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Estádio Greenpoint, construído para a Copa do Mundo de 2010 na Cidade do Cabo, África do Sul Cristina Kirchner em reunião da Comissão de Radiodifusão Democrática São Paulo, de 14 a 20 de janeiro de 2010 www.brasildefato.com.br Ano 7 • Número 359 Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 ISSN 1978-5134 De olho nas eleições, direita ataca direitos humanos e pressiona Lula O lançamento do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3) causou alvoroço entre militares e a oposição de direita ao governo. O ministro Nelson Jobim (Defesa) ficou ao lado dos militares, chamou o plano de revanchista” e ameaçou deixar o cargo. Já o ministro Paulo Vanucchi (Direitos Humanos) também expôs a possibilidade de sair caso as organizações de esquerda da época da ditadura viessem a ser investigadas. Com a reação de setores conservadores, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi pressionado e deve alterar alguns pontos do projeto. Para o jurista Fábio Konder Comparato, a principal motivação dos críticos ao programa é eleitoral, já que o governo FHC também lançou medidas parecidas. Págs. 2, 4 e 5 Espaço criado no auge do neoliberalismo para discutir a “verdade única” propa- gada em Davos, o Fórum Social Mundial chega à sua 10ª edição diante do desafio de buscar diferentes articu- lações entre seus membros numa nova ordem mundial. A análise é de Bernard Cas- sen, presidente de honra da Attac França. Pág. 7 Fórum Social Mundial enfrenta os seus limites O apartheid na distribuição de terras Mesmo após duas déca- das do fim do apartheid na África do Sul, a extrema de- sigualdade entre brancos e negros permanece. No cam- po, tal situação é evidencia- da pela grande concentração de terras que ainda persiste, como relata a repórter Ana Maria Amorim. A exclusão a que os negros foram sub- metidos por meio de leis que os expulsaram de seus terri- tórios vem sendo revertida muito lentamente pelos últi- mos governos. Atualmente, apenas 5% das terras foram redistribuídas. Pág. 12 Rafael Andrade/Folha Imagem A situação dos direitos humanos na Colômbia é a mais grave do hemisfério ocidental. A contundente afirmação é de quem viveu o drama na pele: Iván Ce- peda, porta-voz do Movi- mento de Vítimas dos Cri- mes de Estado (Movice). Em entrevista, ele denun- cia as constantes violações cometidas pelo governo do presidente Álvaro Uribe e o paramilitarismo, cujas vin- culações vêm saindo cada vez mais à luz. Pág. 9 Na Colômbia, o terrorismo de Estado de Uribe A nova lei de comunicação na Argentina, que destina 33% das licenças de rádio e TV para emissoras comu- nitárias, faz a direita atacar o governo Kirchner. Já a esquerda se articula para fazer valer a legislação, pois a lei concede a licença, mas não recursos para montar as emissoras. Pág. 10 Mídia argentina tenta manter seu monopólio Mortes como as ocorridas na virada Do ano no litoral do Rio de Janeiro são resul- tado de décadas de omissão por parte de governos. Por impulsos eleitoreiros, todo o planejamento urbano é deixado de lado e não se determinam quais regras servirão para ordenar as expansões urbanas. Desli- zamentos na Serra do Mar são parte integrante de sua dinâmica geológica, mas se intensificam com o “fator humano”. Pág. 3 Desastre em Angra revela oportunismo e descaso Em entrevista ao Bra- sil de Fato, o jornalista espanhol Pascual Serrano, um dos fundadores do meio alternativo Rebelión e autor do livro Desinfor- mación. Cómo los medios ocultan el mundo, explica os mecanismos utilizados pela grande mídia na mani- pulação dos fatos. Segundo ele, diante dessa realidade, a saída para a esquerda é criar veículos de comuni- cação próprios, em vez de esperar espaços na impren- sa comercial. Pág. 11 Contra a mídia manipuladora, revolucionar a comunicação Transporte precário e caro em SP Na cidade de São Paulo, o preço da tarifa passou de R$ 2,30 para R$ 2,70 no dia 4. É o segundo reajuste rea- lizado pelo prefeito Gilberto Kassab (DEM). Nas duas ocasiões, o índice superou a inflação do período. Pág. 6 O espaço e o instante das Revoluções Pág. 8 Escavadeira trabalha na remoção de terra e escombros no Morro da Carioca Nelson Antoine/Folhapress Presidencia de la Nación Argentina Reprodução Reprodução

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Transporte precário e caro em SP O lançamento do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3) causou alvoroço entre militares e a oposição de direita ao governo. O ministro Nelson Jobim (Defesa) ficou ao lado dos militares, chamou o plano de “revanchista” e ameaçou deixar o cargo. Já o ministro Paulo Vanucchi (Direitos Humanos) também expôs a possibilidade de sair caso as organizações de esquerda Pág. 8 Rafael Andrade/Folha Imagem Nelson Antoine/Folhapress Reprodução

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Estádio Greenpoint, construído para a Copa do Mundo de 2010 na Cidade do Cabo, África do Sul

Cristina Kirchner em reunião da Comissão de Radiodifusão Democrática

São Paulo, de 14 a 20 de janeiro de 2010 www.brasildefato.com.brAno 7 • Número 359

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

ISSN 1978-5134

De olho nas eleições, direita atacadireitos humanos e pressiona LulaO lançamento do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3) causou alvoroço entre militares e a

oposição de direita ao governo. O ministro Nelson Jobim (Defesa) ficou ao lado dos militares, chamou o plano de

“revanchista” e ameaçou deixar o cargo. Já o ministro

Paulo Vanucchi (Direitos Humanos) também expôs a

possibilidade de sair caso as organizações de esquerda

da época da ditadura viessem a ser investigadas. Com

a reação de setores conservadores, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi pressionado e deve alterar alguns pontos do projeto. Para o jurista Fábio Konder Comparato, a principal motivação dos críticos ao

programa é eleitoral, já que o governo FHC também

lançou medidas parecidas. Págs. 2, 4 e 5

Espaço criado no auge do neoliberalismo para discutir a “verdade única” propa-gada em Davos, o Fórum Social Mundial chega à sua 10ª edição diante do desafio de buscar diferentes articu-lações entre seus membros numa nova ordem mundial. A análise é de Bernard Cas-sen, presidente de honra da Attac França. Pág. 7

Fórum SocialMundialenfrenta osseus limites

O apartheid na distribuição de terrasMesmo após duas déca-

das do fim do apartheid na África do Sul, a extrema de-sigualdade entre brancos e negros permanece. No cam-po, tal situação é evidencia-

da pela grande concentração de terras que ainda persiste, como relata a repórter Ana Maria Amorim. A exclusão a que os negros foram sub-metidos por meio de leis que

os expulsaram de seus terri-tórios vem sendo revertida muito lentamente pelos últi-mos governos. Atualmente, apenas 5% das terras foram redistribuídas. Pág. 12

Rafael Andrade/Folha Imagem

A situação dos direitos humanos na Colômbia é a mais grave do hemisfério ocidental. A contundente afirmação é de quem viveu o drama na pele: Iván Ce-peda, porta-voz do Movi-mento de Vítimas dos Cri-mes de Estado (Movice). Em entrevista, ele denun-cia as constantes violações cometidas pelo governo do presidente Álvaro Uribe e o paramilitarismo, cujas vin-culações vêm saindo cada vez mais à luz. Pág. 9

Na Colômbia,o terrorismo deEstado de Uribe

A nova lei de comunicação na Argentina, que destina 33% das licenças de rádio e TV para emissoras comu-nitárias, faz a direita atacar o governo Kirchner. Já a esquerda se articula para fazer valer a legislação, pois a lei concede a licença, mas não recursos para montar as emissoras. Pág. 10

Mídia argentinatenta manterseu monopólio

Mortes como as ocorridas na virada Do ano no litoral do Rio de Janeiro são resul-tado de décadas de omissão por parte de governos. Por impulsos eleitoreiros, todo o planejamento urbano é deixado de lado e não se determinam quais regras servirão para ordenar as expansões urbanas. Desli-zamentos na Serra do Mar são parte integrante de sua dinâmica geológica, mas se intensificam com o “fator humano”. Pág. 3

Desastre emAngra revelaoportunismo e descaso

Em entrevista ao Bra-sil de Fato, o jornalista espanhol Pascual Serrano, um dos fundadores do meio alternativo Rebelión e autor do livro Desinfor-mación. Cómo los medios ocultan el mundo, explica os mecanismos utilizados pela grande mídia na mani-pulação dos fatos. Segundo ele, diante dessa realidade, a saída para a esquerda é criar veículos de comuni-cação próprios, em vez de esperar espaços na impren-sa comercial. Pág. 11

Contra a mídia manipuladora,revolucionar acomunicação

Transporte precário e caro em SPNa cidade de São Paulo, o preço da tarifa passou de R$ 2,30 para R$ 2,70 no dia 4. É o segundo reajuste rea-lizado pelo prefeito Gilberto Kassab (DEM). Nas duas ocasiões, o índice superou a inflação do período. Pág. 6

O espaço e o instante das Revoluções Pág. 8

Escavadeira trabalha na remoção de terra e

escombros no Morro da Carioca

Nelson Antoine/Folhapress

Presidencia de la Nación Argentina

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O golpe do ministro Jobim contra o presidente da República

COMO UM “CARMA” já desgraça-damente internalizado pela socie-dade brasileira, especialmente por suas autoridades públicas e privadas e por sua mídia, repetem-se anu-almente à época das chuvas mais intensas as tragédias familiares com terríveis mortes por soterramentos. A dor e o sofrimento causados por essas tragédias expressam uma crueldade ainda maior ao entender-mos que poderiam ser plenamente evitadas.

Há casos de edifi cações associa-das à classe média e à classe rica cometendo erros elementares na ocupação de relevos acidentados, e colhendo por isso consequências trágicas. Mas predominantemente os desastres mais comuns e fatais estão vinculados a escorregamentos em encostas de média a alta declivi-dades ocupadas habitacionalmente pela população pobre de nossas grandes e médias cidades, Rio, Be-lo Horizonte, São Paulo, Salvador, Recife, Petrópolis, Nova Friburgo, Campos do Jordão, Ouro Preto, Cubatão, Guarujá, Angra dos Reis, Caraguatatuba, enfi m, todas as cida-des brasileiras que de alguma forma avançam sobre regiões serranas tropicais.

A exemplo das enchentes, das que-das de barreiras em nossas estradas, dos rompimentos de barragens, dos diversos e cada vez mais comuns acidentes em obras de engenharia, tudo continua se passando como se defi nitivamente e estupidamente decidíssemos não considerar que nossas ações sobre os terrenos na-turais interferem numa natureza geológica viva, que tem história, leis, comportamentos e processos dinâmicos próprios; natureza geoló-gica que uma vez desconsiderada e desrespeitada responde procurando, à sua maneira, recompor-se dos de-sequilíbrios que lhe foram impostos. Os escorregamentos representam exatamente isso: a natureza geoló-gica procurando novas posições de equilíbrio.

Para uma mais precisa compre-ensão do problema e para o correto equacionamento de sua solução, é indispensável considerar separada-mente dois aspectos fundamentais, mas bem diversos, dessa questão; o fator técnico e o fator político-social-econômico.

Frente ao ponto de vista estri-tamente técnico, e aí se ressalta o descompromisso das administrações públicas e privadas envolvidas, vale afi rmar categoricamente que não há uma questão técnica sequer relacio-nada ao problema que já não tenha sido estudada e perfeitamente equa-cionada pela Engenharia Geotécnica e pela Geologia de Engenharia brasi-leiras, com suas soluções resolvidas

e disponibilizadas, tanto no âmbito da abordagem preventiva como da corretiva. Cartografi a Geotécnica (indicando as áreas que não podem ser ocupadas em hipótese alguma e as áreas passíveis de ocupação, uma vez obedecido um elenco de restri-ções e providências), tipologia de obras de contenção mais adequadas, projetos de ocupação urbana apro-priados a áreas topografi camente mais acidentadas, Cartas de Risco, metodologia e tecnologia de Planos de Defesa Civil e tudo o mais que se refere à questão são parte do ferramental que o meio técnico bra-sileiro abundantemente já produziu e disponibilizou à sociedade para o enfrentamento do problema.

No que concerne às componen-tes sociais, políticas e econômicas do problema, é essencial ter-se em conta que a população mais po-bre, compelida a buscar soluções de moradia compatíveis com seus reduzidos orçamentos, tem sido compulsoriamente obrigada a de-cidir-se jogando com seis variáveis, isoladas ou concomitantes: grandes distâncias do centro urbano, áreas de periculosidade, áreas de insalu-bridade, irregularidade imobiliária, desconforto ambiental, precariedade construtiva. Somem-se a isso lotea-dores inescrupulosos, total ausência da administração pública, inexistên-cia de infraestrutura urbana, falta de sistemas de drenagem e contenção e outros tipos de cuidados técnicos etc. Ficam assim diabolicamente atendidas as condições necessárias e sufi cientes para a inexorável recor-rência de nossas terríveis tragédias geotécnicas.

Ou seja, em que pese a necessida-de dos serviços públicos melhora-

rem em muito sua efi ciência técnica e logística no tratamento do proble-ma “áreas de risco”, não há como se pretender resolver essa questão somente através da abordagem técnica. A questão também remete pesadamente para a necessidade de programas habitacionais mais ousados e resolutivos, que consigam oferecer à população de baixa renda moradias próprias na mesma faixa de custos em que ela as encontra nas situações de risco geológico. Esses programas habitacionais po-deriam reunir virtuosamente dois casos técnico-sociais de compro-vado sucesso: o lote urbanizado e a autoconstrução tecnicamente as-sistida. A autoconstrução foi o mé-todo construtivo espontaneamente adotado pela própria população de baixa renda e que maior sucesso alcançou no atendimento de suas carências habitacionais, mesmo sem assistência técnica alguma ou qualquer outro tipo de apoio. Hoje, as periferias de nossas grandes ci-dades são verdadeiros oceanos de autoconstruções. Com certeza, um programa desse tipo, diferentemen-te dos programas mais clássicos, seria capaz de atender com habita-ções dignas e fora de áreas de risco, com razoável rapidez, centenas de milhares de famílias de baixa renda em todo o país.

Álvaro Rodrigues dos Santos é geólogo, ex-diretor de planejamento

e gestão do IPT e ex-diretor da divisão de geologia. Autor dos livros Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e

Prática, A Grande Barreira da Serra do Mar, Cubatão e Diálogos Geológicos. É consultor em geologia de engenharia,

geotecnia e meio ambiente.

debate Álvaro Rodrigues dos Santos

Vidas soterradascrônica Frei Gilvander Moreira

APROVEITANDO-SE das férias do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do recesso do Legislativo em todas as esferas, bem como do Judiciário – então à mercê apenas do seu presidente, doutor Gilmar Mendes – que dispensa apresenta-ções; aproveitando-se, sobretudo da desmobilização das organizações e movimentos da sociedade civil, no dia 30 de dezembro, o doutor Nelson Jobim desferiu seu golpe: fez vazar ou plantou (isto ainda não fi cou muito claro) através do jornal O Estado de S. Paulo, a notícia de que no dia 22 de dezembro, foi en-contrar o presidente da República na Base Aérea de Brasília para lhe entregar uma carta de demissão do cargo. Os três comandantes das Forças Armadas, em solidariedade ao ministro, decidiram que também deixariam os cargos, caso se concre-tizasse sua saída.

Lamentavelmente – para nós e todos os trabalhadores e o povo bra-sileiro – não houve um intermediário que recebesse as quatro cartas e encarnasse o papel do deputado Pe-droso Horta em 1961, quando da re-núncia do presidente Jânio Quadros, e consumasse a intenção do doutor Jobim.

O motivo que teria levado o mi-nistro ao gesto seria o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (3º PNDH), elaborado pelo ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), Paulo Vanucchi, feito público na véspera, em soleni-

dade ofi cial da qual participaram o presidente da República e diversos ministros.

“Quem brincava de princesa acostumou com a fantasia”

De acordo com o ministro Jobim, o PNDH3 é “revanchista”, por prever constituição da Comissão de Verdade e Justiça, que poderá encaminhar (dependendo de sua aceitação pela presidência; da manifestação do STF sobre o alcance da Lei de Anistia; e da aprovação do Programa pelo Congresso) a apuração e punição dos crimes cometidos contra os oposito-res do regime pós-1964 por agentes do Estado – a maioria dos quais, militares de diversas patentes, mas também voluntários civis organiza-dos em grupos clandestinos parami-litares.

Ou seja, atropelando as atribuições dos três poderes da República, o doutor Jobim tenta golpear, de uma só vez, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, e se impor como a luz suprema. Para tanto, acostumado aos carros alegóricos, pensa que pode tratar a República como qual-quer cocote da Belle Époque – uma Bela Otero ou uma Lianne de Pougy

– trataria um amante que não mais lhe conviesse, ou ao qual pretendesse chantagear. E foi assim que o minis-tro Jobim tratou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Em primeiro lugar, o doutor Jobim já conhecia o PNDH3 de há muito, pois esse plano foi discutido e apro-vado em 2008, na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos (CN-DH), como é praxe desde a constru-ção do PNDH1, ainda no governo do presidente Fernando Henrique Car-doso, cujo ministro da Justiça era o próprio doutor Jobim (Não, não ria, leitor – é verdade.).

As CNDHs são compostas de re-presentantes da sociedade civil e de instâncias governamentais. Na 11ª CNDH, o PNDH3 foi aprovado por 29 votos contra 2. E esses dois votos contrários foram exatamente dos dois representantes do Ministério da Defesa.

Ou seja, caso se tratasse de uma pessoa séria e leal, o ministro Nelson Jobim teria buscado negociar com o presidente antes do lançamento público do Programa, no dia 21 de dezembro, e/ou investiria no jogo democrático do julgamento pelo STF sobre o alcance da Lei de Anistia,

e/ou na votação no Congresso do PNDH3. Ou, pelo menos, esperaria o presidente voltar de suas curtas férias de festas de fi nal de ano para retomar a discussão.

Mas estas são atitudes de Ho-mens com H maiúsculo, o que certamente não é o caso dos que defendem torturadores, assassinos e todo tipo de celerados do período ditatorial, cuja impunidade rever-bera hoje nas diversas chacinas no campo contra os trabalhadores ru-rais, ou nas periferias das grandes cidades, como a de maio de 2006 (os chamados Crimes de Maio), quando agentes da repressão do Es-tado de São Paulo invadiram bair-ros das periferias e assassinaram ao esmo cerca de 500 pessoas. E esses crimes, nas cidades ou no campo, continuam impunes.

Assim como não defendem crimi-nosos, Homens com H maiúsculo (bem como Mulheres com M maiús-culo) não traem os governos a que servem.

“Bananeira não dá laranjaCoqueiro não dá caju”

Ora, mas o que esperar de um se-nhor que chega ao Ministério depois

de seus pares provocarem uma crise nos aeroportos que culminou com um dos maiores desastres aéreos do país, com um saldo de mais de 200 mortos

No dia 11, o presidente Lula vol-tou à ativa. Sua primeira declaração (ou, pelo menos, que lhe atribuiu a grande mídia comercial) a respeito da crise gerada pelo ministro Jobim, foi um tanto chocha – quiçá, decep-cionante.

Teria criticado igualmente o mi-nistro Jobim e o ministro Paulo Vanucchi por suas manifestações e teria sugerido substituir o termo “repressão” por “confl itos”. Ora, qualquer termo que nivele os agentes do terror de Estado da ditadura aos que a combatiam; que nivele o arri-vista e sem escrúpulos Nelson Jobim ao ministro Paulo Vannuchi – cuja biografi a e militância se têm pautado desde sempre pelo alinhamento às causas do povo, dos trabalhadores e da democracia – certamente serão intoleráveis para a sociedade civil, que prepara para o dia 14 um dia na-cional de luta em defesa do PNDH3 e da criação da Comissão de Verdade e Justiça – e, portanto, também do ministro Vanucchi.

Esperamos que o presidente tenha voltado de suas férias inspirado e que, a partir da nossa próxima edi-ção, possamos nos referir a um “ex-ministro da Defesa de nome Nelson Jobim, hoje presidente de uma em-presa multinacional de aviação ou de exploração do pré-sal”.

de 14 a 20 de janeiro de 20102

editorial

Fernão Lopes

Chuva não castiga ninguémNOS PRIMEIROS dias de janeiro, a população brasileira viu-se aterrori-zada por notícias nos grandes meios de comunicação, tais como: chuvas castigam o Estado do Rio de Janeiro, onde deslizamentos de encostas na Ilha Grande e na cidade de Angra dos Reis fi zeram centenas de vítimas, sendo mais de 50 mortos; chuvas em demasia castigam o Rio Grande do Sul, onde uma ponte sobre o rio Jacuí, na RS-287, desabou. Muitas pessoas que estavam sobre a ponte desapareceram. Várias pessoas foram resgatadas e outras continuam desaparecidas; chuva torrencial arrasou o conjunto urbanístico histórico de São Luis do Paraitinga, em São Paulo, onde inclusive uma igreja centenária desabou.

Estes são estragos provocados pelas mudanças climáticas, eufemis-ticamente consideradas pela mídia como “chuvas intensas” e compro-vadamente acima das médias regionais, em várias regiões do país. As notícias, acima referidas, deixam claro que não há como se sentir total-mente seguro em vista das mudanças climáticas em curso. Construções de concreto se derretem em vista da força das águas. Tudo o que era de concreto desmanchou como papel diante dos olhos perplexos da popula-ção. A conclusão a que chegamos é que não existe mais tecnologia 100% efi ciente e efi caz diante de tantas mudanças desmedidas nos fenômenos naturais. “Tudo o que era sólido se desmancha no ar”, já alertava Marx no Manifesto Comunista.

Se pensarmos bem, veremos que as notícias veiculadas da forma como referidas acima são grandes mentiras. Primeiro, porque a chuva é benfazeja, cai sobre justos e injustos (Mt 5,45), é refl exo da bondade de Deus, que é infi nito amor. Deus rega com a chuva a terra que deu como herança ao seu povo (I Rs 8,36). “Mandarei chuva no tempo cer-to e será uma chuva abençoada” (Ez 34,26), assim o profeta Ezequiel consola o povo em tempos de exílio e de escassez de chuva. A sabedoria do povo da Bíblia reconhece que Deus, solidário e libertador, “através a chuva alimenta os povos, dando-lhes comida abundante.” (Jó 36,31). Na Bíblia se fala de chuva mais de cem vezes. Até no dilúvio, a chuva é vista como purifi cadora (cf. Gênesis 6 a 9). Sob o império dos faraós no Egito, a chuva de granizo é vista como uma praga em cima dos opres-sores e como uma dádiva de Deus que liberta da opressão (cf. Gênesis 9 e 10).

A chuva não castiga e nem desabriga ninguém, apenas revela uma in-justiça socioeconômica e política existente anteriormente. Logo, quem castiga e desabriga, em última instância, é o sistema capitalista, que descarta as pessoas e as condena a sobreviverem em encostas e áreas de risco. Quem é atingido quando a chuva chega exageradamente, salvo exceções, são as famílias que tiveram seus direitos humanos – direito à moradia, ao trabalho, à educação, a um salário justo, ao meio ambiente equilibrado e à dignidade – desrespeitados pelo capitalismo neoliberal e por pessoas que adoram o deus capital, o maior ídolo da atualidade.

O falso evangelho capitalismo inicia-se assim: “No princípio está o capital. No meio está a concorrência, a competição. No fi m está a acumu-lação, a concentração de renda, de riqueza e de poder.” Capital é dinheiro investido para gerar mais dinheiro.

A Campanha da Fraternidade de 2010, com o tema Economia e Vida e com o lema “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24) propõe um evangelho para todo o povo e para toda a biodiversidade: No princípio está a vida. No meio, os meios necessários para efetivar a vida. No fi m, o bem-estar de todos e tudo. Não apenas a vida do ser humano e nem só de alguns, mas de todas as pessoas e de todos os seres vivos. Logo, urge construir uma sociedade sustentável, na qual a preservação dos bens naturais seja o carro-chefe, e não o crescimento econômico só para alguns.

Um desafi o inadiável é percebermos as relações entre as tempestades e o aquecimento global, entre o aquecimento global e o efeito estufa, entre o efeito estufa e a emissão de fases CO

2 e outros, entre a emissão

de gases CO2 e outros e o modelo industrial vigente (capitalismo neo-

liberal), entre o capitalismo neoliberal e a mentalidade ocidental con-quistadora, e a relação desta com o ser humano, seu Criador e todas as outras criaturas.

Logo, dizer que “a chuva castiga” é reducionismo que esconde o maior responsável por tanta dor e tanto pranto: o sistema capitalista.

Frei Gilvander Moreira é mestre em Exegese Bíblica, professor de Teologia Bíblia, assessor da CPT, CEBs, SAB e Via Campesina.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

Casas destruídas pelas chuvas e enchentes na Favela do Sapo, em São Paulo

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de 14 a 20 de janeiro de 2010 3

brasil

Área afetada por deslizamento de terra no Morro da Carioca, em Angra dos Reis (RJ), na véspera do ano novo

Rafael Andrade/Folha Imagem

Eduardo Sales de Lima da Redação

NO CENTRO DE Angra dos Reis (RJ), uma encosta ce-deu e deslizou por cima de casas no morro da Carioca. Na Ilha Grande, o desmoro-namento ocorrido por conta das chuvas encobriu a pou-sada Sankay, lotada de turis-tas, e mais sete casas, na en-seada do Bananal. Ao todo, 52 pessoas morreram na ma-drugada do dia 1º de janeiro de 2010.

Num primeiro instan-te, muitos culpariam (como culparam, de fato) as chu-vas torrenciais do réveillon. Mas, antes de analisar tais desastres, é preciso ter algu-mas informações básicas. Por exemplo: na Serra do Mar, o solo é naturalmente instável, as chuvas são recorrentes, e os deslizamentos de terra são comuns e aumentam com a ação humana.

Portanto, segundo especia-listas, mortes como as ocorri-das em Angra resultam de dé-cadas de omissão por parte de governos municipais e es-taduais, que minimizaram os impactos ambientais e huma-nos ao permitirem ocupações irregulares, sejam de famílias pobres, de classe média e ri-cas, sejam de empreendimen-tos turísticos. A situação é tão grave que, somente na praia Vermelha, em Ilha Grande, que pertence a Angra, foram mapeados cerca de 250 pon-tos com construções em áre-as de risco pelo Instituto Es-tadual do Ambiente (Inea).

Ou seja, em regiões como esta, em que os deslizamen-tos são parte integrante da dinâmica geológica natural, o solo ainda sofre com o “fator humano” de “instabilização” de uma encosta, que “é o cor-te que é feito no terreno pa-ra produzir um patamar pla-no a receber a edifi cação”, co-mo explica Álvaro Rodrigues dos Santos, geólogo, ex-di-retor do Instituto de Pesqui-sas Tecnológicas (IPT) e au-tor do livro A Grande Barrei-ra da Serra do Mar.

De acordo com ele, há uma série de outras ações associa-

das à ocupação urbana que contribui para a ocorrência de escorregamentos, como desmatamentos, cortes, con-centrações de drenagem su-perfi cial, fossas de infi ltra-ção, depósitos de lixo e ou-tros resíduos urbanos. “São verdadeiras tragédias anun-ciadas”, conclui.

Fato é que poucos municí-pios têm o mapeamento de áreas de risco, que são es-senciais à cidade que pre-tenda realmente ordenar sua expansão urbana. Se-gundo levantamento do jor-nal Folha de S. Paulo, das 10 mil casas já legalizadas pelas prefeituras locais da Baixa-da Santista e do litoral norte paulista, pelo menos metade desrespeita algum tipo de le-gislação e está em situação irregular.

Governos “gigolô”Angra (RJ) e Paraty (RJ),

entre outras cidades, experi-mentaram, a partir dos anos de 1970, um grande cresci-mento imobiliário por causa da conclusão da rodovia Rio-Santos. A partir de então, in-tensifi cou-se o processo de ocupações irregulares nes-sas cidades. E tem de tudo. Desde famílias pobres até os grandes empreendimentos turísticos.

Por razões eleitoreiras e fi nanceiras e pela omissão das administrações públicas, municipais e estaduais, dei-xam de lado o planejamen-to e não determinam regras claras para ordenar suas ex-pansões urbanas. Mesmo as-sim, o governo do Rio de Ja-neiro culpou a migração e a

ocupação desordenada da ci-dade do litoral sul do Esta-do e não citou que a ocupa-ção irregular também é fru-to de uma intensa especula-ção imobiliária.

A prefeitura quer sempre aumentar sua receita, sem que para isso invista em in-fraestrutura. “No Brasil, te-mos proliferação de ‘gigolô de pobre’, e isso às vezes se torna até cultura institucio-nal”, afi rma Roberto Smeral-di, diretor da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) Amigos da Terra. Como exemplo, ele ci-ta o fato de que, em 2009, a prefeitura de Angra cobrou da Usina Eletronuclear so-mente a pavimentação de es-tradas como modo de miti-gar os fl uxos migratórios que a empresa gera. “A vinda do pobre se torna oportunida-de para pedir contrapartidas que nada têm a ver com a si-tuação do pobre. Por acaso a prefeitura pediu algum in-vestimento da Eletronucle-ar em segurança, habitação, emprego etc.? Não, é royal-ties e asfalto”, dispara.

De acordo com Smeraldi, além da vista grossa por par-tes das diferentes instâncias governamentais em relação ao crescimento populacional nas áreas de risco, o incenti-vo das gestões públicas à per-manência nessas áreas é fo-mentado por interesses elei-toreiros. “O incentivo era ba-seado em estimular o pessoal a ocupar em troca de garantia política de perdão [da ocupa-ção irregular], com o qual se pleiteia o voto. Ou seja, tra-ta-se de uma fábrica de votos que tem sua origem no fato de colocar as pessoas em si-tuação de ilegalidade de ma-neira a obter vantagens polí-ticas”, aponta.

“Gigolô” eliteEnquanto os pobres são

“prostituídos” pelo “gigolô-governo”, as pessoas mais abastadas, por sua vez, ob-têm um afago menos danoso, mais identifi cado com a clas-se social de seus representan-tes. O decreto n° 41.921 da Área de Proteção Ambien-tal de Tamoios, que fl exibi-liza construções em áreas de encostas, foi assinado em ju-nho do ano passado pelo go-vernador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. “O decreto libera concessões nas áreas mais valorizadas da Ilha Grande e da sua baía, atendendo aos interesses da especulação imobiliária e co-

locando em risco todo o ecos-sistema da região. E só fi cou conhecido pela população co-mo um decreto ruim infeliz-mente devido a essa tragédia que tirou tantas vidas huma-nas”, afi rma o deputado esta-dual do Rio de Janeiro Ales-sandro Molon (PT). “O decre-to atendia a grandes interes-ses imobiliários e não se re-feria à ocupação de áreas por pessoas pobres”, conclui.

A ex-vereadora de Angra dos Reis Conceição Rhaba acrescenta um agravante ao bojo da política local para além do pagamento de propi-nas aos responsáveis pela fi s-calização das áreas de prote-ção ambiental na cidade e do decreto do governador Sér-gio Cabral. “Os próprios ve-readores são fi nanciados por empresas de material de construção”, revela.

Especular sempre Mesmo em um dos mo-

mentos mais tristes pelo qual Angra dos Reis já passou, há espaço para a omissão dos governos. “Já está ocorren-do a demolição das casas do centro da cidade. Mas não te-mos defi nição do governo se essas famílias vão ser reas-sentadas para as áreas pla-nas”, conta Conceição.

No centro da cidade, 120 casas devem ser demolidas. Outras 500 devem ser revis-tadas. Mais de 2 mil pessoas tiveram que abandonar suas residências. Umas foram pa-ra as casas de amigos ou pa-rentes ou estão nos abrigos do município.

Segundo Conceição, o go-verno dá um aluguel social de R$ 510, deixando que as famílias procurem sozinhas as novas casas, sem dar mais nenhum tipo de apoio. Ape-sar do desejo de deixarem os abrigos o mais rápido possí-vel, elas reclamam da difi cul-dade de encontrar um apar-tamento de até R$ 510. Por isso, Conceição acredita que falta, além da busca por re-cursos, capacidade de plane-jamento por parte do gover-no municipal. “Deve-se reas-sentar as famílias com infra-estrutura”, defende.

De acordo com Roberto Smeraldi, da ONG Amigos da Terra, o que ocorreu em An-gra dos Reis (RJ) poderia ter acontecido em milhares de outras regiões do Brasil, não somente no litoral. Cerca de 40 milhões de moradores pe-lo Brasil afora residem em áreas irregulares, como en-costas e várzeas.

da Redação

A ligação rodoviária en-tre Rio de Janeiro e Santos, concluída em 1971, criou um consenso entre engenheiros e geólogos. Ao se construir platôs de concreto para a estrada (extensões de terre-nos planos) que atravessa-vam áreas de taludes (incli-nações) com vegetação mui-to densa, houve o enfraque-cimento do terreno, devido à retirada da mata virgem e à sobrecarga do solo abaixo dos platôs. Isso causa des-lizamentos e facilita rompi-mentos do asfalto nas épocas de chuvas.

O geólogo Álvaro Rodri-gues dos Santos, ex-dire-tor do Instituto de Pesqui-sas Tecnológicas (IPT), ex-plica que, no caso das estra-das que atravessam terrenos da Serra do Mar, região onde os escorregamentos são par-te integrante de seu compor-tamento geológico natural, até antes da rodovia dos Imi-grantes (que liga a cidade de São Paulo à Baixada Santis-

ta) “adotou-se generalizada-mente a temerária concep-ção de estrada encaixada por cortes nas encostas”.

“Essa concepção se mos-trou desastrosa, e ainda por muito tempo nossas estradas assim foram construídas, co-mo via Anchieta, Rio-San-tos, via Dutra, Tamoios, Mo-gi-Bertioga etc., e vão pagar, pela constância de escorre-gamentos, um alto preço pe-la imprudência tecnológica (em parte justifi cada pelos parcos conhecimentos geo-lógicos e geotécnicos da épo-ca) cometida”, analisa.

De acordo com ele, o expe-diente técnico utilizado pa-ra não se tocar nas encostas instáveis foi o “privilégio da-do a túneis e viadutos”. O ge-ólogo defende que não se po-de aceitar que as construções de novas estradas na Serra do Mar, como as anuncia-das duplicações da via Dutra na Serra das Araras, da Rio-Santos, da Tamoios, come-tam os “absurdos erros an-tigos”. Segundo ele, tais vias devem “também se desen-volver basicamente por meio de túneis e viadutos”.

ImpactosEm relação à rodovia Rio-

Santos, Roberto Smeraldi, diretor da Organização da Sociedade Civil de Interes-se Público (OSCIP) Amigos da Terra, critica outra conse-quência dessa grande obra. Segundo ele, o impacto am-biental causado pela migra-ção humana após as conclu-sões da obra não foi levado em conta quando se fez o li-cenciamento ambiental para a construção da rodovia.

“A migração é o principal impacto de qualquer gran-de canteiro de obra, seja uma barragem, uma estrada, um porto, uma usina térmi-ca ou nuclear. Mas simples-mente não faz parte do li-cenciamento. Vejam os ter-mos de referência das usi-nas do rio Madeira: nada. E tem mais de 100 mil pessoas se mudando para lá”, desta-ca Smeraldi. A obra, segun-do ele, deveria compensar as consequências sociais e am-bientais que gera. (ESL)

Moda Praia 2010: caos habitacional

DESMORONAMENTOS Mortes em Angra dos Reis lançam luz sobre a omissão do Poder Público, a falta de planejamento urbano e o favorecimento à especulação imobiliária

“A vinda do pobre se torna oportunidade para pedir contrapartidas que nada têm a ver com a situação do pobre”

Rio-Santos, feita para desmoronarSegundo geólogo, projeto de construção da rodovia foi “desastroso” por “encaixar” o asfalto através de cortes nas encostas

“A migração é o principal impacto de qualquer grande canteiro de obra, seja uma barragem, uma estrada, um porto (...)”

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brasil

Direita raivosaO recente ataque da direita contra o

3º Plano Nacional de Direitos Huma-nos nasceu dentro do próprio governo federal e recebeu imediato respaldo dos setores mais conservadores da sociedade, do empresariado e da mídia neoliberal. Essa poderosa articulação já investiu contra direitos trabalhistas e sociais, movimentos populares, re-forma agrária, distribuição da renda e tudo que reduza a injustiça e a de-sigualdade. O que dá tanta força para essa direita?

Questão centralEmbora as críticas da direita ao 3º

Plano de Direitos Humanos sejam bem variadas (desde a descriminalização do aborto e a união civil entre pessoas do mesmo sexo até a reintegração da pos-se da terra e o imposto sobre grandes fortunas, passando pelo controle da mídia), o que pega mesmo é o esclare-cimento da tortura na ditadura civil-militar (1964-1985), que teve o envol-vimento direto das Forças Armadas e das polícias, com o apoio de muitos políticos e empresários.

Crise militarO jornalista e escritor Carlos Heitor

Cony, que foi preso político durante a ditadura, foi direto ao ponto em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo (12/01/2010): “A melhor forma de os militares pedirem perdão à sociedade é admitir os erros do passado e garantir que a distorção profi ssional não mais se repetirá”. O Brasil é o único país do Cone Sul que ainda não apurou, não esclareceu e não julgou os crimes de lesa-humanidade. Até quando?

Paralelo argentinoNão apenas no Brasil os setores de

direita atacam com ferocidade quando governos e sociedade tentam mexer nos pilares de sustentação do sistema e dos privilégios das elites: na Argenti-na, a presidente Cristina Kirchner está sendo bombardeada porque aprovou uma lei que democratiza a comunica-ção social e também porque substituiu o presidente do Banco Central. Lá, o julgamento de torturadores avança aos trancos – graças à vontade política do Executivo e do Judiciário.

Direita tucanaPara não deixar nenhuma dúvida

sobre a matriz ideológica do PSDB, o deputado federal Paulo Renato, ex-ministro da Educação e porta-voz do ex-presidente FHC, escreveu no seu boletim eletrônico: “Em certo senti-do, o Terceiro Programa dos Direitos Humanos reproduz no Brasil o que vem acontecendo em países vizinhos, onde a democracia tem sido golpeada através de ‘constituintes’ bolivarianas autoritárias”. Esta é a social-democra-cia brasileira?

Sufoco fi nanceiroDados da Federação do Comércio

do Estado de São Paulo constatam que 53% das famílias que ganham até três salários mínimos por mês fecharam o ano de 2009 com dívidas em atraso. Em dezembro de 2008, o índice de inadimplência para essa faixa de renda atingia 41% das famílias; em dezembro de 2007, apenas 34% das famílias. Ou seja: a melhoria do salário mínimo não tirou as famílias de baixa renda do su-foco fi nanceiro.

Fantasia midiáticaConhecida como porta-voz dos seto-

res mais reacionários das elites brasi-leiras, a revista Veja, da Editora Abril, continua inventando histórias para criminalizar os movimentos sociais do campo. Agora, numa matéria denomi-nada “Predadores da fl oresta”, a revista inventou uma ocupação inexistente do MST no município de Tailândia, no Pará. Na verdade, a destruição naquela região, constatada pela Polícia Federal, é de madeireiros e latifundiários.

Deficit trabalhistaEm artigo publicado na revista Car-

ta Capital, o professor e pesquisador Waldir Quadros, da Unicamp, analisa a situação do mercado de trabalho no Brasil e constata que, de 2004 a 2008, o PIB cresceu 25,9%, enquanto “a ex-pansão das oportunidades individuais para se obter uma ocupação foi de ape-nas 13,5%”. E assim mesmo a geração maior de empregos ocorreu na base da pirâmide, na faixa de um a dois salá-rios mínimos.

Justiça parcialIncluída na lista suja da fi scalização

do Ministério do Trabalho, a Cosan – principal grupo usineiro de álcool e açúcar – conseguiu se livrar da acusa-ção de prática do trabalho escravo por decisão judicial. Mais uma vez o Judi-ciário livra a cara de uma empresa sem resolver o problema em questão. Tudo para que a Cosan possa sacar o gordo fi nanciamento obtido junto ao BNDES. Este é o jeitinho brasileiro!

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Polícia reprime manifestação contra o aumento da tarifa dos ônibus em São Paulo

Nelson Antoine/Folhapress

Michelle Amaralda Redação

NO PRIMEIRO DIA útil deste ano, passou a vigorar na cidade de São Paulo o novo valor da passagem de ônibus municipal. O aumento apli-cado pela prefeitura fez com que a tarifa passasse de R$ 2,30 para R$ 2,70, um reajuste de 17,4%.

O anúncio do aumento das pas-sagens foi feito pelo prefeito Gil-berto Kassab (DEM) em outubro de 2009, a princípio sem revelar o quanto aumentaria. O reajuste só foi confi rmado pelo democra-ta no dia 20 de dezembro. Segun-do nota da prefeitura, o aumen-to “corresponde apenas à defasa-gem provocada pela infl ação des-de novembro de 2006, quando foi feito o último reajuste”.

Durante a gestão de Kassab, esta é a segunda vez que a tari-fa dos ônibus municipais é re-ajustada. O primeiro aumento foi no fi nal de 2006, quando de R$ 2,00 passou a R$ 2,30 – rea-juste de 15%. Nas duas ocasiões, o índice superou a infl ação do pe-ríodo: no primeiro reajuste, de 15%, a infl ação segundo o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) foi de aproximadamente 7%, em relação a março de 2005 e novembro de 2006; no aumento deste ano, de 17,4%, o IPCA foi de 15,36%, entre novembro de 2006 e dezembro de 2009.

ImpactoRafael Pacchiega, militante do

Movimento Passe Livre (MPL-SP) e da Rede contra o Aumento da Tarifa, chama a atenção para o im-pacto que esse aumento trará à po-pulação que depende do transpor-te público. “As pessoas têm difi cul-dade de pagar a passagem do ôni-bus, muitas não utilizam o trans-porte de forma ampla, como para lazer e cultura, e outras não conse-guem pagar as tarifas e acabam se locomovendo a pé. O impacto [do aumento] é claro”.

Dados da Pesquisa de Orça-mentos Familiares (POF) 2002-2003 do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE) mostram que o transporte ocupa o terceiro lugar na relação de gas-tos das famílias brasileiras. “Para famílias mais pobres, o transpor-te chega a ser o segundo maior gasto, depois de despesas com moradia, como pagamento de aluguel”, completa Pacchiega.

Com o reajuste das passagens dos ônibus municipais, o valor da integração feita com o metrô também aumentou, de R$ 3,65 para R$ 4,00. Para os trabalha-dores que não dispõem de vale-transporte, caso dos autônomos e das pessoas sem registro em car-teira de trabalho, e que depen-dem de ônibus e metrô para se locomoverem, se utilizarem, em média, duas integrações por dia, terão gasto mensal de R$ 240, o que representa quase a meta-de do salário mínimo, que é de R$ 510 desde o dia 1º.

A despesa com transporte pú-blico dos paulistanos ainda de-verá aumentar nos próximos me-ses, já que a Companhia do Me-tropolitano de São Paulo (Metrô), a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e em-presas de ônibus intermunicipais anunciaram que também reajus-tarão o valor de suas tarifas.

ContradiçõesEm entrevista a uma rádio pau-

lista, Kassab disse que “o ide-al é que o transporte público fos-se gratuito”, mas completou de-fendendo que na capital paulista o valor da tarifa “é comparativa-mente barato”. Mas, em relação às outras capitais brasileiras, São Paulo passa a fi gurar entre os va-lores mais altos de tarifas de ôni-bus, atrás somente de Florianópo-lis (SC), cuja tarifa é de R$ 2,80.

Rafael Pacchiega critica a for-ma como a administração de Kas-sab trata o transporte público, a partir de uma concepção fi nan-ceira. “Lidar com o transporte co-mo questão econômica não é li-dar com o transporte como um direito”, conta.

O engenheiro Lúcio Gregori, que foi secretário de transportes

entre 1990 e 1992, durante a ges-tão da prefeita Luiza Erundina (então no PT), afi rma que o cál-culo da prefeitura para se chegar ao reajuste deveria ser discutido e levado para a aprovação de um conselho integrado por entida-des econômicas, como a Funda-ção Instituto de Pesquisas Eco-

nômicas (Fipe) e a Fundação Ge-túlio Vargas (FGV), os sindica-tos da categoria e representantes da sociedade civil. “Caso contrá-rio, a tarifa, que é um preço pú-blico, na verdade resulta de um cálculo ao qual a sociedade não tem acesso e nem pode interfe-rir”, resume.

Ônibus em São Paulofica ainda mais caroTRANSPORTE Serviço, que já é o terceiro maior no orçamento familiar, sobe acima da infl ação

da Redação

O Movimento Passe Livre e a Rede contra o Aumento da Ta-rifa têm organizado ações para enfrentar o reajuste da tarifa de ônibus em São Paulo desde ou-tubro de 2009, quando o au-mento foi anunciado pelo pre-feito Gilberto Kassab (DEM).

No dia 26 de outubro, inte-grantes do MPL se acorrenta-ram em frente à Secretaria Mu-nicipal de Transportes para ma-nifestar seu descontentamen-to com o aumento das tarifas de ônibus. Além disso, o movimen-to tem realizado panfl etagens e atos nos terminais do Campo Limpo e Parque Dom Pedro.

Com a efetivação do reajus-te, no dia 4 de janeiro, quando a tarifa passou de R$ 2,30 para R$ 2,70, o movimento passou a intensifi car a luta contra a me-dida da administração munici-pal. Até o mês de fevereiro, o MPL realizará manifestações to-das as quintas-feiras à tarde no centro de São Paulo, partindo do Teatro Municipal em direção ao Terminal Parque Dom Pedro.

RepressãoNa primeira dessas manifesta-

ções, realizada no dia 7, os ma-nifestantes sofreram forte re-

pressão da Polícia Militar (PM), que impediu o acesso dos mani-festantes ao terminal de ônibus. Quatro manifestantes foram de-tidos e outros foram feridos e ti-veram de ser hospitalizados.

Segundo Lucas Monteiro, mi-litante do MPL e integrante da Rede contra o Aumento da Ta-rifa, o confronto com a PM co-meçou quando os manifestan-tes tentaram entrar no terminal. “Conseguimos ir até a entrada [do terminal], uma parte [dos manifestantes] entrou. Aí a PM veio com cassetete, spray de pi-menta, bala de borracha e bom-ba de efeito moral”, relata. Du-rante a ação, um policial chegou a sacar sua arma de fogo.

Pressão popularDe acordo com Rafael Pac-

chiega, integrante do MPL e da Rede, o objetivo das ações é mo-bilizar a população contra o re-ajuste da tarifa e, dessa forma, fazer com que a pressão popu-lar chegue até o Ministério Pú-blico e os vereadores. “A inten-ção é conseguir que o Ministé-rio Público e os vereadores se posicionem perante a popula-ção sobre o aumento”, detalha. Assim, Pacchiega acredita que possa haver uma “ação através do Ministério Público contra o aumento”.

Para Pacchiega, na administra-ção de um serviço que deveria ser público, “a prefeitura acaba as-sumindo a posição das empre-sas privadas”, por isso a popula-ção não participa das resoluções do transporte, como o aumento da tarifa. Além do reajuste, o or-çamento de Kassab para 2010 in-clui R$ 360 milhões a serem re-passados às empresas de trans-porte na forma de subsídios.

Lucas Monteiro, militante do MPL, pondera que “enquanto a lógica do transporte público for de transporte pago mediante ta-rifa, os aumentos vão continuar acontecendo sempre”. Ele expli-ca que o transporte coletivo é um direito básico da população e de-veria ser tratado como um serviço público e gratuito.

MPL articula manifestações contra o aumento

O militante conta que a Rede baseia sua conduta no que foi alcançado em outras duas ca-pitais brasileiras contra o rea-juste da tarifa de ônibus através da pressão popular. Em Floria-nópolis (SC), em 2004 e 2005, através de mobilizações realiza-das pelo MPL e a população, o aumento foi barrado por meio de ação do Ministério Público. Em Vitória (ES), após um mês de mobilizações, conseguiram derrubar o reajuste.

Monteiro, no entanto, pon-dera que o resultado das ações na capital paulista “depende de qual vai ser a capacidade da Re-de de fazer pressão política con-tra o governo para barrar o au-mento”. Segundo ele, “agora a perspectiva é bem melhor que em 2006” – em que as mani-festações realizadas não con-seguiram impedir o reajuste –, porque há o mês de janeiro pa-ra ampliar o debate e o início das aulas em fevereiro, quando espera-se que, através dos es-tudantes, ocorra um fortaleci-mento das mobilizações.

Movimento acredita que, com pressão popular, seja possível motivar uma ação pelo Ministério Público para barrar o reajuste

“Conseguimos ir até a entrada [do terminal], uma parte [dos manifestantes] entrou. Aí a PM veio com cassetete, spray de pimenta, bala de borracha e bomba de efeito moral”

Em entrevista a uma rádio paulista, Kassab disse que “o ideal é que o transporte público fosse gratuito”, mas completou defendendo que na capital paulista o valor da tarifa “é comparativamente barato”

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brasil

Bernard Cassen

NESTE PEQUENO escritó-rio do Le Monde Diplomati-que em Paris, onde, no dia 16 de fevereiro de 2000, foram lançadas as bases do que vi-ria a ser o Fórum Social Mon-dial (FSM), nenhum dos pre-sentes (além do autor destas linhas, na época diretor geral do jornal e presidente da AT-TAC França, Chico Whitaker e Oded Grajew, respectiva-mente secretário da Comis-são Justiça e Paz da Confe-rência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB e dirigen-te da Associação Brasileira de Empresários pela Cidada-nia - CIVES, assim como su-as senhoras) poderia imagi-nar que um novo ator da vida política internacional iria as-sim entrar em cena. Tudo foi muito rápido, pois o primei-ro FSM aconteceu um ano depois, em Porto Alegre.

Essa rapidez na passagem da ideia à ação foi uma notá-vel proeza do comitê de orga-nização brasileiro que tinha se constituído para a circuns-tância. Em um artigo publica-do em agosto de 2000 (“Da-vos? Não, Porto Alegre”, Le Monde Diplomatique, agos-to de 2000) e que contribuiu de maneira decisiva para cre-dibilizar e lançar internacio-nalmente o futuro Fórum, Ig-nacio Ramonet escrevia: “Em 2001, Davos terá um concor-rente muito mais representa-tivo do planeta tal como ele é: o Forum Social Mundial, que se reunirá na mesma da-ta [de 25 a 30 de janeiro] no hemisfério sul, em Porto Ale-gre”. Ele acrescentava, a par-tir dos elementos de que dis-punha naquele momento, que era esperado “entre 2 e 3 mil participantes, portadores das aspirações de suas res-pectivas sociedades”. Mas, para surpresa geral, mais de 20 mil delegados se encon-traram seis meses depois na capital gaúcha.

AntineoliberalismoA reação anti-Davos tinha

contado plenamente nessa mobilização. A proximidade voluntária do título dos dois fóruns – Fórum Econômico Mundial ou World Economic Forum (WEF) para Davos e Fórum Social Mundial para Porto Alegre – e a deliberada simultaneidade das datas dos dois agrupamentos tinham constituído grandes trun-fos midiáticos. O fundador e presidente do Fórum de Da-vos, Klaus Schwab, constatou isto amargamente, se quei-xando do “desvio negativo” do renome do WEF.

Simbolizando a potência e a arrogância da fi nança, o desprezo pela democracia e pela sociedade, Davos consti-tuia um alvo perfeito para os movimentos sociais e cida-dãos. Já em janeiro de 1999, em plena sessão do WEF, vá-rias entidades, entre elas o

O FSM no rumo de uma viradaANÁLISE Ascensão de governos oriundos de movimentos populares impõe a busca de novas formas de articulação entre membros do Fórum

Fórum Mundial das Alnativas (FMA) e a ATTACnham organizado um senário de dois dias em Zch, seguido de uma confercia de imprensa sobre o tede “Outro Davos”, numa tação de ski suíça. Qualqmanifestação era com efpraticamente impossível suas ruas estreitas e com ve em razão do controle pcial e militar.

É contra tudo o que repsentava Davos que se defiram os primeiros FSM, ma postura de denúncianeoliberalismo e de resistcia aos seus malefícios. Ese situavam igualmente coum prolongamento dos cobates zapatistas (em partlar do Encontro Intergaláde Chiapas de 1996); da lvitoriosa, em 1998, contrAcordo Multilateral sobrevestimentos (AMI), prepado em segredo pela Organção de Cooperação e Desvolvimento Econômico (ODE), cujo texto o Le MoDiplomatique tornou púbna França; e, evidentemte, da grande mobilizaçãoSeattle contra a OrganizaMundial do Comérico (OMem dezembro de 1999.

PropostasEm uma segunda eta

os fóruns tornaram-se mpropositivos, o que se tralexicalmente pelo abanddo termo “antimundialismem proveito de “altermdialismo”. Ou seja, a passa-gem da refutação à proposi-ção, o que correspondia me-lhor à palavra de ordem dos fóruns: “Um outro mundo é possivel”. Essa evolução se efetua sem nenhuma mo-difi cação das regras de fun-cionamento do FSM, codi-fi cadas na Carta de Princí-pios elaborada em junho de 2001. Nesse documento de referência, o Fórum é defi -nido como um espaço e co-mo um processo, e absoluta-mente como não sendo uma entidade. Trata-se de prepa-rar um lugar de trocas, de di-álogo, de elaboração de pro-posições, de implementação de estratégias de ação e de constituição de coalizões de todos os atores sociais que recusem a globalização li-beral. Mas cada uma dessas iniciativas engaja somente as organizações que querem se implicar nelas, e não o con-junto das organizações pre-sentes no Fórum.

O FSM não assume posi-ções enquanto tal, não há “comunicado fi nal” de su-as reuniões. Existem so-mente textos adotados fora do FSM, mas não textos do FSM nem de suas declina-ções continentais (como os

nas de proposições foram as-sim adiantadas (mais de 350 somente no Fórum de Porto Alegre, em 2005), mas sem nenhuma hierarquia nem ar-ticulação entre elas. Tudo o que infringia o principio de “horizontalidade” (todas as proposições têm um estatu-to equivalente) e tudo o que aparecia como “vertical” (por exemplo, uma plataforma es-tabelecendo coerência entre diferentes proposições com-plementares, mas espalha-das) foi combatido por uma fração infl uente dos organiza-dores brasileiros dos fóruns e dirigentes de ONGs que viam aí o início de um programa político, ou a criação mesmo de uma nova Internacional!

É assim que o Manifes-to de Porto Alegre, base de 12 proposições – resultado de debates, fazendo ao mes-mo tempo sentido e proje-to – apresentadas em Porto Alegre em 29 de janeiro de 2005 por 19 intelectuais dos quatro continentes (entre os quais dois Prêmio Nobel), foi criticado em seu princípio por numerosos guardiões autoproclamados da ortodo-xia do “Fórum”. Uma sor-te idêntica foi ulteriormen-te reservada, pelos mesmos,

ao Chamado de Bamako, do-cumento programático com vocação planetária, redigido após um encontro organiza-do pelo Fórum Mundial das Alternativas, que havia reu-nido 200 intelectuais e re-presentantes de movimen-tos sociais, a maioria da Áfri-ca e da Ásia, nas vésperas do FSM descentralizado realiza-do na capital do Mali em ja-neiro de 2006.

Em aplicação da leitura ri-gorosa que fazem alguns da Carta de Princípios de 2001, os fóruns seriam assim con-denados a apresentar, em uma ordem dispersa, uma quantidade imensa de pro-posições de importância de-siguais às estruturas da or-dem dominante, que, dos go-vernos às instituições mul-tilaterais (Fundo Monetário Internacional, Banco Mun-dial, OMC, OCDE), sem falar

da Comissão Europeia, fa-zem, elas sim, prova de uma coesão sem falha na imposi-ção dos dogmas liberais.

Um passo à frenteEssa recusa voluntária de

pensar coletivamente, a par-tir de uma plataforma inter-nacional comum, sobre os atores do campo político, fi -cando fora da esfera eleito-ral, explica o desgaste da fór-mula dos FSM. E isso apesar de continuarem a reunir de-zenas de milhares de parti-cipantes locais, vindos fre-quentemente por curiosida-de, como foi o caso de Bélem, em janeiro de 2009. Muitos militantes se interrogam so-bre os resultados políticos concretos desses encontros e sobre a maneira pela qual eles podem contribuir para a ascensão de um “outro mun-do possível”.

20 mil pessoas foram a Porto Alegre

do primeiro FSM

Quanto

É contra tudo o que representava Davos que se defi niram os primeiros FSM, numa postura de denúncia do neoliberalismo e de resistência aos seus malefícios

Em uma segunda etapa, os fóruns tornaram-se mais propositivos, o que se traduz lexicalmente pelo abandono do termo “antimundialismo” em proveito de “altermundialismo”

As coisas se complica-ram com a chegada ao po-der, na América Latina (Bolí-via, Equador, Paraguai e Ve-nezuela), de governos pro-cedentes de movimentos po-pulares, colocando concre-tamente em ação, evidente-mente com altos e baixos, po-líticas de ruptura com o neo-liberalismo – tanto em nívelnacional como internacional– tais como as apresentadasnos fóruns. Qual atitude ado-tar em relação a eles? É pre-ciso ser solidários a eles, queisso fosse feito caso a caso?Ou então fi car de braços cru-zados e olhar para outro lu-gar, com o pretexto de que setratam de governos, logo, poressência, suspeitos, e por es-sas razões é preciso manterdistância.

Esse comportamento re-mete a uma ideologia liber-tária difusa, mas muito pre-sente em numerosas organi-zações. Ela foi teorizada par-ticularmente por John Hollo-way, em um obra de título ex-plícito: Mudar o mundo sem tomar o poder (Boitempo, São Paulo, 2003). A palavrapoder é, aliás, ausente do vo-cabulário de numerosos ato-res, salvo para ser estigma-tizada, muito frequentemen-te em reação às derivas tota-litárias dos Estados-partidos.Em revanche, supõem-se queo contrapoder e a desobedi-ência civil são as alavancasprivilegiadas da transforma-ção. Uma tal postura torna-se difi cilmente sustentável quando, por exemplo, na oca-sião da Conferência de Cope-nhague, a Aliança Bolivarianapara os Povos de Nossa Amé-rica (Alba), que agrupa noveEstados latino-americanos edo Caribe, toma posições queconvergem com as das coali-zões de ONGs, exigindo a jus-tiça climática, e coloca dire-tamente em questão o capi-talismo.

Pós-altermundialismoO novo contexto interna-

cional vai impor, e isso tam-bém para a concepção dosfóruns sociais, a procura denovas formas de articulaçãoentre movimentos sociais,forças políticas e governosprogressistas. Uma palavrafoi proposta para caracteri-zar essa evolução: o pós-al-termundialismo, que nãosubstitui o altermundialis-mo, mas constitui um ou-tro agrupamento possível.No Fórum de Bélem, pude-mos ver um primeiro esbo-ço dessa iniciativa pós-alter-mundialista no diálogo en-tre quatro presidentes lati-no-americanos – Hugo Chá-vez (Venezuela), Rafael Cor-rea (Equador), Fernando Lu-go (Paraguai) e Evo Mora-les (Bolívia) – e representan-tes de movimentos sociais dosubcontinente.

Este diálogo vai se aprofun-dar com a participação cres-cente de chefes de Estado (co-mo, sem dúvida, a do presi-dente Lula) por ocasião do fó-rum social temático da Bahia,previsto para Salvador en-tre os dias 29 e 31 de janeiro(o Brasil também sedia, en-tre os dias 25 e 29 de janeiro, na Grande Porto Alegre, o Fó-rum Social Mundial 10 anos).Ela deverá se prolongar nopróximo FSM de Dakar (Se-negal) em 2011. Em uma reu-nião preparatória organizadana capital senegalesa em no-vembro de 2009, os movi-mentos sociais do continen-te exprimiram a vontade defazer evoluir o FSM. Vieramao debate formulações comoa da necessidade de fazer dele“um espaço de alianças comcrédito”, e não “um mercadoda sociedade civil”, para “de-fi nir uma nova relação com os atores políticos” com vistas à“construir uma alternativa”.É na África que certamente seconsolidará a necessária vi-rada “pós-altermundialista”dos fóruns sociais.

Bernard Cassen é presidente de honra da ATTAC França

e secretário geral da Mémoire des Luttes.

Tradução: Douglas Estevam

As coisas se complicaram com a chegada ao poder de governos procedentes de movimentos populares, colocando em ação políticas de ruptura com o neoliberalismo

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Prisioneiros sobreviventes de Canudos

Milicianos e milicianas no front em 1936

Título: Revoluções

Título Original: Révolutions

Autor: Michael Löwy (org.)

Posfácio: Michael Löwy

Tradutor: Yuri Martins Fontes

Páginas: 552

Ano de publicação: 2009

Preço: R$ 68,00

Serviço

de 14 a 20 de janeiro de 20108

cultura

População tenta trocar dinheiro por ouro em Xangai, 1948

José Arbex Jr.

VOCÊ JÁ IMAGINOU como eram, fi sicamente, os parti-cipantes da Comuna de Paris (1871)? Ou como era a capital francesa naquela época, como as pessoas se vestiam, qual a aparência dos prédios, mo-numentos e vias públicas que serviram de cenário aos gran-des momentos do “assalto aos céus”? Tudo isso fi cou regis-trado como fotografi a, e ago-ra está à disposição dos leito-res brasileiros, no livro Revo-luções, organizado por Michel Löwi e editado pela Boitempo (São Paulo). Lançada em Pa-ris no ano 2000, a primeira edição foi rapidamente esgo-tada, relata Luiz Bernardo Pe-ricás, e não sem motivo: trata-se de uma fantástica pesquisa histórica e iconográfi ca, que abarca até a revolução cubana (1953-1967). Felizmente para o leitor brasileiro, o tratamen-to editorial dado pela Boitem-po é primoroso.

Basta percorrer o índi-ce da obra para termos uma ideia de sua importância e extensão: além da Comuna de Paris, somos brindados com fotos de cenas e pesso-as que participaram das se-guintes revoluções: Russa (1905), Russa (1917), Hún-gara (1919), Alemã (1918-19), Mexicana (1910-20), Chinesa (1911-49), Espanhola (1936) e a já mencionada cubana.

O leitor mais atento notará que não estão na relação al-guns movimentos extrema-mente importantes, como a Revolução Húngara (1956) e as lutas de libertação nacio-nal (por exemplo, na Indo-china e na Argélia). O crité-rio para a seleção é explica-do numa página de “adver-tência”, logo no início do li-

Revoluções em

fotografia

RESENHA Livro de Michel Löwi traz a sensação de que a própria história se desenvolve diante de nossos olhos

vro: “Por uma questão de co-erência, escolhemos as revo-luções ‘clássicas’, revoluções sociais de inspiração iguali-tária que visavam distribuir as terras e riquezas, abolir as classes e entregar o poder aos trabalhadores. [...] Portanto, fomos obrigados a deixar de lado outros movimentos re-volucionários não menos im-portantes: as revoluções de-mocráticas, antiburocráticas e antitotalitárias. [...] O últi-mo capítulo passa em revis-ta uma série de eventos re-volucionários – distintos, em certa medida, das revoluções no sentido pleno do termo – dos últimos 30 anos: Maio de 1968, a Revolução dos Cra-vos em Portugal (1974-1975), a Revolução Nicaraguense (1978-1979), a queda do Mu-ro de Berlim (1989) e a suble-vação zapatista de Chiapas (1994-1995)”.

Cada revolução coberta pe-lo livro é comentada por um especialista, que trata de con-textualizar os acontecimentos e permitir uma leitura críti-ca das fotos. Temos, então, a sensação de que a própria his-tória se desenvolve diante de nossos olhos. Mas o valor do-cumental da fotografi a é dis-cutido por Löwi, no capítu-lo introdutório, fazendo eco a um complicado debate entre historiadores. Até que ponto a fotografi a pode e deve ser aceita como um “registro da história”?

“É claro que as fotografi as não podem substituir a his-toriografi a, mas elas captam o que nenhum texto escrito pode transmitir: certos ros-tos, certos gestos, certas si-tuações, certos movimen-tos. A fotografi a possibilita que se veja, de modo concre-to, o que constitui o espírito único e singular de cada re-volução. Alguns críticos ne-gam o valor cognitivo das fo-tografi as de acontecimentos. Por exemplo, o grande teóri-co do cinema Siegfried Kra-cauer tinha convicção de que a foto não permite conhecer o passado, mas somente a ‘confi guração espacial de um instante’. (...) Esse ponto de vista me parece discutível. É verdade que a fotografi a não pode substituir a narrativa histórica, mas isso não a im-pede de ser um instrumen-to insubstituível de conhe-cimento histórico, que tor-na visíveis aspectos da rea-lidade que frequentemente escapam aos historiadores.”

Para além do debate teóri-co sobre o valor documental da fotografi a, o livro oferece, no mínimo, o prazer propor-cionado pelo acesso a cenas que, até então, faziam par-te unicamente do universo imaginário e algo mitológi-co das revoluções. Se fosse apenas por isso, sua leitura já valeria muito a pena.

José Arbex Jr. é jornalista, professor da Pontifícia

Universidade Católica (PUC/SP) e doutor em História pela

Universidade de São Paulo (USP).

“É claro que as fotografi as não podem substituir a historiografi a, mas elas captam o que nenhum texto escrito pode transmitir: certos rostos, certos gestos, certas situações, certos movimentos”

Mulheres choram diante de um necrotério improvisado

Soldaderas acompanham as tropas na guerra civil mexicana

Fotos: Divulgação

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Na Colômbia, jovens pobres assassinados por militares são apresentados como guerrilheiros

de 14 a 20 de janeiro de 2010 9

américa latinaReprodução

Patricia Rivas e Juan Alberto Sánchez

de Madrid (Espanha)

NADAR CONTRA uma forte corrente é o que faz o Movi-mento de Vítimas dos Crimes de Estado (Movice) na Colôm-bia, onde as maiorias no Con-gresso e na Câmara estão ali-nhadas com os ditames do presidente Álvaro Uribe.

Em casos tão graves como os milhares de assassinatos de jovens pobres por parte de mi-litares, que são apresentados como guerrilheiros e depois trocados por reconhecimentos e medalhas, eufemisticamen-te chamados de “falsos posi-tivos”, a Promotoria Geral da Nação avança a passos lentos e sem vontade.

Instituições como o Conse-lho Nacional da Judicatura – um estamento burocrático com o qual Uribe, nos tempos remotos de sua primeira can-didatura judicial, prometeu acabar – mantêm-se como um apêndice ainda mais funcional e submetido.

A Procuradoria Geral da Na-ção, o “ente autônomo de con-trole e vigilância da função pú-blica dos empregados do Esta-do”, não apenas não controla nem vigila como tampouco é autônomo. O próprio Procu-rador Geral, Alejandro Ordó-nez, é reconhecido no país co-mo “o absolvedor”, pois, desde sua chegada à instituição, vem se distinguindo pela efi ciên-cia em eximir de culpa todo ti-po de militares e funcionários uribistas vinculados com mas-sacres e paramilitarismo.

Na outra margem, uma ins-tituição como a Corte Supre-ma de Justiça, que se negou a nomear o novo Promotor Ge-ral a partir de uma lista trípli-ce apresentada pelo presiden-te, por considerar que os pos-tulantes não reúnem as condi-ções mínimas necessárias pa-ra o cargo, vem sendo obje-to de tido tipo de vitupérios por parte do mandatário, des-de ataques descarados de seus funcionários a, inclusive, in-terceptações telefônicas ou “grampos” por parte do DAS, o organismo de inteligência do Estado adscrito à presidência.

Na corrente desenfreada e unidirecional do atual governo colombiano, que leva, sem pu-dor, os diques constitucionais e legais, sem falar dos morais e éticos que qualquer instituição carrega, é que o Movice atua com empenho e fi rmeza, às ve-zes como um clamor solitário, mas também com uma postu-ra política clara.

Colômbia: 50 mildesaparecidos

em 20 anos

DIREITOS HUMANOS Iván Cepeda, porta-voz do Movimento de Vítimas dos Crimes de Estado, denuncia as constantes violações cometidas pelo governo de Álvaro Uribe e pelos paramilitares contra a população colombiana

Iván Cepeda Castro, além de escritor e jornalista, é um des-tacado líder dos direitos hu-manos na Colômbia e porta-voz da organização, nascida em 2003 e que agrupa familia-res de vítimas de crimes de le-sa-humanidade e algumas or-ganizações que trabalham pe-los direitos humanos.

Iván Cepeda viveu na pró-pria carne a violência exerci-da pelo Estado colombiano, como fi lho do senador Ma-nuel Cepeda Vargas, assassi-nado em 1984, durante o ge-nocídio levado a cabo contra a União Patriótica, um parti-do político que foi vítima de uma perseguição intencional e sistemática que o conduziu ao extermínio.

Conversamos com Iván em Madrid, cidade que foi cenário do lançamento de uma cam-panha internacional de mais de 30 organizações europeias de direitos humanos para cha-mar a atenção sobre a perse-guição que os defensores de direitos humanos enfrentam na Colômbia por parte das instâncias estatais que deve-riam brindar-lhes garantias.

Como porta-voz das vítimas dos crimes de Estado na Colômbia, que sensação lhe produz chegar à Europa e perceber que o governo colombiano se vê como democrático, cumpridor dos requisitos mínimos para ser tratado com deferência pela União Europeia?Iván Cepeda – Não me sur-preende. No caso da Espanha, para dizer as coisas pelo seus nomes, há importantes inves-timentos do capital transna-cional na Colômbia. Para citar apenas um caso: atualmente, debate-se sobre nas mãos de quem fi cará o terceiro canal de televisão, e o grupo Prisa [do jornal espanhol El País] tem um importante interesse. En-tre as propriedades desse gru-po, fi gura El Tiempo, o princi-pal diário colombiano, dirigi-do pela família Santos. Essa fa-mília governa o país. Pelo me-nos, ocupou um lugar impor-tante em ambos governos do presidente Álvaro Uribe. O vi-ce-presidente do país, Francis-co Santos, é um dos principais acionistas dessa casa editorial, e o ex-ministro de Defesa, Ju-an Manuel Santos, que é can-didato para as próximas elei-ções presidenciais, também é acionista e dono do jornal.

Não são, portanto, apenas coalizões ou alianças. São ver-dadeiros consórcios. Assim, o

fato de que se elogie o governo do presidente Uribe, que a du-ras penas fi ca um dia sem um escândalo – o que inclui fatos criminais, como os chamados “falsos positivos” e situações ainda mais evidentes –, impli-ca em que seus interesses de-vem ser protegidos. Mas a ca-da dia é menos possível ocul-tar essa situação. É um gover-no que se vem mostrando em todas suas facetas de corrup-ção e criminalidade nos últi-mos anos. Existe uma consci-ência crescente na comunida-de internacional sobre o que o governo do presidente Uri-be representa realmente. Pa-ra dizê-lo com clareza: um dos aparelhos criminais mais mortíferos e destrutivos que já existiu nos países da Amé-rica Latina.

Em algum momento, as vítimas na Colômbia tiveram espaço de interlocução com o poder para incidir no que se chama de legislação “de paz” ou numa política de construção de “reconciliação”?

Não. O governo e o Poder Legislativo, em sua grande maioria, respondem aos inte-resses do aparelho crimino-so que vem produzindo tan-tas vítimas. Portanto, não são interlocutores, mas sim ini-migos constantes desses pro-cessos. Mas, apesar do gover-no se empenhar, por todas as vias possíveis, para que esses processos não avançassem, nos últimos anos se conse-guiu produzir um avanço efe-tivo, graças à ação das organi-zações de vítimas e de direitos humanos, os advogados e os juízes dignos que existem no país. Esse avanço se vê mate-rializado no fato de que mais de 100 funcionários estatais, entre eles um número signifi -cativo de congressistas, foram levados à cadeia. De que mui-tos membros da força públi-

ca começaram a ser chamados aos tribunais e de que o fenô-meno da chamada “parapolíti-ca” e os crimes cometidos pelo paramilitarismo estão em evi-dência. E quando se vem reco-nhecendo a realidade de que na Colômbia tem funcionado a criminalidade de Estado.

Mas isso não acontece gra-ças ao governo nem à interlo-cução com o governo; é resul-tado de uma luta fi rme, trava-da em condições muito desi-guais e sempre perigosas, le-vada à cabo pelas vítimas em suas regiões: camponeses, in-dígenas, mulheres, muitas as-sociações de pessoas que vêm conseguindo construir es-se caminho rumo aos direitos humanos no país.

Quando se fala de crimes de Estado, são conhecidas as vítimas dos casos argentino ou chileno, mas a Colômbia é uma caixa preta: não há conhecimento de qual é a dimensão das vítimas e qual a realidade que vocês enfrentam quando decidem não se calar e exigir justiça, verdade e reparação.

As cifras são cada vez mais completas e claras. Estamos falando de cerca de 50 mil pes-soas desaparecidas na Colôm-bia nos últimos 20 anos, uma cifra que supera de longe a de países como Argentina e Chile, e a de algumas nações centro-americanas. Falamos de 10% de população deslocada, mais de 4 milhões de pessoas; mais de 150 mil homicídios e uma grande destruição das comuni-dades: 18 povos indígenas es-tão à beira do extermínio em processos que sem dúvidas po-dem ser catalogados como ge-nocídios, que atingem também setores como os dos sindicalis-tas e dos defensores de direitos humanos, que vêm sendo víti-mas de crimes contínuos du-rante essas duas décadas.

Estamos diante de uma cri-minalidade do sistema, com múltiplas expressões, que tem a conotação de não ser apenas a violência que se apresenta em um confl ito armado, mas também uma violência que o Estado promove para elimi-nar, anular, neutralizar orga-nizações inteiras de ativistas sociais. E uma violência que, além disso, tem a conotação de tentar apresentar suas víti-mas simplesmente como per-sonagens encobertos que atu-am em nome da guerrilha.

Para entender melhor do que estou falando, menciono apenas um caso. Há um ano está na cadeia Carmelo Agá-mez. É o líder dos campone-ses de San Onofre, um po-voado de 50 mil habitantes no norte da Colômbia que se converteu em uma espécie de campo de concentração – e digo isso literalmente, não

é exagero – dos grupos para-militares. A população local foi submetida durante anos a um regime de campo de con-centração em que lhe era im-posto um modo estrito de vi-da: hora para acordar e ir dor-mir... os paramilitares dispu-nham das mulheres, das pes-soas, para escravizá-las como peões em ranchos... enfi m, um regime dantesco. Lá, Carmelo Agámez conseguiu organizar o movimento camponês e levou à cadeia não apenas os para-militares como também seus aliados políticos, seus chefes políticos. E uma vez que se conseguiu isso, Carmelo foi acusado de ser aliado dos pa-ramilitares. Ele, que duran-te toda sua vida foi sua víti-ma, terminou sendo acusado por eles, como forma de vin-gança, para levá-lo à prisão. Faz um ano que Carmelo es-tá preso. Fui visitá-lo há uns meses. Na cadeia, há 70 pes-soas: 69 são paramilitares e políticos aliados dos paramili-tares, e Carmelo vive em com-panhia dessas pessoas. Como se pode entender, é uma situ-ação de imensa periculosidade e, apesar disso, Carmelo segue sustentando sua luta a partir da prisão.

A campanha eleitoral já começou na Colômbia, e a retórica belicista em relação à Venezuela tenta fazer render resultados em termos de apoio ao governo, ou de ocultamento de outros problemas que o país tem. Qual é a opção das vítimas nesse contexto em que parece cada vez mais difícil falar das situações de violação de direitos humanos e do que é preciso consertar dentro do país?

Acredito que estamos cada vez mais perto de uma ação política direta. O movimento de vítimas tem travado uma luta jurídica, uma luta para ga-nhar espaços, mas isso se mos-tra cada vez mais insufi ciente. Não basta colocar os políticos na prisão: é preciso ganhar espaços políticos. Acho que o movimento social na Colôm-bia começou uma discussão sobre esse tema. Existem par-tidos políticos, é verdade, mas as vítimas e os movimentos so-ciais querem ter poder, e que-rem exercer o poder.

Agora, o que está aconte-cendo na Colômbia em rela-ção à Venezuela é uma estra-tégia de longo alcance. Deve-mos lembrar que, nos últimos anos, foram se produzindo, um atrás do outro, vários gol-pes de Estado. Primeiro, con-tra o presidente Hugo Chávez. Posteriormente, tentou-se um golpe contra o presidente Evo Morales. Mais recentemente, se produziu um golpe impune pelo senhor Micheletti. O que

existe é um plano claramen-te articulado para acabar com esses governos e, sobretudo, para acabar com o processo de integração latino-america-na. O objetivo essencial não é um ou outro governo, é a união dos países latino-ame-ricanos em torno de uma nova política, uma nova economia, um novo tipo de relações que possam confi gurar uma força que se oponha com clareza a relações tradicionalmente co-loniais e imperiais.

Neste contexto, claro, o go-verno do presidente Uribe é uma peça central. Alguns já fa-lam que a Colômbia é uma es-pécie de porta-aviões dos EUA na América Latina, e acredi-to que não são palavras exa-geradas. Estamos assistindo a um contexto no qual foi cria-da uma plataforma para agre-dir de maneira clara esse pro-cesso de integração. Nas pró-ximas, este vai ser um tema de discussão, claro, e as vítimas vamos tomar partido para en-frentar esse tipo de projetos que querem destruir a unida-de latino-americana.

Quais são as exigências das vítimas na Colômbia para a União Europeia e seus governos quanto à política exterior que deveriam seguir em relação ao Estado colombiano?

Acredito que os governos colombianos vêm sendo trata-dos com uma extrema indul-gência, para falar de maneira mais eufemística. Tem-se to-lerado durante anos, através de declarações supremamente tímidas, uma situação que de longe é a mais grave quanto a direitos humanos no hemisfé-rio ocidental. Estamos falando de um país que vive uma guer-ra de 50 anos, com 10% de sua população na miséria por cau-sa de deslocamentos força-dos, um país no qual os crimes contra personalidades e pes-soas que defendem os direitos humanos são fatos cotidianos. E em tudo isso tentam pôr, sempre, panos quentes, dizen-do que são situações produto do terrorismo, produto da luta contra o narcotráfi co.

É hora dos governos eu-ropeus deixarem a hipocri-sia, afrontarem os fatos que acontecem na Colômbia com a gravidade que possuem e proporem saídas adequadas. Não estou dizendo que to-dos os governos se compor-tam dessa forma, mas há se-tores e partidos políticos na Europa para os quais é tole-rável uma situação que, vis-ta de maneira objetiva, não é outra coisa que um imenso rio de sangue. Uma realidade to-talmente antidemocrática e contra os direitos humanos. (elpueblosoberano.net)

Tradução: Igor Ojeda

“[O governo do presidente Álvaro Uribe é] um dos aparelhos criminosos mais mortíferos e destrutivos que já existiu nos países da América Latina”

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O presidente do Banco Central argentino, Martín Redrado

ANÁLISE

de 14 a 20 de janeiro de 201010

américa latina

A presidenta Cristina Kirchner durante o anúncio de envio da lei ao Parlamento argentino

Presidencia de la Nación Argentina

Silvia Adouede Buenos Aires (Argentina)

A APROVAÇÃO DA Lei de Meios de Comunicação na Ar-gentina, em outubro de 2009, abriu mais uma frente de con-fl ito para o governo de Cristi-na Kirchner. Desta vez, dife-rente do enfrentamento que teve em 2008 com o agrone-gócio da soja, o governo fez uma convocatória a movi-mentos que atuam no cam-po de comunicação popular. A redação da lei levou em consi-deração velhas reivindicações desses movimentos, e o desa-fi o agora é que ela saia do pa-pel.

O desgaste do governo Kir-chner depois do enfrentamen-to com os ruralistas levou a presidenta a optar por algu-mas medidas de cunho popu-lar, como a “asignación por hi-jo”, que universaliza o salário família, estendendo o benefí-cio para aqueles que não têm carteira assinada e que cons-tituem a maioria dos traba-lhadores argentinos. Cristina também está pondo em mar-cha um plano de apoio à for-mação de cooperativas, em parceria com as prefeituras.

Movimentos como os dos piqueteros da Frente Darío Santillán, que não são base eleitoral do governo, vêm rei-vindicando essa política públi-ca há muito tempo. Os meios de comunicação atacam es-sas medidas como em 2008 atacaram as retenções móveis para a venda de soja no mer-cado mundial, cerrando fi lei-ras com os exportadores de soja. Desta vez, a presiden-ta decidiu enfrentar os gran-des grupos da comunicação, em particular o grupo Clarín, que possui o jornal de maior circulação nacional, uma rede de rádios que cobre todo o ter-ritório e cerca de 60 emissoras televisivas de alcance nacional e regional, entre as quais o ca-nal de notícias TN, que esta-belece a agenda para o resto dos meios.

ParticipaçõesA lei foi redigida recolhen-

do a elaboração dos fóruns de comunicação constituídos em todo o território nacio-nal. “Nesses fóruns houve a participação de movimentos populares e sindicatos, além

Na Argentina, a mídia em disputaCOMUNICAÇÃO Nova legislação, que garante 33% das licenças de rádio e TV para emissoras comunitárias, é atacada na imprensa

dos trabalhadores do ramo e estudantes e professores das carreiras de comunicação”, diz Miguel Croceri, radialista da Radio Província, de Bue-nos Aires, e professor da Uni-versidad Nacional de La Pla-ta. “Durante o funcionamen-to desses fóruns, as grandes empresas do ramo calaram. Só começaram a campanha contra o projeto quando este entrou no Congresso”. A cam-panha acenava com o fantas-ma do presidente venezuela-no Hugo Chávez.

Entre os mecanismos de combate ao monopólio das comunicações está a cota de meios que podem fi car na mão de um mesmo dono e a proporção de 33% das licen-ças de rádio e televisão para emissoras do Estado, 33% pa-ra as emissoras comunitárias e apenas 33% para as empre-sas privadas. É claro que, para que essa proporção se concre-tize, no caso dos meios comu-nitários, é preciso enfrentar as limitações econômicas pa-ra aquisição de equipamentos, questão que a lei não prevê.

Se as empresas privadas não conseguiram impedir a apro-

vação da lei no Congresso, agora estão tentando colocar areia no seu motor. A estra-tégia é impetrar recursos no Poder Judiciário para impe-dir sua aplicação. Já há qua-tro ações que receberam pa-recer favorável em diferentes varas regionais. E também es-tão tentando impedir ou adiar a formação da comissão para a aplicação da lei. Ela estabe-lece um prazo de um ano, até o fi nal de 2010, para a retirada das empresas, até fi car apenas com as licenças que a nova le-gislação autoriza.

Mídia e ditaduraSegundo a pesquisadora ar-

gentina Mirta Varela, no seu trabalho Televisión Criolla, esse meio ganhou um pe-so hegemônico dentro da in-dústria cultural da Argenti-na a partir do golpe militar de 1976. A legislação que regu-la a atividade data justamen-te daquele período, quando a censura criou novas alian-ças que favoreceram espe-cialmente o grupo Clarín, com o monopólio deste so-bre a produção e comerciali-zação de papel de jornal, e a

conseguinte acumulação que permitiu a compra de emis-soras de rádio e televisão. Os vínculos estreitos entre o re-gime militar e o conglomera-do vêm sendo motivo de de-núncias de todo tipo. Inclusi-ve em relatos fi ccionais, como no romance Diario de la Ar-gentina, de Jorge Asís, escri-tor polêmico que trabalhou no jornal.

Em dezembro, um novo es-cândalo atingiu a herdeira do grupo, Ernestina Herre-ra de Noble. As Avós da Pra-ça de Maio vêm denunciando há muitos anos que os dois fi -lhos adotivos da empresária são na realidade fi lhos de de-saparecidos apropriados ile-galmente durante a ditadu-ra. Sabe-se que os militares entregavam para adoção as crianças dos militantes desa-parecidos, algumas nascidas em cativeiro, para pessoas da sua confi ança. Mesmo depois da queda da ditadura, a dona do Clarín conseguiu driblar as denúncias e evitar o teste de DNA, agora exigido por uma ação impetrada pelas Avós e que foi aprovada no Poder Ju-diciário. Para além da questão

familiar, essa ação, que visa a verdade sobre os anos de re-pressão, joga luz sobre as re-lações de poder que permane-cem intactas, porque os gru-pos econômicos que se be-nefi ciaram com o golpe con-tinuaram sendo favorecidos depois da queda da ditadu-ra. O poder econômico não mudou de mãos, ainda que a direção política e os gesto-res da administração do Es-tado tenham mudado. Tanto que outra das leis da ditadu-ra que ainda está em vigor é a que regula as entidades fi nan-ceiras e que reduziu o contro-le sobre o Banco Central, pro-vocando mais um confl ito do setor com a presidenta (veja artigo nesta página).

Manipulação expostaA emissora estatal de televi-

são, a TV Pública, vem sendo uma ferramenta neste enfren-tamento, exibindo programas que revelam os recursos utili-zados pela imprensa corpora-tiva em suas matérias. Em ho-rário nobre e com um forma-to nada acadêmico, com hu-mor, são mostrados os clichês repetidos em vários meios, a

Julio Gambina

O PODER ECONÔMICO re-cebeu com beneplácito o Fun-do do Bicentenário na Argen-tina. A decisão de assegurar os pagamentos de vencimen-tos privados e de organismos internacionais para este ano contou com o apoio local e mundial daqueles que defen-dem a normalização da inser-ção capitalista da Argentina em momentos de crise da eco-nomia mundial. Os principais estados capitalistas despeja-ram cifras milionárias para salvar bancos e empresas em crise, com o que não deve ser motivo de surpresa que as de-cisões da política econômi-ca argentina caminhem nes-se sentido e assegurem a von-tade de pagamento da dívida. É o desejo dos credores, um leque que expressa parte do poder econômico mundial. O pacote inclui os holdouts (cre-dores que não aceitaram a re-estruturação dos títulos da dívida pública argentina em 2005) e o Clube de Paris. To-dos esperam receber a totali-dade da dívida ou, ao menos, uma boa negociação segundo seus interesses.

A reestruturação de 2005, o pagamento ao Fundo Mo-netário Internacional (FMI) em 2006 e todos os cance-

lamentos operados nos últi-mos anos expressam a von-tade de pagamento da dívi-da e de reinserção no siste-ma fi nanceiro internacional, como uma parte da continui-dade do capitalismo na Ar-gentina. Um problema ines-perado apareceu agora: o te-ma da “autonomia do Banco Central da República Argen-tina (BCRA)”. Fica demons-trado com um absurdo como a “política” na Argentina está pagando caro para modifi car a institucionalidade dos anos de 1990, que envolve, entre outras coisas, a “autonomia do BCRA”, inscrita na carta orgânica da instituição. A po-lítica monetária é um instru-mento-chave de toda políti-ca econômica e não pode ser dissociada dela por meio de falsas autonomias ao serviço das demandas do poder eco-nômico.

O curioso é que agora, com a decisão de pagar a dívida a credores privados e organis-mos internacionais (6,5 bi-lhões de dólares em 2010) com recursos do Fundo Bi-centenário, o “poder econô-mico” reivindica a subordi-nação do BCRA e a decisão do governo de pagar essa dívida. Este é o pronunciamento das associações de bancos (ADE-BA e ABAPRA). No mesmo sentido se pronunciou a Con-

federação Geral do Trabalho (CGT), associada claramente às políticas do governo.

Crise institucionalO governo quer que o titu-

lar do BCRA renuncie, mas este resiste. A decisão apare-ce condicionada por uma co-missão parlamentar que, em função da renovação do Le-gislativo, ainda não está con-formada. E há recesso até

março. A pressão política en-tre o Poder Executivo e o pre-sidente do BCRA continuará, assim como os jogos de poder entre o ofi cialismo e a oposi-ção de direita. Essa situação aprofundará os elementos da crise política aberta desde a ruptura de setores das classes dominantes, do agronegócio e da indústria com o gover-no. A decisão de pagar a dívi-da aponta para a recomposi-

ção de laços com o poder eco-nômico mundial e é isso o que deve ser discutido.

A sociedade, especialmen-te o movimento popular, de-ve manifestar sua vontade de modifi car a agenda de priori-dades e incidir na crise polí-tica para defender as neces-sidades populares insatisfei-tas. A Argentina não necessi-ta de um novo endividamen-to, mas sim de uma reorienta-

ção da política econômica emfunção da necessidade de mi-lhões de pessoas com difi cul-dade de acesso a seus direitosà alimentação, educação, saú-de, habitação, trabalho e qua-lidade de vida adequada. Osrecursos na Argentina exis-tem, o problema é sua utili-zação.

A questão central não é o problema suscitado em tor-no da “autonomia”. É precisovoltar a defender que não sepague a dívida com a fome dapopulação, que os fundos pú-blicos sejam utilizados para arecuperação de uma econo-mia popular que resolva de-mandas não cumpridas e quese articule um projeto de in-tegração regional que discutaa ordem capitalista em crise.

Julio C. Gambina é professor titular de Economia Política na Faculdade de Direito da

Universidade Nacional de Rosário, presidente da Fundação

de Investigações Sociais e Políticas (FISYP), integrante do

Comitê Diretor do Conselho Latino-americano de Ciências

Sociais (Clacso) e diretor do Centro de Estudos da Federação

Judicial Argentina (CEFJA).

Publicado originalmente na Agencia Latinoamericana de Información (Alai) e traduzido

pela Agência Carta Maior.

Conflito de poderes e pagamento da dívida

seleção e montagem de ima-gens, o tratamento das falas das personagens envolvidas na notícia. Todo um exercício de análise crítica do discurso ao alcance do espectador mé-dio. Aquilo que um microfo-ne não fechado deixou esca-par, no fi nal do ano, na voz de Boris Casoy ou a descrição de uma reunião de pauta do Jor-nal Nacional, vazada por uma testemunha e veiculada por Carta Capital, são apenas pe-quenos pontos de transparên-cia que revelam os procedi-mentos ideológicos na indús-tria da comunicação. Progra-mas como os veiculados pela TV Pública da Argentina não quebram com as formas de re-cepção às quais os telespecta-dores estão habituados; fazem a crítica dentro do mesmo for-mato, o que favorece uma lu-ta num mesmo campo de ba-talha.

“No último ano, o jornal Clarín perdeu 30 mil leito-res”, diz Luis Iramain, radia-lista da Rádio das Madres de Plaza de Mayo. “É muito. O que acontece é que o Clarín, ao ter uma estratégia de pele-ja por grana, como grupo eco-nômico, deixou de fazer jorna-lismo. Ficou defendendo inte-resses econômicos. Isto fi cou muito em evidência”.

Desafi osSegundo Lucía García, jor-

nalista e docente da Univer-sidad das Madres de Plaza de Mayo, o grande desafi o pa-ra os movimentos populares e meios comunitários é a luta pela aplicação da lei. Não ape-nas para enfrentar as ações que correm no Poder Judiciá-rio, mas para tornar a legisla-ção viável.

“Agora a discussão com o conjunto de organizações que brigaram pela aprovação da lei é como vamos garantir, do ponto de vista econômi-co, os 33% que conquistamos. A gente imaginava que podia criar uma emissora de rádio, um jornal, fazer um portal na internet. Mas uma emissora de televisão?! O desafi o é nos tornarmos capazes de produ-zir discursos nessas lingua-gens”. “Tem muito trampo”, diz Lucía, “para fazer a nos-sa parte e também para exi-gir do Estado que a lei se cum-pra e garantir os recursos pa-ra isso”.

Reprodução

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internacionalReprodução

Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Nilton Viana

e Tatiana Merlino*de Guararema (São Paulo)

O SILÊNCIO É, paradoxal-mente, um dos principais mecanismos adotados pelos meios de comunicação para manipular os fatos. Se uma notícia não interessa aos do-nos da imprensa – e, conse-quentemente, aos donos do mundo –, ela simplesmente não é veiculada. Tal denún-cia é feita pelo jornalista es-panhol Pascual Serrano, um dos fundadores da página al-ternativa Rebelión e autor do livro Desinformación. Cómo los medios ocultan el mun-do, lançado em meados do ano passado.

“Se contarem muitas men-tiras, perderão sua credibi-lidade, perderiam sua efi cá-cia como mecanismo de for-mação de opinião”, diz, em conversa na Escola Nacio-nal Florestan Fernandes, em Guararema (SP). Portanto, segundo ele, os meios, além de ignorarem seletivamente determinados fatos, lançam mão de outros expedientes, como a descontextualização e a linguagem enviesada. Pa-ra Serrano, só há um modo da esquerda se defender de tamanha manipulação: criar seus próprios meios, em vez de fi car esperando por pe-quenos espaços na grande mídia.

Brasil de Fato – Você tem um livro chamado Desinformação. Como os meios ocultam o mundo. Quais são os principais mecanismos que os meios utilizam para ocultar o mundo?Pascual Serrano – Eu di-vidiria em dois mecanismos. Por um lado, os estruturais: ou seja, os mecanismos coti-dianos de funcionamento da imprensa, que, por seu mo-delo de trabalho, são incom-patíveis com a explicação do mundo. Fundamentalmente, seria a falta de anteceden-tes sobre um contexto para se compreender uma situ-ação complexa, a dinâmica da televisão – que, com seu ritmo trepidante, impede a compreensão, sobretudo, de assuntos complicados – e o culto ao sensacionalismo da imagem – que ocorre mui-to na televisão. Isso impede aprofundar as questões e en-viar uma mensagem comple-xa. Por exemplo, quando vo-

“Devemos buscar uma revolução midiática”

COMUNICAÇÃO Para o jornalista espanhol Pascual Serrano, fundador da página Rebelión, a esquerda mundial deve criar seus próprios meios para trazer à tona os fatos “silenciados” pela imprensa comercial

cê quer dar um sentido sim-ples – que o Irã tem bom-ba atômica ou que o Chá-vez é um ditador –, isso pode ser dito em poucas palavras. Mas se você quer explicar que a política dos EUA está provocando um genocídio no Afeganistão, isso exige uma explicação mais complexa.

Uma outra situação é quan-do há um consenso e um pla-no premeditado por parte dos grandes meios para en-viar uma mensagem concre-ta. Isso contempla estigmati-zar ou criminalizar líderes po-líticos que não são do gosto do establishment mundial, até criminalizar movimentos so-ciais, ou determinados coleti-vos ou causas. Atentem para o fato de que o mecanismo não é somente a mentira, que es-ta existe, mas não é a mais ha-bitual. Porque eles sabem que sua principal carta é a credi-bilidade. Se contarem muitas mentiras, perderão sua credi-bilidade, perderiam sua efi cá-cia como mecanismo de for-mação de opinião. Ou seja, o plano é mais refi nado: utili-zam-se de silenciamentos de notícias que eles não gostam. Por exemplo: a missão Mila-gre, realizada em uma parce-ria entre Venezuela e Cuba, que fez com que 1 milhão de pessoas de origem humilde na América Latina e Caribe con-seguissem recuperar a visão, é notícia, parece evidentemen-te relevante, mas isso está si-lenciado.

Além disso, eles também jo-gam com o enquadro, o enfo-que da notícia, buscando ele-mentos dentro de um con-texto que levem para uma te-se e não para outra. E o que fi -ca claro no livro é que o mo-delo muda de uma região pa-ra outra, de um tema para ou-tro. Por exemplo: no confl i-to Palestina-Israel, o proble-ma é a falta de contexto. Nin-guém, neste momento, pare-ce saber dizer a origem des-se confl ito, apesar de ele estar presente todos os dias no no-ticiário. Utilizam a linguagem como método de manipula-ção, de maneira que sistema-ticamente chamam de terro-ristas os palestinos. Chamam de sequestrados os soldados israelenses capturados. Cha-mam de detidos os civis pales-tinos que são sequestrados pe-lo exército israelense.

Na África, por exemplo, aplica-se o silenciamento, ou apresentam-se os confl itos co-mo questões tribais, em vez de mostrarem os interesses de empresas e poderes colo-niais como França e EUA. E, na América Latina, utilizam a estigmatização e criminaliza-ção constante dos líderes, co-mo Hugo Chávez, Evo Mora-les ou Fidel Castro. No caso da Venezuela, é curioso, porque apresentam como escândalos notícias que se apresentam como normais em outros paí-ses. Reivindicam como escân-dalos a não-renovação de uma concessão de TV cujo prazo acabou e a mudança de um fuso horário. Há outra pauta habitual em relação à Amé-

rica Latina, através da qual o presidente ou o líder político são apresentados sempre em meio a uma imagem de crise, desestabilizações e caos. Isso faz com que, na Europa, todo mundo conheça os nomes dos presidentes da Bolívia e da Ve-nezuela, mas não conheçam o nome do presidente do Pe-ru ou do México. Inclusive, se você pergunta quem teria sido outro presidente da Bolívia ou da Venezuela, não sabem di-zer. E, dos últimos anos, Evo Morales e Hugo Chávez, todo mundo sabe quem são.

Quais foram os métodos utilizados para fazer o livro, como foi a pesquisa?

O livro nasceu um pou-co da minha experiência co-mo diretor da Telesur, onde observei que tudo que chega das agências de notícia e, in-clusive, os hábitos dos jovens jornalistas, impedem expli-car em profundidade o que está acontecendo no mundo. Então, refl eti sobre como ex-plicar o mundo com sufi cien-te complexidade na televi-são. Tudo que eu quis fazer na Telesur muitas vezes não é possível fazer em uma tele-visão por imperativos técni-cos, econômicos, logísticos ou de imagem.

Assim, comecei a entre-vistar especialistas e jorna-listas que considero autores de confi ança e que conhecem em profundidade diferentes regiões – por exemplo, Afe-ganistão, Congo, Cuba, Chi-na. Enfi m, perguntei a es-ses especialistas sobre a zo-na que conheciam. Pergun-tei se o que passa na impren-sa se ajusta ao que acontece. Eles, evidentemente, opina-ram e mostraram como de-terminadas situações não estão ajustadas ao que está sendo contado nos meios de comunicação.

Falei com as organizações de direitos humanos que es-tão nos locais. Busquei ana-listas que trabalham com meios de comunicação, ob-servatórios de meios de co-municação, especialistas nos segmentos de notícia em âm-bito acadêmico. Conversei com meios alternativos que não estão tão infl uenciados por interesses publicitários ou de grupos econômicos empresariais.

Você acredita que existe uma espécie de plano estabelecido entre os diversos meios para desinformar ou as coisas acontecem de forma mais natural e automática, como sendo uma espécie de ação de imprensa que vai se estabelecendo?

Não é um plano desenha-do, mas parte da evolução espontânea do mecanismo de funcionamento dos meios de comunicação. Seguindo a ideia: meios de comunicação são propriedades de grandes grupos empresariais. Inte-resses econômicos de gran-

des empresas multinacionais pedem grandes investimen-tos em publicidade. Políti-cos liberais que não gostam de políticas progressistas re-agem em conjunto com esses atores. Ou seja, assim se for-ma um consenso para sata-nizar o Hugo Chávez ou pa-ra criminalizar a Revolução Cubana. A grande impren-sa não se reúne para dizer: “como vamos atacar Cuba ou Chávez?”. Os interesses desses grupos econômicos é que vão atuar em consenso, sem necessidade de se coor-denarem.

Um exemplo claro são os países latino-americanos que passam por reformas nas leis de comunicação. A reação dos grandes meios de comunicação na Venezue-la, na Argentina e no Equa-dor foi igual. Governos que iniciam processos de demo-cratização dos meios de co-municação, cedendo espa-ço aos movimentos sociais, meios independentes e im-prensa livre, encontram sis-temática oposição de grupos midiáticos espanhóis, boli-vianos, argentinos e equato-rianos. E, se amanhã houver uma iniciativa como essa no Brasil, será igual.

Mas, se por um lado não há um plano, por outro existe uma articulação dos meios, como, por exemplo, a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) ou a ONG Repórteres sem fronteira. Como é essa articulação?

Sim, eles têm mecanismos de combate comum. E é bom decifrar como operam e co-mo não têm nenhuma legiti-midade ou representativida-de. Por exemplo, quando se fala da Sociedade Interame-ricana de Imprensa, não de-vemos nos cansar de expli-car que se trata de uma asso-ciação patronal. Que defende as empresas e não represen-ta nenhuma liberdade de ex-pressão. É como se empresas que constroem estradas fa-lassem da falta de liberdade de movimento porque estão impedidas de construir uma estrada na Amazônia. Não, liberdade de movimento é diferente de construir estra-das. Além disso, temos que esclarecer que, quando as empresas falam de liberdade de expressão, estão reivindi-cando o seu direito de censu-ra. Ou seja, querem continu-ar com seu direito de manter o oligopólio e o controle da informação. Dizer o que po-de ir ou não para a tela e che-gar ao público.

A Repórteres sem fronteiras é algo similar. Tem denuncia-do os jornalistas mortos no Iraque, mas muda de reação quando fala da Colômbia. Re-centemente, fi z uma entrevis-ta com um jornalista colom-biano que disse que uma vez perguntou a um representan-te da Repórteres sem frontei-ras como ele considerava a li-berdade de expressão na Co-lômbia. Ele respondeu: “Sim, é verdade que nos matam, mas na Colômbia a liberdade de expressão existe”!

Quais são os países onde a desinformação é maior? Em qual nação os meios estão mais concentrados?

Eu acredito que o país mais desinformado é os EUA, con-siderando a quantidade de recursos que o governo esta-dunidense tem para infi ltrar analistas, comprar jornalis-tas, pressionar as linhas in-formativas aos seus interes-ses. Ademais, os lobbies das empresas, como as de armas, sobre conteúdos jornalísticos fi caram claros na guerra do Iraque. Em alguns países, as denúncias de que não havia armas de destruição massi-va ou de que era uma invasão ilegal ao país do Oriente Mé-dio tiveram uma certa aceita-ção. Nos EUA, dados de ana-listas e informações mostra-ram que a desinformação pu-blicada a respeito da invasão era totalmente a favor da in-tervenção, ao ponto que 51% dos estadunidenses acredita-vam que Saddam Hussein ha-via participado pessoalmente nos atentados de 11 de setem-bro. O que demonstra clara-mente que foram enganados.

Mas acredito que o pa-ís onde a desinformação le-vou ao enlouquecimento ma-nipulador de maneira mais violenta e radical é a Vene-zuela. O livro narra exem-plos impressionantes. Não só como os meios de comu-nicação venezuelanos trata-vam o Chávez, mas como as informações chegavam a ou-tros países. Lembro-me de uma manifestação a favor de Chávez que as televisões, ao vivo, para mostrarem que havia poucas pessoas, fi lma-ram a 2 quilômetros de onde estava acontecendo o ato. Ou mostravam e repassavam pa-ra outros países imagens de manifestação em oposição a Chávez com imagens grava-das há anos!

Como é possível se contrapor a esse poder?

Neste momento, o princi-pal mecanismo de comba-te que o capital e a burgue-sia possuem contra os gover-nos progressistas não é se-quer a ameaça de um golpe militar; são os meios de co-municação. Já conseguiram coisas que nenhuma empre-sa e nenhum governo con-seguiram. Maior impunida-de, menos controle por parte das legislações. Creio que os governos progressistas rea-giram demasiadamente atra-sados. Evo Morales ou Lu-la passaram anos reclaman-do que os meios de comuni-cação não paravam de atacá-los e agredi-los.

Apenas reclamar me pa-rece uma política inefi caz. Se um governo progressis-ta é atacado, o que ele tem a fazer é desenvolver políti-cas públicas para evitar is-so. É como em educação: se não há colégio para todas as

crianças, os governos nãodevem vir se queixar, devemconstruir escolas. E esses go-vernos devem criar políticaspúblicas de democratizaçãoda comunicação.

Mas os meios públicos ecomunitários não podem seconverter em meios de go-verno, presidentes e parti-dos. Devem ser participati-vos, democráticos e estar sobcontrole do cidadão. Estessão pontos imprescindíveise que estão se desenvolvendolentamente, mas com pas-sos fi rmes. A Venezuela estána primeira linha de desen-volvimento de meios comu-nitários e públicos, à frenteda Europa.

Você acredita que a esquerda, de maneira geral, já se deu conta da importância dos meios de comunicação como mecanismo de resistência à dominação das elites?

A esquerda se deu conta,ela é consciente de que temgrandes inimigos nos meiosde comunicação, mas não sa-be o que fazer. Durante mui-tos anos, a esquerda achouque deveria pactuar com osgrandes meios. Organizan-do entrevistas coletivas, pas-sando as informações, dan-do subvenções fi scais. Assim,acreditaram em um acordocom o capital pensando queele os deixaria governar.

A esquerda tradicional, se-ja em governos progressistasou em partidos políticos, pre-cisa compreender que nãohá pacto possível. Os gran-des meios somente hipote-cam espaços, mas não deixa-rão que nada se mova. O quedevemos buscar é uma revo-lução midiática. Pois o dile-ma da mídia é o mesmo di-lema que há em outros seto-res. Então, não há pacto comlatifundiário, pois ele nuncavai querer perder o latifún-dio, nem de terra, nem demídia. Porque são empresasde comunicação e, por trás,grupos de empresários e ummodelo econômico.

Como é o panorama da imprensa de esquerda na Espanha?

É deprimente. O Méxicotem um excelente jornal, queé o La Jornada. No Brasil,vocês têm o Brasil de Fato,que é uma experiência mui-to bonita de coordenação dosmovimentos sociais para teruma publicação, o que é algomuito difícil. Na Itália, aindahá o Il Manifesto e outros li-gados à esquerda. Mas, naEspanha, não.

* Da revista Caros Amigos.

Nascido em Valencia (Es-panha) em 1964, Pascual Serrano fundou em 1996, juntamente com um grupo de jornalistas, a página Rebelión (www.rebelion.org). De 2006 a 2007, Serrano foi assessor editorial da Telesur. Hoje, colabora com publicações espa-nholas e latino-americanas e, mensalmente, com o Le Monde Diplomatique. Entre seus li-vros sobre política e comunica-ção, destacam-se: Desinforma-ción. Cómo los medios ocultan el mundo, de 2009; Perlas 2. Patrañas, disparates y trapa-cerías en los medios de comu-nicación, de 2007, e Medios violentos. Palabras e imágenes para el odio y la guerra.

Quem é

“Se contarem muitas mentiras, perderão sua credibilidade, perderiam sua efi cácia como mecanismo de formação de opinião. Ou seja, o plano é mais refi nado: utilizam-se de silenciamentos de notícias que eles não gostam”

“Temos que esclarecer que, quando as empresas falam de liberdade de expressão, estão reivindicando o seu direito de censura. Ou seja, querem continuar com seu direito de manter o oligopólio e o controle da informação”

“A grande imprensa não se reúne para dizer: ‘como vamos atacar Cuba ou Chávez?’. Os interesses desses grupos econômicos é que vão atuar em consenso, sem necessidade de se coordenarem”

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áfrica

Rua do centro da Cidade do Cabo, capital legislativa da África do Sul

Damien du Toit/CC

Ana Maria Amorimda Cidade do Cabo

(África do Sul)

PELOS CANTOS DA África do Sul, a forte história de in-tolerância racial ainda agoni-za. Andando pela cosmopolita Cidade do Cabo, capital legis-lativa do país, percebe-se que as contradições se afl oram a cada curva. Entre os bairros milionários, encravados nas praias de mar azul, a arquite-tura remete às fotos das man-sões europeias. A construção civil se ostenta com aparta-mentos luxuosos, cada qual com uma piscina particular na varanda e com um preço que ultrapassa a casa de 1 mi-lhão de dólares.

A famosa geografi a dese-nhada pelas inúmeras mon-tanhas que cercam e atraves-sam a cidade funciona como uma grande parede que não permite que os turistas se sur-preendam com os precários subúrbios e suas casas amon-toadas em territórios planos, feitas de restos de madeira e metal.

Tão agressivo quanto o pa-norama de Cidade do Cabo é o retrato rural do país. Des-de a colonização, holandesa e inglesa, as pessoas “colori-das” foram excluídas do aces-so à terra.

Em 1913, a Inglaterra pro-mulgou a Native Land Act (Lei da Terra Nativa), que for-malizou nacionalmente que o acesso à terra se relaciona-va diretamente com a proce-dência racial da pessoa. As-sim, foram reservados 8% das terras do país para os negros (na África do Sul, a união dos excluídos fez com que se en-tendesse por negro todos que não eram brancos, incluindo, portanto, as outras “raças”). Os outros 92% eram exclusi-vamente dos brancos.

A Land Act só foi revista em 1936, quando outra lei, a Na-tive Trust and Land Act esta-beleceu, entre outras medi-das, um tímido avanço – ago-ra, os negros poderiam ocu-par até 13% das terras. A re-sistência negra, então, se agu-diza e, na década de 1940, os ganhos da parcela branca na África do Sul fi cam ameaça-dos por uma crise econômica que coincide com o aumento da urbanização, da industria-lização e da organização dos trabalhadores. A solução do regime que comandava o país foi, entre outros passos, a ins-tauração da segregação atra-

A voz rural contra o apartheidDESIGUALDADE Vinte anos após o fi m do regime racista que vigorava na África do Sul desde 1948, as terras do país ainda estão, em sua maioria, nas mãos dos brancos

da Cidade do Cabo (África do Sul)

A recessão econômica em que vive a África do Sul po-de ser amenizada pela Copa do Mundo de 2010, dizem as capas dos jornais do país. No primeiro dia do ano do cam-peonato mundial de futebol, os jornais sintetizavam o cli-ma de euforia: “2010 é o ano da África do Sul”. Com oti-mismo, as declarações dos responsáveis pelo comércio e turismo ponderam que o impacto da crise econômica mundial existe no país, mas ressaltam uma melhora des-de outubro e apostam que a Copa do Mundo pode ser um fator que mude as condições atuais.

A indústria do turismo é uma das peças centrais nas apostas de melhorias. Uma queda entre 10% e 15% na entrada de grupos turísticos nas cidades não desanima o setor: o aumento dos visitan-tes individuais seria capaz de compensar tal perda. Tam-bém não desanima a queda brusca dos turistas do Reino Unido ou da Alemanha: ago-ra, o papel central do turis-mo é desenvolvido pela parte leste do mundo, como a Chi-na e a Índia.

Em declaração à imprensa, o representante da Federação de Recepção do Cabo Sudes-te da África, Phillip Couvaras, disse que o fato de ser uma das cidades que abrigarão os jogos da Copa transformou a Cidade do Cabo em um pon-to atrativo aos turistas. “Os recursos advindos com o tu-rismo são consideráveis es-te ano, e estamos inundados de ligações de visitantes es-trangeiros e locais buscando informações sobre acomoda-ções na cidade”, completa.

Pode a Copa do Mundo tirar sua anfitriã de uma recessão?No primeiro dia do ano do campeonato mundial de futebol, os jornais sintetizavam o clima de euforia: “2010 é o ano da África do Sul”; no entanto, melhorias à maioria da população ainda são apenas promessas

to total superior a 600 mi-lhões de dólares, os 68 mil espectadores da partida po-derão avistar a Table Moun-tain, a famosa montanha da cidade.

A onda de otimismo en-contra barreiras em alguns sobreavisos. O South Africa National Consumer Union alertou que a saída de uma crise não é algo instantâneo e que o país enfrenta o au-mento do preço dos alimen-tos, que deve ser acompa-nhado pelo aumento das ta-xas de energia e telefonia. O Consumer Profi le Bure-au também não aposta todas as moedas na Copa do Mun-do. A preocupação estaria no fi m dos jogos, quando cerca de 500 mil empregos das in-dústrias de construção e en-tretenimento devem desa-parecer.

O país dos outrosA professora Wendy Doust

admira o estádio de Green-point diariamente, ao sair da parte leste da Cidade do Cabo em direção a Sea Point pela avenida litorânea prin-cipal. Wendy, que já morou e trabalhou na antiga coloni-zadora do país, a Inglaterra, diz que ainda sente o dedo da monarquia pesando so-bre a África do Sul. “A Cida-de do Cabo é possivelmente uma das mais belas cidades do mundo, com a bela mistu-ra entre o mar azul e as mon-tanhas. Mas o que eu sinto é que toda essa beleza que comporta a cidade não está disponível para mim. Eu sin-to que o que eu posso ter da-qui são apenas as paisagens, pois o desenvolvimento em si não parece estar à minha disposição”, diz.

Ao ser perguntada sobre qual desenvolvimento ela não enxerga em sua vida,

Wendy lista: educação, saúde e trabalho. A falta de traba-lho é, de fato, uma das quei-xas mais comuns na África do Sul. No início do segun-do semestre de 2009, a taxa de desemprego no país cres-ceu 24,5% – isso signifi ca que mais de 4 milhões de traba-lhadores da África do Sul es-tão sem emprego.

O otimismo com a des-tinação dos lucros da Co-pa do Mundo para uma me-lhor infraestrutura do pa-ís também não seduz Edu-ard Kalos, que mora no bair-ro Greenpoint. “Eu me per-gunto quando é que o gover-no nacional e local e a mídiavão chamar a atenção pa-ra o caos do transporte pú-blico na Cidade do Cabo”,desabafa. O meio de trans-porte mais comum na cida-de são as vans, chamadasde táxi ranks, normalmentevelhas e sem conforto. Elasnão têm local certo para em-barque ou desembarque –os sinais são os assovios docobrador ou as insistentesbuzinas do motorista. Qual-quer lugar das vias por ondecirculam pode se transfor-mar em um ponto de embar-que. Os ônibus que circulamno centro da cidade tambémestão em situações precárias– eles têm a capacidade má-xima de 91 pessoas, e o mo-torista se desdobra tambémno papel de cobrador.

“As copas do mundo sem-pre vieram com essas pro-messas. Mas quando elas foram realmente cumpri-das?”, questiona, sem mui-ta esperança, o comerciante do bairro de Mowbray, Brian Broomberg. Ele mesmo res-ponde à pergunta com um decidido “nunca”.

Na inconsistência dos re-tornos com o evento esporti-vo fl utua a esperança da po-pulação da África do Sul em ter melhorias em direitos bá-sicos. Cabe a espera no mo-mento, mas, considerando-se as pistas de Broomberg, o brilho dado à Copa do Mun-do até agora não passa de um falso diamante. (AMA)

Em 1913, a Inglaterra promulgou a Native Land Act (Lei da Terra Nativa), que formalizou nacionalmente que o acesso à terra se relacionava diretamente com a procedência racial da pessoa

vés do regime denominado apartheid, em 1948.

A partir de então, as bandei-ras por liberdade e igualdade do sul da África passaram a se pautar, direta ou indire-tamente, pela questão agrá-ria. “A terra deve ser repar-tida para quem trabalha ne-la”, dizia a frase do The Fre-edom Charter, documen-to adotado em junho de 1955 por mais de 3 mil pessoas de todas as cores. O fi m do siste-ma do apartheid – marcado pelas primeiras eleições de-mocráticas em 1994, que le-varam Nelson Mandela ao po-der da nação – e as promes-sas fi rmadas de reforma agrá-ria não foram sufi cientes para consolidar ousados passos na democratização da terra.

Os primeiros passosPrincipalmente nos anos de

1990, organizações não-go-vernamentais (ONGs), comu-nidade rurais e organizações políticas atuaram pela garan-tia de acesso à terra, com ban-deiras que abrangiam o fi m das remoções forçadas, a va-lorização da mulher que tra-balha no campo e a elimina-ção da pobreza nas comuni-dades rurais. Em compensa-ção, mesmo com discussões e documentos políticos referen-tes à reforma agrária, ou, ain-da, com a existência do De-partamento de Questão Agrá-ria, a atuação governamental não foi sufi cientemente ati-va para o rompimento com as injustiças do passado.

Repletos de indefi nições, os planos de reforma agrária na África do Sul encontraram en-traves como, por exemplo, as aquisições de terra pelo go-verno. Baseando a compra das terras no preço de mer-cado, a moeda de troca dos fazendeiros era a especula-ção. Assim, decisões que de-veriam ter como meta a redis-tribuição de terras acabaram por desconsiderar os aponta-mentos defendidos pelas or-ganizações que lutavam pela reforma.

Ainda que traçando metas, seja através do Settlement and Land Acquisition Grant (SLAG, Assentamento e Aqui-sição de Terras), nos primei-ros seis anos da redemocrati-zação, ou do Land Redistribu-tion for Agricultural Develo-pment (LRAD, Departamen-to de Redistribuição de Terras para Desenvolvimento Agrí-cola), a partir de 2000, os re-sultados nunca foram satisfa-tórios.

Com a mudança institucio-nal dos órgãos responsáveis pela reforma agrária, a meta anterior de redistribuir 30% das terras em cinco anos se alongou, podendo agora ser feita em até 15 anos. Assim, a África do Sul fechou o sécu-lo passado com menos de 1% de suas terras redistribuídas. Atualmente, não mais que 5% destas foram efetivamen-te destinadas para a refor-ma agrária. Em um país onde quase 80% dos 48 milhões de habitantes são negros, 80% das terras são controladas por fazendeiros brancos e pe-lo Estado.

Nesse contexto de exclusão e exploração, os trabalhos das organizações que lutam pelos direitos humanos e de aces-so à terra no país continuam sendo uma peça importan-te para se encorajar uma real emancipação. Como exemplo dessa luta, encontra-se a ONG Trust for Community Outrea-ch and Education (TCOE),

que, em seus documentos, fri-sa que uma das maiores lições aprendidas no processo de re-forma agrária no país é a ne-cessidade de se formar um movimento rural.

Um novo futuroPara a TCOE, o maior de-

safi o é a consolidação da or-ganização dos trabalhadores rurais do país contra a lógica imposta para o campo. No es-tado do Cabo Oeste (Western Cape), o fi nal de 2009 serviu para que as diversas comu-nidades com as quais a ONG trabalha trocassem suas expe-riências. Um festival reunin-

do essas comunidades acon-teceu na segunda quinzena de dezembro, na reserva natu-ral Vrolijkheid, nas proximi-dades da pequena cidade de Robertson.

Monica Johnson mora em Buffeljags River, uma região que ela descreve como “mui-to pobre e sem oportunidades de trabalho”. As terras da re-gião estão próximas a duas grandes fábricas de queijos e vinhos, como a Sharon Fruit, mas os empregos gerados ali não são destinados para a po-pulação local.

A história se repete com Velewzima Wakwa, que mo-

ra na região de Robertson e atua pelo direito à terra há 15 anos. Wakwa relembra as promessas feitas de refor-ma agrária no país, cuja taxa prometida em 1994 – de 30% em cinco anos – foi adiada novamente para 2014. Li-zzie Neethling, da região de Swellendam, acredita que os direitos dos povos são nega-dos. Há três anos na região, cujos títulos de proprieda-de não são daqueles que nas terras cultivam, Lizzie diz em voz calma e limpa que tais territórios deveriam re-tornar às pessoas que traba-lham neles.

“Give back our land” (De-volvam nossas terras) é a frase ao fundo das camisas de mui-tos ali presentes. Estampada em letras grossas nas camisas pretas, lê-se Mawubuye, no-me dado ao fórum de direitos à terra na África do Sul.

É esta a ligação entre as pes-soas afetadas por todo o lega-do de exclusão e que buscam de alguma forma ter o míni-mo da justiça garantido. São as sementes lançadas em uma terra já demasiadamente re-gada de suor e sangue, onde novas vozes são estratégias necessárias para a construção de um projeto para o país.

Bonança para poucosMas as mãos que ergueram

as ousadas arquiteturas dos estádios da África do Sul não parecem enxergar tal bonan-ça. Desde o início das cons-truções, em 2007, as greves dos trabalhadores da cons-trução civil no país foram motivo de preocupação pa-ra os organizadores do even-to. Nas coberturas feitas pe-los jornais nacionais e inter-nacionais, o foco foi a viabi-lidade ou não das obras se-rem concluídas a tempo dos jogos. A real causa dos traba-lhadores – um aumento de 13% nos salários – parecia um detalhe nas notícias. As frequentes negociações entre as empreiteiras e os sindica-tos encontraram o meio-ter-mo: 12% de aumento.

No início de dezembro, foi entregue o estádio de Gre-enpoint, na zona nobre da Cidade do Cabo, que rece-berá uma das semifi nais da Copa do Mundo. O estádio foi construído em 32 meses repletos de greves e brigas ambientalistas. De dentro do estádio, que teve um cus-

Desde o início das construções, em 2007, as greves dos trabalhadores da construção civil no país foram motivo de preocupação para os organizadores do evento