Beatas Do Além - Revista de História

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Beatas do além Depoimentos extraordinários de religiosas convencem a cidade Juazeiro do Norte e até a diocese do Ceará Edianne dos Santos Nobre 13/1/2011 Milhares de romeiros são atraídos a Juazeiro do Norte, no sul do Ceará, durante todo o ano para obter curas físicas e espirituais. Todos eles são motivados pelo chamado “milagre da beata”, uma história que aconteceu no dia 6 de março de 1889, primeira sexta‐feira da Quaresma, na Igreja de Nossa Senhora das Dores, no povoado de Juazeiro. Após uma exaustiva noite de orações e penitências oferecidas ao Santíssimo Sacramento, o padre Cícero Romão Batista (1844‐ 1934) decidiu encerrar a vigília ministrando a comunhão da Sagrada Eucaristia às pessoas que estavam com ele. A beata Maria Madalena do Espírito Santo de Araújo, ao receber o corpo de Cristo, viveu o milagre: a hóstia se transformou em sangue na sua boca. O fenômeno do sangramento ocorreu em quase todas as comunhões da beata a partir daquele momento, e pelo menos até o fim de 1891. Um grande fluxo de peregrinos passou a visitar o povoado de Juazeiro a partir de meados de 1889, quando as notícias sobre o fenômeno se espalharam pelas regiões vizinhas. Vinham romeiros de várias partes do Nordeste, mas principalmente de Alagoas, Pernambuco e Rio Grande do Norte. O jornal A Verdade, que circulava na capital, Fortaleza, noticiou em 18 de maio de 1891 que, nas celebrações da Semana Santa daquele ano, Juazeiro recebeu mais de 25 mil pessoas, um claro contraste com a população fixa da cidade, que não ultrapassava duas mil pessoas. Esses eventos chamaram a atenção da Diocese do Ceará, dirigida pelo bispo D. Joaquim José Vieira (1836‐1917). O eclesiástico abriu um processo episcopal e enviou ao vilarejo uma comissão formada pelos padres Clicério da Costa (1839‐1916) e Francisco Ferreira Antero (1855‐1929). No documento, há relatos da própria Maria de Araújo sobre o caso. Segundo ela, durante o milagre, foi tomada por uma “veemente dor, unida ao mesmo tempo a uma grande consolação da alma”. A partir daquele momento, ela acreditou ser a esposa fiel de Jesus, com a missão de “converter os pecadores, santificar as almas e liberar as almas do purgatório”. O processo também menciona a quantidade de sangue do episódio: “tanto que, além do que ela sorveu, parte caiu na toalha e parte caiu mesmo no chão”. Assim que chegaram à região, em setembro de 1891, os padres constataram que Juazeiro havia produzido mais milagres. Maria e oito beatas da região teriam experimentado outros supostos fenômenos milagrosos. Os relatos extraordinários de viagens espirituais, visões de santos e revelações proféticas dessas mulheres foram esquecidos pela “história oficial”, mas contribuíram para a construção da mística da cidade do sertão como um lugar sagrado, uma Nova Jerusalém. A Igreja de Nossa Senhora das Dores transformara‐se em palco de constantes manifestações do maravilhoso e lugar de adoração do Sangue Precioso de Cristo, que jorrava, inclusive, dos crucifixos. A jovem Maria de Araújo dizia ter visto diversas vezes coros de anjos, precedidos de Jesus e Maria entrando na Igreja do Juazeiro com tochas acesas e entoando cânticos. Em seus depoimentos à comissão, outras beatas forneceram imagens sagradas anunciadas durante os transes místicos. O ponto de partida dessas visões era, em geral, o derramamento de sangue. A beata Maria das Dores do Coração de Jesus (1876‐?), que tinha apenas 15 anos quando o inquérito foi instaurado, afirmou que certa vez “viu âmbula cheia de sangue a transbordar e derramar‐se por todo o altar, aparecendo então Nosso Senhor todo ensanguentado”. Em julho de 1890, Jahel Cabral (1860‐?) orava na capela do Juazeiro e também assistiu ao “mundo a sofrer uma grande

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    Beatas do almDepoimentos extraordinrios de religiosas convencem a cidade Juazeiro doNorte e at a diocese do Cear

    Edianne dos Santos Nobre

    13/1/2011

    Milhares de romeiros so atrados a Juazeiro do Norte, no sul do Cear, durante todo o ano paraobter curas fsicas e espirituais. Todos eles so motivados pelo chamado milagre da beata,uma histria que aconteceu no dia 6 de maro de 1889, primeira sextafeira da Quaresma, naIgreja de Nossa Senhora das Dores, no povoado de Juazeiro. Aps uma exaustiva noite deoraes e penitncias oferecidas ao Santssimo Sacramento, o padre Ccero Romo Batista (18441934) decidiu encerrar a viglia ministrando a comunho da Sagrada Eucaristia s pessoas queestavam com ele. A beata Maria Madalena do Esprito Santo de Arajo, ao receber o corpo deCristo, viveu o milagre: a hstia se transformou em sangue na sua boca.

    O fenmeno do sangramento ocorreu em quase todas as comunhes da beata a partir daquelemomento, e pelo menos at o fim de 1891. Um grande fluxo de peregrinos passou a visitar opovoado de Juazeiro a partir de meados de 1889, quando as notcias sobre o fenmeno seespalharam pelas regies vizinhas. Vinham romeiros de vrias partes do Nordeste, masprincipalmente de Alagoas, Pernambuco e Rio Grande do Norte. O jornal A Verdade, quecirculava na capital, Fortaleza, noticiou em 18 de maio de 1891 que, nas celebraes da SemanaSanta daquele ano, Juazeiro recebeu mais de 25 mil pessoas, um claro contraste com apopulao fixa da cidade, que no ultrapassava duas mil pessoas. Esses eventos chamaram aateno da Diocese do Cear, dirigida pelo bispo D. Joaquim Jos Vieira (18361917). Oeclesistico abriu um processo episcopal e enviou ao vilarejo uma comisso formada pelos padresClicrio da Costa (18391916) e Francisco Ferreira Antero (18551929). No documento, hrelatos da prpria Maria de Arajo sobre o caso. Segundo ela, durante o milagre, foi tomada poruma veemente dor, unida ao mesmo tempo a uma grande consolao da alma. A partirdaquele momento, ela acreditou ser a esposa fiel de Jesus, com a misso de converter ospecadores, santificar as almas e liberar as almas do purgatrio. O processo tambm menciona aquantidade de sangue do episdio: tanto que, alm do que ela sorveu, parte caiu na toalha eparte caiu mesmo no cho.

    Assim que chegaram regio, em setembro de 1891, os padres constataram que Juazeiro haviaproduzido mais milagres. Maria e oito beatas da regio teriam experimentado outros supostosfenmenos milagrosos. Os relatos extraordinrios de viagens espirituais, vises de santos erevelaes profticas dessas mulheres foram esquecidos pela histria oficial, mas contriburampara a construo da mstica da cidade do serto como um lugar sagrado, uma Nova Jerusalm. A Igreja de Nossa Senhora das Dores transformarase em palco de constantes manifestaes domaravilhoso e lugar de adorao do Sangue Precioso de Cristo, que jorrava, inclusive, doscrucifixos. A jovem Maria de Arajo dizia ter visto diversas vezes coros de anjos, precedidos deJesus e Maria entrando na Igreja do Juazeiro com tochas acesas e entoando cnticos. Em seusdepoimentos comisso, outras beatas forneceram imagens sagradas anunciadas durante ostranses msticos.

    O ponto de partida dessas vises era, em geral, o derramamento de sangue. A beata Maria dasDores do Corao de Jesus (1876?), que tinha apenas 15 anos quando o inqurito foi instaurado,afirmou que certa vez viu mbula cheia de sangue a transbordar e derramarse por todo oaltar, aparecendo ento Nosso Senhor todo ensanguentado. Em julho de 1890, Jahel Cabral(1860?) orava na capela do Juazeiro e tambm assistiu ao mundo a sofrer uma grande

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    tempestade, com pssaros de todas as qualidades e de todas as cores bebendo sangue contidoem uma grande caixa. As aves, segundo ela, representavam almas que beberiam a salvao nosangue de Nosso Senhor derramado naquele lugar.

    Para as beatas, o fenmeno fazia de Juazeiro um espao de natureza sagrada, um outro cu.E o prprio Jesus Cristo escolhera o lugar para sua segunda visita mstica ao mundo. A beataJahel chegou a profetizar, a partir dos primeiros milagres das hstias consagradas, que a Capelado Santssimo Sacramento da Igreja do Juazeiro seria como uma piscina, onde muitos selavariam assim na alma, como no corpo. Em outros depoimentos, o prprio Deus aparecia nafigura de um homem, ajoelhado diante da caixa de vidro onde estava depositado o pano quefora usado para enxugar a hstia ensanguentada e os estigmas de Maria de Arajo. Essasnarrativas s confirmavam a ideia de que a cidade do serto cearense era essencialmente umlocal de salvao, onde se repetia, por meio da experincia dessas beatas, a Paixo de Cristo.

    Os relatos de viagens ao alm transitando por cu, purgatrio e inferno tambm erammotivos recorrentes na experincia sagrada vivida pelas mulheres. Maria de Arajo afirmou caircomumente em xtases, ficando a derramar copioso sangue logo depois de sua prostrao naterra. O padre Quintino Rodrigues (18631929) disse ter acompanhado esses momentos em quea jovem libertava dali algumas almas com participao de suas penas; cumprindo notarse quenessas ocasies (...) derramava de seu corpo bastante sangue. Mais uma vez, otransbordamento do lquido vital, claramente associado ao culto eucarstico, ilustrava o processode purgao sofrido pelas almas atravs do corpo da beata.

    At mesmo os padres da comisso de investigao atestaram a inexistncia de qualquer embustenos fenmenos sobrenaturais ali manifestados. Para surpresa da diocese cearense, elesconcluram que as beatas eram almas levadas vida unitiva, significando assim que as beataslevavam uma vida de piedade exemplar e poderiam ser verdadeiros instrumentos divinos,capazes, portanto, de manifestar os fenmenos extraordinrios que afirmavam experimentar,incapazes de cometer atos de mf. D. Joaquim prontamente recusou esse veredicto, afirmandoque aquelas mulheres haviam armado truques to perfeitos que acabaram ludibriando osreligiosos.

    Em abril de 1892, uma nova comisso, liderada pelo padre Antnio Alexandrino de Alencar(18431903), encarregouse da investigao sobre os milagres de Juazeiro. Pressionado por umgrupo de sacerdotes, jornalistas e pessoas influentes da regio que acreditavam na divindade dosfenmenos, o bispo do Cear resolveu, em 1893, delegar Santa S a palavra final sobre oseventos ocorridos no serto do estado.

    No ano seguinte, a alta cpula da Igreja Catlica considerou os fenmenos vos esupersticiosos. Condenou as beatas recluso, proibiu as peregrinaes e ainda ordenou quetodos os escritos sobre aqueles acontecimentos fossem queimados, restando apenas uma cpia doprocesso , que est sob posse da Cria Diocesana do Crato, as cartas do padre Ccero e do padreAlexandrino. Tudo isso no impediu que o lugar, batizado com o sangue de Cristo, continuasse aatrair mais e mais fiis, e chegasse aos dias atuais como um dos grandes centros de romaria doBrasil.

    Edianne Nobre autora de Sangue e pecado na terra santa: as beatas do Cariry sob umaperspectiva de gnero (18801895). In. MARQUES, Roberto (org.). Os limites do gnero:estudos transdisciplinares. (Ceres Editora/Nere, 2006).

    Saiba Mais Bibliografia

    FORTI, Maria do Carmo Pagan. Maria do Juazeiro: A Beata do Milagre. So Paulo: Annablume,1999.

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    RAMOS, Francisco Rgis Lopes. O meio do mundo: territrios do sagrado em Juazeiro do PadreCcero. So Paulo: PUCSP, 2000. SARRIN, Adelina. Beatas y endemoniadas: mujeres heterodoxas ante la Inquisicin siglos XVI aXIX. Alianza Editorial: Madrid, 2003. Saiba mais Filme

    Milagre em Juazeiro, de Wolney Oliveira (Juazeiro, 1999).