BANDEIRA, Moniz. O Marxismo e a Questão Cultural.

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Ficha bibliogrfica BANDEIRA, Moniz. O Marxismo e a Questo Cultural. In: TROTSKY, Leon, Literatura e Revoluo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980, 2. ed. P. 7- 18. O MARXISMO E A QUESTO CULTURAL Moniz Bandeira Que atitude deve adotar a revoluo diante da literatura e a arte? Poder o proletariado, assumindo a posio de classe dominante na sociedade, criar a sua prpria cultura, como o fez a burguesia? Estes problemas, a que os fundadores do socialismo cientfico no dedicaram especial ateno, os bolcheviques tiveram de enfrentar, aps a tomada do poder, em 7 de novembro de 19171. O torvelinho da revoluo envolveu, de uma forma ou de outra, os escritores, poetas e artistas. A torre de marfim desmoronou. A indiferena da arte pura pela participao poltica manifestou seu verdadeiro sentido de classe. Uma grande parte da intelligentsia no escondia o desprezo e extravasava seu dio contra os vndalos, os usurpadores, o populacho, em suma, contra os bolcheviques, principalmente contra Lnin e Trotsky. As musas da burguesia e da nobreza, quando no se engajavam na guerra civil, ao lado dos brancos e da Entente, silenciavam , emudeciam, no suportavam as privaes, a fome e o frio, a promiscuidade com a plebe. Escritores e poeta ou fugiam para o exterior ou se isolavam, com horror e alheios ao mundo que emergia, como estrangeiros dentro do seu pas, os emigrados internos, segundo a expresso com que Trotsky os batizou. No lhes restava outro caminho seno buscar o passado. E quanto mais remoto, tanto melhor. Aldanov agarrava-se Revoluo Francesa de 1789. Boris Zaisev ressuscitava as figura do renascimento italiano. E Dmitri Merejkovsky retornava ao Egito dos faras, Babilnia e a Mesopotmia. Outros, como Z. Gippius, L. Andreyev, M. Artsbachev e A Kuprin, simplesmente odiavam. A intelligentsia, comprometida, na sua maioria, com as classes derrubadas pela revoluo, mergulhou o Poder Sovitico num clima de hostilidade, e entre os anos de 1918 e 1919, a antiga literatura e a antiga arte ruram com o regime social a que serviam como superestrutura ideolgica. No se pode dizer, entretanto, que toda a intelectualidade passou para a contra-revoluo. Valeri Briusov, Alexandre Blok, Serge Essenin, Maximo Gorki, Vladimir Maiakovsky, Serafimovitch e Natan Altman, entre outros, apoiaram o Governo Sovitico. Novas escolas artsticas e literrias, como o futurismo, o imaginismo, o construtivismo, os Irmos Serapion, os forjadores, floresceram no campo da revoluo. Havia, naturalmente, certa ambivalncia nas relaes entre essa escolas e os dirigentes bolcheviques. Lnin olhava com desconfiana o futurismo. Ainda preferia Tlstoi, Puschkin, Checov, Shakespeare, Shiller e Byron. No porque repelisse as inovaes, mas porque desejava uma arte acessvel s massas e no apenas para deleite de meia dzia de intelectuais. Vrias vezes tentei ler Maiakovsky e nunca pude ler mais que trs versos: sempre durmo comentava. No aceitava, por outro lado, a tendncia para a criao da cultura proletria, representada pelo Proletkult, que, sob a inspirao de A. Bogdanov e de Lebedev-Polianski, contava com o patrocnio do Comissariado da Instruo, dirigido por A. Lunatcharsky, e a simpatia de Bukharin. Interveio e exigiu que o Congresso do Proletkult, realizado em Moscou (1920), aprovasse uma resoluo, por ele prprio redigida, condenando com a maior energia, como inexata teoricamente e prejudicial na prtica, toda tentativa de inventar uma cultura especial, prpria. E, quando o Pravda publicou um artigo em que Pletnev manifestava a sua inteno de estudar cincia proletria. Lnin repreendeu Bukharin por permitir a publicao daquele disparate e escreveu que o autor no deve estudar cincia proletria, mas, simplesmente, estudar. Coube a Trotsky, cujas opinies coincidiam, de modo geral, com as de Lnin, abordar mais profundamente esses problemas. No pretendia escrever um livro e sim o prefcio para um volume de suas Obras, que as Edies do Estado lanariam. Era o vero de 1922, e ele, depois de recusar o posto de vice-presidente do Conselho de Comissrios do Povo, que Lnin lhe oferecera, partiu de frias para o interior da Rssia. O prefcio cresceu tanto que se converteu num livro e Trotsky s pode termin-lo no vero seguinte. Assim apareceu Literatura e Revoluo. Trotsky no s criticava, do ponto de vista dialtico, as principais tendncias artsticas e literrias da Rssia ps - revolucionria, seus principais intrpretes, com Biely, Blok, Essenin, Maiakovsky e outros, como estudava, detidamente, a atitude que o partido Comunista deveria adotar e a questo da cultura proletria.1 24 de outubro, segundo o antigo calendrio russo, modificado posteriormente pelo governo sovitico.O Partido Comunista, no seu entender, no deveria interferir nas controvrsias e nas disputas entre as diversas escolas, assumir a posio de um circulo literrio, concorrendo com outros, mas salvaguardar os interesses histricos do proletariado, no seu conjunto. Como que prevendo a degenerescncia do estalinismo, que, posteriormente, criou uma arte oficial, na verdade acadmica e burocrtica, sob o epteto de realismo socialista, Trotsky proclamaria: a arte no constitui um terreno onde o Partido possa mandar. O Partido pode e deve conceder um crdito de confiana aos diversos grupos que procurem, sinceramente, aproximar-se da revoluo, afim de ajud-los na sua realizao artstica. Significava esse ponto de vista uma concesso ao liberalismo? No. Ele prprio salientava: O Partido, evidentemente, no pode entregar-se ao principio liberal do laissez-passer, mesmo na arte, mesmo por um s dia. A questo saber quando deve intervir, em que medida e em que caso. Ensinava ainda: O Partido orienta-se por critrios polticos e repele, na arte, as tendncias nitidamente venenosas e desagregadoras. E mais adiante: Se a revoluo destri pontes ou monumentos, quando preciso, ela no hesitar em bater toda tendncia artstica que, por maiores que sejam as suas realizaes formais, ameaasse introduzir fermentos desagregadores nos meios revolucionrios ou jogar, umas contra as outras, as foras internas da revoluo, ou seja, o proletariado, o campesinato, os intelectuais. Nosso critrio , decididamente, poltico, imperativo e intolerante. Da a necessidade de definir seus limites. A ele, porm, como aos fundadores do socialismo cientfico, repugnava a arte dirigida, instrumento puro e simples de propaganda partidria. A arte, como produto da vida social, reflete, no s pelo contedo como pela forma, as realidades de uma poca e todas as suas contradies. No existe, desse modo ,arte sem contedo ou tendncia. Imprimir-lhe, todavia, o carter de propaganda partidria convert-la de sistematizao d idias. E a arte deixa de ser arte. O artista- escrevia Plekhanov2 - expressa seu pensamento por meio de imagens, enquanto o publicista comprova suas idias com argumentos lgicos em lugar de imagens, ou se as imagens, que criou, lhe servem para demonstrar tal ou qual assunto, no se trata de um artista, mas de um publicista, mesmo que escreva, em vez de ensaios e artigos, romances, novelas ou peas de teatro. A compreenso da arte dirigida, instrumento de propaganda poltica, jamais encontrou apoio nas teorias de Marx e Engels. Analisando a tragdia de Lassalle, intitulada Franz Von Sckingen, Marx aconselhou-o a seguir o exemplo de Shakespeare, porque via na schillerizao a transformao dos personagens em simples porta-vozes do esprito do sculo, o seu maior defeito3. Engels, por sua vez, reiterava: No sou em absoluto adversrio da poesia de tendncia como tal... Mas creio que a tendncia deve surgir da prpria situao e da prpria ao, sem que seja explicitamente formulada. O poeta no obrigado a dar pronta aos leitores a futura soluo histrica dos conflitos que descreve4." Shakespeare retratou os homens e a sociedade do seu tempo. A agonia de uma classe e a ascenso de outra. As tendncias de seus dramas so as tendncia do prprio desenvolvimento social de que brotaram. Schiller, ao contrrio, transformou o teatro numa tribuna para sustentar suas teses. Estas no apareciam, como em Shakespeare, na medida do real desenrolar dos acontecimentos. O desenrolar dos acontecimentos que estava em funo do ideal, em funo de suas teses. Wilhelm Tell consagrava o direito de assassinar tiranos. Por mais nobres que fossem suas atitudes polticas e seus ideais, a intencionalidade prejudicou a grandeza artstica de sua obra. Quanto mais as opinies (polticas) do autor ficam escondidas ponderava Engels5 tanto melhor para a obra de arte. O realismo de que falo se manifesta mesmo fora das idias do autor. E, anos mais tarde, Lnin repetira o mesmo, a propsito de Tolsti6: Se estamos diante da de um artista verdadeiramente grande, ele deve refletir, em suas obras, ao menos alguns aspectos essenciais da revoluo. Essa orientao, contrria a que se transforme a arte em instrumento de propaganda partidria, foi seguida por outros intrpretes do marxismo como Franz Mehring e Rosa Luxemburgo. Rosa Luxemburgo declarou categoricamente: Esta novela, sem dvida, no me agradou tanto como O Homem Rico e no apesar de (sublinhado pela prpria R. L.), seno precisamente porque (idem) a tendncia social nesta mais2 A Arte e a Vida Social 3 Carta a F. Lassalle, 19 de abril de 1859. 4 Carta a Minna Kautsky, 26 de novembro de 1885. 5 Carta a Miss Harknesse, abril de 1888. 6 "Tolstoi: Espelho da Revoluo", Proletari, 11 de setembro de 1908.acentuada. Numa novela no busco nunca o fundo, mas, antes de tudo, o seu valor artstico7. A orientao de Trotsky, no que se referia questo da cultura proletria, tambm acompanhava a tendncia geral do pensamento de Marx e Engels, endossada por Lnin. O Marxismo dizia Lnin8 conquistou sua significao histrica universal, como ideologia do proletariado revolucionrio, porque no rechaou, de modo algum, as mais valiosas conquistas da poca burguesa, mas pelo contrrio, assimilou e reelaborou tudo o que houve de valioso em mais de dois mil anos de evoluo do pensamento e da cultura da humanidade. nin considerava ainda profundamente justas e importantes as palavras de Kautsky, quando salientava que no o proletariado o portador da cincia contempornea, seno os intelectuais burgueses (sublinhado por K.K.)9. E no somente as cincias. As artes tambm. O proletariado Explicava Rosa Luxemburgo10 Nada possuindo, no pode, na sua marcha para frente, criar uma cultura nova em folha, enquanto conservar-se nos quadros da sociedade burguesa. E conclua: Tudo o que pode fazer hoje proteger a cultura da burguesia contra o vandalismo da reao burguesa11... Mas, uma vez libertado das cadeias do capital, poderia o proletariado criar a sua prpria cultura? As condies econmicas, sociais e polticas no o permitiriam. A sua ditadura constituiria um semiEstado, um Estado em deperecimento, um regime de transio. Como construir uma cultura e uma arte do proletariado, se, com o estabelecimento de sua ditadura, comearia o processo do seu desaparecimento como classe? A arte e a literatura tomariam, naturalmente, outro cunho, novas formas, durante os anos de poder operrio, em via de definhamento. Novas formas, no impostas por decretos nem predeterminadas burocraticamente, mas refletindo, como superestruturas, as situaes histricas e o processo social da extino das classes e, em conseqncia, do Estado. A burguesia pde desenvolver uma cultura e uma arte prprias. O destino histrico do proletariado, todavia, bem diverso. O seu papel, ao assumir o poder, no organizar outra sociedade de classes e sim acabar todas as classes da sociedade. Explica-se a sua ditadura como um regime de transio, em que, destruindo a burguesia, o proletariado destruir a si mesmo como classe. No poderia haver, portanto, uma cultura e uma arte proletrias, precisamente quando todas as classes comeam a desaparecer. No teriam sentido. Nem seriam possveis. O marxismo jamais pretendeu substituir a dominao de uma classe por outra, mas liquidar com todas. Este o objetivo claro do poder transitrio do proletariado. Um poder que definha na razo direta do desaparecimento das classes e, por conseguinte, do proletariado. A condio de existncia de uma a condio de existncia da outra. Rosa Luxemburgo indicava que a classe operria s poder criar uma arte e uma cincia prpria depois de libertar-se completamente de sua atual situao de classe"12. E, criando uma arte e uma cincia prprias, aps libertar-se de sua atual situao de classe, estas j no seriam proletrias, mas socialistas. Por isso Trotsky repetia que "a vitria histrica e a grandeza moral da revoluo do proletariado consistem na colocao da primeira pedra de uma cultura em que no haver diferenas de classes e que, pela primeira vez, ser verdadeiramente humana13. O livro de Trotsky provocou uma srie de controvrsias. Tanto Lunatcharsky como Bukharin continuaram a defender o Proletkult, apesar da oposio de Lnin e das crticas de Trotsky. Lunatcharsky, embora considerasse a obra verdadeiramente notvel, chegando mesmo a declarar que subscreveria sem vacilar os pontos de vista de Trotsky quanto ao comportamento do Partido Comunista diante dos intelectuais, principalmente dos paputchiki14, atacou a sua concepo de cultura proletria. Trotsky, reconhecendo, segundo ele, apenas as culturas do passado feudal e burguesia e a cultura do futuro socialista apresentava a ditadura do proletariado como um perodo estril de realizaes artsticas e literrias. Bukharin, por sua vez, argumentava: A posio do companheiro Trotsky errnea por uma simples razo. O companheiro Trotsky, em primeiro lugar, no leva em conta a durao do perodo da ditadura do proletariado. Em segundo lugar, no leva em conta a desigualdade do desenvolvimento da ditadura do proletariado nos distintos pases. Conquistamos o poder. Temos a ditadura do proletariado. Mas temos essa ditadura do proletariado em condies concretas, caracterizadas pelo fato de que se acha rodeada de inimigos. Estamos em presena de um longo caminho da ditadura do proletariado, porque a conquista do poder pelo proletariado, em todos os pases, se efetua de modo desigual. Conquistamos o poder num pas.7 Cartas da Priso - Carta a Sonia Liebknecht, 18 de fevereiro de 1917. 8 A Cultura Proletria, 8 de outubro de 1920. 9 Lenin, Que Fazer? 10 Estacionamentos e Progressos da Doutrina - Vortwaerts, 14 de maro de 1903. 11 Idem 12 Op. Cit. 13 Literatura e Revoluo. 14 Expresso que significa companheiros de viagem.Em outros, no. Encontramo-nos diante de uma premissa: o prolongamento do caminho da ditadura do proletariado, o desenvolvimento desigual do movimento operrio. Por isso, a literatura, que se forma, geralmente, imagem e semelhana da classe dominante, adquire inevitavelmente, traos especficos. Pode-se dizer o mesmo em outros termos: o companheiro Trotsky, na sua construo terica, exagera a cadncia de desenvolvimento da sociedade comunista ou, em outras palavras, o companheiro Trotsky exagera a rapidez do desaparecimento progressivo da ditadura do proletariado. Da o seu erro terico, do qual se deduzem as conseqncias que tirou. Se de um lado, Trotsky e Lnin tinham razo no problema da impossibilidade de uma cultura proletria, a previso de Bukharin, quanto ao ritmo de desenvolvimento da revoluo proletria mundial, mostrouse mais acertada. No que, depois de 1923, Lnin e Trotsky esperassem a vitria imediata do socialismo na Europa. Perceberam que se iniciava um perodo de refluxo. Trotsky, quando escreveu Literatura e Revoluo, contava com dcadas de lutas e, por isso mesmo, argumentava que as energias do proletariado no poderiam voltar-se para as questes da arte e da literatura. Talvez, porm, no imaginasse, quela poca (1923), que o refluxo se manifestasse de forma to dramtica, dentro da prpria Unio Sovitica, e as dcadas de lutas acumulassem derrotas. E, consequentemente, a sua tese implicava certo exagero quanto ao desaparecimento da ditadura do proletariado, como dizia Bukharin. Mas, se, por um lado, o proletariado, at 1945, no conseguiu nenhuma vitria, conforme Lnin e Trotsky esperavam, no pde, por outro, criar, dentro da Unio Sovitica, uma literatura e uma arte prprias. As obras do realismo socialista refletiram, pela sua mediocridade, no o desenvolvimento de uma cultura proletria, mas a degenerescncia burocrtica, que se cristalizou no estalinismo, exatamente por causa da desigualdade do desenvolvimento da ditadura do proletariado nos distintos pases, ou, em outras palavras, por causa do atraso da revoluo mundial. A literatura e arte daquele perodo se formaram imagem e semelhana da burocracia. As divergncias entre Trotsky e Bukharin, no plano da cultura, constituam apenas um aspecto de um conflito poltico mais profundo, que se tratava entre as diversas faces do partido Bolchevique e os dois interpretavam. Trotsky, terico da revoluo permanente, defendia o ritmo de coletivizao e industrializao da URSS. Bukharin, quele tempo (1925), situava-se na ala direita, simpatizava com o kulak, o campons abastado, propugnava pela concesso de incentivos aos agricultores, desejava a industrializao em passos de tartaruga e, finalmente, fornecia a Stlin a munio terica para a tese do socialismo num s pas. A derrota de Trotsky, aps a morte de Lnin (1924), correspondeu, tambm, o estrangulamento de toda a atividade criadora, existente nos primeiros anos da revoluo. A burocracia estendeu a sua teia sobre o terreno das artes e da literatura. Bukharin, que defendera o Proletkult, passou a defender juntamente com Karl Radek15, a teoria do realismo socialista, que orientou em A. A. Zhdanov o seu mximo expoente: O camarada Stlin chamou os nossos escritores de engenheiros da alma humana. Esta definio te um significado profundo. Ele fala da enorme responsabilidade dos escritores soviticos no que se refere educao do povo, educao da juventude. E fala da necessidade de no tolerar a dissipao no trabalho literrio (...) Guiado pelo mtodo do realismo socialista, estudando, atenta e conscienciosamente, nossa realidade, esforando-se para penetrar, mais profundamente, na essncia do processo de nosso desenvolvimento, o escritor deve educar o povo e arm-lo ideologicamente (...) Se a ordem social feudal e logo a burguesia, no perodo de seu florescimento, puderam criar uma arte e uma literatura, que afirmou o estabelecimento da nova ordem e cantou o seu apogeu, ns, que representamos uma nova ordem, a ordem socialista, a encarnao de tudo o que h de melhor na histria da civilizao e da cultura humana, estamos na melhor das posies para criar a literatura mais avanada do mundo, literatura que deixar muito atrs os melhores exemplos do gnio criador de todos os tempos.16 Estas palavras retratam, fielmente, a mentalidade dominante, na Unio Sovitica e nos pases socialistas da Europa oriental, ao tempo de Stlin, mentalidade que, de certa forma, ainda sobrevive. A escola do realismo socialista no conseguiu, entretanto, impor os seus cnones estreis a todos os pases onde a revoluo triunfou, depois de 1945. As concepes de Mao Ts-Tung, pelo menos at poca da revoluo cultural, aproximava-se muito mais das posies de Lnin e Trotsky do que das posies do realismo socialista. Estudamos o marxismo dizia Mao Ts-Tung17 com o objetivo de aplicar o ponto de vista do15 Tanto Bukharin como Radek sucumbiram nos processos de Moscou. Bukharin, que, na luta contra Trotsky, se aliou a Stalin, morreu executado em 1938. Radek, condenado priso, desapareceu. 16 Literatura e Filosofia Luz do Marxismo, de A. A. Zhdanov. 17 Sobre a Arte e a Literatura.materialismo dialtico e materialismo histrico na nossa observao do mundo, da sociedade, da arte e da literatura, e no com o objetivo de escrever discursos filosficos em nossas obras artsticas e literrias. O marxismo abarca o realismo na criao artstica e literria, mas no pode substitu-lo, do mesmo modo que abarca as teorias atmicas e eletrnica, na Fsica, mas no pode substitu-las. Os dogmas e as frmulas vazias e esquematizadas destruram, com certeza, nosso impulso criador e, mais ainda, destruiriam, em primeiro lugar, o marxismo. Defendia, como Lnin, Trotsky e Rosa Luxemburgo, a preservao da herana cultural da humanidade, contra o esquerdismo artstico e literrio: Devemos apoderar-nos do rico legado deixado pela arte e pela literatura do passado, tanto na China como do estrangeiro, continuar suas belas tradies. Mas devemos faz-lo com nossos olhos postos nas grandes massas do povo.18 E insistia: Devemos apoderar-nos de todo o belo legado artstico e literrio, assimil-lo em tudo o que benfico para ns e elev-lo como um exemplo, quando tentamos elaborar a matria-prima artstica e literria, proveniente da vida do povo, do nosso prprio tempo e lugar.19 Mao Ts-Tung, como Trotsky, admitia a livre competio de todas as variedades de obras artsticas. Devemos rechaar o sectarismo em nossas crticas artstica e literria e, sob o princpio geral de unidade e resistncia ao Japo, tolerar todas as obras literrias e artsticas que expressem todo gnero de atitude poltica. Salientava, igualmente, a necessidade de estabelecer juzos acertados sobre todas as variedades de obras artsticas, segundo o critrio da cincia da arte, e mostrava que as obras de arte, por mais progressistas que sejam, politicamente so impotentes, se carecem de qualidade artstica.20 Fidel Castro, em Cuba, permitiu tambm a mais completa liberdade de criao artstica e literria, no campo da revoluo, admitindo o florescimento das mais diversas escolas. "Prefiro um bom poema de amor a um mau poema poltico, porque o mau poema poltico desserve a revoluo"- diria, num discurso dirigido aos intelectuais. A sua luta contra o sectarismo (e ele mesmo ressalta que no se pode confundir sectarismo com radicalismo) tomaria uma amplitude muito maior, na sua poltica cultural, encarando a revoluo como uma escola de pensamento livre, que no precisa de truques nem de fraudes para defender-se.21 Os problemas que Trotsky levantou, em Literatura e Revoluo, continuam, assim, na ordem do dia. A literatura e a arte sero espelho ou martelo ou, a um s tempo, espelho e martelo. Realista ou abstrata, refletir, no menos pela sua forma do que pelo seu contedo, a necessidade do homem, que deseja a sua emancipao, a angstia do povo que luta para se libertar. A arte ser o espelho dessa realidade. E, quando o homem superar a sociedade de classes e a alienao, ela retornar s suas fontes reais na sociedade, s suas razes humanas. A arte confundir-se- nas relaes concretas do homem com o prprio homem, do homem com a natureza. Rio, agosto de 1968.18 Idem. 19 Idem. 20 Idem. 21 Contra o Sectarismo e o Mecanicismo, discurso de 13 de maro de 1962.