se.

— Ei, espere um instante! É uma garota, não é mesmo? Você conheceu alguém, e vai se encontrar com ela hoje à noite!

— Do que está falando? — Mentiroso! — Havia exultação nos olhos casta-

nhos de Sam. — Diga a verdade. Resistir é inútil. Como ela se chama?

Charlie calçou o outro sapato, enquanto fazia um cálculo rápido. Concluiu que chegaria mais depressa em casa se cedesse ao interrogatório.

— O nome dela é Tess Carroll. Uma fabricante de velas para barcos. O pai morreu há dois anos, de infarto.

Sam sentou-se no tronco ao seu lado. — Ela torce pelo Sox? — Ainda não sei. — Então qual é o problema? De que você tem me-

do? — Não tenho medo de nada.

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Outra mentira. Ele estava apavorado. Sam sorriu e vestiu a camiseta.

— Posso fazer um reconhecimento, se você quiser. Descobrir se ela tem um namorado.

— Margie Cartwright disse que ela não tem ninguém. — Então como posso ajudar? — Mantenha-se a distância. — Charlie tornou a o-

lhar para o relógio. — É melhor eu ir agora. Ele levantou-se e acrescentou: — Não quero nenhuma brincadeira esta noite. Fique

longe de Tess e não se aproxime do chalé esta noite. — Relaxe. Você está muito tenso. — Sam também

se levantou. Pegou a corda. — Dê-me um empurrão, ir-mão.

Mais uma vez, Charlie atendeu. Sam balançou sobre a água, de um lado para o outro, ganhando velocidade. Só largou a corda no momento perfeito, gritando:

— Até mais tarde! Charlie piscou, Sam desapareceu, e só restaram na

Floresta de Sombras a luz evanescente e o sussurro do vento.

Tink já tomara uma boa parte do pote de sorvete de Chunky Monkey do Ben & Jerry’s e estava no meio de um sanduíche de três camadas — salame, queijo suíço e salada de repolho. Uma garrafa do refrigerante diet Dr. Pepper, sua única concessão ao controle de peso, estava em cima

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do banco, com o que restava do lanche de um glutão, no Crocker Park. O cão de Tess, Bobo, estava deitado na grama, mastigando um saco de pretzels.

Tink fora esperar ali, no penhasco por cima da en-seada, enquanto o dia se transformava em noite. Uma ho-ra antes ele passara por Lookout Court para dar uma o-lhada no apartamento de Tess, durante sua ausência, e ve-rificar se estava tudo bem. Entrara pela porta da frente, sempre destrancada, e encontrara a confusão usual do ritmo de vida frenético de Tess. Tênis espalhados na sala, louça suja empilhada na pia da cozinha e Bobo ganindo para sair.

Por isso ele levara o golden retriever para o parque, como fazia com freqüência. Agora, a noite de sábado já o envolvia. Mais uma vez, ele não tinha muito para fazer. Em alguns fins de semana ainda conseguia arrancar uma refeição de Tess, aparecendo sem avisar e alegando que tinha fome. Se estava em casa, Tess sempre o recebia. Acabavam cozinhando juntos, alugavam um filme e se acomodavam no sofá para assistir. Tess conseguia quei-mar tudo o que fazia na cozinha, mas Tink não se impor-tava. Gostava da companhia de Tess.

Por um lado, ela era como sua irmã caçula. Era o ti-po de garota que precisava de um irmão mais velho para mantê-la no rumo certo. Tess era mais inteligente que qualquer outra pessoa que ele já conhecera e tão forte quanto qualquer marujo. Mas também precisava de uma âncora desde que o pai morrera, e Tink empenhava-se ao máximo para preencher essa função.

Desde o momento em que haviam se conhecido Tink sentia uma paixão absurda por ela. Na ocasião, ele era uma pequena celebridade, pois anunciava a previsão

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do tempo na TV Concordara em participar de uma feira para obras de caridade, sentando-se no estande em que caía dentro da água se alguém acertava a bola no alvo. Uma mulher deslumbrante, de cabelos escuros e compri-dos, acertara três bolas consecutivas no alvo, mergulhan-do-o no tanque de água turva. Depois de se enxugar, Tink decidira conhecer a mulher de braço mortífero.

Isso acontecera há quatro anos, antes de Tink ser despedido por chamar a apresentadora do jornal das 11 horas de “saco de ossos”. Tess escrevera para a emissora em sua defesa; haviam se tornado grandes amigos, e Tink fora trabalhar para ela, na oficina de velas. Em relação aos homens, no entanto, Tess era um mistério. Não havia como segurá-la. Ela era um espírito livre, e Tink vivia com seu anseio.

Bobo olhava ansioso para seu sanduíche de três ca-madas. Tink tirou um pedaço de salame e jogou para o cachorro.

— O que aquela garota vai fazer? Tem um encontro quente esta noite? — Bobo latiu, e Tink acrescentou: — Já imaginava.

Tink detestava pensar que sua vida seria assim por muitos meses, enquanto Tess navegava ao redor do mundo.

— Vamos embora, menino. Ele levantou a coleira para Bobo. Jogou o resto do

lanche na lata de lixo e desceu pela rua Darling.

CHARLIE EMPENHARA-SE AO máximo no jantar, e Tess estava adorando cada momento. O filé de pei-xe-espada grelhado, com tomates e alcaparras, estava su-

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blime, assim como a salada de beterraba e laranja. Não restava espaço para a sobremesa, mas ela daria um jeito.

Sentavam-se a uma mesinha redonda, na beira da sala de estar. As luzes eram baixas, o fogo crepitava na lareira e duas velas emolduravam o rosto de Charlie. Ele contava uma história a respeito de seu sobrenome, que vinha de St. Cloud, Minnesota, a cidade à margem do rio Mississipi em que sua mãe nascera. O St. Cloud original, ele expli-cou, fora um príncipe francês do século VI que renunciara ao mundo para servir a Deus depois que seus irmãos fo-ram assassinados por um tio cruel. Tess admirava a boca em movimento e ouvia a voz bela e profunda. Depois, sem nenhuma interrupção, ele falou sobre uma coisa chamada nefologia, o estudo científico das nuvens.

Charlie era mais gentil e mais sofisticado que os ho-mens com quem fora criada, pensou Tess. Havia também um clima de espontaneidade na noite. Para começar, não havia um único livro de culinária à vista. Ele fazia tudo por sua própria iniciativa, dourava, flambava, e todas a-quelas outras atividades na cozinha que ela ignorava por completo.

— Adoro o nome do seu barco — comentou ele. — Querencia, não é?

— Isso mesmo. Fala espanhol? — Não, mas já li um livro sobre touradas. Não é o

ponto da arena em que o touro se sente protegido e segu-ro?

— Exatamente. Às vezes é um lugar no sol. Outras vezes fica na sombra. É o lugar em que o touro pára entre as investidas. É como uma fortaleza invisível, o único lu-gar seguro.

— Assim como seu barco.

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— Isso mesmo... e como Marblehead. Não demorou muito para que Tess se descobrisse a

desejar que Charlie soubesse de tudo a seu respeito. E queria que ele soubesse mais a respeito de seu pai, que por algum motivo sentia mais próximo do que nunca naquela noite.

Era verdade, Tess sentia uma ligação excepcional com Charlie, o que era ao mesmo tempo emocionante e assustador. A cada momento que passava, ela sabia que perdia um pouco mais de controle, o que não era nada bom. Tudo em Charlie era como uma gentil correnteza que a puxava mais e mais para o fundo.

— Quer sobremesa? — perguntou ele de repente. — Pareço uma mulher que diz não para a sobreme-

sa? — Já vai sair — disse ele, recolhendo os pratos. — E já sei que será uma delícia. — Tess recostou-se

na cadeira. — Tem certeza de que não precisa de ajuda em nada? Eu me sinto uma inútil.

— Pode ser útil trocando o CD. — Alguma preferência? — Não. É um teste. Numa estante, o aparelho de som tocava blues, algo

vagamente familiar, num solo de guitarra. Ao examinar a pilha de CDs, Tess sentiu uma pontada de apreensão. E se Charlie não gostasse do que ela escolhesse? Ela examinou alguns, até que encontrou o CD dos Jayhawks. Pôs “Hol-lywood Town Hall” para tocar. A banda de Minnesota era a escolha certa — não muito previsível, nem barulhenta, com algumas baladas mais agressivas.

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— Nada mau — disse Charlie, saindo da cozinha com um bolo de chocolate e uma vela acesa. — Você po-de ficar.

— O que estamos comemorando? — Seu aniversário. — Mas ainda não é fevereiro. — Setembro, fevereiro, qualquer mês serve. Pensei

que deveríamos comemorar antes, já que vai viajar. Ele estendeu o bolo para a frente, para que Tess pu-

desse soprar a vela. Nesse momento, Tess quase derreteu. Mas alguma coisa dentro dela disse-lhe que se mantivesse em guarda. Com todo o cuidado, ela fez uma avaliação. Ali estava Charlie, alto e bonito, a chama da vela tremelu-zindo em seus olhos. Observou-lhe a covinha na face. Em suas mãos enormes, o bolo parecia uma miniatura.

— Continue — disse Charlie. — O que está espe-rando? Faça um pedido.

Ele estaria zombando dela? Ninguém neste mundo podia ter tanta ternura. Tess respirou fundo, desejou que ele fosse mesmo tão perfeito quanto parecia. Já ia soprar a vela quando Charlie desatou a rir.

— Você caiu mesmo, não é? Tess não pôde deixar de rir também. — Tem toda razão. — Ela enfiou um dedo na co-

bertura. — Diga a verdade. Por que o bolo? — É o aniversário de Ted Williams marcando 406

pontos. — Fala sério? — Claro. — Charlie pôs o bolo na mesa. — Nesta

semana, em 1941, Ted jogou duas partidas e bateu o re-corde. Na ocasião, tinha apenas 23 anos.

— Essa não! Mais um torcedor do Red Sox!

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— Você não é? — Detesto beisebol. Acho muito chato. Os jogado-

res quase não fazem nada durante os nove turnos. Gosto mais do futebol americano, um jogo mais emocionante. E torço pelos Patriots.

— É mesmo? — indagou Charlie, um pouco incré-dulo. — Não pensei que pudesse torcer por gigantes sem pescoço.

— Torço e torço muito... e quanto mais cabeludos, melhor.

Com isso, Tess sentiu um súbito alívio. A bolha es-tourara. Não concordavam em tudo, o que proporcionava um estranho conforto.

Charlie entregou-lhe uma fatia de bolo. Ela pôs um pedaço na boca. Fechou os olhos, sem dizer nada.

— Está bom? — perguntou Charlie. — Fiquei sem tempo e preparei o bolo com o que tinha em casa.

— Dá para comer. Tess saboreou o bolo de chocolate. Estava brincan-

do com Charlie, o que achou ótimo. Mas acabou sorrindo e declarou:

— Na verdade, o bolo está delicioso, como tudo esta noite.

— Você gosta de cozinhar? — Não. Gosto de comer. — Ela falou devagar, sa-

boreando outro pedaço do bolo. — A pior parte de viajar sozinha é a comida. Rações desidratadas, horríveis.

— Vamos com calma. Só fiz um bolo. Tess sorriu. — Onde foi que aprendeu a cozinhar? Com sua

mãe?

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— Isso mesmo. Liguei para ela no Oregon e pedi algumas sugestões para esta noite.

— O que ela foi fazer no Oregon? — Mudou-se para lá logo depois do acidente. Não

queria lembranças. Construiu ali uma vida nova. Casou e tem enteados.

— Está querendo dizer que ela o deixou aqui? — Não. Eu me recusei a ir. Por isso morei com a

família Ingalls até me formar. Desde então, tenho vivido sozinho.

Tess levantou-se e foi até um canto escuro da sala, com mapas na parede. Acendeu uma luz. Os mapas mos-travam as estradas e as águas da Costa Leste. Ela notou que tinham estranhos círculos concêntricos. Irradiavam-se de Marblehead e alcançavam Nova York e o Canadá. Ao lado, havia tabelas indicando os horários do sol nascente e poente.

— O que isso representa? — perguntou ela a Charli-e, pondo um dedo num dos círculos. — Sei que tem al-guma coisa a ver com a distância, mas não consigo enten-der o que é.

— É apenas um projeto meu. — Charlie também se levantou e encaminhou-se para um enorme mapa antigo, emoldurado e coberto por um vidro. — Fale-me sobre sua viagem.

— O que você quer saber? — Para começar, qual será o percurso? — Começo na enseada de Boston, na sexta-feira.

Sigo para o sul, até o Caribe, e atravesso o canal do Pana-má.

— Mostre no mapa. Ele observou Tess se aproximar.

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— Você está mancando. — Caí algumas vezes em minha última viagem. — Foi quando sofreu essas equimoses? — Isso mesmo. Houve uma tempestade, e fui jogada

de um lado para o outro. Os dois ficaram parados ali, separados por alguns

centímetros, enquanto Tess indicava seu percurso pelo Pacífico. Ela podia sentir a respiração de Charlie em seu pescoço, enquanto apontava as escalas distantes, como as ilhas Marquesas, Tuamotu, Tonga e Fiji. Charlie roçou nela ao inclinar-se para ver melhor, enquanto Tess traçava o percurso pelo norte da Austrália, cruzando o oceano Ín-dico, até Durban, contornando o cabo da Boa Esperança, para entrar no Atlântico Sul, onde os ventos a levariam de volta para casa.

— É uma longa viagem — disse Charlie. — Acho que eu não teria coragem suficiente para realizá-la.

— Porque é mais sensato que eu. Os dois encontravam-se lado a lado, olhando para o

mundo que Tess circundaria. Tess virou-se e fitou-o nos olhos.

— Para onde você sonha ir, Chas? Ela ouviu-se chamando-o por um apelido carinhoso.

Saiu sem que pensasse, mas ela gostou do som. — Zanzibar, Tasmânia, Galápagos. Uma porção de

lugares... — Então por que não vai? Charlie enfiou as mãos nos bolsos e suspirou. — Tenho muitas responsabilidades aqui. — Só trabalho, sem nenhuma diversão? Ele não respondeu. Pela primeira vez naquela noite

havia uma impressão de constrangimento. Apesar do sor-

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riso e do brilho nos olhos, aquele homem escondia algu-ma coisa. Mas, em vez de querer fugir dos segredos de Charlie, ela desejava chegar mais perto.

— O que o impede? — acrescentou Tess. Ele desviou os olhos, para depois exibir o sorriso

que já devia tê-lo tirado de muitas situações críticas. — Vamos dar uma volta. — Pelo cemitério? No meio da noite? — Vamos embora — insistiu Charlie, pegando os

casacos. — Uma pessoa que vai navegar sozinha ao redor do mundo não pode ter medo de um cemitério. Quero lhe mostrar uma coisa.

ERA MEIA-NOITE em Waterside, e o nevoeiro pairava entre os monumentos. Enquanto atravessavam o grama-do, a lua mantinha-se invisível por trás das nuvens. Muros de escuridão os cercavam. Anjos de mármore e ninfas de granito surgiam do nada, a luz da lanterna na mão de Charlie varando a escuridão.

Era a chamada hora das bruxas, e Charlie fora do-minado por um encantamento. Tudo em Tess o deixava atordoado, da melhor forma possível. Desde o momento em que ela surgira na estrada de West Shore, Charlie ten-tava guardar na memória cada detalhe da noite. Os cabelos de Tess esvoaçavam ao vento. Quando Charlie estendera a mão, ela ignorara o gesto e o cumprimentara com um beijo no rosto.

— O jantar está pronto? — indagara ela. — Estou morrendo de fome.

Comera duas porções de tudo e fora generosa com seus elogios. Charlie adorara a maneira como ela parecia

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devorar a vida, saboreando cada porção. Ele contara his-tórias reais, não aquelas que eram sempre repetidas em encontros assim. Tess traçara a imagem do verdadeiro Charlie, o que tinha sonhos de se livrar de tudo aquilo que o reprimia.

Ele até quisera falar sobre os mapas na parede, as tabelas do pôr do sol e como aqueles círculos concêntri-cos regiam sua vida. Os círculos mostravam o âmbito de seu mundo, demarcavam exatamente até que ponto ele podia se afastar de Waterside e ainda voltar para o encon-tro com Sam. Uma viagem a Cape Cod. Uma viagem a New Hampshire. O círculo externo era o máximo abso-luto a que ele podia ir. Além daquela linha, não havia a menor possibilidade de voltar a tempo. A promessa seria quebrada e o irmão desapareceria.

Podia ser perigoso partilhar tudo isso com Tess, mas agora, com a noite se aprofundando, ele sentia-se prepa-rado para revelar um pouco mais.

— Para onde estamos indo? — perguntou ela, en-quanto subiam a colina.

— Confie em mim. É um lugar especial. Continuaram a andar. A lua finalmente rompeu as

nuvens, iluminando as lápides, em todas as direções. — Costumávamos vir para o cemitério às escondidas

quando éramos crianças — comentou Tess. — Tive um encontro com meu primeiro namorado por trás daquele obelisco.

— Quem foi o cara de sorte? — Tad Baylor. Acho que ele era da sua turma. — O mosca humana? — Tad fora surpreendido

quando roubava as provas finais da secretaria, depois de

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escalar o prédio da administração e entrar por uma janela. — Você tem um excelente gosto.

— Eu tinha 14 anos... e ele beijava bem. Continuaram a atravessar os gramados. Uma coruja

piou no alto de uma árvore. O ar estava frio, e Charlie a-botoou o casaco.

— Há quanto tempo trabalha aqui? — perguntou Tess, ao passarem pelas sepulturas da Guerra da Inde-pendência.

— Treze anos. Barnaby Sweetland deu-me o pri-meiro emprego aqui, quando ainda estava na escola se-cundária. Foi o zelador durante trinta anos. Lembra-se dele? Tinha uma voz que parecia a de um anjo. Dirigia o coro da igreja Old North. Todos os dias, enquanto traba-lhávamos, plantando, cortando, varrendo, podíamos ou-vi-lo cantando para o céu.

Alcançaram a crista de uma colina, onde dois sal-gueiros pairavam sobre uma pequena construção de pedra quadrada, com a enseada lá embaixo. Havia duas colunas guardando a entrada, com um par de bastões cruzados de beisebol. Tess seguiu direto para os degraus da frente. Charlie apontou a lanterna para o nome St. Cloud, escul-pido no lintel.

— Seu irmão — murmurou Tess. — Isso mesmo, Sam. Charlie correu o feixe da lanterna pelos contornos da

estrutura. Tess tocou na pedra lisa. — É tudo mármore? — Importado de Carrara. Não pouparam despesas.

O motorista do caminhão que nos atingiu estava bêbado. Sua empresa pagou por tudo isso. Era uma questão de re-lações públicas. — Charlie desceu a luz da lanterna por

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uma das colunas. — O motorista foi condenado a cinco anos, mas saiu depois de três, por bom comportamento.

— Sinto muito. — Não precisa. — Charlie sacudiu a cabeça. — A

culpa foi minha. Nunca deveria ter levado Sam para Fen-way. Nunca deveríamos estar na ponte, em primeiro lugar. E, se eu estivesse prestando mais atenção, poderia evitar o acidente, desviando-me do caminhão.

E assim, sem notar, Charlie rompeu uma de suas re-gras cardeais. Falou sobre Sam. Com todas as outras pes-soas do mundo, ele sempre se esquivara do assunto. Sen-tou-se nos degraus do mausoléu:

— Você tinha razão no que disse hoje à tarde. É por causa de Sam que trabalho aqui. Prometi que sempre cui-daria dele.

— E acha que ele está por aqui? Charlie fitou-a. — Como posso ter certeza de qualquer coisa? — Se ao menos eu pudesse ter a mesma certeza com

relação a meu pai... — Ela sentou-se ao lado de Charlie, que sentiu o cheiro de seu xampu, o calor de seu corpo. — Eu gostaria de saber que papai está perto de mim.

— O que a faz pensar que ele não está? — Não acha que haveria algum sinal? — Creio que os sinais estão ao redor, se você souber

onde procurar. Charlie fez um movimento distraído com a lanterna.

Ao varrer a escuridão, deparou com a cena mais inespera-da: Sam pendurado de cabeça para baixo de um galho de pinheiro, fazendo uma careta engraçada. Ele se apressou a desligar a lanterna e levantou-se de um pulo.

— Qual é o problema? — perguntou Tess.

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— Não há nenhum. Apenas senti um calafrio. Charlie tornou a acender a lanterna e apontou para o

galho. Sam havia desaparecido. — Estava me falando de Sam — lembrou Tess. Ele fitou os olhos cor-de-esmeralda. Será que ela

queria mesmo ouvir a resposta? Charlie já ia falar, mas percebeu um movimento com a visão periférica. Por cima do ombro de Tess, à claridade da lua que começava a a-parecer, divisou Sam correndo pelo gramado, acompa-nhado por Oscar.

— Do que mais sente saudade em seu irmão? — De dar um soco em seu nariz quando ele era pir-

ralho — respondeu Charlie, alteando a voz, na esperança de que Sam ouvisse. — Ele gostava de espionar as pesso-as, mesmo quando sabia que era inconveniente.

Ele tornou a olhar por cima do ombro de Tess e viu que Sam havia desaparecido.

— Acima de tudo, sinto saudade daquele sentimento que se experimenta quando se vai dormir à noite e quando se acorda de manhã... o sentimento de que está tudo bem no mundo e nada falta em sua vida. Às vezes, quando a-cordo, sinto isso por um instante, mas logo me lembro do que aconteceu.

— Acha que nunca vai desaparecer? — Duvido muito. — Charlie abriu-se ainda mais. —

Há dias que são melhores do que outros, em que sinto que tudo acabou, que posso ser igual às demais pessoas. E, de repente, sem nenhum aviso, tudo volta e predomina em minha mente. E não tenho a menor vontade de ficar com as pessoas. Prefiro permanecer aqui, por trás dos portões, ouvindo música e lendo. Mas nunca sei quando vai me a-

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tingir. É como o tempo: céu azul num dia, trovoadas e chuvas no dia seguinte.

— O mesmo acontece comigo — murmurou Tess, quase num sussurro. — Mas é estranho. Esta noite foi a primeira vez em dois anos em que a saudade de papai não doeu tanto.

Ela sorriu nesse momento e fez uma coisa incrível. Inclinou-se e apertou a mão de Charlie.

Um galho de pinheiro estalou por trás de Tess. Ela virou-se, surpresa com o barulho. Um punhado de agulhas de pinheiro bateu em seu ombro. Tess tornou a se virar para Charlie, com uma sobrancelha erguida.

— Viu alguma coisa? O que foi isso? — Você não acreditaria se eu contasse — disse ele,

rindo. — Experimente. — Talvez tenha sido seu pai. Tess soltou uma risada zombeteira. — Se papai estivesse aqui, não seria furtivo, fazendo

galhos de árvores estalarem. Trataria de me avisar logo. — Ela levantou-se. — Diga a verdade: você acredita mesmo nessas coisas?

— Tenho visto muitas coisas que desafiam qualquer explicação.

Tess riu de novo. — Como agulhas de pinheiro caindo de um galho? — Não. Como me encontrar com você. Como o

jantar desta noite. Ela fitou-o em silêncio por um longo momento. Os

olhos transbordavam de sentimento. Depois, abrupta-mente, ela mudou de assunto:

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— Charlie, acha que seu irmão e meu pai estão em algum lugar por aqui?

— É possível. — Charlie procurou por Sam na escu-ridão e viu o irmão levantar-se por trás de uma lápide. — Mas não creio que os espíritos permaneçam aqui por muito tempo, a menos que queiram. Aposto que seu pai foi para um lugar melhor.

— Está se referindo ao céu? — Isso mesmo. Ou algum outro lugar. Onde quer

que seja, a morte não é o fim. Na verdade, é uma elevação. Como estar na Lua.

— Não estou entendendo. — É difícil explicar. Li em algum lugar que 75 bi-

lhões de seres humanos viveram e morreram desde o ini-cio da História. Creio que suas almas estão em algum lu-gar. — Charlie olhou para o céu. — Isso me faz pensar naquela canção de John Lennon: “We ali shine on in the moon and the stars and the sun” (“Todos nós brilhamos na lua, nas estrelas e no sol”).

Tess olhou para uma abertura entre as nuvens. A Via Láctea estendia-se por uma vasta faixa.

— Gosto disso, Charlie. Preciso saber que papai está em algum lugar. Pode me entender? Preciso saber que ele está bem.

— E está. Acredite em mim. É difícil explicar, mas tenho certeza.

— É o que você sente? Charlie sorriu. — Exatamente. É o que eu sinto. Tess virou-se para ele. — Fico contente por você ter me trazido para cá

hoje. Foi muito importante.

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— Para mim também. Os dois estavam tão próximos agora que Charlie

pensou que podia sentir um campo elétrico. Permanece-ram assim, fitando um ao outro, pelo que pareceu uma e-ternidade, até que Tess baixou os olhos para seu relógio e disse:

— É melhor eu ir agora. Por um momento, Charlie sentiu-se derrotado. Mas

depois decidiu ser ousado. Sem dizer nada, pôs as mãos na cintura de Tess e puxou-a. Para sua surpresa, ela veio sem nenhuma resistência. Charlie beijou-a suavemente e mer-gulhou na sensação mais arrebatadora. O calor invadiu seu corpo, causando a sensação mais inebriante que já conhe-cera.

— Tad Baylor, você não está com nada... — mur-murou Tess, quando se separaram.

Depois, ela pegou a lanterna e encaminhou-se para o enorme portão de ferro.

AS RUAS ESTAVAM quase desertas quando Tess passou apressada por Five Corners e pelo Rip Tide Lounge, uma espelunca em que trabalhara como garçonete. Subiu pelas ruas Washington e Middle, passou por Abbot Hall, onde o relógio na torre bateu uma hora, depois entrou em Loo-kout Court. Subiu num único pulo os três degraus de sua casa verde, construída nos tempos coloniais, e abriu a porta da frente.

— Ei, Bobo! Onde você está, menino? Ela esquecera de deixar uma luz acesa e ficou sur-

presa ao descobrir que o cachorro não esperava na porta por sua volta.

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— Bobo? Ela acendeu a luz na sala de estar e viu o retriever no

sofá. Estava deitado, com a cabeça numa almofada, e o-lhava para ela, mas não se mexeu.

— O que foi? Não sente mais amor por sua garota? Aposto que está morrendo de fome.

Ela entrou na cozinha e encontrou um bilhete de Tink ao lado da torradeira:

Oi, Menina: Saí com Bobo e comi suas sobras. Senti-me tentado a experi-mentar suas roupas, mas não são do meu tamanho. Uma pe-na. Vejo você amanhã, no jantar de sua mãe.

Ela riu. Era muito tarde para telefonar. Pegou a ra-

ção de cachorro, despejou na tigela de Bobo e pôs no chão.

— Venha, menino. Hora de comer. — Tess voltou à sala. — Qual é o problema?

O cachorro sacudiu a cabeça. Soltou um grunhido sonolento e meteu o focinho entre as patas.

— Está bem. Farei uma corrida grande amanhã, até o farol. E quando voltar você terá ovos mexidos e bacon para o café-da-manhã. O que me diz?

Ela ouviu Bobo soltar um bufido. Viu a luz piscando na secretária eletrônica. Uma mensagem. Foi apertar o botão para ouvi-la. Era da mãe:

— Tessie, sou eu. Apenas um lembrete: jantar ama-nhã, às 18 horas. Se se levantar cedo e quiser se encontrar com as velhinhas, apareça na igreja de manhã. Seria ótimo se todo mundo pudesse vê-la antes da partida. — Uma pausa. — Eu amo você.

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Ela subiu a escada para o segundo andar. Chamou Bobo.

— Vamos, menino. Está na hora de deitar. Ligou a televisão no Canal do Tempo. Um repórter

terminava um relato sobre os danos causados pela tem-pestade, que avariara alguns barcos de pesca que voltavam para Gloucester, afundara um rebocador em algum lugar nas proximidades de Providence e seguia agora para De-laware e Maryland.

— E que quase me matou — murmurou ela, balan-çando a cabeça.

Ela tirou a camisa e a calça jeans. Vestiu o velho blusão de futebol americano e grossas meias de lã. Subiu na cama de quatro colunas, encostou a cabeça nos traves-seiros e compreendeu que não conseguiria dormir. Senti-a-se tensa e acesa, como se fosse capaz de voar. Por causa de Charlie St. Cloud e daquele beijo incrível.

Então por que ela fugira? Era uma reação nascida da experiência e do desapontamento. Não podia se lembrar quando, mas em algum momento, ao longo do caminho, fechara essas torneiras emocionais, agora enferrujadas pela falta de uso. Era melhor assim. Calculara que haveria al-guém, num mundo com seis bilhões e trezentos milhões de habitantes, que a amaria intensamente e para sempre. Até planejara sair em seu barco para descobri-lo. Era uma idéia romântica, mas no fundo ela sabia a verdade. Passa-ria quatro meses sozinha no mar, sem jamais atracar por tempo suficiente para se afeiçoar a alguém.

Ela levantou-se, vestiu o roupão vermelho e foi para o patamar. Subiu a escada íngreme que levava ao terraço, no alto da casa. Era pequeno e envidraçado, e dava para a enseada lá embaixo, com as luzes cintilantes de Boston a

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sudoeste. Durante centenas de anos, as mulheres haviam subido aquela escada para observar seus homens voltarem do mar.

Tess acendeu uma vela no peitoril, sentou-se num banco estofado comprido e puxou um cobertor para se agasalhar. Pela primeira vez, notou uma luz na mancha escura da floresta. Só podia ser o chalé de Charlie. Era um lugar estranho e mágico, cercado por tristes lembranças da perda que ele sofrera, mas, ao mesmo tempo, acolhedor e seguro.

Ela lutou contra o sentimento enquanto pôde, mas depois se lembrou das mãos de Charlie em sua cintura, puxando-a, da exultação de se comprimir contra seu cor-po. Queria beijá-lo de novo. Ainda faltavam horas para a primeira claridade do amanhecer, e ela mal podia esperar. Amanhã seria um dia inesquecível.

Charlie sentou-se no cais da enseada de Waterside, en-costado numa das velhas estacas de madeira, enquanto tomava seu café. Ainda se sentia sonolento por ter ficado acordado até tarde, reconstituindo todos os detalhes da noite e torcendo para que Tess estivesse fazendo a mesma coisa.

Agora, enquanto o vapor do café se elevava na ca-neca para se desvanecer no ar cinza-azulado da manhã, ele ouviu os estrondos dos canhões dos clubes de iatismo pe-la praia no outro lado, sinalizando a chegada do sol.

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Como não havia nenhuma atividade oficial no cemi-tério aos domingos, Charlie podia relaxar. Os portões e-ram abertos para a comunidade às 8 horas da manhã, mas não havia enterros. Joe apareceria em breve no Horny Toad e atravessariam a enseada para tomar o café-da-manhã no Driftwood. Depois, ficariam conversando com os ratos do cais, deixando o tempo passar, até a hora do jogo de fu-tebol americano.

— Olha a cabeça! — gritou uma voz. Charlie virou-se a tempo de ver uma bola de tênis

voando em sua direção, perseguida por Oscar. — Bom dia, irmão. Sam saiu da neblina para o cais. Usava um blusão

cinza, com o capuz na cabeça. Os cachos desgrenhados caíam-lhe sobre os olhos. Embora jogar bola ao pôr do sol fosse a chave para renovar a promessa mútua, às vezes Sam aparecia ao amanhecer, antes de partir para suas a-venturas.

— Bom dia — murmurou Charlie. — E então? Sam sentou-se ao lado do irmão. — Então o quê? — Não banque o idiota! Como foi o namoro ontem

à noite? Oscar pegara a bola e voltava, sacudindo o rabo,

pronto para continuar a brincadeira. — Não é da sua conta. — Charlie jogou a bola para

a praia rochosa. — Se você já não estivesse morto, eu lhe daria uma surra por espionar.

— Dá um tempo. Segui as regras. Mantive-me a dis-tância.

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— Mas exagerou. Ultrapassou a linha, e conhece o código.

Como as pessoas começaram a especular que Charlie estava perdendo o juízo, ao falar com o fantasma do ir-mão, Sam concordara em não mais interferir quando hou-vesse mais alguém presente.

— Gosto dela — disse Sam. — É uma boa garota, embora torça para os Patriots.

Charlie não disse nada. — Olhe só para você... bancando o maioral. O que

aconteceu? — Nada. — Por que ela foi embora tão depressa ontem à noi-

te? Você beijou-a, e depois ela se mandou. Mordeu a lín-gua da garota?

— Creio que já era muito tarde. E era o nosso pri-meiro encontro.

— Acha que ela ficou assustada com o cemitério? — Não. Tess não se assusta facilmente. — Talvez aquela história de nuvens a tenha aborre-

cido. — Engraçadinho... Sam apertou um dos pregos numa estaca. Oscar

voltou com a bola e aninhou-se para descansar um pouco, o rabo batendo nas tábuas do cais.

— Qual é a sensação de um beijo? — Sam deitou-se no cais, ao lado do beagle. — Um beijo com direito a tudo.

— Com direito a tudo? Charlie sorriu para o irmão caçula. Embora muitos

anos já tivessem transcorrido desde o acidente, Sam per-manecia com 12 anos, para sempre fazendo perguntas i-nocentes sobre as coisas da vida que jamais conheceria.

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Poderia passar para o nível seguinte, abrindo-se para toda a sabedoria e compreensão do Universo, mas optava por ficar.

— Não há nada parecido, e há um milhão de tipos diferentes — respondeu Charlie. — Alguns beijos são emocionantes, sensuais e...

— Escorregadios? — Não posso contar. — Vamos, irmão. Quero saber. Charlie tinha de pensar. Um beijo? Como se explica

um beijo? — Lembra daquele jogo da Pequena Liga em que

você jogava como os Giants? — Claro que lembro. — Conte a história. Sam sorriu. — Estávamos perdendo de quatro a um no último

turno. Cheguei à posição de rebatedor com todas as bases ocupadas. Gizzy Graves era o lançador. Errei as duas primeiras bolas por um quilômetro, mas mandei a seguinte por cima da cerca da esquerda, para percorrer todas as bases e marcar um home run.

— E o que você sentiu? — Que era a melhor coisa do mundo. — Um beijo é assim, sem o bastão. Sam soltou uma risada. — E sem Gizzy Graves. — Exatamente. Charlie olhou para o irmão e sentiu uma profunda

mágoa. Sam compreendia o conceito do beijo perfeito, mas experimentá-lo era muito diferente. Charlie sentiu-se

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de repente acabrunhado por todas as coisas espantosas que o irmão perderia. Sam fora privado de muita coisa.

Subitamente, uma buzina soou na água. Joe guiava seu barco para a enseada.

— Um grande dia para você! Charlie acenou, e depois murmurou para o irmão: — Tenho de ir agora. — Voltaremos a nos encontrar ao pôr do sol — dis-

se Sam, pegando Oscar no colo. Charlie saltou para o barco e Joe partiu, seguindo

para o cais no outro lado. — Olhe só para você! — exclamou Joe. — Está to-

do feliz hoje! — Do que está falando? — Seus passos estão saltitantes. E o sorriso não sai

de seu rosto. Diga a verdade. Com quem transou ontem à noite?

— Sem comentários. — Seu safado! Quem é ela? Joe deu uma guinada brusca, evitando por um triz

um catamarã atracado. Charlie inclinou-se para o vento e balançou a cabeça. Levantou o zíper do blusão. Tess era seu segredo, e pretendia mantê-lo enquanto pudesse. A última coisa de que precisava era Joe se intrometendo.

— Lindo dia, hein? — Lindo dia, péssimo dia. A verdade vai aflorar. Joe desligou o motor e deixou que o barco deslizasse

até o cais, que já estava apinhado com outras embarca-ções; ele atracou com a maior habilidade numa vaga. Charlie saltou, prendeu o cabo de atracação e encami-nhou-se para uma pequena estrutura flutuante de madeira,

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com a tinta vermelha descascando. Joe alcançou-o, e os dois atravessaram a porta de tela.

Redes de pescaria e arpões pendiam do teto. Um tu-barão laqueado fazia uma careta para uma barracuda numa parede por cima da porta da cozinha. Quase todas as me-sas já estavam ocupadas.

Hoddy Snow, o mestre do porto, e seus dois ajudan-tes estavam agrupados num canto, ao lado da vitrola au-tomática. Tink e alguns pescadores sentavam-se à sua me-sa habitual, na frente. Hoddy levantou-se.

— Podem me dar sua atenção, por favor? — O tom de voz era urgente. Era um homem corpulento, os cabelos lustrosos penteados para trás, impecáveis, ao estilo polici-al. — Quero a atenção de todos, por favor.

Houve silêncio na sala. — Desculpem interromper o café-da-manhã de vo-

cês, mas temos uma situação grave e precisamos da ajuda de todos. Acabamos de receber uma chamada da Guarda Costeira, em Gloucester. Querem ajuda para uma busca. Um pescador encontrou uma bóia salva-vida e um leme à deriva perto de Halibut Point. Eles acham que é de Mar-blehead.

— Que barco? — perguntou Charlie. Os olhos de Hoddy contraíram-se. A voz tornou-se

embargada por um momento, não deixando nenhuma dú-vida quanto à gravidade da situação.

— É o Querencia. O barco de Tess Carroll está desa-parecido.

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Bobo disparou pela Devereaux Beach como um cachor-ro possuído.

Tess parou na areia fria e chamou-o, mas Bobo ig-norou-a e continuou a correr, espalhando água para todos os lados. O cão estava velho, surdo e artrítico, mas ainda corriam juntos todas as manhãs de domingo. Quase sem-pre ele permanecia na correia, correndo atrás dela. Mas não era o que acontecia hoje.

Tess sentia o vento soprar do mar, enquanto obser-vava Bobo se aproximar de um pescador sentado numa cadeira de lona. A distância era de 150 metros, mas ela percebeu que era Dubby Bartlett, com seus caniços enfi-ados na areia, as linhas se movimentando com as ondas. Ele sempre pescava ali nas manhãs de domingo.

— Dubby! — gritou ela. — Segure Bobo! Preciso alcançá-lo para prender a correia!

Ele afagou o cachorro e correu os olhos pela praia, como se esperasse a aproximação de Tess.

— Dubby! — gritou ela de novo. — Aqui! Uma rajada de vento mais forte levantou areia em

todas as direções. A voz de Tess deve ter sido abafada. Bobo pulou em cima do pescador, lambeu-lhe o rosto, la-tiu e voltou a correr. Por um momento, Dubby observou o cachorro se afastar, antes de se concentrar outra vez em suas carretilhas.

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Tess recomeçou a correr, gritando para que o retriever parasse. Já se sentia irritada. O que dera em Bobo? Parecia um filhote de novo, totalmente incontrolável.

— Bobo! Volte aqui! Mas o cachorro embrenhou-se pela trilha que levava

à margem rochosa da enseada de Waterside. Subiu cor-rendo a encosta e passou pelo portão dos fundos do ce-mitério.

Tess perdeu-o de vista, mas sabia que o cachorro seguia para o alto da colina, com suas sepulturas. Ela foi atrás, e logo avançava entre as fileiras de lápides. Quando alcançou a sepultura do pai, encontrou Bobo sentado ali, como esperava.

— Você é um cachorro malvado! O que deu em vo-cê?

Bobo virou-se e coçou as costas na grama. — Não pense que vai me encantar com esse seu jei-

to. Estou muito zangada. Foi um absurdo o que você fez. Ela sentou-se ao lado de Bobo, ignorando seus ga-

nidos. Olhou para a enseada e ficou espantada com o es-tranho brilho do dia. O azul do mar parecia mais intenso que nunca, e as velas dos barcos faiscavam como estrelas ao sol. O ponto de atracação do Querencia, estava oculto por uma linda escuna de 13 metros, que devia ter vindo buscar equipamentos na Doyle Sails. Tess aspirou o cheiro inconfundível de isca de arenque das armadilhas de lagosta empilhadas no cais. Foi nesse instante que ouviu risos e gritos por trás. Virou-se para ver um beagle sair correndo da mata, perseguido por um garoto magricela, de calça je-ans e blusão cinza.

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— Vou pegá-lo! — gritou o menino, com um boné do Red Sox torto na cabeça, por cima dos cabelos cache-ados escuros.

Tess levantou-se e gritou: — Ei! Precisa de ajuda? O menino viu-a e parou de correr. Uma expressão de

perplexidade estampou-se no rosto sardento. Ele aproxi-mou-se, devagar. O beagle latiu para Bobo e o menino perguntou:

— Seu cachorro morde? — Não. Ele já está velho. Perdeu quase todos os

dentes. O garoto largou a luva, abaixou-se e coçou a barriga

do retriever. Depois fitou Tess, curioso. — Bobo gosta disso — comentou Tess. Mas o garoto não disse nada. Apenas continuou a fi-

tá-la. — O que foi? — Nada. — Nada? Ninguém olha para alguém do jeito como

você está me olhando e não é nada. — Pode me ver? — Claro que posso. — Mas isso é impossível. Tess presumiu que era alguma brincadeira. — Você é invisível ou alguma coisa assim? — Isso mesmo. — Que maravilha! Qual é o seu segredo? Sam não respondeu. O menino e o beagle apenas o-

lhavam para ela. O que começava a deixá-la um pouco nervosa. Depois de um longo momento, Sam finalmente perguntou:

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— Qual é a sua história? Quando chegou aqui? — Há poucos minutos. Meu pai está enterrado aqui.

Assim como meus avós e bisavós. — Faz sentido. — Sam pegou a luva e a bola de bei-

sebol. — Está se sentindo bem? — Claro que estou. Você joga por Marblehead? — Obviamente, não jogo mais. — Houve um mo-

mento de silêncio constrangido. — Você é Tess, não é mesmo?

— Como sabe? — Ouvi Charlie falar de você. Oscar latiu ao ouvir o nome. — Charlie? — Ele me mataria por dizer qualquer coisa. Jure que

não vai contar. — Um juramento solene. Tess sorriu. — Acho que ele gosta de você — comentou Sam. Ela sentiu uma pontada de embaraço. — Também gosto dele. Sabe onde posso encontrá-lo

neste momento? Ele está em casa? — Charlie sabia que você vinha? — Não. — O que mais não disse a ele? — Não estou entendendo. — O garoto começava a

deixá-la nervosa. — Pode dar um recado para Charlie? — Claro. — Avise a ele que estive aqui. — Está bem. O garoto jogou a bola para longe e o beagle saiu cor-

rendo atrás. — Ei, Tess, você joga bola?

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— Claro. — Joga bola como uma garota? — De jeito nenhum. — Então volte à noite. Charlie está sempre aqui, ao

pôr do sol. Pode ver a floresta ali? Aquele espruce azul? — Já vi. — Siga a trilha no outro lado do velho tronco. Vai

nos encontrar na clareira. E poderemos jogar bola. — Parece divertido. Até mais tarde. Tess deu alguns passos, descendo a colina. Gostava

da perspectiva de jogar bola com Charlie e o menino. Vi-rou-se de repente.

— Ei, qual é o seu nome? Ele hesitou por um momento, antes de responder: — Sou Sam St. Cloud.

III

NO PLANO INTERMEDIÁRIO

mar nunca parecera tão grandioso. As cristas brancas estendiam-se até o horizonte, e o lagosteiro de 35

pés balançava nas ondas de um lado para o outro. Com uma das mãos, Charlie segurava-se no painel, enquanto usava a outra para erguer o binóculo e esquadrinhar o mar tumultuado. Ele e Tink percorriam uma faixa específica na busca meticulosa, perto de Jeffreys Ledge, uma área não muito longe do local em que o pescador recolhera os des-troços do Querencia.

O

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Naquela manhã, no cais flutuante, ele se recusara a acreditar na notícia sobre Tess. A princípio, ele explodira:

— Não pode ser! Não é possível! Todos os olhos no restaurante fixaram-se nele. — Sabe de alguma coisa que ignoramos? — pergun-

tara Hoddy. Charlie tivera vontade de contar sobre a visita de

Tess à sepultura do pai e o jantar no chalé. Tivera vontade de descrever o passeio à meia-noite, até mesmo o primeiro beijo. Mas sentira um súbito medo. Fora um reflexo in-consciente. Talvez alguma coisa terrível tivesse acontecido com o Querencia no mar, e o espírito de Tess passara pelo cemitério. Não era impossível, e naquele momento ele compreendera que precisava se proteger.

— Ela deve estar em algum lugar — murmurara ele, tentando encobrir sua confusão. — Não concordam?

— Do que está falando? — indagara Tink, adian-tando-se. — Encontraram o leme e uma bóia. Não há no-tícias de Tess há mais de 36 horas. De que mais você pre-cisa?

Charlie sentira-se atordoado. — E a casa de Tess? Alguém já procurou por lá? — Claro — respondera Hoddy. — Não tivemos

sorte. Dubby Bartlett viu o cachorro correndo solto na praia esta manhã. A mãe de Tess esperava já ter notícias da filha a essa altura, mas nada aconteceu.

E, assim, os homens saíram em duplas para iniciar a busca. Charlie juntara-se a Tink, que tomara um lagosteiro emprestado. Os dois só se conheciam ligeiramente, do circuito local de cerveja e frutos do mar, mas ambos esta-vam determinados a encontrar Tess. Por volta do mei-o-dia, avistaram uma balsa parcialmente inflada, enegreci-

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da pela fumaça. Içaram-na para bordo, e Tink explodiu ao descobrir que era do Querencia. Primeiro, soltou um uivo estrondoso, depois gritou:

— Não! Essa única sílaba prolongou-se num gemido agonia-

do, até que ele ficou sem fôlego. Lágrimas enormes escor-riam por suas faces.

O barco desaparecera. Tess não estava em parte al-guma.

Nos recessos de sua mente, Charlie começou a es-pecular sobre o que acontecera. Teria sido mesmo Tess quem aparecera no cemitério na noite anterior, ou o seu espírito? Ele já vira milhares de almas passarem por lá e nunca se enganara. Todas brilhavam com uma aura espe-cial. Os velhos não mais mancavam. Os enfermos recupe-ravam a saúde. A princípio, os contornos pareciam um pouco indefinidos e tremeluziam, mas depois começavam a parecer como sempre se haviam imaginado. E quando estavam prontos para a passagem ao nível seguinte, des-vaneciam-se como a neblina ao sol.

Mas Tess fora diferente. Ele fitara-a nos olhos. Fica-ra ao seu lado. Até sentira que começava a se apaixonar. Não, ela não podia ser um espírito. Não havia nada de di-áfano em Tess. Ela era muito real, muito substancial, muito viva.

No céu a oeste, Charlie avistou manchas vermelhas e lilases. O ângulo do sol sobre o mar era baixo, e ele com-preendeu subitamente que, pela primeira vez em 13 anos, não pensara em Sam durante o dia inteiro. Agora, seu co-ração começou a bater forte. Só restava uma hora de cla-ridade para encontrá-la... e uma hora de claridade para chegar em casa.

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Foi nesse instante que Tink deu uma guinada brusca na roda do leme, anunciando:

— O tanque está quase vazio, e o sol vai sumir em breve. Detesto voltar, mas não temos opção.

Charlie acenou com a cabeça em concordância, mas sem sentir nenhum alívio. Foi até a popa e sentou-se. Pôs a cabeça nas mãos e fechou os olhos. Reconstituiu cada momento em sua mente, tentando encontrar um sentido. Talvez a beleza de Tess o tivesse impressionado. Talvez o brilho tivesse desviado sua atenção dos sinais. Como po-dia ter se enganado?

Ele tomou a levantar-se. Foi para a cabine e parou ao lado de Tink. A claridade difusa do crepúsculo começava a espalhar-se pelo mar. Ele sabia que o sol desapareceria às 18h33. Olhou para o velocímetro. Quinze nós.

— Podemos ir um pouco mais depressa? — per-guntou ele, gentilmente.

— Qual é o problema, Mario Andretti? Por que a pressa?

— É que preciso voltar logo. Tink virou a roda do leme em cinco graus para bo-

reste. — Tem alguma coisa mais importante para fazer?

Como um encontro amoroso? Charlie não se deu o trabalho de responder. Ficou

escutando o barulho das ondas batendo no barco. Depois de algum tempo, Tink estendeu-lhe a mão.

— Sinto muito, mas estou com os nervos à flor da pele.

Charlie teve a impressão de divisar lágrimas em seus olhos, enquanto Tink indagava:

— De onde conhece Tess?

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— Acabei de conhecê-la. Mas Tink não estava prestando atenção. Parecia ab-

sorvido em seus medos. — Eu nunca deveria ter deixado que ela saísse com

aquela tempestade — murmurou ele. Estranho. Tess não mencionara o mau tempo. — Independentemente do que aconteceu, ela vai fi-

car bem — declarou Charlie. Tink fitou-o, com uma profunda tristeza nos olhos. — Acha mesmo? — Você tem de acreditar. E era exatamente isso o que Charlie se obrigava a

fazer: acreditar que Tess estava bem. Mas, é claro, a cada momento que passava no oceano sem sinal dela aumenta-va seu medo de que o pior tivesse ocorrido. Charlie sabia tudo sobre o plano intermediário entre a vida e a morte, como os espíritos se separavam de seus corpos. Também passara por isso, para ser trazido de volta à vida por um choque. Mas tinha de aceitar a possibilidade de que a alma de Tess tivesse ido até o cemitério para encontrar o pai sem compreender o que acontecera com o seu corpo. As pessoas muitas vezes mostravam-se surpresas com seus infartos e aneurismas. Às vezes sequer compreendiam que sua vida acabara, e precisavam de alguns dias para absor-ver a informação. Outras sabiam no mesmo instante o que havia acontecido e gritavam para Deus e o mundo desde o momento em que chegavam. Eram as que tinham família e amigos. E havia ainda as pessoas que tinham a maior fa-cilidade, largando tudo e passando direto para o reino se-guinte.

À frente, Charlie divisou a entrada da enseada. O céu era de um cinza-escuro, e o farol projetava seu facho ver-

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de familiar. Tink seguiu direto para o cais e atracou sem dificuldade.

Charlie saltou para o cais. Enquanto prendia o cabo, ouviu o estrondo da saudação dos canhões ao pôr do sol.

— Preciso correr. — Tem certeza de que está bem? — perguntou

Tink. — Estou, sim. Ligue-me mais tarde, se souber de al-

guma coisa. — Está bem.

Ele sentia uma pontada no flanco e seus pulmões doíam quando completou a última volta na estrada da West Sho-re. Segurou as barras de ferro do portão. Encostou a testa no metal frio por um instante, depois entrou apressado.

Encontrou o carrinho de serviço ao lado da Fonte da Juventude e seguiu para a Floresta de Sombras. Avançou pelo caminho esburacado aos solavancos e parou sob os galhos baixos do espruce azul. Estava com tanta pressa que nem se deu o trabalho de olhar para trás. Em vez disso, enfiou a mão por baixo do banco da frente e tateou até encontrar a luva e a bola. Pulou por cima do tronco apodrecido e correu pela mata. Uma faixa cinzenta orna-mentava a copa dos ciprestes quando ele entrou na clarei-ra. Ao crepúsculo, constatou que o montinho do lançador e a base do rebatedor estavam vazios.

— Sam! — gritou ele. — Sam! O balanço também estava vazio.

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— Sam! Mas não houve resposta. Charlie sentia o medo au-

mentar, com um frio no estômago primeiro e um aperto no coração depois. A cabeça latejava. Não ajudava nem um pouco o fato de estar muito cansado. O medo domi-nava-o. Sabia que precisava se controlar, parar de pensar no pior. Por isso avançou por alguns metros do gramado e sentou-se no balanço.

— Sam! — chamou de novo. — Sam... E, depois, quando sua voz definhava, um pequeno

milagre aconteceu. Charlie ouviu um som... tão fraco a princípio que não tinha certeza se era qualquer coisa além de sua imaginação.

— Charlie! Lá estava Sam, saindo da floresta, com Oscar pulan-

do em sua esteira. — Onde você se meteu? — perguntou Charlie, sal-

tando do balanço. — Deixou-me assustado. — Estou aqui. Relaxe. — Sam sorriu. — Quer jogar

bola? — Não. Preciso conversar sobre uma coisa que a-

conteceu. Sam foi até a mesa de piquenique e sentou-se num

banco. — O que aconteceu? Como foi seu dia? — Péssimo. — O que houve? — Um problema com Tess. Sam arregalou os olhos. — Você já descobriu. Charlie sentiu o estômago se contrair. O que Sam

sabia? E como descobrira?

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— Você a viu? Ela esteve aqui? — Ela veio procurá-lo. — Você a viu? — Vi, sim. — A voz era suave, como se ele tentasse

amortecer o golpe. — E ela também me viu. Charlie sentiu-se definhar. Não havia mais nenhuma

possibilidade de negar. Em todos os seus anos em Water-side, jamais conhecera uma pessoa viva que pudesse ver seu irmão ou qualquer outro fantasma. Ele olhou ao re-dor. Durante o dia inteiro acalentara a esperança de que ela ainda estivesse viva. Mas agora compreendia que Tess era um espírito no plano intermediário.

Sam sentou-se ao seu lado, mas pela primeira vez is-so não era suficiente. Charlie sabia que queria mais. Preci-sava de mais.

— Ela já sabe? — perguntou ele. — Não tenho certeza. Acho que começa a adivinhar. — E já começou a se desvanecer? Já está passando

para outro nível? — Não sei. Mas tudo vai acabar bem, irmão — disse

Sam suavemente. — Como pode ter certeza? — Não se preocupe. Ela virá aqui esta noite.

O que começara como o dia mais estranho de sua vida transformara-se no mais assustador. O início fora caracte-

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rizado por uma dor de cabeça que se recusava a passar e terminara em desespero, junto da sepultura do pai.

Depois do encontro com Sam St. Cloud, no cemité-rio, Tess passara o resto do dia em confusão absoluta. O menino era irmão de Charlie, mas morrera há 13 anos, naquele terrível acidente de carro. Como pudera manter uma conversa com ele? Talvez fosse verdade o que dizi-am: quem passa muito tempo no cemitério começa a ver fantasmas. O menino seria uma aparição? Ou ela tinha a-lucinações agora? Ou fora algum idiota fazendo uma brincadeira? Precisava ver Charlie de novo e perguntar sobre seu irmão.

Enquanto o sol subia sobre Marblehead e os marujos de fim de semana saíam da enseada, Tess voltou com Bobo para casa, em Lookout Court. Ninguém a cumpri-mentou na rua, nem mesmo sua velha amiga Tabby Glass, que corria na outra calçada.

— Quer um pouco de comida? — perguntou Tess, quando finalmente chegaram em casa.

Mas Bobo simplesmente deitou nos degraus da fren-te.

— Como quiser, Bobo. Vou até o cais para verificar o estado do Querencia.

Ela desceu pela escadaria pública que levava de sua pequena rua até a beira do mar. Seguiu para o cais. As co-res dos cascos e das velas pareciam mais intensas. A mare-sia era mais acentuada. Ela parou em seu atracadouro, e foi nesse instante que compreendeu que havia alguma coisa muito errada.

O Querencia não estava lá. Tink nunca deveria pegar o barco sem sua permis-

são. Tess sentia-se um pouco tonta, a cabeça girando. A-

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joelhou-se para manter o equilíbrio, com uma das mãos na tábua curtida pelo tempo. Pensou que ia vomitar, incli-nou-se pela beira do cais e olhou para a água lá embaixo. Ajustou os olhos... e soltou um grito de espanto.

Seu reflexo havia desaparecido. Só via o céu e as nu-vens na água. Um súbito torpor dominou-a, e Tess final-mente compreendeu. Ela não estava ali.

A mente voltou em disparada pelos acontecimentos desconcertantes do último dia. Bobo não dando atenção às suas ordens. Dubby Bartlett ignorando-a na praia. Nin-guém a cumprimentara porque ninguém podia vê-la. Ex-ceto Charlie St. Cloud e seu irmão morto, Sam.

O que estava acontecendo? Tess levantou-se de um pulo e virou-se. Pôs as mãos

na cintura e depois nos cabelos. Esfregou a calça jeans. Virou um botão da camisa entre os dedos. Tudo parecia tão normal como sempre. E, no entanto, não estava.

Ela gritou para Bony e os outros velhos sentados sob a árvore, mas eles continuaram a conversar. Sua alma en-cheu-se de medo. Alguma coisa terrível devia ter aconte-cido. Ela tentou recordar o barco e a tempestade. Podia se ver emborcando e logo fazendo um esforço para voltar ao tombadilho, depois que o Querencia endireitara. Mas o que ocorrera depois? Ela conseguira voltar à enseada? Sua memória era vaga nesse ponto.

Quando ela morreu? A pergunta parecia impossível. Tess sentiu terror, um

turbilhão interior. Precisava desesperadamente de uma âncora. E, depois, compreendeu que só tinha uma coisa para fazer: encontrar Charlie. Se alguém podia explicar o que estava acontecendo, era ele. Mas e se alguma coisa ti-

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vesse mudado e agora ela estivesse invisível para Charlie também?

Na maior ansiedade, voltou ao cemitério, mas não encontrou Charlie por lá. Ao final, Tess quase se jogou sobre a sepultura do pai, à sombra do bordo-japonês. Se aquilo era a morte, pensou ela, o pai viria ao seu encontro. Para onde ela deveria ir? O que deveria fazer? Tess co-meçou a chorar e não parou, até que adormeceu, exausta.

Quando acordou, soltando um grito de medo ao pensar que poderia nunca encontrar Charlie, o céu estava quase escuro. Ao levantar-se da sepultura, lembrou-se das instruções de Sam: encontrar o espruce azul na floresta e a trilha no outro lado do velho tronco. Tess estremeceu. A floresta era assustadora à noite. Seria capaz de ir sozinha até o lugar?

Para sua surpresa, a floresta era pacífica e calma. Se-guiu a trilha, passando por uma cascata e um remanso profundo, depois atravessou um conjunto de ciprestes. Subitamente, ouviu vozes à frente e o latido de um beagle. Ao entrar na clareira, avistou Charlie sentado num tronco.

A simples presença de Charlie deixou-a mais anima-da. Pelo menos podia ter certeza de que aquela parte de sua vida era real. Queria que ele lhe dissesse que tudo não passava de um grande engano. Queria beijá-lo, recomeçar do ponto em que haviam parado na noite anterior.

Ao se aproximar, ela torceu para que Charlie ainda fosse capaz de vê-la. Quando ele se levantou de um pulo e sorriu, Tess sentiu uma onda de alívio. Não estava mais sozinha. Ouviu a voz profunda de Charlie:

— Graças a Deus você está aqui. Tive medo de que nunca mais voltasse.

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— Por onde você andou? — perguntou Tess. — Procurei por você o dia inteiro.

— Eu também estava à sua procura.

— OI, SAM — disse ela. As duas palavras ressoaram com extrema ternura.

Charlie nunca pensara que ouviria uma mulher cumpri-mentar seu irmão daquela maneira.

— Oi — respondeu Sam. — Uma pena que tenha chegado tão tarde. Já está escuro demais para jogar bola.

Ele olhou para o irmão e acrescentou: — Ela diz que não joga como uma garota. Você a-

credita? — Este não é o momento para falar sobre isso. Charlie olhou para Tess. Ela exibia um profundo

sentimento nos olhos. Parada ali, parecia tão real quanto qualquer pessoa. Não havia um único sinal de que esti-vesse se desvanecendo. E, no entanto, em seu cérebro, ele sabia que isso acontecera. Especulou sobre quanto ela compreendia. Decidiu começar por uma pergunta simples:

— Como você está? — Sentia-me bem, até que não pude ver o reflexo do

meu rosto na água. Agora estou apenas confusa. Quero que me conte o que está acontecendo, Charlie.

Era óbvio que ela não sabia; Charlie compreendeu que teria de dar a notícia.

— Não sei direito por onde começar. — Que tal pelo início?

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— Certo. O Querencia está desaparecido há 48 horas. Toda a cidade ficou na maior preocupação. E a frota saiu para procurar.

— Desaparecido há 48 horas? — Um pescador encontrou um pedaço do casco ao

largo de Halibut Point. Tink e eu encontramos sua balsa em Sandy Bay.

— Onde? — Sandy Bay, ao largo de Rockport. — Isso é estranho. Nem cheguei perto de Rockport.

Deve ter sido o vento e a correnteza. Tess foi até o balanço e sentou-se. — Lembra-se do que aconteceu? — perguntou Sam. — Não lembro direito. — Mas deve fazer um esforço para lembrar — disse

Charlie. — Precisamos saber onde você estava quando aconteceu.

Tess desceu do balanço. — Sei exatamente o que aconteceu. A tempestade

tinha força 10, e passei a noite dentro do barco emborca-do, na água. Estava congelando.

— E depois? — Acordei na sepultura de papai. — Sabe como chegou ao cemitério? — Não, Chas. É tudo muito vago. — Não se preocupe. Às vezes, quando acontece de

repente, você não entende o que houve. Leva algum tem-po para assimilar.

Charlie observou-a com todo o cuidado, avaliando o impacto de suas palavras. Ela parecia atordoada.

— O que está acontecendo comigo?

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— Tudo ficará melhor em breve, e você perceberá que está indo para casa, o lugar a que pertence — mur-murou Charlie, quase engasgando com as palavras.

— Ir para casa? Mas do que está falando? Minha casa fica em Lookout Court, com Bobo. Minha casa é com mamãe e meus amigos.

Havia lágrimas em seus olhos agora. Ela removeu-as e tentou forçar um sorriso, mas ele saiu um pouco torto.

— E eu já começava a pensar que minha casa pode-ria ser com você — disse ela então.

A NOITE CAÍA. A lua subira no céu, as estrelas cintila-vam. Tess continuava sentada na clareira, com Charlie e Sam. Tentava se controlar. Mas, pouco a pouco, a reali-dade de tudo aquilo começava a prevalecer em sua mente.

A vida acabara. Jamais conheceria aquele Charlie St. Cloud, que sur-

gira do nada em sua vida para ficar fora de seu alcance no instante seguinte. Por que o conhecera agora? Deus devia ter uma razão.

Ela tentava se concentrar no que Charlie e Sam di-ziam, revezando-se para descrever o pós-vida e a estrada pela frente. Faziam com que tudo parecesse a transição mais natural do mundo. Depois de algum tempo, ela in-terrompeu Charlie:

— Preciso compreender como isso funciona. Como você pode ver Sam? — Tess hesitou. — E como pode me ver?

— Quando sofremos o acidente, também fiz a tra-vessia — explicou Charlie. — Foi uma experiência clássica de quase-morte. Quando me fizeram voltar à vida, passei a

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ter esse dom. Ainda posso ver pessoas no limbo entre a vida e a morte.

— É onde estou agora? — Acho que sim. Mas você me surpreendeu. Não se

parece com a maioria dos espíritos. — Aceito isso como um elogio. Mas o que me diz

do contato físico? Como nos beijamos ontem à noite? Como posso abrir portas, trocar de roupa e dar comida para Bobo?

Charlie sorriu. — Neste momento, você está com um pé em cada

mundo. Está aqui e não está aqui. Literalmente, encon-tra-se num plano intermediário. — Ele inclinou-se e pe-gou a mão de Tess. — As pessoas que morrem de repen-te, ou que não querem partir, podem exercer uma presen-ça física muito forte. São as que fazem com que luzes pis-quem e coisas batam durante a noite.

— Como é possível que eu não tenha visto mais nin-guém?

— Além de Sam, não há mais ninguém por aqui neste momento. A Sra. Phipps, que foi nossa professora, partiu esta manhã. E já faz algum tempo que não vejo um bombeiro chamado Florio.

— Deus determina quando você vive e morre — acrescentou Sam. — Mas quando você está aqui, no plano intermediário, tem uma opção. Pode ficar aqui o tempo que quiser, como eu. Ou pode passar imediatamente para o nível seguinte.

Tess sentiu uma onda de preocupação. — Por que meu pai não veio me ver? Sempre pensei

que ele estaria à minha espera.

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— Não se preocupe — disse Charlie. — Ele vai en-contrá-la. Mas você ainda não cruzou o outro lado.

— Pensei que este fosse o outro lado. — É o que todo mundo pensa — disse Sam. — A-

cham que ao morrer você vê a luz e passa adiante. E pon-to final.

Ele sorriu, e sua voz era um sussurro ao acrescentar: — Na verdade, é mais complicado. Há muitos níveis

e lugares neste lado. — Sam traçou um círculo no ar. — Imagine que esta é a terra dos vivos. Marblehead vive a-qui, no meio de tudo. Sua mãe, seus amigos, Bobo.

Ele fez uma pausa, enquanto traçava outro círculo. — Estamos bem aqui, um nível além. É o plano in-

termediário. — Pense como uma estação intermediária entre a

vida e a morte — disse Charlie. — Como se fosse um ponto para descansar na estrada. Passei dez minutos aí antes de o paramédico me trazer de volta à vida.

— Não estou entendendo. Se é um ponto de des-canso, o que Sam ainda está fazendo aqui?

Os irmãos trocaram um olhar. Sam deu de ombros. Já ia falar, quando Charlie se antecipou:

— Fizemos uma promessa. — Que tipo de promessa? Houve um silêncio prolongado. — Está certo, não precisam me contar — disse Tess.

— Mas estou certa, Sam? Você pode ficar aqui o tempo que quiser?

— Posso. — E eu também posso ficar? — Está se adiantando antes da hora — comentou

Charlie.

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— É verdade — acrescentou Sam. — Haverá tempo para isso mais tarde. Neste momento, você tem muito pa-ra aprender.

— Vá em frente — exortou Charlie. — Mostre a ela como funciona.

— Com todo prazer. Sam olhou para o céu. Acenou com as mãos, num

pequeno círculo. Um vento repentino soprou entre as ár-vores. Uma chuva de folhas caiu ao redor.

— Nada mal, hein? E também podemos entrar no sonho das pessoas e dizer coisas.

— Está querendo dizer que quando sonho com pa-pai...

— Exatamente — disse Charlie. — Os espíritos em qualquer nível podem entrar nos sonhos, mesmo depois que fazem a travessia.

Tess balançou a cabeça. Sentia-se sufocada. Sonhara com o pai quase todas as noites durante o ano seguinte à sua morte. O pai visitava-a no sono? Ela não sabia mais em que acreditar. E, depois, uma explosão de raiva ir-rompeu em sua alma. Sabia de uma coisa com certeza: não queria passar a eternidade fazendo o vento soprar ou se intrometendo no sonho das pessoas. Queria sua vida de volta. Queria velejar. Queria viver. Queria amar.

— O que acontece se eu não quiser fazer a travessia? — Ela estendeu a mão para Charlie. — O que acontece se eu quiser ficar aqui com você?

— Não há pressa — respondeu ele. — Você tem todo o tempo do mundo.

Sam levantou-se e aproximou-se de Tess. Pegou sua mão e a puxou.

— Vamos, Tess.

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— Vamos para onde? — Eu lhe mostrarei tudo. É como uma orientação.

Não vai demorar. Tess não sabia o que fazer. Não queria ir para lugar nenhum.

Queria manter-se naquele lugar e naquele momento, para que nada mudasse. Foi então que ouviu a voz tran-qüilizadora de Charlie:

— Não tenha medo. E quando acabar, volte para o meu chalé.

Ela fitou-o nos olhos sem acreditar em seu infortú-nio. Estava pronta para navegar ao redor do mundo para encontrar sua alma gêmea, e descobria que ela a esperava bem perto, em Waterside. Sentiu que Sam a puxava de novo.

— Vamos logo. E ela entrou na Floresta de Sombras, segurando a

mão de um menino morto, em companhia de um beagle morto. Depois de alguns passos, ela virou-se e divisou a silhueta de Charlie, sozinho, sob a lua.

— Promete que estará aqui quando eu voltar? — gritou Tess.

— Prometo. — Não se preocupe, Tess — murmurou Sam. —

Ele sempre cumpre as promessas.

TESS TINHA UM talento natural para voar. Na verdade, “voar” não era o termo certo. Não parecia nem de longe com o Super-Homem, os braços estendidos, a capa esvo-açando. Era chamada de viagem de espírito, explicou Sam, controlada pela mente. Você só precisava imaginar as pos-sibilidades, e podia correr, nadar, mergulhar ou flutuar a-

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través de qualquer dimensão. Bastava pensar num lugar e você estava lá.

Para Tess, era como o esporte mais radical possível, sem limites para a velocidade ou a distância que se podia percorrer. Ela nunca acreditara em nenhuma daquelas histórias sobrenaturais, mas logo sobrevoava o centro da cidade, circulava o cata-vento dourado no alto de Abbot Hall e depois disparava para ver os barcos na enseada.

— Não é muito melhor do que PlayStation 2? — perguntou Sam, enquanto se materializavam perto do to-po do farol de Marblehead.

— É mesmo espetacular — murmurou Tess, obser-vando o potente feixe de luz verde passar por ela.

— Para onde quer ir agora, Tess? Ela pensou por um momento. — Que tal a casa de minha mãe? — Siga na frente. E no instante seguinte eles estavam próximos da la-

goa Black Joe’s, em Gingerbread Hill. A casa colonial da família, com suas chaminés de tijolos, até parecia uma casa de brinquedo, dando para o pequeno lago. Quase não mudara desde que fora construída por seus ancestrais, em 1795. Havia luzes acesas na sala de estar. Ela viu uma cara peluda numa janela do segundo andar. Era Bobo, olhando impassível para o ponto do gramado em que Tess parara.

Um carro aproximou-se. Tess notou que havia mui-tos veículos estacionados nas proximidades da casa.

— Quem será que está aqui? — murmurou Tess. — São seus amigos. — O que estão fazendo aqui? — Acho que gostavam mesmo de você. Mais uma vez, Tess teve a sensação de que sufocava.

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— Vamos dar uma olhada. Ela reconheceu a maioria dos carros, inclusive o

Subaru vermelho do reverendo Polkinghorne. Hesitou por um instante. O pai havia morrido quando o reverendo es-tivera na casa pela última vez. Sua mãe teria forças para enfrentar tudo de novo?

Depois, decidida, Tess começou a atravessar o gra-mado, percorrendo o terreno em vinte passadas. A porta lateral para a saleta em que se deixavam guarda-chuvas e sapatos molhados nos dias de chuva estava aberta. As bo-tas do pai estavam num canto. A mãe deixara-as ali, como um conforto, desde a morte do pai, há dois anos.

Grace estava na cozinha, mexendo o caldeirão da sopa de batata e mariscos. Tinha o rosto abatido e os o-lhos vermelhos. A blusa azul e a saia marrom não combi-navam.

Tess foi postar-se ao lado da mãe. Sentiu a maior vontade de abraçá-la, mas Sam se interpôs quando ela es-tendeu os braços.

— Sinto muito, mas você não deve fazer isso. — Por que não? — Deixa as pessoas frenéticas. — Por quê? É apenas um abraço. — Confie em mim. Só serve para piorar a situação.

Vai acabar descobrindo que há maneiras melhores de fa-zer sua mãe saber que está aqui.

Tess recuou. Observou Grace terminar de aprontar a sopa, até que a porta da cozinha foi aberta. Era o reve-rendo Polkinghorne.

— Está trabalhando demais — disse ele. — Por que não me deixa ajudar? Tenho experiência na cozinha.

— Pode levar alguns pratos para a sala.

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Grace mexeu a sopa por mais um momento. Depois, pegou o caldeirão com luvas e levou-o para a sala de jan-tar. Tess e Sam foram atrás.

As quatro estações de Vivaldi ressoava no aparelho de som, e a sala estava cheia de amigos. Tess circulou pela sala, prestando atenção às conversas, não muito surpresa com o que ouvia. Aqueles momentos eram sempre cons-trangedores e desagradáveis, e as pessoas não sabiam o que dizer. Myrna Doliber, a diretora da agência funerária, apregoava uma de suas superstições:

— Se três pessoas são fotografadas juntas, a do meio sempre morrerá primeiro...

A voz tensa, Grace chamou da sala de jantar: — Venham comer. Ela ficou na mesa do bufê, servindo a sopa em tige-

las com uma concha. Depois que todos foram servidos, o reverendo Polkinghorne conduziu-as numa oração:

— Vamos agradecer a Deus pelo alimento de que dispomos quando outros passam fome, por termos o que beber quando outros sentem sede, por termos amigos quando outros estão solitários. E que a luz de Deus possa envolver nossa amada Tess, onde quer que ela esteja, e que a traga de volta para casa, sã e salva.

— Amém. Era evidente que Grace fazia o melhor que podia

para manter o controle. Mantinha os olhos contraídos e os lábios cerrados. Uns poucos visitantes elogiaram a sopa. E foi então que Grace começou a desmoronar. O sorriso frágil desapareceu e seus olhos se encheram de lágrimas. Com um movimento rápido da mão, ela removeu-as do rosto.

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Tess estava desesperada para fazer alguma coisa, mas Sam pôs a mão em seu ombro.

— Não faça nada — murmurou ele. — Sua mãe tem de passar por isso.

A campainha da porta tocou nesse momento e Grace se adiantou apressada para atender. O corpo volumoso de Tink ocupava quase toda a entrada. Ele se inclinou para abraçar Grace e seguiu-a até a sala de estar. Todos se cala-ram para ouvir as últimas informações sobre a busca.

— O último barco já voltou. Encontraram mais al-guns destroços. Podem ser do Querencia.

— Nenhum sinal de Tess? — perguntou Bony. — Nenhum sinal de rádio? Nenhum foguete de sinalização?

— Ainda não. Vamos sair de novo ao raiar o dia; tenho certeza de que a encontraremos.

— Por que esperar até amanhã? — indagou Grace. — Não podem ir agora?

— Não há sentido. Temos um céu nublado, uma noite sem lua.

Grace foi até a janela e olhou para a distância. Tess chegou mais perto. Como era possível que o

seu contato não acalmasse a mãe? Com todo o cuidado e gentileza, ela pôs a mão no ombro da mãe. Grace ficou rígida, depois estremeceu e virou-se. Com uma expressão apavorada, voltou para o meio dos visitantes.

— Senti o pior calafrio da minha vida — disse ela ao reverendo Polkinghorne. — Como aconteceu quando George morreu. Eu seria capaz de apostar que esta casa é mal-assombrada.

Uma tristeza profunda dominou Tess. — Não posso mais ficar aqui, Sam. Temos de sair

agora.

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Ela saiu apressada para o gramado, sob um céu ne-gro. Queria correr o mais rápido e o mais longe que podia. Nunca se sentira tão impotente em toda a sua vida. Não havia nada que pudesse fazer pela mãe. Nada que pudesse fazer por si mesma.

Se ao menos o pai ainda estivesse ali... Um pensa-mento assustador dominou sua mente. E se o pai tivesse passado pela mesma coisa, obrigado a ver as duas sofren-do? Estivera em sua cadeira, à mesa da sala de jantar, du-rante aqueles jantares silenciosos e angustiantes? Os mor-tos lamentavam ao lado dos vivos? Sentiam o nosso so-frimento?

Tess sempre fora ensinada que os mortos se encon-travam num lugar melhor, absorvidos pela luz, em boa companhia. E se não fosse isso o que acontecia? Ela foi até o pequeno lago e sentou-se numa pedra. Sam sen-tou-se ao seu lado. Depois de um longo momento, ela perguntou:

— Será sempre assim? — Não. O começo é horrível, mas depois muda. — Qual foi o seu pior momento? Sam lançou uma pedra na água. — Foi logo depois do acidente. Charlie e eu estáva-

mos juntos. Era assustador. Charlie acabara de fazer uma promessa de ficar comigo para sempre, e de repente co-meçou a desaparecer. Eu me vi sozinho num lugar estra-nho, que logo descobri ser o cemitério. — A voz de Sam tremia. — Calculamos depois o que acontecera. O para-médico levara-o de volta à vida, e ele desapareceu. Pensei que nunca mais tornaria a vê-lo.

— O que aconteceu depois?

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— Tudo acabou bem. Ainda nos encontramos todas as noites para jogar bola.

Tess observou-o por um momento e sentiu-se ainda mais triste. Quantos meninos como Sam estariam no éter, apegando-se a irmãos e irmãs mais velhos, ainda vivos? Quantos maridos oscilavam entre a vida e a morte, sem querer largar a esposa que haviam deixado neste mundo? E quantos milhões de pessoas como Charlie havia neste mundo, que não podiam deixar aqueles que haviam ama-do depois que morriam?

Os dois permaneceram calados à beira do lago, es-cutando as rãs. A distância, podia-se ouvir o motor de um barco. Tess ouviu vozes no gramado e virou-se para ver os visitantes saindo. Depois as luzes se apagaram na cozi-nha e na sala de estar. Através da janela, ela observou a silhueta da mãe, subindo a escada. Viu-a chegar à janela do quarto, cocar Bobo atrás das orelhas, olhar para fora por um momento e depois fechar as cortinas.

Tess puxou os joelhos para si e passou os braços ao redor deles. Desesperada, queria ser confortada pela única pessoa que poderia ajudá-la a enfrentar aquela noite solitá-ria.

As cartas marítimas estavam espalhadas por toda parte. O mesmo acontecia com os boletins do Serviço de Mete-orologia e da Administração Oceânica e Atmosférica Na-cional. Com régua e calculadora, Charlie procurava deter-

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minar onde procurar, ao amanhecer. Não se importava com o fato de o supercomputador da Guarda Costeira ter analisado todos os dados sobre marés, correntezas e tem-peratura da água para chegar à conclusão de que as chan-ces de sobrevivência de Tess eram praticamente inexis-tentes. Admitia que a situação parecia desesperadora, ain-da mais desde que o espírito de Tess aparecera no cemité-rio. Mas também sabia de muitos milagres no mar: mari-nheiros que sobreviviam por dias, semanas ou até mesmo meses em balsas, ou agarrando-se a destroços. E o traje de sobrevivência de Tess fora projetado para as temperaturas mais baixas. Em teoria, ela usava o traje quando o Queren-cia afundara; portanto, era possível que ainda estivesse vi-va.

A lenha na lareira queimara toda, até só restarem brasas. Era quase meia-noite. Como podia ser tão tarde? A princípio, ele não notou os galhos da árvore batendo na janela, até que o som se tornou mais alto. Era estranho. Ele se levantou, foi até a janela, abriu-a e olhou. Tess es-tava parada no escuro. O coração de Charlie disparou.

— Oh, Deus, como estou feliz por ver você! Ele pegou a mão de Tess e puxou-a para dentro do

chalé. Ela fitou-o com os olhos mais tristes. — Alguma coisa está acontecendo comigo, Charlie.

Não consegui bater na porta. Não houve nenhum som quando tentei. Por isso tive de fazer o vento sacudir os galhos da árvore.

Charlie ficou tenso. Ela começava a perder a cone-xão com este mundo. Era a primeira indicação de que Tess começava a se desvanecer, mas ele ainda não podia acreditar. Não conseguia detectar um único sinal de que

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Tess era um espírito. Charlie tentou abraçá-la, mas ela o deteve.

— Eu gostaria que pudéssemos, mas é contra as normas. Sam diz que é demais para as pessoas.

— Estou disposto a correr o risco. Ele estendeu as mãos e puxou-a para um abraço.

Não havia como se enganar. Ela era real. Quando se separaram, Tess foi para o sofá e acon-

chegou-se entre as almofadas. — Não posso acreditar que isso esteja acontecendo.

Simplesmente não posso... — Fale-me sobre sua noite — pediu Charlie, sen-

tando-se ao seu lado. — Fui à casa de mamãe com Sam. Não pude agüen-

tar. Foi tão triste que não quis acreditar que a fiz passar por isso de novo. — Ela pôs uma almofada no colo. — Meu amigo maluco Tink acha que vai me salvar amanhã. E a pobre mamãe apega-se a essa esperança.

Ela jogou a almofada no chão. Charlie abraçou-a. Podia sentir que ela tremia a cada respiração. E era isso que parecia impossível explicar. Era um espírito, mas es-tremecia em seus braços.

— E você, Charlie? Onde esteve hoje à noite? — Fui até o cais para ver o que estava acontecendo.

— Ele afagou os ombros e as costas de Tess. — A Guar-da Costeira diz que o Querencia foi destruído por um in-cêndio. Acham que não há a menor possibilidade de você ter sobrevivido.

— Acredita nisso? — Não — respondeu ele, tentando convencer a si

mesmo. — Pelo me¬nos não até encontrarmos o corpo. Tess olhava para as brasas na lareira.

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— Um incêndio... — Subitamente, os olhos de Tess faiscaram. — Oh, Charlie, eu me lembro do que aconte-ceu...

O BARCO estava virado para baixo pelo que parecia uma eternidade. Fazia uma escuridão total na cabine, e tábuas flutuavam ao seu redor. Sentia-se atordoada pelo vapor de diesel e ácido de bateria. A água entrava rapidamente e não dava para calcular em que quantidade nem com que rapidez. E o mais assustador era o fato de que o barco emitia os sons mais assustadores. O Querencia estava em agonia. Tess orou para que o pai a guiasse pela terrível provação. Era orgulhosa demais para ativar o esquema de aviso de emergência ou pedir socorro pelo rádio. Resistiria até que não houvesse mais alternativa.

E de repente, como se fosse um milagre, o barco en-direitou.

Obrigada, papai, onde quer que esteja... Tess temia que o barco tivesse perdido o mastro ao

virar de novo. Engatinhou pela cozinha, empurrando pa-nelas e outros utensílios para os lados. Levantou o zíper do traje de emergência, pôs a máscara e subiu a escada para o tombadilho. No topo da escada, parou por um ins-tante para escutar. Podia ouvir a fúria da tempestade, mas precisava verificar o cordame. Prendeu a respiração e a-briu a escotilha.

A pressão mudou no mesmo instante, quando uma rajada de vento entrou na cabine, acompanhada por um jorro de água do mar. Ela prendeu o cabo de segurança num pino e saiu para o tombadilho. O céu e o mar se ha-

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viam fundido numa enorme muralha branca, e ela experi-mentou a sensação de voar.

Como não sabia se conseguiria manter-se de pé com tanto vento, permaneceu agachada, enquanto fazia um reconhecimento dos danos no Querencia.

Como era de esperar, o mastro fora derrubado, e só restava um toco pontiagudo. O resto do mastro, preso pelas adriças, balançava perto do barco, batendo no casco como um aríete a cada onda violenta. Tess sabia que tinha de cortar aqueles cabos, ou acabariam abrindo um rombo no casco.

O barco balançava sem parar. Ela foi até o armário na cabine e pegou o alicate de metal no suporte. Usando toda a sua força para cortar o cabo de aço inoxidável, sol-tou a vela mestra e as duas bujarronas. Um instante de-pois, uma onda enorme levou o mastro para longe.

A seguir, ela avançou agachada para a cabine de co-mando, a fim de verificar os instrumentos.

Droga! O piloto automático estava desligado. Devia ter acontecido quando o barco ficara sem energia. Ela a-pertou o botão para religar a energia, mas nada aconteceu. Tentou o sistema de apoio, mas também não houve rea-ção. Agora não tinha opção: teria de conduzir o barco pessoalmente pela tempestade. Mas qual era a sua posi-ção? Deu uma olhada na bússola, para tentar se orientar.

Antes de acabar, uma onda atingiu-a pelo convés de popa, jogando-a contra a roda do leme. O choque expeliu todo o ar de seus pulmões, e ela dobrou-se, na tentativa de respirar. Um estrondo acima fez com que se erguesse. Olhou para o céu e viu um clarão intenso, seguido por um raio em ziguezague, que se espalhou como renda através do céu. Mesmo no turbilhão, ela apreciou sua beleza. Mas

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também sabia que perdera o pára-raio com o mastro, e não tinha mais nenhuma proteção.

Ela inclinou-se para os controles e tentou calcular onde se encontrava. Navegava sem direção há algumas horas. Era difícil saber para onde o vento e a correnteza a haviam levado, mas achava que o barco estava entre...

Tess nunca concluiu o pensamento. O barco foi sa-cudido violentamente, e ela caiu na direção das cordas salva-vidas junto da amurada. Deslizou pelo convés e ba-teu num espeque de aço inoxidável. Sentiu que o arreio de segurança lhe comprimia as costelas de uma forma dolo-rosa. No instante seguinte, descobriu-se estendida de cos-tas no tombadilho, olhando para a escuridão do céu. Seu quadril doía; ela se perguntou por quanto tempo conse-guiria agüentar aqueles impactos. Levantou-se, foi até a entrada para a cabine e deu uma olhada. A água já cobrira os beliches e subia depressa.

Tess compreendeu que era o momento de abando-nar o barco. O Querencia estava afundando. Ela puxou o cordão do feixe armado atrás da cabine de comando e a balsa começou a encher.

Tinha duas opções: descer apressada e ativar o sinal de emergência ou permanecer lá em cima e entrar em contato com a Guarda Costeira pelo canal 16, a freqüência de emergência. O rádio era mais rápido; e, por incrível que parecesse, estava intacto. Ela pegou o microfone.

Mas antes que pudesse dizer “Mayday” sem que hou-vesse o aviso de um trovão, um raio atingiu o convés. Tess sentiu o calor da explosão e depois viu o fogo no la-do de boreste do barco, onde ficava o tanque de combus-tível. Subitamente, o barco inclinou-se para boreste. Tess perdeu o equilíbrio e tornou a cair. Sentiu todo o impacto

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de seu corpo contra o cabo de segurança. Por um instante, ficou pendurada de cabeça para baixo na popa. Um mo-mento depois, sentiu o estalo do cabo de segurança se partindo, e a pressão no arreio diminuiu. Agora não havia mais nada para mantê-la no barco. Começou a resvalar pelo mar agitado.

Arrastada pelas ondas, tornou a olhar para seu ama-do barco. Eram as últimas imagens de que podia se lem-brar — o Querencia em chamas, o céu e o mar brancos se fechando ao seu redor.

— VOCÊ ALGUMA vez deixaria o cemitério? A pergunta de Tess pairou no clarão da lareira. Tal-

vez fosse apenas uma negação, ou talvez se sentissem tão atraídos um pelo outro que optaram por deixar de lado a questão sinistra do naufrágio, passando a sonhar em voz alta sobre a possível vida em comum.

— O que estou querendo saber é se sairia comigo para conhecer o mundo — explicou Tess, com o rosto aninhado no pescoço de Charlie.

— Você nunca me viu velejar — disse ele. — Tome cuidado com o que estiver planejando.

— Não brinque. Falo sério. — A pergunta seguinte parecia direta demais. — Pretende permanecer aqui para sempre com Sam?

Charlie afagou seus cabelos. — Eu não poderia enfrentar a vida sem ele. Ele beijou-a na testa, e Tess sentiu-se bastante segura

para perguntar: — E o que vai acontecer conosco? Ele beijou-a de leve no rosto, antes de sussurrar:

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— Venha comigo. Charlie levantou-se do sofá. Tess observou-o gesti-

cular, sem saber o que fazer. Uma vela ainda ardia na me-sinha de centro. O fogo na lareira apagara. Havia silêncio na sala.

— Não podemos — murmurou ela, enquanto a tris-teza voltava. — É impossível. Não posso sequer bater na porta. Não estou realmente aqui.

— Pode sentir isto? Charlie inclinou-se para a frente e beijou-a no canto

do olho. — Claro. — E isto? Ele passou as mãos pelos ombros de Tess e desceu

para os seios. — Também. — Ainda está no plano intermediário. Qualquer coi-

sa é possível. — Charlie pegou a vela e atravessou a sala. — Por aqui.

Tess seguiu-o por uma escada íngreme. O quarto era pequeno e aconchegante, com o teto em abóbada, as vigas expostas. Uma cama de casal ocupava quase todo o espa-ço. Ele pôs a vela na mesinha-de-cabeceira.

Na claridade difusa, Tess viu Charlie tirar a camiseta e estender-se na cama. Ela começou a desabotoar a cami-sa. E notou subitamente. As linhas das mãos haviam se tornado mais suaves. A pele era mais clara. Até mesmo a sensação das roupas era diferente. Tudo era menos subs-tancial. Ela levou um momento para processar, mas de-pois compreendeu.

Começava a se desvanecer.

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Isso lhe causou um terror profundo. Era com certeza o fim. Não fazia sentido. Sam garantira que o momento seria uma decisão sua. E ela queria continuar ali, com Charlie. Terminou de desabotoar a blusa e tirou os sapa-tos. Antes de se deitar na cama, apagou a vela com um sopro. Não queria que Charlie a visse assim. Não queria que ele soubesse o que estava acontecendo.

Os dedos se encontraram e se uniram. Charlie enla-çou-a pela cintura, enquanto ela passava os braços por seu pescoço. O beijo foi profundo, uma ligação intensa, como uma história familiar, com começo, meio e fim. Depois de recuperarem o fôlego por um momento, Tess beijou-o na testa, no rosto e nos ombros. Outro beijo prolongado, e começaram a se amoldar um ao outro, devagar, com ex-trema delicadeza. Pela primeira vez, aventurando-se mais fundo, Tess perdeu a noção do ponto em que ela acabava e Charlie começava.

Depois, com a cabeça de Charlie em sua barriga, ela sentiu lágrimas aflorarem em seus olhos.

— Por favor, Tess, não chore. — Não posso evitar. Quero ficar aqui com você.

Não quero ir embora. — Não se preocupe. Não há pressa. Mas no quarto escuro Charlie ainda não percebera

que ela começava a se desvanecer. Ela passou as mãos pelos cabelos de Charlie e esfregou suas costas sinuosas. Puxou-o novamente para si. Não queria desperdiçar um único momento. Não havia tempo para descansar ou dormir, pois em seu coração e em sua alma Tess sabia que só teriam uma única noite.

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OS VENTOS ALÍSIOS balançavam gentilmente a rede. A bandeira no mastro do Catalina 400 ondulava. Estavam ancorados em algum ponto das ilhas ao largo de Belize. Tomavam água-de-coco, Tess aconchegada contra Charli-e. Ela ofereceu-lhe o canudo; ele tomou um gole, depois beijou-a nos lábios e no pescoço. Charlie podia sentir o cheiro de bronzeador e de água do mar, além da fragrância inconfundível de Tess.

— Eu amo você — murmurou ela, os olhos refle-tindo o sol e o céu.

No momento em que ia jurar seu amor, Charlie ou-viu um som metálico. Levantou a cabeça e correu os olhos por toda a extensão do barco. Uma bandeira nor-te-americana tremulava na popa. Estavam sozinhos, mas o som metálico continuava, como alguém batendo numa panela. Ele fez um esforço para encontrar um sentido no barulho.

— O que é isso? Mas Tess não respondeu. Parecia muito distante. Ele

abriu os olhos e estendeu as mãos... mas ela havia desapa-recido.

— Tess? Ele sentia um aperto no coração quando saiu da ca-

ma e foi até a janela. Lá fora, lençóis prateados de chuva obscureciam o cemitério. O barulho devia ser Tink no cais, batendo o sino. Há um século, aquele som era a ma-neira mais rápida de chamar os coveiros, quando um cai-xão chegava de barco na North Shore.

— Está bem! — resmungou Charlie. — Dê um tempo! Já vou descer!

Ele virou-se e pegou as roupas numa cadeira. E lá estava.

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Um bilhete, no travesseiro de Tess. Seu coração disparou ao desdobrar o papel. Meu querido Charlie,

Enquanto escrevo este bilhete, mal posso ver minhas mãos ou segurar a caneta. Quando você a-brir os olhos, pela manhã, não poderá mais me ver. Por isso devo partir antes que você acorde.

Lamento partir sem me despedir, porém é mais fácil assim. Não quero que veja isso acontecendo comigo... Quero que se lembre apenas dos momentos que passamos juntos.

Esperava permanecer por mais tempo. Há muitas coisas que poderíamos ter feito. Mas nunca esquecerei como você abriu meu coração e me fez sentir mais viva do que jamais sonhei que fosse pos-sível.

Sam disse que o momento de seguir adiante era uma decisão minha. Mas parece que não é bem assim. Detesto a perspectiva de deixá-lo, mas me sinto esperançosa pelo que poderei encontrar. Não tenho tempo. Porque acho que estamos fadados a nos encontrar de novo. Algum dia estaremos juntos. Acredito nisso com toda a força do meu coração.

Até lá, quero que você mergulhe nos sonhos. Quero que confie em seu coração. Quero que viva pelo amor. E quando estiver pronto, venha me en-contrar. Estarei à sua espera.

Com todo o meu amor, Tess

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Charlie sentiu a dormência estender-se dos dedos até os braços e espalhar-se por todo o corpo. Quando pegara no sono? Como pudera deixá-la ir embora?

Ele vestiu-se, dobrou o bilhete e guardou-o no bolso. Ainda ouvia o barulho do sino no cais. Desceu a escada e passou direto pela porta. Nem se deu o trabalho de pegar um casaco. Quando chegou ao cais, Tink estava irritado.

— Por que demorou tanto? — Desculpe. A chuva era fria, e seu corpo todo tremia. — Está pronto? Não vai levar um casaco? — É tarde demais. — Tarde demais? Para quê? Você é o único que se

atrasou. — Não há mais sentido. — A água da chuva escorria

por seu rosto e seus braços. — Tess partiu. Não vai mais encontrá-la.

— Mas que droga, St. Cloud! Ontem à noite você di-zia que não podíamos desistir.

— Sei disso. — Charlie passou a mão pelo rosto. — Eu estava enganado.

Tink ligou o motor do barco. — Vou sem você. E que se dane por me fazer perder

tempo! Ele afastou-se do cais e resmungou alguns palavrões,

enquanto pegava o canal. Charlie ficou observando o barco de Tink desapare-

cer na neblina. Lentamente, sentiu que recuperava o con-trole. Era manhã de segunda-feira. A semana começava. Seus trabalhadores logo chegariam. Havia sepulturas para escavar. E, quando o dia terminasse, seu irmão estaria es-perando.

Nada mudara. E tudo mudara.

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Era um dia horrível, até mesmo para um funeral. Abra-ham Bailey, um dos homens mais ricos da cidade, morrera durante o sono. Charlie, agasalhado contra o vento, arru-mava a sepultura. A cada ação, fragmentos de memória explodiam em sua mente: os olhos de Tess, seu riso, as pernas... “Pare! Preste atenção ao trabalho”, advertiu a si mesmo. “Ponha as cadeiras nos lugares. Cuide dos tribu-tos florais.”

Ele espiou a cova lamacenta que abrira. Não era seu trabalho mais cuidadoso. Removeu alguns blocos de terra e alisou a superfície.

Parou de repente. Sua vontade estava abalada. Sua determinação desa-

parecera. Perdera o ímpeto. A gravação de sinos na Capela da Paz começou a tocar. Ele escutou. E lembrou. Passear ao luar. Fazer amor à luz de velas. As imagens foram se sucedendo, fundindo-se em sua mente, tornando-se turvas e cinzentas, como as nuvens sobre a enseada. Durante 13 anos ele se acostumara ao sofrimento e ao enfado daquele lugar. Mas será que queria mesmo passar toda a vida ali, apenas para ser enterrado ao lado do irmão?

Viu um homem enorme aproximando-se entre as lá-pides. A luz da tarde filtrava-se por seu corpo. Era Florio Ferrente, o bombeiro, que começava a se desvanecer.

— Saudações — disse ele. — Não o vejo há alguns dias.

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— Estava ocupado, tentando cuidar da esposa e do filho.

Charlie largou a pá. — Como eles estão? — Não muito bem. Foi um golpe terrível. Francesca

não consegue dormir. O menino não pára de chorar. Por isso tenho uma pergunta para você, Charlie. — Florio pa-recia dez anos mais jovem e dez quilos mais magro. Esta-va pronto para seguir adiante. — Preciso saber. Quanto tempo isso dura? Quando Francesca sofre, eu também sofro. É como se estivéssemos ligados.

— E estão mesmo — disse Charlie. — Dura até você e sua família liberarem um ao outro.

— O que me diz de você? — A expressão de Florio era solene. — Acha que já descobriu tudo?

— Creio que sim. Por quê? — Só estava pensando... Florio fitou Charlie de alto a baixo, antes de pôr o

chapéu e ajeitar a aba. Havia lágrimas em seus olhos, que ele removeu com a mão tremeluzente. A luz fluía por seu corpo, enquanto corria os olhos pelo vasto gramado, com seus blocos de granito.

— Lembra-se do final do meu enterro? O padre Shattuck disse: “Que ele possa descansar em paz.” Não quero descansar. Quero viver. — Florio balançou a cabe-ça. — Mas não há tempo para isso. Entende o que estou querendo dizer?

— Entendo. — Acho melhor eu partir. — Tem certeza de que não quer ficar? — Tenho. Só peço que cuide da minha família. Fi-

que de olho em Francesca e no menino, está bem?

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— Prometo. Trocaram um aperto de mão, e Florio puxou-o para

um abraço. Quando se separaram, Charlie viu um amuleto de ouro no pescoço do bombeiro. Reconheceu a figura gravada de São Judas Tadeu, o santo padroeiro das situa-ções desesperadas. Florio pegou o braço de Charlie.

— Lembre-se de que Deus o escolheu por uma ra-zão.

E então se afastou, desaparecendo entre os monu-mentos.

DEPOIS QUE o último empregado foi embora, Charlie levou o carrinho para o chalé à beira da floresta. Foi direto para sua poltrona, com uma garrafa de Jack Daniel’s. Fi-cou olhando para a parede em frente, com os mapas e os círculos que definiam sua vida. O crepúsculo viria às 18h29.

Tomou uma dose e serviu-se de outra. Raramente bebia, e nunca sozinho. Mas queria que a angústia sumis-se. Tomou a segunda dose e serviu-se de uma terceira. Não demorou muito para que sua cabeça turbilhonasse com os pensamentos mais desenfreados.

Pensou em Sam e na promessa. A princípio, o dom parecia uma grande bênção. Mas agora podia compreen-der. Ele e o irmão estavam acuados no crepúsculo. Eram imagens no espelho, apegando-se um ao outro, cada um impedindo que o outro alcançasse o que os aguardava a-lém dos enormes portões de ferro.

Mas agora era o fim. Cansara-se de esperar pelo pôr do sol, todos os dias, para jogar bola com um fantasma vivo. Não agüentava mais pautar sua vida pelos limites

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dos círculos nos mapas. E, acima de tudo, cansara-se de viver sozinho. Florio tinha razão. Recebera uma segunda chance. E a desperdiçara...

A princípio, a solução aflorou como um brilho tênue. Algo parecido passara por sua mente 13 anos antes, quan-do Sam morrera. Naquele tempo, ele empurrara a idéia para os recessos escuros da mente, que era o lugar a que pertencia. Mas agora a idéia tornara a entrar em cena, de uma forma dramática. E, desta vez, parecia quase irresis-tível.

Venha me encontrar, escrevera Tess em seu bilhete. A resposta estava bem ali, na carta. Se não podia estar com ela neste mundo, então por que não ir ao seu encon-tro em outro lugar? Por que não renunciar a este mundo pelo próximo? Acabaria num instante. Seria o fim de todo o sofrimento. Mais importante ainda, ele e Tess passariam a eternidade juntos. E poderia manter sua promessa, le-vando Sam para o nível seguinte.

Então o que esperava? Ele levantou-se e arrancou os mapas da parede. Não

precisaria mais daquilo no lugar para onde ia. A sala girava muito depressa agora. Charlie estendeu a mão para uma cadeira, a fim de se firmar. Mas perdeu o equilíbrio, caiu e bateu com a cabeça no assoalho. Ficou atordoado por al-guns momentos, tentando focalizar a mente confusa.

E, depois, o pensamento tornou a lhe ocorrer. Era a solução perfeita para os seus problemas. Só restava uma pergunta a ser respondida:

Como acabaria com a própria vida?

QUANDO CHARLIE recuperou os sentidos, seu corpo todo doía, e ele sentia um gosto horrível na boca. Sen-

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tou-se e massageou a cabeça. Que horas eram? Ele olhou para o relógio em cima da lareira: 17h35. Ficara apagado durante quase uma hora. A última coisa de que se lem-brava era de ter arrancado os mapas da parede. Devia ter desfalecido em seguida.

Ele pegou os pedaços rasgados no chão. Era sur-preendente, mas um mapa sobrevivera intacto à sua inves-tida. Estava separado dos outros, com um raio de sol inci-dindo sobre as ilhas Shoals. A mente de Charlie disparou. Seria uma mensagem? Ou seria apenas o desvario de um bêbado? Ele virou o mapa. Mostrava a área de Province-town à ilha Mt. Desert, no Maine. Estendia-se de Cape Ann até Bigelow Bight.

Charlie estudou os contornos da costa, passando os dedos pelas ilhas a oito quilômetros de distância. Quando menino, velejara por toda aquela área. Explorara os nove afloramentos rochosos que formavam as ilhas Shoals e subira ao topo do velho farol de White Island. Sabia que aquelas águas eram rasas, e que os costões ficavam ocultos na maré alta. Sabia também que os barcos pesqueiros pe-gavam toneladas de cavalinhas e peixes-voadores por lá.

Venha me encontrar... Aquelas ilhas desoladas, ao lado da fronteira de New

Hampshire e Maine, não estavam na área de busca da Guarda Costeira. Os primeiros destroços haviam sido en-contrados 33 quilômetros ao sul de Halibut Point, e a bal-sa queimada flutuava ainda mais longe. Estavam procu-rando na área errada! Tess o esperava. E ele já desperdi-çara um dia inteiro.

Charlie sabia exatamente o que tinha de fazer. Pegou o casaco, saiu voando pela porta e atravessou o cemitério.

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IV

O VENTO

proa do Horny Toad cortava as ondas. Charlie estava na torre do barco de pesca esportiva de 38 pés, ao

crepúsculo. Os dois motores diesel estavam acelerados ao máximo. Na cabine, Tink sacolejava, com o estômago su-bindo e descendo, os cabelos desgrenhados esvoaçando ao vento. Lá embaixo, no convés de popa, Joe, o Ateu, estremecia, enquanto recuperava a sobriedade mais de-pressa que gostaria.

Quando Charlie finalmente encontrara Joe, no Rip Tide, ele balançava num banco, na quarta dose de Jim Bean. O bar estava apinhado de freqüentadores habituais da chamada happy hour. Charlie conseguira abrir caminho até o balcão. Girara o banco de Joe.

— Preciso de um favor — dissera ele. — Barman! — gritara Joe. — Uma bebida para meu

amigo. — Quero que me empreste o Horny Toad. Joe inclinara-se para trás. — Ei, pessoal! O chefe quer... Charlie agarrara-o pelo casaco. — Não tenho tempo para isso. Diga-me onde está o

barco. Devolvo amanhã de manhã. — Vai sair sem me convidar? — Só quero que me dê as chaves. Se acontecer al-

guma coisa, pago todos os prejuízos.

A

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— Para onde você vai? Quero saber. — Por favor, Joe.

— A resposta é não — declarara Joe, cruzando os braços tatuados.

Charlie sentira um aperto no coração. Não tinha tempo nem opções. Quem mais lhe emprestaria uma lan-cha? Ele então perdera o controle. Agarrara Joe pelo ca-saco e puxara-o, tão perto que sentira o cheiro de bourbon e tabaco. Todos no bar se calaram.

— Mas que droga! Vou levar seu barco de qualquer maneira!

— Mas que droga! Com quem você pensa que está falando? Já esqueceu que não levo desaforo para casa?

Ninguém no bar se mexia. Mas no instante seguinte Joe desatara a rir.

— Vamos embora, St. Cloud. Não sei para onde quer ir, mas terá de aceitar minha companhia.

Joe largara o copo no balcão, saltara do banco e cambaleara em direção à porta. A caminho do barco, Charlie pegara o equipamento de mau tempo na mala do Rambler, enquanto Joe revistava seu Subaru e pegava um saco grande de Doritos e uma garrafa de Old Crow.

No cais, Tink arrumava os equipamentos do barco que usara, desolado, depois de um dia inteiro de busca i-nútil. As únicas pistas que encontraram — fragmentos de fibra de vidro derretida e pedaços queimados de almofa-das — eram maus presságios, indicando que o fogo no Querencia queimara tudo, até o casco.

— Você estava certo — dissera Tink. — É tarde demais.

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— Não, eu estava enganado — respondera Charlie. — Não é tarde demais. Ela ainda está viva. À nossa espe-ra.

— Não brinque comigo, St. Cloud. — O rosto de Tink assumira uma expressão de raiva. — Não estou com a menor disposição.

— Falo sério, Tink. Acho que sei onde ela está. Ve-nha conosco. O que tem a perder?

— Minha sanidade, mas provavelmente já é tarde demais para isso...

Tink pegara sua mochila e a caixa de isopor e em-barcara no Horny Toad.

Charlie apontou a proa do barco num ângulo de 55 graus, na direção da bóia de Gloucester. Seguiam a 25 nós; se o vento continuasse a soprar pela popa, poderiam che-gar a 30 nós, depois que contornassem a ponta de Cape Ann. A essa velocidade, Charlie calculava que levariam uma hora para chegar. Ele verificou a bússola e depois olhou para trás. Um bando de gaivotas seguia na esteira do barco. Ele checou o seu relógio. Já eram 18h20. Vi-rou-se para Tink.

— Pode pegar o timão por um momento? — Claro. Tink adiantou-se e assumiu o comando. Charlie des-

ceu a escada e foi para a popa. Ficou ali parado, olhando para oeste. Mar e terra fundiam-se no crepúsculo, com uma estreita faixa cinza no céu. O sol já se pusera no ho-rizonte. Imaginou o irmão aparecendo na clareira e espe-rando no balanço, sozinho. Lágrimas afloraram a seus o-lhos.

A vista à sua frente mudava de cores, como slides projetados numa tela. Havia pinceladas de púrpura no ho-

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rizonte, misturadas com manchas brancas e azuis. Charlie tentou saborear o espetáculo magnífico. Durante todos aqueles anos, só vira o sol desaparecer entre as árvores da floresta. Agora tinha o mundo inteiro à sua frente, e não pôde conter um murmúrio de admiração. Respirou o ar úmido e salgado, enquanto o céu se dissolvia mais em fai-xas de azul e cinza, até que tudo ficou preto.

— Adeus, Sam — sussurrou ele. Charlie virou-se e tornou a subir a escada para a

ponte de comando. Havia estrelas no céu à frente. De uma coisa ele tinha certeza: Tess estava por ali, à sua es-pera, e ele não a decepcionaria.

ESTAVAM BEM no meio das ilhas Shoals, entre as ilhas Smuttynose e Star. Charlie acendeu o refletor. O feixe de luz cortou a escuridão e refletiu-se na água. Uma noite de busca desesperada o aguardava.

Ele e Tink revezavam-se na roda do leme, varrendo o vazio com a luz, chamando até ficarem roucos. Joe a-cordou por volta das 3 horas da madrugada. Assumiu o comando por uma hora, enquanto Charlie e Tink procu-ravam. A cada passagem do refletor, a cada segundo trans-corrido, Charlie sentia um aperto cada vez maior no cora-ção.

— Dê-me um sinal, Tess — sussurrou ele. — Indi-que o caminho.

Havia apenas silêncio. Às 6h43, o nascente começou a clarear, com faixas

de laranja e amarelo. Mas a chegada do novo dia signifi-cava apenas o pior para Charlie. Arriscara tudo e perdera. Sentia as costas doloridas da vigia. O estômago protestava

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pela falta de comida. A cabeça latejava de uma noite gri-tando no escuro.

Foi nesse instante que ouviu Joe lá embaixo, res-mungando e grunhindo, enquanto subia a escada.

— Desculpe. Devo ter cochilado. — A voz era rouca do sono. — Alguma pista?

— Nenhuma. — Você fez o melhor que podia. — Joe estendeu as

mãos para a roda do leme, empurrando Charlie para o la-do. — Sou o comandante deste barco e digo que devemos voltar.

— Está começando a clarear. Talvez a tenhamos perdido na escuridão. — Charlie olhou para Tink. — O que você acha?

— Enfrente a verdade, Charlie — disse Joe. — Sei que você precisava tirar isso de sua cabeça, mas ela mor-reu.

Ele começou a fazer a volta com o barco. — Não! Ela está viva! — Charlie mal reconheceu a

própria voz. — A água fria reduz o metabolismo. É o re-flexo de mergulho dos mamíferos. O corpo sabe como paralisar tudo, exceto o que é essencial para as funções vi-tais e os órgãos.

Era a única coisa a que ele ainda podia se apegar. — Vocês se lembram daqueles alpinistas no Everest

há alguns anos? Estavam acima de oito mil metros, na zona da morte. Mas conseguiram sobreviver.

— Tiveram sorte, mais nada — murmurou Joe. — Não foi sorte. Foi um milagre. — Quantas vezes tenho de lhe dizer? Milagres não

existem.

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Joe empurrou o controle para a frente e o barco deu um salto, iniciando a viagem de volta. Charlie sabia que acabara. Atordoado, desceu a escada e sentou-se num dos bancos da popa. Enquanto olhava para a esteira do barco, o sol começou a iluminar o mar com um brilho suave. Mas Charlie sentia um frio desesperador por dentro. Não sabia se algum dia voltaria a sentir o calor da vida.

Sam era o vento. Zunia através do Atlântico, roçando as ondas. Estava liberado do plano intermediário, e os parâ-metros daquele novo playground eram infinitos — o U-niverso com sua centena de bilhões de galáxias e todas as outras dimensões, além da consciência ou da imaginação. Como não estava mais restrito por sua promessa, passara para o nível seguinte, onde podia assumir qualquer forma.

Sam era agora um espírito livre. Mas havia mais uma coisa que ele tinha de fazer nes-

te mundo. Passou sobre a proa do Horny Toad e circulou o irmão, tentando atrair sua atenção. Mas foi em vão. De-pois, fez vibrarem os cabos do barco, emitindo um som estranho, quase um gemido. Mas Charlie não ouviu.

Na noite anterior, Sam sentira-se irritado e traído pela maneira abrupta como Charlie deixara o cemitério. Ao pôr do sol, fora para a clareira na Floresta de Sombras e esperara. A solidão deixara-o acabrunhado, enquanto a claridade púrpura desaparecia do céu, deixando a clareira imersa na escuridão. A raiva logo se insinuara, ao pensar

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que o irmão o trocara por uma garota, quebrando a pro-messa.

Mas depois Sam tivera uma noção espantosa. Nunca pensara antes em seguir adiante. A vida no plano interme-diário — fazendo brincadeiras em Marblehead e jogando bola ao pôr do sol — fora sempre agradável para ele e Oscar. Mas se Charlie estava disposto a arriscar tudo para se aventurar no mundo, então talvez Sam devesse fazer a mesma coisa.

E assim, sem trombetas nem fanfarras, sem um cla-rão ofuscante e sem um coro de anjos, ele simplesmente realizara a travessia para o nível seguinte. A transição fora tão fácil e sem esforço quanto sua bola rápida no beisebol.

Desse momento em diante, tudo mudara para Sam. Adquirira a sabedoria dos tempos e todo o conhecimento e experiência que havia perdido quando sua vida fora in-terrompida tão cedo.

Com essa nova perspectiva, Sam mais do que nunca queria confortar o irmão e providenciar para que tudo a-cabasse bem.

ABRUPTAMENTE, o vento mudou para sudoeste, em-purrando as ondas em uma nova direção. Absorvido em seus pensamentos, Charlie não prestou atenção, até que o vento soprou-lhe alguns borrifos no rosto.

Embora com os olhos ardendo, ele reconheceu que o mar se tornara agitado e o vento era mais forte. Levan-tou-se de um pulo e subiu a escada para a torre, onde Joe fazia um esforço para manter o curso e Tink estudava as cartas náuticas.

— Precisa de ajuda? — perguntou Charlie, ansioso.

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— Claro — respondeu Joe. — Que tal assumir o comando enquanto vou urinar?

— Sem problemas. Charlie assumiu o timão e olhou para as ondas à

frente. Ajustava o leme a cada sutil mudança na direção do vento. Não demorou muito para que uma forma irregular, envolta pelo nevoeiro, começasse a tomar forma, a distân-cia. O que era aquilo? Um barco? Uma ilha?

Subitamente, ficou evidente. Era um afloramento rochoso. Através do binóculo, ele pôde ver as encostas erodidas e a superfície manchada por algas e guano. O barco balançava agora, e ele teve de fazer um esforço para focalizar o rochedo. Por um instante, teve a impressão de divisar uma mancha colorida. Obstinado, ajeitou as lentes.

E foi nesse instante que viu uma coisa extraordinária: um vislumbre de laranja, a cor inconfundível do traje de sobrevivência no mar.

OS ROTORES uivantes do helicóptero Jayhawk da Guar-da Costeira pairavam sobre o rochedo Mingo, provocando ventania e espalhando borrifos por toda parte. Um especi-alista em sobrevivência desceu por um cabo até a plata-forma em que Charlie aninhava a cabeça de Tess em seu colo. Ele cobrira o rosto de Tess com seu casaco, a fim de protegê-la dos borrifos. Ela ainda tinha o traje de sobre-vivência, preso a um contêiner de alumínio à prova d’água. Uma balsa improvisada, calculou Charlie: era bem prová-vel que tivesse flutuado assim até aquele rochedo, ao qual se agarrara de alguma forma.

A exultação de Charlie passara ao constatar a reali-dade do estado em que Tess se encontrava. Sua pele esta-

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va quase azul. As pupilas eram mínimas. Havia uma con-tusão atrás da cabeça. E não havia pulsação detectável.

Ele chegara tarde demais. Seu coração se alarmou quando o especialista em

sobrevivência abriu o kit de emergência. O homem não desperdiçou uma palavra, agindo com eficiência e urgên-cia.

— Ela está hipotérmica — disse Charlie. — Passei vinte minutos aplicando técnicas de ressuscitamento car-diorrespiratório.

— Ótimo. Cuidaremos de tudo daqui em diante. Com habilidade e delicadeza, ele começou a cortar a

corda que prendia Tess. Charlie admirou sua competência. Qualquer movimento brusco nos braços e nas pernas da paciente poderia inundar o coração com sangue venoso frio das extremidades, causando uma parada cardíaca.

Depois, o homem falou pelo rádio com o helicópte-ro, avisando que estava tudo pronto. Uma maca de resgate de emergência foi baixada.

— Para onde vai levá-la? — perguntou Charlie, o-rando para que a resposta fosse um hospital, e não o ne-crotério.

— Pronto-socorro de North Shore. A melhor uni-dade de hipotermia da região.

Charlie observou o homem ajeitar Tess na maca e prender os cabos. Ele atou seu cinto num cabo e fez o si-nal com o polegar levantado para o operador do guincho. Charlie ficou olhando para a esteira que o vento dos roto-res deixava na água enquanto o cesto balançava, até ser puxado para dentro. O helicóptero subiu e seguiu para oeste.

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CHARLIE DETESTAVA o pronto-socorro. Não era o-lhar para aquelas pessoas doentes e ansiosas que o deixava angustiado. Sentia-se desconfortável pelo que não podia ver, mas sempre sentira. Seu dom nunca se estendera além dos portões do cemitério, mas ele sabia que os espíritos estavam ali, no hospital.

O espírito de Tess estaria pairando ali?, ele não pôde dei-xar de especular, ao sentar-se na cadeira dura de fórmica, escutando o aquário borbulhar no outro lado da sala. Fe-chou os olhos para descansar, mas sua mente continuava em turbilhão. Passara as duas últimas horas numa corrida frenética para o hospital, desesperado para saber sobre o estado de Tess. Mas não havia notícias. Tink aguardava no outro lado da sala. Seus dedos enormes apertavam os nú-meros no pequeno celular, avisando às pessoas de Mar-blehead que Tess estava no hospital.

Charlie tentou acalmar-se, mas seus pensamentos davam voltas e mais voltas. Por que demoravam tanto? Talvez não fosse apenas hipotermia. Talvez a lesão na ca-beça tivesse sido mais grave que ele imaginara. Subita-mente, as portas giratórias se movimentaram, e Charlie viu a mãe de Tess entrar. Reconheceu-a no mesmo instante, pelo formato oval do rosto e o ângulo do nariz. Ele le-vantou-se de um pulo.

— Sra. Carroll... lamento tanto não ter alcançado Tess mais cedo...

— Abençoado seja por encontrá-la. — Ela tocou no braço de Charlie. — Por favor, me chame de Grace.

— Sou Charlie... Charlie St. Cloud. — St. Cloud... como um anjo do céu. Tink aproximou-se e passou o braço corpulento em

torno de Grace.

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— Os médicos disseram alguma coisa sobre Tess? — perguntou Charlie.

— Ainda não. Cheguei aqui dez minutos depois do helicóptero da Guarda Costeira, mas ninguém me disse nada. — Ela fitou Charlie nos olhos. — Como sabia onde encontrá-la? Tess disse alguma coisa?

Antes que Charlie pudesse responder, as portas da emergência foram abertas e uma enfermeira apareceu.

— Sra. Carroll? Venha comigo, por favor. A médica está à sua espera.

— Ainda bem. Mas Charlie continuou desesperado. Sentia um frio

terrível no estômago. Os médicos sempre apareciam para dar boas notícias, mas mandavam uma enfermeira chamar a família quando alguma coisa dava errado. Grace virou-se para Charlie.

—Venha comigo. E você também, Tink. Não quero entrar lá sozinha.

Os três entraram na emergência. A enfermeira le-vou-os para uma sala de consulta.

A médica começou com as apresentações e algumas banalidades. Charlie observava-a atentamente, à procura de indicações. Seu rosto expressava compaixão, mas os músculos no pescoço estavam tensos. Depois ela passou a relatar os fatos, em voz firme:

— Tess sofreu um traumatismo agudo na cabeça e hipotermia extrema. Sua condição é crítica. Como está in-capaz de respirar, nós a mantemos num respirador.

Grace levou a mão à boca. — Posso assegurar que ela não sente nenhuma dor

— continuou a médica. — Está em coma profundo. Não reage. Medimos essas coisas no que chamamos de escala

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Glasgow. Quinze é o normal. Tess está no nível cinco. É uma situação muito grave.

Grace agora tremia; Tink passou o braço por seus ombros.

— O que vai acontecer? — perguntou ele. — Tess vai acordar?

— Ninguém sabe a resposta para essa pergunta. E a única coisa que podemos fazer é esperar.

— Esperar pelo quê? — indagou Grace. — E por que não podem fazer nada?

— Ela é muito forte e saudável, e é extraordinário que tenha sobrevivido por tanto tempo. Mas o trauma-tismo craniano foi severo, e a exposição aos elementos, prolongada. — A médica fez uma pausa. — Há uma chance teórica de que as lesões se curem por si mesmas. E há casos de coma que desafiam qualquer explicação.

Ela baixou a voz ao acrescentar: — Mas acho importante ser realista. A probabilidade

de uma reversão é remota. Houve um longo silêncio, enquanto as palavras eram

absorvidas. Charlie teve a sensação de que o chão sólido se desmanchava sob seus pés. A médica acrescentou:

— Se querem ter um momento com ela, agora é uma boa hora.

— Peço demissão. Eram duas palavras que Charlie nunca pensara que

diria; ele ficou surpreso com a facilidade com que saíram.

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Estava parado no acostamento da avenida A, a faixa de asfalto que cortava Waterside.

Elihu Swett, o diretor do cemitério, fizera a ronda em seu Lincoln Continental e parara no acostamento. Es-piou pela janela aberta, do espaçoso banco da frente.

— Tem certeza de que não posso persuadi-lo a re-considerar?

— Tenho, sim. — Charlie sorriu. — É hora de par-tir.

Elihu franziu o rosto. — Talvez você ainda mude de idéia. Sempre terá

uma vaga aqui, se quiser voltar. Depois de um aperto de mão, Charlie sentou-se no

carrinho e percorreu as aléias. Decidira tratar aquele últi-mo dia como se fosse qualquer outro. Por isso cumpriu suas tarefas, fez a ronda e parou para dêspedir-se dos companheiros. Joe, o Ateu, deu-lhe um abraço apertado e confidenciou que resolvera reavaliar seu relacionamento com Deus.

De volta ao chalé, Charlie pôs suas poucas roupas numa mochila. Guardou os CDs e os livros prediletos em outra. Deixaria os móveis herdados de Barnaby Swee-tland, seu antecessor, para o próximo zelador. Pendurou as chaves no gancho, levou as malas para o degrau e fe-chou a porta. Pôs a bagagem no carrinho e seguiu até o pequeno mausoléu no alto da colina, à sombra de dois salgueiros.

Saltou, pegou uma chave mestra antiquada no por-ta-luva e abriu a porta do mausoléu. Na semi-escuridão, sentou-se no pequeno sarcófago e balançou as pernas. Apertou a bola com a luva. Depois, com um sorriso para

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o anjo azul no vitral, pôs a luva e a bola sobre o mármore de Carrara. O lugar a que de fato pertenciam.

O sol começava a se pôr. Charlie saiu e trancou o mausoléu. Ficou olhando para a enseada abaixo. Sentiria muita saudade de Sam e de suas brincadeiras. Foi nesse instante que o vento soprou mais forte, balançando as ár-vores na floresta. Uma revoada de folhas avermelhadas de carvalho surgiu à sua frente, para se afastar no instante seguinte.

Sam estava ali, compreendeu Charlie. O irmão se encontrava ao seu redor, no ar, no céu, no pôr do sol, nas folhas. Em seu último dia em Waterside, havia mais um lugar a que tinha de ir.

O playground secreto estava silencioso. Não havia passa-rinhos cantando, esquilos frenéticos nem espíritos se-guindo de um lado para o outro. Eram 18h51. Charlie de-leitava-se com a paisagem rústica, memorizando a cor das folhas e os ângulos dos raios de luz. Ele sabia que jamais voltaria àquele lugar. Em pouco tempo a floresta iria co-brir o campinho de beisebol, e ninguém saberia que um dia ele existiu.

O pensamento trouxe-lhe lágrimas aos olhos. Aquele fora o espaço mais importante do mundo para ele, mas, desde que fizera sua opção, havia outro lugar em que pre-cisava estar. Ele respirou fundo, sentindo a doce fragrân-

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cia do outono. Já ia se retirar quando avistou um jovem atravessando o gramado.

O intruso era alto — tinha pelo menos l ,90 m de al-tura e ombros largos e quadrados. Seu rosto era estreito e comprido, os cabelos cacheados, os olhos faiscando com um brilho inconfundível.

Charlie deixou escapar uma interjeição de espanto. — Oi, irmão — disse Sam, sorrindo. — Olhe só para você! — murmurou Charlie, depois

de um longo momento. — Já é um homem! — Isso mesmo. Finalmente sou um homem e posso

fazer o que quero. Estavam agora frente a frente. Charlie compreendeu

que o irmão faiscava como um holograma, com as super-fícies luminosas. Sam era agora um reflexo do passado e do presente, uma projeção do futuro... Tudo o que ele fo-ra e tudo o que queria ser.

— Você fez a travessia. — Fiz. — E como é? — Além de qualquer coisa que imaginamos, Charlie.

É incrível. — Então como voltou para cá? Não sabia que podia

voltar. — Há muitas coisas que você não sabe. Mas não se

preocupe. É assim mesmo que deve ser. Eles entraram na floresta e foram sentar-se no tron-

co ao lado do pequeno lago. — Ficou zangado porque quebrei a promessa? —

perguntou Charlie. — Não. Já era tempo. Estávamos retardando um ao

outro.

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Naquele momento, Charlie compreendeu o que per-dera naqueles 13 anos. Nunca haviam partilhado uma conversa de adultos. Sam não crescera, e o relacionamento ficara paralisado no tempo. Charlie desejou poder passar o braço pelos ombros de Sam.

— Era você quem estava no mar naquela manhã, não era? Foi você que fez o vento?

— E como você demorou para notar! Charlie estudou os contornos translúcidos do irmão,

que crescera tanto, mas ao mesmo tempo continuava o mesmo.

— Acho que só me arrependo de uma coisa... tê-lo retido por tanto tempo — murmurou Charlie, enxugando as lágrimas.

— Não tem problema, irmão. Eu também retive vo-cê por muito tempo.

Houve um longo silêncio, até que Charlie perguntou: — Acha que algum dia voltaremos a jogar bola? — Claro. Estaremos juntos num piscar de olhos. E

assim continuaremos pela eternidade. — Promete que não vai me deixar? — pediu Charlie. — Prometo. — Jura solenemente, com uma cruz no seu coração? — Juro — declarou Sam. — Eu amo você. Sam foi até uma árvore à beira do lago. Uma corda

pendia de um galho baixo. — Um último empurrão? Com um grito, Charlie deu o empurrão. Sam come-

çou a balançar sobre a água. — Adeus, irmão! — gritou ele, largando a corda e se

projetando para o céu.

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Sam deu um salto-mortal para a frente e desapareceu. Houve silêncio na floresta, cortado apenas pelo barulho da corda balançando e das folhas murchas de carvalho sopradas pelo vento.

HORA DE FECHAR, a última ronda para pegar um ca-valheiro idoso, num terno listrado, no Vale da Serenidade.

— Boa noite — disse Charlie. Palmer Guidry despejou a última gota do regador

vermelho, enquanto seu antigo toca-fitas tocava Brahms. — Olá, Charlie. — Estamos fechando para a noite. Quer uma caro-

na? — Obrigado. É muita gentileza sua. O Sr. Guidry fez uma inspeção final na flor de uma

planta alta. — As malvas-rosas eram as flores prediletas de

Betty. — Creio que já me contou. — Houve uma ocasião em que Betty plantou mal-

vas-rosas em todo o quintal dos fundos. Chegaram a mais de dois metros de altura.

— É mesmo? — Boa noite, Betty. Tenha doces sonhos, meu amor.

Volto logo. Ele subiu no carrinho. Ajeitou o regador e o to-

ca-fitas entre as pernas. — Não quer jantar comigo hoje à noite? — pergun-

tou o Sr. Guidry, ao se aproximarem do portão de ferro. — Posso preparar um dos pratos prediletos de Betty. O melhor bolo de carne desta Terra verde de Deus.

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— Eu gostaria muito. Será um prazer. O Sr. Guidry hesitou por um momento. Mesmo com

a doença de Alzheimer, ele compreendeu que havia algu-ma coisa diferente. Alguma coisa mudara. Seus olhos fais-caram, com um brilho de reconhecimento.

— Não tem de ir para algum lugar? Não é o que sempre diz?

Era outro pequeno milagre, um desses momentos misteriosos de lucidez num mundo confuso.

— Não tenho mais. Eu o seguirei até sua casa. Ao fechar o enorme portão de ferro pela última vez,

Charlie sorriu. Depois jogou as duas mochilas na traseira do Rambler. O Sr. Guidry saiu pela estrada de West Shore em seu Buick, e Charlie o seguiu. Olhou pela janela e des-pediu-se das fileiras de monumentos, os acres de grama-dos, seu mundo dentro de um mundo. Charlie St. Cloud, o estimado ex-zelador do cemitério de Waterside, nunca mais olhou para trás.

Marblehead fervilhava com o contentamento da semana de Ação de Graças. Os barcos hibernavam, recolhidos em docas secas pelo inverno, sonhando com tempo mais quente. As ornamentações cintilantes do Natal faziam sua alegre estréia. No quartel dos bombeiros, na rua Franklin, a vida era tranqüila. Não houvera uma ocorrência mais grave desde o incêndio na rua da escola.

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Charlie usava o uniforme de paramédico no quartel, onde também residia, até encontrar um lugar para morar. Naquela sexta-feira sem ocorrências, assim que o relógio na sala de recreação bateu 18 horas, Charlie pegou um ca-saco no armário e saiu com o Rambler. Teve de virar a chave algumas vezes para fazer com que o motor do velho carro pegasse.

Só tinha um lugar para ir naquela noite. Seguiu para a rua Pleasant, e poucos minutos depois parou no estacio-namento do Centro Médico de North Shore. Passou dire-to pelo saguão, acenando para as enfermeiras na recepção, e foi para o quarto 172.

Tess estava sozinha, ainda em coma. As ataduras e o respirador haviam desaparecido. Ela estava pálida, mas respirava sem nenhuma ajuda. Tinha as mãos cruzadas no peito e parecia estar em absoluta paz. Charlie memorizara cada detalhe do rosto oval, os lábios pálidos, os cílios longos.

Em oito semanas, Charlie estudara livros e artigos diversos sobre lesão cerebral. A recuperação de um coma mais longa já documentada fora de dois anos e meio, mas ele sabia que algo milagroso também podia ocorrer para Tess; e, de certa forma, isso já ocorrera. Deus atendera às preces de Charlie. Tess não desaparecera do cemitério porque estava passando para o reino seguinte. Desapare-cera porque tentava voltar à vida.

Por cima de sua cama, um pôster autografado de Tom Brady, zagueiro dos Patriots e herói da liga de fute-bol americano, dizia Fique boa logo. Na mesi-nha-de-cabeceira havia fotos do pai em seu lagosteiro e do Querencia em testes no mar.

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— Um grande fim de semana para seu time — disse Charlie, sentando-se ao lado da cama.

Ele tirou do bolso do casaco a seção de esportes do Boston Globe e leu os títulos das reportagens.

— Parece que os Jets planejam desafiar os defenso-res dos Patriots com os novos jogadores que contratou.

Esse era o ritual de Charlie agora, mas ele não queria voltar ao hábito antigo de manter uma rotina fixa. Às ve-zes passava pelo centro médico de manhã. Em outras o-casiões, ia depois do trabalho. Em uma semana, deixava de aparecer por alguns dias, mas na outra ia todos os dias. Queria estar ali para Tess, mas também queria viver sua vida.

Charlie acreditava que Tess ouvia cada palavra de cada história. Tentava fazer relatos rápidos e divertidos. Queria alegrá-la, até mesmo no sono. Às vezes imaginava que Tess inclinava a cabeça para trás e soltava uma garga-lhada. Ou imaginava que ela o repreendia por falar demais. Estava escuro agora. Havia silêncio no hospital. Era hora de partir.

— Boa noite, Tess. Sinto saudade de você. Ele beijou-a no rosto. Já se encaminhava para a porta

quando lembrou que se esquecera de dizer uma coisa. — Vou jantar com Tink esta noite — disse ele, vol-

tando para o lado da cama. — Marcamos um encontro no Barnacle. Você podia ter me avisado sobre o apetite dele. Não há mariscos em quantidade suficiente no oceano para satisfazê-lo.

Ele inclinou-se para a frente e afastou os cabelos do rosto de Tess.

E foi nesse instante que Charlie viu as pálpebras tremerem e aqueles olhos incríveis, de um ver-

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de-esmeralda, se abrirem. Não pôde deixar de especular se não estaria sonhando.

A NEBLINA COBRIA o terreno, abafando os sons do mundo. Ela não podia ver ninguém ao redor. Era possível que estivesse em qualquer lugar, ou em nenhum. Não importava. Charlie desaparecera, o pai não viera recebê-la, e ela estava sozinha.

Desde que deixara o cemitério, encontrava-se no mesmo lugar. Era como o oceano profundo numa noite sem lua. O céu era como um manto negro, sem estrelas familiares para orientá-la. A distância, formas vagas, como nuvens cúmulos-nimbos, pareciam se deslocar. Havia momentos em que vozes soavam ao seu redor, mas depois desapareciam.

Tentara pedir ajuda, mas ninguém respondera. Em-bora quisesse deixar a escuridão, não parecia ser capaz de nenhum movimento. E por isso tivera de esperar, atenta ao momento certo para agir.

E esse momento chegara. A princípio, com a escuridão dando lugar à luz len-

tamente, tudo era indistinto. O quarto, o homem que a fitava...

— Tess... Tess... pode me ouvir? Claro que ela podia ouvi-lo. Queria formar palavras

em resposta, mas não conseguiu emitir nenhum som. Tentou de novo, mas tinha a garganta e a boca ressequi-das. Quando finalmente encontrou a voz, saiu rouca e quase inaudível.

— Tess... — balbuciou ela. — Tess...

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— Isso mesmo, Tess! — exclamou o homem, no maior excitamento.

— Isso mesmo, Tess... — repetiu ela. — Você voltou! Oh, meu Deus, você voltou! — Você voltou... Ela sabia que apenas repetia as palavras, mas era o

melhor que podia fazer. — Como se sente? — perguntou ele. — Sente algu-

ma dor? Na verdade, ela não sentia nada. O corpo estava

dormente e a cabeça atordoada. Correu os olhos pelo quarto.

— Onde... onde estou? Não era tão ruim assim, pensou Tess. Onde estou?

Uma frase completa. Ela sorriu, sentindo a pele do rosto retesar.

— Está no hospital. Centro Médico de North Shore. Ela não registrou direito as palavras. — Onde? — No hospital. Sofreu um acidente. Ficou ferida.

Mas está tudo bem. Hospital. Acidente. Ferida. — Que acidente? — Estava velejando. Seu barco pegou fogo numa

tempestade. Lembra? Fogo. Tempestade. Ela não se lembrava. — Barco? O que aconteceu? — Sinto muito, mas o Querencia pegou fogo e afun-

dou. Querencia. Ela gostou da maneira como a palavra so-

ava, e a cadência das sílabas trouxe de volta fragmentos de memória e significado.

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— Querencia... espanhol. Lugar seguro. — Isso mesmo. Você está certa. É uma palavra es-

panhola. Tess tentava focalizar. Mais pensamentos tomavam

forma. — Água... Tenho sede. O homem apressou-se em servir-lhe água num copo.

Gentilmente, levou o copo a seus lábios. Ela tomou um gole e virou o rosto para a janela, os olhos contraídos. Os galhos de uma árvore balançavam ao vento.

— Janela... — Isso mesmo, janela. — Abra, por favor. O homem foi até a janela, puxou o trinco e levan-

tou-a. — Pronto. Uma brisa espantosa entrou no quarto. Tess fechou

os olhos, enquanto a aragem agitava seus cabelos. Água e vento. Isso mesmo, ela amava as duas coisas. O homem estendeu a mão para o telefone.

— Vou chamar sua mãe, está bem? — Está bem... mamãe... O homem apertou os números e falou depressa.

Tess não conseguiu entender o que ele dizia. Assim que a ligação foi encerrada, ela perguntou:

— Quem é você? Médico? — Sou eu, Charlie. Lembra? Ela não se lembrava. Sua memória estava vazia. — Tess, por favor, tente lembrar... sou eu, Charlie... Ela sacudiu a cabeça. — Desculpe, mas não me lembro...

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As lágrimas escorriam pela face do homem. Por que estava chorando?

— O que está errado? — Não há nada errado. Apenas me sinto feliz por

você. Tess sorriu, e desta vez não sentiu a pele tão esticada. — Seu nome... qual é seu nome? — Charlie St. Cloud. Charlie St. Cloud. Tess franziu o nariz. As coisas vol-

tavam mais depressa agora. Arquivos abriam-se em seu cérebro.

— St. Cloud... não é um nome de Marblehead. — Tem razão. Minnesota. Uma longa história. — Gosto de histórias. Charlie sentou-se ao lado da cama e explicou que o

nome vinha de uma pequena cidade à margem do rio Mis-sissipi, onde sua mãe fora criada. O St. Cloud original era um príncipe francês do século VI que renunciara ao mundo para servir a Deus depois que seus irmãos foram assassinados por um tio cruel.

Tess gostava do timbre profundo daquela voz. Lem-brava-a de alguém, mas não conseguia determinar quem era. Quando Charlie acabou de contar a história, ela tocou em sua mão. Era quente e forte.

— Os Patriots têm um jogo importante neste fim de semana — disse ele. — Lembra que você adora futebol americano?

Ela estudou-lhe o rosto gentil, com uma covinha numa das faces. Havia alguma coisa diferente naquele homem.

— Conte-me outra história, Charlie.

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— O que você quiser. — E se pôs a falar de velejar para lugares distantes, como as ilhas Marquesas, Tuamotu, Tonga e Fiji.

Cada palavra era um conforto. Tess recostou a cabe-ça nos travesseiros e projetou-se no calor dos olhos cor-de-caramelo de Charlie. Perguntou-se como era pos-sível que já soubesse que podia escutar aquele homem por um longo tempo.

JÁ PASSAVA da meia-noite. Os médicos haviam acabado de examinar Tess. Por mais incrível que pudesse parecer, haviam determinado que suas funções físicas e cognitivas permaneciam intactas, e que era provável que a memória voltasse ao normal.

Um repórter e um fotógrafo do Reporter fizeram perguntas e tiraram fotos para uma edição especial do jornal. Tink e os empregados da fábrica de velas havi-am-na visitado, com notícias animadoras sobre a empresa. Radiante e exausta, Grace fora finalmente dormir no quarto ao lado.

Agora, reinava o silêncio. Acordado, na sala de espera, Charlie olhava para o

aquário. Por mais grato que se sentisse pela volta de Tess, sua mente se concentrava numa questão: ela se lembraria dele?

O primeiro beijo... A noite abraçados... Cercada pelos amigos e pela família naquela noite,

Tess pouco a pouco recordara a luta do Querencia contra a tempestade. Sempre que desviava o olhar para Charlie no fundo do quarto, o que acontecia com freqüência, ela sor-

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ria. Mas parecia insegura sobre quem era ele, e por que estava ali. Quem podia culpá-la por isso?

A porta da sala de espera foi aberta nesse instante, e uma enfermeira chamou-o, em voz baixa.

— Ela me pediu que o chamasse, Charlie. Quer falar com você.

Ele cobriu a distância até a beira da cama no que pa-receu ter sido apenas cinco passos. Encontrou-a sentada, o que era espantoso, o rosto iluminado pela luz noturna,

— Fico contente que ainda esteja aqui, Charlie. — Também estou contente. Tess estudou-o por um longo momento, antes de

murmurar: — Então foi você quem me encontrou. — Acho que sim. — Depois que todos já haviam desistido? — Quase todos. — Preciso saber de uma coisa. É importante. Charlie sorriu. — Está bem, eu confesso. Sou torcedor do Red Sox. Ela inclinou a cabeça para trás e soltou uma risada. — Posso perdoá-lo por isso. Mas há uma coisa de

que não consigo me lembrar. — O que é? — Como nos conhecemos. — Você não acreditaria se eu contasse. — Experimente. Conte a nossa história. — Começa no cemitério de Waterside, onde uma

brava e bela fabricante de velas queixou-se para o zelador de um barulho que perturbava sua paz. — Charlie sorriu. — O jovem e encantador zelador tentou explicar a im-

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portância de seu programa de controle dos gansos, mas a navegadora apenas riu, sem ficar impressionada.

E, assim, Charlie descreveu os primeiros encontros, de um jantar à luz de velas, com um bolo para Ted Willi-ams, até um passeio à meia-noite entre os salgueiros e até um mausoléu de mármore. Enquanto os olhos de Tess registravam cada detalhe, ele sentiu uma enorme esperan-ça. Deixara o passado para trás, a fim de reivindicar sua vida. E, agora, a maior de todas as bênçãos, ele e Tess começando...

POSFÁCIO

credito em milagres, e agora vocês sabem por quê. Estou parado numa colina do cemitério de Watersi-

de, um lugar que Charlie amava e moldou com as próprias mãos. Os portões de ferro estão abertos. Um velho põe malvas na sepultura da esposa.

Esse é o mundo que você conhece. O mundo que pode ver quando passa pelo cemitério de sua cidade. O mundo que é real e tranqüilizador. Mas também há outro mundo aqui. Estou falando sobre o mundo que você e Charlie ainda não podem ver, o nível além do plano in-termediário. É um lugar chamado céu, paraíso ou nirvana — na verdade, é tudo a mesma coisa —, para onde vim quando realizei a travessia. É o lugar em que a Sra. Ruth Phipps pode outra vez ficar de mãos dadas com seu ama-do Walter. E, é claro, o lugar em que Sam e Oscar podem explorar o Universo.

A

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Desse ponto de observação, posso ver tudo agora. Minha voz e meus pensamentos são o vento, e mando tudo para Charlie. Ele está com Tess, no Centro Médico de North Shore, onde ela se torna mais forte a cada dia. É uma das faculdades que temos neste lado... ver, ouvir e saber de tudo. Estamos por toda parte. Experimentamos tudo. E nos regozijamos quando você se regozija. Fica-mos tristes quando você fica triste. Lamentamos quando você lamenta. E quando você resiste por tempo demais, dói em nós da mesma maneira como dói em você. Penso em minha esposa Francesca e em nosso filho. Sei que será preciso tempo e muitas lágrimas, mas quero que eles si-gam adiante. Algum dia ela se casará de novo e encontrará uma nova felicidade.

Charlie sabe o que é importante agora. Primeiro e acima de tudo, ele e Tess vão se apaixonar de novo. Vão se beijar pela primeira vez.

Vão navegar pelas ilhas de coral de Belize na lu-a-de-mel. Vão morar na alameda Cloutman, na mesma casa em que ele foi criado. Terão dois filhos. Ele fará um playground para os meninos, com balanços em um pinheiro. Charlie vai jogar bola com eles, vai encorajar a corrida pa-ra a lua e outras aventuras.

O dom de Charlie de ver o mundo dos espíritos ex-tinguiu-se assim que ele e Sam se separaram pela última vez. Mas todos os dias ele viverá com os olhos abertos para o outro lado, aceitando a possibilidade dos milagres. É a morte e a vida que você vê. Todos nós brilhamos. Vocês só precisam liberar o coração, alertar os sentidos e prestar atenção. Uma estrela, uma canção, um riso. Ob-serve as pequenas coisas, porque alguém está se projetan-do para você. Qualcuno ti ama. Alguém ama você.

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E um dia — só Deus sabe exatamente quando — o tempo de Charlie vai se esgotar. Ele estará velhinho, com os cabelos brancos. Vai olhar para trás, avaliando sua vida extraordinária, e saberá que cumpriu a promessa. E de-pois, como os 75 bilhões de almas que viveram antes dele, cada uma e todas um tesouro, Charlie também vai morrer.

Quando esse dia chegar, estaremos à espera... à es-pera de que Charlie St. Cloud volte para casa. Até lá, se-guem estas palavras de despedida...

Que ele viva em paz.

* * *

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