Balboas: Identidade de jornalistas latino-americanos em ... · Cremilda Celeste de Araújo Medina...

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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PROGRAMA DE CIÊNCIAS DA INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA EDSON CAPOANO Balboas: Identidade de jornalistas latino-americanos em redes sociais São Paulo 2013

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1    

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE CIÊNCIAS DA INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA

EDSON CAPOANO

Balboas: Identidade de jornalistas latino-americanos em redes sociais

São Paulo

2013

2    

EDSON CAPOANO

Tese apresentada ao Programa de Ciências da Integração da América Latina da Universidade de São Paulo para obtenção do título de doutor em Ciências. Área de concentração: Comunicação e Cultura Orientadora: Profa. Dra. Cremilda Celeste de Araújo Medina

São Paulo

2013

3    

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação da Publicação

4    

Nome: CAPOANO, Edson

Título: Balboas: Identidade de jornalistas latino-americanos em redes sociais

Tese apresentada ao Programa de Ciências da Integração da América Latina para obtenção do título de Doutor em Ciências.

Aprovada em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. __________________________________Instituição: ______________________

Julgamento: ______________________ Assinatura: _______________________________

Prof. Dr. __________________________________Instituição: ______________________

Julgamento: ______________________ Assinatura: _______________________________

Prof. Dr. __________________________________Instituição: ______________________

Julgamento: ______________________ Assinatura: _______________________________

Prof. Dr. __________________________________Instituição: ______________________

Julgamento: ______________________ Assinatura: _______________________________

Prof. Dr. __________________________________Instituição: ______________________

Julgamento: ______________________ Assinatura: _______________________________

5    

À Maria Tereza da Silva Capoano.

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Agradecimentos

Agradeço especialmente à excelente professora orientadora Cremilda Celeste de

Araújo Medina que, com paciência, esmero e afeição, tornou cosmos o que era um caos de

ideias, vontades e narrativas; e ao professor Carlos Waisman, eficiente orientador da UCSD;

À minha mulher, Marina Louro Fruet, que se manteve firme durante crises identitárias,

sempre me lembrou quem eu era e me acompanhou em todos trabalhos de campo;

Aos jornalistas Balboas Helena Fruet, Marcos Todeschini, Rocío La Rosa, Laura

Guzmán, David Santa Cruz, Santiago Torrado e Eswin Quiñónez. Este trabalho é fruto das

nossas experiências em rede e dos diálogos de confiança que tivemos ao longo dos anos da

pesquisa.

Aos incontáveis amigos e colegas, professores das bancas de qualificação e defesa,

pesquisadores brasileiros e estrangeiros, que compuseram a rede para a construção desta tese.

Seria injusto dizer o nome de muitos sem mencionar a todos.

Termino agradecendo a Aires Vaz, cuja dedicação ao Programa Balboa fez mais à

integração da América Latina que qualquer tese. Esse é o verdadeiro herói da jornada, que nos

permitiu mergulhar dentro de cada um de nós.

Muito obrigado a todos.

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“O único mito de que valerá a pena cogitar, no futuro imediato, é o que fala do planeta, não da cidade, não deste ou daquele povo, mas do planeta e de todas as pessoas que estão nele. O mito que está por vir lidará com aquilo que todos os mitos têm lidado – o amadurecimento do indivíduo, da dependência à idade adulta, depois à maturidade e depois à morte; e então com a questão de como se relacionar com esta sociedade e como relacionar esta sociedade com o mundo da natureza e com o cosmos. É disso que os mitos têm falado, desde sempre, e é disso que o novo mito terá de falar. Mas ele falará da sociedade planetária.”

(Joseph Campbell, in O Poder do Mito).

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Resumo Esta tese busca compreender como se atualizam identidades de jornalistas latino-americanos, em diálogo por redes sociais. Isso será realizado por meio de um estudo de caso: jornalistas latino-americanos que participaram de uma rede presencial, o Programa Balboa para Jóvenes Periodistas Iberoamericanos. O objetivo é compreender como redes presenciais contribuem para o diálogo cultural e a atualização de identidades individualizadas. As redes parecem fomentar trocas de experiências, estimulando identidades ampliadas e glocalizadas. Os referenciais teóricos constam sobre identidade e os processos tradicionais e contemporâneos de formação desta; mitos e textos culturais mitológicos, que portam signos identitários em comum entre as culturas latino-americanas e conceitos sociológicos sobre redes sociais, modelos básicos e especificidades das redes presenciais. A metodologia utilizada é pesquisa bibliográfica; pesquisa comparativa entre redes sociais presenciais; pesquisa de campo exploratória, realizada no Brasil, no Peru, na Guatemala e no México; pesquisa qualitativa, realizada através de entrevista com jornalistas do Programa Balboa; e finalmente, estudo de caso da rede Programa Balboa para Jovens Jornalistas Ibero-Americanos. Palavras-chave: identidade; redes; jornalistas; mitos; redes presenciais.

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Abstract This dissertation seeks to understand how individual identities of Latin American journalists are renewed in dialogue through in loco social networking. This will be accomplished through a case study: Latin American journalists who participate in an in loco network, the “Programa Balboa para Jóvenes Periodistas Iberoamericanos”. The goal is to understand how face-to-face networks contribute to cultural dialogue and the renewal of individual identities. The networks seem to instigate the exchange of experiences, stimulating enlarged and glocalized identities. The theoretical references are on identity and the traditional and contemporary processes that constitute it; myths and cultural mythological texts, which carry signs in common identity among Latin American cultures and sociological concepts about social networking, basic models and characteristics of face-to-face networks. The methodology used is literature, comparative research between social and in loco networking; exploratory field research conducted in Brazil, Peru, Guatemala and Mexico; qualitative research carried out through interviews with journalists from the Balboa program, and finally, a case study of Balboa Program for Young Ibero-American Journalists. Keywords: identity; networks; journalists, myths, face-to-face networks.  

10    

Sumário

Introdução..................................................................................................................... 12

Capítulo 1. Identidade................................................................................................... 19

Capítulo 2. Mitos............................................................................................................ 39

2.1 Mitos em rede........................................................................................................ 56

2.2 A Jornada do Herói................................................................................................ 70

2.3 Erro no mito........................................................................................................... 73

2.4 Entrevistas baseadas na Jornada do Herói............................................................. 78

Capítulo 3. Redes Sociais............................................................................................... 80

3.1 Características de redes presenciais..................................................................... 87

3.2 CIESPAL, a primeira rede presencial de jornalistas da América Latina............... 91

3.3 Redes de jornalismo presencial na América Latina.............................................. 94

3.3.1 Fundação AVINA para o desenvolvimento sustentável.............................. 95

3.3.1.1 Bolsas AVINA de jornalismo............................................................. 96

3.3.2 TAL – Televisión América Latina............................................................... 99

3.3.3 FNPI – Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano............................... 101 3.3.4 Estudo de caso: Programa Balboa para Jovens Jornalistas Ibero-Americanos......................................................................................................................... 104

Capítulo 4. Relato de experiências e entrevistas............................................................. 107

4.1 Relato de Madri, Espanha, fevereiro a julho de 2007.............................................. 108

4.2 Relato de São Paulo, Brasil, agosto de 2007............................................................ 114

4.2.1 Doutorado...................................................................................................... 116

4.3 Relato de Lima, Peru, abril de 2010......................................................................... 116

4.4 Relato da Cidade do México, julho de 2011............................................................ 120

4.4.1 De partida, umas sodas................................................................................... 122

4.5 Relato da Cidade da Guatemala, julho de 2011....................................................... 123

4.6 Relato de San Diego, dezembro de 2012................................................................. 126

11    

4.7 Entrevistas comentadas............................................................................................ 127

4.7.1 Cremilda Medina............................................................................................. 127

4.7.1.1 Depoimento........................................................................................... 129

4.7.2 Helena Fruet.................................................................................................... 131

4.7.3 Marcos Todeschini.......................................................................................... 133

4.7.4 Rocío La Rosa................................................................................................. 136

4.7.5 Laura Guzmán................................................................................................. 139

4.7.6 David Santa Cruz............................................................................................ 140

4.7.7 Santiago Torrado............................................................................................. 142

4.7.8 Eswin Quiñónez.............................................................................................. 144

4.7.9 Diálogo com Aires Vaz, diretor do Programa Balboa.................................... 146

4.7.9.1 Desconstrução do Programa................................................................... 146

4.7.9.2 O Arauto em descrédito.......................................................................... 147

4.7.9.3 Dissolução de afetos............................................................................... 149

4.7.9.4 Carta à Telefónica.................................................................................. 150

Conclusões......................................................................................................................... 151

Referências Bibliográficas................................................................................................ 171

Apêndices........................................................................................................................... 180

Anexos................................................................................................................................. 262

12    

INTRODUÇÃO

A identidade de um indivíduo pode ser constituída de diversas formas. As escolhas

pessoais, a errância dos seus passos e o diálogo com o Outro e com o mundo alteram a

percepção das experiências e a forma com que cada um assimila o que nos torna únicos. Essa

autonomia vivencial gera signos e textos individuais que dialogam com signos e textos

coletivos, provindos de heranças sociais, religiosas e territoriais, definindo o que somos,

complexamente.

O fato é que, na contemporaneidade, não se vive mais em um tempo lento, de

constituição cultural gradativa, nem em espaços reduzidos, como as fronteiras das sociedades

pré-americanas, em comparação com o mundo ampliado depois da Conquista da América.

Hoje, há uma reordenação das barreiras espaciais, temporais e simbólicas por onde nasce e

transita a cultura. Algumas sociedades latino-americanas se identificam pela inserção em

modelos econômicos, culturais e políticos do resto do Ocidente. Muitas, entretanto, se

identificam pelas mazelas que compartilham, como a urbanização descontrolada, o

desemprego e a violência.1 Um processo sem volta, em que os indivíduos da América Latina

se identificam, seja pelas origens culturais comuns entre si ou como lidam com os processos

de combinação e diálogo contemporâneos.

Os latino-americanos do século XXI definem-se graças às suas narrativas internas,

como por produções culturais tradicionais que geram em suas comunidades. Mas os nós da

rede cultural são tão intrincados, desde as navegações até o mundo globalizado de hoje, que

os textos culturais que exercemos como nossos fatalmente têm confluências externas. Assim,

é cada vez mais complexo analisar apenas os elementos simbólicos locais para compreender a

formação de identidades contemporâneas. Terrível, diriam alguns, já que a falta de fronteiras

simbólicas pode promover a dissolução dos limites das identidades, sejam elas nacionais,

étnicas, religiosas ou políticas. Fantástico, diriam outros, já que o caos e reorganização dos

elementos simbólicos podem oferecer novas narrativas, que combinam heranças culturais com

experiências locais e globais dos indivíduos. À busca de suas próprias identidades

contemporâneas, os indivíduos percebem os diversos interlocutores e os textos que compõem

a si mesmos. Cada um, ao seu jeito, tece uma rede de diálogo entre suas narrativas culturais

tradicionais e as contemporâneas em que transita. E essa parece ser a forma como se

constituem as identidades latino-americanas contemporâneas.                                                                                                                1 Uma das marcas identitárias das viagens de campo pela América Latina foi, infelizmente, a violência. Narcotráfico, políticas de segurança equivocadas e miséria que se rende à criminalidade são comuns entre Peru, Colômbia, México, Guatemala e Brasil. 2 Em 2012, o Programa Balboa para Jovens Jornalistas Ibero-Americanos passou por uma transição de diretoria,

13    

Isso posto, como encontrar referências culturais comuns para descobrir se indivíduos

compartilham uma mesma identidade, ou no caso desta tese, identidades latino-americanas?

Uma forma é voltar às origens dos textos culturais de nossas sociedades. Os mitos, escolhidos

para esta tese como campos de pesquisa, são uma alternativa interessante para encontrar

diálogos culturais entre cidadãos latino-americanos inseridos em sociedades globalizadas.

Mitos vagam pelo imaginário das sociedades e apresentam semelhanças com outros mitos do

continente latino-americano. São narrativas facilitadoras para a compreensão do Outro e do

texto que esse interlocutor porta. Graças à facilidade trazida por novos canais de comunicação,

os mitos podem ser atualizados e transcriados, dentro das narrativas nulo espaciais e nulo

temporais da TV, rádio e da internet.

As redes sociais, por exemplo, geram novos espaços de diálogo cultural internacional.

A facilidade com que aproximam o distante e tornam simultâneos tempos distintos geram

novos diálogos com elementos culturais tradicionais. Nesse contexto, indivíduos escolhem

signos, compõem seus próprios textos e contribuem com nuvens culturais que alcançam todo

o continente, graças ao diálogo ampliado permitido pelas novas tecnologias de comunicação e

informação. De locais tradicionais de construção de identidades, como famílias, escolas,

igrejas, faculdades e empregos, indivíduos expandem seus textos identitários por redes

transnacionais de comunicação e diálogo.

Entretanto, isso pode gerar um desligamento da narrativa local com os seus autores e

seus contextos. A narrativa cultural pode perder seu lastro quando oferecida na internet

apenas como informação em fluxo e sem autor. Nem todas as culturas tradicionais, atores

sociais e cotidianos regionais estão representados na internet, por isso não é certo afirmar que

o diálogo cultural apenas em redes sociais digitais reafirmará as identidades na América

Latina contemporânea. Narrativas culturais em redes sociais digitais devem dialogar com os

interlocutores nos espaços virtuais, oferecendo signos que remetam à sua origem e à sua

autoria. Hoje, nas redes digitais, signos de relação autênticos dividem espaço com a simples

difusão de dados, espalhadas por conexões tecnológicas.

É preciso reassentar a cultura na localidade e no espaço-tempo em que é produzida

para que tenha base de se impor como texto global. Da mesma forma, é necessário analisar a

criação de identidades na contemporaneidade em novos espaços de convívio, como as redes

sociais. Estudo de caso deste doutorado, a formação de identidades de jornalistas latino-

americanos em redes presenciais pode ajudar a entender esse processo contemporâneo de

constituição de identidades e de cultura glocal. Escolheu-se investigar a formação de

identidades na América Latina através de jornalistas que tiveram participação em uma rede

14    

social presencial, o Programa Balboa, que lhes proporcionou experiências, momentos de

encontro e diálogo. O objetivo é conhecer melhor latino-americanos que tiveram oportunidade

de ampliar sua narrativa cultural em um nível continental, entender suas histórias individuais

e se e como as combinaram com as confluências das narrativas dos outros. Finalmente,

compreender como desenvolvem suas identidades e como o diálogo em rede alterou a

percepção de si mesmos e sobre a América Latina que vivem.

Assim como os jornalistas do Programa Balboa, milhares de gradações identitárias se

desenvolvem em diálogo de rede, no qual pessoas agem e reagem a narrativas glocais

segundo suas histórias pessoais, suas origens, suas experiências, seu apego ao popular e ao

tradicional de suas culturas. Pela extensão e complexidade desse processo, não é intenção

deste trabalho descobrir a identidade da América Latina, pois há várias identidades no

continente, que vivem em diálogo entre si. É um processo que a América Latina vive há muito

tempo, como desde o encontro dos mundos culturais pré-europeu (pré-colombiano e pré-

cabralino) e ibero-americano, desde o período das navegações do século XVI em diante. Está

na identidade do continente definir-se perante o outro, no confronto e na comparação com o

ente externo, alheio e exótico.

O objetivo da tese é compreender como se formam identidades individuais de latino-

americanos em diálogo por redes sociais. Uma das hipóteses é que os indivíduos realizam

combinações de narrativas locais e globais, segundo seus interesses, tendo permeabilidade

relativa e seletiva aos processos políticos, econômicos e sociais que encontram nas narrativas

dos outros indivíduos da rede social presencial que compõem.

A formação de identidades individuais será analisada através de jornalistas latino-

americanos que participam de uma rede, inicialmente presencial, o Programa Balboa para

Jóvenes Periodistas Iberoamericanos. Eles são os mediadores das representações simbólicas

de suas localidades, frente às representações dos outros jornalistas Balboas, e dos textos

simbólicos que circulam nas instituições, cidades e nações do continente em que vivem.

Graças a uma experiência de convívio entre vinte jornalistas Balboas, durante seis meses, em

Madri, foi possível identificar alterações nas produções simbólicas, geradas a partir de novas

experiências que tiveram. Elas alteraram o texto identitário dos jornalistas e novos

significados sobre o que entendem por América Latina. A forma com que os jornalistas

Balboas montaram seu próprio texto cultural, entendem-no e o compartilham compõe o

imaginário e a narrativa da rede social Programa Balboa. Consequentemente, essa rede

presencial estimulou o diálogo e a troca simbólica das narrativas da América Latina. Redes de

diálogo como o Programa Balboa permitem a recombinação de signos locais e globais de

15    

seus membros, os jornalistas latino-americanos, estimulando a atualização de suas

identidades para uma narrativa em comum sobre a América Latina.

A partir dessas ponderações, propõe-se uma pesquisa de doutorado sobre o Programa

Balboa para Jovens Jornalistas Ibero-Americanos. Sobre o estudo de caso, tornam-se

necessárias as perguntas: Como dialogam as narrativas de identidades de jornalistas latino-

americanos inseridos na rede presencial Programa Balboa? Como redes presenciais como a

do estudo de caso contribuem para o diálogo cultural e a atualização de identidades

individuais, bem como identidades na América Latina?

As referências bibliográficas oferecerão conceitos sobre identidade, os processos

tradicionais e contemporâneos de formação desta; mitologia, como textos culturais que

portam signos identitários em comum entre as culturas latino-americanas; História e

narrativas sobre encontro de civilizações nativas da América com os exploradores ibéricos;

redes sociais, seus conceitos básicos e modelos de troca e diálogo.

A metodologia da tese abrange a pesquisa bibliográfica, de conteúdo anteriormente

apresentado; comparação e reflexão sobre os conceitos teóricos, frente aos dados coletados

em pesquisa de campo exploratória, seja por questionários quantitativos, seja por trabalho de

campo realizado nos quatro países selecionados: Brasil, Peru, Guatemala e México e a

pesquisa qualitativa, realizada por meio de entrevista com jornalistas do Programa Balboa.

Como objetivo da pesquisa, pretende-se entender processos de formação de

identidades contemporâneas, especificamente as de jornalistas latino-americanos,

participantes de redes profissionais e presenciais de jornalismo. Outro objetivo é entender

como redes sociais são ambientes glocais de troca e diálogo para jornalistas e se elas

influenciam as identidades de seus membros, seja na sua atualização, seja na comparação

com outras identidades ou mesmo na transcriação de novos imaginários. As redes parecem

estimular trocas de experiências, estimulando identidades ampliadas e glocalizadas.

As questões se justificam pela histórica discussão sobre o que é ou o que são as

identidades da América Latina. Povos com diversidade tão grande também portam grandes

semelhanças culturais. Voltando-se ao objetivo de estudo desta tese, os latino-americanos

carregam textos culturais dialógicos, seja pela cosmovisão pró-europeia no continente, seja

pelas crises reais e simbólicas quando do encontro realizado a partir das navegações do século

XIV entre nativos americanos e povos ibéricos. Não é possível entender a complexidade das

narrativas latino-americanas sem considerar essas origens em comum, e como os indivíduos

de hoje as entendem e as recombinam com as influências contemporâneas e externas ao

continente. Tampouco é possível compreender a inserção cultural da América Latina e de seus

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indivíduos no mundo contemporâneo se não forem considerados os novos ambientes de troca

cultural, como as tecnologias de comunicação, a internet e, no estudo desta tese, as redes

sociais. Esta tese reforça o estudo de redes sociais presenciais, especificamente, pois estas

tornam perene o conhecimento sobre a troca dialógica em espaços glocais, para além das

tecnologias do momento. Redes são organizações de grupos com interesses em comum, e isso

não depende dos suportes eletrônicos, mas de mediações entre pessoas, neste caso, de latino-

americanos que têm experiências em comum. Nesse contexto, jornalistas oferecem casos

interessantes de estudo, pois se constituem através da formação intelectual e da aprendizagem

de campo, nas ruas, em entrevistas e diálogo com o Outro; têm como função social tecer

narrativas que ofereçam pistas sobre a complexidade dos fenômenos que abordam, entre eles,

a combinação das culturas tradicionais de seus povos com os fluxos de cultura globais e

estrangeiros; são mediadores de fatos e experiências pelas suas narrativas, logo, trabalham

com signos culturais tanto para formar sua própria concepção de mundo quanto influenciar o

imaginário de seus interlocutores; são produtores culturais contemporâneos, através do

diálogo e da interlocução criativa que realizam com o Outro e com o mundo, através do ofício

de jornalista e, no caso desta tese, das redes que participam. Quando expostos a narrativas

continentais de outros latino-americanos como o Programa Balboa, geram novos textos

identitários sobre si mesmos, sobre a identidade do Outro e, como consequência, sobre o que

é a América Latina da contemporaneidade.

Assim, o primeiro capítulo apresentará conceitos sobre identidade: suas definições

básicas, a identidade dos latino-americanos no momento da Conquista da América, as

características identitárias dos pré-europeus, ibéricos e latino-americanos resultantes dessa

combinação. Também serão apresentadas características da identidade do povo brasileiro e os

diálogos destas com as culturas hispano-americanas.

O segundo capítulo tratará de mitos, a formação desses textos culturais primordiais,

sua evolução e combinação, a relação entre sua representatividade coletiva e as escolhas

individuais, a transcriação dos mitos através do tempo e dos diálogos culturais e suas relações

com as identidades culturais. Dentro do capítulo sobre mitos, definiu-se uma narrativa para

compreender a experiência de rede presencial dos jornalistas do Programa Balboa, em 2007.

A Jornada do Herói (CAMPBELL, 2001) destaca a individualidade na constituição das

identidades através da experiência de vida e do diálogo com o mundo.

O terceiro capítulo, redes, abordará conceitos sociológicos sobre essas organizações

presenciais de troca e de diálogo, para além das redes digitais ou eletrônicas. Será apresentada

uma experiência de diálogo em rede sobre mitos, lendas e livros latino-americanos,

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selecionados pelos jornalistas do Programa Balboa. O objetivo dessa experiência foi

identificar pontos de diálogo cultural nos discursos mitológicos escolhidos pelos jornalistas

do Programa Balboa, além de entender como o diálogo em rede auxiliou o processo de troca

narrativa. De fato, foram constatadas identidades entre textos culturais entre mitos, lendas,

histórias e livros.

O quarto capítulo trará relatos de experiência do processo de composição identitária

na rede presencial Programa Balboa, tanto as vividas pelo autor desta tese quando as dos seus

interlocutores. Nessa seção, serão reveladas experiências vivenciadas antes do início deste

doutorado. Apesar de esta pesquisa ter sido iniciada em 2010, serão apresentadas experiências

de campo a partir de 2007, quando houve a reunião dos jornalistas para a oitava edição do

Programa Balboa, turma da qual o autor deste trabalho fez parte. A partir daí, outras

experiências foram realizadas na América Latina, como o reencontro da rede presencial em

Lima, em 2010, e as entrevistas in loco com os jornalistas Balboas analisados no México, no

Peru, no Brasil e na Guatemala, em 2011.

Nos apêndices da tese, as entrevistas com os jornalistas estão disponíveis na íntegra.

Nelas, Helena, Marcos, Rocío, Laura, David, Eswin e Santiago apresentam suas próprias

narrativas do que foi a atualização de suas identidades após a experiência em rede presencial,

em 2007. As entrevistas foram experiências conjuntas, que revelaram a importância de

elementos objetivos e subjetivos para a atualização da identidade dos jornalistas Balboas, em

trânsito cultural pela América Latina.

Além das entrevistas integrais, os apêndices também contêm pesquisas

complementares aos objetivos principais da tese. Além de se analisar o estudo de caso, o

Programa Balboa para Jovens Jornalistas Ibero-Americanos2, comparou-se a rede principal da

tese a outras quatro organizações de intercâmbio profissional e de conteúdo jornalístico na

América Latina: a Ong AVINA de jornalismo para o desenvolvimento sustentável (Suíço-

panamenha); a Fundação Novo Jornalismo Ibero-Americano (FNPI-Colômbia); e a Televisão

de América Latina (TAL-Brasil). Posteriormente, ampliou-se a comparação do Programa

Balboa e das demais redes latino-americanas de jornalistas com as principais redes presenciais

de jornalismo dos EUA3, dada a importância dessas instituições e do pioneirismo com que

                                                                                                               2 Em 2012, o Programa Balboa para Jovens Jornalistas Ibero-Americanos passou por uma transição de diretoria, deixando de ser amparado pela Fundación Diálogos, para ser gerenciado pela Fundación Telefónica, a mantenedora financeira desde seu início, em 2002. Por isso, teve seu nome alterado para programa Iberis.  3 Chamadas de fellowship programs, modelo tradicional nos EUA, as redes pesquisadas estão entre as mais conceituadas do mundo: Tow Knight Entrepeneurial Journalism, da City of New York University (CUNY); Knight-Bagehot Fellowship in Economics and Business Journalism, da Columbia University; Nieman

18    

trabalham redes sociais presenciais. Já os anexos trazem as matérias jornalísticas dos

jornalistas Balboas, após a experiência em rede presencial; notícias sobre os países visitados

para trabalho de campo, compondo o contexto o qual passavam; e outras publicações que

mostram outros olhares sobre as culturas e identidades da América Latina.

Apesar de o pesquisador autor desta tese ter contato com todas as redes anteriormente

citadas, manteve-se o Programa Balboa como principal estudo de caso de pesquisa, pois é a

rede que mais propicia a experiência compartilhada entre os membros; na qual mais se

encontraram aspectos objetivos e subjetivos para a composição de identidades dos jornalistas

envolvidos; a que mais propiciou a restauração de momentos importantes que compuseram a

percepção de mundo dos jornalistas; a que mais estimula o diálogo entre os participantes,

tanto profissionalmente como pessoalmente.

Espera-se que esta pesquisa em sua parte teórica, sua parte exploratória, sua parte

objetiva e sua parte subjetiva, contribua para outros estudos sobre identidades

contemporâneas e sobre redes sociais. Até hoje, os jornalistas do Programa Balboa se

comunicam, trocam experiências e informações jornalísticas, visitam-se e compartilham

experiências e saberes. O processo de atualização identitária em rede está em curso.

1. IDENTIDADE

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         Foundation for Journalism, da Universidade de Harvard; Knight Science Journalism, do MIT; John S. Knight Journalism Fellowships, da Universidade de Stanford. A pesquisa exploratória de campo se deu no segundo semestre de 2012, sob a forma de doutorado sanduíche.  

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Quais processos de atualização da identidade operam sobre os jornalistas latino-

americanos, relacionados pela rede social presencial Programa Balboa? O que faz mover a

identidade individual, no caso dos jornalistas Balboas?

Apesar de suas especificidades, as identidades sofrem influência de matrizes culturais

e ethos tradicionais. Segundo Moragas Spà (1988: 4), tratam-se das influências Geopolíticas,

Linguísticas, Históricas, Sociais. São variantes que comportam localidades, regionalidades,

nacionalidades e transnacionalidades; expressões idiomáticas, que acessam pontos específicos

da cultura; tradições filosóficas, literárias, artísticas e religiosas; e contextos espaciais e sua

influência nas organizações sociais, tais como os ambientes rural e urbano; e a consequente

formação de comunidades modernas, industriais e pós-industriais, como os sindicatos, as

organizações não governamentais e as redes sociais.

Mas cada indivíduo encontra sua própria forma de interpretar objetos materiais e

simbólicos. Visões locais e globais dependem de experiências históricas e adaptação

ambiental pessoais para que estas gerem elementos simbólicos adaptados a tempos e espaços

individualizados, mais dinâmicos que modelos de identidade estratificados, como os

provindos do Estado Nação, por exemplo. A identidade cultural, fruto de experiências

individuais e coletivas, é um legado móvel, dinâmico e criativo.

Esses textos identitários são fruto da ação individual e coletiva, do dinamismo cultural

das sociedades e da participação dos seus membros. Por isso, a identidade não é uma tabela de

características individuais, mas a relação entre características de duas ou mais pessoas. A

identidade é um texto cultural formado e reconhecido pelo diálogo entre indivíduos.

Identidade cultural e diversidade cultural são, portanto, indissociáveis. Se diversidade não é

contrária à identidade, então as diferenças simbólicas que os indivíduos trocam entre si

aumentam a universalidade de suas identidades. 4 Identidade é relação de elementos

simbólicos dialógicos, não consenso ou homogeneização de visões de mundo.

Como os jornalistas latinos do Programa Balboa são representantes dos meios de

comunicação do continente, é importante compreender como eles compõem suas identidades.

É preciso entender como esses indivíduos equilibram as diversidades simbólicas individuais

com as coletivas, as influências dos ethos tradicionais com as dos fluxos das redes sociais, as

experiências pessoais com os interesses profissionais das empresas de jornalismo.

Normalmente, a identidade é tratada no jornalismo como sinônimo de estandardização

e homogeneização. Ou seja, a identidade seria o consenso pela supressão de diferenças. Não à

                                                                                                               4 “Cultural universality must be understood as a relation between identities, and not as a homogenization of the world’s different local cultures in the interests of one particular local culture.” (MORAGAS SPÀ, 1988: 4).

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toa, quando o jornalismo trata da cultura brasileira e latino-americana, como variantes

linguísticas e demais tradições regionais, aborda-as como temas exóticos nas editorias de

cultura. Confundir quantidade de notícias culturais com qualidade na cobertura sobre

diferentes identidades é outra confusão que normalmente ocorre no jornalismo.

Além disso, a homogeneização tanto do produto jornalístico quanto do público é uma

característica da indústria cultural e da comunicação contemporâneas.5 Por isso, ao se tratar

identidade no jornalismo, é interessante abordar a identidade dos jornalistas. As soluções

individuais destes para suas próprias narrativas podem atualizar os textos jornalísticos sobre

identidades. Os jornalistas Balboas, ao reconhecerem o diálogo de suas identidades com as

demais na América Latina, podem agir contra a homogeneidade simbólica, icônica e

linguística no jornalismo de suas redações. 6

O reconhecimento da construção e recombinação de identidades diversas entre

indivíduos, representadas neste trabalho por jornalistas latino-americanos da rede presencial

Programa Balboa, pode alterar os fluxos simbólicos dos conteúdos de mídia do continente.

Moragas Spà (1988) refletiu sobre novos equilíbrios de fluxo de informação, em tempos de

diálogo simbólico glocal. Pode-se transpor algumas de suas conclusões sobre as empresas de

comunicação para o universo das redes sociais presenciais e para a contribuição do diálogo de

identidades dos indivíduos.

As condições estabelecidas para a produção simbólica das empresas broadcasting dos

anos 60, 70 e 80 eram verticalizadas, com sentido único de poucos emissores para muitos

receptores, com equilíbrio e diálogo com os receptores pouco eficientes. Moragas Spà

(1988:13) considera as condições de produção elementos importantes para o equilíbrio

simbólico cultural em sistemas de comunicação. Nas redes sociais, o sistema de produção

passa de verticalizado para descentralizado, com elementos interligados sem hierarquia ou

direção única no fluxo de informação. As redes estariam no que o autor define como novos

espaços e níveis de fluxo de informação, em uma nova ordem de diálogo que não é definida

pelos ethos tradicionais, como os Estados Nação ou empresas de comunicação.

No diálogo direto entre os membros de uma rede, o equilíbrio entre as trocas

simbólicas e o objetivo do diálogo entre indivíduos é definido majoritariamente pelos atores

envolvidos. Diferente das empresas de comunicação interpretadas por Spà (1988: 14), os

                                                                                                               5 “This involves two general lines of action: the standardization of networks and communications installations, and the organization of the common research and development plan.” (MORAGAS SPÀ, 1988: 9). 6 “Cultural homogeneity nowadays takes the forms of both linguistic and iconic homogeneity.” (MORAGAS SPÀ, 1988: 12).

21    

indivíduos necessitam contemplar as localidades e as relações complexas que compõem suas

identidades, afastando-se do sistema massivo de produção de informação. Segundo Spà

(op.cit.), a diversificação dos níveis de informação determina os diferentes usos sociais da

informação. Por isso, as marcas individuais na informação, provenientes dos comunicadores e

suas combinações identitárias individuais, contribuem para a diversificação da comunicação.

Outras formas de participação social através das práticas de comunicação vistas por

Moragas Spà (op.cit.) se dão pela localidade e pela aquisição de tecnologias de

descentralização. Na avaliação do pesquisador, a grande quantidade de emissões de

informação graças à tecnologia não tem garantido diversidade informativa para o público. E a

prova desse fenômeno de desligamento do comunicador com o receptor está na baixa ação

social da sociedade perante as informações que lhe são oferecidas.

Novamente, acredita-se que o reequilíbrio entre essas duas pontas pode estar na

compreensão das narrativas identitárias dos próprios comunicadores. A percepção das

combinações simbólicas individuais dos jornalistas Balboas, no caso desta tese, podem religar

o binômio identidade cultural e comunicação social que Moragas Spà (op.cit.) acredita ser o

necessário para que as empresas de comunicação voltem a estimular a democracia

participativa através da expressão simbólica.7

Tanto as novas tecnologias, para Moragas Spà (op.cit.), quanto as redes sociais, para

este trabalho, podem estimular uma nova forma de recepção e troca para a comunicação.

Tanto a tecnologia como novas formas de utilizá-la podem equilibrar espaços locais com

símbolos globais, de forma a valorizar as experiências regionais, demonstrar sua valia frente a

fenômenos continentais. Trata-se de informações engajadas na vida dos indivíduos, graças ao

diálogo entre suas narrativas identitárias e o uso dessas percepções de mundo para gerar um

texto ampliado, em diálogo com o outro pela diversidade cultural, não pela homogeneidade,

nem pelo consumo desenfreado de informações massivas.

O diálogo de identidades possibilitado pelas redes sociais pode estimular a

participação individual e coletiva das comunidades do processo comunicativo, pois é mais

democrático na medida em que permite a participação de todos os membros na troca de bens

simbólicos e na construção de uma narrativa ampliada, dialógica. Redes são ethos de troca e

de relações simbólicas, em que é possível reivindicar espaço das culturas locais e das

                                                                                                               7 “We have asserted that this binomial should be treated as dialectic between the differences and the relation between cultures. The raison d’être of cultural identity can thus be no other than that of making democratic participation possible.” (MORAGAS SPÀ, 1988: 15).

22    

identidades individuais, e recombiná-las com outras identidades, fazendo um grande texto

global e dialógico.

Mas há muitas definições de identidade. Uma delas pode ser o conjunto de objetos

simbólicos escolhidos pelos indivíduos, orientadas pelas opções que o coletivo lhes oferece.

Originalmente, as identidades são influenciadas por locais tradicionais de formação das

pessoas, como suas etnias, seus Estados Nacionais, suas línguas e sua religião.

A identidade nacional, por exemplo, exercitaria experiências compartilhadas entre os

membros que vivem sob um mesmo país. É exercida pela literatura nacional, pela história,

mídia e cultura popular. Segue esse raciocínio o texto identitário do povo original, com

características bem definidas antes da constituição do país. Uma Nação antes de haver Estado.

Há também as identidades originais, primordiais e atemporais, que unificam as

comunidades, pois dão sentido comum a elas antes mesmo da formação do Estado Nacional.

Logo, seriam imutáveis e eternas, bastiões seguros para a identificação popular. Ligar-se-iam

aos mitos fundacionais, oferecendo registros atemporais e nulo espaciais de uma origem

comunitária, uma espécie de história subjetiva para contrapor ou complementar a narrativa

nacional oficial. As performances tradicionais, ritos e comportamentos que, ao serem

identificados como antigos – mesmo que não o sejam –, coletivos e tradicionais, conferem

signos de referência a uma cultura comum. Uma mesma identidade entre os usuários do mito

e praticantes do rito.

Porém, certas identidades tradicionais, como as nacionais, buscam o consenso,

calando as diferenças. Em processos históricos tradicionais, grupos que superam outros

impõem sua cultura, narrativa e memória, quando não a reconstroem. Esse desequilíbrio de

poder objetivo (poderio militar, econômico, estratégico) altera as representações subjetivas

das comunidades. Se não há espaço para minorias ou dissidentes na sociedade, como haverá

espaço simbólico para suas identidades? Foi o que perceberam os ibéricos, ao chegarem à

América. Desconstruíram as bases materiais e simbólicas dos impérios aqui residentes, para

homologarem sua atuação no território. Tentaram matar os mitos locais com cultura da

metrópole e mataram literalmente seus portadores com pólvora e lanças.

As identidades se desenvolvem junto aos processos de evolução das sociedades.

Homologam-se através de narrativas, discursos e imaginários perenes, dialogando com as

questões primordiais das sociedades e com a contemporaneidade da vida cotidiana. Hoje em

dia, as identidades têm novos estímulos simbólicos, descentralizados e globalizados, dada a

influência que o indivíduo recebe de emissores mundiais de informação e cultura.

23    

A identidade costura o sujeito à estrutura social (HALL, 2006). Desta forma, uma

identidade íntegra seria a que insere o indivíduo à sua comunidade. Já uma “fragmentada”,

comum na pós-modernidade, conteria várias identidades em si, dificultando o processo de

identificação do indivíduo com grupos ortodoxos.

A cultura nacional, por exemplo, geraria narrativas e símbolos assimilados de forma a

constituir um texto comum entre os cidadãos de um mesmo país, com uma mesma língua,

bandeira, moeda, cultura e localidade. Mas como a identidade nacional é imaginada,

parafraseando Canclini (2003), os sistemas de representação cultural citados anteriormente

podem ter de dividir espaço simbólico com outros produtores de signos, como os provindos

da globalização. No caso deste trabalho, entenderemos que a identidade não oferece apenas

um sentido único, uma narrativa difusionista para inserir-se em um grupo, mas dá sentidos,

textos e narrativas com os quais se podem interagir e dialogar entre pessoas da América

Latina. Os diferentes cenários e experiências vividas pelo indivíduo geram distintas sutilezas

identitárias.

Houve uma mudança no eixo da identidade. Hoje, o sujeito contemporâneo necessita

do diálogo com o Outro para entender a si mesmo. Sua identidade se completa – ou ao menos

aflora – quando dialoga com pessoas, ambientes e situações além das suas próprias. A

percepção de que o eixo da identidade está se movimentando é pertinente para

compreendermos o fluxo na comunicação para alimentação de identidades. Não pode haver

estatização no processo comunicativo, pois a identidade é formada na interação de indivíduos.

Do contrário, geram-se conteúdos difusionistas.

Na verdade, todas as classificações que buscam definir relações entre indivíduos são

recursos simbólicos, dispositivos discursivos (HALL, 2006: 62). São métodos de difundir

identidade unificando as distinções culturais. Logo, o processo comunicacional é essencial

para entender o diálogo das diferenças. Isso justifica a escolha das redes como estudos de caso,

pois são dispositivos organizacionais contemporâneos que estimulam trocas entre indivíduos.

Assim, a identidade provinda dos ethos tradicionais está se alterando, graças às

escolhas individuais dos cidadãos imponderados de métodos e inseridos nos fluxos culturais

do século XXI. Rádio, TV, internet e mídias sociais possibilitaram o contato e a troca de

elementos simbólicos para além dos provedores locais e nacionais.8 A emergência de novas

ordens sociais, com novas trocas simbólicas, pede novos tipos de análise sobre identidades na

                                                                                                               8 Afirmam Borja e Castells (2001: 99): “Resta saber, porém, se a participação de comunidades transnacionais em cidades ou em redes sociais universaliza bens simbólicos adeptos ao diálogo, ou se opera-se a globalização apenas pelo consumo de informação, sem intenção de troca e integração”.

24    

América Latina. Um indivíduo bombardeado por novas experiências, performances e

símbolos externos deve criar mecanismos para equilibrar suas identidades (no plural) com as

influências contemporâneas.

Identidades individuais são geradas pelo confronto e diálogo com outras identidades.

Constroem-se culturalmente e comunicacionalmente no diálogo dos indivíduos. Inventam-se

histórias sobre si mesmos, em uma combinação entre rejeições, aceitações e miscigenações de

bens simbólicos. Logo, a identidade é uma narrativa que, ainda que compreendida como

individual pelos seus portadores, é elaborada a partir dos fragmentos provindos do exterior,

coletivamente.

A transição da identidade tradicional para a identidade fragmentada pode ser

homogenista, com o viés de consenso, comunhão e coesão social. Ou renovadora, caso se

perceba um movimento individual de adaptação simbólica para a inserção nas mudanças da

pós-modernidade. Por isso, esta pesquisa entende que jornalistas latino-americanos

atualizam suas identidades através da vivência, diálogo e troca inseridos em redes

presenciais, novos espaços de encontro e diálogo.

A inserção de novos elementos simbólicos nos ambientes de convívio e de

comunicação dos cidadãos latino-americanos alterou as formas tradicionais de formação de

identidades individuais e coletivas. A sensação de crise de identidade sofrida nos centros

urbanos, caóticos, sem relações tradicionais definidas, ou no campo, desvinculado dos fluxos

globais, deve ser compreendida como a crise geradora de novas combinações simbólicas.

Crise é a reorganização de um sistema, neste caso, simbólico narrativo, a partir da

introdução de novos signos, alheios à configuração anterior. Desta forma, vê-se a crise de

identidade como uma crise de paradigmas dentro de instituições tradicionais como Estado,

poder, família, igreja, trabalho e localidade para gerar narrativas sobre e nos indivíduos do

continente.

Por isso, a formação de identidades de jornalistas pode ser interessante. O ofício de

jornalismo relaciona âmbitos noticiosos, contextuais, históricos, sociais, políticos e pessoais,

oferecendo uma rotina de diferentes textos culturais ao indivíduo, que deve equilibrar signos

culturais locais e globais para criar um texto único.

O diálogo em rede presencial serve para compreender novas combinações identitárias.

No embate com narrativas distintas, o jornalista em rede se forma, deforma e se transforma

em movimento. No convívio com o Outro, interage pelo confronto, convencimento e

descoberta. Sua identidade se transforma pela crise das concepções pessoais tradicionais e na

inserção de elementos simbólicos geradores de transformação. As identidades dos membros

25    

das redes presenciais latino-americanas, objeto de estudo deste trabalho, desfragmentam-se e

reconstroem-se.

Para regionalizar a discussão sobre identidade, propõe-se a discussão de algumas

características das muitas que constituíam a identidade dos pré-colombianos nativos quando

da chegada de espanhóis e portugueses à América, no momento do encontro de civilizações e

suas culturas, a partir do século XV. Mais especificamente, serão ressaltados os tipos de

identidades paradoxais, mas equivalentes, que formaram uma grande identidade dinâmica,

durante a Conquista da América.

Os séculos XVI e XVII prosseguiram com diversos diálogos entre os povos da

América e os da Europa. Foram tantas mudanças provindas da descoberta da América que se

pode vislumbrar muito além do chamado processo civilizatório, em que se consideraria que

uma cultura haveria conduzido à outra. Na América Latina, houve um autêntico processo de

construção identitária, no qual novas combinações entre indivíduos e culturas intencionais ou

não teriam sido realizadas, seja pelo diálogo, pela força, pelo poder ou pela miscigenação.

O diálogo entre identidades pré-colombiana e europeia abriu uma crise simbólica nos

mundos mentais de ambas as civilizações.9 Os discursos de cada cultura tiveram de considerar

novos elementos simbólicos, dinâmicas narrativas e raciocínios cosmogônicos. Cada portador

da cultura antagônica tentou reequilibrar sua identidade, rejeitando a nova configuração

narrativa que encontrara, fechando o sistema cultural para novos elementos, ou gerando novos

discursos, transcriados através do diálogo cultural. Apesar e graças à crise discursiva, a

evolução de ambas as identidades no diálogo e convivência com o Outro garantiam a

sobrevivência dos sistemas discursivos de ambos os povos, atualizando seu sentido e

justificando as medidas efetivas que comporiam a história.10

Como se sabe, ações nada simbólicas foram geradas nas relações entre Espanha e

impérios pré-colombianos, como guerras e assassinato de mais de 20 milhões de nativos. Mas

mesmo essas atrocidades tiveram amparo discursivo, com justificativas religiosas ou lógicas.

                                                                                                               9 “O que é uma crise? É um aumento da desordem e da incerteza no seio de um sistema (individual ou social). [...] A crise pode resolver-se no regresso in status quo ante, mas o que é próprio do sistema hipercomplexo em crise é desencadear soluções novas, e estas podem ser tanto imaginárias, mitológicas ou mágicas, como, pelo contrário, práticas e criativas.” (MORIN, 2000: 138-139). 10 “O elevado grau de consciência situa-se a um nível de ambiguidade muito mais profundo, quer dizer, a um nível que a relação entre verdade e erro se torna complexa. Quando um sistema evolui, aquilo que era ‘erro’ para a organização antiga torna-se ‘verdade’ para a organização nova, e por vezes, a ‘verdade’ da primeira passa a ser ‘erro’. A consciência descobre a relatividade da verdade e do erro ao considerar a diversidade e a incompatibilidade das ideias e das crenças, no tempo e no espaço e, por consequência, põe em dúvida o seu próprio sistema de ideias e crenças.” (MORIN, 2000: 133).

26    

Como a História prevalecente é escrita majoritariamente pelos vencedores, as identidades

sobreviventes desse momento chave da América Latina são as portadoras de justificativas

simbólicas amparadas pelo poder de seus interlocutores.

Tanto pré-americanos quanto europeus justificaram a alteração da identidade que

portavam diante da evolução da relação e do diálogo que tinham com o interlocutor. Graças à

identidade católica dos ibéricos, por exemplo, os índios eram considerados inicialmente um

povo santo e sem pecado. Posteriormente, graças à mudança do interlocutor religioso pelo

militar, a identidade indígena converteu-se – para os olhos ibéricos – em uma indolente e

agressiva, ressaltando marcas identitárias que não serviam ao diálogo com os novos papéis

que lhe eram cobrados. Até a descoberta da América, a identidade ibérica se constituía em

seus processos de unificação e de disputa comercial com outros países europeus. Após a

descoberta da América, sua identidade se converteu na de senhores de um novo mundo.

Os Astecas, por sua vez, viam os visitantes como verdadeiras deidades. Não podiam

negar essa identidade aos visitantes do velho mundo, caso contrário negariam a sua própria

identidade. Até a chegada dos europeus, a identidade dos Astecas era de senhores dos povos

da América pré-colombiana. Após a chegada de Colombo e a atuação de grupos como o de

Hernán Cortez, a identidade dos Astecas se transformou na de um povo de transição para

chegada dos deuses, relativizando seu poder.

A ameaça de rompimento de sentido na visão asteca sobre os “deuses vindos do mar”

gerou outro discurso, que tentou equilibrar essa nova informação de forma ritualística. Em

certo momento, foi dado aos espanhóis livre acesso às cidades, ao ouro, elemento sagrado, e

às mulheres da comunidade, sendo assim uma forma de ritual discursivo de equilíbrio.

Entretanto, com a percepção de que a reação dos visitantes era cada vez mais predatória, além

das atitudes práticas como a guerra, os astecas geraram novos mitos, afirmando que já

conheciam o fim de seu próprio império.

O discurso sobreviveria para além da sociedade que o gerara.11 De forma cíclica, os

astecas reorganizaram a própria identidade, fazendo de novos signos elementos de textos ditos

passados, justificando haver registros antigos sobre a conquista da América que acontecia no

então presente. A ameaça de desestruturação da identidade dos astecas produziu uma nova

identidade, que inseriu o signo do povo inimigo em seu próprio texto cultural.

                                                                                                               11 “A magia arcaica pode ser considerada como o conjunto articulado de uma visão mitológica do mundo e de um sistema ritual, que funciona em relação a qualquer ameaça de entropia, tanto no exterior como no interior do espírito humano, no indivíduo como na sociedade, e designadamente contra e sobre a entropia final e fatal da morte.” (MORIN, 2000: 140).

27    

Percebe-se, nesse exemplo histórico, a importância da reordenação cultural dos

símbolos para atualização das identidades. Novos mundos físicos e simbólicos alteram o peso

dos ethos humanos, gerando novos signos, assimilados pelos textos humanos, que atualizam

identidades.12 As identidades perenes às mudanças sociais são as que se adaptam de tempos

em tempos a novos cenários, sempre carregando o cerne de suas culturas.

Se há um núcleo duro na cultura latino-americana, ele pode ser identificado nos ritos e

mitos pré-americanos. O caldo originário das narrativas míticas do continente pode esclarecer

identidades americanas primordiais, entender seus processos de construção e como dialogam

com elementos externos, sejam eles os invasores da Conquista da América, sejam as

narrativas nacionais modernas e os hábitos sociais mantidos até a contemporaneidade.13

Como uma das marcas de identidade inseridas em narrativas mitológicas, pode se

destacar a prática asteca de manutenção de elementos objetivos e subjetivos dentro de uma

mesma narrativa, com mesmo peso simbólico. Para tais povos pré-colombianos, não havia

distinção clara entre os limites dos mundos dos deuses e dos humanos, que viviam em um

mesmo tempo e espaço, dividindo elementos da natureza, suportes de signos e símbolos de

comunicação. A proximidade entre seres reais e mágico-fantasiosos se dava, portanto, através

dos signos, de seus suportes e dos discursos que ratificavam essa união entre esferas da

existência por meio da narrativa. A impossibilidade dos humanos em perceber objetivamente

os espíritos, pois eles “estavam presentes”, mas não se podia vê-los, fazia com que estes

tivessem que ser notados pelas histórias, que explicavam onde residiam as divindades à nossa

volta. A simbiose de elementos terrenos com divinos era uma maneira de assimilação do novo

e do entrópico no sistema cultural, aumentando-lhe a complexidade.14

                                                                                                               12 “Um dos aspectos extraordinários do compromisso neurótico mágico-religioso é que ele se estabelece não só com a realidade exterior (o ambiente, o mundo), mas também com a realidade interior. Não é unicamente compromisso entre o mito e o real, mas também é compromisso com a realidade mitológica.” (MORIN, 2000: 140). 13 Alfredo López Austin chama de binômio unidade-diversidade cultural. “Resulta sorprendente que la historia compartida por estos pueblos haya producido desde épocas muy tempranas una base cultural común, sobre la cual se desarrolló la diversidad. Si se profundiza en las técnicas agrícolas, en la organización social y política, en la taxonomía del cosmos, en las concepciones de la estructura y funcionamiento del cosmos, en las creencias y las prácticas religiosas, en la simbología y en muchos otros aspectos de la vida humana, podrá comprobarse que hunden sus raíces en el mencionado núcleo duro, y que éste en buena parte subsiste hasta nuestros días. [..] En el fondo de la cultura, más allá de la diversidad del medio natural y de las etnias, se halla el poder constructor de la permanente comunicación humana.” (LOPEZ AUGUSTÍN, Alfredo; MILLONES, Luís, 2008: 20). 14 “El mundo, pues, estaba poblado por dioses y criaturas; pero la parte divina no era perceptible para los seres humanos. Lo sagrado obraba; pero no era visto. (…) También se condensaba lo sagrado, peligrosamente, en las obras del hombre que eran puntos de comunicación entre el aquí-ahora y el allá-entonces: imágenes de los dioses, objetos de culto, templos, adoratorios, actos rituales, hasta cantos y palabras de plegaria. El oferente, la ofrenda, su soporte y el dios podían confundirse, en un instante dado, en una verdadera comunión.” (LOPEZ AUGUSTÍN, Alfredo; MILLONES, Luís, 2008: 53).

28    

A possibilidade de os astecas assimilarem signos culturais alheios era um dos motores

da sua dinâmica narrativa. Havia movimento nas histórias se estas contivessem elementos

contrários que interagissem entre si. Esse sistema binário de cultura é um modelo primordial,

encontrado em várias sociedades. Na narrativa mítica americana, portanto, havia espaço para

o novo e o velho, caso coubesse no processo narrativo de suas histórias, dando-lhe impulso

para atualizações sem romper com sua cosmogonia. Os índios, por exemplo, encontravam

métodos de superação das limitações impostas pelos interlocutores espanhóis, como no relato

curioso da confissão “colada”, uma espécie de empréstimo de uma cartilha de pecados com

baixa punição por parte dos catequizadores.15

O relato demonstra uma prática comum no Brasil escravista, quando negros rezavam

frente a estátuas cristãs, pensando em seus deuses africanos. Dessa forma e no caso anterior

com os índios, produzia-se um “contra texto”, uma nova organização narrativa que assimilava

os signos estrangeiros a favor de um diálogo com a simbologia da sua própria cultura. De

qualquer modo, tais assimetrias encontradas no mundo real geravam novas produções

narrativas, em uma constante atuação ritual frente ao equilíbrio perdido.16

Já os mitos de herói indígenas derivavam das condições de opressão e de esperança

em mudança, nas quais um líder asteca poderia reverter a situação da colonização europeia.

Nesse formato de narrativa, a ascensão do inimigo e a luta do herói para salvação da sua

comunidade geram uma potencialidade de fluxo, um movimento contínuo de restituição de

equilíbrio pré-crise. Assim como no caso de “El drama de la captura y muerte del inca

Atahualpa”17, quando se vê um herói primitivo frente a uma cultura agora já estabelecida no

continente, a espanhola. Esse mito fora criado com base em outras narrativas espanholas que

tratavam do encontro cultural ibérico com outras civilizações.

                                                                                                               15 “El modus operandi no hubiese sacado al reverendo de sus casillas, sucedió sin embargo, que descubrió que una vez absuelto el pecador, guardaba el ´quipo` para la próxima confesión, o lo prestaba a sus amigos, garantizando así una penitencia conocida y aceptable.” (LOPEZ AUGUSTÍN, Alfredo; MILLONES, Luís, 2008: 203). 16 “En el punto culminante del mito (…) El ciclo es movimiento, y para los mesoaméricanos el movimiento se producía cuando se ponían en contacto los opuestos complementarios. El efecto era la lucha. La fase inicial era la primera derrota; después, con el debilitamiento del vencedor, se transitaba la segunda fase, y así en forma perene.”(LOPEZ AUGUSTÍN, Alfredo; MILLONES, Luís, 2008: 54). 17 “En la década de 1960 se divulgó el mito del retorno del inca, especialmente porque el escritor José María Arguedas fue uno de los recopiladores y su difusión coincidió con el prestigio de la Revolución de Cuba en América Latina. El drama de la captura y muerte del inca Atahualpa`, en su primera versión, fue escrita probablemente en el siglo XVI con el propósito de catequizar a los indígenas. Nace con seguridad de la `Danza de moros y cristianos´, que era popular en España antes del Descubrimiento, y que en México da origen a la `Danza de la conquista´, en la que el personaje central el Moctezuma.” (LOPEZ AUGUSTÍN, Alfredo; MILLONES, Luís, 2008: 217).

29    

De maneira semelhante, na Europa Ibérica o Sebastianismo se referia a um formato de

fluxo narrativo, um eterno retorno ao equilíbrio do cosmos. Então haveria diálogo entre os

textos culturais americanos e europeus? Não necessariamente. Na América, os espanhóis

substituíram os sistemas de organização indígena, assim como o nosso sistema de crenças e

narrativas, por sistemas culturais mais herméticos e de pouco diálogo intencional.

Seguindo no modelo fechado de preservação identitária, não se podem esquecer as

Crónicas das Índias (Séc. XVI), compilações que registraram o Novo Mundo no momento da

colonização espanhola. Porém, os registros espanhóis sobre as sociedades protoamericanas

que encontraram no continente se demonstravam desinteressados. Eram na maioria descrições

da organização social vigente e as perspectivas de como alterá-la à là espanhola. Notas

burocráticas não davam espaço a modos de vida americanos, mas sim relatavam como o

sistema indígena não se encaixava na burocracia espanhola de então. Quando não eram

simplesmente descartados, os signos de comunicação pré-colombianos eram reinterpretados

segundo uma ótica alheia, um sistema comunicativo fechado à entropia, crise criativa e à

complexificação. Geralmente, tratava-se de conteúdos de lógica militar, comercial ou

eclesiástica.

Alguns interlocutores locais também geravam sistemas fechados de produção de

textos identitários. Inca Garcilaso de la Vega 18 , por exemplo, rejeitava as estátuas

antropomórficas incas, relatando somente as características humanas destas. Procurava

ressaltar a semelhança de Deus no homem e rejeitava a interlocução que os índios faziam com

os seres da natureza, sob a forma de deuses.19 Ambiguamente, Garcilaso ajudou a construir

uma história sagrada dos espanhóis na América, justificando suas atuações sobre o continente

e contra seus habitantes. Não é à toa que De La Vega utiliza verbetes cristãos a todo o

momento, sendo ele mestiço de espanhol com inca.

Assim como os Incas, os exploradores do Velho Mundo que vieram à América

tiveram que transcriar sua própria identidade. Enfrentar as errâncias e o acaso da vida no

Novo Mundo obrigou os europeus a reinventarem seus textos simbólicos, originários de

instituições consolidadas como a Igreja e a Coroa. Por isso, os ibéricos tiveram experiências

de mobilidade e hibridização cultural desde as primeiras ocupações em sua península.

                                                                                                               18 Criollo, filho de espanhol com peruana indígena. 19 “Al dar cuenta del templo de Viracocha en el pueblo de Cacha (Cuzco), dice (Garcilaso) que su estatua era de piedra y tenía forma `de un hombre de buena estatura, con una barba larga de más de un palmo. Los vestidos largos y anchos como túnica o sotana, llegaban hasta los pies. Tenía un extraño animal de figura no conocida, con garras de león, atado por el pescuezo con una cadena y el ramal ella en una mano de la estatua.” (LOPEZ AUGUSTÍN, Alfredo; MILLONES, Luís, 2008: 304).

30    

Curiosamente, a constituição da cultura espanhola tem no seu cerne a contribuição de

diversas identidades, culturais, trazidas pelas invasões de diversos povos. A região foi um

caldeirão de saberes, arcaicos, clássicos, escolásticos e pagãos, gerando condições para o

surgimento um homem mestiço, globalizado para o período. Teria vindo à América o

interesse de prosseguir com esse processo, dialogando com as culturas aqui já estabelecidas?

Os europeus tiveram de abandonar sua terra mãe rumo a um território desconhecido,

muitas vezes algoz, mas que lhes dera sentido as suas vidas. As navegações são temas de

narrativas de abandono da segurança rumo ao desafio do mundo desconhecido. Era a troca de

uma Europa castradora, cuja moral católica regrava a vida dos seus filhos, para uma América

ainda por se explorar, onde não havia moral e ética estabelecidas (isso segundo a visão dos

exploradores), um terreno por constituir-se, um papel em branco para se escrever a identidade

como se pretendesse.

Os primeiros textos europeus sobre o Brasil e a América Espanhola, como as Cartas

de Relação (1519-1534) e as Crônicas de Índias (Século XVI), carregavam um caráter

unilateral de visão de mundo, como no trecho de Tratado da Terra do Brasil (1570), crônica

de Pero de Magalhães Gândavo, historiador, gramático e cronista português: Não se pode numerar nem compreender a multidão de bárbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil; porque ninguém pode pelo sertão dentro caminhar seguro, nem passar por terra onde não acha povoações de índios armados contra todas as nações humanas, e assi como são muitos permitiu Deos que fossem contrários huns dos outros, e que houvesse entrelles grandes ódios e discórdias, porque se assi não fosse os portuguezes não podrião viver na terra nem seria possível conquistar tamanho poder de gente. (GÂNDAVO, P. M. Capítulo sétimo – da condição e costumes dos índios da terra. 1570).

A construção de um clima de perigosa incerteza e hostilidade criaria um texto ibérico

que constituiria a identidade indígena pelos olhos do Outro. Outra narrativa que gerara uma

identidade sobre os povos da América é a dos jesuítas, que viam nos índios seres de Deus,

desprovidos de pecado, preparados para receber a benção divina. O fato é que a própria

identidade dos exploradores e dos educadores religiosos gerou diferentes identidades sobre os

interlocutores da América Latina.

Sérgio Buarque de Holanda ressalta as determinantes psicológicas do movimento de

expansão colonial ibérica pelas terras da América. Se muitas empreitadas teriam sido

realizadas “com desleixo e certo abandono” (HOLANDA, 2002: 43) por parte dos

aventureiros, outras seriam fruto de um projeto de sedimentação e desenvolvimento por parte

dos religiosos. Para isso, Buarque define duas identidades principais nos exploradores: o

31    

aventureiro e o trabalhador. São identidades básicas e primordiais, que cabem a diversas

organizações sociais, inclusive mais antigas manifestadas na América Latina, como caçadores

e extrativistas, lavradores e coletores.

Os primeiros, caçadores e extrativistas, seriam mais atentos aos objetivos da

exploração que nos processos pelos quais ela ocorre. “Seu ideal é colher o fruto sem plantar a

árvore” (HOLANDA, 2002: 44). Não há consideração a fronteiras, políticas, físicas ou morais,

deixando-as pouco delimitantes de sua errância. Essa habilidade de lidar com espaços

ilimitados e cenários incertos projeta o grupo dos exploradores a um mundo ampliado, onde

obstáculos se transformariam em trampolim para seu próprio desenvolvimento. A América

desconhecida parecia perfeita para eles. Até hoje, a América parece ser um terreno para que

estrangeiros se aventurem, reinventando-se.

Já os trabalhadores ou semeadores viam no esforço um grande mérito. A partir de

processos lentos, persistentes e trabalhosos, podiam alcançar um objetivo com o máximo do

êxito. Percebe-se um tipo de cultura provinda da terra, no qual a semeadura, o cultivo do solo

com a esperança de que o esforço “fará colher frutos”, é elemento essencial para o sucesso

desse tipo de comunidade. A paciência para esperar o momento do clímax, a resistência em

assimilar as intempéries do caminho e uma moral bem definida que não desvanecesse com

entraves eram outras características dessas pessoas. “O indivíduo do tipo trabalhador só

atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por

imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro” (HOLANDA, 2002: 44).

Essas concepções, apesar de contrárias, teriam se combinado nas sociedades ao longo

do desenvolvimento do homem. Enquanto entes da comunidade – geralmente as mulheres –

plantavam, cuidavam da terra e dos filhos, outros saíam a caçar, extrair e explorar o território.

Não raro, tais elementos também se combinariam em um mesmo indivíduo. De fato, os

conquistadores da América traziam ambas as características em suas identidades, o que

resultaria em um povoamento, exploração e catequização dos povos que aqui habitavam

híbridos e peculiares.20

Gilberto Freyre (2011) aporta sobre este tema ambiguidades que se complementam no

Brasil. Para ele, o país foi formado por grupos com mobilidade pelo território, em contraste

com outros, “homens que por gosto de sedentariedade”, que se estabeleceram na costa do país.

Considerou-os fundadores verticais e horizontais do Brasil. Percebem-se nesses indivíduos,

                                                                                                               20 HOLANDA (2002) entendia, entretanto, que a balança da colonização pendia mais a um lado, ao do trabalhador semeador, frente ao explorador.  

32    

cuja identidade se combina entre fluxo e de fixação, características não só do povo do Brasil,

mas de toda América Latina.

O grupo dos verticais teria se arraigado mais profundamente à terra, produzindo bens

materiais para si, a suas famílias e a seus escravos, como casas grandes e senzalas. E, tendo

desenvolvido ainda mais esse sistema de ocupação, construíram igrejas, engenhos, cercaram

grandes terrenos para cana de açúcar, hortas para subsistência e a criação de animais para

corte e leite.

Já o grupo dos horizontais teria mais características migratórias. A liberdade

individual seria mais cobiçada que a obtenção de propriedades, ou o viver dos equipamentos

sociais das cidades em nascimento de então. Não lhes agradava, segundo Freyre, viver

“pagando impostos que eram cobrados dos colonos estáveis” nem viver perto das escolas

eclesiásticas, “ansiosas por descobrir heresia religiosa ou irregularidade sexual na vida dos

colonos; e por puni-las imediatamente” (FREIRE, 2011: 96).

No meio dessas definições fixas e fluidas, a identidade do povo latino-americano se

formava com características objetivas e subjetivas. Se o território americano na época da

Conquista teria oferecido maiores dificuldades ao arquétipo trabalhador e vertical, isso não

quer dizer que os indivíduos de arquétipo explorador e horizontal não tenham algum tipo de

importância cabal na formação da América Latina. Indivíduos que se lançaram ao continente

detinham ambas as características, caso contrário não teriam cruzado mares rumo a uma terra

desconhecida.

Essa combinação de características aventureiras nômades com semeadoras fixas teria

feito dos jesuítas, frades e missionários, figuras essenciais para a formação da identidade

latino-americana. Esse homem híbrido, imbuído das características de aventureiro semeador,

o educador do século XVI e XVII, adaptou-se às agruras do novo continente. Quando

necessário, buscou viver ao estilo dos índios, comer de sua comida e aprender sua língua. As

instalações religiosas de ensino, fechadas na Europa como conventos e monastérios, teriam se

adaptado ao espírito livre dos índios, tendo que manter-lhes as portas abertas, para que o

processo de reconhecimento precedesse o objetivo de ensinar a fé católica e as línguas da

Europa.

O navegador, o soldado, o jesuíta e o comerciante europeu tiveram que se mestiçar

culturalmente, antes mesmo de se estabelecerem aqui. Porém, como apontado anteriormente,

o aventureiro buscava riqueza sem custo de trabalho fixo. E até nisso teria encontrado eco nos

habitantes daqui, pois muitas comunidades viviam de subsistência, em um ócio equilibrado

33    

com o que a natureza lhes oferecia. Os ameríndios tinham cultura nômade, sendo mais

parecidos com seus exploradores navegadores que com os semeadores que aqui chegaram.

Isso vinha de encontro com a moral católica, de valor pelo esforço, moral que fora

sistematicamente ensinada aos gentios que frequentavam as catequeses. Mas a indolência ou a

liberdade não era desconhecida pelos jesuítas, já que os povos da Península Ibérica foram

forjados sobre uma moral de desfrute da vida e de esforço individual que garantisse apenas a

si mesmo. As virtudes do homem, sozinho, bastariam para sua sobrevivência, garantindo-lhe

uma boa vida, sem a necessidade do trabalho em grupo, socialmente compromissado, em prol

de um objetivo coletivo. O estoicismo greco-romano, amplamente difundido na Península

Ibérica, pregava a razão e a virtude, o amor à vida e à liberdade. Em cartas do filósofo Sêneca

(2010), vê-se praticamente um hino do viajante explorador a novas terras. Essa filosofia teria

sido muito importante aos aventureiros habitantes da Nova Espanha.

Isso era o oposto da moral religiosa da Idade Média. “A hierarquia do pensamento

subordinava-se a uma hierarquia cosmogônica. A coletividade dos homens na terra era uma

simples parábola e espelhava palidamente a cidade de Deus” (HOLANDA, 2002: 33). Ou seja,

o conceito de indivíduo seria uma pálida figura para o catolicismo, que pregava o trabalho

conjunto da sociedade terrena para alcançar a sociedade divina.

A identidade dos povos da América espanhola e do Brasil português teria se

desenvolvido, portanto, nas brechas entre discursos ideológicos fechados e dogmáticos, como

a intenção da Igreja de gerar um segundo paraíso na Terra, e o discurso dos exploradores de

encontrar uma terra livre das leis, regras e medidas da Coroa europeia. Aqui, a errância, a

casualidade, a força das circunstâncias e as inimagináveis combinações das relações e

diálogos de diferentes grupos, comunidades, etnias e culturas teriam forjado um novo

diálogo social e a profusão de novas identidades.

O indivíduo que teria baixado nas primeiras naus europeias nem sempre era provindo

dos seminários, universidades, missões católicas ou de colégios militares. Nem tinha

necessariamente estirpe nobre, com educação erudita, seja ela medieval ou iluminista. Os

primeiros habitantes da América Latina teriam sido de uma camada intermediária entre índios

e nobres. Esse contingente mediano de população ibérica, o que se poderia considerar o povo

propriamente dito, tampouco teria planos de voltar à Europa, dada as péssimas condições

sociais e econômicas que lá detinha. Teriam enfrentado o desafio da colonização não por

crença no Divino ou na missão militar, mas por falta de alternativa melhor e por escolhas

individuais.

34    

Geralmente, os primeiros registros da fixação de um povo ibérico se referem às suas

atividades comerciais, como para fornecer mantimentos e escravos, carga e descarga de

produtos nas naus, como o pau Brasil. Alguns deles eram chamados feitores, os mediadores

entre os índios e os responsáveis pelas embarcações.

Os feitores compreendiam como fazer a conversão simbólica dos produtos comerciais

interessantes aos europeus para os produtos equivalentes dos índios, tais como machados e

alcunhas de ferro. Por conta desse processo de tradução dos universos simbólicos comerciais

entre os dois povos, os até então náufragos e vagos teriam se tornado indivíduos de valor no

processo de mundialização em curso no século XVI. Seriam os primeiros mediadores sociais

que gerariam uma identidade comum a nova organização social que então surgia.

Outra forma de combinação identitária na sociedade latino-americana primordial era

pelo casamento. Através de matrimônios com uma ou várias mulheres, introduzia-se o

indivíduo no sistema social e comercial da Terra Brasilis. Assim, a maior quantidade e as

melhores negociações parentais rendiam maior acesso às tribos, sua mão de obra, sua matéria

prima e terras. Um dos maiores casos teria sido Diogo Álvares Correa, o Caramuru. Náufrago,

casou-se com índias e mulheres brancas, sendo aceito em ambas as comunidades.

Outros casamentos se diziam motivados pela moral católica, mas que na verdade

teriam interesses políticos, territoriais e sociais dos europeus nas comunidades estabelecidas

nas Américas. As índias recebiam nomes de batismo para ocultar sua origem ou para aceitar

socialmente sua nova condição de fidalga ou cristã-velha. Até mesmo as chamadas de

“escravas” podiam estar casadas com seus senhores, outra forma de ocultar concubinato dos

portugueses com as índias, suas empregadas (CALDEIRA, 1999: 19).

Mas embora afrouxada pela miscigenação, a porosidade das identidades continha

limites. Índios, caboclos ou negros majoritariamente não podiam ser nobres, por mais terras e

capital que acumulassem. Havia gradações de qualificações nobres e de mando e, por

consequência, de desqualificação social, que mantinham certos setores no nível médio da

sociedade. Segundo Caldeira (1999), ter terras podia denominar um senhor, mas não um

nobre ou um governante; ter nascido na América também era um limitador social, tema que

explodiria nas revoluções independentistas do século XIX; a desqualificação cultural e de

origem também mantinha as tensões entre quem tinha dinheiro e quem tinha poder. Assim,

conformava-se uma estratificação social média, com gradações diferentes, entre os outros

estamentos, os religiosos, os militares e os nobres. Ou seja, uma identidade mediana do povo

latino-americano, difusa, diversa e complexa. Na América Latina, ocorreram combinações

entre identidades mitológicas e cosmôgonicas pré-hispânicas, a religiosidade importada da

35    

Europa e Oriente Médio e um afã tipicamente ibérico por explorar e conquistar. No diálogo

entre características subjetivas e objetivas, fundaram-se os pilares da identidade latino-

americana.

Esse era o contexto de atuação dos educadores religiosos na América Latina, por

exemplo. Os catequizadores e as instituições de ensino criadas pelos Ibéricos foram

extremamente importantes para a formação da identidade dos países da América Latina.

Graças a esses ethos modernos, deu-se a unificação dos territórios pelas línguas, a criação

uma massa religiosa uniforme e a disseminação de moral e ética comuns, em pleno território

com milhares de etnias e culturas.

Entretanto, diante da diversidade cultural pré-colombiana, o sucesso na educação e

catequização buscou gerar identidades homogeneizadas. A atuação dos jesuítas, missionários

e frades na cultura da América anulou diversos aspectos culturais, em detrimento do

favoritismo perante a Coroa, da missão de fé claramente definida, de um sistema

excessivamente paternalista e autocrático (FREYRE, 2011: 86).

Além disso, a filosofia, a cosmogonia, os mitos e os ritos pré-colombianos não foram

dissuadidos apenas pelas retóricas clássicas trazidas pelos religiosos, mas também pela força

das atividades materiais e o mundo pragmático dos exploradores.

Um preceito clássico, por exemplo, é que a instrução da multidão está sujeita a tipos

de deformação, o que poderia sujeitar a uma junção entre fé e razão (LINDO, 2010: 12). Esse

preceito estimula uma forma difusionista de formação de consciência social, já que pensa o

caminho do conhecimento em sentido único, do topo da sociedade, onde estão os pensadores

e intelectuais, rumo a uma população hipoteticamente desprovida de conteúdo, nem mesmo

referencial para compreender os temas propostos pela filosofia. Por isso, na filosofia clássica

e no pensamento difusionista, as coisas são, sem aberturas para diálogos ou o que se chama de

deformação do conceito. É necessário relativizar tais conceitos para um trabalho do século

XXI, já que se sabe que o resultado do pensamento ideal dos religiosos no século XVI teve

um desenrolar bem diferente do que imaginavam, como ocorre em muitos fenômenos

históricos, inevitavelmente.

Guerras, destruição física de patrimônios simbólicos indígenas e mutilação física e

extermínio de líderes religiosos locais e comunidades alheias aos interesses da Coroa católica

culminaram na supremacia definitiva do pensamento europeu clássico sobre a pré-América,

indígena, ainda que esta cultura primordial do continente ainda tenha sobrevivido, como

protagonista ou coadjuvante das sociedades contemporâneas.

36    

Deve-se contemplar que a combinação filosófica europeia trasladada à América não

deu o espaço merecido à cultura pré-colombiana, relegando a ela estudos antropológicos e

linguísticos, com o objetivo de entender o povo que seria dissuadido de suas crendices

mágicas em detrimento da verdade de Deus. Os religiosos tinham uma filosofia distinta da

dos conquistadores militares e nobres. Por outro lado, seus métodos se assemelhavam, já que

sistematicamente as estruturas sociais da pré-América foram dissolvidas, sejam elas mítico-

religiosas, material-urbanísticas e sociais populacionais. A cultura europeia trouxe um plano

ideal à América que fez o continente ter um destino muito diferente da África, por exemplo,

mas utilizou os sistemas materiais de outras esferas de poder para conseguir se manter

predominante. A utopia de uma terra onde a vida seria melhor que na Europa não pode ocultar

o lado obscuro da História, o da opressão que encurralava a população gentia a enquadrar-se

aos modelos sociais que chegavam ao seu território. A leyenda negra21 tivera muitos

momentos reais e não apenas uma campanha anti-Coroas ibéricas.

Ainda assim, com todos esses impedimentos difusionistas para a formação de uma

sociedade, costurou-se uma tecitura social que não se restringiu aos exploradores,

navegadores, militares e religiosos. O povo, o rango médio da sociedade, se enredava entre

si no Brasil e na América espanhola em um complexo intrincamento étnico, social e nacional.

Assim, os povos da América Latina não se sentiram obrigados – nem conseguiram se

o tentaram – a seguir os passos ditados por planos filosóficos da Europa. Dessa forma, a

sociedade latino-americana ia se complexificando, com europeus tendo acesso a sociedades

indígenas, índios mestiços com aspirações à nobreza, representantes do Estado com tantos

casamentos quanto chefes indígenas, senhores de engenho com relações estáveis com suas

escravas negras e seus filhos bastardos, mulatos que não podiam ascender à fidalguia pela

inconfundível pele parda. Formava-se a identidade o povo latino-americano à custa de

interrelações mundanas, muito mais no chão de terra e entre paredes de pau a pique, do que

nos projetos educacionais dos religiosos ou nos planos de extração de riqueza do território,

com ou sem envolvimento intencional dos exploradores ibéricos com a terra e com a gente

daqui.

Sobre o Brasil, Darcy Ribeiro ressalta algumas características de identidade dos

nossos provedores culturais que foram herdadas pela América Latina. Entre elas, a

                                                                                                               21 Opinião contra os métodos e ideologia espanhóis na colonização da América, difundida na Europa a partir do século XVI.

37    

sobrancería22 hispânica; desleixo e plasticidade lusitanos; espírito aventureiro; apreço à

lealdade; maior gosto ao ócio que ao negócio. “Temos em comum a criatividade do

aventureiro; a adaptação dos flexíveis; a vitalidade dos ousados; originalidade dos

indisciplinados” (RIBEIRO, 1997: 451).

De herança ibérica, a América Latina também teria a falta de interesse da população

frente ao modo de ordenação da sociedade, fenômeno devido à falta de voz dos membros

periféricos com o centro da sociedade, conforme Ribeiro (1997: 451-452): “não há povo livre

em busca de sua própria prosperidade [...] se uma massa de trabalhadores é explorada por

minoria dominante, eficaz em seu projeto e em esmagar ameaça de ordem social vigente”.

Especificamente sobre o Brasil, Darcy Ribeiro identifica a criatividade artística e

cultural; a aceitação de nossas diferenças; a oposição a um antagonista em comum, como a

América anglo-saxônica no período Colonial 23 ; mas também características vistas

anteriormente pelos jesuítas nos índios pré-colombianos, como a frouxidão no rigor social, o

anarquismo, a falta de coesão, a desordem, a indisciplina e a indolência.

Ribeiro (1997: 19) insiste em definir o Brasil como um novo povo e modelo de

estruturação societária, com as seguintes características: etnia nacional; diferenciada

culturalmente por suas matrizes formadoras; fortemente mestiçada; dinamizada por uma

cultura sincrética; singularizada pela redefinição de traços culturais dela oriundos.

Darcy Ribeiro via nos brasileiros uma gente nova, um novo gênero humano, graças à

nova estruturação social que promoviam. Éramos ambiguamente uma rede social com um tipo

renovado de escravismo e servidão continuada ao mercado mundial. Ao mesmo tempo,

nossos habitantes tinham alegria e vontade de felicidade, mesmo sendo um povo sacrificado.

É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneos linguística e culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da Terra. Falam uma mesma língua, sem dialetos. Não abrigam nenhum contingente reivindicativo de autonomia, nem se apegam a nenhum passado. Estamos abertos é para o futuro. (RIBEIRO, 1997: 454).

A rede social brasileira teria herdado a matriz portuguesa como modelo, mas diferiu

dela pela participação das matrizes indígenas e africanas, pelas condições ambientais e pelos

objetivos de produção daqui. Eram forças diversificadoras da rede.

                                                                                                               22 Insolência. 23 RIBEIRO (1997: 453) antecipou-se em décadas ao analisar a latinidade dentro dos blocos chineses, eslavos, árabes e neo-britânicos, como um fator preponderante para construção de suas próprias identidades futuras.  

38    

Se isso não significa uniformidade, havia muito mais confluência em nossas distinções

que em outras redes nacionais em formação. Para Ribeiro (1997: 21), as tradições comuns são

mais significativas que as variantes sub-culturais. Somos uma só gente, pertencente a uma

mesma etnia. “O Brasil é um Estado uni étnico. Diferente de Espanha ou Guatemala,

sociedades multiétnicas por estados unitários” (RIBEIRO, 1997: 22).

Apesar disso, nunca se mudou o modelo de estratificação social ou, em outras palavras,

o centro da rede social brasileira. Portugueses, depois filhos deles, depois imigrantes europeus,

sempre todos brancos, mantiveram a ordem social, mantendo na periferia os indígenas e os

negros, escravos ou miseráveis. Esses grupos jamais conseguiram conquistar o comando ou se

tornar o centro da nossa rede social.

Mas o incerto, o erro e a imperfeição das relações sociais abriram algumas brechas na

estratificação brasileira. De escravocrata de índios e negros, o Brasil se tornou um consulado

português (RIBEIRO, 1997: 447), com um povo mestiço entre brancos, negros e índios, com

proletariado externo. Fomos nos “des-indigenizando” e “des-africanizando”. Os brasileiros se

tornaram um conglomerado multiétnico: “despojados de sua identidade, se veem condenados

a inventar uma nova etnicidade englobadora de todos eles. O núcleo luso se mistura a massa

de mulatos e caboclos. Juntos, plasmam a etnia brasileira e integram-se em um Estado-Nação.”

(RIBEIRO, 1997: 448).

2. MITOS

39    

Para se alcançar um parâmetro de identidade entre as distintas culturas e sociedades

da América Latina, serão analisados mitos e sob quais processos são concebidos.

O objetivo é compreender marcas da identidade de latino-americanos através de suas

narrativas míticas. A re-atuação das narrativas míticas é voltar ao tempo da criação dos

padrões culturais contemporâneos. É reviver como era o funcionamento do mundo social de

antigamente para entender como agimos hoje. Freud entendia esse processo como curativo.

Em nossa pesquisa, será como reviver e entender o momento do diálogo entre dois mundos

distintos: o pré-colombiano e o europeu.

A hipótese desta pesquisa é que a experiência da viagem e vivência no território

estrangeiro, aliado ao diálogo com interlocutores e seus imaginários e discursos locais,

sedimenta uma compreensão ampliada sobre as experiências vividas, gerando discursos mais

condizentes com uma identidade cultural.

As redes sociais presenciais, estudos de caso desta tese, parecem acentuar a

compreensão sobre o interlocutor, quando sedimentadas em experiências compartilhadas. O

mito é propagador de iniciativas individuais que servem de padrão coletivo. Podemos

entender que a experiência de indivíduos na interação com culturas alheias à sua pode

influenciar suas percepções, o que refletirá na atualização de suas identidades, graças aos

encontros culturais que promoveram.

O mito exerce inúmeras funções durante toda evolução cultural humana. Uma delas é

revelar modelos exemplares de todos os rituais e atividades humanas significativas (ELIADE,

2010: 15-16). Dos exemplos ao modelo, dos eventos ao conceito. Uma fórmula bem simples

justifica a presença do mito na cultura.

Esta explicação é clara, mas deve ser destacada, pois a análise corriqueira sobre os

mitos pode provocar uma inversão deste conceito. Os mitos perenizam como modos de vida,

concepções de universo e de transcendência, e não nos ensinam um “modo perdido” de como

fazê-lo. Não se tratam de fórmulas e métodos ocultos de ritualização, mas modelos retirados

de atividades significativas do ser humano. Parece óbvio: os mitos são criados a partir de

fenômenos humanos, e não de performances mágicas e divinas, apesar de frequentemente se

apresentem como tal.

É provavelmente pela sua liberdade narrativa, estética e inteligível, que os mitos foram

perdendo seu caráter de relato das atividades humanas cotidianas. E, posteriormente, pela

mecanização e funcionalização da vida contemporânea, fenômeno que estudaremos a seguir.

40    

Outra de suas características singulares que talvez os afastem das narrativas

contemporâneas e corriqueiras, bem como a compreensão dos usuários desses discursos, é sua

atemporalidade.

Assim como um sonho, o mito não tem relação com o tempo cronológico racional

lógico e cartesiano, com início, meio e fim. Nem com a duração das coisas vivas na Terra. Ele

desfruta desses tempos naturais e culturais e cria outro, condizente com a necessidade de

transmitir sua mensagem. Rompe e emenda tempos, eras e dimensões diferentes.

Ao se abandonar a precisão dos fatos retratados, ou seja, os elementos que asseguram

datas, atores e locais, os mitos universalizam as mensagens por detrás das histórias registradas.

O tempo forte que explica Eliade (2010) é um tempo perene, que decanta os elementos mais

pertinentes a uma sociedade frente à “noticiabilidade” ou “historicidade” das mesmas

narrativas.24

De fato, um cristão entender que a presença do Cristo na Terra ocorreu há cerca de

2000 anos soa limitado. Jesus, Buda, Maomé e demais protagonistas de narrativas divinas,

quando caminharam sobre a Terra, perverteram o tempo humano a um período incontável e

eterno. Assim se dá com as narrativas míticas, pois não há começo, meio e fim cronológico,

mas o antes, quando nada se sabia e o depois, quando da revelação. O tempo forte de Eliade

(2010b) se refere à importância do tema contido no mito: o fato retratado teria a força de fazer

do nada de antes ser o tudo que é até hoje.

Graças à psicanálise e à relatividade da física, hoje compreendemos da finitude de

uma definição total de “tempo”. Por isso, podemos replicar tal raciocínio à liberdade temporal

da narrativa mítica, entendendo que sua força está em refazer mundos simbólicos, desligados

da dita realidade racional, e promover um poderoso discurso cujos limites praticamente não

têm fim. Esta infinitude, aliás, é um dos atributos mais autênticos dos mitos.

O tempo vivido de Freud25 pode ser “eterno enquanto dure”, já dizia o poeta. Da

mesma forma, a narrativa mítica se originou em um tempo divino e incontável, existe até hoje

                                                                                                               24 “El tiempo mítico de los orígenes es un tiempo ´fuerte`, porque ha sido transfigurado por la presencia activa, creadora, de los seres sobrenaturales. Al recitar los mitos se reintegra este tiempo fabuloso y, por consiguiente, se hace uno de alguna manera ‘contemporáneo’ de los acontecimientos evocados, se comparte la presencia de los dioses o de los héroes. Al vivir los mitos, se sale del tiempo profano, cronológico, y se desemboca en un tiempo cualitativamente diferente, un tiempo ‘sagrado’, a la vez que primordial e indefinidamente recuperable.” (ELIADE, 2010b: 24). 25 “Freud descubriera el papel decisivo del ‘tiempo primordial y paradisíaco’ de la primera infancia, la beatitud anterior a la ruptura (el destete), es decir, antes de que el tiempo se convierta, para cada individuo, en el ‘tiempo vivido’.” (ELIADE, 2010b: 80).

41    

e para todo o sempre. E a atualização e sedimentação destes ensinamentos atemporais se

darão, por sua parte, pelos ritos.

A ritualização dos mitos, transformando o discurso mitológico em desempenho,

permite aos indivíduos que o exercem voltar ao momento do clímax da narrativa, no tempo

em que se pode renovar e regenerar a existência das coisas que realizam atualmente (ELIADE,

2010b: 81). É uma volta às origens da sociedade representada. E para quê esse retorno? Para

organizar o mundo atual através da reatuação e recriação do momento cosmogônico, o mais

importante de determinada cultura, criado pelo mito.

Além disso, o ritual permite a reaprendizagem dos temas perenes e inerentes ao ser

humano a partir das narrativas que descreveram as mesmas situações vividas pelos seus

protagonistas. Os mitos nos ensinam que, por mais que nossas vidas tenham mudado ao longo

dos séculos, dramas, dúvidas e temores continuam parecidos e guardados no cerne do

homem.26

Essa dança do universo, transformando o caos em cosmos, é retratada através da

linguagem, nos mitos.27 A organização do mundo se dá tanto pela atuação dos indivíduos de

uma sociedade – o rito – quanto pela descrição do momento primordial de formação daquele

grupo – a narrativa mítica. Por isso, para se compreender o conteúdo e as funções sociais dos

mitos, é essencial analisar a sua narrativa, rechaçada pelos interlocutores europeus no

momento do encontro dos dois mundos culturais.

O fato de a maioria dos mitos serem narrativas fantásticas se dá pela importância

cosmogônica que carregam. Afinal, os eventos mais importantes entre deuses e seres humanos

devem ser registrados com o mais belo que o homem pode criar. E tais histórias vêm

carregadas de situações limite, em que o drama, a crise e o clímax fazem parte do processo de

ordenação do mundo. O transitório e corriqueiro irá ser esquecido. As histórias que merecem

ser contadas se perenizam.

                                                                                                               26 “El mito garantiza al hombre que lo que se dispone a hacer ha sido ya hecho, le ayuda a borrar las dudas que pudiera concebir sobre el resultado de su empresa. ¿Por qué vacilar ante una expedición marítima, puesto que el héroe mítico la efectuó en un tiempo fabuloso? No hay sino que seguir su ejemplo. Asimismo, ¿por qué tener miedo a instalarse en un territorio desconocido y salvaje cuando se sabe lo que se debe hacer? Basta simplemente con repetir el ritual cosmogónico, y el territorio desconocido (= `el caos´) se transforma en ´cosmos`, se hace un imago mundi, una ´habitación legitimada ritualmente`. La existencia de un modelo ejemplar no dificulta en modo alguno la marcha creadora. El modelo mítico es susceptible de ilimitadas aplicaciones.” (ELIADE, 2010b: 137). 27 “El mundo no es ya una masa opaca de objetos amontonados arbitrariamente, sino un cosmos viviente, articulado y significativo. En última instancia, el mundo se revela como lenguaje. Habla al hombre por su propio modo de ser, por sus estructuras y sus ritmos.” (ELIADE, 2010b: 137).

42    

Muitas das narrativas têm momentos divinos, expressão que utilizo para referir-me ao

encontro do homem com o sagrado, independente da religião retratada. Assim como o

universo que sai do caos para o cosmos, o indivíduo geralmente inicia a narrativa mítica em

crise, para então superá-la e alcançar a revelação, um fenômeno supernatural que lhe servirá

de guia, assim como a todo outro indivíduo que ouça e assimile a mensagem do mito. Essa

combinação de forma e conteúdo gera histórias fantásticas, cujo objetivo comunicacional é se

perpetuarem através dos tempos, com impacto nos seus interlocutores.28

É interessante constatar como se perdeu muito do modo de ler os mitos. Hoje,

entendem-se tais histórias como muito distantes do nosso presente e cotidiano. Estas

narrativas não serviriam para nada além do valor literário ou histórico. Através de Eliade

(2010a), percebemos que essa visão deriva da distinção greco-romana entre mito e relato

histórico.29

A Igreja Católica tratou de apagar de sua própria história conteúdos que gerassem

incoerência com a visão de um Cristo filho de Deus, como os evangelhos apócrifos. Ou seja, a

possibilidade de interpretação dos Evangelhos como narrativa de uma história e não a verdade

absoluta fora riscada do mapa da cultura cristã.30 É de se esperar que os narradores

eclesiásticos, jesuítas exploradores do novo continente, fizessem o mesmo com as narrativas

americanas, e dessa forma o diálogo entre culturas começaria muito mal. A mesma escola

cristã de pensamento aristotélico desembarcou na América Latina, fincou suas cruzes na areia

e junto com elas o raciocínio greco-romano, que interpretava as narrativas dos habitantes das

regiões exploradas como fábulas, ficções e, logo, mentiras com valor apenas pitoresco.

Em certo momento, a interpretação europeia-cristã sobre os relatos míticos evolui para

uma dicotomia entre forma e conteúdo. A legitimidade das narrativas se daria em um sentido

oculto detrás da narração fantástica dos mitos, relegando o estilo fantástico à utopia e ao                                                                                                                28 “Los primeros teólogos cristianos tomaban el vocablo ‘mito’ en el sentido que se había puesto desde hacía siglos en el mundo grecorromano: el de ‘fábula, ficción, mentira’´. En consecuencia, se negaban a ver en la persona de Jesús un personaje ‘mítico’ y el drama cristológico un ‘mito’.” (ELIADE, 2010a: 157). 29 “Los primeros teólogos cristianos tomaban el vocablo ‘mito’ en el sentido que se había puesto desde hacía siglos en el mundo grecorromano: el de ‘fábula, ficción, mentira’. En consecuencia, se negaban a ver en la persona de Jesús un personaje ‘mítico’ y el drama cristológico un ‘mito’.” (ELIADE, 2010a: 157). 30 Eliade se refere a elementos de culto os símbolos referentes ao Sol encontrados nos rituais católicos. Identificados em diversas outras religiões, - afinal, o “astro rei” é visto por todo ser vivo da Terra e sua correlação com a vitalidade é elementar - a iconografia do Sol é vista como pagã, já que se refere à idolatria à natureza, ou antropomorfismo. Porém, a hóstia é um exemplo desse hibridismo simbólico no catolicismo, não confirmado pelos sacerdotes e pouco conhecido pelos fiéis: “[…] Añadamos que la presencia masiva de símbolos y elementos cultuales solares o de estructura histórica en el cristianismo ha animado a algunos eruditos a rechazar la historicidad de Jesús. […] Si los cristianos se han negado a ver en su religión el mito desacralizado de la época helenística, ¿Cuál es la situación del cristianismo frente al mito vivo, tal como se ha conocido en las sociedades arcaicas y tradicionales?” (ELIADE, 2010a: 158-159).

43    

lúdico. Diferente da narrativa católica, que buscava elementos “comprováveis” no cotidiano

para referendar-se como verdade, a mitológica não se prendia à lógica para desenvolver-se,

sendo condenada à avaliação de uma narrativa falsa para um fundo de verdade.31

Podemos identificar este raciocínio nas histórias de cavalaria a partir da Era Medieval.

Muito difundidas na Europa, eram transmitidas oralmente e tinham a função de apresentar

costumes, advertências e ensinamentos a adultos e crianças. Eram consideradas, porém, como

novelas, sendo compreendidas como narrativas ficcionais com uma moral de fundo.

Mantinha-se o aprendizado, divertia-se com a ludicidade da história e desfazia-se da narrativa

por seu caráter apenas alegórico. O que talvez não percebessem os amantes desses contos de

fada é que também se tratavam de narrativas com função mítica.32

É de uma forma parecida com que os exploradores ibéricos consideravam as narrativas

míticas pré-colombianas. Entendiam que havia alguma moral ou aprendizagem local nestas,

mas falhavam em compreender a veracidade que continham ou mesmo a relação direta e

contemporânea com as sociedades que as relatavam. Quando os astecas, por exemplo,

acreditavam que o rei-deus Quetzalcoátl voltaria para uma nova era do império, isso não era

uma metáfora. O sistema de raciocínio europeu não podia considerar “histórias de cavalaria

indígena” como as incas e astecas sendo a história viva de povos desenvolvidos de então.

Duvidaram assim das histórias, bem como de qualquer desenvolvimento daquele “povo sem

alma”, os moradores da Nova Espanha.

O que se aceita como outra avaliação do tema é que as novelas e romances épicos

tenham valor mitológico ao carregar símbolos arcaicos e perenes. Trazendo a discussão aos

dias atuais, não se trata de que os mitos não tenham relação com a vida de hoje, mas que as

histórias cotidianas, fatos reportados pelos jornais, podem ter guardadas dentro de si relações

profundas com experiências imemoriais do ser humano. As notícias e histórias atuais são

vividas e escritas pelo mesmo homem, ainda que envolto em um mundo mais complexo, mas

o mesmo homem.

                                                                                                               31 “A principios del siglo II, Elio Theon demostraba en su tratado Progymnasmata la diferencia entre mito y narración: ‘el mito es `una exposición falsa que describe algo verdadero´, mientras que la narración es ´una exposición que describe acontecimientos que tuvieron lugar o pudieron haberlo tenido’.” (ELIADE, 2010a: 160). 32 “Se sabe que el relato épico y la novela, como los demás géneros literarios, prolongan en otro plano y con otros fines la narración mitológica. En ambos casos se trata de contar una historia significativa, de relatar una serie de acontecimientos dramáticos que tuvieron lugar en un pasado más o menos fabuloso. (…) En esta perspectiva podría decirse que la pasión moderna por las novelas traiciona el deseo de oír el mayor número posible de `historias mitológicas´ desacralizadas o simplemente disfrazadas bajo formas ‘profanas’.” (ELIADE, 2010a: 181).

44    

Portanto, tanto o relato épico da História quanto a narrativa novelesca de certas

notícias de jornal carregam em si elementos da narração mitológica: contam histórias

significativas em um passado fabuloso. Este é um dos motivos pelos quais este trabalho

buscará em diferentes tipos de textos sua narrativa mítica, as semelhanças culturais que

podem ser consideradas identidades e a integração que diferentes formas de ver o mundo

podem realizar através do diálogo intercultural. Os mitos comprovam a indissociação dos

aspectos individuais sobre os discursos coletivos e a permanência de conteúdos culturais

arcaicos em narrativas contemporâneas.

O que garantiu um diálogo primordial e inegável entre as culturas europeia e pré-

colombiana, entretanto, foram justamente as bases da mitologia: os símbolos e arquétipos

gerados pelo inconsciente humano. Se podemos assegurar que há uma identidade em todo o

ser humano na face da Terra, esta é gerada pelo inconsciente. Não à toa, os estudos de

psicanálise e de cultura dialogam desde que os primeiros foram desenvolvidos, no início do

século XX, por Sigmund Freud, Carl G. Jung e outros pioneiros, chamados “psicanalistas

ortodoxos”. Seja pela interpretação livre, guiada ou aprofundada dos sonhos, narrativas

oníricas do ser humano, a psicanálise compreendeu que os mitos são textos coletivos,

conjuntos de inconsciente humano materializados em histórias perenes, adaptáveis ao seu

contexto, sem perder seu valor intuitivo.

Os mitos carregam alto valor comunicativo. Segundo Contrera (2000), isso graças ao

alto índice de diálogo entre o consciente e o inconsciente das narrativas, seus autores e as

sociedades que elas representam. Como consequência, a saudável dialogia entre interior e

exterior do ser humano gera criatividade, tanto na invenção dos símbolos que possam

expressar as ideias dos mitos quanto no despertar da imaginação para a composição das

histórias.33

Carl Jung faz uma intersecção entre inconsciente, sonhos e mitos, e os relaciona

através dos símbolos citados por Contrera (2000), entendendo que são elementos que

guardam informações para além da compreensão humana pela consciência. A incapacidade

humana de explicação sobre alguns fenômenos ao seu redor gera sobre este símbolo uma

                                                                                                               33 “Podemos compreender o mito como um texto imaginativo criativo, segundo a conceituação do semioticista Ivan Bystrina, em que esse é um texto eminentemente simbólico, e por isso codificado por um processo arbitrado que inclui graus diversos de motivação, estejam eles mais ou menos evidentes. Dentre os muitos textos que perfazem esse perfil estão os sonhos, as histórias fabulosas, os mitos. O psicólogo Carl G. Jung dizia que os mitos são os sonhos de uma cultura, e sobre a relação entre sonho e mito, e sobre a natureza da representação encontrada nesses textos que aqui chamamos de imaginativo-criativos.” (CONTRERA, 2000: 40).  

45    

carga de crença sem necessariamente uma comprovação ou compreensão, o que Jung chama

de divinização.34

Mircea Eliade (2006) valoriza o estudo das religiões para a compreensão de uma

narrativa cultural global, já que as histórias que lidam com o divino seriam a base de todas as

culturas. Os símbolos trazem à consciência uma infinidade de experiências humanas e

significados, verticalmente armazenados.35

Os mitos chegam próximos do que seriam definições sobre símbolos universais, com

forma ou conteúdo relativamente uniforme e em diálogo com diversas culturas pelo mundo,

ainda que não tenham intercambiado informações diretamente.

Os arquétipos são formas de apreensão, e sempre que nos deparamos com formas de apreensão que se repetem de maneira uniforme e regular, temos diante de nós um arquétipo, quer reconheçamos ou não o seu caráter mitológico. (JUNG apud CONTRERA, 2000: 44).

A manifestação simbólica dos instintos humanos é o que Jung define como

arquétipos.36 Uma tendência de produção simbólica semelhante em toda a humanidade, já que

é baseada nos instintos e no corpo humano e suas relações com o meio ambiente. As

características de alguns símbolos que se tornam arquétipos ensaiam uma leitura intercultural

de narrativas.

                                                                                                               34 “Uma palavra ou imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem tem um aspecto ‘inconsciente’ mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado. [...] Quando, com toda limitação intelectual, chamamos alguma coisa de ‘divina’, estamos dando-lhe apenas um nome, que poderá estar baseado em uma crença, mas nunca em uma evidência correta.” (JUNG, 2008: 19). 35 “Tengo la convicción de que, más que cualquier otra disciplina, la historia de las religiones prepara a nuestros contemporáneos para convertirse en ‘ciudadanos del mundo’. A través de la comprensión de las experiencias, expresiones y simbolismos arcaicos, se produce un extraordinario enriquecimiento de la consciencia de quien adquiere esa comprensión. Al captar los significados, se opera una superación de cualquier tipo de provincialismo cultural, sea este occidental, chino o africano. Se aprende a conocer un número insospechado de situaciones humanas diferentes. Creo, además, que la historia de las religiones es la única disciplina que conduce a un optimismo fundamental. Se comprueba cómo el ser humano ha sabido valorizar todos los niveles de la experiencia otorgándoles un significado. En suma, el historiador de las religiones, por el hecho de no ser especialista de una sola cultura, comprende mejor a las otras culturas; pues las raíces de toda cultura son siempre religiosas. (ELIADE apud VARENNE, 1984. Entrevista disponível em artigo digital publicado em 2006. www.cabalgandoaltigre.wordpress.com/2006/01/30/entrevista-a-mircea-eliade-las-raices-de-toda-cultura-son-siempre-religiosas). 36 “O arquétipo é uma tendência para formar estas mesmas representações de um motivo – que podem ter inúmeras variações de detalhes – sem perder a sua configuração original. [...] é uma tendência instintiva, tão marcada como o impulso das aves para fazer seu ninho ou o das formigas para se organizarem em colônias. É preciso que eu esclareça a relação entre instinto e arquétipo. Chamamos instinto aos impulsos fisiológicos percebidos pelos sentidos. Mas, ao mesmo tempo, estes instintos podem também manifestar-se como fantasias e revelar, muitas vezes, a sua presença apenas através de imagens simbólicas. São a estas manifestações que chamo arquétipos. Sua origem não é conhecida; e eles se repetem em qualquer época e em qualquer lugar do mundo – mesmo onde não é possível explicar a sua transmissão por descendência direta ou por ‘fecundações cruzadas’ resultantes da migração.” (JUNG, 2008: 66).

46    

As narrativas, carregadas de símbolos, são performances rituais que presentificam os

fatos registrados ou criados pela sua cultura de origem. A brecha entre inconsciente e

consciente é tocada pela narrativa, que nos leva às origens de nossa história humana e nos

permite a recriação de nós mesmos, ou a integração do Ego. Neste raciocínio, temos

novamente a valorização das narrativas, como forma de efetivar o diálogo entre os símbolos

arquétipos e os interlocutores. Segundo Contrera (2000: 45-46), a narrativa re-presentifica o

momento do rito, potencializando-o pela metáfora. Dessa forma, aumenta as possibilidades de

diálogo com outras culturas, já que se representam os primórdios, quando o poder criativo do

ser humano gerou as metáforas que nos explicam até hoje.

Para Jung, a sua narrativa de análise primordial é o sonho. Semelhante ao mito, o

sonho não tem delimitações espaço-temporais claras, e traz à tona arquétipos do inconsciente

sob a forma de símbolos. Esse caráter difuso da origem dos conteúdos dos sonhos provém da

herança cultural do ser humano, ligando o homem moderno ao arcaico, conectando seres

humanos para antes das divisões migratórias, étnicas, nacionais ou geográficas. O sonho é a

narrativa universal, adaptada a símbolos locais, provindos do meio ambiente.37 Os mitos, por

sua parte, são a sedimentação dos sonhos coletivos que, registrados e difundidos, tornam-se

porta-vozes do inconsciente social.

Os primeiros formatos mitológicos foram baseados em antagonismos. As narrativas

primordiais consistiam em apresentar assimetrias binárias entre bem e mal, antes e depois,

alto e baixo, vivo e não-vivo, e os protagonistas atuavam para equilibrar essa binariedade.

Baitello Junior (1999: 32-33) entende que a relação binária gera uma contraposição de

diferentes valores. E, por isso, os textos culturais se apresentam como uma ação criativa

humana, que busca reelaborar e resolver esse conflito. As narrativas míticas são grandes

exemplos dessa tentativa de correção das assimetrias. São tramas que se complexificam, em

tramas paralelas, em uma tentativa do homem de dar rumo à divisão binária, criando outras, à

sua vez.

Dentro da história, as assimetrias servem para forjar o caráter do protagonista e com

isso constituir o ego do indivíduo. Já o efeito na sociedade que realizam tais narrativas é de

                                                                                                               37 “Em um sonho muitas vezes aparecem elementos que não são individuais e nem podem fazer parte da experiência pessoal do sonhador. A estes elementos Freud chamava ‘resíduos arcaicos’ - formas mentais cuja presença não encontra explicação alguma na vida do indivíduo e que parecem, antes, formas primitivas e inatas, representando uma herança do espírito humano. Assim como o nosso corpo é um verdadeiro museu de órgãos, cada um com a sua longa evolução histórica, devemos esperar encontrar também na mente uma organização análoga. [...] O pesquisador experiente da mente humana também pode verificar as analogias existentes entre as imagens oníricas do homem moderno e as expressões da mente primitiva, as suas ‘imagens coletivas’ e os seus motivos mitológicos.” (JUNG, 2008: 66).

47    

reconexão do passado com o presente, mantendo as bases culturais e corrigindo possíveis

distorções nos rumos do que a comunidade entende ser sua missão na Terra.

Aprofundando-nos na construção de narrativas, atemo-nos à necessidade humana de

apreensão da realidade material para então manipulá-la através dos elementos simbólicos. Sua

ordenação se torna independente da natureza, permitindo ao homem recriar o mundo através

da representação. A segunda realidade, simbólica, não é, porém, dissociada da primeira, a

material. Ela se alimenta do meio ambiente para construir seus elementos sígnicos, mas utiliza

de raciocínio próprio – como a binariedade e a assimetria – para organizá-los.38

Supõe-se neste trabalho que o diálogo entre as culturas latino-americanas tenham

símbolos relacionáveis, dado que são constituídas pelo ser humano e a partir da natureza,

com semelhanças graças às proximidades geográficas e culturais. Se há incomunicação entre

as culturas latinas, ou falta de identidade, ela pode estar na organização distinta de tais

elementos simbólicos, nos códigos de funcionamento das narrativas. A compreensão e

assimilação dos elementos de sociedades distintas se dariam quando os símbolos de um grupo

se adaptassem ao processo narrativo de outro. A invenção de conexões e a adaptação de novos

símbolos às narrativas constituiriam o processo de criatividade humana.39 O diálogo cultural

passa por relacionar elementos de uma cultura na outra. Esse é o exercício que demonstram os

mitos, quando introduzem temas até então externos às suas comunidades de forma

compreensível e assimilável.

Nos mitos e nas demais narrativas, limitações podem ser superadas pela representação

simbólica. A cultura presta o serviço de justificar assimetrias, sincronizando e oferecendo

elementos de diálogo a interlocutores locais ou globais. Neste momento, o enraizamento das

dicotomias na cultura humana e a consequente necessidade de equalizá-las por meio das

narrativas míticas estimulam a criatividade. Os métodos e processos não pragmáticos de

produção das narrativas são estimulados por performances humanas como o jogo, o sonho e a                                                                                                                38 “Este universo simbólico, a ‘segunda existência ou realidade ou a semiosfera’ constitui o conjunto de informações geradas e acumuladas pelo homem ao longo dos milênios, por meio de sua capacidade imaginativa, ou seja, de narrativizar aquilo que não está explicitamente encadeado, capacidade de inventar relações, de criar textos (em qualquer linguagem disponível ao próprio homem, seja ela verbal, visual, musical, performático-visual, olfativa). Assim, o conjunto menor destas associações, denominado ‘texto’ constitui a unidade mínima da cultura.” (BYSTRINA apud BAITELLO JR., 1999: 37). 39 “Além da comunicação social, ordenadora das sociedades, uma outra esfera se desenvolve. Trata-se do universo da cultura, transpondo as fronteiras do meramente pragmático da organização social, e criando limites maiores e mais etéreos para a existência, abrindo espaço para o imaginário, para a fantasia, para as lendas e histórias, para as invenções mirabolantes, para a ficção. Um universo onde as dificuldades instransponíveis da vida biofísica e da vida social são superadas, justificadas ou explicadas por sistemas simbólicos. trata-se de um universo comunicativo por excelência, que se mantém vivo graças à transmissão social de um enorme corpus de informações acumuladas, não na memória genética de uma espécie, mas na memória de uma sociedade.” (BAITELLO JR., 1999: 39).

48    

neurose, o que Bystrina (apud BAITELLO JUNIOR, 1999) chama de universais da cultura,

ou seja, algumas das origens do pensamento simbólico humano.40

O mito carrega, portanto, universais de cultura que não necessitam do pragmatismo,

empirismo ou realismo para serem compreendidos, pelo contrário, sua função de abrir a

percepção humana para o arcaico, arquetípico e inconsciente certamente aumenta suas

potencialidades de dialogismo com diversas culturas. Também devemos considerar,

entretanto, que as narrativas contemporâneas carregam universais de cultura da mesma forma,

e que o lugar da criatividade, sonho e distorção também são fundantes da cultura

contemporânea, tão efetivamente quanto da cultura arcaica. Se por um lado este raciocínio

reconhece a vitalidade e conexão dos textos atuais aos primordiais, por outro deve relativizar

a avaliação de narrativas europeias sobre a América Latina como certas ou erradas. Elas

também sofreram processos de transformação pelos mesmos motivos das ocorridas sobre os

mitos. O que se deve considerar, portanto, é a construção simbólica de uma identidade por

outra cultura, e não se uma está mais correta que a outra.

A cultura e os textos produzidos pelos seus símbolos servem para pôr ordem no caos.

Seja sincronizando os indivíduos de uma comunidade segundo mesma ética, moral e ritmo,

seja explicando-lhes elementos alheios ao seu universo simbólico, a cultura presta um serviço

de integração social. A acumulação, organização e disseminação de elementos culturais

formam uma rede de relações entre elementos independentes, sejam eles de uma mesma

localidade, sejam eles estrangeiros. Entendemos, assim, que a cultura é elemento primordial

para a integração.41

A compreensão do funcionamento do tecido comunicativo, enredando símbolos

ordenadamente, pode nos oferecer a compreensão de como se organiza uma sociedade. No

caso do encontro cultural ocorrido na América entre culturas pré-colombinas e a espanhola,

parece haver tido uma grande dificuldade em se compreender a tecitura do sistema social

                                                                                                               40 “As dicotomias polarizadoras que ainda hoje operam em nosso universo perceptivo possuem raízes e motivações profundas na história cultural do homem. [...] O mesmo Ivan Bystrina, que procura vislumbrar em alguns importantes procedimentos codificadores os assim chamados ‘universais da cultura’, tais quais a percepção binária arcaica, a consequente polaridade e sua respectiva valoração assimétrica, enxerga exatamente no universo do brinquedo e do jogo, da atividade não direcionada a um fim pragmático, uma das nascentes da cultura humana. [...] O jogo – aliás não sozinho, mas juntamente com o sonho, com o devaneio, com o transe, com o êxtase, com a neurose, com os estados de cultura e de delírio, como o imaginativo-criativo, com o fantástico, com o narrativo e o poético, com o irônico, o grotesco, o absurdo – situa-se em algum lugar no princípio da cultura humana.” (BYSTRINA, apud BAITELLO JR., 1999: 55). 41 “Para que o tecido social com suas múltiplas funções sobreviva, é de fundamental importância que exista e também funcione perfeitamente o tecido comunicativo que une os indivíduos entre si, formando um amplo sistema de símbolos ordenadores. Assim, a cultura enquanto sistema comunicativo tem como principal função a de ordenar as informações de uma sociedade” (BAITELLO JR., 1999: 95).

49    

oponente. As tentativas de se entender as sociedades em oposição apenas pelos símbolos, sem

avaliá-las pela ordenação simbólica, mostraram-se falhas por ambas as partes.

Tampouco funcionou automaticamente a transposição de símbolos de uma cultura

para dentro do sistema cultural da outra. Ou seja, o uso de elementos comunicativos de uma

sociedade não pode ser transposto à outra à força, pois o processo de hibridização cultural é

natural e pode levar tempo. A aceleração e imposição a modelos de raciocínio específicos

podem gerar resultados diversos. A prova desse fenômeno é que a cultura mesoamericana

tinha seu foco basicamente nos eventos passados, que retornavam à vida das pessoas sob a

forma cíclica. Enquanto que a cultura europeia, pese que também carregasse características do

passado, como as do greco-romanismo e da religião católica, já era voltada mais ao presente e

ao futuro, um presente de acumulação de capital e de diversos excessos morais, como o

genocídio cometido na América, em prol de um futuro de redenção e de prosperidade.42 A

própria filosofia de Sêneca (2010), um romano vivido em território espanhol, sugere a origem

do pensamento voltado ao presente, quando prega que deve-se viver o momento, e que o

motivo da vida do homem na Terra é a felicidade.

O equilíbrio realizado pelos textos culturais em suas sociedades se dá pela

possibilidade que dão para manipular a realidade, já que carregam objetos simbólicos,

representações desdobradas do mundo objetivo, em que o homem pode alterar.43

A origem do raciocínio mágico que recai sobre as narrativas mitológicas é fruto de

uma relação de manipulação da realidade, possível através do uso dos duplos. O

enfeitiçamento sobre o real se dá pela possessão e alteração do duplo.44

                                                                                                               42 “A cultura voltada para o texto futuro é de tipo messiânico. Todo o seu passado e presente são redimensionados em função da sociedade ideal que vai acontecer no futuro. [...] As culturas que se centram no texto presente são marcadas pelo descarte da informação histórica, tornada obsoleta pelas codificações consagradas por um determinado momento. [...] As culturas voltadas para o texto passado são aquelas heróico-míticas. Fundadas num tempo memorável dos deuses e heróis aos quais devemos a nossa existência e o nosso saber.” (BAITELLO JR., 1999: 99-100). 43 Morin dá a esse objeto inteligível o nome de duplo. “Para compreender essa magia, precisamos retomar o tema do ‘duplo’ que já emergiu a propósito da morte. A existência do duplo é atestada pela sombra móvel que acompanha cada um, pelo desdobramento da pessoa no sonho e pelo desdobramento do reflexo na água, quer dizer, a imagem. Desde então, a imagem não é só uma simples imagem, mas contém a presença do duplo do ser representado e permite, por seu intermédio, agir sobre esse ser; é esta ação que é propriamente mágica: rito de evocação pela imagem, rito de invocação à imagem, rito de possessão sobre a imagem (enfeitiçamento).” (MORIN, 2000: 98-99). 44 “O mito do duplo opera a racionalização que permite explicar ao mesmo tempo a presença e a ausência do animal na imagem. Desde então, o ritual humano vai, tal como o ritual animal, constituir um comportamento que visa obter respostas adequados do ambiente exterior, mas desta vez já não diretamente sobre objetos e seres, mas sim sobre os seus duplos, quer dizer, sobre as imagens e os símbolos.” (MORIN, 2000: 99).

50    

A partir do duplo, a narrativa possibilita a compreensão do mundo objetivo, pois é

sobre ela que recai a razão humana. Em outras palavras, em um mundo natural em que os

seres e fenômenos apenas são, a narrativa, composta de duplos do real, é um terreno onde o

homem pode impor suas próprias respostas e regras. É no texto cultural que o ser humano

gera sentido, em um mundo sem sentido.

O cérebro humano é constituído para trabalhar nesse binarismo entre realidade e

imaginário. Como espaços em branco em um texto, vamos preenchendo as narrativas de

nossas vidas ora com informações objetivas, ora com subjetivas. A amarração de símbolos

dessas duas naturezas vai dando sentido às nossas perguntas, fazendo com que tanto o mundo

material quanto o fantástico tenham grande importância.45 Se um objeto não pode deixar de

ter um signo que o corresponda, um homem não pode se privar de uma narrativa que lhe dê

sentido.

Essa narrativa, porém, está permeada de brechas, geradas no preenchimento de

elementos ilusórios e fantásticos, inventados pelo gênio humano. O afastamento do mundo

objetivo gera narrativas mais livres, fazendo com que a criatividade se torne o maior trunfo do

homem na Terra. Aumenta-se a complexidade combinatória entre os signos factuais e

fantástico-mágicos nas narrativas sobre o mundo. 46 Tem-se então condições para a

constituição dos textos mitológicos.

Os processos de comunicação que alteraram os símbolos originais em novos formatos

e suportes são na verdade estímulos à criatividade humana. O imaginário, conjunto de

representações simbólicas sobre o mundo objetivo, é causa e consequência da produção de

textos culturais alheios e livres da imposição da natureza.

Deve-se levar em consideração que os termos erro e ruído provêm de uma escola de

comunicação funcionalista, baseada na eficiência de transmissão de dados. Modelos como o

                                                                                                               45 “Para mais, a zona de incerteza entre o cérebro e o ambiente também é a zona de incerteza entre a subjetividade e a objetividade, entre o imaginário e o real, e fica ainda mais aberta pela existência da brecha antropológica da morte e pela irrupção do imaginário na vida diurna. [...] é pelo fato de existir essa brecha que o reino do sapiens corresponde a um aumento maciço do erro dentro do sistema vivo. O sapiens inventou a ilusão, o escoamento do universo fantástico na vida acordada as extraordinárias relações que se tecem entre o imaginário e a percepção do real, tudo aquilo que, como veremos constitui a origem das ‘verdades’ ontológicas do sapiens e, ao mesmo tempo, a origem de inúmeros erros.” (MORIN, 2000: 104). 46 “[...] é necessário pensar que o desfraldamento do imaginário, que as derivações mitológicas e mágicas, que as confusões da subjetividade, que a multiplicação dos erros e a proliferação da desordem, longe de terem constituído desvantagens para o Homo sapiens, estão, muito pelo contrário, ligados aos seus prestigiosos desenvolvimentos.” (MORIN, 2000: 109).

51    

de Shannon-Weaver 47 consideravam a alteração dos sinais entre interlocutores como

problemas de comunicação.48 Nesta tese, as mutações dos signos e as diferentes combinações

destes nas narrativas serão consideradas como aumento de complexidade cultural e

transcriações narrativas.

Seres humanos atuam em ambientes não controlados, desenvolvendo cultura, um

universo em eterna construção. Assim, a percepção de erro, ruído e desordem nos vale como

estímulo para o exercício da criatividade. Afinal, o ser humano evolui com as alterações da

rotina e normalidade que recaem sobre si, aprende com elas, fazendo de si um ser complexo,

no qual “as transformações felizes da evolução só se podem efetuar a partir de perturbações,

de ‘ruídos, erros’” (MORIN, 2000: 114). Mais que isso, o sapiens evolui com os erros,

tornando-o um melhor articulador dos elementos simbólicos à sua volta, realizando melhores

textos culturais para explicar a desordem que o constitui. Evoluir com a complexidade, além

de lidar com ela, faz dele um ser hipercomplexo: “Um sistema hipercomplexo é um sistema

que diminui as suas restrições ao mesmo tempo em que aumenta as suas aptidões

organizacionais, designadamente a sua aptidão para a transformação.” (MORIN, 2000: 115).

A mitologia, portanto, estimula a hipercomplexidade humana, já que oferece

elementos simbólicos além dos instalados nas rotinas e ethos sociais. Ao desregrar o discurso

cotidiano com elementos mágicos e fantásticos, permite ao homem construir novas narrativas,

combinando duplos objetivos com subjetivos.

O mito é o terreno humano onde o jogo mental de livres associações pode ocorrer, e

de onde podem sair relações simbólicas caóticas que cumprem o serviço de equilíbrio dos

anseios sociais. A mitologia relata o caos, o ruído gerado pela falta de informação e

compreensão do contexto social ou individual; através do movimento, o que Morin (op.cit.)

chama de entropia49, novas combinações sígnicas são realizadas sem a necessidade de

                                                                                                               47 Em 1948, Claude Elwood Shannon e Warren Weaver publicaram "A Teoria Matemática da Comunicação". Seu modelo de Shannon-Weaver incorpora os conceitos de fonte de informação, mensagem, transmissor, sinal, canal, ruído, receptor, destino da informação, a probabilidade de erro de codificação, decodificação, a taxa de informações e da capacidade do canal. O modelo de Shannon-Weaver foi amplamente adotado nas ciências sociais. 48 “A desordem é todo fenômeno que, em relação ao sistema considerado, parece obedecer ao acaso e não ao determinismo do sistema [...] O ruído é, em termos de comunicação, toda a perturbação que altera ou perturba a transmissão de uma informação. O erro é toda a recepção inexata de uma informação, em relação à sua emissão.” (MORIN, 2000:112). 49 (en.tro.pi:a) sf. [F.: Do gr. entropé, pelo ing. entropy.] 1. Fís. Grandeza termodinâmica que expressa o grau de desordem, da agitação térmica de um sistema reversível, portanto uma função de estado; mede a energia do sistema que não pode se transformar em trabalho e se dissipa, Assim, quanto mais desordenada a energia, maior a entropia e menor a quantidade de trabalho obtida

52    

cumprirem lógicas adotadas nas práticas intersubjetivas de uma comunidade. E finalmente

levam ao cosmos, à criação das coisas como são, um novo equilíbrio dinâmico, atualizável

graças ao seu constante potencial de uma nova desordem simbólica.50

Apesar de servirem para retratar simbolismos coletivos e sociedades inteiras, os mitos

podem ter sido gerados através da atuação de um único indivíduo. Exemplos a serem seguidos,

dignos da atuação dos deuses. De fato, não há limites rígidos entre as iniciativas individuais e

as narrativas construídas coletivamente. As individualidades renovam os modelos coletivos,

modificando-os e transformando-os em novos padrões, mais avançados.51

A oralidade da cultura lhe permitiu flexibilidade em formatos e conteúdos. Na

comunicação primária, na qual indivíduos utilizam os cinco sentidos para trocas

informacionais, o ruído gerado pelas iniciativas individuais gera não apenas distorções, mas

alterações produtivas no conteúdo cultural.

É compreensível que o que chamamos de cultura coletiva, social e de grupo, tenha

partido de iniciativas individuais. Assim, sem nos preocuparmos em descobrir quem inventou

um padrão cultural, poderemos entender que pessoas, sozinhas, podem abrir caminho a

padrões coletivos da sociedade.

As atividades realizadas individualmente que melhor forem avaliadas pelo grupo ao

qual o indivíduo está inserido ficam registradas como modelos exemplares. Portanto, não é o

apenas o mito que define a ação social, mas o processo inverso, com a ação individual e social

solidificando-se em narrativas míticas. As alterações dos fatos para relatos místicos,

grandiosos ou improváveis, dão-se a partir de elementos vários, como ruído comunicacional,

criatividade autoral ou adaptação a novos formatos de comunicação. Logo, pode-se esperar

que a constituição de identidades individuais possa gerar o protótipo de identidades coletivas.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          2. Comum. Na teoria da informação, a entropia expressa o grau de desordem ou de imprevisibilidade da informação; quanto menos informação no sistema, maior a entropia. 3. Biol. Medida da desordem de um sistema. (Dicionário Aulete. http://dic.busca.uol.com.br/) 50 “A inovação pressupõe ou provoca no seio de um sistema vivo uma certa desorganização, ou abrandamento das restrições, ligada à ação de um princípio organizador. O que é próprio da hipercomplexidade é precisamente a diminuição das restrições num sistema que se encontra de fato num certo estado de desordem permanente, constituído pelo jogo das livres associações aleatórias.” (MORIN, 2000: 119). 51 “En una palabra: las experiencias religiosas privilegiadas, cuando se comunican por medio de una escenografía fantástica e impresionante, logran imponer a toda la comunidad modelos o fuentes de inspiración. En las sociedades arcaicas como en cualquier otro lugar, la cultura se constituye y se renueva gracias a las experiencias creadoras de algunos individuos. Pero por gravitar la cultura arcaica en torno a los mitos, y porque en ellos ahondan continuamente los especialistas de lo sagrado, dándoles interpretaciones nuevas, la sociedad entera se ve arrastrada hacia los valores y los significados descubiertos y transmitidos por ese puñado de individuos. En este sentido, el mito ayuda al hombre a superar sus propios límites y condicionamientos, le incita a elevarse ‘junto a los más grandes’.”(ELIADE, 2010a: 142).  

53    

Para compreender uma rede social, é preciso chegar até os indivíduos que a compõe,

compreender suas motivações, seu universo simbólico e sua produção de sentido no momento

do diálogo com o Outro. Para isso, será utilizada a teoria da Comunicação Anônima, de Jean

Lohisse (1969).

A comunicação anônima se dá quando são identificados símbolos comuns a

indivíduos e sociedades que estão em diálogo. O cotidiano, o imaginário e a criação de um

discurso sensorial geram a comunicação anônima, que é individual, mas é de fácil

compreensão ao coletivo.

Se símbolos coletivos têm origem em escolhas individuais, em contrapartida, os

sentidos individuais e locais unificam os símbolos coletivos e globais. O anônimo, portanto,

também significa individual, pois tem autoria, mas é ao mesmo tempo coletivo, pois carrega

símbolos pertencentes a todos nós.

Nas redes, o individual e coletivo se misturam, rompendo barreiras de ethos locais

como nacionalidades, línguas e comunidades, possibilitando textos convergentes graças à sua

constituição dinâmica, o diálogo.

A objetividade dos meios de comunicação gerou impessoalidade na produção

jornalística e cultural.52 Já as redes presenciais de jornalismo exercitam a tecitura de um

universo simbólico em comum. Pelo diálogo e pela troca de signos locais de cultura, os

jornalistas produzem discursos globais, em comum, aos diversos membros internacionais da

rede e as suas sociedades.

A moral na qual conteúdo bom é conteúdo para todos e para cada um ao mesmo tempo

gerou uma indústria cultural voltada à produção cultural de massa, mais preocupada com a

possibilidade de consumo de informação por todos que pela qualidade ou pessoalidade da

mensagem. A industrialização do conteúdo, através do processo de produção, também

industrializado por parte de jornalistas, gerou uma comunicação impessoal por parte dos

emissores e individualista por parte dos receptores, o público em geral.

Textos padronizados por manuais de redação e programas de TV para todos e para

ninguém ao mesmo tempo estimularam a individuação do leitor e do espectador. Afinal, se a

cultura não tem marcas de autoria (o que parece um paradoxo insolúvel), como ela pode tocar

                                                                                                               52 Texto baseado em LOHISSE, Jean.Communication Anonyme. Ed. Universitarie, 1969.

54    

o receptor a se engajar por ela, seus temas e seus produtores? Para que um cidadão se

engajaria em uma causa lida no jornal se ela não se refere nem a ele, nem a ninguém?53

Lohisse (1969: 57) pede a troca da comunicação de massas por conteúdos em comum,

entre produtores e receptores de informação. Os signos de informação, quando

compartilhados, tornam-se signos de relação. Conteúdos deixam de ser comuns para se

tornarem em comum.

A criação de universos simbólicos em comum deve-se a que jornalistas membros das

redes já carregam signos em comum, mesmo provindo de sociedades separadas. Assim como

Gustav Jung, Lohisse (op.cit.) explica esse fenômeno ressaltando os arquétipos como textos

simbólicos da época em que o ser humano fazia parte de um todo. Das semelhanças

biológicas, foram gerados símbolos coletivos.

O isolamento e migração de grupos humanos, somados à intelectualidade e à

criatividade, geraram diferenciações sobre os discursos antes coletivos. Mas uma herança

sígnica em comum manteve-se no imaginário e no gênio humano, gerando símbolos e textos

dialógicos em toda a produção cultural.

Voltando à comunicação de massas, esta seria o banco de dados coletivo usado para

criar conteúdos para atender públicos massivos. Mesmo que individualizados e locados em

ethos separados, os cidadãos modernos carregam em si uma biblioteca de signos com potência

de diálogo.

As redes também utilizam esse caldo sígnico conjunto. Quando promovem diálogo

entre jornalistas de países diferentes, possibilitam o reencontro de signos dialógicos

afastados por fronteiras, etnias, economias e línguas. Aproximam símbolos arquetipicamente

dialógicos para a formação de novos textos culturais autenticamente locais e globais.

As redes sociais ajudam na produção de uma cultura planetária, pois geram

convergência de conteúdos potencialmente dialógicos, na construção de novos textos

coletivos, em comum.

As combinações sígnicas vistas por Jean Lohisse (1969) na cultura de massas são

identificadas nesta pesquisa como os discursos construídos em comum pelos jornalistas em

rede. E também como na mídia de massas, alguns textos sobressaem sobre outros, quando

imaginários disputam espaço no mundo simbólico.

                                                                                                               53 São Paulo de 2012 padeceu por essa comunicação sem dono nas notícias sobre violência urbana. Dados e estatísticas sobre homicídio tomaram o lugar de rostos de chacinados, também negados pela polícia e pelo governo. A mídia aceitou esse pacto de silêncio travestido de notícia “objetiva”, e só aprofundou-se em casos ocorridos em bairros de classe média alta, personalizando-os com a identidade das vítimas. Ou seja, para ter nome, um paulistano assassinado precisa morar em um bairro onde se compra jornal.

55    

Lohisse (1969: 62) chama de “representações dominantes” os discursos que

sobrevivem a tantos outros. Ele os classifica de lidertipos: símbolos novos, adaptados aos

processos de troca e diálogo contemporâneos, mas com raízes originais e autênticas com os

símbolos arquetípicos das sociedades em diálogo.

Nas redes de jornalismo, os lidertipos são gerados pelo confrontamento e conclusão

de signos, símbolos e discursos entre seus membros. Usando as suas representações locais

para explicar quem são e de onde vieram, os jornalistas de redes põem à prova do diálogo

seus discursos e os renovam, acrescentando novos signos aos seus textos culturais. Geram

narrativas mestiças54 e híbridas, com um DNA arquetípico e local, mas ao mesmo tempo, com

potencialidade de discurso e sobrevivência no novo diálogo global do século XXI e das redes

de comunicação.

Assim como lidertipos são símbolos que se destacam na globalização da cultura, a

fusão de individualidade com coletividade dos textos culturais promove o que Lohisse

(op.cit.) chama de osmotipos.

A comunicação anônima tem pulsões universais e permanentes, como a morte, a

eternidade, o sexo e a existência. A essência em comum possibilita discursos coletivos, como

os arquétipos, serem recombinados individualmente pelos cidadãos, gerando um novo

discurso, osmotípico, segundo LOHISSE (1969: 173), ou trans-criado.

Afinal, ethos locais também geram símbolos universais. Os habitantes dessas

localidades os usam para compreender o mundo e se expressar nele. Seja de modo dedutivo,

chegando a novos textos culturais, seja em síntese, sintetizando textos coletivos em textos

individuais, as pessoas combinam símbolos e geram osmotipos, narrativas culturais locais,

assentadas em signos coletivos.

Local e global, individual e coletivo, anônimo e destacado para o mundo. A

ambiguidade55 do ser humano também aparece na sua narrativa. Assim são os discursos das

redes no século XXI. Ambíguos e osmotípicos. São símbolos em comum com individuações e

por marcas pessoais. Não há narrativa sem autor.

Os jornalistas do Programa Balboa são produtores lidertípicos e osmotípicos, pois as

variáveis de formação e comportamento de cada indivíduo geravam escolhas distintas sobre                                                                                                                54 “Mestiçagem é a terceira via entre o homogêneo e o heterogêneo, a fusão e a fragmentação, a totalização e a diferenciação. É uma textura de movimento, de mutação e transmutação, sempre em curso de realização.” (LAPLANTINE; NOUSS, 2007: 25). 55 Usa-se o termo ambiguidade como a potência de ser duas coisas contrárias ao mesmo tempo. “El mestizaje es ambiguo. […] Considerada así una acepción dinámica, la ambigüedad pierde la valencia negativa que reviste tradicionalmente en la esfera psicológica o moral. La ambivalencia es conciliadora: esto y su contrario, verdadero y falso a la vez, negro y blanco, bueno y malo.” (LAPLANTINE; NOUSS, 2007: 79).

56    

os mitos, ritos e livros que acreditam representar seus povos. Autênticos representantes de

seus países, culturas e locais de produção das histórias, o que define a escolha dos

jornalistas e a combinação dos elementos simbólicos externos com seus próprios perfis, suas

histórias individuais e suas decisões ao longo da vida.

A comunicação anônima e os signos arquétipos, lidertipos e osmotipos auxiliam na

compreensão dos laços culturais que jornalistas produzem em redes sociais. Em outras

palavras, os signos individuais, compartilhados em diálogo, podem gerar uma visão

ampliada dos temas pertinentes a todos os membros do grupo.

Na próxima seção, será papel dos jornalistas escolher mitos e livros de suas culturas

como representantes do que consideram a identidade de seu povo. É um exercício de

comunicação individual e anônima. O diálogo entre mitos, livros e identidades foi facilitado

pela rede de jornalismo, que cria novas subjetividades e imaginários.

Haverá narrativas em destaque às demais, pela sua universalidade ou influência

sobre as demais narrativas míticas do continente. São lidertipos, textos formulados em

sociedades mais conscientizadas de suas raízes e capazes de assimilar esses textos à

contemporaneidade. São textos encontrados em mais de uma sociedade da América Latina,

como é o caso da Virgem de Guadalupe ou da Llorona, vistas em várias histórias do

continente.

Algumas narrativas se transformam, com especificidades regionais, gerando matizes

de novos conteúdos. São osmotipos, textos influenciados por narrativas originais, mas

transformados pelo seu processo de desenvolvimento.

O objetivo do diálogo entre jornalistas latinos sobre mitos é descobrir as

potencialidades das redes de jornalismo desta pesquisa. Hoje, após a dissolução da rede

presencial, o Programa Balboa ainda realiza práticas conjuntas e debates, com autonomia

de pensamento regional.

2.1 MITOS EM REDE

A primeira experiência sobre mitos e redes sociais de jornalistas após o início do

doutorado foi um diálogo sobre mitos e livros fundantes das culturas da América Latina. O

objetivo desta experiência de campo, ainda que virtual e realizada pela internet, foi

identificar pontos de diálogo cultural nos discursos dos jornalistas do Programa Balboa. A

identidade entre cultura seria percebida pela fluidez de diálogo entre mitos, lendas, histórias

e livros.

57    

Espaços de símbolos globais fazem cidadãos culturalmente híbridos, chamados glocais

(CASTELLS: 2003), com bens simbólicos locais e globais, simultaneamente. A participação

desses cidadãos de identidade transnacional em redes sociais universaliza os bens simbólicos,

potencializando o processo de construção coletiva da cultura contemporânea, assim como o

fizeram os narradores de histórias primordiais, com as dos heróis e suas narrativas.

Entretanto, cada vez mais vivemos em um ambiente saturado de imagens, signos e

textos. Mas cada vez menos estes elementos nos fazem sentido. Por isso, este trabalho pede

uma reflexão sobre a eficácia da troca de bens simbólicos coletivos da sociedade por redes

sociais presenciais, não apenas pelos suportes eletrônicos de informação.

Em ambientes digitais, por exemplo, esse processo pode se tornar ainda mais

desenraizado, dado a estrutura infinita e atemporal da internet, por exemplo. Mas os

indivíduos que trafegam em redes sociais podem realimentar os signos de globalização com

localidade simbólica. Um modo de realizarem isso é recorrerem a narrativas culturais em

comum para compreenderem e serem compreendidos pelos interlocutores. Como os mitos da

América Latina, no caso dos jornalistas do Programa Balboa.

Levando em consideração que a memória coletiva primordial humana fora transmitida

oralmente ao início, de forma comunitária, utilizando os aparelhos comunicativos do corpo

humano, seus cinco sentidos, entendemos que o diálogo interpessoal deve considerar as

qualidades e limitações da ferramenta comunicacional.

Essa máquina, que se degrada e se atualiza, redefine os signos que assimila e os

transforma em outros, de forma intencional ou caótica. A noção de ruído comunicacional

volta ao debate, justificando como textos coletivos sempre foram alterados pela ação

individual.

Os mitos são formas de fixação de preceitos culturais, uma maneira de preservar

certos signos morais, éticos e didáticos a novas gerações. Uma fábula, uma epopeia, uma saga

tinham pontos de ação simbólica definidos para que não se perdesse o cerne da história.

Contudo, evoluções no processo comunicativo também alteraram esses textos, segundo o

contexto no qual as histórias eram contadas ou fixadas. Mais uma vez, a narrativa e a

comunicação eram baseadas no equilíbrio entre o conhecimento coletivo e a autoridade

individual dos portadores destas histórias, já que um mito fica suspenso no imaginário social e

é acessado e interpretado pelos indivíduos que o contam (como uma fábula, mito, história

etc.) ou o atuam (como o rito).

58    

Esse raciocínio pode ser trazido para a atualidade. Ideias coletivas são sedimentadas

por indivíduos, que as reconstroem e as difundem. Na organização em rede social, esse

raciocínio também pode se aplicar.

Há diversas nuvens culturais que permeiam as comunidades da América Latina. Mas

quando indivíduos se organizam com o intuito de trocar experiências e visões de mundo,

como nas redes, eles acessam esse imaginário em comum e o transcriam, segundo suas bases

identitárias. Trazem seus mitos fundadores, concepções de mundo de suas comunidades para

o plano de sua compreensão, e os adaptam para seus textos cognitivos, suas formas de ver o

mundo. Assim, os indivíduos se tornariam ao mesmo tempo portadores e criadores de

realidades imaginadas de suas origens, trocando e dialogando com outros indivíduos de outras

localidades, formando talvez um terceiro texto, com um sem número de autores, mentes e

signos. Isso se assemelha ao processo de construção dos mitos, porém mais acelerado e

“desterritorializado”, já que as organizações em rede social não necessariamente estão

sediadas em um espaço físico e único, como as redes presenciais de troca profissional como o

Programa Balboa. As redes sociais têm potencial para atualizar o processo de construção de

cultura coletiva, tanto quanto os primeiros contadores de histórias, heróis e as narrativas

míticas resultantes de suas experiências.

Para estimular o diálogo entre jornalistas do Programa Balboa sobre mitos, foram

lançadas as seguintes perguntas por e-mail:

“Hola, chicos, cómo están?

Estoy investigando identidades en América Latina. Por eso les pido ayuda:

1. Necesito identificar uno o más mitos fundantes de la cultura de sus países. Historias antiguas,

estereotipos, leyendas que explican mucho de lo que son.

2. Y uno o más libros de literatura que hablen de ellas o las utilicen. Ejemplo: acá en Brasil

tenemos el estereotipo del malandro, que vive sin entrar en las reglas, haciendo sus propias

leyes. El cantante Chico Buarque ya escribió libro, músicas y la ‘Opera do Malandro’,

deberían conocerla, es muy buena.

Un gran abrazo y muchas gracias, les extraño.”

(Edson Capoano, jornalista do Brasil, 2010).

“Quais mitos e histórias fundantes versam sobre o encontro da cultura local com a

estrangeira, seja esta colonizadora, miscigenada e contemporânea?” Dado que cada indivíduo

escolhe e organiza os bens simbólicos que lhe compõem, é necessário considerar as variáveis

pessoais na composição das narrativas das sociedades na América Latina. Por isso, as

59    

perguntas apresentadas aos membros da rede Balboa devem ser consideradas de maneira

aberta, ou seja, são questões cujas respostas podem ter vindo do conhecimento herdado das

comunidades onde estão inseridos os indivíduos; mas também das escolhas das pessoas e suas

errâncias e dialogias com o mundo.

A indagação feita à rede se refere à identidade potencialmente herdada de narrativas

míticas fundacionais. Cada Estado Nação ressaltaria um texto produzido por seus habitantes,

em língua nacional, seja ele objetivo ou subjetivo. Este tipo de produção daria sentido

primordial à suas comunidades, cotidianos, modos de vida, formação de cidades e sociedade

que representa. A ambiguidade na pergunta anteriormente citada, porém, relativiza as

respostas dos indivíduos como certas ou erradas, ou se buscaram fontes históricas,

bibliográficas ou memoriais. A intenção é notar como um indivíduo minimamente esclarecido

sobre a cultura de seu país pode entender e expor sua identidade e de seu povo, através de

textos culturais não feitos por ele, mas nem por isso que deixam de ser seus: os mitos de seu

país.

Assim, foi indagado aos jornalistas em rede se estes poderiam identificar qual o mito

fundador da cultura de seu país. Essa questão estimula uma tomada de decisão do indivíduo

na escolha de um texto mitológico em detrimento de outro, já que não há necessariamente

uma resposta, o fato de haver um mito cosmogônico em cada país. Dessa forma, o jornalista

membro da rede que indaga já se torna coautor no diálogo com o jornalista em rede, ambos

trazendo à tecitura do texto em rede todo um arcabouço cultural que representa, entende e

seleciona conteúdos para serem divididos entre a rede social. É um processo natural e muito

rápido, mas ao mesmo tempo complexo.56

Dentro da questão, ainda se supõe que haja identidades na América Latina, no plural,

pois se espera compreender as identidades dos indivíduos. Estimula-se o interlocutor a pensar

se o continente tem semelhanças simbólicas através de si mesmo, que podem ser encontradas

através de mitos com formatos ou conteúdos dialógicos. Isso pode restringir o receptor da

pergunta a buscar um mito que pareça ter indícios de diálogo com outros mitos de outras

nações latinas, por um lado; mas tal indagação pode estimular uma busca dirigida baseada, em

hipótese, nas trocas simbólicas já realizadas pelos indivíduos em rede, no momento do

convívio presencial, na Espanha e em outros encontros e depois, eletrônico, pelas redes

sociais digitais. Ou seja, se buscam textos anteriores em comum para encontrar pontos de

diálogo cultural.

                                                                                                               56 Conceito de Complexidade de Edgar Morin, em que um sistema aceita a entrada de elementos externos sem perder suas qualidades e funcionamento originais. (MORIN, 2000).

60    

Como já mencionado anteriormente, o Programa Balboa para Jóvenes Periodistas

Iberoamericanos estimula a troca de ideias pela convivência de seis meses de seus indivíduos,

trabalhando em veículos de comunicação, em Madri. Fatalmente, os jornalistas Balboas

trazem consigo referências culturais, muitas vezes comparativas, dos países de seus colegas

de promoção (ano de intercâmbio). Assim sendo, a indagação de mitos fundantes após o

estímulo de haver possível identidade latina faz com que o indivíduo produza uma resposta de

relações simbólicas, as dele próprio e de sua sociedade, com as dos indivíduos e sociedades

com os quais ele convivera e percebera relações.

Histórias antigas, estereótipos e lendas foram colocados juntamente na questão. A

ideia é abrir as possibilidades de escolha narrativa por parte dos interlocutores latinos em rede.

Dessa forma, estão em um mesmo plano de importância, já que explicariam não só ao

indagador, mas ao próprio indivíduo que escolheu a narrativa, compreendendo-os a partir dos

textos, sejam eles baseados em histórias antigas, do ramo objetivo, materiais; ou em lendas,

do ramo subjetivo, mágico-fantásticas; ou ainda em estereótipos, do ramo do conhecimento

popular, bens simbólicos, sem fixação no tempo ou em fatos específicos.

O complemento da questão, pedindo para que contassem o que são através dos mitos,

remete a uma escolha estritamente pessoal, uma pergunta indireta e sutil: que mito, história ou

lenda se refere à sua identidade? Esperava-se receber através de um texto cultural coletivo as

respostas de como um indivíduo se vê através de seus mitos, como se sente enquanto latino ou

cidadão de um determinado país. Isso contempla a constituição da identidade individual, que

se inspira e dialoga com os conteúdos culturais coletivos.

Na pergunta estímulo, pedem-se também referências bibliográficas, de preferência

literárias, que contenham e registrem narrativas identitárias. Nesse ponto, esperava-se obter

produtos simbólicos materiais que tivessem importância social, pelo caráter popular e

massificado das obras na literatura nacional, ou por terem importância na formação da

identidade individual do jornalista que leu a obra e a escolheu para representar a si mesmo e

seu povo. Nesse sentido, o papel do artista que a criou, o autor da obra literária, também é

autor do novo texto, pois captou as pistas das essências identitárias de um povo e as

sistematizou a partir de uma narrativa que, apesar de fixa e descritiva de um caso ou

personagem, por exemplo, abarca o sentido do seu tempo e de sua cultura, acessada agora

pela rede social.

61    

Foi oferecido um estereótipo de uma característica brasileira para possível comparação

ou exemplificação: a malandragem,57 como esse símbolo se propaga de forma fácil e leve

pelos textos nacionais e internacionais. Foi oferecida a imagem de “alguém que faz suas

próprias regras”, um indivíduo que age à margem das normas instituídas pela sua sociedade,

não por violência, mas por manipulação dos indivíduos à sua volta. Não cabe dizer que é uma

interpretação do que é um brasileiro, mas sim a escolha de um texto cultural bem disseminado

e reinterpretado pelos indivíduos e grupos dentro e fora da sociedade brasileira. Assim,

esperava-se oferecer um texto a ser comparado com textos populares de outras localidades

latino americanas, e a estimular que uma narrativa popular e móvel, por mais difundida e

transformada que seja, pode ser tão importante quanto uma obra literária consagrada para

explicitar a identidade de um indivíduo e de sua comunidade.

Diálogo com o malandro

O Güegüense.

Güegüense ou Macho Ratón.

                                                                                                               57 Conceito de estereótipo entendido como facilitação da realidade. Já a malandragem, conceito abordado por Antônio Cândido (Dialética da malandragem: 1970) e Sergio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil: 2002), é utilizada sob a forma de estereótipo fraco, ou seja, um signo com baixo diálogo com elementos sígnicos produzidos nas trocas sociais.

62    

“Edson, en Nicaragua está "El Güegüense", una obra teatral musicalizada, anónima, de

tiempos de la colonización, cuenta la historia de un tipo llamado Güegüense que se burla de

manera ingeniosa a las autoridades españolas de la época, fue declarada Patrimonio Oral de

la Humanidad por la UNESCO en 2005. Los más puristas estudiosos nicaragüenses afirman

que el Güegüense representa todos aquellos valores que caracterizan a la sociedad

nicaragüense (irónicos, satíricos, ingeniosos) pero hay quienes dicen que no debería ser así

porque también hay anti-valores de por medio (el hecho que el Güegüense burle a las

autoridades). Es una obra que se representa con máscaras, algo que los estudiosos también

asocian con el "doble rostro" del nicaragüense. Este concepto fue aplicado por algunos

politólogos a las elecciones presidenciales de 1990, cuando perdió el Frente Sandinista. Las

encuestas indicaban una intención de votos del 78 por ciento a favor del sandinismo, pero

apenas obtuvieron un 20 por ciento de los votos. También hay otra obra que se llama "El

Nicaragüense", de Pablo Antonio Cuadra, que son ensayos sobre las costumbres, creencias y

actitudes del nicaragüense.”

(Olmedo Morales, jornalista da Nicarágua, 2010).

O Güegüense ou Macho Ratón é uma peça teatral de autor desconhecido, mas fora

apresentada inicialmente em língua mexicana, ou Náuatl. O conteúdo se refere à atuação do

povo local indicando sua indignação pelo domínio dos espanhóis. Atualmente, o Güegüense é

um dos personagens mais simbólicos do folclore nicaraguense e ressalta um método de duas

caras do personagem para vencer a autoridade estrangeira.58

Percebe-se o diálogo do Güegüense com a figura do malandro, apresentada

anteriormente. O dispositivo de “duas caras” se refere ao método de assumir diferentes papéis

quando for mais conveniente ao protagonista, neste caso, um cidadão local frente ao poder

imperial, estrangeiro. Esse método pode ser encontrado em outras obras, que o abordam como

o duplipensar, uma forma de carregar ambiguidades em um mesmo texto, em um mesmo

indivíduo, possibilitando-o exercer um dos lados dos contrários da melhor maneira que lhe

servir.

O que importa a esta pesquisa é o fluxo das narrativas, a rota e o processo de diálogo e

troca de experiências entre os jornalistas latinos em rede. Se Chico Buarque identifica o

malandro como alguém que “até trabalha, mora lá longe chacoalha, no trem da central”59 , já

algo derrotado pelo sistema capitalista, o arquétipo segue vivo na Nicarágua, ao menos no

                                                                                                               58 A obra foi declarada "Patrimônio Vivo, Património Oral e Imaterial da Humanidade" pela UNESCO. 59 BUARQUE, Chico: Homenagem Ao Malandro. In Chico Buarque (Feijoada Completa), 1978.

63    

jornalista local que se importou em dividir o conto. Afinal, são distintas as formas de ser

malandro, identificado com maestria por Antônio Cândido60, como alguém de vida errante, à

margem da lei ou do poder autoritário e violento. Talvez esse tipo que se vê na cultura seja

uma autêntica pegada da identidade comum latina.

El Chula: Só ou sem identidade?

Livro El Chula Romero y Flores.

“Amigo Edson,

Ojalá aún sirva, en Ecuador hay una novela escrita a finales de los años 1950, por Jorge

Icaza, se llama "El chulla Romero y Flores", y habla del problema de la identidad del

ecuatoriano, chulla es el apelativo de quiteño, como carioca lo es para el nacido en Río de

Janeiro. El chulla Romero y Flores era hijo ilegítimo de un aristócrata venido a menos por

malos negocios, su madre es una indígena. Entonces a Romero y Flores le daba por ser

orgulloso de su mitad española, y escondía mucho su esencia indígena, que es el eterno

problema del ecuatoriano promedio mestizo, no ser totalmente indígena ni mucho menos

blanco. Creo que para tus propósitos puede servir. Saludos!”

(Jorge Imbaquingo, jornalista do Equador, 2010).

El Chulla Romero y Flores (Quito, 1958) é um romance do equatoriano Jorge Icasa. A

palavra “chulla” vem da língua indígena quéchua chúlla, e significa só, ímpar, único. No

                                                                                                               60 CANDIDO, Antônio. “Dialética da Malandragem” (Caracterização das Memórias de um Sargento de Milícias). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1970.

64    

Equador, essa expressão também denomina ao integrante de classe média que busca ser

superior pelas aparências.61

Luis Alfonso Romero y Flores, protagonista do romance, é um mestiço de mãe

indígena com o dono da casa na qual ela trabalhava, o finado pai Miguel Romero y Flores,

que tinha devaneios de grandeza. Luis, o Chulla, apega-se ao seu duplo sobrenome, espanhol,

pois lhe daria uma suposta fidalguia europeia, já que tem vergonha de suas origens indígenas.

Mestiçagem e rejeição são temas de textos culturais comuns na Península Ibérica e na

América Latina, inclusive no Brasil antropofágico dos Modernistas. Um pícaro, por exemplo,

é um tipo de personagem comum nos contos dos séculos XVII e XVIII, muito forte na

literatura espanhola, com características do que hoje se chamam de cuentos de engaño. Ele

vive transitando por diferentes classes sociais, das quais tira a subsistência, através de

estratégias de engano sobre membros da comunidade. Em outras obras, o pícaro assume o

papel de bufão que, pela sua graciosidade, está inserido na sociedade, ao mesmo tempo em

que burla dela.

Filhos da dor

A Tulivieja ou Llorona.

                                                                                                               61 “La palabra ‘chulla’ presente desde el título es un ecuatorianismo explicado en el vocabulario colocado por Icaza a modo de colofón: ‘Solo. Impar. Hombre o mujer de clase media que trata de superarse por las apariencias’. El traductor francés de la novela, Claude Couffon, eligió como título ‘L'homme de Quito’ considerando que el chulla es una antonomasia del quiteño. En un primer momento, mi cultura literaria de hispanista me llevó a identificar en Romero y Flores a un pícaro ecuatoriano, pariente del lazarillo español afanado en medrar y tan despreocupado de la moral como el buscón de Quevedo.” (TAUZIN, Isabelle. 2002).

65    

“En Panamá es más complicado. Hay un libro genial, “el ahogado”, que cuenta el mito de la

tulivieja, de Tristán Solarte, realismo mágico antes de García Márquez - y más fino creo yo

pero que no escuchen en Colombia que me matan. Bueno, abrazo grande.”

(Guido Bilbao, jornalista do Panamá, 2010).

A Tulivieja é um conto baseado em uma lenda antiga dos povos panamenhos. Ele se

desenrola em uma comunidade rural, contando a história de uma jovem, muito bela e

admirada por todos os homens. Ela envolve-se com um estrangeiro que lhe engravida, mas

por seu descuido, deixa seu filho afogar-se no rio. Como castigo divino, foi transformada em

um monstro com rosto cheio de pontas, pernas finas, garras enormes e pés invertidos.

Outra forma de encontrar o arquétipo da Tulivieja é pela Llorona, como no México.

Nesta versão conta ter havido uma mulher que se envolvera com um espanhol. O homem a

deixou por uma dama espanhola da alta sociedade e a jovem, sofrida e desesperada,

assassinou seus três filhos, afogando-os em um rio. Desde esse dia, ouve-se o lamento de dor

da jovem, na beira do rio onde ocorreu o crime. Após a formação do México como Estado

Nação, a lenda foi adaptada, de forma a poder se escutar o lamento da Llorona perto da Plaza

Mayor, no centro da cidade. Pelas janelas no Zocalo, as pessoas identificam uma mulher

vestida inteiramente de branco, magra e esfumaçante.

Ambas as mulheres estão condenadas a buscar seu filho por toda a eternidade,

gritando pelos rios, buscando uma criança que jamais encontrarão. Outros contos pelo

continente relatam que às vezes essa mulher volta à forma humana, geralmente nas noites de

lua cheia, quando se banha nos rios. Mas ao menor ruído converte-se novamente no monstro

choroso, para continuar sua busca. A dor da perda, a busca pelos filhos, frutos da

miscigenação dolorosa entre europeu e gentio, ocorre em toda América Latina.

Compartilhamos da dor da nova experiência mestiça da mulher, do feminino, da nova terra, a

América, frente ao estrangeiro, invasor, homem, uma novidade, assim como o filho o é.

66    

A Virgem de Guadalupe

“Y bueno si buscas un mito fundacional de identidad nacional, en México el más grande es el

de La Virgen de Guadalupe, no sólo por permitir la evangelización, sino que tan grande es su

arraigo que la primer bandera de la lucha de independencia de México es un estandarte con

su imagen.”

(David Santa Cruz, jornalista do México, 2010).

A porosidade das fronteiras da cultura não estabelece uma direção de sentido, uma

origem ou forma de se ler um texto mitológico, lendário ou literário. A Virgem Maria é

representada de diversas formas na América Latina, como a Nossa Senhora Aparecida,

representada por uma imagem negra encontrada no rio Paraíba, em 1717, ou a Virgen de las

Nubes, aparição de 1696, do Equador, e na história transcriada para o Santuário e Monastério

de Las Nazarenas, em Lima, Peru.

No caso da padroeira do México, a Virgem de Guadalupe, a transposição do símbolo

cristão como um ícone de independência do novo país do século XIX faz uma mistura entre

os textos étnicos e as contribuições provindas das navegações. Um símbolo romano cristão

tornou-se mestiço, símbolo da resistência da América Latina contra a Espanha.

A miscigenação do símbolo se vê logo pelo rosto moreno da Virgem. E pelo seu

cabelo, sempre solto, um sinal de mulher grávida para os astecas. Porém, outras narrativas

indígenas podem ser identificadas em Guadalupe.

67    

Para os pré-colombianos, o solstício de inverno era o dia mais importante do seu

calendário religioso, pois é quando o Sol vence as trevas e surge vitorioso. É nesse dia

precisamente que a Virgem de Guadalupe fora apresentada aos povos indígenas pelos

espanhóis, pois, segundo o plano de catequização, os gentios poderiam compreender que Ela

trazia em seu ventre o Deus verdadeiro. Desta forma e por outros métodos de difusão, os

religiosos cristãos convenceram os povos americanos da legitimidade de seus santos sobre os

deles.

A flor de quatro pétalas (Nahui Ollin) também é outro elemento dialógico da Virgem,

pois é o símbolo máximo náhuatl e representa a presença de Deus, da plenitude, do centro do

espaço e do tempo, ou seja, da cosmogonia indígena. Na imagem da Virgem de Guadalupe, o

Nahui Ollin está sobre o seu ventre, marcando o lugar onde se encontra o Senhor Jesus Cristo.

Isso confirmaria aos indígenas que Ela é a mãe de Deus e que O traz para que o Novo Mundo,

a América, possa conhecê-Lo.

Os jornalistas do Programa Balboa estão inseridos em centros urbanos, regiões

conectadas por meios de comunicação, adaptados a essa nova realidade de identidade glocal.

Eles têm bagagem cultural cheia de referências que provêm de ethos tradicionais, como

família, vizinhança, cidade e país, mas também mediam ethos midiáticos, como meios

impressos e eletrônicos. Além disso, participam de outros lugares de mediação de cidadania

glocal, como as redes sociais continentais e experiências internacionais. Esse duplo

movimento potencializa os diálogos culturais rumo a identificações entre indivíduos e suas

culturas, pegadas para ilustrar este duplo movimento de formação cultural local e global,

através de organizações que fomentam o diálogo social na América Latina, as redes

presenciais de jornalismo.

Percebe-se como os símbolos culturais escolhidos pelos jornalistas em rede já estão

em diálogo por processos milenares de hibridização cultural. Portanto, pode-se entender como

indivíduos como estes, inseridos em redes sociais, já contenham textos comuns uns aos outros,

ainda que distintos por fenômenos de aclimatação e adaptação às suas regiões e contextos.

Mas, afinal, têm narrativas em comum para se espelhar. Os exemplos dos pícaros, malandros

– como o Güegüense ou Macho Ratón –, demonstram nossas formas comuns de lidar com as

dificuldades de um Estado vindo de fora de nossas comunidades, que se impôs pela força ou

ausência de organização interna do continente, e que estimulou que indivíduos encontrassem

saídas criativas para manter sua autonomia e identidade local frente a símbolos e elementos

exóticos, estrangeiros aos seus cotidianos. Se os jornalistas latinos investigados neste ensaio

notaram esses anti-heróis como exemplo de suas culturas, temos algo em comum para

68    

dialogar e para conhecermos melhor. O latino que renega a prática do engaño como saída

pode tornar-se um Chulla, um renegado de si mesmo, sem identidade clara, já que escolhe

uma que não lhe é a mais natural, como sua terra, etnia e dificuldades que nela encontra.

Certo ou errado, esse fenômeno de rejeição da América existe, afinal, além de herdeiros de

pré-colombianos, também o somos de europeus. Alguns estão à busca de uma origem que nos

consagre como cidadãos do mundo, mais do Norte do que do Sul, pobre, sofrido e latino

americano.

As redes sociais e o diálogo que promovem parecem ter acelerado os diálogos entre

identidades culturais dos jornalistas do Programa Balboa. Os indivíduos organizaram e

intercambiaram experiências no teclar de um botão, no diálogo internacional de e-mails de

grupo, na conversa entre pessoas que dividem a mesma profissão e o mesmo continente. As

vias rápidas de comunicação digital e das novas relações internacionais entre indivíduos

fazem um mundo simbólico cada vez maior e menor, ambiguamente. A identidade cultural se

pode notar pelas histórias de tristeza de mulheres lendárias, devido aos amores por indivíduos

de países distantes, seja em locais de fronteira, seja em encontros fortuitos por invasões e

violações. O fato – ou a lenda – constante é o fruto maldito, uma criança sem identidade clara,

mal aceita pela sociedade, que é renegada pela própria mãe, que em um devaneio a abandona

ou a assassina. A negação da experiência que causa a dor no nativo latino-americano é perene,

mas não se completa em um processo de fechamento. Se por um lado os processos históricos

são irreversíveis, nas lendas as mulheres se arrependem e passam suas vidas – ou pós-vidas –

buscando o fruto renegado. Afinal, a América Latina é filha da dor, mas não pode negar suas

raízes ou a si mesma. Mais que uma história de sofrimento, a Llorona e suas variações estão

por todo o continente62, mostrando como sentimentos humanos são o que nos fazem

integrados, muito mais que bandeiras, fronteiras, Estados nacionais ou escolhas culturais. Os

jornalistas que escolheram esse tema, a dor do latino, percebem que essa nuvem ainda nos

cobre, encobre, esconde e protege.

As estruturas mitológicas se mantêm pelos séculos porque, entre outros motivos,

contêm signos arquetípicos, perenes na constituição do humano. A virgem de Guadalupe,

mencionada por um dos jornalistas de rede é, antes de um ícone cristão, uma mulher que deu                                                                                                                62 No Chile, La Llorona é chamada Pucullén, como o Calchona viúva; em Valparaíso, La Llorona era uma mulher que se casou com o Diabo; na Argentina, La Llorona é uma mulher que matou os filhos e que se suicida ao ouvir seus gritos. Seu espírito ainda está em torno de olhar para eles; no Equador, é uma lenda conhecida, pela lenda da Dama Coberta; La Llorona da Colômbia derrama lágrimas de sangue sobre o filho, coberto por uma mortalha azul. Sua expressão angelical parece acusar a mãe que lhe tirou a vida; em Honduras, La Llorona está situada ao longo dos rios: à meia noite, vestida de branco, grita “Oh, meus filhos!” e geralmente só aparece para os homens que alegam ser corajosos. A lenda também é encontrada na Venezuela, Uruguai, Panamá, Guatemala, El Salvador e Costa Rica.

69    

a luz. A fertilidade vem antes da religiosidade, muitas vezes é o milagre em si. Portanto, a

somatória de signos arquetípicos na Virgem faz dela um símbolo muito maior que uma santa

cristã; uma representante da Terra, que os mexicanos identificaram e a hibridizaram. Assim,

parafraseando o ditado, Guadalupe se desvestiu de uma santa europeia para vestir-se de outra,

latina. Adquiriu elementos sagrados da Nova Terra e manteve outros que sempre a

constituirão como divina, como o fato de ser o ventre de Deus. Um jornalista que não conhece

a mestiçagem da Virgem de Guadalupe terá dificuldades de entender os processos de

miscigenação do México de toda América Latina. Entender e não explicar. De um cacoete

pretensioso difícil de um jornalista abandonar, evolui-se para contá-lo, dividi-lo e ouvi-lo, as

bases do diálogo. A explicação já está dentro de nós mesmos, em nossas histórias locais.

Outra percepção interessante da investigação deste trabalho de campo é que os

jornalistas em rede não fizeram diferença entre apresentar mitos, lendas ou livros. De forma

natural, expuseram aos outros membros da rede, em diálogo, que não há escala de

importância em um texto cultural que represente o que um indivíduo ou sociedade são. Tal

sensibilidade é pertinente ao ofício jornalístico, pois o exercício do ouvir não deveria ter

preceitos, escalas ou gradações do que seria melhor ou pior culturalmente. Em um processo

de diálogo de rede, então, isso inviabilizaria a troca simbólica, dada a constituição desta, entre

membros potencialmente distintos.

O que podem fazer os jornalistas em rede é sedimentar novamente este texto coletivo,

às vezes esquecido nas tradições, outras vezes renegado pelos novos processos de

comunicação e consumo. Dessa forma, atualizam as narrativas autenticamente nossas através

de fatos e fenômenos contemporâneos, por plataformas de diálogo diferentes das originais,

como as mídias eletrônicas.

O equilíbrio simbólico entre o coletivo e o individual estabelece-se na escolha dos

mitos pelos jornalistas. São indivíduos que escolhem, segundo suas crenças e identidades,

textos que representam a si, mas que de forma alguma renegam ao coletivo. Logo, os

jornalistas em rede são produtores culturais coletivos desde o início. E os mitos que

selecionaram não geram identidade cultural, mas a exacerbam a sensibilidade. Os textos estão

ao dispor, decantados por séculos, construídos coletivamente e representativos de cada um de

nós. Um jornalista, um historiador do cotidiano, deve ter a sensibilidade de olhar para eles e

ver o universo que carregam. A rede social, composta neste caso por jornalistas latinos do

Programa Balboa, contribuiu para que percebamos o que é tão óbvio, que está em nossas ruas

e famílias. Como somos porosos à cultura coletiva. E como nada é criado individualmente.

70    

2.2 A Jornada do Herói

O conhecedor de narrativas míticas está prevenido de interpretar identidades nos

diálogos do local com o global. Ao conhecer ensinamentos milenares sobre a atuação do

homem na Terra, podem-se compreender novos fenômenos e como estes geram atualizações

em identidades perenes. Se há uma quantidade imensa de novas tecnologias, demandas e

pressões do último século, não há novos sentimentos humanos. Por isso, é de se esperar que

narrativas antigas ajudem a entender a identidade na contemporaneidade.

Signos culturais dizem algo diferente a cada indivíduo. Por isso, a assimilação de

novos símbolos aos textos simbólicos individuais pode levar tempo. Pela atuação dos signos

em seu meio e como seus interlocutores os assimilam, pode levar tempo até o diálogo

transnacional ser estabelecido. Em uma transposição cultural agressiva como o diálogo das

localidades da América Latina, a geração de identidades pode ser bem distinta.

O diálogo do local com o global gera revelações, imagens, interpretações vivas e

dramáticas, novos textos em comum. Os indivíduos que sofrem desse arrebatamento podem

gerar novas características em suas identidades, inspiradoras ao seu grupo, que as toma como

referência. Por isso, justifica-se a análise de identidades individuais em diálogo de rede. Dos

resultados individuais, pode haver referências culturais para toda a sociedade.

Para compreender esse fenômeno, será utilizada a narrativa mítica da Jornada do

Herói para identificar ações individuais que promovem alterações na identidade. A narrativa

consiste em um indivíduo que aceitou viver em outra realidade, distinta da sua, e voltou para

trazer o que aprendeu a seus iguais. Os encontros interculturais e diálogos entre culturas que

travou em situação de viagem lhe geraram mudanças em suas interpretações sobre a própria

identidade. A viagem dos jornalistas latino-americanos para comporem a rede presencial

Programa Balboa, na Espanha, será transposta à aventura do herói mitológico, em que

descobre seu eu interior, em uma viagem de autoconhecimento.63

                                                                                                               63 “O inconsciente envia toda espécie de fantasias, seres estranhos, terrores e imagens ilusórias à mente — seja por meio dos sonhos, em plena luz do dia ou nos estados de demência; pois o reino humano abarca, por baixo do solo da pequena habitação, comparativamente corriqueira, que denominamos consciência, insuspeitadas cavernas de Aladim. Nelas há não apenas um tesouro, mas também perigosos gênios: as forças psicológicas inconvenientes ou objeto de nossa resistência, que não pensamos em integrar – ou não nos atrevemos a fazê-lo – à nossa vida. E essas forças podem permanecer insuspeitadas ou, por outro lado, alguma palavra casual, o odor de uma paisagem, o sabor de uma xícara de chá ou algo que vemos de relance pode tocar uma mola mágica, e eis que perigosos mensageiros começam a aparecer no cérebro. Esses mensageiros são perigosos porque ameaçam as bases seguras sobre as quais construímos nosso próprio ser ou família. Mas eles são, da mesma forma, diabolicamente fascinantes, pois trazem consigo chaves que abrem portas para todo o domínio da aventura, a um só tempo desejada e temida, da descoberta do eu. Destruição do mundo que construímos e no qual vivemos, assim como nossa própria destruição dentro dele; mas, em seguida, uma maravilhosa reconstrução, de uma vida

71    

Os estímulos internos e externos que sentiram os jornalistas Balboas no momento da

experiência em rede presencial teriam alterado narrativas de identidade e promovido sua

atualização. Os jornalistas teriam encontrado um conjunto de saberes, que combinaram as

suas experiências individuais e aos diálogos em rede. Não haveria, entretanto, uma

identidade única e comum na América Latina, mas sim anseios e temas humanos que se

repetem em cada indivíduo que produz cultura.64 A identidade da América Latina estaria nas

identidades dos indivíduos que se reconhecem em ação.

As identidades obtidas através da experiência em comum podem romper limites da

individualidade, ganhando força como identidade coletiva. Estimuladas pelas experiências

individuais de clímax, ideais ou de crise, as identidades individuais são modelos para as

identidades coletivas. Assim, uma narrativa em diálogo pode promover a transformação de

uma identidade, atualizando-a de estágios quotidianos de vivência para iniciá-la em novos

planos de experiência.

Vencer as limitações pessoais e locais e alcançar a ressurreição de um eu interno para

um eu aperfeiçoado, gera um benefício não apenas para o jornalista Balboa, mas para toda a

sua rede e para a sociedade que recebe seu produto cultural, o trabalho jornalístico.65 Rituais

contemporâneos como a participação em redes presenciais e internacionais de dialogo ajudam

a romper limitações locais e pessoais rumo a um plano mais alto das práticas humanas.

Assim, o reconhecimento da narrativa do herói de Campbell (2007) nos passos dos

jornalistas do Programa Balboa permitirá compreender a constituição de narrativas                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          mais segura, límpida, ampla e completamente humana – eis o encanto, a promessa e o terror desses perturbadores visitantes noturnos, vindos do reino mitológico que carregamos dentro de nós.” (CAMPBELL, 2007: 19). 64 “Os arquétipos a serem descobertos e assimilados são precisamente aqueles que narram, nos anais da cultura humana, as imagens básicas dos rituais, da mitologia e das visões. Esses "seres eternos do sonho" não devem ser confundidos com as figuras simbólicas, modificadas individualmente, que surgem num pesadelo ou na insanidade mental do indivíduo ainda atormentado. O sonho é o mito personalizado e o mito é o sonho despersonalizado; o mito e o sonho simbolizam, da mesma maneira geral, a dinâmica da psique. Mas, nos sonhos, as formas são destorcidas pelos problemas particulares do sonhador, ao passo que, nos mitos, os problemas e soluções apresentados são válidos diretamente para toda a humanidade.” (CAMPBELL, 2007: 19). 65 “Quando passamos, tendo essa imagem em mente, à consideração dos numerosos rituais estranhos das tribos primitivas e das grandes civilizações do passado, cujo relato chega até nós, torna-se claro que o propósito e o efeito real desses rituais consistiam em levar as pessoas a cruzarem difíceis limiares de transformação que requerem uma mudança dos padrões, não apenas da vida consciente, como da inconsciente. Os chamados ritos [ou rituais] de passagem, que ocupam um lugar tão proeminente na vida de uma sociedade primitiva (cerimônias de nascimento, de atribuição de nome, de puberdade, casamento, morte, etc.), têm como característica a prática de exercícios formais de rompimento normalmente bastante rigorosos, por meio dos quais a mente é afastada de maneira radical das atitudes, vínculos e padrões de vida típicos do estágio que ficou para trás. Segue-se a esses exercícios um intervalo de isolamento mais ou menos prolongado, durante o qual são realizados rituais destinados a apresentar, ao aventureiro da vida, as formas e sentimentos apropriados à sua nova condição, de maneira que, quando finalmente tiver chegado o momento do seu retorno ao mundo normal, o iniciado esteja tão bem como se tivesse renascido.” (CAMPBELL, 2007: 20).  

72    

individuais que se convertem em modelos coletivos para suas sociedades. Como nos mitos,

após o herói ter sonhado coisas maravilhosas e incríveis, tê-las provado e retornado ao seu

povo para dividi-las, a experiência individual de jornalistas latinos em redes presenciais pode

se converter em inspiração coletiva para maior diálogo na América Latina.

A seguir, serão apresentadas e analisadas as etapas da Jornada do Herói e a transposição

para a experiência em rede presencial dos jornalistas do Programa Balboa.

Libertar-se das dispersões provocadas pelas práticas cotidianas e perceber todo o brilho

da vida e da mente. O controle da própria existência e a percepção dos sinais expressos por

estímulos externos e internos permite a compreensão das certezas individuais, rumo à

sabedoria. Prestar atenção às imagens arquetípicas que inspiram os sonhos coletivos e saber

distingui-las das representações ordinárias é uma das primeiras tarefas do indivíduo que se

propõe à jornada do herói.66

A maioria de nós privou-se de ouvir a música do universo, o texto implícito nas coisas

do mundo que nos ensina o que devemos saber, para enfrentar as questões cotidianas. Ainda

assim, é a nós apresentado um mundo simbólico de aprendizagens coletivas, através dos

símbolos instalados na sociedade. Se a jornada pessoal ainda é curta, aprende-se com as pistas

trazidas pelos heróis de antes e instaladas em nossas práticas de vida. Em uma superposição

de alegorias, o fio que guia Teseu para fora do labirinto do minotauro é o mesmo que tece o

texto cultural que nos ensina a evoluir, guiando-nos pelo caminho desconhecido, já trilhado

pelo herói.67

Ao trilhar esse caminho, enfrentam-se desafios mitológicos que, na verdade, são

psicológicos, mas nem por isso, irreais. Estão presentes em outras esferas da existência, como

a dos sonhos e a dos símbolos, essenciais para a natureza humana.

                                                                                                               66 “Numa palavra: a primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique, onde residem efetivamente as dificuldades, para torná-las claras, erradicá-las em favor de si mesmo (isto é, combater os demônios infantis de sua cultura local) e penetrar no domínio da experiência e da assimilação, diretas e sem distorções, daquilo que C. G. Jung denominou ‘imagens arquetípicas’. Esse é o processo conhecido na filosofia hindu e budista como viveka, ‘discriminação’ [entre o verdadeiro e o falso].” (CAMPBELL, 2007: 18).  67 “A matéria-prima para o seu fio de linho foi colhida nos campos da imaginação humana. Séculos de agricultura, décadas de diligente seleção e o trabalho de numerosos corações e mãos entraram na colheita, na separação e na fiação desse fio resistente. Além disso, nem sequer teremos que correr os riscos da aventura sozinhos; pois os heróis de todos os tempos nos precederam; o labirinto é totalmente conhecido. Temos apenas que seguir o fio da trilha do herói. E ali onde pensávamos encontrar uma abominação, encontraremos uma divindade; onde pensávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos; onde pensávamos viajar para o exterior, atingiremos o centro da nossa própria existência; e onde pensávamos estar sozinhos, estaremos com o mundo inteiro.” (CAMPBELL, 2007: 18).  

73    

2.3 Erro no mito

Um erro – aparentemente um mero acaso – revela um mundo insuspeito, e o indivíduo entra numa relação com forças que não são plenamente compreendidas. Como Freud demonstrou, os erros não são um mero acaso; são, antes, resultado de desejos e conflitos reprimidos. São ondulações na superfície da vida, produzidas por nascentes inesperadas. E essas nascentes podem ser muito profundas – tão profundas quanto a própria alma. O erro pode equivaler ao ato inicial de um destino. E assim, ao que parece, no conto de fadas descrito, o desaparecimento da bola é o primeiro indício de que algo sucederá à princesa, sendo o sapo o segundo, e a promessa não cumprida, o terceiro. (CAMPBELL, 2007: 34).

Erro e errância. A perda do controle na execução de um ato ou no deslocamento rumo a

um destino geográfico obriga o individuo a trilhar novos caminhos, objetiva e subjetivamente.

Se as teorias comunicacionais funcionalistas consideram o ruído como um erro no processo

comunicativo, nesta tese o ruído e o erro são uma alteração no sistema, geram a complexidade.

Esse elemento alheio ao sistema original também pode evoluir o sistema, fazendo-o funcionar

apesar de e com um grau de entropia.

O ruído será considerado um elemento extra nas narrativas e um fator de evolução no

sistema simbólico. É o estímulo que o herói sente sobre o desconhecido que abre espaço ao

erro e ao novo em sua aventura e na narrativa a ser construída. São informações novas com as

quais o protagonista da história deve lidar, sejam elas ocasionais ou procuradas

intencionalmente. O fato é que não pode existir renovação se o herói não estiver disposto a

abrir seu sistema de organização cultural e simbólico a mudanças.

O erro e o ruído na experiência levam o indivíduo a abandonar velhos padrões, fazendo

com que se adotem novos elementos, porém familiares ao inconsciente, que está aflorando

graças, justamente, ao novo desafio. Esse é o motivo pelo qual é muito difícil o herói resistir

ao chamado da aventura. Seu inconsciente pede um rompimento com a rotina, portanto o

personagem herói está fadado a lidar com a quebra da narrativa tradicional de seu povo, e

colocar-se em errância, literalmente, para encontrar seu eu interior. A entropia na vida do

indivíduo o convoca a experimentar o novo, transferindo-lhe o centro de gravidade do seio da

sociedade para uma região desconhecida. A partir do contato com elementos alheios à sua

cotidianidade, o indivíduo pode seguir pelo seu próprio interesse ou lançar-se à errância,

assimilando as experiências que o destino lhe trouxer.68

                                                                                                               68 “Esse primeiro estágio da jornada mitológica – que denominamos aqui ‘o chamado da aventura’ – significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida. Essa fatídica região dos tesouros e dos perigos pode ser representada sob várias formas: como uma terra distante, uma floresta, um reino subterrâneo, a parte inferior das ondas, a parte superior do céu, uma ilha secreta, o topo de uma elevada montanha ou um profundo estado onírico. Mas sempre é um lugar habitado

74    

O chamado da aventura torna-se uma nova configuração na narrativa até então sem

alterações. O erro sobre planos rotineiros é necessário para que um indivíduo se torne um

herói, ou mude sua narrativa. O que define se um personagem se torna herói é a aceitação ao

chamado da aventura, ou seja, a percepção da necessidade de manipular um sistema complexo.

Se o personagem conseguir lidar com o ruído em sua própria narrativa, vai alcançar o

esclarecimento que o evolui, tornando-se hipercomplexo.

Em algumas narrativas, o herói recebe auxílio de personagens que facilitam seus

objetivos. Um deles é o arauto, o anunciador da aventura. Ele esclarece os termos da nova

narrativa e coloca em outro plano da existência a jornada do herói. Essa personagem

secundária pode ter papel verídico ou fantasioso, ou seja, pode ser um ser objetivo ou um

sinal.

Neste caso, vê-se a mistura dos signos objetivos e subjetivos da narrativa mítica,

combinando-se e fazendo com que o texto cultural evolua. Sem se importar com a veracidade

das histórias, percebe-se que a constituição de símbolos culturais na narrativa mítica do herói

o encaminham a fazer o que é certo, independente se as motivações são sobrenaturais ou

mundanas. O fato é que tais signos aparecem na narrativa para mover o personagem rumo ao

seu destino e de sua sociedade.69

Uma das ações mais comuns como provas após a passagem do limiar da aventura é a

viagem. É o jogar-se na grande aventura, enfrentando o que for preciso, entregando-se à

morte simbólica de deixar o plano do conhecido, cheio de provações iniciatórias e

recompensas, sejam elas físicas ou subjetivas, como a iluminação nos caminhos do herói e de

seu povo.

Se temas e regiões desconhecidas são o terreno de atuação do herói por excelência; na

América Latina, o terreno da pesquisa não seria diferente. Com uma gama de novos signos, os

aventureiros podiam escrever seus próprios destinos com novas perspectivas. Terrenos

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         por seres estranhamente fluidos e polimorfos, tormentos inimagináveis, façanhas sobre-humanas e delícias impossíveis. O herói pode agir por vontade própria na realização da aventura, como fez Teseu ao chegar à cidade do seu pai, Atenas, e ouvir a horrível história do Minotauro; da mesma forma, pode ser levado ou enviado para longe por algum agente benigno ou maligno, como ocorreu com Ulisses, levado Mediterrâneo afora pelos ventos de um deus enfurecido, Posêidon. A aventura pode começar como um mero erro, como ocorreu com a aventura da princesa do conto de fadas; igualmente, o herói pode estar simplesmente caminhando a esmo, quando algum fenômeno passageiro atrai seu olhar errante e leva o herói para longe dos caminhos comuns do homem. Os exemplos podem ser multiplicados, ad infinitum, vindos de todos os cantos do planeta.” (CAMPBELL, 2007: 10). 69 “Tendo respondido ao seu próprio chamado, e prosseguindo corajosamente conforme se desenrolam as consequências, o herói encontra todas as forças do inconsciente do seu lado. Mãe Natureza, ela própria, dá apoio à prodigiosa tarefa. E, quando a ação do herói coincide com a ação para a qual sua própria sociedade está pronta, ele parece seguir o grande ritmo do processo histórico.” (CAMPBELL, 2007: 40).      

75    

desconhecidos permitem a projeção de conteúdos inconscientes (CAMPBELL, 2007: 45),

possibilitando dessa forma que o herói possa desenvolver-se. É na aventura que se descobre

como avançar os limites de si mesmo.

A maior atitude heroica rumo à assimilação do erro e do ruído em sua própria narrativa

é a morte. Doar-se à aniquilação é nascer de novo, desapegando-se dos elementos antigos que

compunham o indivíduo, morrendo subjetivamente (ou objetivamente) e retornando,

renovado. Mitologicamente, há passagens de mortes tanto literais como metamorfoses. Uma

morte simbólica, como a de Cristo, promoveu um novo nascimento, alçado aos céus. Há

limiares de passagem para chegar-se nesta etapa, que podem estar simbolizados por animais

fantásticos, guardiões de portais ou desafios, provas que testarão seu valor para obter seu

objetivo.

Figuras fantásticas retiram o herói da rotina. Podem ser demônios ou deuses, que

comprovam haver outro mundo além do objetivo, lançando o herói em uma outra dimensão

que lhe permite transmutar-se sem seguir a lógica da vida mundana de sua sociedade. Um dos

métodos que os deuses realizam nesse deslocamento do herói é o humor, e todas as variantes

narrativas que possibilitam os estados alterados da consciência frente a uma racionalidade

castradora do indivíduo. Deuses propõem provas, testes, tentações e experiências aos heróis, a

fim de descobrirem se são dignos de obter a iluminação de suas existências.70

Outro grande desafio do herói é o seu retorno. Tendo pulverizado seu texto cultural em

detrimento de um novo arranjo do sistema, ele necessita apresentar à sua comunidade as

descobertas que realizou, e com isso ameaçar tabus confortavelmente mantidos. Deve refazer

uma narrativa que seja compreendida pelos indivíduos que não se jogaram à aventura. Afinal,

seu novo equilíbrio simbólico talvez não esteja em diálogo com os sistemas simbólicos de

seus semelhantes. Então começa uma nova aventura: ao invés de monstros e perigos, o herói

busca a troca e a intenção de ouvir e de ser ouvido. Comunicar-se.71

                                                                                                               70 “O humor é a pedra de toque do verdadeiramente mitológico, em oposição ao modo mais literal e sentimental do teológico. Os deuses, tomados como ícones, não são fins em si mesmos. Seus atrativos mitos transportam a mente e o espírito, não acima, mas através deles, para o prodigioso vazio; dessa perspectiva, os mais pesadamente carregados dogmas teológicos afiguram-se, tão-somente, como artifícios pedagógicos destinados a afastar o intelecto menos sagaz do amontoado concreto de fatos e eventos e a levá-lo a uma zona relativamente rarefeita, onde, como bênção final, toda existência – celeste, terrestre ou infernal – pode finalmente ser vista numa transmutação que lhe dá maior semelhança com um sonho infantil de bênção e temor, um mero sonho ligeiramente passageiro e recorrente.” (CAMPBELL, 2007: 95).  71 “Tendo sua consciência sucumbido, o inconsciente, não obstante, produz seus próprios equilíbrios, e eis que o herói renasce para o mundo de onde veio. Em lugar de salvar seu ego, tal como ocorre no padrão da fuga mágica, ele o perde e, no entanto, por meio da graça, recebe-o de volta. Isso nos leva à crise final do percurso, para a qual toda a miraculosa excursão não passou de prelúdio – trata-se da paradoxal e supremamente difícil passagem do herói pelo limiar do retorno, que o leva do reino místico à terra cotidiana. Seja resgatado com ajuda externa,

76    

Porém, o herói está ameaçado pela aniquilação da rotina de sua sociedade. O preço que

pagou para dilacerar-se e reconstruir-se para alcançar a sabedoria pode ser solapado pelo

conjunto de regras, burocracia e limites que a sua comunidade gerou para proteger-se de si

mesma. A racionalização cobrada por seus semelhantes sobre suas aventuras pode transformar

seu aprendizado metafísico em mera história de cavalaria. Pode haver incomunicação.

Contudo, o herói que retorna, para completar sua aventura, deve sobreviver ao impacto.

(CAMPBELL, 2007: 126). Como ensinar de novo, contudo, o que havia sido ensinado corretamente e aprendido de modo errôneo um milhão de vezes, ao longo dos milênios da mansa loucura da humanidade? Eis a última e difícil tarefa do herói. Como retraduzir, na leve linguagem do mundo, os pronunciamentos das trevas, que desafiam a fala? Como representar, numa superfície bidimensional, ou numa imagem tridimensional, um sentido multidimensional? Como expressar, em termos de "sim" e "não", revelações que conduzem à falta de sentido toda tentativa de definir pares de opostos? Como comunicar, a pessoas que insistem na evidência exclusiva dos próprios sentidos, a mensagem do vazio gerador de todas as coisas? (CAMPBELL, 2007: 124).

O contato com o mundano contamina a pureza obtida pela aventura do herói. Se ele não

souber adaptar-se novamente em seu próprio ambiente, perderá o rastro da sabedoria divina

que encontrara na sua jornada. Para tanto, alguns aventureiros não voltam de suas jornadas,

por escolha própria, sem dividir com suas comunidades o aprendizado que obtiveram.

Fracassam, pois não terão completado o ciclo do herói.72 Já o herói que melhor cumprira sua

tarefa mantém aberta a porta do limiar da experiência metafísica. Transita nos mundos terreno

e fantástico. E ensina aos seus iguais o modo de fazê-lo, através de suas histórias.

A liberdade de ir e vir pela linha que divide os mundos, de passar da perspectiva da aparição no tempo para a perspectiva do profundo causai e vice-versa – que não contamina os princípios de uma com os da outra e, no entanto, permite à mente o conhecimento de uma delas em virtude do conhecimento da outra – é o talento do mestre. O Dançarino Cósmico, declara Nietzsche, não se mantém pesadamente no mesmo lugar; mas, com alegria e leveza, gira e muda de posição. É possível falar apenas de um ponto por vez, mas isso não invalida o que se percebe nos demais. Os mitos não

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         orientado por forças internas ou carinhosamente conduzido pelas divindades orientadoras, o herói tem de penetrar outra vez, trazendo a bênção obtida, na atmosfera há muito esquecida na qual os homens, que não passam de frações, imaginam ser completos. Ele tem de enfrentar a sociedade com seu elixir, que ameaça o ego e redime a vida, e receber o choque do retorno, que vai de queixas razoáveis e duros ressentimentos à atitude de pessoas boas que dificilmente o compreendem.” (CAMPBELL, 2007: 122). 72 “Do ponto de vista dos olímpicos, era após era da história terrena transcorre, de modo que, onde os homens veem apenas a mudança e a morte, os bem-aventurados contemplam a forma imutável, o mundo sem fim. Mas o problema reside em manter esse ponto de vista diante de uma dor ou prazer terrenos imediatos. O sabor dos frutos do conhecimento temporal afasta a concentração do espírito do centro da era para a crise periférica do momento. O equilíbrio da perfeição é perdido, o espírito fraqueja e o herói cai.” (CAMPBELL, 2007: 125).  

77    

costumam apresentar numa única imagem todo o mistério do livre trânsito. Quando o apresentam, o momento é um precioso símbolo, cheio de importância, a ser tratado como um tesouro e contemplado. Um desses momentos foi a Transfiguração de Cristo. (CAMPBELL, 2007: 128).

Esta tese vai valorizar os pontos de diálogo de depoimentos de jornalistas em rede

presencial com experiências refundadoras de identidades.

Na figura de jornalistas, eles se propuseram ter uma experiência profissional e

pessoal em um país estranho, conhecer-se a si mesmos, vencer os desafios da jornada, voltar

à sua comunidade e contar aos seus próximos as descobertas que realizaram. Alcançaram a

sabedoria do herói? Terão sabido transformar seu olhar estrangeiro e suas experiências em

narrativas? Cumpriram o retorno com sucesso ou se perderam no caminho?

Não há identidade completamente individual, mas fracionalidade perante o todo,

graças às experiências pessoais de seus portadores. A jornada dos jornalistas rumo a redes

presenciais internacionais reconectam indivíduos às suas origens e fazem-no reconhecerem-

se a si mesmos, buscando dentro de si e no diálogo com o Outro.

É cada vez mais difícil, porém, realizar esse exercício de autoconhecimento, já que se

vive da ambivalência contemporânea da solidão acompanhada. Não se dispõe de muitos

momentos para buscar a essência humana, pois os estímulos externos são muitos, como o

cumprimento de burocracias e trivialidades.

Para isso, esta pesquisa sugere que a experiência das redes presenciais internacionais

estimulam contatos sem fronteiras, nas quais a experiência humana não é definida por

caráter nacional, linguístico ou regional.

A experiência internacional em grupo seria uma forma de encontrar-se e descobrir a

conexão de si mesmo com a comunidade global. Joseph Cambpell (2007) sugeria uma

mitologia mundial, através de narrativas espaciais, em que não havia barreiras nacionais.

Essa narrativa global pode ser encontrada pela fusão de identidades que novas experiências

sociais estão proporcionando, como as redes sociais. Talvez sejam mostras de integração de

indivíduos da América Latina, através de suas culturas e experiências individuais, que se

tornam coletivas pela validade universal das mesmas.

78    

2.4 Entrevistas baseadas na Jornada do Herói

As etapas da jornada do herói, adaptadas às narrativas contemporâneas dos jornalistas,

são as seguintes:

- Os jornalistas viviam uma rotina dentro de suas famílias, trabalhos e cidades na

América Latina, até a partida rumo à experiência em rede presencial internacional. A

compreensão desses ethos permite a compreensão de como compuseram suas identidades.

Saídos de seus cotidianos, são atraídos ou se dirigem para o limiar da aventura;

- Antes de começarem a aventura, encontram um guardião da passagem. A relação

entre eles pode ser de enfrentamento ou de acordo. Isso define se eles iniciaram a aventura

vivos – abertos ou dinâmicos frente às experiências – ou mortos – vencidos e fechados para

novas experiências antes mesmo de iniciá-las;

- Algo os fez buscar uma experiência internacional em redes presenciais. O limiar

da aventura é identificado quando recebem o anúncio da aprovação e então começam a se

desapegar da rotina e a se preparar para o intercâmbio profissional.

Para Cambpell (2007), o arauto ou guardião da passagem é alguém que protege a

entrada da aventura ou que escolhe quem são os heróis para enfrentá-la. Nas entrevistas, os

guardiões são identificados pelos jornalistas como membros antigos da rede, que recrutam os

novos bolsistas. A relação dos heróis retornados da aventura com os novos membros da rede e

relatada pelos entrevistados.

A experiência do Programa Balboa é imprevisível. Sabe-se que os jornalistas ganharão

uma bolsa para se sustentarem, trabalharão em algum jornal de Madri. De resto (nem isso

mesmo é seguro, como será mostrado nas entrevistas), é uma jornada pelo desconhecido. Os

Balboas relatam pelo que passaram nessa aventura às escuras. Na jornada pelo desconhecido,

há provas e às vezes ajuda.

Além de terem de vencer dentro dos veículos de comunicação em que são escalados,

os Balboas enfrentam a distância de suas famílias e de sua cultura, além de viverem juntos

pelos seis meses da bolsa. Essas e outras provas são relatadas pelos jornalistas.

No processo de reconstrução dos discursos estabelecidos em seus países, os jornalistas

Balboas precisam de ajuda para superar os desafios de viver e trabalhar no exterior. Nesse

momento de fragilidade, costumam aparecer pessoas que marcam profundamente suas

experiências.

Chegada à suprema provação da aventura do herói, ele pode ser derrotado ou ganhar

uma recompensa. Cada jornalista entrevistado relatou o clímax de sua experiência na rede

79    

presencial, na Espanha. As respostas são muito variadas, mas demonstram quem são os

jornalistas ou o que se tornaram após o Programa Balboa.

As recompensas podem ser sintetizadas em ganho de vida e eternidade;

reconhecimento do mundo pela experiência, abandono do ego ou da identidade antiga e a

própria apoteose, obtida pela experiência e pelo conhecimento.

Nas entrevistas, os jornalistas avaliam se voltaram aos seus países e cidades com

ganhos ou perdas, vitórias ou derrotas frente ao que se propuseram. No retorno, se o indivíduo

foi abençoado, tem proteção divina, da sorte e do destino; se fugiu, é perseguido pelos

obstáculos, tendo que deixar os prêmios roubados para trás.

Ou o herói retorna com o elixir da benção e restaura o mundo, ou sucumbe à

sociedade. O fim do Programa Balboa obriga os jornalistas a retornar a seus países, ou a

seguir rumo a novas aventuras. Nas entrevistas, os jornalistas relatam como foi a volta ou ao

inicio de uma nova aventura.

A sabedoria que adquiriram nos seis meses de Programa Balboa gera maior segurança

dos jornalistas sobre os novos mundos simbólicos construídos ou a desconstrução sem

reposição das certezas que tinham. Para Campbell (2007), a derrota promove a fuga e o roubo

da recompensa. Apesar dessa aprendizagem ilegítima, isso também expande a consciência e

liberta.

No retorno aos seus cotidianos, os Balboas recriam suas vidas através das novas

características que carregam, ou são engolidos pela rotina de antes e não aplicam o que

aprenderam.

80    

3. REDES SOCIAIS

Jornalistas do Programa Balboa atualizaram suas narrativas identitárias e

compreenderam a identidade dos demais latino-americanos através de troca e do diálogo.

Suas culturas locais e regionais foram descobertas, discutidas, aprofundadas, intermediadas,

transmitidas e potencializadas graças ao diálogo, e fixadas através da cumplicidade.

Essas características podem ser encontradas nas redes, mas também em outros

sistemas sociais, como grupos de amigos ou colegas, conexões entre jornalistas ou entre

quaisquer trabalhadores ou relações entre latino-americanos ou qualquer civilização. Todas

essas conexões podem ser interpretadas como redes: grupos de pessoas que estão mais

profundamente conectadas que nas suas outras relações (CHRISTAKIS e FOWLER, 2009).73

Redes são relações entre indivíduos, um fenômeno comum e imprescindível, que está

em todas as esferas da vida e que existe bem antes da comunicação digital. Assim, reafirma-se

que esta não é uma pesquisa sobre redes tecnológicas, mas sobre como o adensamento das

relações locais continentais se potencializa por jornalistas que saibam utilizá-las. Wainberg

(2001), por exemplo, lembra que as conexões sociais vieram muito antes das tecnológicas:

A história da comunicação humana tem sido a história das redes. As tecnologias de transporte e comunicação, das mais precárias às mais sofisticadas e contemporâneas, buscaram sempre o mesmo efeito: a superação dos obstáculos geográficos e do tempo. [...] Hoje, tais trilhas são o resultado do desenvolvimento das telecomunicações e tecnologias associadas. Estas infovias de cabos interligados estão cada vez mais densas [...] Os impactos culturais, sociais, econômicos de tais conexões tem sido destacados... A regra vigente no momento é partilhar com outras teias cada vez intrincadas de artefatos comunicacionais que em topografias cada vez mais multiformes que permitem a partilha e a troca. (WAINBERG, 2001: 195).

Entretanto, não é qualquer encontro de pessoas que define uma rede. Enquanto ethos

tradicionais geram identidades, as redes geram conexões. Os ethos tradicionais fazem

indivíduos conviverem com gente parecida entre si, com a mesma formação e atuação social.

As redes, por outro lado, são escolhas dos indivíduos de se conectarem de forma distinta,

independente do espaço físico ou da origem. Enquanto os ethos tradicionais são espaços

materiais, as redes não o são necessariamente. Enquanto nos ethos as pessoas são

competidoras, pois tem os mesmos papéis e vão disputar espaço na sociedade, as redes

                                                                                                               73 “In a very basic sense, then, a social network is an organized set of people that consists of two kinds of elements: human beings and the connections between them.” (CHRISTAKIS e FOWLER, 2009: 11).

81    

demonstram que papel escolhemos, a partir de alguma carência que temos individualmente.

Portanto, as redes influenciam nossa identidade a partir do nosso papel e dos demais no grupo.

A definição de redes de Castells (2000: 566) também é essencial para compreender o

que é uma rede para além da tecnologia ou do convívio comum. Manuel Castells (op.cit.)

identifica as conexões entre pontos em dezenas de fenômenos sociais, dos sindicatos da

Catalunha, até as redes de protesto do século XXI #YoSoy132 do México, OcuppyNY dos

EUA e Los Indignados de Madri. Interessado na potencialidade dessas redes, Castells as

compreende como ferramentas de aumento de alcance para os objetivos dos indivíduos

organizados. Não há redes sem cultura, sociedade ou indivíduos:

Rede é um conjunto de nós interconectados. [...] Por sua vez, dentro de determinada rede os fluxos não têm nenhuma distância, entre os nós. [...] A inclusão/exclusão em redes e a arquitetura das relações entre redes, possibilitadas por tecnologias da informação que operam à velocidade da luz, configuram os processos e funções predominantes em nossas sociedades. (CASTELLS, 2000: 7).

Cremilda Medina (2003), por sua vez, contribui com a pesquisa sobre diálogos em

rede, quando ressalta a comunicação humanizada em qualquer suporte de comunicação. O

trabalho interdisciplinar de Medina (op.cit.) afirma a compreensão de que os afeitos são a

sustentação dos diálogos e das redes do saber, muito mais que modelos de comunicação

funcionalizados ou redes digitais tecnológicas: Ideologia, paradigma e visão de mundo, outra escala de aprofundamento para o aprendiz de mediações socioculturais do presente. Mexer com as subjetividades que a dialogia social presentifica faz vir à tona tanto a visão de mundo do interlocutor quanto a visão de mundo do comunicador. A troca, o embate, a interatividade criadora se dá na cultura, espelho profundo de certa sociedade. Mais catártica ainda é a virtualidade do toque poético, ou seja, por mais díspares que sejam as mundivisões, muitas vezes de raízes socioculturais contrapostas, certamente comungam a mesma utopia humana. (MEDINA, 2003: 79).

Nos EUA, terra das redes digitais como Facebook e Twitter, novas interpretações

entre indivíduos, redes e cultura estão sendo realizadas. Christakis e Fowley (2009)

concluíram uma extensa pesquisa sobre conexões e influência entre pessoas. A resposta dos

pesquisadores sobre a manutenção do diálogo em rede foi a manutenção da felicidade, da

confiança e do amor. Assim como os afeitos e os diálogos de Medina (op.cit.), Fowley e

Christakis (op.cit.) perceberam que a “cola” entre as conexões de membros de rede é a

cumplicidade dos indivíduos, que gera a intenção de se entender o outro. Por isso, esta tese

reafirma seu objetivo de estudar redes como ambientes de conexões entre indivíduos, que

geram textos culturais através do diálogo, da confiança e da cumplicidade, produzindo

82    

identidade entre pessoas, povos e culturas.

Há outras características que definem as relações dos indivíduos dentro das redes. Isso

é importante para esta pesquisa, pois pode esclarecer como um ou mais jornalistas latino-

americanos do Programa Balboa se relacionaram durante a experiência de rede. A seguir,

serão ressaltadas a seguir algumas características de redes como ambientes específicos de

troca e diálogo humanizados:

Definimos quem e quantos entram na rede. No Programa Balboa, os ex-participantes

da rede presencial em Madri selecionam os novos jornalistas. Buscam as pessoas que melhor

se encaixam na vaga oferecida: jornalistas fluentes em espanhol, com experiência para dividir

com a rede, de fácil relacionamento, com potencial para desenvolver-se na Espanha e voltar

para aplicar o que aprenderam no jornalismo brasileiro. Os representantes da rede Balboa

também limitam a quantidade dos concorrentes. De dezenas de concorrentes em países

pequenos, como a Guatemala, até 800 candidatos, a média brasileira, são selecionados um a

dois jornalistas por país da América Latina.

Não controlamos a rede, mas nosso papel no centro ou periferia das redes. Por ser

constituída de indivíduos que nem sempre têm os mesmos objetivos, não se pode imaginar

que haverá homogeneidade ou consenso dentro de uma rede. Mas pode haver decisões

individuais, que colocam os indivíduos em diferentes papéis e funções de importância dentro

da rede. No Programa Balboa, sempre há lideres, indivíduos combativos ou apagados dentro

das turmas. Os que não têm característica muito marcada no grupo acabam se colocando junto

a grupos específicos, buscando seu nicho. Assim, cada membro da rede procura um papel.

Alguns, de destaque, outros, de passagem. Mesmo aos indivíduos não centrais, a rede Balboa

também gerou benefícios, por proporcionar experiência e aprendizagem. Quanto mais central

na rede, mais se recebe do fluxo de informações. Em menor probabilidade, alguns indivíduos

nas pontas das redes podem influenciar o todo.

Influenciamos a densidade das relações na rede. Além de controlarmos nosso próprio

papel na rede, nossa atuação pode influenciar outros membros e mudar sua forma de ser e agir

na rede. A influência por imitação, ou cópia, é uma das mais recorrentes. Nas entrevistas dos

membros do Programa Balboa de 2007, o jornalista mais citado como exemplo aos demais foi

o argentino Guido Bilbao. Então com 32 anos, Guido foi um dos mais ousados do grupo,

trabalhando para o El País de Madri, ressaltando a crônica como melhor formato jornalístico,

afirmando que as boas histórias estão na América Latina, que o jornalismo deve ser

provocativo e o jornalista livre para arriscar-se em novos mercados e países, se preciso.

Guido Bilbao, pelo seu modo desapegado de viver e a forma engajada de entender o

83    

jornalismo, contagiou diversos jornalistas com sua identidade. Nem todos os Balboas que se

disseram influenciados tinham contato direto com Guido. Mas podem ter sido influenciados

pela influência que Guido teve sobre outros membros que tinham relação com os

entrevistados. Na teoria de redes, isso é chamado de contágio. É a possibilidade da ideia ou

ação de um integrante da rede influenciar o outro, mesmo sem ter relação direta com ele. A

conectividade e o contágio podem ter alterado os signos que compuseram a identidade dos

jornalistas durante a experiência de rede.74

Grupos podem afetar o indivíduo, basicamente, por comparação e influência. Isso

define como nós avaliamos os outros e a nós mesmos. Os jornalistas do Programa Balboa se

comparam ou se influenciam? Ouvem-se uns aos outros, atualizam suas identidades a partir

da influência que emitem e recebem. Mas se olham dentro de si mesmos através da atuação

dos demais, afirmam sua própria identidade através do espelhamento com os outros. Os

resultados desta pesquisa apontam, através de entrevista e análise de perfil dos jornalistas, que

os jornalistas de rede tendem mais para a comparação entre si que para a influência.

Os jornalistas em rede mudam o parâmetro de qualidade no jornalismo de onde

trabalham. Eles não se comparam através de seus países ou de seus textos, mas através dos

indivíduos, principalmente aos jornalistas mais destemidos, exemplos e modelos, elos fortes

da rede. São as lideranças que promovem mudanças na cultura da rede, através da

comparação com modelos e da mudança individual.

Por isso, as melhores redes de qualquer tema de interesse são as que contêm melhores

indivíduos e líderes em suas áreas. São esses elos fortes das redes que fazem a informação se

mover entre os membros. Para jornalistas, redes eficientes oferecem os melhores contatos e

fazem fluir as informações.75

Há uma inteligência coletiva nas redes para manter sua continuidade.76 Interação e

interconexão mantêm a sobrevivência dos membros. O saber coletivo da rede Balboa fica

acumulado em alguns pontos de referência, como o diretor Aires Vaz. Ele é o portador do

                                                                                                               74 Outras características relevantes para compreender a comunicação dentro de uma rede são que escolhemos os membros farão parte dela; podemos diminuir a distância entre membros da rede, apresentando-os uns aos outros; decidimos se somos centrais ou periféricos na rede, o que define nosso grau de influência sobre os demais.  75 “Social networks function in large part by giving us access to what flows within them.” (CHRISTAKIS E FOWLEY, 2009: 91). 76 “Social networks can be difficult to understand in part because they are difficult to manipulate. We cannot give you a friend the way we might give you a placebo. But if we could somehow strand a group of strangers on a desert island and watch how they become connected, and for what purpose, we might be able to observe social networks as if we were conducting an experiment.” (CHRISTAKIS E FOWLEY, 2009: 210).  

84    

conhecimento acumulado em dez anos de Programa, que divide com os jornalistas das edições

seguintes as experiências das turmas anteriores. Além dele, os ex-bolsistas também carregam

história e histórias da rede, dividindo-as com os jornalistas egressos. Esse jeito de ser e de

fazer do Programa fica registrado nas pessoas que fazem parte da rede, servindo para que os

novos tenham informações para começar suas próprias experiências. Por outro lado, os jovens

Balboas também auxiliam os ex-bolsistas, pois trazem novos conhecimentos e mantêm

atualizados os integrantes da rede;

Uma das principais razões para que as pessoas participem de redes é que, com elas,

pode-se superar limitações individuais. Assim como uma ferramenta, que aumenta a

potencialidade do corpo, as redes são invenções humanas para a solução de problemas.

Muitos jornalistas Balboas ressaltaram a importância do grupo para superação de fragilidades

individuais, como o receio de se estar longe de casa, a falta de experiência internacional e a

dificuldade de se trabalhar em jornais espanhóis.

As redes têm dinâmica própria. Crescem e se desenvolvem relativamente

independentes dos seus membros. Podem influenciar77 os indivíduos que as criaram. Os laços

da rede social são tão importantes quanto seus participantes.78 O encontro de ex-bolsistas do

Programa Balboa em Lima, em 201079, reflete como combinações inesperadas e diálogos

horizontais mudaram o rumo de uma reunião comum.

Redes promovem a conectividade total. Mantêm todos os integrantes inevitavelmente

ligados. As pessoas podem estar mais ou menos ligadas umas às outras, ou seja, terem um ou

mais degraus de separação entre si. Entretanto, um indivíduo dentro da rede tem a

possibilidade de se comunicar com qualquer outro.

Uma rede não precisa ser grande, digital ou internacional. Uma relação entre três

pessoas pode formar uma rede, que transmite os interesses dos membros. Aliás, uma das

características mais importantes das redes está na regra dos três degraus de influência. Pode-

se influenciar diretamente até três pessoas em uma relação linear dentro de uma rede. Ou seja,

                                                                                                               77 Entenda-se influenciar e influência como a ação de dialogar com a concepção, imaginário, universo simbólico de pessoas, ao ponto de fazê-las mudar seus discursos ou suas ações. 78 “These ties, and the particular pattern of these ties, are often more important than the individual people themselves. They allow groups to do things that a disconnected collection of individuals cannot. The ties explain why the whole is greater than the sum of its parts. And the specific pattern of the ties is crucial to understanding how networks function.” (CHRISTAKIS E FOWLEY, 2009:9).

79 Registrado no relato de experiência, cap.4, sobre o Peru.

85    

uma pessoa influencia a outra, que influencia a outra, sendo que a primeira e a terceira podem

não estar diretamente relacionadas.80

Redes podem influenciar pessoas até de fora das redes.81 Do quarto ao sexto graus de

relação, pode haver influência da cultura inserida na rede. Ou seja, não influenciamos nem

somos influenciados diretamente a quatro ou a seis pessoas de distância de uma rede, mas

pela própria rede, sobre forma dos laços já estabelecidos dentro do sistema. As mensagens, as

narrativas, os signos, os símbolos e os discursos que criados dentro de uma rede social podem

ficar dentro da estrutura e dialogar com o universo simbólico de pessoas até seis pontos

distantes entre si.82

De acordo com a teoria dos três graus de influência aplicada ao Programa Balboa, a

possibilidade de que seus integrantes tenham influenciado ou tenham sido influenciados sobre

uma, duas ou até três pessoas, é grande.83 De fato, nas entrevistas realizadas com os Balboas,

as principais experiências e aprendizado foram realizados de um a um, como entre jornalistas

que dividiram casa, latinos vindos de um mesmo país ou que trabalhavam no mesmo jornal.

Foi mais forte a percepção de América Latina a partir das cidades nativas dessas relações “um

a um a um” do que a percepção de uma América Latina genérica, de todos.

Nas redes, a cultura é a transmissora de realidades simbólicas entre os indivíduos. A

cultura é, sob a forma de narrativas baseadas em identidades individuais, o laço que liga os

indivíduos que transitam sobre ela. A cultura é a rede que comporta o texto social do homem.

Neste trabalho, entenderam-se mitos como propagadores de signos culturais comuns entre os

jornalistas latino americanos em redes sociais.

As redes são ambientes de aceleração e aprofundamento de trocas simbólicas entre

seus membros, uma vez que a rede funciona como um espaço criativo, pois o que se cria

                                                                                                               80 “People can extend their influence beyond three degrees. Put another way, we may not be able to influence people four degrees removed from us because, in our hominid past, there was no one who was four degrees removed from us. We call this the evolutionary-purpose explanation.” (CHRISTAKIS E FOWLEY, 2009: 29). 81 “And our connections do not end with the people we know. Beyond our own social horizons, friends of friends of friends can start chain reactions that eventually reach us, like waves from distant lands that wash up on our shores.” (CHRISTAKIS E FOWLEY, 2009: 7).

82 “Moreover, even when restricted to three degrees, the extent of our effect on others is extraordinary. The way natural social networks are structured means that most of us are connected to thousands of people of other people. In a kind of social chain reaction, we can be deeply affected by events we do not witness that happen to people we do not know. It is as if we can feel the pulse of the social world around us and respond to its persistent rhythms.” (CHRISTAKIS E FOWLEY, 2009: 30).

83 “If you know twenty people (well enough that they would invite you to a party), and each of them knows twenty other people, and so on, then you are connected to eight thousand people who are three degrees away.” (CHRISTAKIS E FOWLEY, 2009: 72).

86    

dentro dela – e também o que se cria fora, mas se transporta a ela – é dividido por todos. O

que trocam e produzem entre si ficam na estrutura da rede, sob a forma de cultura, como as

recomendações dos membros antigos aos novos; a percepção de grupo que os professores têm

dos Balboas quando em sala; dos chefes de jornalismo que guardam referências profissionais

dos jornalistas latino-americanos. Como pinturas em uma parede de caverna, a rede social

guarda memória coletiva.

Junto da cultura, são as relações pessoais que mantêm diálogo dentro da rede

Programa Balboa. A influência entre os Balboas é maior e duradoura quando os jornalistas se

mantiveram próximos, presencialmente em 2007. Mas a rede mantém laços que permitem

novos encontros momentâneos ou diálogos sem encontro físico. Vão-se as redes presenciais,

ficam as redes de cumplicidade entre as pessoas.

As emoções mudam a maneira de se relacionar nas redes. Quando os indivíduos

conseguem entender a emoção dos outros membros da rede, há uma coesão no grupo, que

gera facilitação de se criar laços, sincronização de comportamentos e a troca informativa com

qualidade, ou seja, diálogo. Os vínculos pessoais gerados em rede sincronizam indivíduos,

fazendo identidades serem mais facilmente compreendidas. Indivíduos sincronizados

emocionalmente trocam informações mais rapidamente e melhor que em palavras ou em

discursos racionais.84

Os laços pessoais criados entre os jornalistas latinos permitem a criação de um mundo

subjetivo em comum. Por esse fenômeno, os jornalistas podem ter mudado seu imaginário

sobre a América Latina mesmo estando de fora dela, na Espanha, ou estando em separado,

quando cada Balboa voltou ao seu país. Sofrer e sentir-se não europeu e longe de casa

também constituiu parte da nova identidade gerada em rede pelos jornalistas.85

Enquanto as redes fechadas reforçam velhos hábitos dos seus membros, as redes

abertas estimulam a diversidade. Estas recebem informação nova dentro de seu sistema mais

facilmente. E o novo está para além dos três graus de influência de indivíduo para indivíduo.

O novo está na cultura de rede.

Redes fracas podem se conectar mais facilmente entre si que as fortes, fechadas em

                                                                                                               84 “Emotions may be a quicker way to convey information about the environment and its relative safety or danger than other forms of communication, and it seems certain that emotions preceded language.” (CHRISTAKIS E FOWLEY, 2009: 37).

85 Imaginar pensamento dos outros nos faz criar redes de influência com eles. Deixei de ver redes como a teia, mas os pontos, as pessoas. A forma como elas estão interligadas define a influência que têm umas sobre as outras. Basicamente, são a amizade e a afinidade que definem esse posicionamento. A troca de experiência entre jornalistas Balboas amigos gera trocas na identidade individual.  

87    

agrupamentos (clusters). Elas se desfazem em outras, com membros que aumentam a

influência dos membros da primeira. Assim, aumentam a circulação da informação. A mistura

de redes fracas e fortes aumenta a criatividade pelas novas combinações dos membros. Isso

facilita o intercâmbio entre indivíduos diferentes, o que aumenta a criatividade dentro da rede.

O Programa Balboa é uma rede fraca. Nem por isso, entretanto, é uma rede presencial

pior que outras. Ela reúne jornalistas para um curso de um dia por semana e uma experiência

jornalística no exterior. Contudo, não há oficinas de trabalho, quantificação dos resultados ou

produção coletiva. 86 No lugar disso, há convívio e troca de experiências. De tão débil, a rede

torna-se aberta, facilitando os membros a criarem suas próprias ramificações e objetivos

individuais. A inserirem novos indivíduos na rede e a rejeitarem outros, da formação original.

As redes estadunidenses de jornalismo, por exemplo, podem ser consideradas

estruturas fortes. Nem por isso, entretanto, são redes presenciais melhores. Os fellowship

programs87 comparados neste doutorado às redes latino-americanas têm currículos abertos,

mas sempre dentro de um plano maior da instituição: influenciar o jornalismo do mundo a

partir dos jornalistas aprovados na rede. Nos EUA, as principais redes de jornalismo buscam

resultados da influência dos cursos sobre os jornalistas, através da quantificação e

classificação de suas matérias. Esse método também mostra fraquezas, pois não se conta a

influência dos jornalistas sobre outras pessoas, como nos seus colegas locais. As reportagens

que escrevem são uma maneira de produzirem influência sobre sua sociedade.

3.1 Características de redes presenciais

Para compreensão de redes presenciais, serão apresentadas interpretações

contemporâneas sobre o conceito de distritos industriais (DIs), teoria de Alfred Marshall de

1890. Tanto os DIs quanto as redes estimulam trabalho em conjunto, o contato com o

ambiente externo, transmissão, competição e diálogo com os conhecimentos externalizados:

The ID model may be interpreted as an example of ‘phenomena of unorganized complexity’ (Hayek, 1978), where a wide population of firms, entrepreneurs and skilled workers share competencies, expertise, social experiences, mental models and collective beliefs.” (MARSHALL, 2002: 135).

O interesse em aproximar estes conceitos às análises de redes de jornalismo, tema do

trabalho, deve-se a que ambos os ambientes podem ser considerados tecituras cooperativas

                                                                                                                87 Relatórios no apêndice da tese.

88    

de produção e de conhecimento. Considera-se que os DIs e as redes podem formar uma

grande organização complexa, laboratórios cognitivos88, onde conhecimento e informação são

elaborados de forma coletiva e complexa. Sob a tríade de Marshall (apud BELUSSI e

CALDARI, 2002), as redes presenciais são autênticos ambientes de troca e interação entre

indivíduos e suas habilidades.

Tanto DIs quanto redes presenciais são ambientes de emulação onde se podem traçar

inovações, através do conhecimento gerado pela absorção, assimilação, compartilhamento,

transformação, criação, transferência e difusão do conhecimento (BELUSSI e CALDARI,

2002: 125). Tudo em um local onde agentes locais se reúnem para trocar experiências

regionais, continentais ou globais. Em um mundo globalizado e de descentralização do saber,

é preciso compreender novos processos em que o conhecimento é mais do que dados ou

informação bruta, que não está acumulado na cabeça de alguns ou no sistema fechado de

poucos. Há vários graus de complexidade, acumulação e apropriação de conhecimento,

organizado para compartilhar saberes através de sistemas de diálogo.

Nos DIs e nas redes, o conhecimento é organizado de forma descentralizada, formado

por sistemas estáveis e presenciais. As bases do conhecimento dos DIs são a acumulação local

de conhecimento pela prática, processos de geração de conteúdo próprio, especialização

produtiva entre polos e uma forte divisão de trabalho cognitivo. A acumulação local do saber

provém da base do conhecimento contextual, um estoque de saber coletivo, formado por

elementos codificados, tácitos, práticos e provindos de relações. Isso ocorreria apenas em

territórios delimitados; por essa razão, o conhecimento local é relacionado ao desenvolvido

em estruturas regionais como distritos ou redes presenciais.

O conhecimento das DIs circula através da execução de trabalho. Quanto mais seus

membros aprendem, mais difundem o saber ao relacionar-se com redes externas de produção

de conhecimento. A origem diversa das instituições, o reuso do conhecimento e as sinergias

desses processos aumentam a difusão do conhecimento. No caso dos DIs, algumas

organizações ainda mantêm a concentração do conhecimento, enquanto outras se adaptaram

às concorrentes globais, atraindo-as às suas regiões e mantendo-se competitivas para com elas.

Da mesma forma, algumas redes presenciais tendem a ser mais abertas ou fechadas ao diálogo

externo.

                                                                                                               88“IDs may be interpreted as a cognitive system: a socio-productive system in which knowledge, social experiences, mental models and collective beliefs are accumulated in a specific space through time. The local accumulation of tacit knowledge in firms provides the necessary distinctive element fuelling ID firm competitiveness. The existence of numerous overlapping networks favours knowledge sharing and information flows.” (MARSHALL, apud BELUSSI e CALDARI,2002: 125).  

89    

Um sistema social gera vários signos, textos e regras de organização desse

conhecimento. Cabe aos indivíduos, dotados de sistemas internos e pessoais de organização

simbólica, escolherem se e como vão dialogar com essa estrutura. Tanto os DIs como as redes

presenciais formam um ambiente local compacto (MARSHALL, apud BELUSSI e

CALDARI, 2002: 128), onde regras sociais, informação relevante e práticas coletivas são

permeados por elementos cognitivos dos participantes individuais. A rede é permeada pela

identidade de seus membros. Nas redes presenciais e nos DIs, por exemplo, há conhecimentos

em que são necessários tempo e prática para desenvolvimento. O que os agentes do

conhecimento podem promover pode não ser compreendido na sua completude pelos seus

interlocutores. Por isso, é difícil de dissociar conhecimento de sua fonte e da maneira como a

realiza. Tal conhecimento deve ser dividido em comportamentos (behavior), modelos e

institucionalizações.

Para gerar conhecimento, a expertise endógena e exógena das redes também deve ser

considerada, como nas experiências pessoais de cada membro da rede, sua maneira de

interpretar e compreender os conteúdos compartilhados pelos demais integrantes, fazendo

com que o conhecimento gerado por um indivíduo possa ser diferente de outro, ambos de uma

mesma rede. São textos mentais, únicos, que combinam símbolos, formas de compreensão,

percepções subjetivas e objetivas, tornando especiais cada produção cultural gerada em

ambientes de redes.

A inovação e o desenvolvimento do conhecimento no DI dependem de uma interação

contínua. Para isso, é necessário socializar modelos mentais, além dos signos de comunicação.

Ou seja, deve-se trocar os textos culturais, além dos temas ou fatos de cada regionalidade.

Uma rede presencial, por exemplo, pode estimular o diálogo de identidades por narrativas

individuais, senão não gerará inovação ou desenvolvimento. Os sistemas interpretativos de

cada indivíduo devem ser capazes de se adaptar aos textos externos dos outros membros da

rede, de forma não apenas a entender o outro, mas inovar sua própria narrativa em um

processo de dialogismo textual.

Segundo Belussi e Pilotti (2002), há três tipos de estruturas industriais dos DIs, que

podem ser usados para interpretar os sistemas de redes presenciais.

Os primeiros sistemas são os de fraca aprendizagem, baseados no conhecimento

horizontal, acumulado em locais particulares, embebidos por práticas sociais também locais.

O conhecimento tácito entre agentes do DI prevalece, pois alguns tipos de conhecimento não

seriam divisíveis; dependem da prática para consolidação e compartilhamento. Entende-se

que alguns tipos de conhecimentos práticos, como alguns dos técnicos e tecnológicos, não

90    

podem ser codificados, simplesmente transferidos. Já os científicos, sim, dada a natureza de

sua origem e da sistematização do seu estudo. Nesse contexto, o conhecimento técnico que

ensina pela tentativa e erro não comporta a complexidade de fenômenos abordados, enquanto

o conhecimento científico carece da ação para comprovar as deduções teóricas.89

Já os sistemas de absorção externa são capazes de absorver habilidades fora dos

circuitos internos, gerando inovações. Os agentes internos são capazes de ativar processos de

absorção de conhecimento externo, combinando signos de conhecimento e de trocas sociais

com outras redes, com suas próprias narrativas de conhecimento e com as geradas

internamente, em sua rede. Não copiam sistemas externos, mas se inspiram neles para gerar

novos textos complexos. Dessa forma, o conhecimento do grupo aumenta. Esse modelo de

compreensão parece ser o que melhor explica as redes e sua interação com textos externos,

trazidos pelos seus próprios membros. Como são ambientes de troca e capacitação, as redes

possibilitam a absorção e a compreensão dos signos e textos.90

Os sistemas dinâmicos evolucionais são tipos de DIs ou redes que geram inovação. Na

teoria dos DIs, nem todas as firmas locadas na mesma região têm as mesmas habilidades, por

isso, as inovações partem principalmente das organizações dinâmicas, centros de pesquisa e

fornecedores especializados. Produzem inovação através da combinação de diferentes tipos de

informação. O que caracteriza esse sistema é a ocorrente presença de inovações radicais.91

Apesar de se aproveitarem do conhecimento ao redor, seu conhecimento é muito acessado

pelas redes externas, chegando a atrair organizações de outras regiões. As redes presenciais de

jornalismo mais semelhantes a esse sistema são as que propõem revoluções no sistema de

jornalismo ou de diálogo a partir de si mesmas, como as norte-americanas. Os objetivos e as

                                                                                                               89 O termo conhecimento codificado se refere a um conhecimento objetivo, relacionado a resultados específicos, objetivos ou subjetivos. Ele também pode ser desincorporado (“disembodied”), ou seja, transformado em teoria, mais além da experiência. Nesse momento, aliás, ele se opõe ao conhecimento ainda em forma prática. Já o conhecimento tácito é usado para perceber a realidade, para estruturar comportamento, selecionar e relacionar informações relevantes e para filtrar e recombinar conhecimento. 90 O conhecimento por absorção é diferente do primeiro, pois exige que haja um processo criativo. As oportunidades criativas são influenciadas por modelos mentais dos participantes, seus imaginários, formas de compreender o mundo e pelo seu nível conceitual de conhecimento, para extrair das experiências os conceitos que gerarão criatividade. A absorção envolve aprendizagem por interação. Para isso, as redes territorialmente concentradas e densas são ideais para criar ambientes de interação e de troca do conhecimento tácito entre indivíduos cognitivamente distantes, ou seja, com narrativas culturais diferentes. 91 Deve-se compreender o termo “radical” como quebra do sistema anterior, já que este considera a crise e a recombinação como motores para criatividade e inovação. Na geração de novas habilidades, os indivíduos não devem apenas absorver conhecimento tácito ou codificado, mas também ativar processos generativos de novos conhecimentos. Para isso, as relações produtivas são conduzidas à atividade inovadora, com menos ênfase ao método absorvente e mais à criação de conhecimento. Além disso, promovem mudanças estruturais nas próprias redes em que se desenvolvem, com porções de conhecimento que tomam conta de diversos níveis do sistema produtivo, sedimentando a inovação.

91    

missões estão estabelecidos antes do diálogo entre os participantes. E a influência da rede se

dá de dentro para fora, com agentes externos buscando conhecimento e diálogo com os

membros internos da rede.

Em ambos os sistemas, o conhecimento é fruto de diversos pedaços de saber,

provindos de distintas origens. Para tais elementos se tornarem um conhecimento novo dentro

das redes, os participantes devem estar envolvidos em um processo interativo e dialógico de

aprendizagem e invenção. O fato é que, independente do método que utilizam, são os

indivíduos integrantes de sistemas de aprendizagem os responsáveis por ambientar as ideias

dentro e fora das organizações.

Se a combinação de diferentes ideias produz conhecimento, os agentes dentro dos DIs

e das redes presenciais não podem deter, compreender ou assimilar as mesmas ideias, pois

isso empobreceria a troca dentro das entidades em rede. Por isso, formas descentralizadas de

aquisição e de difusão do conhecimento são necessárias para renovação do sistema.

Para isso, os membros das redes ou dos DIs devem estar alertas para utilizar

diferentes mecanismos de aprendizagem, como comparações, inferências, conexões, ações

deliberadas ou de iniciativa pessoal.92

3.2 CIESPAL, a primeira rede presencial de jornalistas da América Latina

O Centro Internacional de Estudios Superiores de Periodismo para América Latina

(CIESPAL) foi fundado em 9 de outubro de 1959, em Quito. Após reunião da UNESCO com

a OEA, decidiu-se por criar uma entidade que capacitasse jornalistas às indústrias culturais da

América Latina.

Nos seus primeiros 15 anos, o CIESPAL ministrou oficinas como o Curso

Internacional de Ciencias de La Información Colectiva, com mais de 1000 jornalistas

participantes. Em 1969, o CIESPAL lançou a revista Chasqui, primeiro periódico latino-

americano sobre comunicação. Em 1973, o Seminário da Costa Rica consolidou o

pensamento autônomo e autóctone às políticas de comunicação da América Latina. Tanto nas

oficinas quanto nas publicações, o número de estrangeiros foi diminuindo, comprovando a

autonomia intelectual do CIESPAL. Nas décadas de 80, 90 e anos 2000, o CIESPAL

profissionalizou sua produção editorial, lançando a coleção Inityan.

                                                                                                               92 “Tacit and codified forms of knowledge are blended by recourse to experience, rules of thumb or intuition, face-to-face meetings, apprenticeships, and through recourse to specialized sources (databanks, files, experts, training and exhibitions).” (BELUSSI e PILOTTI, 2002: 133).

92    

O CIESPAL estimulou a produção científico-acadêmica para o jornalismo latino-

americano, desvinculado aos modelos de pensamento e desenvolvimento dos EUA e Europa.

Assim, o CIESPAL colaborou com a identidade latino-americana, através de pesquisas

inseridas no contexto continente, e métodos interdisciplinares para compreensão da região.

O CIESPAL teve influências do então recém-criado CEPAL (Comissão Econômica

para a América Latina). O jornalismo latino-americano seria ferramenta de desenvolvimento

econômico e social, de um pensamento acadêmico independente do hemisfério norte e de

políticas públicas para a própria comunicação.

A fase atual do CIESPAL estimula a articulação de redes associativas com visão

democrática e econômico-política crítica, para oferecer propostas de desenvolvimento ao

continente.

Objetivos como os retirados da Carta de São Paulo (1990) ilustram a forma de o

CIESPAL avaliar o cenário cultural da América Latina: comunicação e cultura a serviço do

desenvolvimento; defesa a diversidade cultural; percepção de Estados com fronteiras

culturais móveis; diversidade da cultura popular e da mestiçagem no continente; necessidade

de participação das comunidades locais.

Desde o fim dos anos 50, o CIESPAL preocupou-se em gerar uma ideologia

profissionalizante na América Latina, aperfeiçoando a formação dos jornalistas. A entidade

promoveu cursos formação que equilibrassem conhecimento de comunicação, de ciências

sociais e de produção de ciência local e autônoma no continente.

Profissionalização e capacitação foram os temas principais do CIESPAL na década de

60. Na década de 70 e início dos 1980, a liberdade de expressão e o acesso à informação

foram os principais temas, já que as ditaduras militares cerceavam as sociedades e o

jornalismo nos países da América Latina. Entretanto, quando um jornalista conseguia

emprego, arrefecia sua função social e sua luta por profissionalização.

Desde os anos 60, o CIESPAL detectava na América Latina a falta de professores

especializados como principal problema para o jornalismo. No Brasil, a falta de investimento

na universidade pública fez do ensino privado válvula de escape. O mercado se saturou de

profissionais.

Segundo Medina (1982:89), a América Latina tinha a influência de duas correntes

preponderantes de jornalismo: a estadunidense, com fórmulas práticas de trabalho e tendência

funcionalista; e a europeia, com visão mais orgânica da comunicação, pós-cultura de massas e

sociedades pós-industriais. O CIESPAL pregava um voo autônomo para o jornalismo latino-

americano, livre da dependência econômica e cultural dos modelos do hemisfério norte.

93    

A América Latina carecia de um modelo autônomo de jornalismo, mas aqui as

mudanças sempre foram mais naturais e mais lentas. Enquanto havia poucas soluções

criativas dos jornalistas para sair das fórmulas estratificadas, a maioria ficava presa nas tarefas

do cotidiano da profissão, tornando-se burocratas.

Os estudantes de jornalismo, interessados em ingressar no mercado de trabalho, eram

mais engajados na corrente crítica latino-americana. Por isso, a universidade era vista pelo

CIESPAL e por Medina (1982: 91) como reduto das repercussões críticas do jornalismo.

Pesquisas universitárias podiam criar um jornalista profundo conhecedor da realidade. Do

contrário, faculdades de jornalismo, quando despreparadas, lançariam ao mercado jornalistas

sem reflexão de seu papel social, pressionados a se moldarem pela tecnologia de informação e

pelo mercado.

Cremilda Medina (op. cit.) via na comunicação de massas lugar para expandir o

jornalismo em diálogo: “o mal não é a tecnologia [...] mas o direito que todos devem ter ao

participar desse bem de consumo e desse meio de interação social” (1982: 137). Para ela, a

junção equilibrada entre jornalismo social e comunicação pessoal gerava como produto

cultural a arte. Arte é produto cultural único, com marcas de autoria, autenticidade e

originalidade. O contrário do produto de massas ruim, homogeneizado, criado através de

fórmulas engessadas, visando apenas o consumo de informação. Por isso, um produto cultural

de massas podia ser bom.

De fato, a comunicação de massas utiliza características da cultura perene e

arquetípica, como a fusão da realidade com o sonho, o abandono do pensamento linear, a

interação social e a identificação com a massa pelo diálogo com os sentidos do indivíduo.

Medina (1982: 103) chamava os jornalistas de “engenheiros de emoções”, sintetizadores

culturais do confronto de diferentes sociedades e diferentes raízes históricas.

Infelizmente, o jornalismo latino-americano dos anos 60 a 80 estava impregnado de

fórmulas ruins de jornalismo de massas: empresas de comunicação aplicavam modelos de

produção visando o consumo. Em segundo lugar, a imprensa da época tinha defasagem

técnica e tecnológica. Quando tinham equipamentos de comunicação, não tinham jornalistas

treinados para utilizá-la bem. Quando os jornalistas cumpriam seu papel social, não sabiam

usar as ferramentas tecnológicas para o benefício da notícia e da divulgação.

As redações tinham mais problemas nos seus modelos de produção. As pautas locais

repetiam temas ou se baseavam em agências de notícias, desconectados da regionalidade dos

fatos. Quase não havia correspondentes na América Latina, e quando havia, produziam

94    

notícias com enfoque parecido ao das matérias compradas do exterior. A angulação dos

correspondentes era pré-pautadas pelos estereótipos das redações internacionais.

Os treinamentos para jornalistas que surgiam de fora da América Latina estimulavam

um jornalista especializado em temas e não em jornalismo. Isso gerava repórteres que

queriam discutir mais com a fonte do que entrevistá-la. Um monólogo de dois, segundo

Cremilda Medina (1982). Maior domínio da técnica jornalística significa aumentar a

interação entre sociedade e noticia. É um dizer das fontes especializadas e um ouvir dizer da

população.

Nos anos 2010, o cenário de atuação do CIESPAL se assemelha ao mercado

jornalístico de antigamente. Hoje, os jornalistas entrevistados para esta pesquisa buscam redes

de capacitação para se preparar as demandas globalizadas do século XXI. Apesar de o

mercado de jornalismo estar saturado, capacitações com olhares internacionais atendem a

demanda do interesse coletivo em saber mais sobre o mundo e explicar a localidade através da

globalidade.

Os jornalistas de 2010 tampouco encontram grande oferta de emprego como antes,

agora por causa da liberalização da economia e a fragilidade dos direitos trabalhistas na

América Latina, criando um grande mercado freelancer no jornalismo. Mas as maiores

redações da América Latina ainda se mantêm como grandes pontos de influência e de

construção e diálogo de opinião pública. Nesse mercado ambíguo do jornalismo, Balboas e

outros jornalistas do continente se mantêm produzindo informação para entender e mediar os

temas da América Latina.

Medina (op.cit.), em sua interpretação sobre comunicação anônima de Jean Lohisse e

sua experiência da CIESPAL, mostra como a criação de redes para jornalistas estimula o

diálogo entre pessoas, regionalidades e subjetividades. O estímulo dos pioneiros Ciespalinos e

o dos jornalistas de rede de hoje parece semelhante: entender a si mesmos e suas sociedades

através do diálogo com o Outro e com as regionalidades da América Latina.

3.3 Redes de jornalismo presencial na América Latina

O objetivo desta seção da tese é entender como redes sociais de jornalismo latino-

americano promovem processos de diálogo e de troca simbólica para os jornalistas inseridos

nelas. As redes analisadas foram escolhidas pela sua importância no cenário jornalístico do

continente e pela participação do pesquisador em todas elas.

95    

Serão apresentadas como estudos de caso as seguintes redes de jornalismo latino-

americanas: AVINA para o jornalismo sustentável, Fundación Nuevo Periodismo

Latinoamericano (FNPI), Televisión América Latina (TAL) e Programa Balboa para Jovens

Jornalistas Ibero-americanos, principal estudo de caso desta tese. Essas organizações foram

escolhidas porque reúnem jornalistas em redes de comunicação, gerando métodos de diálogo

pertinentes e permanentes para o encontro e a troca de suas visões de mundo. Além disso, o

autor desta tese é participante das redes e realizou trabalhos ou participou de atividades de

todas elas, podendo assim compreender melhor seu funcionamento, além de ter consultado

diretores e membros de todas elas antes da produção desta seção. Parte-se da hipótese de que

os indivíduos em redes sociais realimentam os signos de localidade simbólica com signos

continentais e globais.

O Programa Balboa para Jóvenes Periodistas Iberoamericanos é uma organização

que reúne jornalistas na Espanha e mantém uma rede de mais de 260 profissionais; a ONG

AVINA de Desenvolvimento Sustentável da América Latina, que organiza uma rede de mais

de 1000 líderes sociais, com projetos em comunicação e desenvolvimento sustentável às suas

regiões; e as ONGs de jornalismo FNPI e TAL, usinas de pesquisas, análises e ideias,

organizadas por grupos de interesse, que geram conteúdos para formadores de opinião e para

a sociedade em geral, semelhantes ao funcionamento de think tanks.93 Escolheu-se para

análise comparativa o ano de 2008, período em que todas as ONGs promoveram atividades

em rede e o autor desta tese participou e obteve informações sobre seus processos produtivos.

Inicialmente, as organizações em rede parecem transitar entre os formatos

verticalizados de empresas tradicionais de comunicação e novos modelos horizontais de

entidades geralmente sediadas na internet, sendo assim mais fluidas desde a sua concepção.

Porém, notam-se hibridizações de seus sistemas de interação e diálogo.

3.3.1 Fundação AVINA para o desenvolvimento sustentável

A ONG AVINA para o desenvolvimento sustentável da América Latina tem produção

e análise focada na troca simbólica cultural entre jornalistas. Percebe-se que a entidade                                                                                                                93 “Think Tanks podem ter ou não fins lucrativos, ser apoiados pelo governo, ser parte dele, ou completamente independentes da burocracia; ou ainda, ser independentes ou ligados a uma grande empresa ou universidade. Devem, porém, ser uma entidade permanente não criada para um propósito temporário, com ênfase em soluções criativas. São hoje os TT atores da Sociedade Civil organizada, juntamente com as ONGs, as organizações de massa, as comerciais, as religiosas e os movimentos sociais; constituem, na verdade, pontes entre o conhecimento e o poder nas sociedades democráticas modernas. Há hoje perto de 3.500 instituições no mundo, sendo 1.500 só nos Estados Unidos.” (CINTRA, 2010: 4. Artigo eletrônico disponível em http://www.jornaldaqui.com.br/materia_impressao.php?id_artigo=2577).  

96    

estimula linha editorial e estilos de texto claros e bem definidos. Com isso, proporciona

menor liberdade, em prol de objetivos e direção mais claros e comuns aos membros.

Desde 1994, a AVINA desenvolve modelos sustentáveis de desenvolvimento humano

na América Latina e visa estimular a construção de vínculos e alianças proveitosas entre

líderes sociais e empresariais. A fundação conta com vinte e quatro filiais no continente em

oito países (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Peru) e está

associada a mais de 1000 líderes sociais comprometidos com o desenvolvimento sustentável

da região. A ONG almeja “uma América Latina próspera, integrada, solidária e democrática,

inspirada em sua diversidade e constituída por uma cidadania que a posiciona globalmente a

partir de seu próprio modelo de desenvolvimento inclusivo e sustentável”.94 A AVINA define

"desenvolvimento sustentável" como aquele que satisfaz as necessidades do presente sem

prejudicar as necessidades de gerações futuras, acreditando que a sociedade latino-americana

possui recursos e potencial suficientes para criar soluções para os desafios que enfrenta. Aos

associados, a ONG promove laços de confiança, compartilhando valores e agendas comuns

entre a sociedade civil e o setor empresarial. Além de apoio financeiro, a fundação fortalece

as redes – bem como sua organização – e cria espaços de reflexão e vinculação.

3.3.1.1 Bolsas AVINA de jornalismo

Com cunho profissional e jornalístico, as Bolsas AVINA consistem em um incentivo

que busca premiar, por meio de apoio financeiro e técnico, propostas inovadoras de

investigação jornalística para uma cobertura de excelência sobre iniciativas relevantes ao

desenvolvimento sustentável nos países da região. Organizado em produção coletiva, o

programa constrói nova cultura através de diferentes mídias. As bolsas AVINA têm como

prioridade sair da agenda jornalística e abordar temas marginais às mídias oficiais, mas

imprescindíveis ao continente. Os jornalistas interessados em participar sugerem temas e

investigações – relevantes para o desenvolvimento sustentável latino – dentro de áreas                                                                                                                94 http:// www.avina.net

97    

temáticas estipuladas que, se selecionadas, gerarão uma grande reportagem cujo objetivo é

compor retratos da América Latina.

A segunda edição (2008/2009) das Bolsas teve uma participação de 510 propostas

apresentadas por 770 jornalistas. As inscrições para a bolsa foram compostas por jornalistas

de diferentes países, como mostra a tabela abaixo, retirada do site da fundação:95

Fonte: AVINA

Em termos financeiros, a bolsa oferece um incentivo de até cinco mil dólares para

cada trabalho vencedor nas categorias de rádio, internet, jornais e revistas, e de até sete mil

dólares para os trabalhos de televisão. Um júri composto por 12 jornalistas e especialistas

selecionaram 61 propostas de 20 países em seis categorias diferentes: Integração da América

                                                                                                               95 http:// www.avina.net

98    

Latina, Transparência, Negócios Inclusivos, Arte e Educação, Mudança Climática e Inclusão

Social.

Fonte: AVINA

As reportagens feitas foram publicadas em diferentes meios, além da veiculação da

própria Fundação AVINA, por meio de uma revista anual que disponibiliza a íntegra das

reportagens. Como parte do prêmio, os vencedores ainda participam de encontro de Bolsas

AVINA, que lhes permite conhecer outros participantes, dando a oportunidade de desenvolver

novos trabalhos e produções.

A AVINA parece saber delegar funções à rede que compõe, organizando os

indivíduos espalhados pelas editorias jornalísticas do continente. Com isso, cobra qualidade

de todas as etapas e membros da equipe formada pela rede, como claridade na pauta,

esclarecimento das etapas de produção e datas para entrega dos trabalhos jornalísticos, bem

como confirmação de que serão publicados nas mídias dos jornalistas convidados à rede ou

outros veículos de comunicação. Desse modo, estimula aos membros da rede social a produzir

por métodos diversos (trabalho de campo, pesquisa bibliográfica, entrevista telefônica e

interação via internet) e por diferentes suportes de informação (impresso, audiovisual,

radiofônico e internet), mas sempre em prol de um jornalismo coerente com a proposta da

ONG, a sustentabilidade e o desenvolvimento do continente, das redes que fazem parte de

AVINA e os receptores das matérias jornalísticas.

99    

3.3.2 TAL – Televisión América Latina

Televisión América Latina (TAL) é uma instituição sem fins lucrativos que funciona

como uma rede de intercâmbio e divulgação da produção audiovisual dos vinte países da

América Latina por meio de canais públicos de TV, instituições culturais e educativas e

produtores independentes, que compartilham seus programas – documentários, séries e curta

metragens. Em 2003, a TAL foi qualificada como OSCIP (Organização da Sociedade Civil de

Interesse Público) e em 2005 teve a contribuição do Ministério da Cultura, que apoiou o

‘Banco de Documentários da América Latina’, viabilizando constitucionalmente grande parte

do acervo atual da televisão. A TAL é também uma web TV 96, exercendo a função de banco

de conteúdo audiovisual e produtora de vídeo. Seu objetivo é servir de suporte para o trabalho

de aproximação entre os povos latino-americanos.

A ideia é fazer com que, por meio da produção audiovisual local, os latinos conheçam

um pouco mais e se reconheçam na cultura de um povo vizinho. Em 2008, a TAL possuía um

acervo de mais de sete mil programas que contribuíam para a integração latino-americana.

Após a ONG selecionar programas latinos de seus colaboradores que possibilitam

entendimento sobre toda a comunidade latino-americana, o material recebe pós-edição, como

legendas em português ou em espanhol. A distribuição das produções selecionadas acontece

pelos canais parceiros (a TAL envia periodicamente pacotes de programas para seus

associados que possuem sinal de TV e conta com 25 canais associados. Hoje, 15 países

diferentes exibem os vídeos distribuídos) e pela web TV (a programação disponibilizada pelo

site tem acesso livre a gratuito e sua programação é renovada mensalmente).

A TAL elabora e executa projetos de produção, oferecendo financiamento a diretores

e produtores independentes. Em 2008, a televisão tinha mais de 190 associados em toda a

América Latina. Essa associação é feita através de acordos de cooperação com parceiros

(canais de televisão, instituições governamentais, culturais e educacionais e ainda produtores

independentes) de países como Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba,

                                                                                                               96 http://www.tal.tv/pt/webtv/

100    

El Salvador, Equador, Espanha, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai,

Peru, Porto Rico, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. A participação do associado

não envolve custo ou responsabilidade administrativa.

A entidade conta também com um centro de formação de profissionais ligados à

produção audiovisual, o ILLA (Instituto Latino de Linguagens Audiovisuais). O instituto

seleciona projetos por meio de editais e os coloca em prática ao longo de um processo de

supervisão e formação de profissionais e autores, capacitando etapas de produção e as opções

de linguagem, narrativa e formato.

A TAL parece ter caráter de distribuição de conteúdo jornalístico mais massivo, de

forma que combina o broadcaster tradicional da mídia televisiva com as novas tecnologias de

comunicação e informação, como a web TV. Com isso, busca popularizar os conteúdos dos

indivíduos que lhe compõem a rede, fazendo com que seus produtos alcancem outras praças

jornalísticas. O diferencial da TAL talvez resida na expertise em saber organizar e distribuir o

que produz e o que recebe da rede social jornalística em diferentes veículos, revistas, jornais,

TVs e rádios, pensando no formato vertical fordista de produção jornalística, em também

oferecer aos membros da rede que encontrem conteúdos jornalísticos sobre América Latina

para seus diferentes canais, seções, suplementos e cadernos jornalísticos, fazendo assim uma

organização de produtos culturais a nichos específicos e empresas com objetivos claros de

composição de grade ou de editoria. Outro diferencial da TAL é ser mais versátil que os

veículos tradicionais para receber, organizar, disponibilizar e distribuir produtos de jornalismo,

já que fora idealizada para funcionar nas novas tecnologias de comunicação e informação.

Dessa forma, digitaliza seu conteúdo, apresenta-o na web e o distribui globalmente sem

grandes problemas.

Suas limitações parecem residir no fato de que a TAL não estimula tanto o diálogo ou

capacitação dos produtores jornalísticos com as outras redes sociais de jornalismo, já que o

trânsito dos produtos culturais pode ser feito todo virtualmente. Dessa forma, ambiguamente,

– e esse parece ser o modelo das estruturas produtivas de cultura nas redes sociais digitais –, a

TAL volta a se assemelhar às tradicionais empresas de jornalismo, verticalizadas, com mais

atenção ao jornalismo como um produto, como uma fábrica e distribuidora de notícias, com

quantidade, variedade e agilidade inegáveis.

101    

3.3.3 FNPI – Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano

A Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI) foi criada na Colômbia, em

1994, pelo escritor e jornalista Gabriel García Márquez, com a intenção de estimular ética e a

boa narração jornalística. Até 2008, mais de 5.000 pessoas participaram das 250 atividades,

como oficinas e seminários de jornalismo em países como Peru, Equador, Bolívia, Venezuela,

Argentina, México, Espanha, Nicarágua e Colômbia, tanto presencialmente, na sede em

Cartagena das Índias, Colômbia, ou virtualmente, por cursos online.

A Fundação tem como objetivo promover um jornalismo de excelência, que contribua

com o processo de democracia e desenvolvimento dos países latino-americanos e do Caribe,

através do intercâmbio entre jornalistas, além de criar redes de comunicação e comunidades

de prática para apoiar o trabalho de jornalistas com interesses e necessidades comuns.

Os professores das oficinas são jornalistas especialistas com reconhecida trajetória

internacional. Na FNPI, esses profissionais lideram grupos de reflexão, exercício e análises

que produzem conteúdo com o que foi aprendido. Em 2008, foram realizadas onze atividades

relacionadas a jornalismo e América Latina, com um total de 223 participantes de 23 países,

conforme gráfico abaixo:97

                                                                                                               97 http://www.fnpi.org

102    

Fonte: FNPI (www.fnpi.org)

A Fundação também oferece iniciativas como o Prêmio Nuevo Periodismo CEMEX +

FNPI – criado em 2001 pela FNPI e pela multinacional CEMEX – que reconhece a qualidade

do trabalho de jornalistas nas áreas de fotografia, internet, rádio, televisão e texto.

Durante nove anos, já participaram mais de 7000 jornalistas da América Latina,

Estados Unidos, Canadá, Espanha e Portugal. Entre eles, 19 ganhadores e 68 nomeados como

melhores trabalhos. Os contemplados recebem 25.000 dólares e os homenageados, 30.000

dólares.

Além de incentivos e oficinas, a fundação disponibiliza – com o apoio da Agência

Española de Cooperación Internacional – a rede Nodo Digital, um ponto de encontro virtual

para aprender, compartilhar, debater e experimentar novas formas de fazer jornalismo na

internet. Nodo Digital é uma rede aberta a editores, jornalistas, estudantes, professores,

organizações civis e internautas que tenham interesse em tirar proveito das possibilidades

oferecidas pelos meios interativos. O objetivo da rede é produzir conteúdos para a sociedade

latina, construindo um centro de conhecimento a fim de melhorar a prática do jornalismo

online.

FNPI é mais formativa que informativa. Oferece cursos e capacitação, buscando

entender os contextos os quais discute com os membros das redes que, quando retornam aos

seus veículos de comunicação, podem mediar mais claramente tais questões ao seu público. A

103    

fundação parece estimular mais a interpretação jornalística que a descrição dos fatos, como o

gênero noticioso pede nas redações. Enfim, é uma rede de capacitação para produção, que

influencia o jornalista através do diálogo em rede que lhe oferece, mas nem sempre nos

produtos jornalísticos que seus membros irão produzir.

As redes profissionais atraem jornalistas com habilidades diversas, em busca de

experiência, capacitação e atualização. Como são atraídos por bolsas, patrocínios ou

divulgação de seus trabalhos, têm de necessariamente mostrar suas habilidades para ingressar

nos projetos das ONGs como as de jornalismo, anteriormente citadas. A diversidade dos

membros e a mudança constante de participantes (definidos por turmas, anos ou fellows)

caracteriza a atualização da expertise intercambiada. As redes, como sistemas organizados,

buscam registrar as experiências geradas através de publicações de livros, vídeos, redação de

documentos coletivos e a consolidação de cursos. AVINA e FNPI são as melhores redes

jornalísticas na geração de conteúdos e no registro destes para a atração de novos membros,

jornalistas latinos. A TAL produz relativamente pouco coletivamente, dedicando-se mais à

distribuição de conteúdos de seus membros. Já o Programa Balboa gera trocas de experiências

entre seus membros, pois cria ambientes de convívio e interação entre seus membros durante

seis meses, nas redações de Madri, nas aulas semanais que oferece e no estímulo ao

estreitamento relacional entre seus membros após a experiência no exterior.

Para as redes de jornalismo, a geração de estruturas de comunicação com ambientes

externos é essencial para sua manutenção e sucesso em seus objetivos. Das quatro ONGs

analisadas, a TAL é a que melhor cria conexões com o mercado, com as empresas

patrocinadoras e com os canais de distribuição de seus produtos, no caso, vídeos sobre a

América Latina. AVINA e FNPI geram relatórios sobre seus trabalhos e buscam que os

membros da rede gerem visibilidade em suas atividades. Já o Programa Balboa depende

apenas de seus membros, voluntários, para gerar conexão com o ambiente externo, sejam

financiadores ou veículos de comunicação.

Já o ambiente de conhecimento e interação, que deixaria “no ar” os segredos das

firmas, proporciona novas formas de inteligência, desenvolvedores de conteúdo, de mercado e

de tecnologias. Seriam formados clusters98, estações de memória de conhecimento.

O último tópico da tríade de Marshall (2002), os sistemas dinâmicos evolucionais, é o

que parece explicar melhor o conceito de redes de jornalismo que estimulam a aprendizagem.

As organizações, assim como os casos apresentados anteriormente, produzem alianças que

                                                                                                               98 Cluster: Número de terminais, estações, dispositivos ou posições de memória agrupadas em um local; grupo. (AULETE, IDicionário. http://aulete.uol.com.br).

104    

representam estações de geração e compartilhamento de conhecimento, não só profissional,

mas cultural, pois as trocas entre os “trabalhadores” das redes podem ser técnicas e

jornalísticas, como na FNPI e na AVINA, ou pessoais, como as visões de mundo dos vídeos

distribuídos pela TAL e pelas relações de confiança que desenvolve o Programa Balboa.

Cabe às redes de jornalismo prover às próximas gerações o conhecimento gerado nos

encontros entre membros e no desenvolvimento de suas atividades coletivas. O conhecimento

gerado nas redes presenciais é mantido por encontros presenciais, que permitem interação

com outras pessoas. As redes são capazes de organizar novos espaços, restritos não pelas

limitações espaciais, mas pelos interesses dos membros e das redes, configurando novas

formas de sociabilidade e de produção coletivas. As alianças, consórcios e geração de

estrutura para comunicação com organizações externas, são definidas também pela

competitividade e especialidade das redes. Ao menos em suas missões e objetivos anunciados,

buscam oferecer ao mercado jornalístico capacitação, ambientes de aprendizagem e oficinas

de produção em que reportagens especiais e mais aprofundadas podem ser geradas, bem como

a consolidação de canais de diálogo entre indivíduos, profissionais, outras redes e setores

distintos da sociedade. A competitividade se dá em outros planos, como nos processos

seletivos dessas redes e, posteriormente, quando conteúdos culturais e jornalísticos

produzidos nas redes são oferecidos no mercado de comunicação de massa, como jornais,

TVs, sites e rádio. Dessa forma, confrontam a lógica do mercado jornalístico, a da melhor

matéria, a da disputa espaço nas grades de programação e nas páginas de jornal, a que atrai

mais leitores e melhores anúncios.

3.3.4 Estudo de caso: Programa Balboa para Jovens Jornalistas Ibero-Americanos

As definições anteriores sobre redes buscam auxiliar a análise sobre o Programa

Balboa. Experiências novas aos jornalistas membros, graças ao ineditismo dos encontros

internacionais e os altos níveis de jornalismo que propõem, destacam iniciativas inovadoras

no jornalismo como modelos a serem compreendidos – não reproduzidos – e adaptados às

realidades locais dos jornalistas.

As redes presenciais estimulam papéis interativos e dinâmicos entre os membros, para

que possam se ajudar com fontes e dados quando voltarem aos seus países. As redes de

105    

jornalismo na América Latina são pequenas iniciativas de vanguarda, mas são centros de

capacitação e consolidação do papel de jornalista.99

Apesar de o programa Balboa ser um curso que se desenvolve na Espanha, ele é

composto por jornalistas latino-americanos, com o intuito de promover o conhecimento

mútuo entre os países do continente. Desde 2002, já são 260 jornalistas, 20 por ano, que

passam um semestre na Espanha, trabalhando em meios de comunicação locais, junto a

profissionais espanhóis, a fim de terem experiência de imersão total na cultura local e ao

mesmo tempo de troca com seus colegas latinos, com os quais convivem e vivem juntos. É

oferecido também um programa de capacitação, com professores e especialistas de diferentes

universidades e instituições, que ministram sessões para aproximar os participantes à

realidade histórica, social, política, econômica, cultural e midiática da Ibero-América.

Organizações como o Programa Balboa se assemelham mais a redes de confiança, na

quais nos indivíduos têm mais peso que a superestrutura que os reúne. Há marcas de uma

organização que permite mais a confiança nos colegas, profissional e pessoalmente. Há o

estímulo da troca de dados, fontes e produtos culturais como textos, sem a precondição da

cobrança ou concorrência intrapessoal, comum nas empresas tradicionais ou nas redes

fechadas. Com essa liberdade dos indivíduos, é uma rede descentralizada, já que os membros

usam o Programa Balboa como início de suas práticas em rede, mas não dependem mais da

organização quando já se estão autogerindo. De qualquer maneira, a rede pela confiança

mantém o diálogo cultural e o fluxo de trabalho da rede para além da experiência presencial,

que culmina no crescimento da influência da rede, mantendo-se o diálogo cultural.

No programa Balboa, especificamente, percebem-se mais chances de trocas culturais

e de diálogos entre identidades que nas demais redes de jornalismo latino-americanas.100

Essas demais organizações não mantêm seus membros juntos, presencialmente, por muito

tempo. Isso interfere na construção de laços afetivos e de confiança, que facilitam as trocas

simbólicas. Além disso, essas redes são mais funcionalizadas que o Programa Balboa,

oferecendo menos tempo e espaço para trocas culturais, graças à sua organização com aulas,

palestras, oficinas e trabalho conjunto.

Isso pode se comprovar até mesmo dentro da própria rede do Programa Balboa. Há

mais chances de criar laços entre dois a três Balboas do que entre os 20 integrantes de toda a                                                                                                                99 Assim como pedia Medina no fim de seu livro Profissão Jornalista: “Seria o caso de acrescentar depoimentos vivos, quando não são possíveis registros por escrito, de experiências marginais. Ao tomar conhecimento de que em tal lugar se faz tal coisa, seria o caso de gravar com o grupo de trabalho um relato da iniciativa.” (MEDINA, 1982: 292).  100 Relatórios disponíveis no apêndice deste doutorado.

106    

edição anual. Ou dos mais de 260 integrantes da rede até 2013 e crescendo a cada ano.

Entende-se, portanto, que os laços de confiança e de cumplicidade são mais pertinentes do

que as conexões tecnológicas entre membros.

Pode-se concluir então que o programa Balboa permite mais chance de gerar uma rede

entre jornalistas vinculados pela confiança. Há mais chance de seguir adiante com laços de

confiança do que uma rede profissional sem laços pessoais.

Inicialmente, isso pode parecer um problema, já que não é objetivo de nenhuma rede

profissional gerar vínculos. Entretanto, o fato é que quanto mais frágil e a burocratização da

rede social, maior e o espaço para o diálogo e para as aproximações pessoais. A

desestruturação burocrática da rede de jornalistas ressalta os laços de confiança entre os

membros, gerando uma rede de pessoas e uma identidade no trabalho em comum.

O Programa Balboa segue em 2013, ano do término desta pesquisa de doutorado. Já

não se chama mais Balboa, mas Iberis, devido aos entraves jurídicos entre a antiga

mantenedora, a Fundação Diálogos, e a Fundação Telefónica, atual responsável pelo curso.

A crise que quase dissolveu o modelo institucional anterior do Programa teve outros

efeitos colaterais: aproximou um grupo de jornalistas representantes da rede na América

Latina para manutenção da rede, homologando o diretor Aires Vaz101 como centro da rede.

Ou seja, reiterou-se quem faz parte dos laços de troca e atuação e quem apenas figura na rede

como contato potencial. Os membros atuantes tomaram como seus os problemas

administrativos do Programa, dividindo não só o mel da experiência na Espanha, mas o fel de

manter uma rede de confiança ainda que à distância.

Além disso, ficou claro que a centralização em Aires Vaz ou na Fundação Telefônica

garante a manutenção financeira e institucional do programa, mas não assegura os laços de

confiança e de trabalho conjunto entre os membros da rede. É preciso que os indivíduos que

compõem a rede assumam participação nos diálogos para a melhora do agora Programa Iberis.

Caso contrário, uma rede de confiança de 260 jornalistas se tornará apenas um curso de

intercâmbio com centenas de ex-integrantes, sem diálogo entre localidades, sem influência na

produção jornalística uns dos outros, sem constituição de rede alguma.

                                                                                                               101 Entrevista com o diretor Aires Vaz será apresentada no próximo capítulo.

107    

4. RELATO DE EXPERIÊNCIAS E ENTREVISTAS

A identidade deste latino-americano e desta pesquisa foi se forjando em movimento e

em diálogo dinâmico com jornalistas do Programa Balboa, desde 2007, até hoje.

Ocultar esses passos seria prejudicial à compreensão dos resultados da pesquisa, negar

a identidade do trabalho e ocultar o funcionamento das redes em que ele foi concebido.

Relatos de experiência e impressões de trabalho de campo atualizaram minha própria

identidade como latino-americano pela interação, vínculo, diálogo, reflexões e vivências com

outros jornalistas, hoje amigos.

Em 2010, o doutorado com a Profa. Dra. Cremilda Medina no Prolam-USP possibilita

a organização das ideias em busca de identidades dentro das redes de jornalismo. Além de

experiências no Brasil, a pesquisa parte para o trabalho de campo no Peru, no México e na

Guatemala – países cuja cultura pré-ibérica estava estabelecida nas sociedades Inca, Asteca e

Maia – para entender contextos da América Latina e se houve mudança da identidade dos

jornalistas após o Programa Balboa.102

Neste sentido, as entrevistas apresentadas a seguir foram chave para a compreensão

das identidades dos membros do Programa Balboa e para a exaltação do mais pertinente em

cada uma delas. Graças às conversas nas casas em que vivem os Balboas, in loco,

aprofundaram-se diálogos de afeitos à troca cultural e à compreensão do Outro como a si

mesmo. Através dessas impressões da América Latina vista de perto, espera-se contribuir com

a reflexão teórica dos capítulos anteriores.

Em seguida, o trabalho ruma novamente até a Espanha, onde o diretor do Programa

Balboa relata crises e expectativas da rede e termina nos EUA, sentindo de fora o que é ser

latino-americano, comparando os consolidados fellowship programs estadunidenses com as

redes de jornalistas latinos.103

Já no Brasil, faz-se a conclusão da jornada, relacionando os relatos de experiência, os

diálogos com os jornalistas Balboas e com os conceitos teóricos estudados. Com um espírito

de conhecimento em rede, lugares de troca de cultura por conta dos diálogos de confiança, de

influência e de vínculo. Assim, de algum modo, tudo o que se viu e todos com quem se

conviveu estão interligados, renovando as identidades que cada um decide portar, à sua

maneira.                                                                                                                102 Produção jornalística realizada pelos entrevistados e material de apoio estão nos anexos da tese. Entrevistas com Balboas na íntegra idem. 103 Entrevistas nos EUA e Relatos nos apêndices da tese.

108    

Não se pretende, entretanto, realizar uma narrativa de viagem, mas ressaltar a

interlocução in loco de jornalistas no Peru, México, Guatemala e Brasil, como essencial para

responder às perguntas do doutorado. Foram experiências conjuntas e sensações individuais,

que revelaram a importância de fatos objetivos e signos subjetivos para a constituição das

identidades dos jornalistas Balboas, em trânsito cultural pelo século XXI. Espera-se que os

relatos e diálogos a seguir contribuam para a pesquisa teórica, bem como para todos os

estudos sobre identidade, redes e jornalismo.

4.1 Relato de Madri, Espanha, fevereiro a julho de 2007104

A Espanha aparece nas minhas experiências como ciclos. Em 2005, fui para desbravá-

la; em 2007, para viver por seis meses. Depois voltei em 2009, 2010 e 2012, em experiências

em que já não sei o começo, o meio ou o fim.

O primeiro contato com Madri, em 2 de fevereiro de 2007105, foi estranho. Junto a

Erica Montenegro, então jornalista do Correio Braziliense, cruzamos a porta do aeroporto de

Barajas e, além do frio esperado, vimos uma grande construção em ruínas. Achamos estranho,

mas seguimos adiante.

Erica é filha de nordestinos com nortistas do Brasil. Tem a pele clara, cabelos

castanhos e um formato de rosto belo, mas indefinível para alguma raça ou etnia. Fala com o

sotaque de Brasília, local perfeito para indefinir qualquer barreira identitária regional. Doce,

trabalhadora e determinada, conseguira a vaga do Programa Balboa para Jovens Jornalistas

Ibero-Americanos sem falar muito bem espanhol, um dos requisitos da bolsa. Mas se

superava pelo senso de jornalista em encontrar boas histórias e por saber oferecer temas pelos

quais os editores da revista em que trabalhou, El Tiempo, interessavam-se. Seu colega

guatemalteco Balboa – tal qual os bolsistas do Programa se chamam – ajudou-a muito, com

revisões e correções.

“Deve ser um prédio em reforma”, dissemos a nós mesmos, ao vermos os destroços à

nossa frente. Ao chegarmos ao hotel, lemos no jornal que aquele prédio fora um

estacionamento, que alguns dias atrás havia sofrido um atentado à bomba do ETA. Três

                                                                                                               104 O período da Espanha foi importante, pois foi quando se constituiu a rede presencial de jornalistas latinos de 2007, objeto desta pesquisa. Além disso, posiciono-me como pesquisador-fonte, agregando valor à investigação como entrevistador que divide a experiência com os entrevistados. O texto será então uma mistura das minhas memórias com as entrevistas dos jornalistas, a fim de responder às perguntas de pesquisa. 105 As fotos referentes ao relato de experiência na Espanha estão nos anexos.

109    

equatorianos, que dormiam dentro de um carro, morreram com a explosão. Terrorismo ou

grupos separatistas não eram familiares a nós até então.

À noite, quando o grupo dos 20 jornalistas latinos selecionados estava reunido,

apresentamo-nos. Então começou-se a ver as pessoas como são e como elas queriam ser vistas.

Uma mistura de egos inflados com inseguranças contidas fazia o clima do jantar, durante o

qual cada um contava quem era e em que trabalhava em seus países.

O estranhamento foi muito grande naquele momento. Primeiramente, por perceber

uma óbvia identidade latino-americana pela língua, que coloca os brasileiros à margem das

trocas simbólicas do continente. Naturalmente, os colegas trocavam referências da indústria

do entretenimento, da literatura e do jornalismo, enquanto nós, brasileiros, nos esforçávamos

para acompanhar seus diferentes castelhanos. Fica fácil entender por que muitas vezes o

Brasil se refere à América Latina como não sendo parte dela e aos hispano-americanos como

“eles”.106

A busca por apartamento que coubesse em nossos orçamentos de bolsistas foi dividida

em equipes. Alguns grupos de afinidade começaram a transparecer, afinal, uma coisa é dividir

a mesa de jantar de hotel por dez dias. Outra é dividir moradia, contas e intimidade.

Inicialmente, nasceu um grupo dos que chamávamos os Cono Sur: três argentinos, uma

chilena e uma paraguaia. É interessante ressaltar que desde 2002, o Programa Balboa forma

grupos assim frequentemente, talvez influenciados pelas semelhanças europeias na cultura,

educação e na urbanização das cidades. Ou pela diferença entre estes e os demais latinos,

mais andinos, tropicais, negros e pobres que eles.

Pelo olhar sobre este grupo de 2007, a identidade dos argentinos Guido Bilbao,

Alfredo Losada e Sol Lauría, da paraguaia Laura Viveros e da chilena Macarena García deu-

se pelas semelhanças culturais que compartilharam desde o início. Desde o rock argentino,

muito influente em todo o continente, que procuraram na cena cultural madrilena, até o fazer

um jornalismo ambicioso, cronista, capaz de disputar espaço nos jornais espanhóis e servir de

referência às publicações na América Latina de onde vieram.

Outros grupos se formaram por outras características em comum. A mexicana Laura

Guzmán, o venezuelano Pedro Pablo Peñaloza, a brasileira Erica Montenegro e o

                                                                                                               106 O termo América Latina é um conceito criado de fora do continente. No século XIX, os franceses, em busca de apoio dos então colombianos para a manutenção do território e para o Canal do Panamá, clamaram por uma América Latina, em detrimento da intervenção dos EUA. Só no século XX a expressão começou a ser utilizada como sendo a representação dos povos da América Latina, uma referência cultural e de semelhanças nos processos de colonização e independência.

110    

costarriquenho Oscar Rodrigues eram mais quietos, discretos, interessados em subir na

carreira graças à experiência no exterior.

Houve iniciativas individuais, como o mexicano David Santa Cruz, que preferiu morar

em uma república de europeus, e a peruana Rocío la Rosa, que foi viver com familiares

emigrados.

A colombiana Luz Jenny, o nicaraguense Olmedo Morales, a salvadorenha Keny

Morales e a uruguaia Maria Eugenia Ramirez montaram outra casa Balboa. Eram os mais

simpáticos e amáveis, e montaram uma rede de afeto logo de início, que só se solidificou com

o passar do tempo.

Fiz parte de uma casa com o guatemalteco Eswin Quiñónez, o equatoriano Jorge

Imbaquingo, o colombiano Mario Alberto Duque Cardozo e, no meio da empreitada, o

mexicano David Santa Cruz – o qual hospedamos por ter ficado sem teto devido ao

fechamento de sua república. Nossa reunião se deu, basicamente, porque parecíamos ter um

temperamento parecido, alegre, risonho e esperançoso, de que íbamos a pasar bien a

experiência em Madri.

O dia do anúncio dos veículos jornalísticos nos quais iríamos trabalhar foi de muita

ansiedade. Afinal, era para isso que pensávamos ter ido à Espanha.

A redação do El País era cobiçada por todos, mas ficou para o mais experiente, Guido

Bilbao, um argentino que vive no Panamá, que produzia crônicas sobre a América Central

para a Argentina e trabalhava como editor-chefe em jornais que necessitam, segundo ele, “de

uma injeção de jornalismo”. Os demais fomos repartidos entre os jornais El Mundo, ABC,

Expansión, Cinco Días, Diario de los Negocios, as revistas Tiempo, Educación, e as agências

EFE e Europapress.

Laura e eu fomos trabalhar na Agencia EFE, como repórteres de TV. Algo

interessante para Laura, já que era produtora de jornal. Mas para mim, um desafio, já que teria

de lidar com temas diários em espanhol.

Há uma gradação no valor em que se atribui para um jornalista trabalhar na Europa,

neste caso, na Espanha. Ou seja, no valor que se dá ao jornalista latino que agrega à sua

identidade profissional uma experiência no exterior. Esse valor é oposto ao tamanho ou

tradição do jornalismo na América Latina. Isso se nota por algumas consequências na vida

dos profissionais. Os da América Central voltaram com seus empregos garantidos, foram

promovidos ou decidiram por uma proposta melhor no mercado.

Nos países com jornalismo mais estabelecido, entretanto, o peso do intercâmbio

profissional é menor. Para os jornalistas peruanos, equatorianos, colombianos, argentinos,

111    

mexicanos e venezuelanos, por exemplo, voltar aos seus veículos não significou grandes

alterações de salário ou cargo, apesar de garantirem algum valor agregado por trabalharem em

grandes empresas de comunicação europeus.

No caso dos brasileiros, não só da minha edição do Programa Balboa, mas das demais,

esta última característica se repete, mas em menor peso. Os veículos nacionais se interessam

por um profissional que trabalhou no exterior, mas na verdade exploram tal estada pedindo

colaborações (matérias gratuitas, em troca da manutenção dos cargos no Brasil) e em

trabalhos freelance dos seus licenciados.

Outros meios demitem o jornalista quando descobrem que este vai pedir uma licença

de seis meses para estudar na Europa, sem darem valor a uma bolsa com o custo de 60 mil

Euros por pessoa, investimento inexistente em qualquer redação brasileira para a capacitação

de seus jornalistas.

O trabalho de jornalista na Espanha parece estranho ao início para um latino-

americano, a começar pelas relações na redação.

A barulheira costumeira de um jornal brasileiro é substituída por estações de trabalho

individuais e baias com computadores multitarefa. Na EFE, um PC comum edita sonoras,

vídeos, textos e os envia para o editor-chefe ou mesmo diretamente aos clientes, graças ao

serviço de satélite da agência de notícias.

Essa independência técnica do jornalista perante seus colegas, somada ao jeito

espanhol de ser, algo fechado, tímido e emburrado ao início das relações pessoais ou

profissionais, faz das redações ambientes pouco hospitaleiros para jornalistas latinos. Laura e

eu sentimos isso logo no começo, quando dávamos bom dia e mal recebíamos olhares de volta,

quando os jornalistas espanhóis nos deixavam sozinhos na redação para almoçar, ou quando,

no meu caso, após cumprimentar as jornalistas da redação com o tradicional beijinho no rosto,

fui avisado: “Acá no se besa la mujeres de los otros, eh?”107

Logo, criamos uma carapaça a essa indiferença e fomos trabalhar. Entretanto, outra

diferença cultural, agora na prática jornalística, fez-se clara. O jornalista latino-americano

trabalha mais que o espanhol. Ao menos nesta experiência intercultural que relato, isso é fato

em todas as redações, com todos os Balboas.

                                                                                                               107 O equatoriano Jorge me ensinou o método de Hacerce el Loco, desconversando toda rudez e cobrança com um sorriso. E então continuar fazendo o que achava que era certo no meu trabalho ou vida pessoal. Cheguei a aplicar a loucura, sob a forma de surdez: quando meu chefe de redação me ligava ao celular pedindo A, B ou C da rua, dizia que sim e seguia com o estilo callejero do jornalismo latino-americano. Na redação, dizia que não havia entendido, pois não falava bem espanhol. Ele sabia que era mentira, me cabreaba e me perdoava quando minha indisciplina trazia bons frutos. Hoje, sinto falta dessa sinceridade ríspida, contraponto de nossa cordialidade muitas vezes falsa.

112    

Ao chegarmos a Madri, estávamos sedentos por trabalho. Oferecemos pautas, ideias e

colaboração aos colegas em suas matérias. Como resposta, pediam-nos um a dois trabalhos

por semana. Isso melhorou com o tempo, com mais espaço nas redações, mas nunca chegou à

quantidade de trabalho ou de oportunidade de contar histórias que contávamos nos jornais

latino-americanos. De qualquer modo, muitos dos Balboas relatam que a qualidade de vida

melhorou com a diminuição de trabalho, e que de volta aos seus países, tentaram impor a si

mesmos um equilíbrio melhor entre quantidade e qualidade de matérias, entre vida pessoal e

profissional.

O excesso de tempo, porém, não faz das matérias algo melhor. Outra diferença

marcante na identidade jornalística é que dificilmente a mídia espanhola faz confrontação de

fontes, ou mesmo coloca diferentes setores da sociedade em diálogo. Geralmente, as matérias

são compostas de uma fonte, oficial, ou relatos da população sobre temas locais.

Isso nos atordoou bastante ao início. Na América Latina, é comum realizar um

jornalismo de confrontamento de declarações, geralmente entre as instituições oficiais e as

demandas sociais. Contudo, parece que na Espanha de então, isso não era necessário ou

querido pelos editores. Claramente, após a crise econômica de 2008 e a falência do Estado

espanhol, essa demanda aumentou muitíssimo.

De qualquer modo, nossa identidade profissional foi confrontada com um modo

diferente de fazer jornalismo. Alguns Balboas se adaptaram a ela, oferecendo temas assim

como as redações esperavam. Outros Balboas empurraram os limites dos temas espanhóis e

ofereceram uma visão latino-americana dos problemas espanhóis. Rocío La Rosa, por

exemplo, aproveitou sua experiência de cobertura sobre defesa dos direitos da mulher e

buscou atividades semelhantes na Espanha, um país que não assume seu machismo. Já Guido

Bilbao publicou matérias como sobre o futebol espanhol cooptar trabalho infantil, recrutando

crianças latino-americanas através da contratação de seus pais para clubes como o Real

Madrid ou o Barcelona.

Eu tentei fazê-lo, mas estando em uma agência de notícias, assinar uma matéria é mais

difícil. O caso mais gritante fora a cobertura de um evento na embaixada da Colômbia, para

protestar contra a morte de 11 deputados sequestrados pelas Farc. Como repórter, entrevistei

as fontes oficiais, representantes da comunidade colombiana em Madri e espanhóis que

opinavam sobre o fato, segundo a experiência que tinham com o ETA. Havia muita dor e

revolta dos colombianos frente à guerra total que o então presidente Álvaro Uribe encabeçava

como a solução para o conflito.

113    

Resultado? A matéria foi reduzida à declaração da embaixadora da Colômbia e

imagens de cobertura. Sem afetar ninguém. Sem tocar ninguém.

Enquanto a experiência profissional se desenrolava, os afetos entre os membros eram

reforçados. Muitas vezes pela dor.

É comum ocorrer, em cada edição do Programa Balboa, algo inesperado com algum

membro da rede. É o improvável da vida, que não tem fronteiras ou espera experiências

internacionais terminarem. Casos profissionais, problemas com a imigração, conflitos entre

membros, questões de saúde e casos amorosos são frequentes.

No ano de 2007, o caso mais contundente foi a morte de um irmão dos Balboas, o do

colombiano Mario Alberto Duque Cardozo, um dos jornalistas de minha casa. O irmão dele

tinha 27 anos e contraíra uma doença que o matara em uma semana. Mario ficou sabendo de

madrugada e sumiu pela manhã.

Rapidamente, todos os jornalistas Balboas ficaram de prontidão para achar Mario e

ajudá-lo no que fora preciso. Foi combinado de que lhe pagaríamos a passagem aérea caso

quisesse voltar à Colômbia temporariamente.

Ele decidiu ficar. Como nos contou depois, seu pai lhe aconselhou: “não há nada que

você possa fazer aqui. O melhor é seguir seus projetos e na volta nos reuniremos”. O outro

irmão de Mario estava na Argentina estudando, portanto, os seus pais estavam sozinhos

naquele momento. Decidiram aguentar a fatalidade, assim como Mario e outros colombianos

que conheci e com os quais convivi, fortes e batalhadores, identidade que pude perceber com

o convívio intenso.

A partir daí, a rede dos Balboas se aproximou de uma vez por todas. Os grupos que se

haviam formado ao início se vincularam através de uma rede de apoio, que nunca mais se

dissipou. Outras edições do Programa Balboa também têm casos semelhantes, em que o grupo

se identifica após um caso de dor, perda ou risco a um integrante. É uma questão de

identidade emocional em uma terra estranha e a clareza de uma identidade comum para

entender como o outro se sente, como latino, como jovem e como expatriado.

O retorno de um jornalista Balboa é uma das partes mais difíceis da experiência, pois é

quando se confronta o aprendizado da jornada exterior com o cotidiano no interior de sua

comunidade. Quando se descobre se venceu ou foi derrotado na empreitada. Se vai conseguir

manter sua nova identidade transformada ou vai se render ao sistema social do qual partiu.

Após seis meses de intensas experiências profissionais e pessoais, é hora de sair da bolha de

uma bolsa de estudos na Europa e voltar às realidades latino-americanas.

114    

As formas de reinterpretar a si mesmo são distintas. Em 2007, o grupo se dividiu nos

que voltariam às suas rotinas; nos que não retornariam aos mesmos jornais onde trabalhavam;

e nos que seguiriam viagem, como a venezuelana Héllen Lopez, que ficou em Madri e hoje é

casada com um espanhol, filho de venezuelanos; ou Guido Bilbao e Sol Lauría, argentinos

que estão no Panamá; ou Macarena García, que vive com seu marido Ricardo e sua filha

recém-nascida na Suíça.

4.2 Relato de São Paulo, Brasil, agosto de 2007

No meu caso, fui um dos que retornaram ao cotidiano e se renderam ao sistema.

Porém, apenas por fora. Por dentro, estava desconstruído, por abandonar uma dinâmica

prática jornalística diária, voltar ao país como professor de jornalismo e terminar um namoro

de cinco anos. Havia feito amigos que talvez nunca mais visse novamente e estranhava a

densidade dos problemas de São Paulo, frente à ordem da quase provinciana Madri.

Eu não era daqui, de lá ou de acolá. Era de todos os lugares da América Latina e de

nenhum ao mesmo tempo. Minhas referências culturais estavam espalhadas e minha

experiência profissional estava diversa demais para adaptá-la totalmente ao meu cotidiano

brasileiro. A noção de espaço havia diminuído graças aos novos amigos e colegas latinos, e a

rede social e profissional substituiu as relações locais por um período significativo. Mas não

me eximia da saudade dos abraços, beijos e conversas de perto, na sala de nossas casas, nos

pontos de ônibus, nas ruas de Madri, a capital mais latino-americana do mundo. Os temas

pertinentes a mim não eram mais os brasileiros, tampouco os espanhóis, mas os latino-

americanos, que provinham de toda a rede de informação que havia sido estabelecida.

Minha identidade estava alterada e nunca voltaria a ser a mesma. Ampliada e difusa,

ambiguamente mais brasileira pela reafirmação das referências culturais. Ao mesmo tempo

mais latino-americana, pois um mundo novo de semelhanças e de diálogo havia aberto as

portas para mim. Algo española, pelo aprendizado de se adaptar àquele ambiente e pela

escolha de adquirir algumas características profissionais e pessoais de lá. Era preciso

compreender o nascimento de uma identidade glocal e a vivência em um ambiente de rede

internacional.

Na volta ao Brasil, percebi um país diferente, tanto por meus olhos quanto pelos fatos.

Sem negar as imensas diferenças sociais e um jornalismo ainda funcionalizado, surgiram

outras percepções sobre o Brasil, mais otimista pelos brasileiros e mais valorizado no

115    

exterior.108 Com capacidade de organizar (?) eventos mundiais como a Copa do Mundo e as

Olimpíadas. Mais próspero e democrático do que antes. Entretanto, graças à rede do Programa

Balboa, já não estava mais sozinho nessa nova forma de olhar.

Inicialmente, a rede social Balboa ajuda muito na ambientação no Brasil. As conversas

online são constantes, os vínculos são mantidos e as experiências, revividas.

Emocionalmente, os Balboas brasileiros dividem suas aventuras e compartilham os

anseios. Profissionalmente, uma demanda reprimida por produção é liberada e um fluxo de

matérias, colaborações e fontes são compartilhadas entre os Balboas.

No caso do Brasil, é comum que os jornalistas voltem realizando freelances nacionais

para os demais Balboas brasileiros. Alguns voltam com muita vontade de produzir mais,

outros pedem demissão para participar da bolsa; portanto, receber ajuda para recolocar-se no

mercado é fundamental.

No meu caso, voltei fazendo matérias para jornais da Espanha, México, Peru e

Colômbia. Entendia melhor seus contextos sociais, políticos e econômicos, tinha fontes e

referências de diálogo para a construção de textos, narrativas e imaginários mais próximos

dos fatos e leitores locais.

Outros colegas e eu sabíamos mediar os interesses dos editores estrangeiros com

nossos temas locais, ou seja, praticávamos uma identidade profissional ampliada para o

exercício do jornalismo na América Latina. Claramente, nem sempre as relações entre

freelancer e editor eram um mar de rosas, mas havia pontes para o diálogo, inexistentes

anteriormente.

As matérias sobre a América Latina aumentaram no grupo dos 20 Balboas, não apenas

em quantidade, mas em qualidade, com referências locais, fontes, temas e olhares locais. Os

estereótipos fracos diminuíram, tais como a Colômbia como terra do narcotráfico ou o Brasil

como a terra das favelas, dando lugar ao que os interlocutores locais sugeriam. As

comparações de fenômenos locais com os continentais aumentaram, bem como a produção de

matérias com soluções e exemplos positivos da América Latina para si mesma. A rede social

e profissional começou a produzir a partir de suas próprias referências e fontes e não apenas

de agentes externos, tais como agências de notícias estadunidenses e europeias. A

participação da sociedade civil aumentou nas matérias, em detrimento das fontes oficiais e

especialistas estrangeiros. E o olhar ampliado sobre os temas locais passou a ser recorrente.

Essa é uma das conclusões práticas sobre a identidade dos jornalistas pós-experiência na rede

                                                                                                               108 As notícias referentes ao relato de campo do Brasil estão nos anexos.

116    

social Programa Balboa: a maneira local-nacional de se entender os temas latino-americanos

para o jornalismo foi ampliada para um modo de ver com os olhos dos outros, os dos demais

latino-americanos. Isso possibilitou a atuação do fazer jornalístico de temas em comum, isto é,

não era preciso trabalhar na editoria de Internacional para se produzir uma matéria com

identidade glocal.109

4.2.1 Doutorado

O Programa de Ciências de Integração da América Latina (Prolam-USP) foi um

caminho natural para responder dúvidas sobre identidade cultural, após a rede presencial do

Programa Balboa.

O Prolam acerta quando estimula a pesquisa interdisciplinar110 para compreender o

continente, apesar de oferecer algumas disciplinas cujos professores não sabem o que é

interdisciplinaridade. Ainda assim, possibilita um amplo estudo sobre América Latina, pelo

oferecimento de aulas ministradas por professores brasileiros e estrangeiros, pela leitura das

dissertações e teses concluídas no Programa e pelo apoio a participação em congressos e

trabalhos de campo pelo continente.

Além disso, o Programa oferecia a oportunidade de trabalhar com a profa. Dra.

Cremilda Celeste de Araújo Medina como orientadora. Referência em produção científica

sobre jornalismo e diálogo cultural, Cremilda também tem identidade andarilha. Perambulou

e estudou o continente, tornando-se uma das pioneiras na pesquisa sobre América Latina111. A

errância me levou ao lugar e à pessoa que me guiariam em um doutorado sobre cultura,

identidades e redes na América Latina.

4.3 Relato de Lima, Peru, abril de 2010 “Hay que respetar el tiempo y la individualidad de cada Balboa.” (Aires Vaz, diretor do Programa Balboa, no discurso de início do encontro de representantes de outubro de 2010).

Esperava ansioso pela viagem a Lima. Fazia três anos que não via meus hermanitos. A

última vez havia sido no encontro de representantes Balboas em San José, Costa Rica, meses

depois da experiência em rede do primeiro semestre de 2007. A convivência havia sido                                                                                                                109 As discordâncias no modo de fazer jornalismo também fazem parte da constituição dessa nova identidade. 110 As linhas de pesquisa são Sociedade, Economia e Estado; Práticas Políticas e Relações Internacionais; Comunicação e Cultura. 111 Juntamente com o prof. Dr. Jose Marques de Mello, na ECA-USP.

117    

interrompida fazia pouco, ainda dividíamos nossas histórias pela internet e ainda podíamos

sentir os abraços trocados das despedidas.

No entanto, agora o contexto era outro. Eu era representante da rede no Brasil, e fora

convocado a uma reunião sobre os rumos do Programa Balboa. Apenas 20 dos mais de 200

jornalistas de então tinham sido chamados. Éramos de oito edições diferentes, com idades

entre 23 a 40 anos. Alguns tinham alcançado altos cargos no jornalismo, como o argentino

Marcos Foglia, diretor do Clarín Digital, ou o colombiano Santiago Torrado, repórter especial

da revista colombiana Semana. Outros tinham tomado rumos diferentes, como serem

freelancers, empresários ou gerarem uma família. Com essas novas identidades, para além de

meus amigos da rede de 2007, ingressei em outra combinação de jornalistas latinos, mudando

o formato da minha rede Balboa.112

As reuniões Balboas ocorreram em três dias em um hotel no belo bairro de Miraflores,

próximo do centro histórico113 e da costa limenha. Elas ofereceram conclusões interessantes

de como se produziam narrativas e dialogavam identidades. A começar pelo funcionamento

da rede, que tem vontade própria na formação de uma narrativa dialógica.

Diferente do formato de comunicação de massas, em que o emissor informa ao

receptor suas escolhas simbólicas a partir de narrativas basicamente unidirecionais, a

comunicação em rede não recebe passivamente a informação, mas sim com autonomia de

cada indivíduo que a compõe, que agrega novos símbolos e gera novas narrativas. O dissenso

entre os membros gera ruído à narrativa inicial, resultando em acréscimo de informação no

diálogo. Portanto, a narrativa em rede não pode ser considerada fechada, pois sempre recebe

influência dos signos identitários de cada membro.

O processo dialógico que mais ocorreu nas reuniões foi que os jornalistas escutassem

uns aos outros, sem chegar necessariamente a nenhum consenso. Em vez disso, houve troca

simbólica das percepções entre indivíduos de diferentes países, idades e cargos jornalísticos.

Quando esse fenômeno ocorreu, houve potencial para atualização das identidades dos Balboas,

ampliadas graças aos signos de diálogo oferecidos pelos outros membros da rede.

Porém, nem sempre se alcançou o diálogo efetivo nas reuniões. Em alguns casos, os

jornalistas bem seguros de suas convicções, com identidades bem estabelecidas dentro de suas

narrativas, trocaram os signos da relação pelos signos da divulgação. Em termos práticos, em

                                                                                                               112 Ao longo dos anos, outras combinações de redes aconteceram, como as firmadas pelas amizades, pelas visitas, pelos favores profissionais, pelas amizades das amizades, ou pelos 20 novos integrantes a cada ano. Recombinações oferecem novas narrativas trocadas em rede, atualizando as identidades dos jornalistas Balboas. 113 As notícias referentes ao relato de campo do Peru estão nos anexos.

118    

alguns momentos os Balboas relataram o que acontecia em seus países e em seus cotidianos,

não parecendo haver relação entre as narrativas dos demais. Pareciam discursos realizados

sem ouvir os interlocutores.

Ainda assim, as frases como “em meu país se dá dessa forma” ofereciam signos locais

a quem quisesse assimilá-los. Além disso, nos momentos de incomunicação, os indivíduos

recorriam a outras habilidades para reestabelecer o diálogo. Entre elas, a troca simbólica

entre identidades, trazendo para o parâmetro pessoal os temas profissionais. Balboas que se

conheciam por outras combinações da rede, como grupos nacionais de diferentes edições do

Programa ou os amigos dos amigos restabeleciam o diálogo e a troca de signos pelas

relações de afeto, vínculo e de confiança.

O reestabelecimento do diálogo pelos afetos demonstra que a reunião presencial é

fundamental. O encontro potencializa a rede, adormecida quando seus membros estão em

seus países ou usada parcialmente quando dialogam pela internet.

Restabelecem-se relações de influência das redes presenciais originais, fundadas no

primeiro encontro presencial, em Madri. Outras vezes, novos líderes despontaram nas

reuniões de Lima, mobilizando as oficinas de trabalho dos Balboas em 2010. Entenda-se líder

como um mediador que conseguiu influenciar outros membros da rede, pelo reconhecimento

dos signos de relação que trocou com os demais, signos mais dialógicos às diversas

identidades do encontro. Os líderes ofereceram novas narrativas em momentos de dissenso,

possibilitando ações conjuntas, narrativas coletivas, enfim, fluxo e troca de símbolos

identitários.

O encontro dos membros da rede Balboa humanizou os diálogos mecanizados pela

internet, ou funcionalizados, como nos pedidos por fontes e informações locais no momento

de produção jornalística. Encontros como o de Lima dão identidade à própria rede, gerando

narrativas em comum graças à troca de signos identitários individuais. A percepção individual

da identidade de cada jornalista Balboa participante da rede é ampliada para a percepção

de uma identidade latino-americana, não por se tratar de uma narrativa consensual, mas por

compreender a diversidade da narrativa em rede.

Cada indivíduo que compõe a rede é um mundo simbólico, com experiências e

informações locais, que pode ser acessado pelos outros membros da rede. O encontro

presencial proporcionou aprofundar-nos na identidade de cada Balboa e com isso ampliar

nossas próprias identidades. A rede presencial permite aos membros mudar a direção do

diálogo, horizontalmente, se quiserem compreender a diversidade das narrativas latino-

americanas; verticalmente, se preferirem compreender as culturas locais através das

119    

narrativas individuais dos membros; ou transversalmente, fazendo novas combinações

segundo seus interesses e histórias pessoais.

Cada jornalista do Programa Balboa compartilha seus ethos (família, religião, trabalho,

cidade) através de signos e narrativas, trocando percepções objetivas e subjetivas sobre os

principais temas de sua localidade, região e país.

As dúvidas de cada membro sobre os demais são brechas simbólicas, espaços em

branco das narrativas que cada um tem sobre o país, cultura e sociedade do outro. Essas

narrativas são preenchidas com a ajuda das narrativas individuais de cada membro, pois pelos

signos trocados por interlocutores de confiança e de afeto, pode-se compreender melhor o que

é seu mundo simbólico.

As próprias dúvidas são signos de relação entre os jornalistas Balboas e suas

identidades. Elas mostram como o outro nos vê, e o que é preciso para que sua narrativa

sobre nós seja completa.

A composição da rede de 2010 aumentou a qualidade da narrativa coletiva do

programa Balboa. Acrescentou elementos simbólicos às identidades, aumentando a

diversidade e a necessidade de novas trocas simbólicas, já que era preciso gerar um novo

equilíbrio dialógico entre jornalistas que ainda não se conheciam bem. A nova diversidade

gerou uma crise positiva no equilíbrio da narrativa em rede, e o diálogo das novas

identidades individuais atualizou um novo sistema cultural diverso, a rede recombinada.

Segundo Wainberg (2001), os impactos culturais e sociais estão maiores graças ao

adensamento das tecnologias de comunicação. Porém, o funcionamento das redes sempre

ocorreu em grupos humanos, nos quais partilhar e trocar com o outro representações

simbólicas era um ato presencial e simultaneamente temporal. As redes presenciais, como o

Programa Balboa, a experiência de 2007 e a de 2010, reafirmam a importância da manutenção

da partilha e da troca presenciais, para além da internet.

E se uma rede social for considerada um conjunto de nós interconectados, como

afirma Castells, a simples arquitetura da rede sem troca, influência ou afeto, não faz de

conjunto de fios ligados a indivíduos uma tecitura dialógica. Os fluxos são tão ou mais

importantes que os nós conectores, e esses fluxos são estimulados pela vontade de entender o

outro, de dialogar com a identidade alheia, no caso, do jornalista Balboa e do seu mundo

simbólico por desvendar. Medina (2003) comprova que a sustentação dos diálogos e das redes

de saber se dá mais pelos afetos dos indivíduos que pelas redes tecnológicas. Afetos como a

amizade, a confiança, a confidência e o vínculo, relações também encontradas por Christakis

120    

e Fowley (2009), são a “cola” que mantém o funcionamento de diversas redes sociais. As

individualidades e suas identidades são o sangue que corre pelas artérias das redes.

Se redes são relações entre indivíduos, as conexões não são técnicas ou tecnológicas,

mas afetivas e humanas. E quanto mais profundamente relacionadas, maior é o diálogo

cultural, a troca simbólica, a atualização de identidades e a formação de narrativas glocais.

4.4 Relato da Cidade do México, julho de 2011 “É como a primeira vez que se prova um vinho tinto. Sabe-se que é forte, ácido, faz-se gestos para descrevê-lo, mas se termina gostando. Não se vai com a primeira impressão, percebem-se seus sabores ocultos, perdidos e sua magnificência.” (David Santa Cruz, descrevendo o Distrito Federal).

Se a cidade do México é um vinho a ser degustado, aguaram minha taça no começo da

experiência. Cheguei no início da temporada de furacões, em julho de 2011, e a chuva não

cessou durante 21 dias. Fui apelidado de Tláloc114 pelo pai de Laura Guzmán, a jornalista que

me recebeu em sua casa, na minha estadia no D.F. Senhor Juán Medina Guzmán, o cativante

pai de Laura, me ensinou uma reza ranchera para me proteger da chuva: “San Isidro

Labrador, quita la lluvia, trae el Sol. Por favor, por favor, por favor”. Asteca e criollo, pagão

e católico, tradicional e cosmopolita, esse é o México que se apresentou a mim logo de cara.

Com chuva, nove milhões de habitantes115 e milhões de carros, o cosmopolita é sinônimo de

caótico no Distrito Federal. É uma cidade em overbooking.

Devido à intensa chuva da temporada de furacões, o trânsito não poderia ficar pior.

Falta escoamento de água nas ruas. Estranho, pois a mítica Tenochtitlán foi construída em

pleno rio Texcoco. Se os mexicas sabiam técnicas para enfrentar as diversidades climáticas –

como construir novos prédios sobre os inundados, por exemplo –, por que o D.F. de hoje

sofre as consequências de uma cidade saturada?

De metrô, onde se pode sentir muito mais que os quase 6000 habitantes por

quilômetro quadrado do D.F., fui conhecer o prof. Néstor García Canclini. Argentino, vive no

México há décadas e se dedica a pesquisas na Universidad Autónoma do México, a UAM,

                                                                                                               114 Tlaloc é o deus da chuva, o senhor do raio, do trovão, do relâmpago, senhor do inferno (Tlalocan). Assim como Quetzalcoalt, Tlaloc era um deus de Teotihuacan, que foi incorporado pelos Astecas quando conquistaram essa cidade. Tlaloc era uma divindade central ao culto agrário. As chuvas que Tlaloc mandava pelos os seus filhos, os Tlaloques, fecundavam os campos, onde o deus Xipe, o deus Cintéotl e o deus Xochipilli, se ocupavam. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Tlaloc).  115 Dados de 2013: 9 milhões de habitantes no D.F., 16 milhões no Estado do México, 5920 pessoas por quilômetro metro quadrado. Fonte: Consejo Nacional de Población (CONAPO).

121    

uma instituição de ensino interdisciplinar, criada estrategicamente no estremo Sul da cidade,

com uma proposta semelhante à da USP Zona Leste.

Lá, visitei o grupo de estudos de Antropologia Urbana. Seus membros investigavam

como diferentes expressões culturais se expressam nos novos espaços urbanos e virtuais. Os

alunos de pós buscavam compreender a crise dos modelos de negócios culturais e como as

novas tecnologias influenciam músicos, cineastas, pintores, escritores e atores. Naquele

momento, estavam estudando coletivos culturais e redes de atividade. “Quais são suas

estratégias criativas de uso, combinação e evolução?”, questionava Canclini. Os

prosumidores, como ressaltou o professor, encontraram novas formas de se inserirem na

economia criativa. Não se trata mais de difusores ou consumidores, mas ambas as habilidades

simultâneas.

Nesses ambientes, os pesquisadores perceberam troca de competências e habilidades,

e não mais de trabalhos e de ofícios, como no modelo industrial de produção cultural.

“Preocupem-se menos em classificar sistemicamente os jovens e mais em ouvir as diferentes

vozes, seus modos de dizer e como valorizam o que aprendem. Isso dá mais concretude aos

atores sociais”.

Como a localidade pode entrar na cultura global? Pelo que pude comprovar

pontualmente, em estratégias de vender o tradicional como exótico. Explorando o turismo, o

turista e o cidadão mexicano. No Estado de Quintana Roo, onde estão Cancún e a cidade-

estado Chichen Itzá, os moradores locais trabalham como serventes da indústria do turismo.

Com claras diferenças étnicas e sotaques distintos, falam em Spanglish nos hotéis e são guias

em parques temáticos. “Mande?” é uma expressão comum nesses locais. Hoje, quer dizer

“como?”. Originalmente, refere-se a “mándeme, mi señor”, um resquício da servidão na

linguagem e nos costumes, do qual muitos mexicanos ainda não conseguiram se libertar.

No ônibus em direção a Tulum, uma importante cidade portuária maia, vários deles

desciam e subiam pelo trajeto. Uniformizados, estavam provavelmente rendendo uns aos

outros nos seus turnos de trabalho nos resorts internacionais. Até o fim do trajeto, para visitar

parte da história da América, só nós, os turistas estrangeiros. Os demais estavam para entrar e

sair da modernidade pelas beiradas.

Já nas paradas durante o trajeto para Chichen Itzá, locais vendiam réplicas de estátuas

e tapeçaria pré-colombianos. Vi algumas originais anteriormente, na casa-museu de Diego

Rivera. O artista, quando questionado se eram autênticas ou não, costumava dizer que não

importava, “se foram feitas pelas mesmas mãos do povo”. A obra de Rivera mistura mito,

122    

história e contemporaneidade. Seus murais representam a origem, o passado e o presente do

México.

Outro local em que me deparei com objetos simbólicos da América Latina foi no

Museu de Antropologia do México, um espaço que faz dialogar diferentes etnias, séculos,

histórias e narrativas dos povos pré-colombianos. “Na Espanha, sentíamo-nos todos iguais.

Aqui, você vai ver como somos diversos”, disse-me David Santa Cruz, em visita comigo

àquele espaço, onde realizou várias atividades quando criança.

“Lembra-se do que aconteceu comigo, Eswin e Jorge em Paris?” Sim, lembrava-me.

Enquanto o guatemalteco Eswin foi elogiado por falar espanhol “tão perfeito” por um chinês,

o equatoriano Jorge voltou falando “mexicano”. Fora de Madri, os três Balboas116 se viram

diferentes e mestiços, através da linguagem.

No D.F., há um toque de mestiçagem em quase tudo. No trânsito, há mistura de carros

asiáticos com gringos; na loja de DVDs, documentários sobre Monteczuma, Benito Juárez e

Emiliano Zapata disputam prateleiras com Chespirito, El Santo, Hugo Sánchez e Speedy

González; no Zócalo, o centro histórico, ruínas astecas estão expostas a céu aberto,

sustentando igrejas católicas e prédios espanhóis; no antigo Colegio de San Ildefonso,

pinturas de Rivera e Orozco contam a história da Conquista da América segundo o olhar dos

mexicas, como no mural “Cortés y La Malinche”, um das primeiras relações mestiças do

continente; até na luta livre, onde máscaras e cabelleras disputam a atenção do público,

encenando confrontos, encarnando arquétipos e mitos urbanos.

4.4.1 De partida, umas sodas

No aeroporto do D.F., faltava-me um documento de saída do país. Ao buscá-lo na

Polícia Federal, fui interpelado por dois agentes logo na portaria: “Você precisa do

documento? Pague-nos umas sodas e está tudo certo”.

Não sabia o que dizer. Havia convivido com grandes mexicanos, visitado a casa e a

história de Frida Kahlo e de Diego Rivera, caminhado no mesmo chão de Malinche e de

Hernán Cortez.117 Visto as cidades astecas e maias, maiores e mais avançadas do que qualquer

outra do mundo em sua época.

                                                                                                               116 Informações a respeito desses Balboas nas entrevistas. 117 As notícias referentes à cultura pré-colombiana estão nos anexos.

123    

Já havia sido abordado pela polícia e exército em diversos momentos, em revistas à

busca de drogas rumo aos EUA, graças à globalização da violência e da criminalidade.118

Dessa vez, porém, fiquei extremamente ofendido. Não por estar sendo extorquido, mas pela

dignidade da cultura mexicana ser jogada no ralo por representantes do Estado. Por duas

sodas. Estavam ofendendo a um latino-americano.

4.5 Relato da Cidade da Guatemala, julho de 2011

“Órale, amigo, cuánto tiempo! Estoy feliz por verte, pero no tengo buenas noticias.”119

Fui recebido dessa forma por Eswin Quiñónez no aeroporto da cidade da Guatemala,

em julho de 2011. Ele se referia ao clima de luto na cidade, causado pelo assassinato do

argentino Facundo Cabral120, um dos maiores cantautores da América Latina, em turnê pelo

país.

De fato, só se falava disso na rádio e na TV. Na praça central da cidade – a qual Eswin

me confessou que era uma das únicas da capital –, havia homenagens com cartazes e

performances de músicos locais interpretando as crônicas musicais de Cabral. Além da dor de

perder um artista, os guatemaltecos pareciam sentir vergonha de o argentino ter sido morto

por causa da violência local, infelizmente comum a eles, mas que graças a esse incidente,

havia ganhado contornos continentais.

“Bienvenido al país de la balacera”, ironizou um fotojornalista, companheiro de

Eswin ao me cumprimentar. Desta vez, estávamos em um café tradicional do centro, com

fotografias e objetos históricos da cidade. Na porta, dois homens guardavam o local com

escopetas. Vi outros estabelecimentos com guardas aparentemente mal preparados munidos

de armas de alto calibre.

Na Guatemala, violência com violência se combate. Como para todos nós, latino-

americanos, a insegurança parece ser algo regularmente aceito na sociedade. Ela se expandira

                                                                                                               118 As notícias referentes ao relato de campo no México estão nos anexos. 119 As notícias referentes ao relato de campo da Guatemala estão nos anexos. 120 Facundo Cabral ficou mundialmente conhecido em 1970, quando gravou "No Soy De Aquí, Ni Soy De Allá", gravando em nove idiomas, com cantores como Julio Iglesias, Pedro Vargas e Neil Diamond. Em reconhecimento do seu constante apelo à paz e amor, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) o declarou "Mensageiro mundial da Paz”, em 1996. Morreu assassinado na Cidade da Guatemala quando se dirigia para o aeroporto, depois de um concerto. Cabral, seu empresário e o contratante guatemalteco receberam múltiplos disparos, sendo vítimas de um misterioso atentado perpetrado por vários bandidos armados com fuzis de assalto. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Facundo_Cabral).

124    

no país pelos 27 anos de guerra civil 121 e, atualmente, pelo narcotráfico mexicano.

Pressionados pela ofensiva militar do governo asteca e pressão dos EUA, los narcos

expandiram seus negócios para a América Central. As lloronas da região não são mais as das

lendas, mas as mães das dezenas de milhares de mortos pela guerra por território e mercado

de drogas. E não é um fenômeno isolado. Violência, criminalidade, dor e morte compõem a

identidade contemporânea do continente.

Eswin vivia em uma casinha simples no centro. “Mais fácil ir e voltar ao jornal e

acompanhar as entrevistas coletivas do Governo”, dizia. Ele estava a uma quadra da sede do

governo federal. E a uma quadra do palácio presidencial, falta água na casa de Eswin.

Pelo telefone, ele tenta alugar um carro para que viajemos pelo interior. Já o havia

reservado, mas a empresa locatária resolveu cedê-lo para outro cliente, sem avisá-lo. Sem

estresse, Eswin negocia meio no escambo o que fazer com esse contratempo. A globalização

chegou à cidade da Guatemala, para não dizer em todo o país, pelas beiradas do consumo e da

tecnologia. Smartphones, cartões de crédito internacionais e wi-fi rápida estão todos lá. Mas

nada funciona, como se os cidadãos só entrassem na modernidade pelo consumo periférico de

CDs, DVDs e roupas piratas. Os benefícios e os direitos da sociedade contemporânea talvez

cheguem lá um dia.

Andando pela rua de Eswin, cheia de sem-teto, camelôs e vendedores de frutas, vimos

a comitiva presidencial de Alvaro Colom122 chegar. Eram três vans negras, duas pick-ups e

soldados armados por todos os lados. Estávamos a metros do presidente e este, há anos vendo

a miséria de seu povo diariamente.

Ele, bem como os demais candidatos ao seu cargo. Cheguei ao país durante as

campanhas presidenciais. Os candidatos eram um ex-general, um líder evangélico, um

milionário e a ex-mulher do presidente. Esta, sem experiência política, estava no pleito porque

o marido fora impedido pela Justiça de se reeleger. Venceu Otto Pérez Molina, o ex-general,

baseado em uma campanha de segurança pública. Uma vez general, sempre general.

Não há motivos para o presidente ou os demais políticos não ouvirem o clamor

popular. A sociedade civil guatemalteca tem inúmeros representantes ativos, desde Rigoberta

                                                                                                               121 A Guerra Civil da Guatemala ocorreu entre 1960 e 1996, entre as forças do governo e vários grupos de guerrilha. Estima-se que 150.000 pessoas morreram durante o conflito e outras 40.000 são consideradas desaparecidas. O governo e a guerrilha assinaram um acordo de cessar-fogo em 1996. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Civil_da_Guatemala). 122 Presidente da Guatemala de 2008 a 2012.

125    

Menchú, prêmio Nobel da Paz123, passando por associações indígenas, etnias majoritárias na

composição da sociedade do país. Um de seus membros mais atuantes, o colunista Enrique

Sam Colop, faleceu dias depois de Cabral124. Ele trabalhava no mesmo jornal que Eswin, o

Prensa Libre. “Tudo o que publicávamos sobre a questão indígena passava por ele. Se não

estivesse bom, ai de nós... (risos)”. Colop já havia recebido inúmeras ameaças de morte pela

defesa dos direitos indígenas.

Saindo da capital, percebe-se a mobilização popular que apoiava Colop, necessária

para cobrir a falta de atuação do Estado em regiões praticamente fora da economia, política e

sociedade contemporâneas.

Perto da cidade de San Martín Sacatepequez, no departamento de Quetzaltenango,

uma das maiores do país, localiza-se a Laguna de Chicabal. Trata-se de um vulcão

adormecido, dentro de uma reserva indígena. Para chegar lá, estradas cortam as montanhas

cheias de rochas enormes, que a chuva fazia deslizar. Viaje de Perro, de Rafa León, e Viagens

com Heródoto, de Kapuściński, foram referências inevitáveis durante o trajeto. “Estamos más

perdidos que los hijos de la Llorona”, confessou Eswin, em um dos caminhos errados até

chegarmos ao pé do Chica.

Lá, conheci Pascoal. Um índio da etnia Mam, uma das remanescentes dos míticos

maias. Vestia-se como um ranchero, com chapéu de vaqueiro, botas e calça jeans. Sua

comunidade maneja agropecuária na terra sagrada. Muito sorridente, exibia seus dentes de

ouro, um lugar seguro para guardar as riquezas.

Apesar de dono da terra, Pascoal humildemente se aproximou e perguntou de onde eu

era. Ao saber que vinha do Brasil, sentou-se e fez várias perguntas. Dividiu o que sabia de nós,

graças às nossas telenovelas que chegam até no interior da Guatemala. Em troca, contou-me

um pouco da história de seu povo. “Chicabal é uma terra sagrada para o povo Mam. É onde

nascem as nuvens”. Por ser extremamente alto e arborizado, o cume do vulcão está

constantemente nublado. No lago sagrado, sacerdotes maias ainda realizam rituais centenários,

principalmente para que siga havendo nuvens que irriguem as lavouras dos camponeses.

Tradicionalmente, o povo da região tem divindades na natureza. Por isso, a Igreja

Católica guatemalteca permitiu o sincretismo no país. A principal igreja de Chichicastenango,                                                                                                                123 Rigoberta Menchú Tum é da etnia Quiché-Maia. Recebeu o prêmio Nobel da Paz de 1992, pela sua campanha pelos direitos humanos, especialmente a favor dos povos indígenas. É Embaixadora da Boa-Vontade da UNESCO. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Rigoberta_Mench%C3%BA). 124 Desde 1988, quando a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) contabiliza atentados contra jornalistas na Guatemala, 23 profissionais foram mortos até 2011. De 2008 a 2012, foram mortos oito jornalistas e ocorridos mais de 180 casos de violação da liberdade de expressão. Em toda América Central, foram 58 assassinados em 24 anos. (fonte: SIP).

126    

outra cidade que visitamos, é tomada por rituais maias. Os santos nas paredes têm rostos

indígenas e vestem roupas coloridas, nada parecido com a discrição culpada do cristianismo.

As imagens estavam escuras, defumadas pelas ervas e velas indígenas, finas e compridas. As

maiores se referem aos pais, as menores, aos filhos. Velas brancas levam os pedidos ao Sol e,

daí, ao universo. Na fachada, havia animais sacrificados e milho queimado, para agradecer a

cria e a colheita. Crentes rezam por San Simón, ou Maximón125, um deus pré-colombiano, “el

Santo del Lago”. Na verdade, rezam para o próprio lago.

Os maias continuam vivos na Guatemala, miscigenados e marginalizados. Não vivem

mais em cidades-estados, mas em povoados que dependem da subsistência, da produção de

bens culturais e do turismo desorganizado. Ao conhecer a feira de Chichicastenango, fiquei

feliz com as comidas tradicionais, as cores dos tecidos e a originalidade da arte. Parabenizei a

Eswin por sua população preservar a cultura tradicional. Fui repreendido: “Edson, eles

seguem plantando milho e tecendo algodão cru porque não sabem fazer outra coisa. Vivem

dessa forma há séculos e estão completamente fora da economia. Não se trata de tradição,

mas de sobrevivência”.

4.6 Relato de San Diego, dezembro de 2012

Escrevo este texto do exílio, expressando-me exageradamente, como um bom latino-

americano. Estou exercendo minha latinidade, testada graças a uma última experiência de

campo. A partir de San Diego, uma das cidades mais mexicanas dos EUA, venho confirmar a

importância das redes presenciais como estrutura de diálogo entre identidades.126

“Por que ir aos EUA estudar América Latina?”, eu perguntaria, se fosse o leitor deste

primeiro parágrafo. Fiz-me essa pergunta várias vezes, antes, durante e provavelmente após

esse período. Os EUA têm excelentes centros de estudos latinos, como o Cilas127, que me

recebeu como visiting scholar, e a UCSD, que desenvolve sólidas pesquisas interdisciplinares

sobre redes sociais. E as redes presenciais de jornalismo daqui, os fellowship programs, são

organizações sólidas para comparações com as redes latinas e o principal estudo de caso deste

doutorado, a Rede Balboa para Jornalistas Ibero-americanos. Outro motivo, além do científico,

                                                                                                               125 Maximón tem uma versão contemporânea, com terno, gravata e chapéu. Suas oferendas são aguardente e cigarro, em um ritual parecido com o Candomblé e a Umbanda brasileiros. Matéria guatemalteca sobre Maximón em anexos. 126 O estudo comparado das redes presenciais latino-americanas e os fellowship programs estão nos apêndices. 127 Center of Iberian and Latin American Studies, da University of California San Diego. www.Cilas.ucsd.edu

127    

está na natureza do autor da pesquisa, um latino-americano que entende melhor a si mesmo e

a América Latina vendo-a de fora. Mover-se e ver-se de outro ângulo para se conhecer melhor.

Após um doutorado com trabalho de campo realizado no Brasil, no Peru, no México e

na Guatemala, uma experiência em terras estrangeiras, mas híbridas, faz compreender melhor

o que são as identidades latino-americanas, a primeira pergunta da tese. A segunda pergunta –

se as redes sociais e profissionais alteram a identidade e a percepção de glocalidade128 dos

jornalistas latinos – também pode ser bem compreendida aqui, comparando as caóticas redes

de jornalismo da América Latina com as objetivas e eficientes da “Gringolândia”, os EUA nas

palavras de Frida Khalo e de tantos outros latinos que deixaram marcas nesta terra.

4.7 Entrevistas comentadas

Nesta seção, encontram-se partes das entrevistas com comentários do autor desta tese.

4.7.1 Cremilda Medina

Jornalista desde 1961 e professora da UFGRS desde 1967, Cremilda chegou a São

Paulo em 1971. Convidada pelo prof. Dr. José Marques de Mello a fazer pós-graduação e a

lecionar na ECA-USP, Cremilda seria uma das primeiras Mestres em Comunicação e

América Latina, cursando de 72 a 75.

Sua formação em Letras, a experiência no mercado de trabalho e as pesquisas na

Universidade de São Paulo lhe foram úteis à experiência de dois meses no Equador em 1973

para o curso do Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicación para América

Latina (CIESPAL), a primeira rede de jornalistas do continente, constituída desde 1959.

A barreira linguística entre o Brasil e a América Hispânica e os objetos simbólicos

inicialmente distantes foram suas primeiras aprendizagens no diálogo com os jornalistas                                                                                                                128 Glocal: conceito de Manuel Castells, uma mistura das influências locais e globais no indivíduo. Vide capítulo “Identidade”.

128    

hispano-americanos. O limiar de sua aventura e aprendizagem na América Latina havia

começado contemplando as diferenças ao invés de recusá-las.

Participante do CIESPAL de 1973 em diante, seu desafio foi equilibrar sua iniciação

sobre a América Latina, o diálogo com jornalistas locais e cursos oferecidos, ainda apegados à

funcionalização e dependentes de teorias e práticas do hemisfério Norte.

Cremilda encontrou amparo e diálogo com seus colegas de profissão, tanto jornalistas

quanto pesquisadores. Dos chilenos, por exemplo, aprendeu os modos de ser e de fazer da

cultura andina, da indústria têxtil e da política de Salvador Allende. Dos equatorianos,

conheceu um Equador profundo, através dos mitos, ritos e do cotidiano de Quito, experiências

que ela vivenciou como antropóloga e jornalista curiosa.

No Brasil dos anos 70, as coisas não estavam fáceis. Cremilda abandonou a USP pela

cassação de Sinval Medina, em 1975. Dedicou-se 10 anos ao Estado de São Paulo. Na volta à

USP, em 1986, não encontrou os mestres da sua pós-graduação dos anos 70 nem o clima de

discussão e construção intelectual de outrora, mas uma faculdade de cultura mecanizada e de

cursos funcionalizados.

O que Cremilda recebeu das coisas simples, como as conversas nos intervalos das

aulas no CIESPAL ou nas visitas ao centro de Quito, foram os pequenos clímax em que se

aprende com o Outro. Algo que os jornalistas do OESP ou os pesquisadores da USP da pós-

ditadura não entendiam. O que Cremilda aprendeu nas viagens ao Equador aplicou no

jornalismo e na sala de aula, transpondo o trabalho de campo da antropologia para a

reportagem jornalística e para o diálogo dos afetos, seus alunos. Junto a esses, desenvolveu

laboratórios epistemológicos, como a série de livros São Paulo de Perfil (1987-2008).

Também promoveu diálogos e redes de conhecimento interdisciplinares, como nos debates e

publicações do Novo Pacto da Ciência.

Cremilda mostra que a identidade dos jornalistas latino-americanos está no diálogo

entre pessoas, não nos cursos ou nas redes de capacitação. Nas viagens seguintes à América

Hispânica, confirmou a herança cultural comum desta com o Brasil, através dos objetos

simbólicos que encontrou nos mitos e ritos, e pela importância dos Estudos Culturais como

chave para o jornalismo complexo.

Sobre o CIESPAL, sua experiência mostra que as redes presenciais reuniam bons

intelectuais e jornalistas para o diálogo. Os cursos serviram para debater o que cada um trazia

consigo. Na verdade, Cremilda montou redes de vínculo e de confiança onde quer que atuasse,

fosse no jornalismo, na USP, no Memorial da América Latina, nos debates do Novo Pacto

129    

com a Ciência, fosse na formação de jornalistas e pesquisadores em mais de 50 anos de

dedicação ao diálogo.

A participação de Cremilda Medina na reunião de 1973 e nos fóruns seguintes do

CIESPAL lhe gerou marcas na identidade como jornalista, como pesquisadora da ECA-USP e

como cidadã latino-americana. Seu relato de experiência, registrado no livro “Do Jornalismo à

Comunicação”, será utilizado como um diálogo com os relatos dos jornalistas do Programa

Balboa. Isso permitirá uma comparação entre o CIESPAL e o programa Balboa para Jovens

Jornalistas Ibero-Americanos, tema desta pesquisa; e um retrato ampliado sobre o jornalismo

e o jornalista da América Latina, ao longo das últimas décadas. Pela voz de Cremilda,

percebe-se que o grande aprendizado das redes não está nos cursos, nas palestras ou nas

oficinas, mas nos indivíduos que participam delas, através do diálogo e nas redes de confiança

que se estabelecem do convívio.

4.7.1.1 Depoimento129

“O primeiro aprendizado com o CIESPAL não foi nem técnico (ferramentas

profissionais), nem fenomenológico (ciências da comunicação), nem humanístico (sociologia,

antropologia, filosófica). A imersão se deu na cultura, nas identidades em que a língua e a

observação abrem as portas da compreensão. Se os conceitos procuram circunscrever a

experiência em teorias, a vivência cultural do cotidiano provoca a curiosidade e o acesso a

noções abertas sobre o Outro.”

(...)

“No curso de especialização do CIESPAL, os dois chilenos eram muito solicitados na

troca cultural dos intervalos de aula. (...) Aquele momento culminante do projeto Allende

mobilizava a atenção dos latino-americanos. O que não quer dizer que os Ciespalinos,

praticamente somente jornalistas, não quisessem informações sobre a América Central,

Venezuela, Colômbia, Peru, Paraguai ou Bolívia. Para os brasileiros, o Uruguai e a Argentina

eram mais familiares, não representavam tantas surpresas. Por outro lado, o mergulho no

Equador profundo foi a grande lição, não propriamente colhida nas séries de conferências

que vinham dos EUA, da Europa e da então União Soviética: uma enxurrada de manuais

difusionistas, sociologia funcionalista ou teoria crítica da comunicação social e metodologias

de pesquisa quantitativas.”

(...)

                                                                                                               129 Extraído do artigo “Do Difusionismo à Dialogia Democrática”, em “Do jornalismo à comunicação: 50 anos de estudos midiáticos na América Latina” (MARQUES DE MELO, José (org.), 2009).

130    

“Ao entrar, nos fins de tarde, na Igreja de São Francisco, no centro histórico de Quito,

e perceber a suntuosidade do outro e do barroco, saltava o contraste com o povo indígena

acendendo velas e orando por dias melhores. O que mais me tocava era aquela gente

mirradita: onde estavam os primeiros habitantes guerreiros? (...) Não foi por acaso que

conheci Otavalo. Um jornalista equatoriano, que fazia o curso de 1973, me falou de sua gente

– uma cultura indígena que resistiu à Conquista, se ilhou nos Andes e administrou, com

autonomia, a sobrevivência, com o comércio de seus produtos. (...) Quando voltei do Equador,

os profissionais do Jornal da Tarde130 não compreendiam o entusiasmo com que contava essa

e outras histórias.”

(...)

“Na sala de aula do CIESPAL, falávamos das teorias sociológicas da comunicação;

em Latacunga, senti o gosto da chicha, o cheiro da casa indígena, as cores da Mama Negra,

o gesto das danças, o som dos tambores. Tudo me fez compreender a importância da

produção simbólica.”

(...)

“Ir ao encontro do Outro, ainda que vizinho, revela a condição humana do presente,

traz à tona a memória das biografias e projeta o sonho do futuro. Embora a

contemporaneidade da narrativa, os tempos e os espaços se entrelaçam.”

(...)

“Nas redes à distância ou de conexões presenciais, aparece com nitidez a voz latino-

americana, brasileira e paulista, seja em temas como o mundo do trabalho ou energia e meio

ambiente.131 (...) Daí resulta o que venho insistido nos últimos anos: mais importante do que

laboratórios técnicos de mídias impressas, eletrônicas ou digitais são os laboratórios

epistemológicos. As ferramentas mentais atrofiam se deixarmos de cuidar delas para só nos

dedicarmos ao treinamento das máquinas. (...) Podem analisar as vantagens da velocidade

no tempo e do encurtamento das distâncias nas mídias digitais, mas teorias assépticas que

dispensam o contato direto, corpo a corpo, não despertam os sentidos da compreensão, da

interação criadora.”

Cremilda Medina se perguntava quem era o jornalista de então. Via um trabalhador,

espremido entre as obrigações de ser um operário da informação e um vaso comunicante para

                                                                                                               130 Fechado em 2012 pelo grupo Estado. 131 Temas de 1995 e 2009 da coleção São Paulo de Perfil, livros que Medina editou junto aos alunos da ECA-USP.

131    

a sociedade. Havia falta de jornalistas na América Latina e de treinamento para corrigir isso.

Não só em quantidade, mas em qualidade. Jornalistas e escolas que associassem a imperfeição

da carreira e da notícia com a identidade dos jornalistas, autores em busca de afirmar seu

papel social. Regular a profissão na sociedade132, dialogar com todos os segmentos da

população e equilibrar individualmente “o mosaico da então história contemporânea”133

(MEDINA, 1982: 24) eram os principais desafios da profissão.134”

4.7.2 Helena Fruet135

Helena Fruet é uma das participantes mais ativas do Programa Balboa no Brasil. Ela

organiza a seleção de candidatos para novas edições da rede, convoca os voluntários ex-

bolsistas, seleciona currículos enviados online, faz entrevistas pelo Brasil e dá seu parecer aos

diretores do Programa Balboa, em Madri.

Helena se define jornalista, brasileira, locutora, atriz e jornalista. Afirma adaptar-se

onde quer que esteja. Gosta de ser multiprofissional, e desenvolveu isso ao longo do tempo,

mais consideravelmente após sua participação no Programa Balboa, em 2006. Antes da rede,

Helena trabalhava nas revistas do Grupo Abril. Depois, mudou para o mercado de TV e

internet.

“Nenhum outro programa de rede jornalística me proporcionaria tanto contato com

pessoas de outras regiões, junto da experiência profissional”, relembra. Cultura foi o que                                                                                                                132 Demanda difícil em plena ditadura militar no Brasil e em muitos países da América Latina. 133 Esse objetivo coaduna com os objetivos das redes sociais do século XXI e com a hipótese desta pesquisa. Equilibrar os signos locais e individuais com os discursos coletivos e globais por meio de redes de diálogo. 134 MEDINA (1982: 26) mostra que a implantação do jornalismo na América Latina traz consigo um aparato de máquinas e de organização industrial que se instaura nas redações. Sistemas produtivos verticais, assim como as indústrias, foram assimilados pelas empresas de comunicação do continente. Hoje, as redes sociais são uma proposta de re-horizontalizacão do discurso e dos papeis profissionais. Estabelecidas como fios e nós, sem hierarquia definida, as redes revivem sistemas de diálogo mais naturais, que se definem por linhas de interesse e de confiança. 135 Editado da versão completa, que irá para o apêndice. Serão editados os diálogos dos demais Balboas segundo este modelo.

132    

Helena mais trocou com os Balboas. Hábitos, cotidianos e histórias. E depoimentos de como

funciona o Brasil, já que ela identificou que a barreira da língua portuguesa não permite aos

jornalistas hispânicos saberem bem o que acontece aqui. Os jornalistas latinos também lhe

inspiraram, de diferentes formas.

“Lembro-me de admirar os venezuelanos e o nicaraguense pela coragem de fazer

jornalismo perseguidos pela censura e com medo da violência. E a colombiana também, por

cobrir guerrilhas e por entrevistar famílias de gente sequestrada. Deve ser muito difícil cobrir

isso. A atuação do jornalismo é diferente da nossa.”

Contudo, a primeira experiência na rede latino-americana não foi nada boa. Quando

dividia apartamento com três jornalistas em Madri, os vizinhos se incomodaram com o

barulho que elas faziam durante uma festa. Eles chamaram os donos e estes chegaram aos

gritos, junto com a polícia. Helena teve de negociar com eles, que queriam expulsá-los do

imóvel.

“Senti-me hostilizada. Foi muito violento para mim, um balde de água fria, me agrediu

muito. Percebi com quem podia contar e com quem não podia. Isso foi um desafio autêntico

para mim, de enfrentar a solidão.”

Naquele momento, ela percebeu recorrer à sua identidade brasileira. Queria falar mais

português. Helena se aproximou do grupo dos brasileiros e apenas conviveu com as

companheiras de apartamento desde então. “Já com outro Balboa, Luiz Fernando, vomitava

português.”

Entretanto, foi outra experiência difícil da sua edição o que mais uniu a todos. Uma

bolsista teve surto psicótico e sumiu, sendo encontrada em um hospital, dias depois. “O

diretor do Programa Balboa, Aires Vez, coordenou grupos de busca e acalmou a todos. Aires

é uma espécie de pai dos bolsistas.”

A experiência em rede foi muito forte para ela. Define-se Balboa hoje e sempre.

Também acha que a rede presencial mudou a vida de muita gente. Ninguém teria voltado da

mesma forma ao seu país. Nem ela. Mas se reinventou quando trabalhou em outra língua e

viveu fora da casa dos pais. Hoje, ela se sente mais integrada ao resto da América Latina, pois

fala melhor espanhol e porque consome cultura de todo o continente. “Não temos cultura de

entretenimento em comum, eles sim. Comecei a entendê-los melhor agora que consumo mais

cultura latino-americana, como música, filmes e livros.”136

                                                                                                               136 Já no meu caso, aprendi a ouvir Juanes, o músico que mais vende álbuns em língua espanhola, a partir do contato com os Balboas colombianos. Juanes já não é mais um músico estrangeiro para mim. Ele faz parte do meu setlist, como intérprete e interpretante da América Latina. Como retribuição, apresentei aos amigos Balboas

133    

Helena se sente mais latino-americana quando se compara aos espanhóis, mas muito

brasileira se lhe colocam ao lado dos hispano-americanos. “Quando você está no Brasil, você

tem hipermetropia. É preciso se afastar para enxergar melhor. Senti-me muito mais

brasileira, latina e gaúcha na Espanha.”

4.7.3 Marcos Todeschini

Caco foi entrevistado em um período interessante para a tese. Ele tinha acabado de

voltar da experiência em rede, em agosto de 2011. Marcos Todeschini, jornalista da revista

Época, então com 30 anos, de Bento Gonçalves, foi recebido em uma festa preparada pelos

Balboas brasileiros e, histriônico, contou em uma noite tudo o que aconteceu durante seis

meses de experiência, meio alegre, meio bêbado de nostalgia e de chope. Conseguiu passar a

nostalgia aos Balboas e a ressaca à Balboa recém-convocada, jornalista da Folha de S. Paulo,

Flavia Mantovani, devido à intensidade com que dividia seus casos e causos.

Depois de saber que havia sido escolhido para participar da rede, Caco ficou bem

ansioso até o dia da viagem. Pirou. Tinha medo de não reconstituir todas suas relações, no

trabalho e na vida pessoal, assim como fizera quando chegou a São Paulo. Tudo isso em outra

língua e em outro país. Mas tudo passou quando entrou no avião rumo a Madri. “Comparo ao

salto em bungee jumping. O maior medo é quando se está no trampolim, antes do salto.

Depois, quando se joga, o medo passa, é só alegria. Foi o mesmo medo que senti nesse salto

para a Espanha.”

As primeiras impressões dos colegas jornalistas eram uma colagem das conversas

online realizadas previamente à viagem. Afinal, na internet as pessoas podiam ser mais

desenvoltas que presencialmente. “Quando chegamos foi muito estranho, porque as pessoas

já se conheciam pelo Facebook. Curiosamente, as mais desenvoltas e interessantes online

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         a música caipira brasileira. Alguns Balboas se emocionaram com os causos tristes do campo. Parece que sentiram e se identificaram as histórias com as campesinas e rancheras de seus países.

134    

foram as mais apagadas durante o curso. As presenças mais marcantes e lideranças eram

outras.”

Caco teve algumas crises, como quando chegou ao jornal Expansión de Madri e não

sabia que pautas sugerir, sem falar espanhol corretamente. No dia seguinte à sua chegada,

deram-lhe uma matéria para fechar no mesmo dia: como as empresas espanholas sediadas nos

países na Primavera Árabe de 2011 podiam precaver-se. Na época, pareceu-lhe difícil, pois

não sabia nada da conjuntura europeia, muito menos árabe.

Mas foi o que buscava: perder o chão; então encarou o desafio. Resolveu e se

reinventou pela humildade. Pediu ajuda aos colegas e lhe indicaram casos e contatos.

“Voltei a ficar feliz com pequenas coisas, como escrever e publicar. Isso faz brilhar

os olhos novamente, lembrar porque escolhemos jornalismo. Acho legal o Programa pegar

jornalistas com alguma experiência. São cinco a dez anos de carreira para muitos Balboas,

mas muitos dos seus sonhos já morreram, alguns já deram o braço a torcer a muitas coisas

do jornalismo.”

Caco sofreu a segunda crise quando se deu conta que não sentia nenhuma saudade

pelo Brasil. Estranho, pois tinha partido de bem com o país. Então, ali devia ter um problema.

Descobriu que não sentia falta alguma porque no fundo sabia que a experiência em rede era

temporária. Outros Balboas sentiam o mesmo.

O maior bem cultural trazido dos jornalistas Balboas foi se tornar interessado em

saber o que ocorre nos confins da América Latina. Interessa-lhe saber por motivos pessoais.

Não vê mais a Venezuela apenas pelo estereótipo construído sobre Hugo Chávez, mas a terra

de sua companheira Balboa que vive lá.

“Quando se fala de qualquer país latino-americano, agora é pessoal. Troca-se isso

ao morar com latinos. Eu nem imaginava que existiam comidas como arepas e chicha

morada. Quando cheguei a São Paulo, minha amiga peruana fez chegar por correio uma

garrafa de pisco. Achei muito simpático da parte dela.”

O mito da América Latina distante e intocável para o Brasil também foi rompido pela

experiência com os jornalistas Balboas. O continente se tornou concreto, aonde se pode ir e

trocar novas experiências. A unidade cultural foi outro mito caído, já que o continente é algo

tão diverso e complexo que não há como uniformizá-lo. Agora, Marcos diz ter a noção das

distinções da América Hispânica e da Lusófona brasileira. Começou a partir das distinções da

língua. Sentiu, como Helena Fruet, a dificuldade de trocar bens culturais com os Balboas

hispano-falantes, já que entre si eles tinham esse fluxo naturalmente, através de livros, filmes,

música e programas de TV.

135    

No início da experiência em rede, ele achava que ver identidade entre os Balboas seria

algo exagerado. Mas tanto ele quanto os outros Balboas de 2011 foram acometidos pelo grupo

e ficaram vinculados entre si. Os melhores amigos que fez foram latino-americanos, mais que

os espanhóis. Percebeu quando, ao fim do intercâmbio profissional, viajou por dois meses

pela Europa e voltou a Madri, sem os Balboas. Foi bonito, mas estranho. Viu lugares palco de

episódios marcantes, porém os personagens não estavam mais lá.137

“Hoje eu entendo porque as pessoas se locomovem pela América Latina para se ver,

presenciar casamentos e outros eventos. Continuamos trocando músicas, filmes, e agora

estamos na etapa de nos visitarmos. Minha república de jornalistas tinha um urso de pelúcia,

chamado Gregório, graças á estação de metrô Gregorio Marañón. Esperamos levar o

Gregório a visitar os membros da casa agora que voltamos.” Gregório já foi a um casamento

em Lima e levou Caco para ver seus amigos Balboas.

Marcos voltou entendendo melhor São Paulo, com as referências de outras cidades,

inclusive as latino-americanas. “Temos o melhor e o pior aqui, em questão de bairros.

Causou-me um choque, pois vinha de uma cidade menor e mais homogênea. O gap social e

econômico aqui é brutal.” Viu que precisava de outro choque quando quase pisou em um

morador de rua em Pinheiros, onde mora. Não o percebeu. Sentiu-se anestesiado.138

Caco gosta de ser caótico e por isso se adapta bem ao Brasil, à Espanha, a jornalistas

latinos ou com quem quer que seja. “No fim da experiência Balboa, viajei a países mais

desenvolvidos economicamente que a Espanha, como a Suíça e Suécia, e as pessoas parecem

não se preocupar com nada, nem ao atravessar a rua. Um pouco de caos, pelo amor de Deus!

Para-se com um mapa na rua e na hora vem alguém para te ajudar. É muito gentil, mas não

há espaço para se perder. Quero ir por conta própria, olhar meu mapa, descobrir meu

caminho, meu espaço.”

Em 2012, Caco foi para a Inglaterra, fazer um mestrado sobre América Latina. Para

manter seu caos rotineiro.

                                                                                                               137 Minha primeira volta à Espanha também foi de viuvez latina. Também andei por lugares onde os amigos e colegas já não estavam mais. Então comecei a fazer amizade com os colegas espanhóis, depois de dois anos da minha volta, em 2007. 138 A matéria que Marcos Todeschini realizou após o Programa Balboa está nos anexos.

136    

4.7.4 Rocío la Rosa

ROCÍO: Qual é o tema do seu doutorado, Edson?

EDSON: Estou estudando identidade por redes sociais. Um pouco de terapia para me achar, depois da

experiência.

ROCÍO: Creio que todos nos sentimos iguais.

EDSON: Pois é. Voltei a São Paulo e percebi que não sou só mais de lá. Sou teu amigo como de

outros que vivem na esquina de casa. Somos amigos de longe, é um novo fenômeno para mim.

ROCÍO: Sim, é novo, mas de alguma maneira isso se acalma com as viagens e as visitas.

EDSON: É bom sim, mas a partida dói sempre. É muito difícil separar-me de novo cada vez que os

vejo.

Minha interpretante do que é a cultura peruana é Rocío la Rosa, ou apenas Chío,

jornalista limenha, a quem visitei para compreender a atualização da identidade dos

jornalistas do Programa Balboa antes e depois da experiência de rede.

Sua identidade jornalística pode ser entendida através de momentos da carreira. Agora

que trabalha na página web do jornal El Comercio, Chío conhece mais e melhor as reações

que geram suas matérias, graças aos comentários, e-mails e redes sociais.

Usa como parâmetro a experiência Balboa, de 2007. Aspirava uma experiência fora do

Peru, por isso procurou programas de jornalismo para financiá-la. Encontrou o Programa

Balboa por causalidade. Apoiaram-na no trabalho, o mesmo jornal El Comercio, garantindo

sua vaga quando retornasse. E assim se inscreveu e foi selecionada, sendo a única

representante peruana de 2007.

O contato com Balboas dos anos anteriores foi muito curto, apenas dois ou três

jornalistas lhe telefonaram para desejar boa sorte e perguntar se tinha dúvidas. Confessando

descontentamento com esse abandono dos colegas, Chío gosta, desde a sua volta, de realizar

encontros presenciais para dar dicas, conselhos e trocar lembranças aos novos bolsistas.

137    

Rocío procura praticar a solidariedade exercitada entre os Balboas de sua edição de 2007,

através da divisão de suas experiências com os novos ingressados na rede.

Quem fez contato diário com Rocío antes da viagem foi, quem diria, uma mexicana,

Laura Alicia Guzmán Medina, também entrevistada para esta tese. Prometeram apoiar-se na

Espanha. Ao chegarem ao hotel que receberia os jornalistas por dez dias, outro mexicano

juntou-se à dupla, David Santa Cruz.

A identidade peruana de Rocío encontrou eco nos então colegas mexicanos. A

experiência entre eles mal havia começado, mas dividir as expectativas sobre viver e trabalhar

em Madri foi o suficiente para começar um diálogo.

Quando chegou a Madri, em 2007, não esperava que o Programa Balboa fosse uma

experiência tão completa, juntando trabalho jornalístico com aulas. Achou muito bom logo de

início.

Poder desenvolver-se sozinha, desde as coisas pequenas, como comprar comida, pagar

contas e fazer com que tudo estivesse bem, ajudou Rocio a amadurecer. Mas nesse momento

tudo estava bem entre os 20 latinos, porque estavam todos na mesma, com algum receio e

ansiedade pelo novo que enfrentariam.

No entanto, isso passou e Rocio foi designada a fazer matérias políticas, como as

eleições municipais de Madri. E então começou a encantar-se pela experiência de trabalhar

em alto nível em outro país. “Estive no Congresso e compartilhei o mesmo espaço que o Rei

Juan Carlos e a rainha Sofia da Espanha, além de termos uma conferência com o Príncipe

Felipe. Não podia acreditar em ser reconhecida por ele como uma jornalista.”

No trabalho espanhol, no jornal Gaceta de los Negocios, sentiu dificuldade de

começar. “Os colegas do jornal pensaram que éramos estudantes, depois perceberam que

éramos profissionais como eles. Isso foi um “traspie” no início. Tinham receio de publicar

minhas matérias.” Mas com a experiência peruana, começou a destacar-se e a trabalhar em

alto nível no exterior.139

A dificuldade de compreender e ser compreendida no Gaceta a fez refletir sobre as

diferenças e semelhanças da identidade jornalística espanhola e peruana. Hoje, comparar

jornalistas da América Latina com seus colegas da Espanha causa-lhe graça.

“Aqui no Peru, tem-se uma imagem do jornalista como alguém que tem hora de

entrar no trabalho, mas não tem hora para sair dele. Achei que era igual no mundo todo, mas

em Madri, não, os jornalistas podem ir para casa no fim da tarde, sem complexo de

                                                                                                               139 As matérias que Rocío La Rosa realizou durante o Programa Balboa estão nos anexos.

138    

escravidão que depositam em nós. Lá, ninguém diz que você é um mole, um vagabundo por

trabalhar menos e ter qualidade de vida.”

Ela entende melhor o Peru, não só pela rede de jornalistas na América Latina, mas

pelos colegas espanhóis de 2007. Considera a todos uma rede de amigos, que lhe abriram a

mente e lhe aclararam a missão que tem como jornalista. Sente menos diferença entre os

países da América Latina e entre os cidadãos daqui com os da Europa.

Há problemas locais e globais e gente parecida em toda parte que Chio viveu e

conviveu. Ela não sabe se mudou sua maneira de ser, mas lhe tocou o afã que as colegas de

redação tinham por ela em Madri. Sentia que estavam todos pendientes de ella.

“Entre nós, latino-americanos, até as diferenças são interessantes, porque não se

ensina isso nos livros de história. Vamos percebendo isso nas conversas, nas trocas de

vocabulário e expressões e na história de cada um. Achava que a corrupção era algo crônico

somente do meu país. Mas conversar com vocês mostra que isso é um problema em larga

escala.”

“Sobre os europeus, pode-se pensar que um espanhol de classe média possa ter

uma vida melhor que um peruano médio. Mas ter uma relação com eles me mostrou que

temos as mesmas preocupações. Os espanhóis estão preocupados em pagar as contas no fim

do mês, estão até o pescoço com a hipoteca do imóvel, não podem sair sempre para comer em

restaurantes, trazem a comida de casa para almoçar no jornal... Ver que eles têm limitações

econômicas como nós me fez admirá-los mais, nos aproximou. Meus amigos dizem que

querem visitar o Peru, estou ansiosa mas eles nunca vêm... Me parece incrível ter amizades

tão próximas assim.”

A volta ao Peru lhe foi muito difícil. Apesar de seis meses em Madri terem passado

muito rápido, foram muitas vivências acumuladas. Temia voltar na mesma, ou que talvez

pudesse ficar em Madri e tentar outra vida.

“Sentia-me uma estranha em Lima, na minha própria cidade. Estava acostumada

com o transporte e as ruas de Madri, meus amigos e coisas de lá. Voltar a Lima foi como

recomeçar tudo de novo, mas com todas aquelas experiências somadas. Ao conversar com o

Balboa peruano que está agora em Madri, ele também esta com essas dúvidas, não quer

voltar. Eu lhe disse que lhe entendia perfeitamente.”

139    

4.7.5 Laura Guzmán

Laurita, mexicana, era uma das minhas melhores amigas em Madri. Ria fácil das

minhas piadas, ou melhor, entendia-as, com os duplos e triplos sentidos que as narrativas

cotidianas de nossos países podem ocultar.

Assim como eu, trabalhou na Agência EFE como repórter. Também cultivamos uma

relação nos bares em que nos encontrávamos com os outros Balboas, nas danceterias de

música eletrônica, parecidas às dos nossos países, ou esperando o Buo, ônibus da madrugada,

frente ao prédio do Correio de Madri.

Custou um pouco a Laura acostumar com o trabalho na EFE, porque era bem mais

lento que a rotina da rádio no México. “Tudo era muito tranquiiiiiilo, só às vezes se corria um

pouco, e aí vinha a calmaria novamente. No México, eu estava acostumada a fazer as coisas

rápido, por isso chegava à EFE e logo perguntava o que tinha de fazer. E não tinha nada.

Acostumar com esse ritmo de trabalho me custou um pouco. Mas no final aprendi e aproveitei

muito.”

Contudo, a agência lhe proporcionou fazer entrevistas internacionais que nunca

imaginara. “Finalmente, a agência confiou em mim para fazer grandes entrevistas. Com John

Travolta foi genial! Isso me dejó un buen sabor de boca.”

Os amigos Balboas compensaram a falta dos amigos mexicanos. O mais difícil era

estar longe de minha família. Los extranaba muchísimo. Nesse momento, o venezuelano

Pedro Pablo lhe ajudou muito. “Não queria voltar a casa em Madri, mas quando me sentia

mais triste, o Pepe sempre tinha palavras de alento e aquele abraço que sempre faz falta. Ele

sempre estava pendente de mim.” Com Pedro Pablo, Laura aprendeu a escrever textos

opinativos, que pratica hoje nas revistas do grupo de comunicação onde trabalha.

Laura ressalta que a amizade de todos Balboas foi o mais importante que trouxe da

Europa. “Trago todas as lembranças que fiz com vocês, viagens, passeios, vivências, isso é o

140    

mais importante. Depois de anos, a amizade continua, e estou segura que vai seguir, e isso é

o que dá mais satisfação.”

Além disso, ter estado na Agência EFE de Madri fez com que os colegas de

jornalismo no México lhe valorizassem mais. “Ela foi à Espanha e conseguiu vencer, então

pode fazer as coisas aqui”, imaginando como veem sua identidade profissional.

4.7.6 David Santa Cruz

David Santa Cruz vive em mundos paralelos. Pode citar vários refraneros populares

mexicanos, frases de caminhão ou piadas de duplo sentido. E no momento seguinte, citar

literatura russa, música clássica e budismo. Esse mexicano meio difícil de entender, mas fácil

de se apegar foi o quinto elemento a viver em meu apartamento em Madri, após sua república

de estrangeiros fechar. Bom cozinheiro, meio filósofo, David parece um jornalista à moda

antiga, aqueles viscerais que sabiam um pouco de tudo apenas porque queriam entender o

mundo.

Antes de participar da rede Balboa, sua vida estava monótona, ou como diz ele,

rotineira, tanto profissional como pessoalmente. Dependia extremamente do trabalho, ou

melhor, o trabalho dependia dele: doze horas em uma redação, com atividades pessoais e

familiares apenas em alguns fins de semana. O rotineiro começava a tornar-se frustrante, pois

não era o jornalismo nem a vida que David queria ter.

Sentiu-se emocionado quando convocado pelo programa Balboa. Tinha muitas

expectativas, como abrir um novo caminho na sua vida. “Tinha ânimo de estudar também,

mas, para ser honesto, fui para la fiesta. Afinal, estava de férias após anos sem descanso. E

claro, com a emoção de estar na Europa, um objetivo de vida de estudar no estrangeiro.

Aprendi a me deixar levar pela vida, sem nadar contra a corrente. Adaptar-me ao

imponderável da vida. A ver lo que pasaba allá, entonces.”

141    

Para conseguir casa, complicou-se um pouco. Teve que viver de favor com alguns

Balboas, o que afinal lhe integrou a todos. Aproximou-se mais de Mario Alberto, colombiano,

quando da morte do irmão dele. “Eu dormia na sala, e Mario chegou pedindo o espaço para

falar com sua família. Ele me abraçou e ambos começamos a chorar. Ofereci-lhe minhas

economias (as únicas que fiz em minha vida), para que pudesse pagar o voo à Colômbia. Isso

foi muito forte, e me fez retomar contato com minha própria casa.”

Entendeu que nem tudo era trabalho, devia relaxar um pouco e valorizar seu tempo

livre. “Voltei a formar uma família. Podia contar com todos os irmãos Balboas. Fiz primos,

amigos estrangeiros, da outra república em que vivi.”

Profissionalmente, percebeu que no México tinha se convertido em um canal de

transmissão, perdendo a voz narrativa que deve ter um jornalista. Decidiu mostrar quem era

em Madri pelos seus textos.

O texto mais marcante que David escreveu na Espanha foi sobre mercenários.140

“Uma matéria de quatro páginas é muito difícil de publicar. Ver uma equipe espanhola

trabalhar em conjunto para meu texto, de um estrangeiro, me marcou. Senti que vivia uma

experiência diferente, acho que isso foi o clímax do Programa Balboa para mim.”

Cumpriu 30 anos na data da reportagem, quando fez sua avaliação da vida até então.

Retornava ao México como correspondente, editor e com melhores condições financeiras.

Parte de seus sonhos estava cumprida. O que restou de 2007 também lhe foi extraordinário.

Começou viajando a Madri e terminou o ano na Guatemala. “Isso significou muito a mim,

porque como mexicano não temos muito conhecimento sobre América Latina, então ter

cruzado Belize e chegar a Tikal, na Guatemala, foi um processo de aproximação pessoal com

o continente, com a América Central, buscando minhas raízes latino-americanas.”

Muita coisa mudou na vida de David Santa Cruz depois do Programa Balboa.

Percebeu que podia fazer jornalismo em qualquer parte do mundo. As conversas com Guido

Bilbao, o Balboa argentino que vive no Panamá, lhe fizeram ver que o mundo não lhe fecharia

a porta se ele não o permitisse. “Uno es lo que quiere, el destino liberta a uno y que no hay

que negarse nada. Se as coisas não funcionam na revista onde estou, há outras revistas na

cidade. Se não, em outros estados do México. E se não, em outro país do continente, e se não,

em qualquer parte do mundo.”

“É como se estivesse em um quarto com a porta aberta, voltada para a rua. Você

pensa: isso pode ser bom, mas já conheço bem aqui, onde estou, e talvez lá fora não seja tão

                                                                                                               140 As matérias que David Santa Cruz realizou durante e após o Programa Balboa estão nos anexos.

142    

bom. Mas quando se cruza a porta, derruba-se os muros, dá-se conta que há outra rua, e outra

depois dessa, outra casa, outro parque, coisas que não se via estando sentado dentro do

quarto”.

4.7.7 Santiago Torrado

O colombiano Santiago Torrado e eu nos conhecemos em trânsito. Conversamos pela

primeira vez em San José, Costa Rica, para o segundo encontro do Programa Balboa, com

mais de 200 jornalistas do continente, em 2010. Sorridente, pequeno, discreto e simpático, o

bogotano já estava planejando partir novamente da Colômbia. A primeira fora em 2006, na

sua edição do Programa Balboa. Agora, seria para o México, com um contrato de editor da

mesa latino-americana da Associated Press debaixo do braço e nenhuma ideia do que iria

acontecer na cabeça.

E assim Santi se foi novamente. Vimos-nos novamente no México, em 2011, há

poucos meses de sua chegada ao D.F. Ficou incomodado por minha namorada e eu não

ficarmos em sua casa, uma maneira bem colombiana de demonstrar amizade. Nos encontros

seguintes e nas conversas posteriores por Skype, fomos recriando seus passos e sonhando seus

planos.

Estava bem na Colômbia, trabalhando com jornalismo internacional na revista Semana,

mas se sentia estagnado, chegado ao limite das possibilidades da revista. “No jornalismo

colombiano, não se viaja muito para cobrir temas internacionais, por falta de verba de

produção e falta de interesse dos editores nos temas da América Latina.”

Santiago não tinha muitos desafios. Já em Madri, onde começou a trabalhar na revista

Cambio, em 2005, sentiu-se um estagiário. No início, pediam-lhe coisas pequenas, achava que

não lhe dariam espaço. Mas os espanhóis foram lhe ganhando confiança e as coisas

143    

melhoraram. “Como meu interesse era voltar como correspondente, resolvi ficar na revista,

ainda que com um trabalho leve demais, porque eu podia garantir bons contatos.

Após retornar à Colômbia, trabalhou dois anos para Cambio, escrevendo sobre

Venezuela, Cuba, Argentina e Paraguai, praticamente sobre toda América Latina.141 “Voltei à

editoria de Internacional da revista Semana, notei como aumentaram meu poder de análise e

contatos com especialistas latino-americanos graças ao Programa Balboa.”

“Para isso a rede Balboa me serviu uma barbaridade, desde consultas mais bobas até

os contatos para entrevistados mais importantes. Quando viajava, a rede me servia de apoio,

era fundamental. Tornei-me um tipo de especialista em Venezuela, graças ao colega Balboa

venezuelano que morava comigo. Na Espanha, fui me especializando em Europa e em

América Latina, discutindo e consultando com um colega da revista.”

Santiago consolidou a rede de vínculos e de confiança quando estava na Espanha e a

rede profissional e de contatos quando retornou à Colômbia. “Éramos 20 pessoas e o mais

valioso para mim foi, de longe, a rede de gente da América Latina. Com o venezuelano foi

ótimo, éramos amigos, moramos juntos e aprendi muito com ele. Mas era maravilhoso com

todos Balboas, porque aprendi com eles, pois traziam conhecimentos especiais. Hoje, eu me

esforço para ajudá-los e eles fazem o mesmo. Nós fazemos não só porque somos amigos, mas

porque fazemos sem nenhuma obrigação uns sobre os outros.”

Percebeu o diferencial do Programa Balboa, uma rede de confiança e de afetos. Para

Santiago, um jornalista pode conseguir o contato que for, ligando para colegas de outro jornal.

Para isso não necessita de vínculos.

“A amizade muda o contato da reportagem. Porque quando o contato sabe como você

pensa, conhece sua tendência, em que você confia, você pode perguntar qualquer tipo de

coisas, como mostrar o resultado de entrevistas para saber se estão boas. Isso te dá um

acesso a uma fonte incrível de conhecimento, é maravilhoso. Nessa rede, a gente alcança um

lugar muito particular. Se você necessita mais que um cientista político ou social famoso, a

rede te possibilita falar com alguém bem afinado no tema que procura.”

Santiago transformou sua percepção graças ao Programa Balboa. “Antes, eu

reclamava quando escrevia sobre América Latina. Hoje, percebi que o importante é produzir

com qualidade. Afinal, dezenas de jornalistas podem escrever sobre lugares exóticos, pois

viveram na região, falam a língua e podem fazer algo melhor que nós. Entendo que podemos

                                                                                                               141 As matérias que Santiago Torrado realizou durante o Programa Balboa estão nos anexos.

144    

fazer o mesmo na América Latina, porque ainda há temas inexplorados que podem ser bem

cobertos pelo jornalismo. Isso é maravilhoso, hoje sou um latino-americanista convicto.”

Até então, na cidade do México, falta-lhe restabelecer a rede social que tinha na

Colômbia. Mas a rede Balboa também lhe ajudou nesse aspecto. Belén, Balboa colombiana

que viveu no D.F., deu-lhe conselhos valiosos. Com David Santa Cruz, Balboa chilango,

encontra-se regularmente, para debater os rumos do jornalismo revisteiro e literário, temas

que adoram. “A rede Balboa é muito extensa, consegue-se vínculos e cada ano ela vai

crescendo. Faço parte de algumas outras redes. Mas a Balboa é melhor pela reciprocidade,

me importo com isso.”

A rede Balboa é diferente para Santiago por ser mais profunda graças às amizades. A

rede se retroalimenta, refazendo contatos e criando pontes. “A rede vai se tecendo, se

retroalimentando. Em dez anos, vai ser uma agenda de contatos superimportantes, quase

uma comunidade.”

Ele participou de outras redes de jornalismo como a FNPI142, que oferece oficinas

curtas a jornalistas da América Latina. Santi diz que redes como essa são importantes, pois há

valor em compartilhar contatos. “Mas nenhuma oficina de uma semana vai te mudar. Com os

Balboas, trocamos informações até hoje. Tudo isso vai se alimentando, inteirando-se das

pessoas que fazem parte da rede, gerando uma sinergia entre os integrantes, ligações que são

supervaliosas.”

4.7.8 Eswin Quiñónez

Aos 23 anos, Eswin Quiñónez foi ansioso à Espanha, pois nunca tinha viajado para tão

longe, nem havia trabalhado em veículos de comunicação tão grandes quanto os madrilenhos.

                                                                                                               142 Fundación Nuevo Periodismo IberoAmericano.

145    

Foi prevenido por uma tica, a costarriquenha Melissa, no momento da entrevista de admissão

à rede: “Ela me assustou um pouco ao início, dizendo que talvez não me fizessem caso na

Espanha.

De fato, aconteceu. O jornal diário que Eswin foi designado não quis nenhum

jornalista Balboa. Então ele ficou um mês sem trabalhar. Sentiu-se inútil e suas poucas

expectativas caíram ao chão. “Enquanto todos do apartamento em que vivíamos dividiam suas

experiências dos melhores veículos da Espanha, como El Mundo, EFE e Europa Press, eu

não tinha histórias para dividir. Até adoeci, deprimido.”

Após um mês esperando, entrou na revista Cambio, junto à Erika Montenegro, Balboa

brasileira. O guatemalteco e a brasileira foram se envolvendo nas seções de menor

competição com os espanhóis: gastronomia, cultura, perfis e veículos. Com isso, obtiveram

satisfação ao publicar, pois finalmente eram notados graças aos novos olhares que traziam

para temas comuns. Do zero, chegaram até a capa da revista. “Não precisávamos ser

luminárias, super-jornalistas, para fazer coisas bonitas. Nem produzir para receber o

reconhecimento dos outros, mas para nós mesmos, em uma conjugação de suficiência

profissional com pessoal.”

Eswin aprendeu muito sobre a América Latina dentro do apartamento que vivia em

Madri. Conversando sobre Colômbia, Brasil, Equador e México com los chicos. “Pela

nostalgia, dava muita vontade de falar dos nossos países, então conheci muitos países pelos

seus olhares. Quando fui ao Peru, vi a Lima dos olhos de Rocio. Sei que verei o Brasil de

Edson quando viaje para lá. Isso é muito bonito.” De fato, viajou ao Rio e a São Paulo e se

sentiu à vontade.

Gostou um pouco de todos Balboas, mas admirava mais os que tinham paixão pelo

jornalismo. “Fui moldando a minha imagem de jornalista pelos amigos que admirava.” Já

com os espanhóis, teve um choque ao início. “Como latino-americano, vim com a imagem de

espanhóis invasores e colonialistas. Mas fui conhecendo-os, trabalhando com eles, comendo

com eles, consumindo o que consumiam, e isso foi mudando alguns preconceitos culturais.

Afinal, as sociedades vão caminhando, os preconceitos foram caindo à medida que fazia

amizades com as pessoas. Isso mudou meus conceitos.”

Foi difícil acabar uma experiência enriquecedora em tantos aspectos como a rede

presencial. “Mas saía do parêntese de minha vida e voltei a ver como estava meu país e meu

povo. Os Balboas falavam bem e interpretavam bem seus países. Isso me faltava. Viajar me

ajudou a mudar o ritmo, entender minha gente, deixar de achar minha cidade o umbigo do

mundo. Não quis mudar de cidade, mas mudar a minha cidade. É bem diferente.”

146    

“Quando voltei, fiz coisas mais pensadas e com calma. Isso me serviu um montão. O

vazio que vivi me serviu para encontrar caminhos. Vi que não era tão bom assim, que devia ir

com calma.”

“Fiz uma reengenharia pessoal. Desacelerei-me, pus os pés no chão. Profissionalizei-

me. Saí de casa, mas reforcei o laço com a família. Fiquei mais responsável com meus amigos

ao redor. Ministrei oficinas. Eu mesmo terminei a faculdade. Agora tinha um norte. Até hoje,

após seis anos, ainda reflito o que aprendi em seis meses.”

4.7.9 Diálogo com Aires Vaz, diretor do Programa Balboa

Finalmente, voltava a Madri. Desta vez, tinha ido apresentar um artigo em um

congresso sobre narrativas audiovisuais da América Latina. Mas não podia deixar de

encontrar os novos companheiros Balboas de 2012, os velhos amigos jornalistas espanhóis da

Agência EFE de 2007 e Aires Vaz143, o diretor do Programa Balboa e um dos tutores da

minha jornada internacional.

Após um caloroso abraço em frente ao Hotel Zurbano, onde minha história com os

Balboas teve início, Aires começou perguntando como eu estava, também sobre a Helena

Fruet, nós dois, os delegados representantes do Programa Balboa no Brasil. Disse que teria

que conversar um par de cosas sobre os rumos do programa. Ao chegar em um restaurante

andaluz - o Aires sempre paga os serviços prestados pelos Balboas com atenção, carinho e um

bom restaurante – Aires desatou a desabafar.

4.7.9.1 Desconstrução do Programa

Em 2010, Aires assumiu uma série de responsabilidades após o falecimento de Juan

Pablo de Villanueva, consagrado jornalista, bem sucedido empresário espanhol e criador do

PB. Entre elas, manter a missão, os objetivos e as linhas de financiamento do Programa. Para

                                                                                                               143 Aires Vaz é queniano, naturalizado espanhol, diretor da Universidade de Navarra, em Pamplona e diretor do Programa Balboa para Jovens Jornalistas Ibero-Americanos.

147    

isso, tomou a polêmica decisão de transferir o projeto à Fundação Telefónica, mantenedora

financeira desde o início, há 10 anos. Por isso, Aires está sendo processado pela Fundação

Diálogos, até 2011 a gestora do Programa. Segundo Aires, o motivo foi que os objetivos do

Programa estavam sendo desvirtuados pela ONG, que passa dificuldades financeiras. Um dos

pilares dos Balboas, a criação de uma rede de cooperação entre jornalistas sem fins lucrativos,

estava sendo assediada para divulgar eventos e produtos culturais promovidos pela Diálogos.

Outras acusações, mais sérias, versam sobre o desvio de verba destinada ao Programa para o

saneamento de gastos da Diálogos.

Esse é um dos fardos de Aires Vaz, acusado de haver roubado know-how da rede pela

Diálogos. O outro é adaptar a gestão personalista que tem feito do Programa Balboa aos

moldes da Fundação Telefónica. Com o apoio do diretor geral de comunicação da empresa,

Gonzalo Abril, Aires conseguiu a autonomia da gestão do Programa e a verba necessária para

mantê-lo. Porém, enfrenta vozes dissonantes por parte da Telefónica, de outros diretores que

não entendem por que investir em um Programa de latinos em plena crise espanhola, por que

não podem intervir ou por que não lhes revertem benefícios diretos. Diretos, ressalte-se bem,

pois até 2012 são 240 jornalistas latinos como membros do Programa Balboa, contatos

valiosos na imprensa latino-americana, que conhecem a fundo a economia, política e

sociedade espanholas, além da própria Telefónica.

4.7.9.2 O Arauto em descrédito

O ano de 2012 foi duro a Aires Vaz. Sua mãe faleceu, sua mulher adoeceu e um de

seus quatro filhos sofreu um acidente automobilístico. Ficou sem receber pelo trabalho que

executa pelo Programa Balboa quando da transição entre fundações, e chegou a emprestar

dinheiro a balboas quando os entraves burocráticos atrasaram as bolsas em quase dois meses.

Porém, o que mais parece lhe incomodar é a falta de comprometimento de alguns Balboas da

edição 2012.

“Algunos balboas no hicieron una sola pregunta a los conferencistas desde el inicio

de las clases. Y son periodistas. También les pedí informes de evaluación de las conferencias,

a saber si llamo profesionales distintos para las próximas conversaciones. Pero casi nadie

me lo ha entregado, yo no sé más como pedírselas.”

O desinteresse pelas aulas soa mais como consequência de uma quebra de confiança

entre Aires e os balboas de 2012. E como hipótese desta tese, a identidade entre jornalistas em

rede se dá na troca de elementos culturais, se permeada por processos humanos, afetivos e

emocionais bem sucedidos.

148    

O rompimento desse laço parece ter começado logo no início da edição 2012, em

fevereiro. Com a incerteza de que o programa fosse arrancar, Aires Vaz fez um anúncio

bombástico aos jornalistas latinos recém-chegados à Europa: nenhum deles iria trabalhar na

imprensa espanhola. Devido à crise dos veículos, que têm realizado cortes de centenas de

profissionais, e pelos entraves com as mantenedoras, os balboas fariam sua própria agência de

notícias, entre si. “Ya lo tenía todo, oficina, computadoras, por eso les pedí que realizaran un

proyecto de agencia para entregarme en dos semanas.”

Se as dúvidas já existem na experiência Balboa, como se vai ser exitosa a experiência

de abandonar a rotina, viver no exterior, trabalhar na Europa e conviver com dezenas de

desconhecidos, a derrocada da principal atração da bolsa, trabalhar em um veículo de

imprensa estrangeiro, deve ter feito água nos sonhos de muitos.

“Saímos a pensar no que poderíamos fazer durante seis meses que não fosse um

simples jornal laboratório na internet. Isso gerou alguns atritos entre nós, como quem seriam

os editores, qual projeto seria aceito, quem não entraria nessa nova proposta já de saída. De

qualquer modo, trabalhamos durante duas semanas para cumprir o que Aires pedira”,

admitiria Flávia Mantovani, Balboa brasileira de 2012, 30 anos, mineira, jornalista da Folha

de São Paulo.

Na data combinada para o começo da agência, outra surpresa: Aires anunciou que sim,

os jornalistas trabalhariam nos veículos de comunicação. Alegria para alguns, consternação

para outros.

“Aires afirmou em um momento que não tínhamos outra opção. De repente, do nada,

contradisse tudo e anunciou os veículos e os jornalistas que iriam trabalhar neles. Perguntei

a ele, em separado, o que estava acontecendo. Ele me disse que tinha feito aquilo para

confirmar quem estava realmente disposto a enfrentar as dificuldades do Programa em

2012”, diz Flávia.

Essa afirmação surpreendente é confirmada por Aires. “Quisiera saber quién estaba

dispuesto a seguir en el Programa Balboa, pese las dificultades. Les pregunté un par de veces

si pensaban en desistir, volver a sus países.”

Esse não é, efetivamente, o comportamento normal de Don Aires Vaz, desafiar os

integrantes da rede Balboa. Geralmente, ele é tido no programa como o pai de um grupo de

jovens estrangeiros em um país distante. Parece que o estresse dos últimos anos fez do brujo,

como alguns o chamam por saber tudo sobre todos nós, mais exigente com seus aprendizes.

Mas o poder de Aires de adivinhar o que passa na cabeça dos balboas parece estar

falhando neste ano. Ao menos o poder de diálogo e identificação com seus pupilos. Aires

149    

sempre teve um ar de mistério em torno de si. Talvez pela sua origem, um nigeriano radicado

na Espanha há 40 anos, filho de hindus nascidos em Goa. E ainda mais porque é adepto de

uma polêmica facção da igreja católica, a Opus Dei.

Na Espanha, a Opus não é um bicho de sete cabeças, como vista no Brasil, e sim mais

uma vertente das várias que compõem a sociedade, economia e política espanholas. Seu

método de cooptação é através da conquista, seja pelo amor, pela caridade, pela fé ou pela

luxúria. De fato, os Balboas são tratados como príncipes, praticamente não têm cobranças

durante o intercâmbio e recebem toda a atenção possível por parte de Aires. Por isso, a

centralização da rede social em torno de um indivíduo é um dos motores do Programa Balboa.

A quebra de confiança entre Aires e os jornalistas, portanto, dissolve o canal de diálogo que

gera a identidade e a troca cultural entre os participantes.

 

4.7.9.3 Dissolução dos afetos

Como se já não fosse suficiente, houve mais um tropeço no funcionamento do

Programa Balboa. Pela transição do projeto para a Telefónica, as bolsas salário dos jornalistas

atrasaram quase dois meses. Isso desestabilizou praticamente todos os integrantes e gerou

reações distintas entre eles.

A América Latina tem diferenças socioeconômicas gritantes, e isso reflete nas ações

dos Balboas. Tradicionalmente, os centro-americanos ou os sul-americanos de países mais

pobres enviam parte da bolsa às suas famílias, já que o euro vale muito mais que suas moedas

locais, além de alguns deles serem arrimos, mas terem aberto mão de seus salários pela

experiência em rede. Outros, como os brasileiros, mexicanos e argentinos, usualmente levam

economias para precaver-se ou mesmo para gastar na Europa.

Essa tendência de gerar dois grupos graças à economia dos países se acirrou com a

demora da bolsa. Os centro-americanos ficaram efetivamente em maus lençóis, tendo de pedir

dinheiro emprestado aos colegas latinos ou mesmo aos ex-Balboas, em seus países de origem.

Outros, mais resguardados financeiramente, puderam esperar a situação se regularizar, o que

foi visto pelo grupo como abstinência de um tema pertinente a todos.

“Não foi nossa intenção ofender ninguém oferecendo dinheiro, mas também sabíamos

que a culpa não era do Aires. Por isso, nos abstivemos das discussões mais calorosas, para

não piorar a imagem de ‘brasileiros ricos e alienados’, o que efetivamente não somos”,

confessa Flávia Mantovani.

O fato é que parte do grupo se revoltou contra Aires Vaz, cobrando-lhe ferozmente

pela bolsa e por clareza no que estava ocorrendo. Alguns quiseram falar diretamente aos

150    

responsáveis da Fundação Telefónica, não respondendo mais a Aires. Isso foi um golpe

mortal na confiança dele para com o grupo. “Hace casi dos años lucho para mantener el

programa abierto y vivo. Estoy gerenciando sólo decenas de cosas, enfrentando demandas

judiciales y burocracia. No les puedo decir todo a los balboas, tampoco compartir todas las

dificultades. A algunos de ellos, cuando se exaltaron demasiado, les sugerí que se fueran de

España.”

4.7.9.4 Carta à Telefónica144

“São Paulo, 7 de diciembre de 2012

Al señor Luis Abril, representante del grupo Telefónica

El Programa Balboa solidificó mi carrera internacional y mi contacto con el continente

latinoamericano y España.

He sido becario en 2007, donde trabajé en EFE Televisión. He tenido acceso a métodos

profesionales españoles, que me auxilian mucho hasta hoy, además de la experiencia de entrevistar

grandes personajes de la cultura contemporánea y probarme como periodista en el extranjero. El

convivio con los compañeros latinos me hizo entender mejor mi continente y como somos parecidos

entre nosotros. Además, comprender como se dan las relaciones comerciales, políticas y culturales

entre España y América.

Hoy en día, soy profesor de periodismo y gracias a la experiencia con el Programa Balboa

puedo repartir con jóvenes estudiantes, replicando el conocimiento que he adquirido. Soy corresponsal

freelance de diarios en Colombia, Perú, México y España. He sido invitado a trabajar en la Agencia

EFE de Río de Janeiro. Y gané el premio Avina de periodismo sustentable en 2008. Con ello, produje

un programa de TV sobre jóvenes latinos y empleo, “NósOtros”, grabado en cuatro países (Argentina,

Brasil, México y Guatemala), gracias al trabajo en rede de los compañeros Balboas.

En suma, afirmo que el Programa Balboa ha sido la mejor experiencia profesional y personal

de mi vida y me ha cambiado para siempre.

Saludos

Edson Capoano, Brasil”

                                                                                                               144 Carta a Fundação Telefónica. Em 2009, na iminência da ruptura do Programa Balboa com a Fundação Diálogos, o diretor Aires Vaz pediu que os membros da rede escrevessem a importância do Programa à patrocinadora Telefônica, para que seguisse financiando a rede. Alguns relatos ressaltam as mudanças nas vidas dos jornalistas latinos.

151    

CONCLUSÕES

Sobre o tema principal da tese, a formação de identidades de jornalistas latino-

americanos em redes sociais, conclui-se que em nenhum dos casos pesquisados (os sete

jornalistas entrevistados) algum processo identitário fora radicalmente transformado ao ponto

de considerá-lo uma nova identidade em comum na América Latina. Entretanto, a pesquisa

permitiu compreender melhor como se formam identidades individuais de latino-americanos,

especificamente as de jornalistas em diálogo glocal, graças a redes sociais presenciais, no

caso desta pesquisa, o Programa Balboa para Jovens Jornalistas Ibero-Americanos. O estudo

dos conceitos teóricos, primeiramente, ofereceu referenciais importantes para compreender os

casos analisados. As entrevistas, por sua vez, possibilitaram entender a concepção de

identidades dos jornalistas Balboas e como eles as atualizaram.

Conclui-se que as narrativas simbólicas dos jornalistas Balboas atualizaram-se de duas

formas principais: através da identidade profissional latino-americana, em oposição à

espanhola e através de identidades pessoais entre latino-americanos.

Primeiramente, através da identidade profissional, os Balboas escolheram a

identidade jornalística como a primeira a ser apresentada para o diálogo com o Outro, seja

este espanhol ou latino-americano. Inicialmente, o interlocutor não era o colega jornalista

latino-americano do Programa Balboa, mas o jornalista espanhol do veículo em que os

entrevistados trabalharam. Profissionalmente, o diálogo com a identidade jornalística dos

espanhóis foi mais importante do que o diálogo profissional com os colegas latinos. Isso foi

surpreendente para esta pesquisa, pois se esperava que a identificação profissional entre os

latino-americanos ocorresse antes e seria mais importante que o diálogo com os europeus. As

dificuldades encontradas na adaptação nas redações espanholas ressaltaram o interesse dos

Balboas em reconhecerem-se como jornalistas competentes e serem vistos como tal pelos

espanhóis.

Rocío la Rosa ressaltou na entrevista a importância de ser respeitada pelos colegas

espanhóis. Ser ouvida pelo editor e ter matérias publicadas lhe deu muita confiança. David

Santa Cruz também relacionou sua identidade profissional ao sucesso na revista Cambio, e o

número de páginas que conseguiu para uma matéria lhe confirmou o sucesso em seus

objetivos. Esses exemplos demonstram como a identidade profissional dos Balboas

entrevistados necessitava de elementos externos para se firmar como esperavam. Além disso,

a identidade individual vem em primeiro lugar nessa disputa por espaço nas redações; em

152    

segundo lugar, vem a identidade latino-americana, em quase todos casos um temor de ser

subjugado por não ser espanhol ou europeu. A reafirmação da identidade latino-americana

após a vitória nas redações aumentou quando o interlocutor fora um espanhol, e não um latino.

A segunda componente identitária dos jornalistas Balboas se deu pelas relações

pessoais entre os sujeitos. Se a identidade costura o sujeito à estrutura social, como esclarece

Stuart Hall (2006: 12), os Balboas se sentiram mais identificados entre si, como latinos, pelo

vínculo e pela confiança que geraram em suas relações pessoais. A estrutura social da rede

presencial, como a possibilidade de morarem juntos e se apoiarem durante a experiência,

permitiu que os Balboas se sentissem mais latino-americanos graças às relações pessoais. A

maioria dos Balboas entrevistados afirmou que voltou à América Latina mais interessada em

falar sobre o continente em suas tribunas jornalísticas. Essa intenção não veio, entretanto, da

experiência profissional, mas graças ao diálogo e à geração de vínculos com os demais

colegas Balboas. Foi outro resultado surpreendente para esta pesquisa, pois se esperava a

construção de uma narrativa latino-americana mais voltada à ideologia, política e

autodeterminação do continente.

Graças às entrevistas realizadas para a tese, notou-se que o aumento de interesse sobre

a América Latina se deu pelos vínculos de confiança entre os jornalistas. Não foi, portanto,

uma decisão provinda da atualização da identidade profissional, como em uma oposição ao

jornalismo europeu, mas sim pelo interesse pessoal em conhecer melhor a terra do Outro, no

caso, do Balboa latino-americano em quem se confia, e poder contá-la através do jornalismo.

“América Latina é uma questão pessoal”, afirmou o jornalista brasileiro Marcos Todeschini.

“Os mexicanos não se importam com o que acontece ao sul da fronteira. Mas para mim foi

importante viajar com Eswin para Belize”, confessou o jornalista mexicano David Santa Cruz.

Com os colegas latino-americanos, não havia desafios profissionais a serem superados,

mas sim desafios emocionais e afetivos, como a distância de casa e a insegurança de se

trabalhar no exterior. A identidade latino-americana foi apresentada pelos Balboas em um

segundo momento, através do apoio em que uns ofereceram aos outros, como compreendiam

as dificuldades dos colegas e como sentiam e pensavam de forma semelhante. Os jornalistas

Balboas reafirmaram a identidade latino-americana através do vínculo e da afeição de

compreender o Outro, seu semelhante, jornalista, latino-americano e ser humano.

Entretanto, houve recombinações entre os dois modelos de identidade, a profissional

e a pessoal. Rocío La Rosa, do Peru, criou relações de confiança com as jornalistas

espanholas da redação em Madri. Santiago Torrado, colombiano, voltou mais disposto a

contar histórias latino-americanas, pois percebeu que ninguém podia fazê-lo melhor que os

153    

próprios latinos. Helena Fruet “vomitava português” junto ao jornalista brasileiro que a

acompanhou na edição de 2007, após ter sido subjugada por senhorios espanhóis e não sentir

apoio dos colegas latinos em um momento de conflito.

Laura Guzmán aprendeu a redigir textos opinativos graças à proximidade que teve

com Pedro Pablo Peñaloza, jornalista venezuelano com quem dividia o apartamento e que a

acolheu em momentos de solidão. Eswin Quiñónez, da Guatemala, aprendeu a ser mais

humilde e a ir com mais calma nos objetivos profissionais, graças aos freios que a redação

espanhola lhe impôs. Junto a Erica Montenegro, Balboa brasileira a quem ensinou escrever

em espanhol, Eswin criou uma estratégia de publicação e uma relação de apoio mútuo na

revista Tiempo.

Ao longo da experiência em rede, porém, os signos identitários foram se adequando,

de narrativas individualizadas para textos mais dialógicos. As narrativas utilizam tanto as

experiências individuais quanto as produzidas coletivamente nas trocas entre os Balboas. Ao

conhecer melhor o interlocutor e os outros contextos na América Latina, flexibiliza-se a

identidade individual. Logo, as identidades são narrativas que, ainda que apresentadas como

individual pelos seus portadores, foram elaboradas a partir dos fragmentos provindos do

exterior, coletivamente.

Assim, os jornalistas Balboas perceberam que sua própria identidade profissional não

precisaria ter um sentido único, uma narrativa estanque sobre o que é ser jornalista ou como

se deve viver em uma cidade latino-americana. A experiência em rede lhes deu novos signos,

sentidos, textos e narrativas, com os quais puderam atualizar suas próprias identidades.

Eswin Quiñónez mudou seu texto identitário profissional, afirmando que poderia ser

um jornalista mais calmo e seguro, sem ser valorizado pela rapidez ou produtividade que o

mercado guatemalteco lhe impunha. David Santa Cruz entendeu que poderia buscar outras

oportunidades em outros jornais, cidades ou até mesmo países, se soubesse o que quer e que

jornalismo pretende realizar. Rocío la Rosa voltou a Lima criticando a exploração do

jornalista nas redações e luta para ter uma vida mais equilibrada profissional e familiarmente.

Helena Fruet ganhou mais confiança ao ver as dificuldades enfrentadas pelos colegas

jornalistas em áreas de conflito, como Nicarágua e Colômbia, e mudou o rumo da carreira.

Considerando as influências tradicionais sobre a identidade apresentadas por Moragas

Spà (1988), os Balboas exerceram principalmente as variantes geopolítica e a linguística

para identificar a si mesmos. Eles encontraram nas diferenças entre práticas profissionais

latinas e espanholas, bem como nas relações entre as narrativas nacionais e de identidades

pessoais, denominadores comuns para identificar o que é ser latino-americano, considerando a

154    

diversidade das práticas jornalísticas e as identidades de si mesmos. Com isso, geraram rotina

e rituais sociais com elementos simbólicos combinados, buscando uma narrativa em comum.

A identidade nacional foi, entretanto, a narrativa inicial dos jornalistas Balboas para

dialogarem entre si. No primeiro contato entre si, portaram-se como mexicanos,

guatemaltecos, brasileiros e argentinos, diferenciando-se entre si e em relação aos jornalistas

espanhóis das redações em que trabalharam.

Ainda sobre as influências sofridas pelas identidades, apresentadas por Spà (1988),

outra matriz cultural muito utilizada foi a social, pois houve uma confluência entre a

organização profissional do jornalismo espanhol e a forma de se trabalhar dos jornalistas

latinos Balboas.

As técnicas, formas de relação entre os profissionais e o que se considera jornalismo

ou que é um jornalista são textos identitários gerados nas relações sociais dos jornalistas, em

um processo de oposição. O jornalismo espanhol se baseava mais no signo da difusão, mais

atento à divulgação de fatos e eventos, e a consequente distribuição de textos – alguns deles

bons ensaios, é bom ressaltar – de dentro das redações por meio de jornais, TVs e agências de

notícias; já o jornalismo latino-americano dos Balboas, segundo a identidade profissional

identificada nos seus depoimentos a esta tese, exercia mais o signo da relação, mais afeito à

interlocução que a reportagem dialógica e à experiência callejera que os jornalistas traziam

consigo das ruas da América Latina. Enquanto o jornalismo espanhol pareceu mais narrativo e

descritivo aos Balboas, suas próprias identidades jornalísticas se demonstraram mais

interpretativas, mestiçando objetividade noticiosa com subjetividades individualizadas, deles

próprios, experimentando e aprendendo com novas experiências de vida.

As identidades dos Balboas são narrativas e narradores em movimento, em uma

experiência coletiva de sentir, pensar e agir. Isso colidiu suas expectativas de aprender (quase)

tudo nas redações espanholas, e admitir que o convívio com os demais latino-americanos foi

muito mais frutífero. Foram as narrativas em movimento das experiências Balboas que

atualizaram as lógicas cristalizadas do jornalismo e dos estereótipos fracos sobre América

Latina. Uma narrativa se humaniza na contaminação intuitivo-sintética com a subjetivação. Estar afeito aos protagonistas e à cena que eles tramam demanda um exercício constante de despoluição da consciência racionalista que tudo instrumentaliza. É preciso restaurar a respiração profunda da interação social criadora. (MEDINA, 2003: 141).

O laboratório que se tornaram as ruas espanholas e as repúblicas de latino-americanos

estimulou o signo da relação entre os Balboas. Os jornalistas provocaram e foram provocados

155    

a atos interativos com o meio ambiente e com o Outro, os jornalistas espanhóis e latinos.

Neles, criaram-se outras mediações, intersubjetivas, extrapolando limites e rótulos de o que é

– e se há uma – identidade latino-americana, para o profundo das individualidades,

exacerbadas pela ação comunicativa. “O diálogo com o mundo se manifesta no cotidiano, na

arte e na ciência.” (MEDINA, 2003).

Os Balboas comprovaram ser sujeitos-autores das próprias identidades. E estas

afloraram signos dialógicos graças à desconstrução do autoritarismo unidirecional, seja ele o

jornalismo difusor, seja ele o estereótipo fraco de o que é ser latino-americano. Essa reaproximação do senso comum, ou antes, dos saberes localizados e cotidianos, oferece um outro vigor à prática dialógica da comunicacional e desafia tanto o profissional da mediação quanto o produtor de ciência a pesquisarem novos sentidos em rede. (MEDINA, 2003: 116).

Além das influências apresentadas anteriormente, as variantes históricas explicitadas

por Moragas Spà (1988) também compuseram o texto identitário latino-americano

apresentado pelos Balboas, em contraposição com o jornalismo e os jornalistas espanhóis. À

sombra dos discursos profissionais, surgiram nas entrevistas dos Balboas comparações entre

uma América Latina pobre, desigual e em construção, em oposição a uma Europa vencedora,

eficiente e justa. Nas declarações dos Balboas, ratificados pelos mitos e lendas lembrados por

eles, parece haver um perene acerto de contas entre os dois povos e continentes. De alguma

forma, a Espanha ainda ocupa o lugar mítico de reino da Grande América, ou o centro das

redes sociais contemporâneas, nos textos inconscientes dos Balboas. Vencer em Madri parece

significar, aos Balboas, conquistar a identidade individual na metrópole. Assim, as matrizes

geopolíticas e históricas ainda são muito significativas nos processos identitários dos latino-

americanos, ao menos dos Balboas analisados para este doutorado.

Quanto mais desarticulado o Estado-Nação, mais o texto dos Balboas era marcado da

necessidade de vitória na Europa. Enquanto a brasileira Érica Montenegro (citada pelo

guatemalteco Eswin Quiñónez) e o Mexicano David Santa Cruz buscavam reconhecimento

profissional, a peruana Rocío la Rosa e o guatemalteco Eswin Quiñónez ressaltaram muito a

dor de não serem reconhecidos em suas redações na Espanha. Paralelamente, declararam em

suas entrevistas como suas cidades-natal são desestruturadas e como a corrupção e a

desigualdade os incomodam. De qualquer forma, se em algum momento surgiu neste

doutorado uma menção de uma identidade latino-americana, ela ocorreu em contraposição

com a Europa e Espanha. O que se faz chegar novamente à conclusão de que a identidade

latino-americana se define no espelhamento do Outro, que é, nesta tese, o europeu, em

contraposição, e o latino-americano, pela afeição e influência.

156    

Essa marca histórica parece menor no discurso dos Balboas brasileiros, dada a falta de

relação direta entre a colonização espanhola e o desenvolvimento do Brasil. Em nenhum

momento, tampouco, os Balboas brasileiros mencionaram a colonização portuguesa para

justificar problemas nacionais ou falhas na sociedade brasileira. Porém, também atestaram a

importância de vencerem no mercado jornalístico europeu, da mesma forma que os Balboas

hispano-americanos, com a dificuldade agravante de produzirem em uma língua estrangeira, o

espanhol. Isso indica que as matrizes históricas e linguísticas também definiram elementos

identitários dos Balboas brasileiros, mostrando identidades entre os discursos dos latinos

luso e hispano-americanos.

Reitera-se, portanto, que a primeira atualização identitária dos jornalistas Balboas foi

majoritariamente profissional, e não apenas nacional-territorial, latino-americana: na maioria

dos casos, os Balboas perceberam-se capazes de vencer como jornalistas no exterior, viram

que podiam ser respeitados pelo trabalho que realizavam, que não eram piores profissionais

por serem latinos e que a Europa segue sendo o modelo a ser usado pela América Latina para

compreender a si mesma. Nos depoimentos, fica claro que os jornalistas Balboas se entendem

diferentes dos europeus, mas após a experiência, não se sentem piores profissionais por isso.

Atualizaram suas identidades profissionais com a certeza de que seu modo de fazer

jornalismo é válido no exterior, por isso, continua a ser válido em seus próprios países.

Para manter diálogos, jornalistas na rede Balboa assimilaram signos de relação para

gerar narrativas dialógicas. Semelhante ao encontro cultural da Conquista da América, os

Balboas foram alterando sua própria narrativa assim como os astecas alteravam seus mitos e

ritos a partir das informações novas que os espanhóis traziam consigo.

Até mesmo o ruído simbólico entre as narrativas gerou novos signos dialógicos. O

estereótipo secular do latino-americano indolente, em contraposição ao europeu esforçado,

continuava nas identidades dos Balboas que viajaram a Madri em 2007. Mas o diálogo entre

os colegas latinos e a experiência presencial nos jornais espanhóis lhes mostraram como

trabalhavam em alto nível, atualizando signos tanto para latinos Balboas quanto para os

jornalistas espanhóis com quem dividiram redações. “Fui a países mais desenvolvidos economicamente que a Espanha, como a Suíça e a Suécia, e as pessoas parecem não se preocupar com nada, nem ao atravessar a rua. Um pouco de caos, pelo amor de Deus! (...) Não há espaço para se perder. Quero ir por conta própria, olhar o meu mapa, descobrir meu caminho e meu espaço”. Acima, Marcos Todeschini, Balboa brasileiro, afirmou sua identidade errante latino-

americana como uma pulsão de vida, em comparação à vida da Europa burocratizada. Já a

peruana Rocío teve dificuldades de se impor no jornal espanhol: “Os colegas do jornal

157    

pensavam que éramos estudantes, depois perceberam que éramos profissionais como eles.

Isso foi um contratempo do início, o que me dificultou publicar matérias.” Com Laura

Guzmán, foi o contrário: o trabalho em Madri mais fácil que no México, o que lhe deu

confiança ao voltar para sua redação no D.F. “Tudo era muito tranquiiiilo (sic), só às vezes se corria um pouco, e então vinha a calmaria novamente. Eu estava acostumada a fazer as coisas rápido, por isso chegava à agência EFE e perguntava: ‘o que eu faço agora?’. Acostumar com esse ritmo de trabalho me custou um pouco. (...) Aprendi com os espanhóis a tomar conta do meu tempo, além de trabalhar, trabalhar, trabalhar...”

Os Balboas criaram signos identitários, provindos da experiência de rede presencial,

intersubjetiva, e dos diálogos com outros Balboas e de suas percepções, subjetivas. Como as

narrativas pré-colombianas, os jornalistas equilibraram signos objetivos e subjetivos para criar

suas identidades pessoais e as narrativas coletivas que mantêm o diálogo como o interlocutor

e com o novo. A habilidade de assimilação de signos culturais alheios, contendo elementos

contrários que interagem entre si, está contida nas práticas dialógicas Balboas para

atualização de suas identidades.

O mexicano David Santa Cruz percebeu que podia ser jornalista em qualquer lugar,

graças a conversas com Guido Bilbao, o Balboa argentino que o influenciou: “Somos o que queremos, o destino nos liberta e não se deve negar nada o que ele nos traz. Se as coisas não funcionam na revista onde estou, há outras revistas na cidade. Senão, em outros estados do México. E se não, em outro país do continente, ou em qualquer parte do mundo.”

Eswin Quiñónez também foi influenciado por Guido e pelos demais Balboas, como

com o ímpeto de fazer grandes coisas no jornalismo: “Guido me ensinou a pensar grande com os pés na terra. Mas foi um grupo diverso, alguns davam conselhos, outros, broncas. Nunca me deixaram cair, todos me animaram. Mas achamos similitudes entre nós. Éramos latinos, estávamos em veículos de comunicação diferentes, dividíamos casa e estávamos longe de nossos países.”

Eswin declarou que gostou um pouco de todos do grupo, mas admirava mais a alguns

que tinham mais paixão pelo jornalismo, como os argentinos Chalf e o equatoriano Jorge.

Também a dedicação da Santafesina Sol e da chilena Macarena. A meticulosidade da peruana

Rocío. A persistência da venezuelana Hellen, que ficou em Madri, após o término do

Programa Balboa. “Talvez eles não se interpretem assim, mas no final são as capacidades

que vi em cada um. Fui moldando minha imagem de jornalista a partir de quem eu admirava.”

A noção de contrário fica clara na oposição dos jornalistas espanhóis e redações

madrilenhas com os jornalistas Balboas. O Outro, europeu, foi necessário aos latino-

158    

americanos para confirmar quem são profissionalmente. A identidade dos jornalistas Balboas

foi atualizada pelo desafio de elementos alheios às suas narrativas, como a dificuldade de

interagir com os colegas, a falta de informação sobre os temas vigentes na Espanha de 2007 e

a desconfiança dos chefes de redação perante os jovens latinos que estagiavam nos maiores

jornais da Espanha.

O contrário, menos combativo, pode ser encontrado nas conversas que os Balboas

realizaram entre si fora do trabalho. Santiago valorizou os diálogos com seus amigos

argentino e venezuelano, que o fizeram ver a América do Sul de outra forma. Laura Guzmán

aprendeu a arte da crônica e o jornalismo político com o venezuelano Pedro Pablo Peñaloza,

enquanto este a consolava pela distância de casa. David e Eswin se espelhavam em Guido

Bilbao para serem mais livres e corajosos para enfrentarem novos desafios na carreira.

Após 2007, os Balboas que buscaram novas experiências internacionais – como os

freelances de David Santa Cruz, ou a mudança do colombiano Santiago Torrado para o

México – confirmam uma identidade híbrida, imbuída das características de aventureiro e de

semeador, ou do brasileiro verticalizado, enraizado em uma região, com o brasileiro

horizontalizado, de trânsito livre pelo território, de que tratava Freyre (2011).

O fato é que os jornalistas Balboas, de semeadores e trabalhadores, ou seja, jornalistas

de redações locais, atualizaram suas identidades com signos de aventureiros e de exploradores

(HOLANDA, 2002) graças à rede social presencial de 2007. Identificaram-se com a

experiência globalizada de rede e, quando voltaram aos seus países, buscaram novas vidas,

trabalhos e cotidianos. Essa habilidade de lidar com espaços ilimitados e cenários incertos

projeta o grupo dos exploradores a um mundo ampliado, onde obstáculos se transformariam

em trampolim para seu próprio desenvolvimento.

As determinantes psicológicas que descreve Sérgio Buarque de Holanda (2002) de

ibéricos trabalhadores e exploradores parecem se manter na identidade dos jornalistas Balboas.

O trabalho foi a característica preponderante para a autodeterminação das identidades dos

indivíduos analisados. Enquanto o trabalho fora uma característica identitária determinada em

oposição ao interlocutor, a identidade exploratória parece ter sido desenvolvida individual e

subjetivamente, com cada jornalista Balboa buscando superar seus limites pessoais. O

arquétipo exacerbado nesta tese é o explorador de si mesmo, tal qual é o herói de jornada,

analisado por Joseph Campbell (2007) e utilizado para compreender as jornadas individuais

dos sete jornalistas entrevistados para esta tese.

Já as características horizontais e verticais do povo brasileiro, investigadas por

Gilberto Freyre (2011), parecem apontar características diferentes antes e depois da

159    

experiência de rede Balboa. Como se a verticalidade, entendida aqui como aprofundamento

na complexidade da cultura latino-americana, dera-se através do mergulho na identidade do

Outro, neste caso, no companheiro latino-americano, jornalista Balboa. Assim como o homem

híbrido dos séculos XV, XVI e XVII da América Latina, semeador e educador, hoje nossas

matrizes culturais contêm algo de navegador, de soldado, de jesuíta e de comerciante. Elas

permeiam um caldo cultural comum dos latinos, e não seria diferente com os jornalistas do

Programa Balboa.

O cotidiano dos jornalistas, antes da jornada à rede presencial, foi apontado nas

entrevistas como ambientes fixos, rotineiros, pouco estimulantes para a maioria. A viagem

para a experiência em rede foi ressaltada como o ponto de mudança de mentalidade para um

afrouxamento nos planos profissionais e pessoais de cada Balboa, em vista das novas

possibilidades apresentadas pela convivência com outras realidades. Isso ressalta outra

característica de identidade comum à América Latina, a errância e a casualidade já nas

primeiras relações interpessoais desde a Conquista da América. Desde o encontro das

civilizações pré-europeias com a ibérica, a identidade dos indivíduos que caminham pelo

continente é influenciado pelas combinações, relações e diálogos de diferentes grupos,

comunidades e etnias. Sob uma perspectiva contemporânea, as sociedades da América Latina

sempre foram uma grande rede social, diversa, assimétrica, desigual, mestiça e complexa. E

da mesma forma que a riqueza das redes sociais está na combinação das diferentes

habilidades dos membros, uma das muitas riquezas da cultura latino-americana está no

diálogo, de não conviverem em um mesmo espaço, isoladamente, como o mundo

multicultural anglo-saxão, mas uma cultura miscigenada. Neste caso, Brasil e América

Hispânica têm identidades em comum, compartilhando desse processo híbrido. Como afirma

Darcy Ribeiro, o espírito aventureiro, o apreço à lealdade, a criatividade, a adaptação, “a

vitalidade dos ousados e a originalidade dos indisciplinados” (RIBEIRO, 1997: 151) são

características em comum entre todos os latinos.

Ribeiro (op.cit.) também oferece a chave de compreensão de uma identidade mais

afeita ao diálogo por parte dos Balboas, na experiência presencial de 2007, em Madri.

Distantes de suas matrizes identitárias territoriais e geopolíticas, de suas organizações sociais

e históricas, de seus sotaques, alguns de suas línguas, os Balboas “se veem condenados a

inventar uma nova etnicidade englobadora de todos eles” (RIBEIRO, 1997: 448). Assim

como os imigrantes chegados à América, os jornalistas Balboas tiveram que transcriar seus

textos individualizados, plasmando uma identidade mais em comum que antes.

160    

Outra característica da formação cultural da América Latina encontrada na identidade

dos Balboas é a confecção de uma tecitura narrativa que não se restringiu aos professores que

o Programa Balboa oferecia, nem dos chefes de redação e jornalistas espanhóis. Todos os

Balboas, sem exceção, aprenderam mais com o seu colega de moradia, com os confidentes

dos dramas pessoais, com o Balboa do país ao lado. Enfim, jornalistas Balboas se viam mais

iguais por serem de ofícios semelhantes, com signos diversos mas interessantes ao outro. As

identidades se enredavam em um texto complexo afetivo, pessoal, étnico, social e nacional.

Parafraseando Ribeiro (1997), as trocas simbólicas realizadas dentro da rede social

fizeram dos Balboas indivíduos híbridos, mestiços, des-mexicanos, des-guatemaltecos, des-

peruanos e des-brasileiros. Talvez isso esteja próximo do que seja uma identidade latino-

americana. Despojados da rigidez de suas identidades nacionais, os Balboas inventaram um

texto identitário mais versátil, híbrido, mais dialógico com os signos de todos os demais

jornalistas latino-americanos.

A versatilidade não se deu apenas entre os latino-americanos, mas entre estes e os

europeus. Eswin Quiñónez esclarece como foi o processo de reinvenção de seu próprio texto,

graças à oposição ao Outro, no caso, os jornalistas espanhóis: “Fui conhecendo-os (os espanhóis), trabalhando com eles, comendo com eles, consumindo o que consumiam, e isso foi mudando alguns preconceitos culturais. Como latino-americano, guardamos a imagem dos espanhóis todos iguais invasores e colonialistas. Apesar da falta de fluidez de comunicação entre nossos países, não nos conhecemos tanto, mas, no final, as sociedades vão caminhando e graças. O preconceito vai caindo à medida que se faz amizades com as pessoas. Isso mudou meus conceitos.”

Os conceitos teóricos sobre mitos também foram úteis para responder as perguntas da

pesquisa. Alguns textos culturais arquetípicos se sobressaíram como narrativas em comum

para mais de uma cultura da América Latina. Nesta tese, as narrativas mitológicas, lendárias e

literárias citadas nas entrevistas foram consideradas narrativas individualizadas, pois foram

escolhas dos jornalistas Balboas entrevistados, tornando-se narrativas culturais tradicionais

que representam a eles mesmos, mas individualizadas quando inseridas em suas narrativas

pessoais. Em outras palavras, os jornalistas Balboas contaram o que entendem ser latino-

americano pelas narrativas que escolheram dividir em rede, a pedido desta pesquisa.

A primeira marca identitária em comum nos mitos escolhidos pelos jornalistas é a

engenhosidade, do engano ou das duas caras, característica de defesa do Macho Ratón

panamenho, que pode ser encontrada na prática da malandragem brasileira ou na habilidade

equatoriana de “hacerse de loco”, que se trata de não enfrentar diretamente o interlocutor,

desviando o assunto. Essas práticas corroboram com outra característica cultural encontrada

161    

nos mitos latino-americanos, a assunção dos anti-valores pelos personagens, principalmente

os latinos que enfrentam os modelos sociais importados da Europa pelos colonizadores

ibéricos. A arte e a literatura latino-americana oferecem farta oferta de personagens guiados

por anti-valores, como Macunaíma, de Mario de Andrade, ou Mascarita, de Mario Vargas

Llosa. Este último abandona os valores ocidentalizados do Peru moderno para viver uma

identidade indígena e narrar os mitos cosmogônicos que lhe explicam melhor o mundo e o

sentido das coisas. As máscaras e os anti-valores se tornam métodos de defesa contra a

opressão sofrida pelos latino-americanos.

A segunda característica identitária comum nos mitos latino-americanos analisados é a

incerteza da identidade latina, pendente entre o nativo americano, o europeu e o mestiço. As

lendas relatadas pelos Balboas ressaltam que, antes de encontrar as respostas, os mitos, lendas

e livros trazem com frequência a pergunta: o que é ser latino-americano? El Chulla Romero y

Flores, do equatoriano Jorge Icaza, carrega essa dúvida no próprio nome, parte indígena,

parte espanhol. Com medo da rejeição, El Chulla realiza outra prática comum nos mitos

apresentados, o engano, mas neste caso, de si mesmo, omitindo suas raízes americanas. Além

disso, vive junto à elite equatoriana pela graciosidade com que cativa suas relações com os

criollos. Tal prática pode ser encontrada na cordialidade brasileira, identificada por Sérgio

Buarque de Holanda (2002), que se trata de utilizar práticas familiares e emocionais nos ethos

profissionais e públicos.

A terceira marca identitária comum nas lendas latinas apresentadas pelos Balboas é a

dor, muitas vezes em consequência das tentativas de diálogo entre as culturas ibéricas e

latino-americanas. A dor é representada majoritariamente por mulheres latinas, como a

Llorona, que se envolvem com europeus da elite, engravidam e perdem as crianças, como se

amaldiçoadas pela relação impossível. A Llorona ou outras mães seguem sua existência

fantasmagórica em busca das crianças, chorando e sofrendo pela noite, como se a cultura

latino-americana buscasse pela dor o sentido de um diálogo tão sofrido quanto foi a Conquista

da América e suas consequências.

O fato de a alegoria ser uma mulher em busca de sua cria morta parece ser uma

questão mal resolvida na narrativa e na identidade latino-americanas. Se os mitos culpam

europeus pela dor das mães da América (ou a própria Mãe América, o continente latino-

americano) e os jornalistas Balboas escolhem tais histórias para representar a cultura de seus

países, esse é um tema pendente para os Estudos Culturais sobre a América Latina.

Munidos de tais textos culturais tradicionais, os jornalistas Balboas partiram para uma

experiência de rede presencial na Espanha, por seis meses, em 2007. E certamente os

162    

influenciou para compreender os textos culturais dos europeus, em oposição aos seus, e os

textos dos demais jornalistas latinos, por semelhança nas narrativas tradicionais.

Uma narrativa mitológica não mencionada por eles na pesquisa foi utilizada para

analisá-los, a Jornada do Herói, de Joseph Campbell (2007). Pareceu ser a melhor narrativa

para compreender a partida de um indivíduo para fora de sua cultura, que enfrenta os desafios

propostos por si mesmo e que retorna como portador de um saber ampliado. Para

compreender esse processo de constituição de identidade em trânsito, foi gerado um

questionário com perguntas organizadas segundo as etapas do herói: cotidiano pré-viagem,

partida, desafios, auxílio, clímax, retorno e compreensão da experiência.

Helena Fruet, jornalista brasileira, ressaltou a dor de enfrentar dificuldades sozinha,

quando vivia em Madri. Teve de resolver conflitos com os senhorios espanhóis e brigas entre

as Balboas com quem dividia apartamento. Buscou apoio no outro jornalista brasileiro da

turma, com quem “vomitava português”, em uma clara referência do retorno às raízes

culturais, em oposição ao mundo simbólico que a oprimia. Da rejeição que sentiu no início da

rede presencial, agregou à sua identidade pessoal que podia resolver as coisas sozinha, que

não precisaria de apoio quando tivesse medo, pois podia se adaptar às adversidades.

Helena, entretanto, admirava a coragem e a adaptação de colegas latinos que

enfrentavam coberturas perigosas na Colômbia e no Panamá, e como se adaptavam às

redações espanholas com a mesma coragem. Na Espanha, resolveu tentar a ousadia dos

colegas e mudou de veículo de comunicação: de revistas, onde tinha familiaridade, para

televisão. Até hoje, Helena Fruet trabalha com audiovisual, além do jornalismo impresso e

outras mídias. Helena atualizou, graças aos modelos dos colegas Balboas, uma versatilidade

que gostaria de ter e que nunca tinha tido coragem. “Se eles enfrentam guerrilheiros e

conflitos, eu posso conseguir enfrentar meus desafios”, relatou na entrevista para esta

pesquisa.

Ela se sente mais latino-americana hoje, pois se atualiza com elementos culturais dos

colegas, como filmes, músicas e livros. E também mais brasileira, pois pela oposição dos

hábitos e costumes dos colegas Balboas, reafirmou sua identidade nacional. Latina e

brasileira, sem que uma identidade rejeite a outra, Helena resolveu à sua maneira a dúvida

de o que é ser latino-americano.

O outro brasileiro entrevistado para pesquisa, Marcos Todeschini, compreendeu

melhor sua identidade através da experiência internacional, na qual se deixou perder. Caco

saiu dos modelos pré-estabelecidos de o que é ser jornalista para experimentar uma vida mais

simples, com menos regras e com mais anti-valores frente aos modelos das instituições onde

163    

trabalhava. Aprendeu isso junto aos jornalistas Balboas, que foram à Espanha vencer na mídia

europeia, mas redescobriram sentido das coisas nas experiências simples e na geração de

vínculos. Eles abriram mão em conjunto da identidade temerosa da rejeição para escolherem

uma narrativa de experiências conjuntas e errâncias. Não poderiam fazê-lo em uma rede

social digital, mas em uma experiência presencial.

Marcos definiu a si mesmo o que é ser latino-americano não por lógicas políticas ou

históricas, mas por relações pessoais. “América Latina agora é assunto pessoal para mim”,

declarou na sua entrevista. Para isso, realiza visitas aos amigos Balboas e troca bens culturais

com eles, como o urso Gregório, símbolo da aventura em Madri. A identidade latino-

americana de Marcos Todeschini aflorou graças à descoberta de que no continente há

pessoas com que compartilha ideias, cultura e vínculos. Para Caco, não se trata da América

Latina territorial, cultural ou política, mas dos amigos latino-americanos espalhados pelo

continente.

Rocío la Rosa, do Peru, sentiu o peso de realizar as coisas sozinha na experiência na

Espanha e ressaltou a importância do reconhecimento dos jornalistas espanhóis como

preponderante para sua segurança emocional.

A aceitação dos espanhóis perante seu jeito de ser e de trabalhar ficou destacado no

diálogo. Em vários momentos, ressaltou não acreditar como estava na Europa ou como fora

possível estar frente ao Príncipe e ao Rei da Espanha (em momentos de cobertura do jornal).

Chío reagiu como o Chulla, encontrando sua identidade próxima aos símbolos culturais que

julgava adequados. Não é à toa, confessou na entrevista que não se acostumou com Lima e

seus problemas depois de ter vivido em Madri.

Rocío não se identificou apenas com os ícones culturais máximos do espanhóis, mas

se reconheceu nos jornalistas de lá quando viu que suas vidas eram semelhantes, com

dificuldades financeiras, problemas laborais e dramas pessoais. Chío se aproximou muito das

mulheres jornalistas, as quais escreve com frequência. A possibilidade de alcançar uma

identidade latina e feminina, aceita no que considera os altos escalões da profissão, as

redações espanholas, redefiniu a identidade de Rocío la Rosa. Voltou a Lima inconformada

com certos modelos laborais, como o excesso de trabalho em sua redação, e tinha coragem

para enfrentar seus próprios limites para alcançar o que entendia uma vida e um jornalismo

dignos. Não se conformou com seu doloroso destino, como as Lloronas da América Latina.

Com a mexicana Laura Guzmán, não foi diferente. Viu na Espanha o Outro, e nos

latinos, os cúmplices. Sentiu-se só, distante da família e cultura mexicanas. Apegou-se ao

desafio de vencer profissionalmente na Espanha e ser aceita nas redações. Recebeu apoio dos

164    

Balboas, principalmente dos colegas com quem dividia apartamento. A solidão a fez se

reencontrar, como alguém tranquila e mais segura do que almejava para a vida. Voltou ao

México com uma identidade que define como tranquila, pois é mais conhecedora de si mesma.

Desafio, dor e a vitória de voltar de cabeça erguida foi o texto identitário que Laura Guzmán

decidiu portar depois da jornada em rede presencial.

O mexicano David Santa Cruz também valorizou muito o reconhecimento nas

redações espanholas para se reconhecer como um jornalista latino-americano competente.

Conseguiu publicar páginas e páginas de matérias enquanto trabalhou em Madri. A identidade

da rejeição latino-americana perante os espanhóis fora trocada pela confiança em si mesmo.

Contudo, foi em comunhão com outro jornalista Balboa, Guido Bilbao, que David

percebeu que podia ir além. Reformulou-se a partir do diálogo com o argentino e jogou-se na

experiência de ser freelancer, chefe de si mesmo, livre para escolher o que escrever e para

quem. “Buscar o próprio destino para além da janela”, descreveu David. A coragem de

apostar em si mesmo atualizou sua identidade de jornalista latino-americano.

Entretanto, David também aproveitou o diálogo Balboa para reconhecer suas raízes,

através da reaproximação familiar. Ele esteve ao lado do jornalista Balboa Mario Alberto,

quando este soube da morte de seu irmão. A dor do amigo fez David abrir mão de seu plano

de viagens pela Europa para consolar um irmão pela dor. “Ofereci a Mario todas minhas

economias para que pudesse voltar a Colômbia e ver sua família”, confessou. Diferente da

competitividade nos jornais espanhóis que atualizou a identidade profissional de David, o

drama de Mario lhe aproximou de volta da sua própria família, dando valor a ela e ao México,

onde todos vivem. A identidade latino-americana de David foi despertada pela solidariedade

com um amigo, que sentiu dor e solidão distante de casa. Em vez de se proteger

emocionalmente, David abriu as portas do diálogo e não viu em Mario um jornalista, mas um

ser humano. A dor e a superação, características comuns aos mitos e lendas latino-

americanos, afloraram na identidade de David.

Eswin Quiñónez também sofreu em sua experiência em rede, por exclusão profissional.

Foi rejeitado pelo primeiro jornal em que iria trabalhar em Madri. Sentiu-se inútil e até

adoeceu. Recebeu apoio dos colegas latinos, principalmente da jornalista brasileira Érica

Montenegro, a quem ensinou a escrever em espanhol, posteriormente.

Juntos, Eswin e Érica aprenderam a ser mais humildes, a saber esperar e a não ser

felizes apenas pelo reconhecimento do Outro, sejam eles espanhóis, sejam latino-americanos.

Eswin desenvolveu anti-valores para a prática jornalística funcionalista e industrial que trazia

da Guatemala, e atualizou sua identidade para objetivos mais elevados que os índices de

165    

produtividade de uma redação. Depois da rede presencial Balboa, Eswin buscou sentido no

seu trabalho e direção nas atitudes que tomava. Diminuiu os preconceitos sobre quem agia

diferente dele, pois ele mesmo mudou quando voltou a Guatemala. Eswin tornou sua

identidade mais versátil graças ao diálogo com os espanhóis, que lhe dificultaram a vida, e

com os Balboas, que lhe apoiaram quando foi preciso.

Santiago Torrado, colombiano, definiu a rede de cumplicidade e vínculos como

fundamental para ter aumentado o valor que dá à América Latina. É uma mudança em sua

identidade, dado que antes da experiência em rede, Santi se via um analista autônomo, sem a

necessidade do diálogo para entender melhor o continente, que aliás, nem lhe era a região

mais interessante de se fazer jornalismo.

A amizade que cultivou com os Balboas venezuelano e argentino lhe permitiu ver os

países deles segundo seus olhares. Percebeu como podia cobrir histórias na América Latina

como nenhum outro, graças ao diálogo que mantém com os amigos, as referências culturais

que eles oferecem e a retroalimentação que os membros da rede fazem dentro do sistema de

diálogo. “Isso não podia acontecer em uma rede digital ou em um encontro de jornalistas

durante quatro dias”, ressalta. A amizade, a troca de experiências e a intenção de entender o

Outro fez a identidade profissional de Santiago mais latino-americana.

Da mesma forma que as narrativas mitológicas apresentadas pelos Balboas ressaltam

formas de superação de desigualdades sociais e uniões dolorosas entre mundos culturais

diversos, os Balboas sugerem uma identidade latino-americana mais dialógica do que se vê

nos assimétricos âmbitos social, político e econômico do continente. Após se conhecerem,

interessarem-se uns pelos outros, e a pergunta indireta que parece haver em todas as

entrevistas é: “Se nos demos tão bem, por que não somos mais próximos?” A pergunta de o

que é ser latino-americano, antes mesmo da resposta, parece ser uma marca identitária

comum aos jornalistas entrevistados. Os autores dessa questão coletiva e inconsciente

mergulham na sutileza dos vínculos fortalecidos pela relação sujeito-sujeito, do cotidiano

novo, incerto e original. Uma compreensão de mundo individualizada, que não leva à resposta

certa, mas à pergunta sobre a essência do ser humano, para além da América Latina. No intertexto da cultura e da história corre o subtexto do inconsciente coletivo: aí está a linguagem mítica para mostrar a transcendência do texto da consciência analítica. [...] A ação social se faz presente: a narrativa se cumpre tanto na espiral dos afetos quanto na esfericidade dos argumentos. Razão e emoção se completam na plenitude inteligente da transformação do real – o caos funda um cosmos. (MEDINA, 2003: 135).

166    

Conceitos sobre redes sociais também foram importantes para compreender a

atualização de identidades. Mas antes de serem apresentados os principais tópicos sobre redes,

a transdisciplinaridade entre narrativas arquetípicas e redes sociais pode esclarecer melhor

processos de constituição identitária.

Em Communication Annonyme (LOHISSE, 1969), o caráter anônimo da comunicação

carrega características de autoria, segundo os indivíduos portadores dos textos simbólicos.

Simultaneamente, as narrativas são também coletivas, pois seus símbolos são portados e

divididos entre todos. Desta forma, as escolhas dos jornalistas Balboas sobre mitos, lendas e

livros foram consideradas uma forma de criação de novos textos culturais, pois a

portabilidade das narrativas como exemplares de seus países denota a escolha individual e

autoral. Textos culturais arquetípicos refletem portanto a totalidade do ser humano através de

símbolos em comum. Dentro de si, as narrativas míticas escolhidas pelos Balboas carregam

potência de diálogo pois, antes de serem histórias latino-americanas, expressam elementos

primordiais do ser humano, como a engenhosidade diante da dificuldade, a dor e a esperança.

Pode-se concluir então que os jornalistas Balboas, antes mesmo de iniciarem as experiências

em comum em rede presencial, já tinham potencialidade de diálogo identitário, pois

carregavam elementos simbólicos em comum.

Assim como redes oferecem ambientes de aprendizagem pela observação, imitação e

influência, os discursos identitários lidertípicos, sólidos, contextualizados e coerentes

prevalecem na troca simbólica em rede. Não à toa, as narrativas míticas de dor, esperteza e

esperança sobressaem nas escolhas dos Balboas: os jornalistas tiveram que reviver estes três

universais de cultura para superarem suas limitações pessoais quando viveram a experiência

em rede, uma verdadeira atualização da narrativa mítica, pelo rito contemporâneo do

diálogo glocalizado das redes sociais. Os jornalistas que melhor utilizaram tais textos foram

os mais influentes no grupo, como o argentino Guido Bilbao, citado por alguns dos

entrevistados.

Finalmente, os Balboas, abertos à inovação e adaptados ao processo de troca e diálogo

estimulados pela rede presencial, potencializaram textos osmotípicos em suas próprias

identidades. As fusões entre signos individuais, gerados das experiências dos jornalistas, e

coletivos, provindos de seus textos culturais realizados em diálogo, possibilitaram identidades

mais mestiças que antes, recombinações individuais de conteúdos universais. Segundo os

modelos de aprendizagem nos Distritos Industriais de Marshall, que esta tese considerou

ambientes de redes presenciais de troca, a relação entre profissionais que mais gera

aprendizado é a observação. De fato, os Balboas não mudaram radicalmente seus processos

167    

de trabalho radicalmente, mas observaram diferenças nos modelos e métodos espanhóis, e

declararam terem levado o melhor de cada redação em que estiveram para seus trabalhos na

América Latina.

Aprofundando-se nos conceitos e nas características das redes sociais como ambientes

de interatividade para os jornalistas Balboas, destaca-se o sistema de periferias e de nós de

fluxo, lugares do sistema em que a informação circula. No caso de diálogos culturais, podem-

se considerar “nós” as pessoas que estão na maioria das referências dos membros da rede; as

pessoas que mais promovem influência nos demais membros; as pessoas cujas narrativas e

identidades são mais citadas pelos demais. Os indivíduos mais influentes são lidertipos, se for

utilizada a nomenclatura e pesquisa de Jean Lohisse (1969).

Nesse aspecto, duas pessoas se destacaram nas entrevistas: o argentino Guido Bilbao e

o colombiano Mario Alberto. Guido pode ser considerado um centro na rede de diálogos, pois

sua identidade libertária, seu exemplo de viver sem limites pré-estabelecidos, de enfrentar

desafios pessoais e profissionais e de trabalhar em um tipo de jornalismo crítico foi motivo de

comentários dos Balboas entrevistados para a tese. Ele serviu de modelo para que Eswin

Quiñónez e David Santa Cruz alterassem suas percepções de mundo. Guido trabalhou no

maior jornal da Espanha, o El País, e rumou ao Panamá para tentar novas oportunidades

profissionais. Até hoje, influencia o grupo de 2007 pela sua postura de buscar o melhor para si

e para o jornalismo.

Outro centro dos diálogos da rede Balboa de 2007 foi Mario Alberto, por um motivo

muito diferente: a morte de seu irmão. Os entrevistados mencionaram esse momento como

um dos mais duros para o grupo, e também o momento de maior união. A distância de casa

fez com que os Balboas se solidarizassem com o colombiano, identificassem-se com sua dor e

valorizassem mais o próprio grupo como sua família, enquanto estavam na Espanha. A dor e a

solidão de Mario geraram identidade afetiva nos demais Balboas, que passaram a se

importar com o Outro latino-americano como se fosse o seu próximo.

Outra característica de uma rede social são os vínculos entre os membros, ou as

afeições por diálogo. Apesar da rede Balboa de 2007 contar com 20 jornalistas, percebe-se a

citação de dois ou três membros em cada entrevista. Fica claro que houve troca de

informações entre todos, mas diálogo comunicativo, com troca simbólica com vínculos,

ocorreu apenas entre os amigos, que viveram e viajaram juntos, trocaram confidências e se

apoiaram em momentos difíceis. Pode-se dizer que todos os jornalistas aprenderam sobre a

América Latina entre si. Mas só algumas ligações mais afetivas fizeram um latino-americano

sentir como é ser o Outro. Também se pode afirmar que nos diálogos entre os cúmplices foi

168    

possível entender melhor o que é ser latino-americano do que em toda a estrutura da rede. As

identidades foram atualizadas pelas trocas interessadas e compromissadas dos laços de

confiança e de amizade efetivadas pelos jornalistas Balboas.

A outra forma de atualizar identidades entre os jornalistas foi pela troca de bens

culturais. Cultura, neste caso, é compreendida como sistema simbólico onde interlocutores

interagem trocando intersubjetividades. Trata-se da cultura diária, em processo, de produção

coletiva e em comum de significados; da colaboração e do compartilhamento de narrativas e

textos simbólicos para além dos sistemas difusores de comunicação; do transcriação dos

objetos culturais coletivos para fins vinculantes individualizados.

O lugar da cultura, dos protagonistas sociais, bem como o lugar da ciência e de seus interlocutores, mais o lugar da comunicação e de seus mediadores-autores oferece inúmeros estímulos para experimentar as dialogias, estas encaradas como comportamentos, valores, visões de mundo, [...] Um constante convite ao encontro e ao desencontro. Daí a importância de o comunicador privilegiar a história de vida, a particularidade humana juntamente com a abstração conceitual. Transitar do conceito sobre o mundo para a experiência do mundo enriquece o ato de comunhão, seja na praça pública, seja na universidade. (MEDINA, 2003: 117).

Livros, músicas, filmes e telenovelas foram comentados e compartilhados. Isso foi

mencionado por todos Balboas. A troca cultural dos jornalistas foi mais intensa com os

brasileiros, que careciam de objetos culturais comuns aos colegas latinos. Além dos

jornalistas terem aumentado seu repertório cultural sobre América Latina, aprenderam sobre o

contexto de artistas, canções e obras, o que lhes deu sedimentação e localidade nos objetos

culturais. Sessões de filmes eram realizadas, com comentários após as exibições; festas eram

animadas com setlists de artistas de todo o continente; danças eram executadas nas discotecas

latinas em Madri, trocando-se passos e criando modos mestiços de se divertir; modos de se

cozinhar foram compartilhados nas repúblicas dos jornalistas, com ingredientes espanhóis

para se realizar pratos latinos; livros (levados à Espanha para serem referências culturais

nacionais aos Balboas em momentos de saudade de suas localidades) foram objetos de troca

no fim da experiência. Em todos esses momentos, a troca linguística foi riquíssima, com

modos e modos de se falar espanhol, castelhano ou portunhol. Palavras e expressões locais a

alguns Balboas causavam graça nos interlocutores, também latinos, mas que se expressavam

de outra forma. Não raro, alguns Balboas voltaram com sotaques de outros países que não o

espanhol, além dos brasileiros, que retornaram ao país falando um espanhol de terra alguma e

de todas ao mesmo tempo.

169    

O aprendizado coletivo, outra característica das redes sociais, foi realizado sem regras

ou direção estabelecida. A combinação de influências de uns Balboas sobre os outros, as

conexões que geraram graças aos seus interesses pessoais e a troca cultural que realizaram

culminaram em combinações simbólicas individuais sobre as identidades dos jornalistas

latinos. Nenhum entrevistado passou incólume pela experiência, mas não se pode afirmar que

foi gerada uma identidade latino-americana ou uma direção em comum. Porém, como já foi

mencionado, elementos em comum foram agregados às suas identidades, como o medo da

rejeição, a habilidade de se gerar anti-valores perante a opressão, a forte presença da dor na

experiência de vida, a completude de se ter vencido em uma terra distante e a dificuldade de

se definir como latino-americano e mesmo como indivíduo. Porém, apesar dessas bases

comuns, o que fez os jornalistas Balboas se identificarem e se ajudarem não os fez mais

parecidos entre si ou cientes de uma única forma de ser latino-americano. Suas identidades se

tornaram ainda mais versáteis e diversas, passíveis de lidar com signos globais e combiná-los

com suas características locais, de compreenderem um pouco melhor a complexidade das

trocas culturais contemporâneas pois complexificaram suas próprias narrativas. Os jornalistas

Balboas não aprenderam o que é a América Latina ou como ser latino-americano, mas

aprenderam a ouvir, a dizer e a viver a vida do Outro e as suas próprias.

Assim como afirma Cremilda Medina (2009), a cultura proporciona uma imersão que

só a língua e a observação participativa pode fazer compreender o afeito ao diálogo. Como

nas primeiras reuniões do CIESPAL, a primeira rede presencial de jornalistas da América

Latina, a capacitação profissional não foi páreo para o mergulho na experiência e na

identidade do companheiro jornalista, irmão cultural da América Latina.

A comunicação interdisciplinar entre saberes que propôs esta tese, como os mitos, as

identidades e as redes sociais presenciais, possibilitou transitar pelo passado cultural dos

jornalistas latino-americanos; pelo seu presente, graças aos textos culturais que usam para

representar-se e pelo futuro de um diálogo de identidades, atualizadas pelas redes sociais e

pelos vínculos fortes.

A viagem à Espanha que os jornalistas Balboas realizaram proporcionou outra viagem,

simbólica, aos textos culturais dos colegas latino-americanos. A profundidade das relações

entre os Balboas é tão instigante e educativa quanto a experiência presencial no exterior que

realizaram.

Por isso, a rede presencial, estudo de caso desta tese, continua a ser necessária em

tempos de redes de comunicação digitais. As habilidades exercitadas nos ambientes virtuais

podem abranger mais pessoas, diminuir a distância e o tempo das conversas e encontros

170    

digitais. Mas a convivência, a experiência presencial conjunta e a criação de laços entre

indivíduos ainda têm seu valor, pois geram o vínculo com o interlocutor, a vontade de se

compreender o interlocutor e a geração de textos culturais criativos, realizados em diálogo.  

171    

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180    

APÊNDICES

Tabelas comparativas de IDHs dos países pesquisados............................................. 181

Os Fellowship Programs de Jornalismo dos EUA........................................................ 183

Tabela comparativa das redes presenciais de jornalismo......................................... 188

Relatos de experiência: diretores de fellowship programs dos EUA........................ 189

Entrevistas da tese na íntegra..................................................................................... 208

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

181    

Tabelas comparativas de IDHs dos países pesquisados  

   

   

   

           

182    

   

   

   

 

(Fonte: ONU, 2010)

183    

Os Fellowship Programs de Jornalismo dos EUA Os EUA detêm metade das organizações de terceiro setor do mundo, como Think

Tanks, ONGs e fundações, e são o país com o maior número de organizações de estudos sobre

América Latina. Muitas delas estão voltadas para pesquisa e aprimoramento de técnicas e

carreiras como o jornalismo, e contam com parcela considerável de jornalistas estrangeiros,

entre eles, os latino-americanos.

Graças ao Center for Iberian & Latin Américan Studies145 (CILAS) da University of

California, San Diego (UCSD), foi possível pesquisar os principais modelos de redes

presenciais de jornalistas nos EUA. O objetivo foi entender se e como põem em diálogo as

identidades de seus participantes, e de que forma seus modelos de rede auxiliam nesse

processo.

As redes presenciais de jornalismo nos EUA se denominam Fellowship Programs. São

modelos de intercâmbio profissional aplicados há décadas em várias carreiras acadêmicas. As

redes escolhidas para análise e comparação com as redes latino-americanas desta tese são:

• Nieman Foundation for Journalism at Harvard

• Knight Science journalism at MIT

• Knight-Bagehot fellowship in economics and business Journalism of Columbia

University

• Tow Knight Entrepreneurial Journalism in CUNY (City of New York University)

• John S. Knight Journalism Fellowships at Stanford

Juntamente ao Fellowship Program for Journalists de Michigan, estas redes são as mais

importantes nos EUA, pela sua tradição e credibilidade, pela infraestrutura das universidades

que as sediam e pelo diálogo com pesquisadores e jornalistas dos EUA. Elas foram

selecionadas para estudo comparado nesta tese por trabalharem com objetivos semelhantes

aos estudos de caso da América Latina (FNPI, AVINA, TAL e Programa Balboa) e porque

mantêm coerência e diálogo entre si, devido a fazerem parte de outra rede, uma das maiores

instituições para o aprimoramento da educação para o jornalismo e para a cultura dos EUA, a

Knight Foundation.146

                                                                                                               145 cilas.ucsd.edu     146 A Knight Foundation apoia ideias transformadoras que promovam a qualidade de jornalismo, a inovação das mídias, o envolvimento as comunidades e o fomento às artes. (http://www.knightfoundation.org).

184    

Características das redes presenciais dos EUA

A missão da Nieman Foundation for Journalism at Harvard é desenvolver jornalistas e

projetos para o avanço do jornalismo no mundo. Durante dois semestres, jornalistas

selecionados debatem a melhora no jornalismo, geram novos modelos de negócios e

desenvolvem novos programas de capacitação para jornalistas. Todos os fellows da Nieman

têm acesso à estrutura, aulas e corpo docente de Harvard.

A Knight Science Journalism at MIT oferece uma rede presencial de um ano, com aulas

e palestras durante a semana toda. Seu objetivo é atualizar os jornalistas selecionados sobre

pesquisas de ponta em ciência, tecnologia, engenharia, medicina e meio ambiente. Entre suas

atividades, a rede da KSJ analisa mídia especializada sobre ciência e tecnologia do mundo

inteiro, realiza trabalhos de campo junto a cientistas do MIT e organiza seminários entre

pesquisadores e jornalistas.

O Knight-Bagehot Fellowship in Economics and Business Journalism of Columbia

University é uma rede constituída pelas faculdades de Jornalismo, Economia e Negócios,

Direito e Relações Internacionais. Os jornalistas selecionados assistem a aulas nos MBAs das

faculdades para capacitar-se ao mesmo nível dos profissionais das áreas de economia e

aumentar sua rede de contatos. São organizados jantares e encontros com executivos,

economistas e acadêmicos, além de visitas a empresas de comunicação e instituições

financeiras de Nova York. O curso dura nove meses.

O Tow Knight Entrepreneurial Journalism at CUNY – Graduate School of Journalism

de Nova York tem como missão criar projetos financeiramente sustentáveis para as empresas

de comunicação e para a qualidade do jornalismo. Acredita-se que, investindo em jornalistas

empreendedores, podem-se gerar novos modelos de negócio, para novas empresas de

jornalismo ou para a atualização dos jornais tradicionais. A rede é composta de jornalistas

recém-formados e de profissionais de meia carreira. Ha cursos de verão, semestrais e anuais.

O John S. Knight Journalism Fellowships at Stanford também foca em inovação,

empreendedorismo e liderança. Pede-se aos candidatos da rede que apresentem ideias para o

aprimoramento do jornalismo, dos modelos empresariais e do uso de tecnologias. Quando

aprovados, os jornalistas desenvolvem start ups, empresas iniciantes em comunicação,

parcerias para investigação jornalística e ferramentas de tecnologia da informação. A rede

presencial leva um ano.

A partir de leitura e análise de material fornecido pelas redes estadunidenses e por

diálogos com os diretores representantes, percebem-se semelhanças nas fellowship programs

185    

para jornalistas citadas acima:

Todas elas estimulam o compartilhamento do saber entre seus membros, através de

fóruns, reuniões de brainstorm, palestras e viagens de campo. As redes buscam a

recombinação do conhecimento dos jornalistas através da troca horizontal do saber. A

coletividade da reflexão e do trabalho é mais valorizada que as iniciativas individuais de

sucesso no jornalismo.

Os objetivos das fundações que mantêm as redes são poucos e claros; basicamente

gerar mais qualidade no jornalismo dos EUA e no do resto do mundo. As variações em cada

uma das redes são métodos para cumprir os objetivos originais, geralmente inalterados desde

o início dos trabalhos das fellowship programs.

Há mais diálogo entre os jornalistas que produção conjunta de conteúdo jornalístico.

Acredita-se que treinamento, aulas, palestras e diálogos serão mais eficientes na melhora do

jornalismo dos membros da rede que treinamento intensivo de técnicas e aplicação em

reportagens durante a rede presencial. Entretanto, se não há produção de matérias jornalísticas,

cobra-se por criação de novos modelos de jornalismo, planos de negócio para empresas de

comunicação e cases em oficinas de tecnologia para aplicação dos conceitos jornalísticos

debatidos ao longo dos programas presenciais.

São programas de jornalismo muito organizados, que prezam o cumprimento de todas

as etapas planejadas, como aulas, encontros e palestras. Ao mesmo tempo, oferecem

liberdade para que os jornalistas criem sua rotina de interesses, como frequência em aulas

paralelas, reuniões apenas com grupos de afinidade ou encontros com especialistas para

aconselhamento de carreira. Geralmente, as fellowship programs dos EUA liberam seus

estudantes dois dias da semana para seu próprio planejamento.

As instituições estadunidenses estão muito interessadas em expandir os seus objetivos e

métodos em jornalismo ao redor do mundo, razão pela qual criaram ou aumentaram vagas

para jornalistas estrangeiros. Apostam que selecionando os melhores jornalistas do mundo

terão influência sobre seu modo de fazer jornalismo e, por consequência, isso será replicado

em redações de outros países. Métodos de avaliação da influência das redes estão sendo

criados, alguns por meio de questionários aos ex-participantes da rede presencial, outros por

tecnologias de comunicação digital.

Relação com perguntas de pesquisa

Através da entrevista-diálogo, manteve-se o objetivo desta pesquisa de doutorado:

compreender a formação de identidades contemporâneas e como as redes presenciais

186    

estimulam o diálogo e a troca de identidades. Daí, nasceram perguntas sobre a origem,

objetivos e desafios dos fellowship programs, sobre identidade e funcionamento de redes.

Conclusões

Em comparação com as redes de jornalismo latino-americanas, há questões a se

considerar.

As redes dos EUA sugerem recombinação de conhecimento, o diálogo horizontal entre

os membros. São criados espaços na grade de estudos e tempos livres para o intercâmbio de

ideias. Vazios planejados, pode-se dizer. Já nas redes latino-americanas, a falta de tempo dos

cursos presenciais (FNPI, AVINA e TAL praticamente têm 3 a 7 dias de encontros) não

possibilita qualidade para o diálogo entre jornalistas ou espaços vazios. O que mais ocorre são

apresentações e trocas de e-mails para futuro diálogo ou contato.

Já o Programa Balboa, por estabelecer seis meses de convivência, possibilita diálogo

entre os jornalistas. Não que isso seja planejado; pelo contrário. O vazio possibilitado pelos

horários de trabalho e pelas aulas apenas em um dia da semana permite o encontro e diálogo

entre os jornalistas. Parece que quanto mais desorganizada, mais liberdade a rede

proporciona para seus membros entrarem em diálogo.

A geração de confiança e afeto entre membros das redes dos EUA e o Programa Balboa

também tendem a ser maior que nas redes latino-americanas com pouco tempo de encontros

presenciais. A convivência é preponderante neste aspecto, e a vivência em um país

estrangeiro aproxima jornalistas na mesma situação de exílio cultural. A confiança não está na

execução das atividades do curso ou nos trabalhos conjuntos em jornalismo, mas na

convivência entre colegas, em identidade por serem jornalistas, estarem longe de seus países e

almejarem coisas em comum.

Há relação entre produtividade e treinamento da rede presencial com o tempo livre e o

estreitamento das relações. Quanto mais trabalhos, aulas, seminários e oficinas participam os

jornalistas, mais forte é a identidade profissional de jornalistas e maior produtividade se tem

enquanto a rede se mantém presencial. Por outro lado, nas redes em que há mais tempo e

espaço para o diálogo de individualidades, mais forte é a identidade entre indivíduos, a rede

de confiança, que perdura para além da experiência presencial.

Em ambas as redes, dos EUA e da América Latina, há interesse em difundir o

conhecimento compartilhado na experiência presencial, seja pela atuação do jornalista

participante, pelo trabalho conjunto entre membros da rede, seja pela reprodução de modelos

e técnicas dentro das redações dos participantes.

As fellowship programs norte-americanas ou os programas latinos de jornalismo são

187    

capazes de organizar novos espaços de diálogo, não restritos pela dissolução da experiência

presencial. A continuidade do funcionamento das redes parece depender dos laços

profissionais ou pessoais (principalmente estes) compostos na experiência em conjunto. Os

interesses dos membros e redes sociais configuram novas combinações, novas formas de

produção social e coletiva.

As identidades pessoais não parecem ser alteradas, mas atualizadas com novas

informações e no enfrentamento de diferentes visões de mundo. Já as identidades

profissionais tendem a alterar-se, devido à experiência de campo nas redes e pela troca de

casos e exemplos entre membros das redes presenciais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

188    

 

Tabela comparativa das redes presenciais de jornalismo  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

189    

 

 

Relatos de experiência: diretores de fellowship programs dos EUA John Breen - Diretor da Nieman Foundation for Journalism at Harvard

A razão de a Nieman Foundation existir é que Harvard não tem um curso de jornalismo.

A Sra. Nieman, cujo marido tinha um jornal, decidiu dar US$1milhão a Harvard para dar

prosseguimento ao legado do marido. Era 1937. Foi um dilema na época porque Harvard não

sabia o que fazer com o dinheiro, que devia ser investido em um curso de jornalismo.

Decidiu-se fazer um fellowship program. No início foram apenas cinco selecionados. Eles

iam a Harvard, ficavam um ano, assistiam às aulas, conheciam os faculty members etc. Foi a

saída Harvard para usar o dinheiro da doação: trazer jornalistas formados para estudar e

melhorar o jornalismo nos EUA. Em 1938, o programa Nieman começou.

Após mais de 70 anos (cumpre 75 em 2013) a Fundação Nieman continua cumprindo

basicamente o mesmo objetivo, somando alguns outros tópicos, mas na mesma linha de

antes.147 Para a Nieman Foundation, ter acesso e liberdade a fontes de qualidade é aumentar a

qualidade de imprensa nos países membros.

Edson: Após 70 anos, os objetivos mudaram?

John Breen: Os objetivos basicamente são os mesmos: melhorar os níveis de

jornalismo nos países pelo mundo. Os métodos mudaram, claro, mas basicamente seguem

em trazer gente (estrangeiros desde 1950) a Harvard, para estudar e então voltar aos seus

trabalhos, para cobrir melhor os temas de seus jornais, criando líderes em sua profissão. Por

                                                                                                               147 A principal qualidade da Nieman Foundation parece ser a de manter objetivos simples e claros durante os

anos.

190    

isso queremos que levem casos e exemplos para os lugares de onde eles vêm. Este é o

objetivo principal que o fellowship program mantém.148

Um ano de vivência de 1800 jornalistas na Nieman Foundation permitiu combinações

entre as experiências dos jornalistas, líderes no jornalismo, mas também na política e na

comunicação em geral.

Acredito que a missão das fundações no mundo expandido de hoje ainda é valida.

Após 75 anos nós ainda somos eficazes porque temos participantes de alto nível. Dos

jornalistas que vem para cá, metade (doze) não são americanos, e os jornalistas que foram

fellows ainda estão envolvidos com a Nieman Foundation, para trabalhar nos laboratórios de

jornalismo com os 25 jornalistas sortudos de cada ano (risos).

E: O que os estudantes trazem à rede?

J.B.: Todos nossos fellows são jornalistas. O que queremos deles é desempenho e

compromisso. Pessoas que fizeram bom trabalho nos seus jornais e querem se manter no

mercado e fazer algo melhor ainda, ou no mercado e são promessas na área, pessoas que

têm potencial para serem líderes no mercado quando voltarem aos seus países. Esses

dois objetivos ainda são muito apropriados, não importa os métodos que usemos; são

simples mas muito importantes.

E: Há diferenças culturais entre os fellows?

J.B.: O choque cultural pode ser enorme. Mas isso depende da bagagem que os

fellows tem, onde moraram, por onde viajaram, se falam inglês bem, se trazem suas famílias.

É um objetivo mais difícil para eles do que para nós, de ficarem aqui, estarem confortáveis

para trabalhar em um período de nove meses a um ano aqui.

E: Há identidade entre jornalistas estrangeiros?

J.B.: O que todos eles têm em comum é que todos são jornalistas, vêm de um mesmo

negócio. Esta é a razão pela qual estão aqui. Isso torna mais fácil fazer vínculos entre

eles e eles e as famílias.

Neste prédio se discute jornalismo há 75 anos. O jornalismo é feito de formas diferentes

ao redor do mundo, porque isso depende da estrutura de governo dos países, quanta

                                                                                                               148 Ferramentas: o curso da Nieman leva jornalistas para ver aulas e depois voltam para criar modelos de jornalismo ou soluções epistemológicas aos temas de seus países. Jornalistas dão aulas entre si e os ex-membros também dão palestras aos novos.

191    

liberdade de imprensa existe etc. Nenhum dos fellows está no mesmo ponto, mas têm em

comum serem jornalistas. Ao longo do ano, eles aprendem entre si, mostrando quem são,

o que fizeram em suas carreiras, o que aprendem sobre os EUA enquanto estão aqui etc.

Jornalistas de mais de 100 países já fizeram curso na Nieman Foundation. Alguns países nem

existem mais.

E: A rede é fechada ou aberta?

J.B.: É uma combinação. Oferecemos cursos, palestras e oficinas. Mas, além disso,

deixamos que se relacionem a seu modo com o mundo de Harvard e nas suas próprias

conexões. Por exemplo, pedimos que venham à sede da Nieman três vezes por semana.

Não o dia todo, apenas duas a três horas cada dia. Assim, eles podem organizar-se para

assistir às aulas de Harvard, do MIT ou de TOEFL, para melhorar o inglês. Eles submetem

seu plano de estudos a Nieman, que oferece um plano de estudos de base para o ano, mas

estão livres para montá-lo como quiserem, para criarem sua própria rede. O único

requisito é que completem ao menos um curso por semestre. Em relação à construção de

suas redes, eles estão livres para definir suas metas.

Organizamos jantares em que os fellows possam interagir com os faculty members e entre

suas famílias também. Os fellows contam de suas vidas e seus casos em jornalismo. A

intenção é que dividam suas experiências e que criem laços como um grupo. Isso ocorre

24 vezes em um ano, para que cada jornalista fale de si.

Também organizamos seminários com um membro de Harvard ou do MIT para falar

sobre temas de suas especialidades. A última foi sobre prisões no Quênia. São duas horas de

evento, uma sobre o tema, outra sobre como o jornalismo deve cobri-lo149.

E: Há discussões sobre temas locais e temas globais?

J.B.: É uma experiência global. Não importa de onde venham; entram em contato

com pessoas de grande potencial, quase todo dia discutem sobre situações locais e sobre

temas globais com os colegas de suas aulas. Quando viram amigos, isso se aprofunda,

pois descobrem coisas em comum e passam muito tempo juntos.

Alguns percebem que eles não têm problemas tão diferentes entre si. Outros notam que

têm níveis diferentes de sociedade ou mesmo de carreira individual. Mas todos aproveitam a

Nieman porque estão fazendo parte de um grupo de discussão muito importante. A

experiência de dez meses os ensina muito.

                                                                                                               149 É interessante notar que as palestras não são sobre jornalismo, mas como ele deve cobrir temas da especialidade dos palestrantes.

192    

Temos uma rede razoável após a experiência pessoal. Ficamos em contato, discutimos

online, dividimos notícias. A cada cinco anos, temos uma reunião aqui. A maioria troca e-

mails entre os membros do seu grupo. Sugerimos aos novos candidatos que escrevam aos

antigos membros. Também fazemos Focus Groups para melhorar os temas discutidos na

Nieman.

Temos burocracia e passamos muito tempo trabalhando nisso. Mas é natural, pois temos

de viabilizar os cursos de Harvard aos jornalistas. Mas a mistura da praticidade deles com

nossas aulas traz um bom resultado. Existe uma mistura natural entre os objetivos deles

e os da Fundação, então eles podem fazer o que quiserem, que estarão cumprindo nossos

requisitos básicos do curso. É uma rede bem forte de opiniões. Se não gostam de algo, não

têm medo de dizer para mudar a política de educação da Nieman.

E: O que interessa mais aos membros da rede?

J.B.: O que lhes estimula mais é serem selecionados e fazer parte de um clube

exclusivo (risos); apenas 24 jornalistas a cada ano desfrutam da estrutura e capital

humano de Harvard. Podem fazer laços como quiserem, estão protegidos a

desenvolverem-se durante um ano, amparados pela Nieman.

E: O curso e a rede mudam por causa dos membros?

J.B.: O jornalismo de hoje e as mudanças de mercado nos fizeram mudar nos últimos 10

anos – como aulas de edição de vídeo e manejo de dados. Oferecemos consultoria de Harvard,

como o curso de Direito e Arte, que dão suporte a como usar essas novas tecnologias.

Essas evoluções mudaram a Nieman. Como as pessoas fazem sugestões, entregam

relatórios e pesquisas após um ano de trabalho, como gastam seu tempo durante a experiência,

tudo isso mudou a forma de ser da fundação em 70 anos. E atualmente, a revolução no

jornalismo digital não nos deu escolha. Tínhamos que nos adaptar.

E: Por que manter uma rede presencial?

J.B.: Não planejamos abdicar do curso presencial em curto prazo. A interação

presencial de bons jornalistas entre si e com os profissionais de Harvard dá uma grande

vantagem a eles, mais do que cursos online podem fazê-lo.

Se não estivessem aqui, não poderiam acompanhar as aulas de Administração do Kennedy

Center. Muito menos fazer conexões profissionais com os colegas de classe. Eles podem

eventualmente ir a painéis, palestras e seminários, falar com os participantes e interagir.

193    

Podem conhecer outros fellows de outros programas, alunos da graduação e da pós-graduação.

Muitos dos temas que o jornalismo cobre pelo mundo são discutidos em Harvard e eles

podem se conectar a especialistas da área, algo que não fariam se fosse um curso virtual.

O jornalismo vai mudar muito a maneira de distribuir informação. Não sei como

meu filho vai ler notícias, mas isso não vai mudar muito a natureza dos jornais. Mas o

processo de construção de laços, de combinação de experiências, de ensinar lideranças

como aproveitar a estrutura de uma das melhores universidades do mundo vai

continuar. Não vamos abrir mão disso.

No processo de seleção, sim, mudamos. Escolhemos os jornalistas internacionais desta

edição via Skype. Podemos conversar com eles, conhecê-los, e chamar membros da

universidade a fazê-lo também.

Mas para realizar o curso, vamos manter a versão presencial. Não somente nós, mas

o curso de Stanford, um dos melhores e mais atuais dos EUA, também não abre mão da

presença dos jornalistas. “Eles dizem: podemos aproveitar das instalações de Stanford e

da proximidade do Vale do Silício; é muito melhor que o curso seja presencial para

haver conexões entre jornalistas, pesquisadores e profissionais do mercado de

tecnologia.”

É por isso que temos um laboratório de jornalismo aqui. Para oferecer soluções

empreendedoras ao jornalismo como negócio. Stanford também tem um programa

parecido com o nosso. Mas três anos atrás decidiram, além de melhorar o jornalismo,

aprovar candidatos que têm projetos de inovação no jornalismo. Há produção para

melhorar o jornalismo como negócio. É uma mudança para os fellowship programs em

jornalismo nos últimos anos. Já os cursos como Nieman ou o do MIT preferem o curso

presencial e o networking entre alunos e a universidade.

E: E como eu entro em contato com o curso do MIT?

J.B.: Posso falar com Phill Milts. O diretor do MIT foi aluno da Nieman Foundation.

Breen sorri ao lembrar que Phill foi seu colega de fellowship program no passado. Não só

ele, mas os diretores de Columbia, Michigan e Stanford, os melhores fellowships de

jornalismo dos EUA. Hoje, a rede de diretores permite que os atuais fellows assistam a aulas

tanto em Harvard como no MIT, por exemplo. Essas universidades não têm curso de

jornalismo, mas dão acesso a um dos “clubes” acadêmicos mais importantes do mundo.

194    

E: Ótimo. Muito obrigado pela entrevista e contatos.

J.B.: De nada. Você também deveria prestar o Nieman. Senão, mande alguns

brasileiros, precisamos melhorar nosso time de futebol de Harvard.

Phill Hilts - Diretor do Knight Science Journalism at MIT

195    

Cheguei em cima da hora para entrevista com o diretor do Knight Science Journalism

do MIT. Confundi o prédio de numero 500 com o prédio de nome “500”, que alberga o

fellowship program. Andando por dezenas de edifícios sem identificação, pedi ajuda a um

estudante. Ele disse que nem mesmo eles sabem onde ficam tantos departamentos. Puxou um

smartphone do bolso e me apontou a direção que piscava na tela. Atá para dar informações, a

comunidade do MIT usa tecnologia.

Simpático e falador (para um americano), Phill Hilts me recebeu em sua sala

desarrumada em um dos milhares escritórios do MIT. Começou rasgando a falar

objetivamente, a la gringa, se houvesse o termo: “Há quatro programas de excelência em

jornalismo para fellows nos EUA: Stanford, Michigan Nieman-Harvard e nós”.

Após essa “carteirada” acadêmica, o experiente jornalista científico norte-americano

começou a partilhar sua impressão sobre o jornalismo de ciência e tecnologia e novos

modelos de negócio. No meio de uma bela discussão sobre função e futuro do jornalismo,

falou sobre o seu Knight Science Journalism. A rede presencial de jornalismo no MIT existe

desde 1983.

Phill Hilts: Existem outras redes menores, mas esses quatro programas pensam no

futuro da profissão. Três deles, Nieman, Michigan e Stanford, trabalham o jornalismo em

geral. O nosso é o único especifico, para ciência, tecnologia e saúde/medicina. Buscamos

jornalistas no meio da carreira, que trabalham com jornalismo científico. Eles são os mais

interessados em manter uma rede de contatos com os melhores jornalistas da área. Mais de

300 pessoas já fizeram o curso: jornalistas especializados, editores e freelancers. 90% deles

fazem jornalismo científico.

Objetivos da rede

P.H.: Nosso principal objetivo e dar suporte aos jornalistas para fazerem um bom

jornalismo cientifico. Selecionamos bons profissionais, que possam dar continuidade ao

que aprenderam aqui. E que possam se comunicar entre si para isso a todo o momento.

Nosso objetivo e construir paixão por fazer jornalismo. Não interessa de onde as pessoas

venham, estamos interessados em construir uma rede mundial para fazer bom

jornalismo.

196    

Por isso temos participantes estrangeiros. Para ter certeza de darmos chance aos

melhores de aprender e fazer contatos com jornalistas, estudantes e pesquisadores para

então voltarem e fazerem um bom jornalismo.

Para selecionar nossos bolsistas, recebemos candidaturas para 20 vagas, a maioria

preenchida por jornalistas estrangeiros. Como quesitos para aprovação, procuramos a

qualidade jornalística acima de tudo. Em segundo lugar, queremos que carreguem

consigo o que aprenderam e dividam com a população de seus países.

O ideal seria ter metade dos participantes estrangeiros. Muitos europeus se candidatam,

mas queremos alguém da Ásia, da América do Sul, da África... Queremos assegurar uma boa

mistura de gente do mundo todo.

Diferentes culturas

P.H.: Se você olhar ao redor de Cambridge ou do MIT, verá gente de muitos países150.

Ha uma bela mistura aqui. O objetivo é que cada um que venha, traga algo a acrescentar.

No nosso caso, em jornalismo de ciência e tecnologia. Estimulamos o diálogo entre os

estudantes. Por exemplo, apresentamos a nosso fellow da África estudantes e

pesquisadores do MIT da mesma região que a sua, para que possam gerar uma rede

local. Mas aproximar gente da mesma cultura não é o nosso objetivo. Queremos

conectar pessoas através de outra identidade, a do jornalismo, da ciência e da tecnologia.

A identidade nacional vem em segundo lugar.

Os bolsistas acham muito mais interessante estarem conectados com jornalistas

de 16 países diferentes. Isso é muito mais divertido. Perguntar aos colegas como contam

os temas nos seus países, como escrevem, qual a reação da população etc.

Perguntamos como é o jornalismo em seus países. Sabemos que se pratica jornalismo

diferente dos EUA no resto do mundo, mas no fundo, temos um mesmo padrão. Tentar

abordar fatos de forma aberta, com o objetivo de atender o publico, não o governo. A partir

dessa base, todos nos entendemos.

Mesmo quando isso não pode ser realizado, é a base do jornalismo no mundo todo.

Nossa fellow chinesa teve dificuldades para cobrir o socorro aos feridos pelo terremoto

na China, em 2010. Mas conseguiu, graças a publicações pela internet, que estimularam

a ida de correspondentes estrangeiros à China, o que finalmente fez o governo aceitar

                                                                                                               150 Uma pesquisa de 2012 mostrou que 52% dos estudantes universitários nos EUA são estrangeiros, limite aceito pelo sistema educacional. Destes, 56% são asiáticos.

197    

sua cobertura, com o olhar chinês. Nossa missão ainda é contar os fatos, o que está

acontecendo, de forma mais clara possível, não importando as circunstâncias.

Além da falta de liberdade, a busca de fontes é uma das maiores dificuldades para o

jornalismo. Nosso fellow africano não tinha acesso a fontes para fazer uma matéria local. Não

tinha nem mesmo computador ou telefone para isso.

Formação de redes

P.H.: Os jornalistas podem fazer sua própria grade de estudos, mas eu me asseguro

que passem por tópicos essenciais ao Knight Science Journalism at MIT.

Na semana passada, tivemos uma palestra de um cientista sobre memória e sono.

Outras vezes, recebemos especialistas em energia solar, arqueólogos, cientistas de todas

as áreas do conhecimento. O que queremos é que os jornalistas os ouçam, falem com eles,

e tornem-se fontes permanentes para eles. Com as aulas, palestras e trabalho de campo,

forma-se uma longa lista de fontes para os jornalistas. Quando eles voltam aos seus países,

têm em caixa grande número de contatos. E uma via de duas mãos, uma grande valia para os

cientistas e para os jornalistas.

Por que manter redes presenciais

P.H.: Jornalismo não é uma profissão, mas um ofício com significado especial na

cultura humana. Não sei dizer em cada país, mas em muitas sociedades o narrador

(“storyteller”) teve um papel especial. Falar com líderes e reis foi privilégio dos narradores

em muitas culturas. Isso é crucial.

Ainda estamos aqui, principalmente em sociedades democráticas. Como vamos falar

com políticos e seus projetos, se não temos liberdade de expressão e diálogo, sem a mediação

de um jornalista? Nossa missão é contar às pessoas: “é isso que esta acontecendo”, para elas

poderem tomar decisões.

Jornalismo ainda é necessário. Não para cobrir falhas na educação, mas para

contar as coisas importantes do dia a dia. São muitas, de diferentes tópicos, e não dá

para treinar jornalistas em tantas áreas virtualmente. Achamos OK haver cursos online,

o MIT oferece vários. Mas para jornalismo é diferente.

Precisamos de uma equipe trabalhando conjuntamente, para entender o que é

pertinente para a sociedade. Precisamos fazer histórias todo o dia, a toda hora. As

pessoas querem noticias frescas, e quem lhes oferece isso são os jornalistas. Isso não

198    

muda muito do jornalismo de antigamente para o de agora. Por isso precisamos ter

qualidades interiores para combinar tudo isso.

O que muda hoje é a forma de transmitir a informação: podcasts, vídeo, mídias sociais.

Precisamos tirar o melhor de todos os setores da sociedade: política, economia, ciência. O que

fazemos no Science Journalism at MIT é dar as ferramentas para que os jornalistas possam

fazer isso dia a dia.

Além disso, tirar um tempo para fazer um fellowship program é uma grande ideia

(risos). Esses caras precisam de um tempo para pensar no que estão fazendo em suas

rotinas, de um tempo de transição para mudarem suas carreiras. Um fellow era diretor do

WSJ, e aproveitou esse período para fazer a transição à carreira freelancer. Aprendeu técnicas

de jornalismo para aplicar como autônomo.

É vital ter um lugar para fazer essa transição; que bom que o fazem dentro de um job

training como o nosso. De fato, é muita sorte estar aqui, pois é preciso muito dinheiro para

fazer isso sozinho. Hoje, a política está tão contaminada que as pessoas acreditam apenas em

si mesmas. Então um curso como esse as ajuda se desenvolverem e a criar redes.

Pergunte aos nossos fellows. Vou conectá-lo a todos. Você pode perguntar a todos eles

como eram antes do curso e como estão agora. Você pode falar com todos os jornalistas do

Brasil ou falar por países.

De repente, eu fazia parte da rede de jornalistas do MIT program. Não porque fizemos

o curso juntos. Mas porque somos jornalistas buscando o melhor.

Terri Thompson - Knight-Bagehot Fellowship in Economics and Business Journalism at

Columbia University

O Programa Knight-Bagehot nasceu em plena crise do petróleo. Os EUA tinham

inflação alta, déficit de energia e falta de empregos. Era um novo fenômeno econômico, que

nem leitores nem jornalistas entendiam. Por isso, a Universidade de Columbia e o jornal NYT

pensaram conjuntamente no que podiam fazer para que os jornalistas entendessem rápido o

199    

que estava acontecendo. Assim nasceu o curso, voltado especificamente para economia e

negócios.

Características

Terri Thompson: O que nos distingue dos outros fellowship programs é que nossos

alunos ficam tempo integral na universidade. Por isso, todos recebem um salário para se

manter, 45 mil dólares anuais. Além disso, todos podem assistir a aulas gratuitamente na

Columbia University.

O Bagehot Program trabalha para melhorar o jornalismo de negócios; exclusivamente

essa especialidade. Os alunos vêm à Columbia para assistir aulas sobre negócios e tirar o

máximo de proveito dos cursos da universidade: economia, marketing, finanças etc.

Aprendem o básico de um programa de MBA em negócios. Os jornalistas não trabalham

enquanto estão no curso, de dez meses. É uma experiência muito cara. Porque eles têm de

pagar hospedagem, diferente dos demais fellowships programs, como Stanford, que oferecem

acomodação dentro do campus.

No início, em 1975, o curso foi bancado por sete instituições, com 8 milhões de

dólares. Então a Knight Foundation o assumiu em 1987, aportando mais 3 milhões de dólares.

Um aporte particular de 20 milhões também foi realizado. Mas não é suficiente; a cada ano

gastamos mais, então precisamos angariar cada vez mais. No último jantar de arrecadação,

conseguimos meio milhão de dólares.

Seleção

T.T.: Os jornalistas selecionados são os melhores em seus setores. O programa é muito

concorrido. Como é voltado para jornalistas de meia carreira, já tivemos jornalistas de 28 até

42 anos.

Eles têm muito tempo livre enquanto estão aqui. Quanto voltam aos seus

empregos, podem empregar as técnicas que aprenderam aos demais jornalistas. Mas

enquanto estão aqui, estudam bem duro. Afinal, é um programa de pós-graduação

(graduate studies).

Estudantes estrangeiros

T.T.: Até três anos atrás, só tínhamos vaga para um estudante estrangeiro ao ano.

Então abrimos o curso e agora temos até metade dos bolsistas estrangeiros. São asiáticos,

latinos, africanos e europeus.

200    

Um dos motivos pelos quais gosto de ter estudantes estrangeiros é que eles trazem

outra perspectiva sobre os temas. Trocamos opiniões em jantares, aulas e seminários. Eu

adoro estudantes estrangeiros, aprendo muito com eles. Não sei se é bom pra eles, mas é bom

pra mim (risos).

O programa acompanha jornalistas após os cursos?

T.T.: Tentamos nos manter atualizados no que os ex-bolsistas estão fazendo. Mas é

difícil acompanhar a todos. Criamos um prêmio para as melhores matérias dos fellows.

O que mais estimula os membros da rede?

T.T.: A maioria dos jornalistas do Bagehot tira um ano sabático para estudar. São

experientes e não ficam fora da redação há algum tempo, então é difícil dizer o que querem do

curso. É um choque para eles assistirem aulas de três horas. É um processo de aprendizagem

contínuo, pois alguns estão longe da universidade há 10, 15 anos.

A rede é aberta ou fechada?

T.T.: A Nieman Foundation foi o primeiro curso a investir nos jornalistas dando-lhes

bolsas para estudarem. Eles estipulam que os jornalistas têm de voltar às suas empresas de

comunicação. Tivemos essa regra aqui também por um tempo, agora não mais; tudo bem se

os jornalistas não voltarem ao mesmo emprego que antes. Mas é um problema, porque se

pensarmos nos jornais, eles liberam o jornalista por um ano, esperam ter retorno por isso. É

outro desafio, o de fazer os jornais entenderem o valor de um fellowship program. Já esta

acontecendo, jornais como o WSJ permitem aos jornalistas saírem por nove meses para

estudar.

Por que manter uma rede presencial?

T.T.: Não temos muita experiência em cursos online em Columbia. Ainda acreditamos

nos cursos presenciais. Durante um ano, os jornalistas têm 12 disciplinas diferentes, dentro do

curso de negócios e economia de Columbia. Assim, têm contato com economistas e

especialistas em negócios, aumentando seu numero de fontes, aumentando enormemente

sua rede. A rede vai além das mídias eletrônicas para trabalho, como o LinkedIn, pois é

mais profunda.

Além do mais, NY é um belo lugar para estudar economia e negócios. Temos a bolsa

de valores, a sede do Banco Central, as empresas em torno de Wall Street, além dos veículos

201    

de comunicação, especializados ou não. Nós fazemos visitas com os fellows a esses lugares:

vamos à Bolsa, ao NY Times, à Bloomberg... Também fazemos viagens de campo para

aprendizado sobre os EUA.

O que o curso mudou pela influência dos membros?

T.T.: Posso dizer por mim. Ganhei colegas de profissão, amigos, após 19 anos de

direção do Bagehot. É como uma grande família. O mundo se abre para nós,

principalmente graças aos jornalistas internacionais. Aprendo ouvindo-os de onde vêm,

quais as condições de trabalho em seus países... Para mim, o que mais me orgulha é o

que eles produzem após o curso: grandes reportagens, ganham prêmios, escrevem livros

incríveis. Nós ficamos em contato por isso, além do mais, eles voltam a NY e visitam a

Columbia, senão, contribuem com doações para a manutenção do curso. É uma mostra

de que gostaram do que fizeram aqui.

Jeremy Caplan - Diretor do Tow-Knight Entrepeneurial Journalism

Jeremy Caplan foi um dos diretores de fellowship programs mais atenciosos por

conversações por e-mail. Por isso, não entendi quando ele não foi ao nosso encontro na City

University of New York (CUNY). Estranho para um norte-americano, pensei.

Jeremy havia acabado de ser pai. Estava na sua semana de licença e teria se esquecido

completamente de nossa entrevista. Pediu desculpas ao telefone, e agendou nossa conversa

para o dia seguinte. Recebeu-me no seu escritório entre caixas de doces (que ele mesmo

consumia) e trabalhos paralelos, como e-mails atrasados e agendamento de tarefas pelo

telefone. Ainda assim, dedicou boa parte da tarde para conversarmos sobre fellowship

programs, identidade e redes de jornalistas.

Objetivos

202    

Jeremy Caplan: O objetivo principal do Tow Knight Entrepreneurial Journalism é

criar um sistema de negócio sustentável para o jornalismo. Outro objetivo é gerar um futuro

sustentável para a qualidade no jornalismo. Se você avaliar o cenário hoje, o modelo atual

está se debatendo. Não é segredo nem exclusividade dos EUA. É algo que não tem volta e que

mudou a indústria do jornalismo.

Chamo de jornalismo sustentável maneiras novas de se criar receita e de se cortar

gastos, o básico de qualquer modelo de negócios. Queremos ajudar nesse processo, ajudando

jornalistas, tanto os inseridos em empresas de comunicação, quanto os estudantes. Eles vêm

ao curso com novas maneiras de pensar o mercado.

Qual o perfil do curso e dos membros?

J. C.: Temos um curso de entrada, no outono, para estudantes de graduação. Eles

aprendem do que se trata o jornalismo empreendedor e sustentável. São três horas por

semestre, durante três meses. É um curso tradicional.

Outro curso que oferecemos é o programa científico. É mais aprofundado, semelhante

aos fellowship programs que há no mercado. São cinco módulos, durante um semestre. Nesse

programa, cada um dos jornalistas desenvolve uma start up.

No fellowship program, nem todos terminam sua start up em um semestre. Então

continuam desenvolvendo o projeto aqui. Temos uma fellow que desenvolveu um site com

100 mil usuários em média: “Big Girls, Small Kitchen”, para mulheres de 20 anos,

interessadas em gastronomia.

Acreditamos que os estudantes aprendem melhor fazendo. Então, além das

pesquisas cientificas, todos eles devem desenvolver um negócio. Você aprende sobre

mídias sociais, fotografia e edição de vídeo produzindo, não ouvindo uma aula expositiva.

É a mesma ideia com empreendedorismo, você tem de se mexer para aprender.

No nosso curso, a pesquisa científica serve para que o estudante faça sua própria

pesquisa de mercado, o que custa muito caro se contratadas empresas da área.

Quais as contribuições dos estudantes para a rede Tow Knight?

J. C.: Temos uma mistura entre jornalistas de meia carreira, jovens jornalistas e recém-

formados, saídos da CUNY. Queremos combinar expertise em negócios, com novas

tecnologias, com modelos empreendedores, com gente experiente do mercado de jornalismo.

É uma boa maneira de dividir ideias.

203    

Geramos um ambiente de amizade e cumplicidade, para que os jornalistas

possam trabalhar juntos. Eles vão juntos a jantares, seminários e visitas. As relações

alcançam níveis pessoais, e isso facilita o trabalho em conjunto. Assim, as pessoas podem

confiar umas nas outras e criar redes para evoluírem juntas.

São apenas 16 pessoas, por isso as pessoas não se sentem desgarradas (“lost in the

crowd”). Conhecem-se bem, contam suas origens, paixões, e dividem isso com todos os

demais.

Aprendi algo importante nesse processo, a importância dos elementos extra-

curriculares. Por exemplo, hoje trabalhamos com viagens de campo, visitas a start ups bem

sucedidas. Lá, os jornalistas convivem, discutem entre si, trocam informações e

impressões dentro do contexto do que estão estudando. Essas trocas não estão no

currículo acadêmico, mas contribuem para o aprendizado e a colaboração do curso. É

um ambiente de estudo, e os jornalistas tiram vantagem de estarem juntos.

Há identidade entre os jornalistas membros?

J. C.: Ao passar dos anos, vemos que os jornalistas se identificam com os temas pelos

quais têm interesse – o principal deles o jornalismo empreendedor. Eles vêm de diferentes

lugares, mas querem a mesma coisa: aprender como abrir um negócio em jornalismo,

gerar receita e cortar gastos. Um dos tópicos que lhes empolga é conseguir receita. Eles

aprendem a conseguir dinheiro para seus projetos e isso lhes estimula muito.

Também ficam intrigados em aprender como experimentação e inovação podem

auxiliá-los. Porque não se sentem mais isolados com suas ideias, percebem como há mais

gente fazendo coisas interessantes. Percebem como tem gente fazendo o mesmo ou melhor

em outras partes do EUA e do mundo. Então buscam modelos para aprender e aplicar em seus

projetos. Resumidamente, entendem como experimentação e inovação podem gerar receita

em qualquer lugar.

Discutem-se experiências locais e globais?

J. C.: Os jornalistas do Tow Knight são as melhores pessoas para medir se o que

aprenderam aqui em NY, EUA, pode ser aplicado em suas localidades. Eles conhecem suas

comunidades e tem a sensibilidade se projetos daqui vão funcionar ou não.

Debatemos isso no curso, se o que ensinamos funciona especificamente aqui, se

funciona em outros contextos ou se precisa ser adaptado. Por isso fazemos pesquisa

sobre modelos de empreendedorismo em todo o mundo.

204    

Entretanto, acredito que haja premissas que podem ser aplicadas em qualquer lugar.

Oferecer um produto jornalístico baseado nas necessidades do público, gerar renda e cortar

gastos funcionam no mundo todo. Especificidades do mercado local podem existir. Mas

focar-se nos problemas de mercado e como solucioná-los é o mesmo, não importa onde você

esteja. Por isso lhes ensinamos a fazer pesquisa de mercado, falar com pessoas para criar um

produto sem erros, identificar outros produtos similares.

A rede continua após o curso presencial?

J. C.: Estamos trabalhando para institucionalizar a rede que criamos para depois

do curso presencial. Estamos conectados pelas mídias sociais, a escola está aberta para

voltarem quando quiserem, como para as start ups incubadas, teremos um encontro

entre alunos, então fazemos o possível. Estamos no começo do curso, mas pensamos em

fazer algo por streaming também, mais broadcaster.

O essencial é que estimulemos sempre a discussão e a demonstração de casos de

sucesso para as start ups em jornalismo. Convidamos ex-estudantes para mostrar o

desenvolvimento de seus próprios casos. É divertido, as pessoas se conhecem, discutem.

É um jeito de ajudá-los, colocando-os em contato com outras pessoas. Somos os

mediadores de novas redes de interesse.

Queremos ser mediadores do antigo curso tradicional de capacitação, feito na

universidade, e criar mais pontes entre empreendedores, onde um treina e todos

aprendem, sob a forma de workshops, treinamento de novas expertises e a divisão

coletiva desse conhecimento. Eles aprendem sozinhos e dispersam conhecimento

coletivamente.

Nós já fizemos isso de várias formas. Realizamos eventos para discussão, visitas a

empresas para que os jornalistas aprendam com quem estão criando. Temos parceiros em start

ups de jornalismo, que recebem nossos estudantes para trabalharem nos seus projetos ao lado

de quem já começou a empreender.

Devemos capitalizar o que há de melhor em NY, que tem todos esses recursos.

Achamos produtivo o fato de os estudantes estarem em contato com empreendedores de

jornalismo o tempo todo. É boa essa perspectiva dos empreendedores a todo o momento.

Por que manter uma rede presencial?

205    

J. C.: Não e obrigatório criar uma rede presencial ou digital, pode-se ter as duas.

Mas acredito haver benefícios de se criar uma rede cara a cara, com diferentes pessoas

em uma sala, pois elas geram diferentes interações.

Online, as pessoas não conseguem interagir simultaneamente como

presencialmente. Existem os webinários, em que uma pessoa fala para várias outras.

Mas não gera uma situação em que muitas pessoas falam com muitas pessoas. Esse é um

tipo de fenômeno que só se consegue pessoalmente.

Eventualmente, praticamos os dois tipos de rede, parte dela presencial, parte online. E

acredito que teremos módulos totalmente online no futuro. Vai ser interessante ver como as

pessoas aprendem em um ambiente totalmente virtual.

Contatos e grupos de discussão presenciais ainda são importantes. A tecnologia

digital para isso está apenas começando. E eu estou extremamente empolgado com isso,

porque quero ensinar e dividir o que desenvolvemos aqui ao redor do mundo.

Dawn García - Diretora do John S. Knight Journalism Fellowships at  Stanford

“Edson, fale com os brasileiros Merval Pereira, jornalista da minha edição, e com

Teresa Otondo. Ou com Pedro Doria, do Globo, e outros tantos brasileiros que passaram por

aqui.”

Se dizem que o mundo é muito pequeno, o das redes sociais é ainda mais reduzido.

Graças a Jorge Imbaquingo, equatoriano do Programa Balboa de 2007, cheguei a Dawn

Garcia, sua diretora de Stanford, que me deu o contato de Merval Pereira, jornalista e Imortal

da Academia Brasileira de Letras, e de Teresa Otondo, jornalista com quem trabalhei na TV

Cultura de São Paulo. Doutora pelo Prolam em TV Pública, Teresa me ensinou a produzir

junto a redes de jornalismo, há mais de dez anos. As redes dão voltas sobre si mesmas.

206    

O JSK Journalism Fellowships de Stanford foi criado em 1966, mas foi reinventado

em 2006. Inicialmente, selecionava apenas jornalistas formados em Stanford. Em 1983,

tornaram-se um curso do Knight Fellowships, o JSK, quando o programa se tornou muito

sabático, como o Nieman/Harvard. Hoje, orgulha-se de seu modulo de inovação,

empreendedorismo e liderança.

Características e seleção

Dawn García: O curso dura dez meses, com residência dos membros da rede em

Stanford. Na metade do tempo, os alunos têm aulas, seminários, palestras e conversas sobre

suas próprias carreiras e o que pretendem fazer em Stanford. O jornalismo está mudando, e

queremos que os fellows pensem quem são eles, o que estão fazendo no mercado, e o que

podem fazer para se aproveitar das mudanças na profissão.

Então, selecionamos os melhores jornalistas a partir da excelência de suas carreiras, do

potencial que podem desenvolver, e como podem influenciar o mercado. Antes, só pedíamos

a eles que estudassem e que voltassem aos seus trabalhos, para aplicar o que aprenderam. Mas

a partir de agora, eles tem de vir com projetos de inovação e empreendedorismo em

jornalismo.

Inovação no jornalismo

D.G.: Inovação significa como nos adaptamos às mudanças do jornalismo. Os

projetos podem ser voltados ao governo, mercado de freelancers, ONGs ou a empresas de

comunicação.

Os fellows têm aulas na pós-graduação de Stanford, nas escolas de “design

thinking classes”, engenharia e administração. As aulas nem sempre atendem os tópicos

dos jornalistas, pois eles não estão atrás de um diploma de especialidades. Porem,

ajudam a terem novas ideias.

Por isso, oferecemos workshops, para treinar habilidades e esclarecê-los sobre o que

precisam, o que pretendem alcançar com seus projetos. Isso os agrada muito, pois precisam

reconhecer prioridades para começar sua empresa, como desenvolver planos de negócios.

Outra coisa interessante que fazemos é o “Fellow Fellows”, uma atividade na

qual vinte jornalistas ajudam uns aos outros dinamicamente. São aulas em que eles

apresentam seus projetos de inovação e empreendedorismo ao grupo para haver uma

discussão em brainstorm. Dessa forma, conselhos, correções e contatos na área são

compartilhados, para que os fellows possam melhorar seu trabalho.

207    

Intercâmbio e redes

D.G.: Temos 12 jornalistas dos EUA e 12 jornalistas estrangeiros. Eles fazem tudo

juntos, o que possibilita a todos solidificarem contatos. Muitos deles cobriam notícias ao

redor do mundo, e ainda assim não tiveram um contato tão próximo, dia a dia, com outros

jornalistas internacionais.

Certamente, há diferenças entre o jornalismo que eles praticam. E isso é bom,

porque faz as pessoas darem passos adiante de seus limites locais, e lhes ajuda a terem

ideias que nunca tiveram antes. Eles aprendem muito com isso, é uma das melhores

coisas do programa.

Por que manter uma rede presencial?

D.G.: Apesar de estarmos em uma era digital, não há nada como trocar

experiências em uma conversa presencial. Não seria a mesma coisa construir uma

relação sólida se eles não estivessem juntos.

Afinal, é um fellowship program, não um Master Degree Program. Não é um curso

em que você possa estudar por si só. Aliás, nem escolhemos pessoas cujos projetos de

inovação e empreendedorismo estejam focados no seu trabalho unicamente.

Confesso que no início fiquei receosa de que os jornalistas viessem a Stanford e se

isolassem em suas salas para realizar seus projetos. Não trabalharem em equipe seria uma

tragédia, pois essa é uma das bases do Programa. A colaboração é outra chave de

sucesso do Programa.

Felizmente, ocorreu o contrário. Fellows de anos anteriores colaboraram conosco de

uma maneira que não podíamos imaginar. Não só os fellows ajudam-se entre si, mas os

grandes jornalistas que se formaram no Knight seguem colaborando com nossos

estudantes. Outros continuam desenvolvendo seus projetos, como aplicativos e softwares.

Presencialmente ou em rede, muitos continuam trabalhando nos projetos iniciados aqui.

Melhorias na rede

D.G.: Pensamos em como melhorar o programa todos os anos. Agora estamos

pensando em como avaliar o impacto do programa nos jornais e nos jornalistas.

Pedimos aos jornalistas que eles digam em que podemos melhorar. Eles sugeriram um

coaching advising, algum instrutor para começar rápido o processo de criação de empresas.

208    

Também estamos estudando as outras iniciativas de fellowships nos EUA para pensar

em como manter a rede viva, em contato, algo que queremos desenvolver.

Entrevistas da tese na íntegra

Cremilda Medina

Jornalista desde 1961 e professora da UFGRS desde 1967, Cremilda chegou a São

Paulo em 1971. Convidada pelo prof. Dr. José Marques de Mello a fazer pós-graduação e a

lecionar na ECA USP, Cremilda seria uma das primeiras mestres em comunicação da

América Latina, cursando de 72 a 75.

Sua formação em Letras, a experiência no mercado de trabalho e as pesquisas na

Universidade de São Paulo seriam úteis à experiência de dois meses no Equador em 1973

para o curso do Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicación para América

Latina (CIESPAL), a primeira rede de jornalistas do continente, constituída desde 1959.

A barreira linguística entre o Brasil e a América Hispânica e os objetos simbólicos

inicialmente distantes foram suas primeiras aprendizagens no diálogo com os jornalistas. O

limiar de sua aventura e aprendizagem na América Latina havia começado contemplando as

diferenças ao invés de recusá-las.

Participante do CIESPAL de 1973 em diante, seu desafio foi equilibrar sua iniciação

sobre a América Latina, o diálogo com jornalistas locais e cursos oferecidos, ainda apegados à

funcionalização e dependentes de teorias e práticas do hemisfério Norte.

Cremilda encontrou amparo e diálogo com seus colegas de profissão, tanto jornalistas

quanto pesquisadores. Dos chilenos, por exemplo, aprendeu os modos de ser e de fazer da

209    

cultura andina, da indústria têxtil e da política de Salvador Allende. Dos equatorianos,

conheceu um Equador profundo, através dos mitos, ritos e do cotidiano de Quito, experiências

que Cremilda vivenciou como antropóloga e jornalista curiosa.

No Brasil dos anos 70, as coisas não estavam fáceis. Cremilda abandonou a USP pela

cassação de Sinval Medina, em 1975. Dedicou-se dez anos ao Estado de S. Paulo. Na volta à

USP, em 1986, não encontrou os mestres da sua pós-graduação dos anos 70 nem o clima de

discussão e construção intelectual de outrora, mas uma faculdade de cultura mecanizada e de

cursos funcionalizados.

O que Cremilda recebeu das coisas simples, como as conversas nos intervalos das

aulas no CIESPAL ou as visitas ao centro de Quito, foram os clímax pequenos que se aprende

com o Outro. Algo que os jornalistas do OESP ou os pesquisadores da USP da pós-ditadura

não entendiam. O que Cremilda aprendeu nas viagens ao Equador aplicou no jornalismo e na

sala de aula, transpondo o trabalho de campo da antropologia para a reportagem jornalística e

para o diálogo dos afetos, seus alunos. Junto a esses, desenvolveu laboratórios

epistemológicos, como a série de livros São Paulo de Perfil (1987-2008). Também promoveu

diálogos e redes de conhecimento interdisciplinares, como nos debates e publicações do Novo

Pacto da Ciência.

Cremilda mostra que a identidade dos jornalistas latino-americanos está no diálogo

entre pessoas, não nos cursos ou redes de capacitação. Nas viagens seguintes à América

Hispânica, confirmou a herança cultural comum com o Brasil, através dos objetos simbólicos

que encontrou nos mitos e ritos, e pela importância dos Estudos Culturais como chave para o

jornalismo de diálogo.

Sobre o CIESPAL, sua experiência mostra que as redes presenciais reuniam bons

intelectuais e jornalistas para o diálogo. Os cursos serviram para debater o que cada um trazia

consigo. Na verdade, Cremilda montou redes de afeto e confiança onde quer que atuasse,

fosse no jornalismo, USP, Memorial da América Latina, nos debates do Novo Pacto com a

Ciência, fosse na formação de jornalistas e pesquisadores em mais de 50 anos de dedicação ao

diálogo.

A participação de Cremilda Medina na reunião de 1973 e nos fóruns seguintes do

CIESPAL lhe gerou marcas na identidade como jornalista, como pesquisadora da ECA-USP e

como cidadã latino-americana. Seu relato de experiência 151 , registrado no livro “Do

Jornalismo à Comunicação”, será utilizado para diálogo com os relatos dos jornalistas do

                                                                                                               151 Do artigo “Do Difusionismo à Dialogia Democrática”, in “Do jornalismo à comunicação: 50 anos de estudos midiáticos na América Latina” (MARQUES DE MELO, José (org.). 2009).

210    

Programa Balboa. Isso permitirá uma comparação entre o CIESPAL e o programa Balboa

para Jovens Jornalistas Ibero-Americanos, tema desta pesquisa; e um retrato mais completo

sobre o jornalismo e o jornalista da América Latina.

Diálogos com América Latina, jornalismo e comunicação anônima

“Permito-me partilhar as coisas pequenas, o cotidiano das trajetórias individual e

coletiva”.

No segundo semestre de 1972, saio da Escola de Comunicações e Artes da USP e

mergulho, pela primeira vez, no universo latino-americano. Quito, Equador, sede do

CIESPAL: os Andes, a adaptação dos primeiros dias a altitude, a Vieja Quito e calle

Amazonas, a avenida moderna, que haveria de palmilhar durante dois meses. O Centro de

Estudos era apertado na época, mas o pequeno auditório me ofereceria um convívio de los

hermanos hispano-americanos. Falar português com eles, parceiros de comunicação? Nem

pensar. Exigiam que eu aprendesse o espanhol.

(...)

O primeiro aprendizado não foi nem técnico (ferramentas profissionais), nem

fenomenológico (ciências da comunicação), nem humanístico (sociologia, antropologia,

filosofia). A imersão se deu na cultura, nas identidades em que a língua e a observação

abrem as portas da compreensão. Se os conceitos procuram circunscrever a experiência

em teorias, a vivência cultural do cotidiano provoca a curiosidade e o acesso a noções

abertas sobre o Outro. O diálogo com minha companheira de pensão, a chilena Cecilia

Burgos, me introduziu no horizonte do extremo Sul. O Chile de Salvador Allende era até

então indecifrável, o que sabíamos desse país em ebulição que, no ano seguinte, cairia numa

feroz ditadura, era muito pouco diante do que a palavra e o gesto de Cecilia me revelavam.

Lembro (...) de trocarmos presentes como o teriam feito os ancestrais indígenas. Ela me deu

um casaco de inverno, não estava preparada para o intenso frio das noites de Quito. Ali

constatei: que indústria qualificada essa do Chile, da matéria prima à tecelagem, ao corte e

costura. Até então eu achava que só na Europa encontraria tal produto. Foram tantas as

descobertas que, muito motivada a conhecer a terra de minha amiga, combinei de, em 1973,

programar a viagem com meu companheiro, Sinval Medina.

(...)

No curso de especialização do CIESPAL, os dois chilenos eram muito solicitados na

troca cultural dos intervalos de aula. (...) naquele momento culminante do projeto Allende

mobilizava a atenção dos latino-americanos. O que não quer dizer que os Ciespalinos,

211    

praticamente somente jornalistas, não quisessem informações sobre a América Central,

Venezuela, Colômbia, Peru, Paraguai, Bolívia. Para os brasileiros, o Uruguai e a Argentina

eram mais familiares, não representavam tantas surpresas. Por outro lado, o mergulho no

Equador profundo foi a grande lição, não propriamente colhida nas séries de

conferências que vinham dos EUA, da Europa e da então União Soviética: uma

enxurrada de manuais difusionistas, sociologia funcionalista ou teoria critica da

comunicação social, metodologias de pesquisa quantitativas.

Durante a semana, os estudos; no fim de semana, os passeios pelo Equador. Nas aulas,

os latino-americanos mais inquietos, em que me enquadro sem censura, questionavam o

discurso do Outro, pois a coceira da Nova Ordem da Informação provocava a constante

pergunta: por que os do Sul tinham de ser colonizados pela visão de mundo do Norte?

Por que a metodologia, as teorias explicativas, a conceituação delimitada não se abria às

inovações da América Latina? (...) Já durante essa década (1970), alguns de nós voltaríamos

para dar cursos e, principalmente, coordenar pesquisas com novas tecnologias – o signo da

difusão migrou para o signo da relação (2006).

(...)

Apesar das circunstâncias de censura e da repressão, dava meu depoimento como

pesquisadora e jornalista militante nos debates acalorados com meus colegas Ciespalinos,

chamando o foco para as contradições e não para o maniqueísmo. (...) Foi duro discutir

complexidade na ECA dos anos de chumbo, no CIESPAL da dicotomia difusionismo / teoria

crítica ou em qualquer fórum que debatia, nos anos 70-80, a censura e a livre expressão. Mas

a estante de autores latino-americanos reuniria em Quito uma massa crítica significativa.

(...)

Ao entrar, nos fins de tarde, na Igreja de São Francisco, no centro histórico de Quito, e

perceber a suntuosidade do outro e do barroco, saltava o contraste com o povo indígena

acendendo velas e orando por dias melhores. O que mais me tocava era aquela gente

mirradita: onde estavam os primeiros habitantes guerreiros? (...) Não foi por acaso que

conheci Otavalo. Um jornalista equatoriano, que fazia o curso de 1973, me falou de sua gente

– uma cultura indígena que resistiu à Conquista, ilhou-se nos Andes e administrou, com

autonomia, a sobrevivência, com o comércio de seus produtos. (...) Quando voltei do Equador,

os profissionais do Jornal da Tarde152 não compreendiam o entusiasmo com que contava essa

e outras histórias.

                                                                                                               152 Fechado em 2012 pelo grupo Estado.

212    

(...)

Das incursões nos Andes, não pode escapar outra grande aventura, dessa vez inspirada

em um mestre da primeira pós-graduação da América Latina, Egon Schadem. (...) Ele

compareceu a Quito para oferecer um seminário. Muito informado sobre a cultura local, me

convidou para irmos a Latagunga, acompanhar a tradicional festa La Mama Negra. (...) O

antropólogo me fez experimentar o trabalho de campo. Na sala de aula do CIESPAL,

falávamos das teorias sociológicas da comunicação; em Latacunga, senti o gosto da

chicha, o cheiro da casa indígena, as cores da Mama Negra, o gesto das danças, o som

dos tambores. Tudo me fez compreender a importância da produção simbólica. (...) Ao

me aproximar de Nestor Canclini, partilharia a compreensão de que as narrativas da

contemporaneidade produzem e articulam sentidos perante o caos da realidade que nos cerca

e invade.

(...)

O enlace com a América Hispânica não desapareceu. Se não retornava nem em visita à

USP, prossegui nos itinerários latino-americanos. (...) A América Latina, às voltas com seus

projetos de construção democrática e desenvolvimento socioeconômico, o CIESPAL não

ocupava mais um lugar de destaque nas escolhas acadêmicas – os pesquisadores preferiam

especialização tecnológica nos EUA ou sociologia da comunicação na Europa. Teorias

Culturais? Nem pensar. Sentia-me estrangeira optando pelo cruzamento de comunicação

social com sociedade, cultura e mito. (...) Ir ao encontro do Outro, ainda que vizinho,

revela a condição humana do presente, traz à tona a memória das biografias e projeta o

sonho do futuro. Apesar da contemporaneidade da narrativa, os tempos e os espaços se

entrelaçam.

(...)

Nas redes à distância ou de conexões presenciais, aparece com nitidez a voz latino-

americana, brasileira e paulista seja em temas como o mundo do trabalho ou energia e meio

ambiente.153 (...) Daí resulta o que venho insistido nos últimos anos: mais importante do que

laboratórios técnicos de mídias impressas, eletrônicas ou digitais são os laboratórios

epistemológicos. As ferramentas mentais atrofiam se deixarmos de cuidar delas para só

nos dedicarmos ao treinamento das máquinas. (...) Podem analisar as vantagens da

velocidade no tempo e do encurtamento das distâncias nas mídias digitais, mas teorias

                                                                                                               153 Temas de 1995 e 2009 da coleção São Paulo de Perfil, livros que Medina editou junto aos alunos da ECA-USP.

213    

assépticas que dispensam o contato direto, corpo a corpo, não despertam os sentidos da

compreensão, da interação criadora.

(...)

O CIESPAL ficou para trás? Quase quatro décadas se passaram e a vertente cultural da

América Latina subsiste como o principal eixo dos estudos teóricos e das práticas narrativas

na comunicação social. Dos mitos fundadores aos desejos coletivos das sociedades

contemporâneas, não há como se mover física ou digitalmente, sem os símbolos dos povos

vocalizados nas personagens literárias. Como jornalista, o gesto da arte me aproxima da

dialogia da viagem ao Outro. A formulação de teorias da comunicação se fecunda nos

encontros vivos.

(...)

Ficou impregnada nos Ciespalinos a experiência do que é ser latino-americano, com o

Brasil incluído. As viagens que se sucederam, as buscas bibliográficas de autores do

continente e o trabalho jornalístico nunca mais partiriam do princípio de eles, latino-

americanos, e nós, brasileiros.

Cremilda Medina se perguntava quem era o jornalista de então. Via um trabalhador,

espremido entre as obrigações de ser um operário da informação e um vaso comunicante para

a sociedade. Havia falta de jornalistas na América Latina e de treinamento para corrigir isso.

Não só em quantidade, mas em qualidade. Jornalistas e escolas que associassem a imperfeição

da carreira e da noticia com a identidade dos jornalistas, autores em busca de afirmar seu

papel social. Regular a profissão na sociedade154, dialogar com todos os segmentos da

população e equilibrar individualmente “o mosaico da então história contemporânea”155

(MEDINA,1982: 24) eram os principais desafios da profissão.156

                                                                                                               154 Demanda difícil em plena ditadura militar no Brasil e em muitos países da América Latina. 155 Esse objetivo coaduna com os objetivos das redes sociais do século XXI e com a hipótese desta pesquisa. Equilibrar os signos locais e individuais com os discursos coletivos e globais por meio de redes de diálogo. 156 MEDINA (1982: 26) mostra que a implantação do jornalismo na América Latina traz consigo um aparato de máquinas e de organização industrial que se instaura nas redações. Sistemas produtivos verticais, assim como as indústrias, foram assimilados pelas empresas de comunicação do continente. Hoje, as redes sociais são uma proposta de re-horizontalizacão do discurso e dos papéis profissionais. Estabelecidas como fios e nós, sem hierarquia definida, as redes revivem sistemas de diálogo mais naturais, que se definem por linhas de interesse e confiança.

214    

Helena Fruet

Brasileira, jornalista, atriz e locutora, freelancer de revista, jornal e TV.

São Paulo, junho de 2010, Brasil.

Helena Fruet é uma das participantes mais atuantes do Programa Balboa no Brasil. Ela

organiza a seleção de candidatos para novas edições da rede, convoca os voluntários ex-

bolsistas, seleciona currículos enviados online, faz entrevistas pelo Brasil e dá seu parecer aos

diretores do Programa Balboa, em Madri.157

Helena se define jornalista, brasileira, locutora, atriz e jornalista. Ela se adapta onde

quer que esteja. Gosta de ser multiprofissional, e desenvolveu isso ao longo do tempo, mas

consideravelmente após sua participação no Programa Balboa, em 2006. Antes da rede,

Helena trabalhava nas revistas do Grupo Abril. Depois, mudou para o mercado de TV e

internet.

“Hoje, estou feliz com meu cotidiano. Ser freelancer te dá tempo para novos

projetos, para ver amigos, alimentar-se bem, fazer exercícios e praticar umbanda.”

Ela tem amigos de vários grupos diferentes. Além dos Balboas, espalhados pela

América Latina, conta com seus grupos de trabalho, de estudo e religiosos. Ela trabalhou na

Abril, Terra e Record News. Estudou em colégio de freiras, mas é umbandista. Mas mesmo

com todas as redes sociais, nas quais Helena transita muito, ela não se sente eclética, mas

limitada e dentro de uma rotina que considera pequena.

“Viver em São Paulo é meu lar, e onde está minha família, amigos. Aqui estão as

pessoas que amo. Meus amigos estão espalhados, porém estão dentro da categoria

grandes amigos, por isso estão perto.”                                                                                                                157 Esse é um tema interessante a tratar na tese. Não há rede social sem a participação dos integrantes ou ex-integrantes. Além da existência legal do Programa Balboa através de uma fundação, não há prédio, escola, curso, equipe ou material existente, além das trocas realizadas pelos Balboas. A rede se faz em movimento dos seus membros.

215    

É interessante como Helena faz suas próprias redes de confiança e de jornalismo. E

com elas sente-se próxima a todos os pontos da rede, independente se os membros estão em

São Paulo ou no exterior. Para ela, o que é aprendido e apreendido se torna próximo, pequeno

e fácil de lidar.158

Helena já havia morado no exterior antes da Espanha. Foi na Austrália, quando tinha

18 anos. Sua identidade foi muito influenciada por isso, pois lá foi ter contato com gente do

mundo inteiro.

Curiosamente, foi na Austrália que Helena se interessou inicialmente pela América

Latina, graças aos bolsistas que iam do continente. Começou a consumir cultura latino-

americana e a estudar espanhol. Voltou como voluntária da ONG que a levou a Europa, além

de ter outra experiência internacional, no México, para estudar espanhol.

Talvez por isso Helena goste de tudo que vem do milho: pipoca, creme de milho,

sorvete, milho torrado e tortilha. A alimentação dos mexicanos, baseada em dezenas de

espécies de milho, a fez gostar mais ainda da comida.

“Se tivesse que viver em outro lugar, talvez fosse no México, pois é parecido com

São Paulo, lá consigo achar um nicho pra me encaixar. Madri é bacana, mas não me

senti acolhida pelos espanhóis. Teria tudo pra ser maravilhosa, mas me senti hostilizada.”

Se fosse pelo currículo, teria escolhido outras redes sociais e programas de

intercâmbio em lugar do que lhe levou à Espanha, como o Chevenning da Inglaterra. Mas o

Programa Balboa proporcionava experiência de contato de estrangeiros, mais que aulas em si.

Na experiência do Programa Balboa, o que mais lhe chamou a atenção foi ter contato com

outros 19 latinos.

“Nenhum outro programa de rede jornalística me proporcionaria tanto contato

com pessoas de outras regiões, junto da experiência profissional. Alem disso, eu estava

mais madura e sabia, graças a experiências internacionais anteriores, que aprenderia

com esse novo desafio.”

Mas a primeira experiência na rede latino-americana de que Helena mais se lembra

não é nada boa. Quando dividia apartamento com três jornalistas em Madri, os vizinhos se

incomodaram com o barulho que elas fizeram durante uma festa. Eles chamaram os donos e

                                                                                                               158 Minhas redes sociais estão mais cindidas que as de Helena. Tenho minha rede de amigos de infância, suburbana, de classe média-baixa, e os amigos da universidade, de classe média-alta e viajados. Quando divido experiências de viagem com os mais regionalizados, me sinto tendo tido grandes experiências e viagens. Quando converso com os globalizados, que foram a mais lugares que eu, me sinto pequeno e regionalizado. As referências que oferecem o interlocutor no diálogo são importantes para se definir a própria identidade.

216    

estes chegaram aos gritos, junto com a polícia. Helena teve de negociar com eles, que

queriam expulsá-los do imóvel.

“Foi muito violento para mim, uma balde de água fria. Isso me agrediu muito.

Percebi com quem podia contar e com quem não podia. Isso foi um desafio autentico

para mim, de enfrentar a solidão.”

Naquele momento, ela percebeu recorrer a sua identidade brasileira. Queria falar mais

português. Helena se aproximou do grupo dos brasileiros e apenas conviveu com as

companheiras de apartamento desde então. “Já com outro Balboa, Luiz Fernando,

vomitava português.”

Cultura foi o que Helena mais trocou com os Balboas. Hábitos, cotidianos e histórias.

E explicações de como funciona o Brasil, já que ela identificou que a barreira da língua

portuguesa não permite aos jornalistas hispano-falantes saberem bem o que acontece aqui. Os

jornalistas latinos também lhe inspiraram, de diferentes formas:

“Lembro-me de admirar os venezuelanos e o nicaraguense pela coragem de fazer

jornalismo perseguido por censura e medo de violência. A colombiana também, por

cobrir guerrilhas e por entrevistar famílias de gente sequestrada. Deve ser muito difícil

cobrir isso. A atuação do jornalismo é diferente da nossa.”

Contudo, a pior experiência da sua edição foi a que mais uniu a todos. Uma bolsista

teve um surto psicótico e sumiu, sendo encontrada em um hospital, dias depois.

“O diretor do Programa Balboa, Aires Vez, coordenou grupos de busca e

acalmou a todos. Aires é, para Helena, o pai que ele nega ser aos bolsistas, já que zela,

ama, apoia e ama incondicionalmente.”

A figura de Aires Vaz é muito complexa. Diretor do Programa, tutor dos estrangeiros

na Espanha, Aires acumula papéis e busca líderes de cada edição para ajudá-lo a coordenar o

time. Helena recebeu muito bem essa responsabilidade, e organiza a seleção dos Balboas

brasileiros desde que voltou de Madri, em 2006.

A experiência foi muito forte para ela. Define-se Balboa hoje e sempre. Também acha

que o intercâmbio mudou a vida de muita gente. Ninguém teria voltado igual aos seus países.

Nem ela. Já não pertencia mais a aqui, nem a lá. Mas se reinventou quando trabalhou em

outra língua e viveu fora da casa dos pais. Hoje, ela se sente mais integrada ao resto da

América Latina, pois fala melhor espanhol e porque consome cultura de todo o continente.

217    

“Não temos cultura de entretenimento em comum, eles sim. Comecei a entendê-

los melhor agora que consumo mais cultura latino-americana, como música, filmes e

livros.”159

Helena se sente mais latina, em relações aos espanhóis, mas se lhe colocam ao lado

dos latinos, sente-se muito brasileira. Descobriu alguns estereótipos fortes e fracos do Brasil

para os latinos. O carinho dos brasileiros, por exemplo, e confundido como sexualidade

exacerbada pelos demais latino-americanos.

“Quando você esta no Brasil, você tem hipermetropia. E preciso se afastar para

enxergar melhor. Me senti muito mais brasileira, latina, gaúcha na Espanha e na

Austrália.”

Profissionalmente, passou a escrever mais sobre América Latina, no Portal Terra, em

2007. Tentou usar a rede Balboa no trabalho de início, mas foi muito difícil e hoje não o faz

mais. Muita coisa constituiu a identidade de Helena Fruet depois do Programa Balboa, mas

falar daquela época ainda lhe causa saudade.

                                                                                                               159 Eu aprendi a ouvir Juanes, o músico que mais vende álbuns em língua espanhola, a partir do contato com os Balboas colombianos. Juanes já não e mais um músico estrangeiro. Ele faz parte do meu setlist, como intérprete e interpretante da América Latina. Também consegui explicar o caipira brasileiro a partir das canções de Renato Teixeira. Os Balboas se emocionaram com os causos tristes do campo. Eles os sentiram e os entenderam.

218    

Marcos Todeschini

Brasileiro, mestrando sobre América Latina, “jornalista revisteiro”.

São Paulo, agosto de 2011, Brasil.

219    

Caco foi entrevistado em um período interessante para esta pesquisa. Ele tinha

acabado de voltar da experiência em rede, em agosto de 2011. Marcos Todeschini, 30 anos,

de Bento Gonçalves, foi recebido em uma festa preparada pelos Balboas brasileiros e,

histriônico, contou em uma noite tudo o que aconteceu durante seis meses de experiência,

meio alegre, meio bêbado de nostalgia e de chope. Conseguiu passar a nostalgia aos Balboas e

a ressaca a Balboa recém-convocada, Flavia Mantovani, devido à intensidade com que dividia

seus casos e causos.

Antes do Programa Balboa, Caco procurou outras redes de jornalismo na Espanha,

como a Fundação Carolina e o Master do El Pais. Mas no Programa Balboa achou gente da

sua idade, por volta dos 30 anos, com ansiedade de mudar, o que lhe fez se sentir parte de um

grupo. No Brasil, via gente acomodada com sua idade, e não se identificava com isso. Sua

vida estava ganha em São Paulo, cidade que escolheu após fazer o Curso Abril de Jornalismo

em 2005. Não estava em crise para querer fugir, mas isso o atordoava.

“Me incomodava ter controle sobre todas as coisas. Estar tranquilo me deixava

intranquilo. Muitas pessoas diriam que estava bem. Mas para mim, não. Precisava ser

desafiado de novo, perder o chão de novo. Desviciar meu olhar a uma rotina. Precisava

passar um tempo fora naquele momento, enquanto minha vida estava boa. Queria ir a

um intercâmbio quando era a única coisa que me restaria para fugir de uma vida

desgostosa.160”

Depois de saber que havia sido escolhido para participar da rede, Caco ficou bem

ansioso até o dia da viagem. Pirou. Tinha medo de não reconstituir todas as suas relações, no

trabalho e na vida pessoal, assim como fizera quando chegou a São Paulo. Tudo isso em outra

língua, em outro país. Mas tudo passou quando entrou no avião rumo a Madri.

“Comparo ao salto em bungee jumping. O maior medo é quando se está no

trampolim, antes do salto. Depois, quando se joga, o medo passa, é só alegria. Foi o

mesmo medo que senti nesse salto para a Espanha.”

As primeiras impressões dos colegas jornalistas eram uma colagem das conversas

online. Afinal, na internet as pessoas podiam ser mais desenvoltas que presencialmente.

“Quando chegamos é muito estranho, porque as pessoas já se conhecem

previamente pelo Facebook. Curiosamente, as mais desenvoltas e interessantes online                                                                                                                160 A entrevista de Caco para entrar no Programa Balboa ressaltou isso. Ele parecia bem e seguro o suficiente para aproveitar a experiência em rede e agregar valor ao grupo. Caco se mostrava tão feliz e mais feliz ainda com a possibilidade que estava por vir que brilhou como o candidato mais preparado profissional e emocionalmente em 2010.

220    

foram as mais apagadas durante o curso. As presenças mais marcantes e lideranças

eram outras.”

O Facebook, como rede social aberta, reorganizou algumas relações e papéis dos

Balboas. Aproximou alguns latinos já na Espanha, como namoros que começaram com flertes

online. Ou proporcionou o fim de relacionamentos nacionais, graças à exposição da imagem

via rede social. Alguns foram injustiçados pela interpretação errônea dos dados, outros

estavam na “gandaia do milênio”, mas sabiam medir isso na sua imagem online.

Marcos redefiniu certos conceitos, como a criação de laços de amizade e fraternais.

Caco escolhe seus afetos pelo tipo de humor, as observações que fazem sobre as coisas, a

profundidade que têm quando falam. Gosta de gente de coração aberto, que fala o que pensa.

Teve algumas crises, como quando chegou ao jornal Expansion de Madri e não sabia

que pautas sugerir nem falar espanhol corretamente. No dia seguinte à sua chegada, deram-lhe

uma matéria para fechar no mesmo dia: como as empresas espanholas podiam resolver

conflitos nos países na Primavera Árabe de 2011. Na época, pareceu-lhe difícil, pois não sabia

nada da conjuntura europeia.

Mas foi o que buscava, que era perder o chão, então encarou o desafio. Resolveu e se

reinventou pela humildade. Pediu ajuda aos colegas, que lhe indicaram casos e contatos.

“Volta-se a ficar feliz com pequenas coisas, como escrever e publicar. Faz brilhar

os olhos novamente. Faz lembrar por que escolhemos jornalismo. Acho legal o

Programa pegar jornalistas com alguma experiência. São cinco a dez anos de

experiência para muitos Balboas, mas muitos dos seus sonhos já morreram, alguns já

deram o braço a torcer a muitas coisas do jornalismo.”

Caco sofreu a segunda crise quando se deu conta que não sentia nenhuma saudade

pelo Brasil. Estranho, pois tinha partido de bem com o país. Então, ali devia ter um problema.

Pirou de novo. Descobriu que não tinha saudade porque no fundo sabia que a experiência em

rede era temporária. Outros Balboas sentiam o mesmo.

“Ensaiei conversar, mas não o fiz porque achei difícil elaborar em palavras.

Tentei falar com a Gisele, argentina, que sentia a mesma coisa. Mas desviamos a

conversa, porque achamos melhor chegar a conclusões por conta própria.”

O clímax de sua experiência foi na Grécia. Pudera, ele e seus melhores amigos da rede

compraram passagens low cost para um feriado e, logo, lá estavam eles em Miconos, bebendo

na beira da praia.

221    

“Sabíamos que a gente ia se ferrar para pagar aquilo, que o ano seguinte seria

difícil. Isso porque tudo estava tão bom, só podia piorar (risos). Antes de tudo, foi uma

viagem de amigos, sem compromisso.”

Ele afirma que foi um clímax não por estar na Grécia, mas por ter sido simples, como

tocar violão com os amigos Balboas no Parque do Retiro, em Madri. Sem nada na cabeça.

Não era nada gigantesco, podia ser na grama, perto de casa. Caco então percebeu que não

tinha ido a um parque em São Paulo em seis anos. E que se tivesse ido, teria sido

funcionalizado, com um objetivo especifico. Junto aos Balboas, ele não tinha objetivos

funcionais durante as trocas, diálogos e afetos.

“Isso foi uma redescoberta, aproveitar a vida de um jeito simples. Sempre fui um

defensor disso, mas deixei as coisas passarem por cima dessa convicção. Perde-se a

simplicidade, principalmente em São Paulo. Com meus amigos, reaprendi a levar as

coisas de forma mais simples.”

O maior bem cultural trazido dos jornalistas Balboas foi se tornar interessado em saber

o que ocorre nos confins da América Latina. Interessa-lhe saber por motivos pessoais. Não vê

mais a Venezuela apenas pelo estereótipo construído sobre Hugo Chavez, mas pela terra de

sua companheira Balboa que vive lá.

“Quando se fala de qualquer país latino, agora é pessoal. Troca-se isso ao morar

com latinos. Comidas como arepas e chicha morada, eu nem imaginava que existiam.

Quando cheguei a São Paulo, então, minha amiga peruana fez chegar por correio uma

garrafa de pisco. Achei muito simpático da parte dela.”

O mito da América Latina distante e intocável para o Brasil também foi rompido, pela

experiência com os jornalistas Balboas. O continente se tornou concreto, onde se pode ir e

trocar novas experiências. A unidade cultural foi outro mito derrubado, já que o continente é

algo tão diverso e complexo que não há como uniformizá-lo. Agora, Marcos tem a noção

clara das distinções da América Hispânica e Lusófona brasileira. Começou a partir das

distinções da língua. Sentiu, como Helena Fruet, a dificuldade de trocar bens culturais com os

Balboas hispano-falantes, já que entre si eles tinham esse fluxo naturalmente, através de livros,

filmes, música e programas de TV.

No início da experiência em rede, ele achava que falar em identidade entre os Balboas

era algo exagerado. Porém, tanto ele quanto os outros Balboas de 2011 foram acometidos pelo

grupo e ficaram ligados entre si. Os melhores amigos que fez foram latinos, mais que os

espanhóis. Percebeu isso quando, ao fim do intercambio profissional, viajou por dois meses

pela Europa e voltou a Madri, sem os Balboas. Foi bonito e estranho. Viu lugares palco de

222    

episódios marcantes, mas os personagens não estavam mais lá. Minha primeira volta à

Espanha foi de viuvez latina. Também andei por lugares onde os amigos e colegas já não

estavam mais. Então comecei a fazer amizade com os colegas espanhóis, depois de dois anos

da minha volta, em 2007.

“Hoje eu entendo por que as pessoas se locomovem pela América Latina para se

verem, presenciarem casamentos e outros eventos. Continuamos trocando músicas,

filmes, e agora estamos na etapa de nos visitarmos. Minha casa tinha um urso de pelúcia,

chamado Gregório, graças à estação Gregorio Maranon. Esperamos levar o Gregório a

visitar os membros da casa agora que voltamos.”

Gregório já foi a um casamento em Lima, e levou Caco para ver seus amigos Balboas.

Marcos voltou entendendo melhor São Paulo, com as referências de outras cidades,

inclusive as latino-americanas.

“Temos o melhor e o pior aqui, em questão de bairros. Causou-me choque, pois

vinha de uma cidade menor, mais homogênea. O gap social econômico e social aqui e

brutal.”

Viu que precisava de outro choque quando quase pisou em um morador de rua em

Pinheiros, onde mora. Não o percebeu. Estava anestesiado.

Caco não conseguiria trabalhar novamente em uma empresa com linha editorial tão

dura, como o grupo Abril, experiência importante para sua formação. Hoje, precisa criar.

Tudo que lhe é caótico tem mais valor, já que pode ouvir e ser ouvido, para além da

burocracia. Não imaginava que a falta de brilho no olhar dos jornalistas espanhóis, a mesma

das redações do Brasil, fosse tão definidora para sua própria carreira.

“Fui para países mais desenvolvidos economicamente que a Espanha, como a

Suíça e Suécia, e as pessoas parecem não se preocupar com nada, nem ao atravessar a

rua. Um pouco de caos, pelo amor de Deus! Para-se com um mapa na rua e na hora vem

alguém para te ajudar. É muito gentil, mas não há espaço para se perder. Quero ir por

conta própria, olhar meu mapa, descobrir meu caminho, meu espaço.”

Por isso Caco gosta de ser tão caótico e se adapta tão bem ao Brasil, à Espanha, com

jornalistas latinos ou com quem quer que seja. Em 2012, Caco foi para a Inglaterra, fazer um

mestrado sobre América Latina. Para manter seu caos rotineiro.

223    

Rocío La Rosa Vázquez

Peruana, mãe e esposa, jornalista de política.

Lima, abril de 2010, Peru.

Quando estava no colégio, Chio queria ser farmacêutica. Via-se usando

microscópio e avental. Mas um teste vocacional lhe apresentou a publicidade. Decidiu por

comunicação social em uma faculdade que sua família podia pagar. Encontrou-se nos

exercícios de jornalismo diário e transmissões ao vivo da TV universitária.

Estudante, conheceu uma jornalista que lhe aconselhou a começar no jornalismo

escrito, porque "aprendendo a escrever poderia trabalhar em qualquer lugar.”

“De fato, trabalhar em TV no Peru é algo muito efêmero. Pode durar um mês,

e não me agradou essa instabilidade. Já dei aulas na universidade que estudei e hoje,

infelizmente, até lá a TV acabou. Na época, aceitei o conselho, me candidatei ao jornal

El Comercio e estou nele até hoje.”

Sua experiência plena em jornalismo está relacionada com momentos da carreira.

Usa como parâmetro a experiência Balboa, de 2007.

“Antes da viagem, me sentia satisfeita em fazer jornalismo social e de

investigação, como sobre o narcotráfico. Fiz viagens à selva peruana e busquei

informações com fontes locais, ao mesmo tempo em que voltava à capital e contrastava

com fontes oficiais. Isso me deixava satisfeita. O que tenho claro é que não quero fazer

mais o que estou fazendo, ouvir políticos que não mudam de discurso de engano e que já

sei o que vão dizer.”

Agora que trabalha na web do El Comercio, Chio conhece mais e melhor as reações

que geram suas matérias, graças aos comentários, e-mails e redes sociais. Percebeu então que

224    

as pessoas não se interessam pelo que o presidente declara; estão preocupadas com outras

coisas.

“Isso marca minha segunda etapa profissional, depois da experiência de rede.

Não quero ser caixa de ressonância de notícias imediatas e inúteis. Quero me sentir mais

útil e brindar o público com coisas melhores através da comunicação. Quero me sentir

útil, talvez possa ir à comunicação corporativa ou social, em um organismo

internacional, como o UNICEF, ajudando crianças.”

Angelito e vida pessoal

Hoje, Rocio La Rosa Vasquez trabalha ao menos uma criança, seu filho Angelito, que

sempre está em movimento, brincando no chão de seu apartamento, enquanto conversamos,

em Lima. Além de carregar Angelito, cada vez maior e pesado, Rocio La Rosa não pratica

esportes, mas gosta de futebol e vôlei, como muitos peruanos. E como a maioria dos

compatriotas das grandes cidades, fora muito dedicada a grupos católicos juvenis e católica.

Hoje, apenas ora.

Gosta de ler, não muitos romances ou livros grandes, mas coisas curtas, ao caminho de

casa, nos ônibus informais e às vezes ilegais da capital. No momento da entrevista, estava

lendo Uma Nação de Idiotas (Stupid White Men), de Michael Moore. Acompanha seu irmão,

ator e produtor teatral, nas tendências do cinema, como filmes clássicos. Não vai muito a

museus, mas gosta muito de viajar. Fazia duas semanas, tinha ido à selva peruana, com

marido e filho, os Angelitos, porque quer que el pequeno sea viajero como os país. A família

quer visitar a Colômbia e o Brasil.

Experiência

Aspirava uma experiência fora do Peru, por isso procurou programas de jornalismo

para financiá-la. Encontrou o Programa Balboa por causalidade. Apoiaram-na no trabalho,

garantindo sua vaga quando retornasse. Desse modo, inscreveu-se e foi selecionada como a

única representante peruana de 2007.

O contato com os Balboas dos anos anteriores foi muito curto, apenas dois ou três

jornalistas lhe telefonaram para desejar boa sorte e perguntar se tinha dúvidas. Confessando

descontentamento com esse abandono dos colegas, Chio gosta, desde a sua volta, de realizar

encontros presenciais para dar dicas, conselhos e relatar lembranças aos novos bolsistas.

Quem fez contato diário com Rocio antes da viagem foi, quem diria, uma mexicana,

Laura Alicia Guzmán Medina, também entrevistada para esta tese. Prometeram apoiar-se na

225    

Espanha. Ao chegarem ao hotel que receberia os jornalistas por dez dias, outro mexicano

juntou-se à dupla, David Santa Cruz.

Quando chegou a Madri, em 2007, não esperava que o Programa Balboa fosse uma

experiência tão completa, juntando trabalho jornalístico com aulas. Achou muito bom logo de

início.

Poder desenvolver-se sozinha, desde as coisas pequenas, como comprar comida, pagar

contas e fazer com que tudo estivesse bem, ajudou Rocio a amadurecer. Mas naquele

momento tudo estava bem entre os 20 latinos, porque estavam todos na mesma situação, com

algum receio e ansiedade pelo novo que enfrentariam.

Novo como seu trabalho na Gaceta de los Negocios, jornal espanhol incumbido a ela.

Mas isso se resolveu logo, primeiro por intercessão do Programa Balboa, depois pela sua

própria iniciativa, trabalhando direito.

“Os colegas do jornal pensaram que éramos estudantes, depois perceberam que

éramos profissionais como eles. Isso foi um traspie no início. Tinham receio de publicar

minhas matérias.”

No entanto, isso passou e Rocio foi designada a fazer matérias políticas, como as

eleições municipais de Madri. E então começou a encantar-se pela experiência de trabalhar

em alto nível em outro país.

“Estive no Congresso e compartilhei o mesmo espaço que o Rei Juan Carlos e

a rainha Sofia da Espanha, além de termos uma conferência com o Príncipe Felipe. Não

podia acreditar em ser reconhecida por ele como uma jornalista.”

A volta

Comparar o que trouxe do diálogo com os outros jornalistas da América Latina e

seus colegas da Espanha causa graça em Chio.

“Aqui no Peru, tem-se uma imagem do jornalista como alguém que tem hora

de entrar no trabalho, mas não tem hora para sair dele. Achei que era igual no mundo

todo, mas em Madri, não; os jornalistas podem ir para casa no fim da tarde, sem o

complexo de escravidão que depositam em nós. Lá, ninguém diz que você é um mole, um

vagabundo por trabalhar menos e ter qualidade de vida. Agora que tenho família, tenho

que dividir meu tempo entre o trabalho, meu marido e meu filho. Por isso tenho pensado

na comunicação corporativa; é algo de que gosto e no qual posso ter uma vida normal,

com fins de semana, feriados e horas extras, coisas não usuais no jornalismo.”

226    

Chio ressalta as amizades que fez com os latinos de sua edição, eternas, segundo

ela, mas também com seus colegas espanhóis de jornal.

“Conheci a família de uma amiga de jornal, que me escreve constantemente

até hoje, perguntando, por exemplo, quando minha irmã chega a Madri para poder

recebê-la. Isso me parece incrível, e foi tudo graças ao Programa Balboa.”

Ela entende melhor o Peru, não só pela rede de jornalistas na América Latina, mas

pelos colegas espanhóis de 2007. Considera a todos uma rede de amigos, que lhe abriu a

mente e a missão que tem como jornalista. Sente menos diferença entre os países da América

Latina e entre os cidadãos daqui com os da Europa. Problemas locais e globais, gente parecida

em toda parte com quem Chio viveu e conviveu. Ela não sabe se mudou sua maneira de ser,

mas lhe tocou o afã que as colegas de redação tinham por ela em Madri. Sentia que estavam

todos pendientes de ella.

“Entre nós, latino-americanos, até as diferenças são interessantes, porque não

se ensina isso nos livros de história. Vamos nos inteirando disso nas conversas, nas

trocas de vocabulário e expressões, na história de cada um. Achava que a corrupção era

algo crônico somente do meu país. Entretanto, conversar com vocês mostra que isso é

um problema em larga escala. Sobre os europeus, pode-se pensar que um espanhol de

classe média possa ter uma vida melhor que um peruano médio, mas ter uma relação

com eles me mostrou que temos as mesmas preocupações. Os espanhóis estão

preocupados em pagar as contas no fim do mês, estão até o pescoço com a hipoteca do

imóvel, não podem sair sempre para comer em restaurantes, trazem a comida de casa

para almoçar no jornal... ver que eles têm limitações econômicas como nós me fez

admirá-los mais, nos aproximou. Meus amigos dizem que querem visitar o Peru; estou

ansiosa mas eles nunca vêm... Me parece incrível ter amizades tão próximas assim.”

A volta ao Peru lhe foi muito difícil. Apesar de seis meses em Madri terem passado

muito rápido, foram muitas vivências acumuladas. Temia voltar “na mesma”, cogitou talvez

em Madri e tentar outra vida.

“Me sentia estranha em Lima, minha própria cidade. Estava acostumada com o

transporte e as ruas de Madri, meus amigos e coisas de lá. Voltar a Lima foi como começar

tudo de novo, mas com todas aquelas experiências somadas. Ao conversar com o peruano que

está agora em Madri, soube que ele também está com essas dúvidas, não quer voltar. Eu lhe

disse que lhe entendia perfeitamente.”

227    

Rocío teve que tomar decisões importantes, como sair de casa e formar sua própria

família, casando-se com Angel, agente da Polícia Federal. Apesar de não querer fazer o

mesmo de antes, havia uma vaga de emprego lhe esperando, e sentiu que devia cumprir a

promessa ao jornal. Felizmente, pois ela engravidou, saiu de licença maternidade e teve seu

lugar garantido no mercado de trabalho.

“Em Lima, não há uma grande variedade de veículos de comunicação pelos

quais transitar. Trabalho no jornal mais importante de Lima e mudar para outro

poderia ser com menos benefícios ou estabilidade.”

Na volta, planejo mudar de posto no jornal, a seção de internet do Comércio. O

Peru se desenvolveu muito nos últimos anos na parte informativa via Twitter e Facebook. As

instituições podem informar mais rapidamente.

“Tenho de estar antenada aos canais dos candidatos, congressistas. O

presidente, por exemplo, anunciou pela primeira vez seu apoio à eleição via Twitter. O

que antes era feito em coletivas de imprensa hoje é feito pelas redes sociais.”

Laura contou o mesmo: no México, os jornalistas estão obrigados a acompanhar

as páginas dos políticos; a argentina Sol pediu aos Balboas contatos de políticos latinos e

recebeu links de páginas pessoais.

Na versão impressa do jornal, escrevia mais sobre América Latina. Agora, alguma

crônica aqui ou artigo ali sobre política. Usara a rede Balboa como fonte, pedindo

informações para preencher suas matérias. Chio prefere trabalhar no jornalismo mais

formativo, mas acha que, mas graças à velocidade da internet, isso se perdeu nas empresas

jornalísticas.

“Te exigem, te exigem, te ponen presion, mas não oferecem capacitação

jornalística se você necessita de mais ferramentas para trabalhar. Acham que você é

uma máquina informativa. Sobre o que se produz, quanto mais sangue descrito nas

páginas, melhor. Hoje estava conversando com uma companheira de TV e ela também

estava preocupada com essa questão formativa.”

Agora, Chio está pensando seriamente em ingressar na comunicação corporativa.

Tinha isso em mente desde Madri, graças a palestras que teve no Programa Balboa.

“Mas antes, preciso fazer algum curso ou ganhar alguma experiência. Estou

vendo para onde ir, é uma decisão tomada, só vou esperar um pouco para caminhar

bem.”

Hoje em dia, Chio dá aulas sobre jornalismo interpretativo em uma universidade.

Compartilha experiências com os alunos e, quando pergunta a eles quem quer ser jornalista de

228    

diários, somente uns 5% levantam as mãos. Os demais dizem que jornalista trabalha muito,

ganha pouco e não tem vida. É a percepção que se tem em Lima sobre a profissão. Chio não

quer mais isso; é o que trouxe de maior valor de Madri.

Decidiu mudar-se a uma região mais tranquila que o centro, onde trabalha, para que

Angelito pudesse brincar na rua; uma zona residencial, mais tranquila, arborizada, com menos

desordem nas ruas.

“Viver em Lima é ter muita paciência. Sofri muito na volta de Madri, porque

tive que voltar a lidar com falta de transporte, falta de educação dos motoristas, a

bagunça das cidades, o comércio informal das ruas. A cidade melhorou muito nos

últimos dez anos, mas às vezes penso por que não vou embora, para uma cidade mais

ordenada. Viver em Lima é conviver e aceitar essa informalidade, tanto no transporte

como no comércio.”

Tentaria uma vida fora da capital, ate mesmo fora do país, pois viver em Lima

também é se acostumar a respirar umidade, 80% no ar, clima que no inverno é bastante

daninho. Voltou recentemente da selva Peruana, e se lhe transferissem para um posto na

Amazônia, seria feliz lá.

“Se tivesse que viver em outra cidade no Peru, seria Arequipa. Fica ao sul, é

organizada, tem meios de comunicação em desenvolvimento. Não temos veículos

consolidados no interior, mas Arequipa e Trujillo têm meios de prestígio. Viveria nessas

duas. Mas nos últimos meses, Angel e eu temos conversado sobre viver nos EUA.

Interessa-nos aprender inglês e viver em uma cidade onde temos família por causa do

nosso filho. Se Angel for promovido a comandante, conseguiremos uma licença.”

Angel conseguiu a promoção, após serviços prestados no combate ao tráfico

internacional de drogas. Mas eles ainda vivem em Lima, com Angelito cada vez maior, pelas

fotos que Chio nos manda, de sua vida cada vez mais normal e feliz.

229    

Laura Guzmán

Mexicana, recém-casada, radialista.

México, Distrito Federal, julho de 2011.

A mexicana Laura Guzmán era uma das minhas melhores amigas em Madri. Ria fácil

das minhas piadas, ou melhor, as entendia, com os duplos e triplos sentidos que os causos de

nossos países carregam. Trabalhou na Agência EFE como repórter assim como eu, mas no

período da manhã. Então cativamos uma relação nos bares em que nos encontrávamos com os

outros Balboas, nas danceterias eletrônicas que os demais rejeitavam, esperando o Buo,

ônibus de madrugada, em frente ao prédio do Correio de Madrid.

Cristalina e emotiva, Laurita parece representar bem o que é ser mexicana. Fui visitá-

la em 2012 no D.F. Como desculpa, o trabalho de campo e as entrevistas para o doutorado.

Sinceramente, nutrir uma amizade já de seis anos, mas apenas seis meses presenciais.

Antes da viagem, o cotidiano de Laura era parecido com o de hoje, como produtora de

um programa de rádio. Na verdade, estava meio tedioso, achava chato sair de casa, chegar ao

trabalho, produzir, voltar para casa. A rotina le estaba aburriendo, por isso buscou opções

para bolsas e cursos na Espanha.

Saber da sua aprovação no Programa Balboa lhe deixou muito contente, pois lhe

emocionava a ideia de ir à Espanha. Nunca havia falado com um Balboa de edições anteriores

para que lhe contasse como era, mas queria que acontecesse.

Chegou muito emocionada ao hotel Zurbano, sede dos Balboas, onde ficaria por dez

dias, com muitas expectativas de conhecer gente nova, trabalhar com pessoas e em um lugar

diferente. Sentia muita adrenalina.

“Nos primeiros dias no hotel, sentia-se como uma criança, descobrindo muitas

coisas novas. Tinha preocupação de com quem ia viver, onde ia trabalhar. Estava alerta

de saber como eram todos Balboas para escolher bem os companheiros de casa. Tudo

era novidade.”

230    

Laura reservou um apartamento entre seus colegas e, de repente, deu errado. Isso lhe

preocupou de início. Mas seus novos amigos a tranquilizaram. Laura nunca teve problemas

com nenhum Balboa. Prefere ignorar a brigar.

“Éramos todos tranquilos, muito respeitosos das coisas dos demais. Nunca

brigamos ou tivemos problemas. Fomos muito claros com regras, como limpeza e

divisão de gastos; éramos muito equilibrados entre o coletivo e o individual. Se queria

comer algo de outro, pedia para me convidar.”

No trabalho, no começo, custou-lhe um pouco, porque era uma forma diferente de

trabalhar.

“Tudo era muito tranquilo, só às vezes se corria um pouco, e aí vinha a calmaria.

Estava acostumada a fazer as coisas rápido, e chegava à agência e perguntava o que

faria. E não tinha nada o que fazer. Acostumar com esse ritmo de trabalho me custou

um pouco, mas desfrutei e aprendi muito. Os amigos Balboas compensaram a falta dos

amigos mexicanos. O mais difícil era estar longe de minha família. Los extranaba

muchisimo.”

Nesse momento, o venezuelano Pedro Pablo lhe ajudou muito.

“Não queria voltar para casa, mas quando me sentia mais triste, o Pepe sempre

tinha palavras de alento e esse abraço que sempre faz falta. Ele sempre estava pendiente

de mi.”

Um clímax pessoal foi ir a Paris, sozinha. Sempre quisera ir, desde criança. Quando

tinha nove anos estudou francês, e falava muito da capital francesa.

“Quando cheguei a Paris, casi a las lágrimas se me salieron, foi muito especial, era

um sonho que eu estava realizando.”

Profissionalmente, foi trabalhar na agência e fazer entrevistas internacionais que

nunca imaginara fazer.

“Com John Travolta, foi genial! Finalmente, a agência me deu confiança para

fazer grandes entrevistas. Isso me dejó un buen sabor de boca. As pessoas confiavam em

meu trabalho. Mas não se pode tirar fotos com a celebridade. Malditos sean!” (risos)

“Os últimos dias em Madri foram difíceis. Era pensar que tudo tinha acabado,

que não iríamos nos ver mais, imaginar quanto tempo iria levar para nos

reencontrarmos. Depois de quatro anos, ainda me lembro, e vem a melancolia de não vê-

los e de querer ver todos outra vez.”

231    

Voltar à cidade do México foi bom. Laura adora o D.F., mas o comparava a Madrid,

pela segurança e a quantidade de coisas para fazer. “Como vou deixar essa cidade?” –

pensava. A Cidade do México, caótica e insegura, fazia com que ela titubeasse.

Ambiguamente, tinha muita vontade de ver seus, irmãos, amigos, sobrinhos, abraçá-los.

Voltou e foi mais fácil do que pensou. Quando estava de volta, só falava em Madri, um pouco

pesado para os amigos.

“Voltei ao trabalho, mas com um cargo mais importante, coordenadora de

produção. Me ajudou porque passei a fazer coisas que não fazia antes, a aprender a

trabalhar de novo, me ajudou a viver os meses do regresso.”

“Aprendi com os espanhóis a tomar conta do meu tempo, além de trabalhar,

trabalhar, trabalhar...”

Aprendeu isso com os espanhóis. Além disso, ter estado na Agência EFE de Madri fez

com que os colegas de jornalismo no México lhe valorizassem mais: “ela foi a Espanha e

conseguiu vencer, então pode fazer as coisas aqui”.

Entretanto, Laura ressalta que a amizade de todos os Balboas foi o mais importante

que trouxe da Europa.

“Trago todas as lembranças que fiz com vocês, viagens, passeios, vivências, isso é

o mais importante. Depois de quatro anos, a amizade segue, e estou segura que vai

seguir, e isso é o que dá mais satisfação.”

Laura se casou em 2012, de forma relâmpago, como que se exacerbasse todo o afeto

que tinha. Em vez de matérias ou pedidos de fontes, hoje nos manda fotos de recuerdos y

chucherias da casa que está montando com seu esposo. Os enfeites parecem tão próximos

quanto os que ela encontrava na feira do Rastro ou nas ruas do centro de Madri.

232    

David Santa Cruz

Mexicano, budista, freelancer.

México, Distrito Federal, julho de 2011.

David Santa Cruz vive de contrários. Pode dizer vários refraneros populares, frases de

caminhão ou piadas de duplo sentido e, no momento seguinte, citar prosa russa, música

clássica e budismo. Esse mexicano meio difícil de entender, mas fácil de se apegar, foi o

quinto elemento a viver em meu apartamento em Madri, após sua república de estrangeiros

fechar. Bom cozinheiro, meio filósofo, David parece um jornalista à moda antiga, aqueles

viscerais que sabiam um pouco de tudo apenas porque queriam entender o mundo.

Nossa conversa ocorreu na cafeteria do Museu de Antropologia do México, onde

David fazia retiros de férias quando criança, visitando alas e entendendo melhor seu povo e

seu passado. Chegou com um hijab, um lenço palestino, que comprara nas suas andanças pelo

Marrocos, quando vivíamos em Madri. Não contrastava com seus óculos retrô ou suas roupas

urbanas. Afinal, sejam objetos ou palavras, tudo tem um sentido para David.

Antes de participar da rede Balboa, sua vida estava monótona, ou como diz ele,

rotineira, tanto profissional como pessoalmente. Dependia extremamente do trabalho, ou

melhor, o trabalho dependia dele: 12 horas em uma redação, e atividade pessoal e familiar

apenas nos fins de semana. O rotineiro começava a transformar-se em frustrante, pois não era

o jornalismo nem a vida que David queria ter.

Sentiu-se emocionado quando convocado pelo programa. Tinha muitas expectativas,

como abrir um novo caminho na sua vida, voltar a estudar e viver fora do país. Além de uma

festa de família, David não teve uma despedida. Combinou uma reunião de despedida entre os

Balboas mexicanos, mas ninguém foi. Não falou com nenhum dos demais bolsistas antes da

viagem.

233    

“Tinha ânimo de estudar também, mas, para ser honesto, fui para la fiesta.

Afinal, estava de férias após anos sem descanso. E claro, com a emoção de estar na

Europa, um objetivo de vida de estudar no estrangeiro. Aprendi a me deixar levar pela

vida, sem nadar contra a corrente. Adaptar-me ao imponderável da vida. A ver lo que

pasaba allá, entonces.”

David não é dependente das pessoas, o que fez com que se desenvolvesse mais

facilmente na Espanha. Até se excedeu, desligando-se muito da família e amigos no México

enquanto estava na Europa.

Sua prima vivia em Madri, e foi um grande apoio para David. Viveu o começo da

experiência com ela, dividindo coisas intensas. Também fez parte de uma comunidade de

blogueiros mexicanos na Espanha.

Para conseguir casa, complicou-se um pouco. Teve que viver com alguns dos Balboas,

o que afinal lhe integrou a todos. Aproximou-se mais de Mario Alberto, colombiano, quando

da morte do irmão dele.

“Eu dormia na sala, e Mario chegou pedindo o espaço para falar com sua família.

Ele me abraçou e ambos começamos a chorar. Ofereci-lhe minhas economias (as únicas

que fiz em minha vida), para que pudesse pagar o voo à Colômbia. Isso foi muito forte, e

me fez retomar contato com minha própria casa.”

Decidiu que devia mostrar quem era pelos seus textos. Tinha se convertido em um

canal de transmissão, perdendo a voz narrativa que deve ter um jornalista. Percebeu que nem

tudo era trabalho. Devia relaxar um pouco e valorizar seu tempo livre.

“Voltei a formar uma família. Podia contar com todos os irmãos Balboas. Fiz

primos, amigos estrangeiros, da outra república em que vivi. Por diferentes

circunstâncias, tinha amigos por toda Espanha. Caminhando pela cidade, cruzei com

uma colega de trabalho do México. Nós dissemos ‘olá’, então achei estranho e me dei

conta: ‘como assim, olá, ela devia estar no DF!’ Nenhum de nós sabia que estávamos em

Madri.”

Entre várias propostas para publicar seus textos, uma marcou seu desenvolvimento

profissional. Uma matéria sobre mercenários, e o mercado desses profissionais pelo mundo.

Nesse momento, David para a entrevista e atende ao telefone. Negocia um freelancer

para a Irlanda, como enviado para cobrir adegas de whisky da Johnnie Walker. Começa a rir

de alegria e volta a conversar comigo.

“Esta reportagem começa com um tema local do México, a conversão de

militares em sicários, aproveitando habilidades adquiridas como oficiais do Estado. Esse

234    

tema é muito local. Busquei um foco mais amplo, e terminei com uma pauta sobre

mercenários pela Europa. Foi muito enriquecedor, inclusive porque deu muito trabalho

para ser feita.”

Levou semanas investigando o tema. Nem todos estão dispostos a falar sobre isso, dos

envolvidos aos altos comissariados da ONU. O texto foi crescendo, e ele ficou com cinco

páginas, em uma seção em que só havia duas páginas.

A editora internacional da revista Tiempo lhe disse para cortar as três páginas, mas que

iria negociar um bom espaço para seu texto, porque ele valia a pena. Quando saiu da reunião,

disse-lhe que não havia conseguido as três páginas, mas quatro. Os editores das demais seções

leram a matéria de David e decidiram ceder espaço de suas editorias.

“Uma matéria de quatro páginas é muito difícil de publicar. Ver uma equipe

espanhola trabalhar em conjunto para meu texto, de um estrangeiro, me marcou. Senti

que vivia uma experiência diferente, acho que isso foi o clímax do Programa Balboa

para mim.”

A volta ao México lhe pareceu fácil, na medida em que voltou com emprego. A

revista Cambio, onde trabalhava, ofereceu-lhe um trabalho de editor de internacional.

“Chegar como editor da editoria internacional, depois como editor geral da

revista, me ajudou a aterrissar muito bem de volta ao México. Retornar à casa foi outra

coisa. Inicialmente, foi lindo, tinha comida quente e roupas passadas. Mas após um mês,

parecia asfixiante. Para falar a verdade, porém, a parte mais forte foi perceber que não

poderia ficar em Madri nem se quisesse. Isso me deixou triste, pois queria ficar para

fazer um mestrado. Negociei um emprego de cozinheiro em um restaurante mexicano

por 1000, 1200 euros. Depois, tentei ser garçom. Mas me perguntei se abandonar minha

carreira era o que queria. Então me dei conta que deveria voltar para casa.”

Da revista Tiempo da Espanha, recebeu a oferta de ser correspondente, um stringer, a

partir do México. Fez as contas e percebeu que ganharia mais do que se vivesse em Madri, o

dobro se somasse esse trabalho ao de editor na revista Cambio, além de manter uma qualidade

de vida semelhante à europeia, como vivendo no bairro da Condesa, onde reside agora.

“Regressei melhor do que fui. Economicamente também. Meu avô dizia que

‘cuando la pobreza entra por la puerta, el almuerzo sale por la ventana’.”

Fez 30 anos na data da entrevista, quando fez sua avaliação da vida até então.

Retornava como correspondente, editor, com melhores condições financeiras. Parte de seus

sonhos estava cumprida. O que restou de 2007 também lhe foi extraordinário. Começou

viajando a Madri e terminou o ano na Guatemala.

235    

“Isso significou muito para mim, porque como mexicano não temos muito

conhecimento sobre a América Latina, então ter cruzado Belize e chegar a Tikal, na

Guatemala, foi um processo de aproximação pessoal com a América Latina, com a

América Central, buscando minhas raízes latino-americanas.”

Muita coisa mudou na vida de David Santa Cruz depois do Programa Balboa.

Percebeu que podia fazer jornalismo em qualquer parte do mundo. As conversas com Guido

Bilbao, o Balboa argentino que vive no Panamá, fizeram-no ver que o mundo não lhe fecharia

a porta se ele não o permitisse.

“Uno es lo que quiere, el destino liberta a uno y que no hay que negarse nada. Se as

coisas não funcionam na revista onde estou, há outras revistas na cidade. Se não, em

outros estados do México. E se não, em outro país do continente, e se não, em qualquer

parte do mundo.”

Diálogo entre Laura e David

Mexicanos, jornalistas, amigos e cúmplices.

Julho de 2011, México.

Política

David

Considero-me de esquerda moderada. Parece-me necessária a intervenção do Estado

na economia, mas que não asfixie a livre iniciativa.

Grande parte dos problemas dos países tem um fundo social. Deve-se tirar da pobreza

das classes baixas através do emprego e de políticas equitativas. Paga mais quem tem mais,

paga menos quem tem menos.

No caso mexicano, o excesso de nacionalismo prejudicou o país, como PEMEX.

Contraponho com Petrobras, um caso de sucesso com semi- privatização.

Creio em liberdade social. Creio na liberdade das mulheres decidirem o que fazer com

seus corpos. Aborto, sexualidade, livres sem serem satanizados, dentro dos parâmetros legais.

Um controle estatal dos recursos naturais poderia gerar condições financeiras e

diminuir a violência do país.

Nunca concretizamos uma massa crítica para conseguir isso via eleitoral. O poder

deve vir sempre das urnas, nunca das armas.

Laura

Não me adequo a nenhum partido. Sou mais centro conservadora. Deve haver um

controle do Estado, mas que não seja protecionista. No México, as pessoas se acostumaram a

receber tudo do Estado. Quero que o país dê as ferramentas à população. Isso é o que a gente

mais precisa. Não gosto da política mexicana de assistencialismo que temos há muito tempo.

Não estou a favor do aborto, eu não o faria, mas cada um deve decidir. O Estado deve

dar as condições para que cada um decida, inclusive ferramentas legais.

Estilo

David

Sou globalizado em certos sentidos. Vejo-me fashion (risos). Sou como pensadores do

século XIX, que queriam aprender de tudo. Abarcar todas as áreas do conhecimento.

Quero entender o mundo, e o faço escrevendo. É uma forma de compreender onde

estou, contando histórias, para processar tudo. Aqui havia um programa infantil com um

espremedor de livros. Punha-se o livro na máquina e viajavam para dentro dele. Sou um

237      

espremedor de livros, gosto de me meter dentro das histórias, tirar seu conteúdo e contá-lo aos

outros, para que entrem nesse mundo. Defino-me como curioso.

Também globalizado, pois tento entender a complexidade do mundo. Hoje em dia,

mais a América Latina, pois está abandonada do ponto de vista mexicano. O mexicano não

conhece nem se interessa com o que acontece ao sul da fronteira. Somos obcecados pelos

EUA, um pouco com Europa. Sempre foi assim, o resto do mundo não existe. Hoje, me sinto

mais globalizado, mais americanizado.

Laura

Sou mais tranquila que David (risos). Meu trabalho é muito acelerado, querendo

conhecer muitas coisas, sempre, às vezes parece que tenho apenas poucos segundos para isso.

Gosto de aprender e buscar algo diferente para que os demais também aprendam. Preciso

conhecer, entender e transmitir rápido. Por isso minha vida fora do trabalho é mais tranquila.

Música

David

Temos muita influência dos EUA. Sou Pumas de UNAM no futebol mexicano, mas

gostamos dos Dallas Cowboys e dos LA Lakers. Algo parecido acontece com a música.

Somos seis irmãos e cada um de chili, de rojo y de manteca, uma mescla de gostos. Antes

gostava de salsa, era o que havia no bairro. Havia discos móveis, sobre caminhões, e isso

estava na moda.

Tive uma etapa adolescente, de rock, cada vez mais pesado. Depois dessa fúria

musical, segui a música de câmara, sonatas e sonetos. Finalmente, foi-se misturando pop rock

mexicano, uma identidade musical em espanhol. De um lado, os californianos do Red Hot

Chilli Peppers e de outro, La Maldita Vecindad do México. Pantera, dos EUA, e Rata Blanca,

da Argentina. Chegaram as influências da Movida Espanhola161 e Madrilena dos anos 80,

como a banda Mecano.

                                                                                                               161 A  Movida Madrileña  foi um movimento contra-cultural surgido durante os primeiros anos da transição da Espanha  pós-franquista, que se estendeu rapidamente por toda a Espanha. A noite madrilena tinha uma cena cultural muito ativa, com ondas de culturas alternativas e underground. Pedro Almodóvar e o rock espanhol foram grandes expoentes do fenômeno. (Fonte: Wikipedia).

238      

Depois do Programa Balboa, estou ouvindo mais música latino-americana. Na

Espanha conheci as influências africanas. Acho que sou bipolar, multipolar. Na época do rock,

ouvia Silvio Rodrigues e Pablo Milanés, músicas de protesto. Acreditava na guerrilha.

Laura

Sou mais comercial, ouço o que toca na rádio, o que todo mundo ouve. Quando jovem,

ouvia mais músicas gringas, mas me inclinei a músicas em espanhol e mexicano. Ainda que

siga tendências estadunidenses, como na moda, às vezes digo ‘bah!’ aos EUA e me apego à

musica em espanhol, no meu idioma.

David e Laura

Isso sem contar com a música tradicional mexicana. Sim! No meu Ipod tem musicas

rurales. As musicas folclóricas estão mais para festivais, como o Carnaval. Mas não há

mexicano que não conheça músicas de mariachis, nortenhas, corridos, trios (de influência

cubana e porto-riquenha), bolero. Dizemos: “borracho cualquiera canta Paloma Negra”.

Hoje, grupos jovens retomam musicas tradicionais dos nossos pais, o que eu gosto

muito. Nos anos 60 no México, houve traduções do rock & roll para o espanhol. Adaptamos

para a cultura mexicana a influência norte-americana. Fizemos isso com o rap nos anos 90.

Para ir a uma festa aqui, deve-se saber dançar salsa, rock e reaggeton, para los chavitos.

Mas temos raízes, do sofrimento latino-americano e mexicano. De cortar as veias com

os mariachis. “Vá, mas não me deixe... Vá, mas deixe os móveis...” (risos)

Isso espelha o sentimento mexicano, cantamos em todas as festas. Todos sabem.

Livros

David

Amo Julio Cortázar. Busco edições argentinas, tomos raros... Sua estrutura narrativa é

um grande guia para mim. Borges, Vargas Llosa, Garcia Marquez, o Benedetti

revolucionário... Tive minha etapa russa, com uma estrutura narrativa limpa e direta, inclusive

as coisas simples da vida. Hoje, busco narrativas que me influenciem no jornalismo.

Laura

239      

Leio História e livros de época. Não sou de literatura estrangeira. Gosto de romances,

de autores mexicanos contemporâneos, que chegam às minhas mãos pelo meu trabalho. No

México, faz falta promover autores novos. Talvez porque a população leia pouco (três livros

por ano). As pessoas preferem as telenovelas.

David

Gostaria de lembrar minha etapa beatnik. Adorava ir à cantina de mala muerte aonde

iam Kerouac e Burroughs, no bairro chinês da cidade do México. Era o único banheiro com

serviço de bar, cheirava a merda. Mas tinha uma vibração muito intensa. Houve influência no

México, com a geração da literatura da onda Beat, com drogas e falta de perspectiva, por isso

viva ao máximo esta vida, depois não há nada.

Filmes

David

Escolhi Cronemberg como cineasta, pela transgressão. Também pela hiperviolência,

como a de Tarantino. Mas gosto da animação oriental, como a Viagem de Chiriro. Sigo sendo

uma criança nesse aspecto.

Laura

Sou fã de Woody Allen. Também dos filmes de época ou de ficção científica, de

tempos paralelos, que te levam a outro momento.

Comida

David

Minha avó de 105 diz que tudo que corre, nada ou voa é bom para ir para a cazuela

(panela). Prefiro comida popular, callejera. Faço exploração culinária e estou convencido de

que na culinária de rua está o verdadeiro sabor dos povos. A gente nas ruas não cozinha para

os estrangeiros, mas como suas mães.162

Laura                                                                                                                162 David tem uma coluna em um jornal popular sobre comida de rua. Escreve semanalmente sobre suas descobertas. Seu lema é “se não gostou da minha dica, me convide para comer novamente com você!”.

240      

Provo outras coisas, de outros lugares, mas sempre volto à comida mexicana. Mas

gostei muito da tapioca (risos). Não gostava de pimenta quando criança, mas meu pai me

convenceu dando-me colheradas de picante na boca até adormecê-la.

Time

David

Torço para os Pumas, porque é o time da minha universidade.

Laura

Eu, para o América, por influência dos meus pais e família.

Religião

David

Sou budista por escolha. Considero que a soteriologia163 budista é boa para mim, ou seja, um

caminho que me levará à luz e à salvação. Temos muito meditadores, mas não somos mais de

mil budistas no México.

Laura

Sou católica de família. Pratico a religião, exerço todos os sacramentos. Não gosto

muito dos sacerdotes, mas da religião, sim.164

Aprendizado com espanhóis

Laura

Troquei muitas coisas com os espanhóis, pero no te las puedo contar! (risos)

                                                                                                               163 A soteriologia é o estudo da salvação humana. A palavra é formada a partir de dois termos gregos Σοτεριος [Soterios], que significa "salvação" e λογος [logos], que significa "palavra", ou "princípio". Cada religião oferece um tipo diferente de salvação e possui sua própria soteriologia. (Fonte: Wikipedia). 164 Sou católico de formação, mas em algum momento não me explicava algumas coisas. Busquei o budismo e agora aprendo com o Espiritismo. Como explicar corretamente a Umbanda? Que interessante...(nota do autor).

241      

O que mais aprendi foi como não complicam tanto a vida trabalhando. No México, tudo é

trabalho, horas e horas... eles trabalham, mas têm vida pessoal. Fiquei muito impressionada

com isso. Hay que trabajar, mas devo sair e me entreter, viver a vida.

David

Exatamente o mesmo que Laura. Quando estávamos em Madri, ficava mais horas que

o necessário. Um dia, minha chefe me disse que a redação estava incomodada com o fato de

eu ficar até tarde. Disse-lhe: “e afinal, o que vou fazer em casa, fora daqui?” A jornalista mais

velha da redação respondeu: “podia começar a viver”. Aquilo me tocou. Percebi que

qualidade de vida é ter tempo livre. Isso é o primeiro mundo. Outra vez, um motorista de

ônibus respondeu a alguém numa discussão que lá todos eram iguais.

A decisão em serem jornalistas

Laura

Quando estava no ensino médio queria ser contadora. Minha família toda é de

contabilidade. Mas no pré-vestibular, tinha aulas de comunicação com uma jornalista.

Conversava muito com ela e decidi.

David

Só se for de piadas (risos). Eu quis ser médico a vida toda, porque toda minha família

é de médicos. Depois, físico, adoro essa parte científica.

Mas na adolescência, uma grande amiga – uma relação um tiquinho a mais que isso –

(risos) me dizia que eu tinha voz de locutor. Então ela me inscreveu em um casting para curso

de locutores para uma rádio juvenil. Fui aprovado. Uau!

Quando entrei na cabine, gostei do que senti. Era outro mundo, mas era meu mundo. A

diretora disse que eu me preparasse, pois eu seria um jornalista um dia. Isso me emocionou.

Na escola secundária, misturei disciplinas de ciência com comunicação. No momento de

decidir, percebi que o queria fazer era jornalismo. Comecei na rádio, mas depois fui para o

impresso.

Tipos de jornalismo

242      

Laura

Gosto da adrenalina de organizar informações. Fazer jornalismo na ultima hora me

anima muito. Mas sou mais da redação, recompilando informação dos repórteres de rua.

Desfruto mais da imediatez.

David

Para mim, completamente o contrário. Quando jovem, tinha o sonho de cobrir

furacões, literalmente. Cobri manifestações e protestos, apanhei, vi linchamentos. Foi

interessante, me divertia. Hoje, estou mais focado no jornalismo escrito.

Não acredito no jornalismo digital. Gosto muito de revistas, é o lugar ideal de contar

histórias. É algo ilógico dizer que cada vez temos menos o que ler.

Tomas Eloy Martinez disse: “se nós jornalistas não somos capazes de publicar uma

única crônica que faça as pessoas chegarem tarde ao trabalho, ou a queimar seu pão na

torradeira, não podemos culpar a TV e o rádio por estar fazendo o público ler menos”.

A única forma de resgatar o jornalismo da imediatez é com a profundidade das boas

histórias. Elas estão por todos os lados, é preciso aprender a ouvi-las e a contá-las.

A América Latina em seu trabalho

David

Antes do Balboa, não escrevia sobre a América Latina, se muito, sobre Cuba. Depois,

escrevo mais. Quando fui editor de Internacional da revista Cambio, enfoquei a seção para a

América Latina. Hoje, trabalho para a revista chilena América Economia. Fui a Galápagos,

Guayaquil, Belize e Guatemala. Descobri que há coisas interessantes ao sul da fronteira. Hoje

sou totalmente latino-americano.

Laura

Hoje, entendo melhor as notícias. Compreendo qual é a matéria importante. Antes, não

lia muito sobre a América Latina. Pior, lia e não entendia, e não dava a importância que tem.

Com o diálogo, entende-se o que é importante e o que vale a pena resgatar para o jornalismo.

Nas notas internacionais, não se pode negar os EUA. Mas hoje levo em conta a América

Latina. O Programa me ajudou a entender os países e qual informação que vale a pena.

243      

Fontes populares ou especialistas

David

Gosto de informação callejera, pois as histórias estão com a gente. Mas é preciso

documentar-se, contrapô-la aos especialistas.

Laura

Também prefiro as histórias que as pessoas dizem na rua. Aí está o interessante.

Porém, no meu trabalho, necessito de outras fontes, como especialistas ou bases de dados,

duros. Mas sei que isso não chega muito aos ouvidos das pessoas. A audiência ouve os

especialistas, pode até lhes servir, pero no se les toca.

Tipo de empresa ambicionada

Laura

Prefiro trabalhar em uma empresa que me dê liberdade para produzir, explorar novos

conteúdos. Isso te faz seguir aprendendo. Se te dão essa margem, mesmo que erre, aprende-se

com isso.

David

Sou repórter freelancer. Necessito liberdade para criar, buscar minhas próprias

histórias. Tive que sacrificar coisas, mas posso colaborar com diferentes empresas. Meu

maior cliente, um veículo broadcaster, me paga as contas. Isso me libera para trabalhar com o

que quero.

Internet

Laura

Uns 70% do meu trabalho se dão através da internet, por meio de buscas e

informações imediatas por cables de agências. Reviso a cada dois minutos centenas de

informações.

David

244      

Como ferramenta, uso a internet uns 70%. Localizo dados e pessoas, marco entrevistas

por redes sociais, converso diretamente com diretores e políticos via Twitter, passando por

cima das assessorias. Para apuração, uns 30%, prefiro entrevistas ao vivo e documentais.

O melhor jornalismo

Laura

Das coisas que fiz, me satisfaz saber que dou boa informação todos os dias. Não tenho

nenhum clímax na memória, mas que a informação que ofereço serve às pessoas, para que

estejam informadas.

Agora, tenho gostado de colaborar com a revista, porque a rádio não serve para isso,

pela sua imediatez. Além das notas diárias, posso construir novas coisas com meus textos.

David

Tudo o que fiz profissionalmente está me formando onde quero estar: fazer crônicas e

jornalismo narrativo. Tive boas tentativas, momentos, mas tudo está me conduzido a esse

ponto. Já publiquei em Gato Pardo e Etiqueta Negra, meus objetivos. Mas quero ser editor de

boas peças de jornalismo. Acho que posso orientar bem e dar apoio aos repórteres. É como

um produtor musical, que ajuda o autor a ouvir o que não tinha ouvido. Quero dar toques aos

jornalistas de como podem deixar melhores suas matérias.

Ídolos

David

Ay, la madre! Tenho alguns ligados à profissão, mas sinceramente, pode ser qualquer

pessoa que se levanta todos os dias para fazer um modelo melhor.

Laura

Não. Tenho modelos de como seguir, como meu pai, que faz as coisas com paixão.

245      

Cidade do México

David

É como a primeira vez que prova um vinho tinto. Sabe que é forte, ácido, faz gestos,

mas termina gostando. Não vai com a primeira impressão, percebe seus sabores ocultos,

perdidos, depois de provar muitos anos, percebe sua magnificência. É uma cidade linda para

viver, estar, fazer turismo. Bueno, ahi naci...

Se fosse para me mudar, iria ao campo. Viver em uma condição mais tranquila, sem

tantas comodidades, mas mais bucólico, como um retiro. Ver umas arvorezinhas, umas

vaquinhas (risos). Ter uma cantinita, um barzinho, tranquilo.

Mas se fosse pelo jornalismo, iria a Tijuana, Ciudad Juarez. Fora do paés, uma cidade

grande, como Nova York. Como gosto de jornalismo narrativo, Colômbia me atrai, porque

estão fazendo um bom trabalho nessa área.

Laura

Adoro o D.F. Não nasci na capital, mas é minha de coração. Aos 20 anos comecei a

conhecer e me mover mais e ela me encantou.

Meu irmão diz que deveríamos viver em uma cidade mais tranquila, mas eu digo não;

não consigo viver fora da cidade.

Acho que tem a ver com as pessoas que conheço, amigos, família. Gosto de sair às

vezes e descansar um pouco. Mas no final, sempre quero regressar.

Se fosse outro lugar, iria a outra cidade grande, como Guadalaraja ou Monterrey,

lugares onde ser tem muito o que fazer.

O retorno

Laura

Nunca tinha vivido sozinha. Sair, ficar só, conhecer gente de diferentes países, me

deixou muita maturidade e consciência de valorizar as coisas, como meu lar com meus pais.

Já trabalhava no México, pagava minhas contas, mas outra coisa é arcar com uma casa.

Profissionalmente, as pessoas notaram que eu poderia fazer outras coisas, e isso me ajudou

muito.

246      

David

Quando estive na Espanha, me dei conta de que há anos estava me divertindo em fazer

jornalismo, escrevendo e contando histórias.

A volta ao México foi uma insatisfação. Percebi que não fazia o que gostava. Então

mudei minha carreira, fui chamado a ser editor, e agora sou freelancer, escrevo o que quero e

vivo com isso, o que é muito difícil.

Conheci muitas pessoas e abri minha visão. Nosso professor de História de Madri nos

disse que devíamos deixar o sentimento de exclusividade, ou seja, o que acontece em nossos

países não é exclusivo, se replica à sua maneira em outros locais. Assim, pude entender

melhor o mundo.

Um dos meus maiores mestres se chama Guido Bilbao. Ensinou-me que jornalismo é

maior que sua cidade. Pode-se fazer o que quiser no seu país, ou que em qualquer lugar do

mundo, e fazer o que se quer.

Se o ambiente está adverso, há outros lugares. Fui forjando meus próprios espaços,

isso foi me ajudando a me adaptar ao mundo. No início foi um choque, o que vou fazer?

Então abri as portas e vi um mundo enorme. Isso mudou a minha vida, a experiência Balboa

me ajudou muito nisso.

É como se estivesse em um quarto com a porta aberta, voltada para a rua. Você pensa:

isso pode ser bom, mas já conheço bem aqui, onde estou, e talvez lá fora não seja tão bom.

Mas quando se cruza a porta, se derrubam os muros, dá-se conta de que há outra rua, e outra

depois dessa, outra casa, outro parque, coisas que não se via estando sentado dentro do quarto.

Aprendi muito como ser humano. Que o melhor jornalismo latino está sendo feito na

Colômbia, Chile e Argentina. Que a centralização que estamos fazendo no México está errada.

Que é possível gerar grupos de interesses para além do seu espaço. Companheiros Balboas de

outras gerações me ajudaram a publicar no Panamá, Peru, Bolívia. O brasileiro não me ajudou

em nada. (risos).

São muitos afetos, circunstâncias que no pessoal não enfrentaria se não tivesse amigos

de fora do meu país. Agora, não posso dar um abraço neles, mas posso me sentir bem, ligar a

qualquer hora e perguntar como estão. Posso contar e ouvir deles coisas que não posso a

pessoas do meu próprio país, porque eles podem me dar uma visão diferente. Ahi es donde

viene e é o princípio de tudo, qualidade humana.

Laura

247      

O que mais agradeço são os amigos que fiz. São laços que não sei explicar. Chegamos

a Madri, não nos conhecíamos, e em seis meses nos conhecíamos mais que se estivesse vivido

cinco anos. Isso é algo que fica comigo. É uma amizade sincera, desinteressada e verdadeira.

E a oportunidade de conhecer a cultura da América Latina. No México, vemos

somente EUA e Europa. Agora conheço a América Latina, tenho inquietude de saber o que

está acontecendo. Dar-se conta que a América Latina faz boas coisas, bons jornalistas. Se não

tivesse ido ao Programa Balboa, não teria me dado conta disso.

Eswin Quiñónez

Guatemalteco, editor de serviço web.

Em trânsito pela Guatemala, julho de 2011.

Eswin começou no jornalismo aos 18 anos, antes de entrar na faculdade. Era fotógrafo.

Depois, mudou para chefe de redação do jornal mais antigo da cidade da Guatemala, no jornal

La Hora.

“Nós, jovens que estávamos lá, mudamos a imagem de jornal de dinossauros. Cobria

eleições, o grande tema da Guatemala. Mas o trabalho sacrificou minha formação. Meus

colegas e eu não tínhamos tempo para nos aprimorarmos, ler ou estudar. Nosso trabalho era

pela manhã, porque o jornal era vespertino. À noite, estudava, para não abandonar a faculdade.

Fui estimulado a concorrer à bolsa porque era um intercâmbio profissional, algo parecido com

o que eu fazia aqui. Quando me candidatei ao Balboa, queria uma experiência diferente.”

Foi entrevistado por uma tica, a costarriquenha Melissa.

“Ela me assustou um pouco de início, dizendo que talvez não me fizessem caso na

Espanha. De fato, aconteceu, mas isso moldou meu caráter. Com 23 anos, fui ansioso à

Espanha, pois nunca tinha viajado a tão longe, nem havia trabalhado em veículos de

248      

comunicação tão grandes como os madrilenhos. Mais que medo, era ansiedade. O indivíduo

sente que pode comer o mundo todo, ser o paladino do jornalismo... o medo era de no dar la

talla, não fazer o que o programa queria.”

Foi uma experiência que moldou sua vida, pôde ver sua vida de fora. Não era uma

disputa, podíamos realizar trocas entre nós, estávamos lá para aprender.

Os maiores desafios na Espanha foram profissionais. O jornal diário a que Eswin foi

designado não quis nenhum Balboa. Ficou um mês sem trabalhar. Passavam os dias e nada.

Sentiu-se inútil, suas poucas expectativas caíram ao chão.

“Enquanto todos do apartamento em que vivíamos dividiam suas experiências

dos melhores veículos da Espanha, como El Mundo, EFE e Europa Press, eu não tinha

histórias para dividir. Até adoeci, meio deprimido. Pensei se era o jornal ou o Aires que

não me via capacitado. Depois descobri que não, a empresa cortara gastos, nada pessoal.”

Finalmente, abriu-se uma vaga na revista El Cambio. Quando tudo parecia melhorar,

suas expectativas naufragaram de vez.

“A revista tinha um viés muito político, até o editor escrevia com posição muito

marcada batendo no governo, e isso ia contra minhas posições políticas e de fazer

jornalismo. Eram ciumentos com os temas políticos. Enquanto eu sugeria pautas e

grandes temas da América Latina, eles não me deixavam fazer nada.”

Que bom que estava com Erika, Balboa brasileira, jornalista do Correio Brasiliense,

que tinha suas próprias penas pela dificuldade na língua espanhola.

“Com Erika, encontramos espaços sem pretender ser a estrela do jornal. Éramos

os suportes dentro de um meio frio. Ajudamos-nos e aprendemos algo. Não

precisávamos ser luminárias, super jornalistas, para fazer coisas bonitas. Nem produzir

para receber o reconhecimento dos outros, mas para nós mesmos, em uma conjugação

de suficiência profissional com pessoal.”

O guatemalteco e a brasileira foram então se envolvendo nas seções de menor

competição: gastronomia, cultura, perfis e veículos. Com isso, obtinham satisfação de

publicar, finalmente eram notados com novos vieses para temas comuns. Do zero, chegaram

até a capa da revista.

“Quando voltei, fiz coisas mais pensadas e com calma. Isso me serviu um montão.

O vazio que vivi, uma escuridão profissional, me serviu para encontrar caminhos, com

mais calma. Vi que não era tão bom assim, devia ir com calma.”

249      

Eswin nunca tinha compartilhado espaços estrangeiros, nem mesmo tinha morado fora

da casa da mãe e dos dois irmãos. Lembra-se de Mário chorando pelo irmão, morto aos 27

anos, quando se aproximou mais do colombiano.

“Pratiquei amizade e solidariedade. Mário era familiar, alguém muito forte e amigável.

Compartilhávamos o quarto e por isso dividimos intimidade. Jorge era o oposto, agitado,

pachanguero, Edson estava no meio. Eu estava por me definir, fui descobrindo a mim mesmo

graças aos outros.”

Aprendeu muito sobre a América Latina dentro do apartamento em que vivia em

Madri. Conversando sobre Colômbia, Brasil, Equador e México com los chicos.

“Pela nostalgia, dava muita vontade de falar dos nossos países, vi muitos países

pelas suas miradas. Quando fui ao Peru, vi a Lima dos olhos de Rocio. Sei que verei o

Brasil de Edson quando viajar para lá. Isso é muito bonito.”

De Guido Bilbao, o Balboa mais velho e locado no El Pais, aprendeu seu ímpeto de

fazer grandes coisas. Mas conversava e ouvia muito a todos.

“Guido me ensinou a pensar grande com os pés na terra. Mas foi um grupo

diverso, alguns davam conselhos, outros, broncas. Nunca me deixaram cair, todos me

animaram. Achamos similaridades entre nós. Éramos latinos, estávamos em veículos

diferentes, longe de nossos países e compartíamos a casa. Estava coibido por ter menos

experiência no grupo. Fui o que menos externalizou, mas o que mais recebeu

informação; pude compartilhar minha cultura e minhas experiências, minha forma de

ver a vida. Mas não era o centro de atenção da festa.”

Gostou um pouco de todos, mas admirava alguns que tinham mais paixão pelo

jornalismo, como os argentinos Chalf, Guido e o equatoriano Jorge. Também a dedicação da

Santafecina Sol e da chilena Macarena. A meticulosidade da peruana Rocio. A persistência e

agudeza de Hellen, que ficou em Madri.

“Talvez eles não se interpretem assim, mas no final são as capacidades que vi em

cada um. Fui moldando a imagem de jornalista que admirava.”

Dos espanhóis, foi um choque cultural.

“Foi sui generis viajar pra uma cidade tão grande longínqua e antiga. Se veem as

similitudes, mas foi um choque, como ver como tratam as pessoas, uma sociedade sólida,

mas fria. Era muito diferente da minha. Mas fui conhecendo-os, trabalhando com eles,

comendo com eles, consumindo o que consumiam, fui mudando alguns preconceitos

culturais. Como latino-americano, vamos guardando, como os espanhóis invasores,

250      

colonialistas, todos iguales. Mas afinal as sociedades vão caminhando, apesar da falta de

fluidez de comunicação entre nossos países. Os preconceitos foram caindo a medida de

fazer amizades com as pessoas. Isso mudou meus conceitos.”

O que trouxe dos espanhóis foi a mudança de percepção de como eram. Hoje, Eswin

tem amigos que vão à Guatemala vê-lo, e graças à informação pessoal trocada com eles, muda

os conceitos sobre ambas as sociedades.

“Pode-se discutir o conceito histórico com eles, sem condená-los. É uma história

triste, mas se pode interpretar junto a eles. Foi uma parede cultural que caiu com o

tempo. Temos as nossas diferenças, vemos o mundo de modo distinto, mas podemos

dialogar sem muros mentais. Nossa educação e formação são escassas para fazermos isso

sozinhos.”

Na revista, finalmente lhe deram coberturas maiores e espaço nas principais seções.

Venceu em um veículo espanhol, ganhou a confiança de gente rude da redação e viu a

evolução de Erika. Havia estagiários espanhóis com mais tempo que eles que não haviam

chegado naquele patamar.

“Aires Vaz, o diretor do Balboa, insistia que éramos embaixadores do Programa,

que o sucesso dele dependia de nós. Lo logre, pensei. O espaço no jornal estava

preservado. Podia respirar tranquilo.”

Foi difícil acabar uma experiência enriquecedora em tantos aspectos. Foi difícil

separar-se de tantas pessoas, cabeças e mundos diferentes ao final do intercâmbio.

“Saí dos parênteses de minha vida e voltei a ver como estavam meu país e meu

povo. Dante Liano165 diz como era importante ver nosso país de fora. Fiquei triste com o

que vi.”

No entanto, logo ao regressar à Guatemala, ofereceram-lhe o cargo de subeditor do

jornal, onde podia aplicar diversas ideias novas.

“O jornal ganhou versão colorida, criamos mais seções, capacitamo-nos entre nós

mesmos. Tinha muchas ganas de comer el mundo, era possível mudar as coisas.”

Eswin estimulou amigos a estudarem, fazerem cursos, lerem mais, expandirem-se.

Nutrirem o jornalismo local. Conseguiu mudanças dos colegas mais próximos. Ele se

desiludiu um pouco, pois quem tem dinheiro para investir na Guatemala, tem medo de investir

em boas ideias. Então fez o que podia, como renovações no jornal e projetos na internet.                                                                                                                165 Dante José Liano Quezada (Chimaltenango, 1948), escritor guatemalteco, Prêmio Nacional de Literatura 1994 e finalista do Premio Herralde de Romances em 1987 e 2002. (Fonte: Wikipedia).

251      

“Me fiz uma reengenharia pessoal. Me desacelerei, pus os pés no chão. Me

profissionalizei. Saí de casa e reforcei o laço com eles. Fiquei mais responsável com meus

amigos ao redor. Ministrei oficinas. Eu mesmo terminei a faculdade. Agora tinha um

norte. Até hoje, após seis anos, ainda reflito sobre o que aprendi em seis meses.”

Eswin não é de jogar muito futebol. Prefere assistir a tios e primos jogarem na liga

nacional. “Desencanto-me de um negócio milionário em um país tão pobre, gostar disso é

apoiar esse sistema apodrecido.”

Sua família é protestante, algo comum na Guatemala. Cerca de 45% dos cidadãos são

evangélicos, é um fenômeno que cresceu muito nos últimos anos. Ele cita a brasileira Igreja

Universal como exemplo.

“Creio em Deus, mas não integrado a uma congregação. Gosto de ter meu próprio

espaço espiritual, minha própria conversa com Deus. Com educação e por refletir sobre a

religião, me separei do grupo. Minha formação política foi se formando com minha educação,

com grupos sociais. Tenho sensibilidade social por haver estudado na escola pública. Na

Guatemala, acho que não dá para não ter consciência social, devido a tantas carências.”

A mania jornalística de consumir muitos livros de cultura e História também está em

Eswin. Apesar de a capital não ter muitas opções de cinema ou teatro alternativo (leia-se não

norte-americano), ele aprecia formas de expressão com histórias que lhe nutram ‘a pessoa e o

espírito’. “Quero buscar essa arte pensada.”

Viver na Guatemala, para Eswin, é enfrentar uma rotina submersa no estresse. O

trânsito é muito intenso e difícil, pela densidade populacional, o crescimento desordenado e a

migração diária dos subúrbios para o centro, onde está o trabalho.

Como jornalista, Eswin tem que rodar muito pela cidade, e por isso se sente estressado

como os demais guatemaltecos.

“Viver na Guatemala é muito cansativo. A nossa sociedade não está desenhada

para que descarreguemos a tensão. Não temos parques ou praças, mas shoppings e

mausoléus do consumo. Passo por isso também. Manter um emprego nos impede de

apreciar a vida.”

Viveria em Quetzaltenango, a segunda maior cidade da capital, a 227 km e doze horas

de ônibus da capital. Fundada por etnias maias (que a chamam de Xelaju ou Xela) e

reconstruída por maçons após um terremoto, tem um ritmo menos estressante que a capital.

Pelas melhores oportunidades de trabalho, 80% da população da capital é migrada, e visita

muito pouco suas famílias no interior.

252      

“O cidadão não consegue sair de sua rotina ainda que próxima, um rio, um

campo, não tem condições para isso. O guatemalteco vive o dia, almoça pensando no

jantar, janta pensando no dia seguinte e acabou.”

Viver fora ajudou Eswin a entender melhor sua cidade. Estar longe do país o ajudou a

mudar atitudes, abrir os olhos sobre coisas e pessoas.

“Cidades grandes têm ritmos distintos. E os Balboas falavam bem e

interpretavam bem seus países. Isso me faltava. Viajar me ajudou a mudar o ritmo,

entender minha gente, deixar de achar minha cidade o umbigo do mundo. Não quis

mudar de cidade, mas mudar a minha cidade. É bem diferente."

Sempre quis ser o profissional da coesão. Não se considera líder, mas conciliador.

Cumpriu esse papel em discussões de família e círculos de amizades.

“No trabalho, confiam em mim, pedem que eu tome decisões. Não busquei isso,

mas é o que me oferecem. Sempre estou envolvido em decisões e ações. Reúno ideias dos

demais.”

Eswin se sente bem com isso. Apesar do excesso de responsabilidade, que sempre

tentou evitar, tem assumido mais essa identidade. E acha que cada um na sociedade deve

assumir a sua.

Ele é mais repórter de campo que analista. Gostaria de interpretar mais, de contar mais

histórias. Mas sua prática lhe direcionou a transmitir informação.

Já as fontes de suas matérias se conjugam.

“Há grupos que organizaram sua voz e externalizaram seus problemas. Também

há gente que ficou silenciada porque não havia gente que os representasse.”

Os meios buscam gente que são voz de grupos maiores, não tão pautados com os

órgãos oficiais. Eswin tenta fazer seu jornal ouvir essas vozes. Mas às vezes os jornais se

acomodam e buscam a mesma pessoa para violência, economia. As pessoas perdem sua voz e

tomam espaço de outras vozes, ainda que venham de grupos reduzidos.

“Os grupos envolvidos nos fatos às vezes não podem falar sobre seus próprios

problemas. É isso que estou fazendo com redes sociais. Diversificar as fontes e abrir

espaço para várias vozes. Como editor web o tempo me obriga a correr, mas busco

influir meu grupo editorial a ouvir outras vozes, a sociedade. É a responsabilidade dos

meios de comunicação.”

Poucas vezes Eswin escreveu notícias sobre América Latina. Quando o fez, consultou

a rede do Programa Balboa. É mais comum que a rede lhe peça coisas mais sobre contexto

253      

centro-americano, que especificamente sobre a Guatemala. Ou quando os temas universais

recaem sobre os locais, como o assassinato do cantor Facundo Cabral na cidade da Guatemala.

Hoje, Eswin trabalha em uma empresa broadcaster. Ele quer dirigir sua carreira rumo

a uma empresa formativa. “Penso em aportar mais, fortalecer a carreira das pessoas.”

Desde que tem feito jornalismo digital, acredita que a essência do jornalismo não

acabou, mas se transformou pela massificação o acesso. Alguns jornalistas, sim, teriam se

contaminado com a urgência de informação, e perderam o tino do jornalismo.

“É fato que estamos buscando mais informação online, mas sem deixar de lado as

fontes diretas, que nunca deixaremos de usar. Mas a urgência de atualização de

matérias nos obriga a nutrir fontes que a própria internet produz. Estar envolvido nisso

o dia todo me faz zeloso em tudo o que busco, porque sei que nem tudo o que é oferecido

em fóruns e web está certo. Pecaria se acreditasse no que roda nas redes sociais.”

Eswin se lembra do caso da Fox News, que teve em sua home page hackeada quanto à

publicação da morte de Hugo Chávez.

“Se publico, passo por ingênuo. Aí está o jogo jornalístico de confrontar a

informação. Tenho que ser mais rápido, mas é preciso tomar cuidado.”

Também já lhe aconteceu o contrário. Ele tentou confirmar por telefone um fato, e por perdeu

tempo de publicar algo que já estava online em outros portais.

Não decidiu ser jornalista desde pequeno. Sua formação acadêmica foi cientifica. Era

bom em matemática, física e química. Mas se sentia vazio, não se imaginava passando o dia

decifrando algoritmos. Saiu da faculdade de computação e procurou uma carreira que lhe

completasse.

“Afortunadamente, achei. Lia livros e todos os autores eram jornalistas. Então

fiquei curioso para saber o que era jornalismo. Entrei no ano seguinte na faculdade.

Minha formação não me permitia entrar nas melhores faculdades de comunicação. Fui

para a faculdade pública, que me nutriu de consciência social. Hoje, nos projetos que

realizo, penso no resultado do serviço social que posso projetar ou alcançar.

Muitas coisas que fez no jornalismo deram satisfação a Eswin Quiñónez. Mas como

jornalista e ser humano, ainda espera seu grande momento. Inesperadamente, como fora sua

vida até agora. Parece um bom caminho o del niño Eswin, como o chamávamos em Madri.

“Quero um caminho mais humano. O Programa Balboa me marcou e me deu

respostas positivas do rumo profissional que deveria tomar, espero que isso continue

durante muitos anos. Tenho quase nada de experiência profissional, mas espero

254      

encontrar esse grande momento, essa emoção interna, de estar tão perto das pessoas,

através de ser jornalista.”

Santiago Torrado

Colombiano, editor da Associated Press.

México, Distrito Federal e conversas online, julho e agosto de 2011.

-Oi, Santiago, tudo bem?

-Tudo bem, Edson. Como foi a volta do México?

-Bem... Na verdade, mais ou menos. Marina e eu estamos com a Vingança de Monteczuma,

sabe? Estamos meio atordoados com a mudança de altitude, a deliciosa culinária de lá nos

arrebentou e estamos cansados após 20 dias de viagem em plena temporada de furacões. Mas

estamos felizes, hehehe... Vamos começar a entrevista?

Conheço Santiago Torrado em trânsito. Conversamos pela primeira vez na Costa Rica,

para o 2o encontro do Programa Balboa, com mais de 200 jornalistas do continente, em 2010.

Sorridente, pequeno, discreto e simpático, o bogotano já estava planejando partir novamente

da Colômbia. Agora para o México, com um contrato de editor da mesa latino-americana da

Associated Press debaixo do braço e nenhuma ideia do que iria acontecer na cabeça.

E assim se foi novamente. Nosso segundo contato foi no México, em 2011, há poucos

meses de sua chegada ao D.F. Ficou incomodado por não ficarmos em sua casa, uma maneira

bem latina, mas muito mais colombiana de demonstrar amizade. Nos encontros seguintes e

conversas posteriores por Skype, fomos recriando seus passos e sonhando seus planos.

Santi é um herói que não voltou da aventura. O colombiano resolveu não apertar

muito os nós das amarras em Bogotá, nem os na Revista Semana, a maior da Colômbia, onde

era repórter especial, antes e logo depois de experiência no Programa Balboa, em 2005.

255      

Ele estava bem, trabalhando com jornalismo internacional na Semana, mas se sentia

meio estagnado, havia chegado ao limite das possibilidades da revista. Buscava um objetivo

maior, pois não conseguia ter mais liberdade que almejava. No jornalismo colombiano,

segundo Santi, não se viaja muito para cobrir temas internacionais, por falta de verba de

produção e falta de interesse dos editores nos temas da América Latina.

Em 2005, Santiago não tinha muitos desafios. Quando apareceu a oportunidade do

Programa Balboa, as pessoas que o entrevistaram lhe convenceram que ele ganharia muito

conhecimento na Espanha e com demais latinos participantes. Ninguém da Semana havia

tentado até então. Candidatou-se e foi aprovado.

“Trabalhava na organização da revista na Colômbia, nas reuniões decisórias. Não era

um iniciante, tinha uma carreira de jornalista consolidada, com seis anos de experiência. Mas

quando cheguei à Espanha, me senti um estagiário.”

Os colegas jornalistas espanhóis da revista Tiempo de Madri pediram inicialmente que

Santi fizesse pequenas notas sobre a Colômbia, o que lhe tomava poucas horas na semana.

“Temas colombianos, escrevia as notas e só.”

Achava então que lhe dariam espaço para fazer apenas umas três matérias por mês.

Mas confiaram nele e Santi ganhou espaço e tempo para fazer textos bem feitos, como sobre a

Venezuela, que fazia acordos com o Iraque e com a OPEP. Descobriu laços muito

interessantes entre o pensamento chavista e o islâmico, como o petróleo como arma

estratégica, e o financiamento à capacitação de guerrilheiros do Oriente Médio e da América

do Sul. “Os espanhóis achavam artificial no início, porque nunca tinham ouvido falar daquilo,

mas fui explicando as relações de ideias e a origem das fontes, e foram entendendo a proposta

da matéria.”

Ainda assim, após conseguir espaço na revista, a rotina era mais suave e com menos

pressão do que na Colômbia. Ele gostaria de ter ido trabalhar em um jornal, pela experiência

diária que lhe proporcionaria. Sua estratégia foi lidar com os ritmos dos espanhóis, e

aproveitar o resto da experiência. Passava a manhã toda lendo a imprensa espanhola, ou

fazendo trabalhos freelances para Colômbia. Santiago fez análises sobre as eleições

legislativas e presidenciais de seu país, a partir de Madri. Escrever fora do seu país sobre

temas como narcopolítica foi muito importante.

“Como meu interesse era voltar como correspondente, resolvi ficar na revista, ainda

que com trabalho leve demais, porque eu podia garantir um contato melhor. Voltei como

analista de alta qualidade, para cobrir eleições, temas políticos. Cobri a reeleição de Hugo

256      

Chavez e a crise política de Rafael Correa. Viajei muito para fazer reportagens depois do

Programa Balboa. Mas claro que temas assim não acontecem toda semana, então fiz muitos

artigos sobre a Colômbia também.”

Após retornar a Colômbia, escreveu dois anos para Cambio, sobre Venezuela, Cuba,

Argentina, Paraguai; praticamente toda a América Latina. Fez um bom dinheiro com isso.

Voltou à editoria de Internacional da revista Semana, e percebeu então como tinha aumentado

seu poder de análise e de contato com especialistas latino-americanos, graças ao Programa

Balboa.

“Para isso a rede Balboa me serviu uma barbaridade, desde consultas mais bobas até

os contatos para entrevistados mais importantes. Quando viajava, a rede servia de apoio; era

fundamental. Tornei-me uma espécie de especialista em Venezuela, graças ao colega Balboa

venezuelano que morava comigo. Na Espanha, fui me especializando em Europa e América

Latina, discutindo e consultando com um colega da revista.”

Santiago consolidou a rede de afetos e confiança quando estava na Espanha, e a rede

profissional e de contatos quando retornou à Colômbia.

“Éramos 20 pessoas e o mais valioso para mim foi, de longe, a rede de gente da

América Latina. Com o venezuelano foi ótimo, éramos amigos, moramos juntos, aprendi

muito. Mas com todos os Balboas era maravilhoso, porque aprendi com todos, pois traziam

conhecimentos especiais. Hoje, eu me esforço para ajudá-los e eles fazem o mesmo. Nós

fazemos não só porque somos amigos, mas porque fazemos sem nenhuma pressão uns sobre

os outros.”

Percebeu a diferença entre redes sociais, redes profissionais e tecnológicas do

Programa Balboa, uma rede de confiança e afetos. Segundo ele, um jornalista pode conseguir

o contato que quiser, ligando para colegas de outro jornal. Para isso não necessita do fator

amizade.

“Mas a amizade muda o contato da reportagem. Porque quando o contato sabe

como você pensa, conhece sua tendência, em que você confia, você pode perguntar

qualquer tipo de coisas, como mostrar o resultado de entrevistas para saber se estão

boas. Isso te dá um acesso a uma fonte incrível de conhecimento, é maravilhoso.

Nessa rede, a gente alcança um lugar muito particular. Se você necessita mais

que um cientista político ou social famoso, a rede te possibilita falar com alguém “muy

acertado” no tema que procura. Por isso a rede foi muito importante, e eu aproveitei uma

257      

barbaridade. Aproveitei com Venezuela, Equador, todas as partes que cobri viajando ou de

Bogotá.

E assim o fez. Quando a Semana fez uma matéria de capa sobre o terremoto do Haiti,

em 2009, Santiago ofereceu fontes especializadas em sismologia na América Latina, graças

aos contatos dos Balboas, enquanto um colega jornalista foi cobrir in loco a tragédia. O

resultado foi uma matéria em conjunto, porque não dizer, em rede. No ano seguinte, o próprio

Santiago foi a Porto Príncipe fazer uma reportagem especial para sua revista.

O retorno à América Latina não fora apenas de incertezas, mas de mudanças

conceituais. De 2006 a 2008, teve oportunidade de publicar páginas inteiras e grandes

reportagens. Tinha o mesmo cargo de antes na Semana, mas com mais espaço.

Tive uma transformação, pelas necessidades reais do jornal e pelo Programa Balboa.

Antes, se tinha um tema exótico, como sobre a África, era melhor que sobre a América Latina,

por exemplo. Depois do programa Balboa, eu mudei. Não tem a ver com o idioma ou à

distância, percebi que o importante é produzir com qualidade sobre América Latina.

Afinal, dezenas de jornalistas podem escrever sobre lugares exóticos, pois viveram na

região, falam a língua e podem fazer algo melhor que nós. Entendo que podemos fazer o

mesmo na América Latina, porque ainda há terra inexplorada que pode ser bem

coberta pelo jornalismo. Isso é maravilhoso, hoje sou um latino-americanista convicto.

Antes do Programa Balboa, reclamava quando escrevia sobre América Latina. Hoje é o

contrário, me dá preguiça escrever sobre lugares tão longínquos, quando posso falar de pátrias

irmãs e vizinhas. Hoje, na Associated Press, vou ganhando confiança para fazer esse tipo de

análise.

Sobre um trabalho do qual se orgulha, lembra-se de um artigo pequeno, enquanto

esteve no Equador para cobrir a conferência de mudanças climáticas de Quito, em 2011.

Curiosamente, era sobre um tema nacional, em uma cidade fora dos centros urbanos. Glocal.

Havia outro debate no país, sobre a nova Constituição proposta pelo presidente Rafael Correa.

Era interessante, pois foi escrita em Montecristo, uma cidade autóctone, em uma decisão

simbólica de Correa por uma Constituição voltada mais ao povo.

“Fiquei só um dia em Montecristo, fiz um artigo pequeno, mas me orgulho, porque

não se encontra esse tema em nenhum lugar da mídia mundial. Por isso te digo que na

América Latina se encontra território inexplorado. Você pode encontrar análises e artigos bem

escritos, mas sempre vai encontrar coisas parecidas, muito bem feitas. Naquele momento, não

havia nada sobre o tema, e isso me deixou maravilhado.”

258      

Parece não haver muitos mais desafios impossíveis para alguém como Santiago.

Nunca é demais para um jornalista que quer aprender e experimentar, sempre. Seu sonho era

ser jornalista internacional, “escrever daqui e dali”. A revista Semana lhe possibilitou isso,

sem lhe dar muito espaço para publicação, mas lhe permitia dar unas vueltas no texto e viajar.

Paralelamente, tentava manter suas aspirações com as obrigações da revista.

Na Colômbia, o mercado de jornalismo é restrito e difícil. Para cobrir as eleições

brasileiras de 2008, Santiago forçou bastante para ir. Insistiu com o editor, aprendeu

português, e finalmente aconteceu; estava em Brasília e no Rio de Janeiro. Isso o aproximava

cada vez mais do próprio sonho.

Ele estava fascinado pelo Brasil, pela crescente influência e seu gigantismo. Mas

também pelo México, país onde podia encontrar temas importantes. “São os fundamentais.

Não posso dar uns giros toda hora pelo meu trabalho, mas posso aprender com o país.”

O salário e a hierarquia na Colômbia ainda lhe frustravam, por isso aceitou um

trabalho na A.P. do México. Sabia onde estava se metendo: um salário duas vezes maior que o

da Colômbia e um trabalho de edição de textos alheios por 8 horas ao dia.

Nunca tinha estado no México, por isso foi uma motivação grande cobrir eleições

presidenciais daqui. Foi aumentando meu conhecimento e somando ao que aprendi no

Equador, Venezuela, Cuba, Brasil. Depois de dois anos, quero aprender bastante sobre o

México. Vejo como um passo, para conhecer outra estrutura de jornalismo internacional, a da

A.P. Mas espero escrever no jornalismo mais clássico, para revistas na Colômbia. Não estou

fazendo meus sonhos agora, mas em outros sentidos, vai muito bem, porque estou

conhecendo outra realidade, e isso vale a pena.

Não importa a Santiago compreender aonde vai parar. Mas que a vida, que ele

confunde e às vezes substitui pela carreira, flua para o alto e para o melhor. Em uma série de

perguntas sobre perspectivas e futuro, ele afirma rumos, mas deixa escapar desejos. É um

guerreiro saudoso da terra natal.

“Tenho um norte, mas não sei aonde isso vai parar. Gosto da vida de exploração, das

coisas que aprendo em México. Mas estou casado, então não tenho decisões só de aventureiro.

Ainda tenho muitas incertezas: pensei no início em ficar dois anos. Mas Carol ingressou em

um mestrado, então ficaríamos mais.

Santi confessa que se sente muito mais jornalista de revista que de agência. Contudo,

se lhe abrem portas atrativas nas agências, ele pode mudar. Na A.P., está cada vez mais

envolvido nos temas latinos do que nos temas mundiais.

259      

Digo para ele não perder contato com Jaime Ortega, jornalista colombiano de EFE,

delegado chefe do Brasil e meu amigo. Prevejo que Santi vai escrever um livro sobre o

México, para desafogar o seu repórter, espremido entre os cables da AP.

“Ter exclusividade não está no meu contrato. Estou me preparando, estudando uma

especialização em história mexicana. Mas o que manda é o meu trabalho. Me aproximo do

México porque me interessa. Mas o tempo para tudo está excelente, dá pra fazer tudo.” Santi

trabalha 8 horas por dia na A.P., relativamente pouco, se comparar aos fechamentos de edição

na Colômbia. “Está no meu projeto escrever sobre as eleições mexicanas, mas se não der, ter

bagagem sobre o México. Amanhã terei tudo isso comigo, e na Colômbia não haverá pessoa

que entenderá âmbito latino-americano como eu daqui a uns anos.”

Fazer as entrevistas para este doutorado mudou a ordem da minha própria rede social e

profissional Balboa. Conheci e me aproximei mais de gente de outras edições, de países que

não conhecia, de experiências que não tinha tido. Meu diálogo se tornou mais firme e diverso.

Por isso, entender como Santiago Torrado se adaptou fora da Colômbia é uma forma de

entender outros Balboas que não voltaram aos seus países. Alguns, por motivos amorosos –

como a argentina Gabriela e o brasileiro Mauro –, outros pelo sonho europeu – como a

venezuelana Hellen –, ou principalmente pelas oportunidades profissionais – como os

argentinos Guido Bilbao e Sol Lauria e a chilena Macarena Garcia, todos de minha edição, de

2007. De semelhança, levam identidades transformadas, que já não são apenas latinas, mas

que não cabem em seus cotidianos anteriores à experiência de rede. Santiago é um desses

navegadores, cuja casa é o próprio barco.

Para um bogotano, segundo Santi, viver na cidade do México não gera choques

culturais muito grandes. Com estética e ruas parecidas a Bogotá, D.F. é uma cidade grande,

com coisas bonitas, é caótica e um pouco kitsch. Isso lhe facilita um pouco a vida. Apesar de

ela ser maior que Bogotá, Santiago não se sente asfixiado. Para isso, estabeleceu uma vida

com um status similar à vida que levava na Colômbia.

Mas ainda lhe faltava restabelecer a parte social. Na Colômbia, era excelente, pois

encontrava gente em festas, cafés e reuniões, tinha um círculo valioso de jornalistas,

especialistas e escritores. Sua ideia é construir um pouco isso lá, conhecendo jornalistas

mexicanos. Porém lhe custa pelo horário de trabalho, das 16h às 00h, e pelo seu extremo

senso de responsabilidade e trabalho. A rede Balboa lhe ajuda nesse aspecto. Quando o

entrevistei, Santiago tinha poucos contatos no México, mas contava com Belem, Balboa

colombiana que viveu lá, lhe deu conselhos lhe ajudou a estabelecer-se. David Santa Cruz,

260      

outro entrevistado para esta tese, também lhe ajudou, e eles têm se visto regularmente,

provavelmente para discutir os rumos do jornalismo revisteiro e literário latino-americano.

Nesse momento, Santiago volta a recordar a importância da rede de confiança e afetos do

Programa Balboa.

“A rede Balboa é a máxima experiência porque é muito extensa, lhe consegue

amizades, e cada ano ela vai crescendo. Faço parte de algumas outras redes. Mas a

Balboa é melhor pela reciprocidade, me importo com isso.”

Estou cheio de contatos, como editores do Mercurio. Posso falar com ele sem

problemas, e também me esforço para fazer o mesmo, porque se importa com isso. Balboa é

uma rede mais profunda e com mais amizade no meio. As redes se retroalimentam,

refazendo contatos, ligando e fazendo pontes.

A jornalista da Folha me ajudou, e não é só um contato profissional. Já conheço

Helena, fico amigo de outros Balboas. “A rede vai se tecendo, se retroalimentando. Em dez

anos, vai ser uma agenda de contatos superimportantes, quase uma comunidade.”

Na Espanha, Santiago não se sentiu obrigado a falar com os vinte Balboas de sua

edição, mas ficou muito amigo de três ou quatro, e com os demais tem um coleguismo amável.

Por isso, conhece melhor a todos, e isso gera uma profundidade muitíssimo maior na rede e

nas trocas que faz com seus colegas e amigos.

Ele participou de outras redes de jornalismo como a FNPI, que oferece oficinas curtas

a jornalistas da América Latina. Santi diz que redes como essa são importantes, pois há valor

em compartilhar os contatos. “Mas nenhuma oficina de uma semana vai te mudar.”

Outra experiência é fazer uma oficina curta de jornalismo com uma companheira

Balboa, em Caracas. “Vamos trocando sobre Colômbia e Venezuela hoje em dia. Tudo

isso vai se alimentando, inteirando-se das pessoas que fazem parte da rede, gera-se uma

sinergia entre os integrantes, ligações que são supervaliosas.”

Sobre o que é jornalismo, ele acredita ser importante haver contexto, explicar as coisas.

Sem ser tendencioso, mas sem medo de ter alguma posição. E quando se tem experiência,

como pela qual está batalhando há anos, ter certa liberdade é bem enriquecedor. “Um pouco

de caos também é bom.”

Santiago quis ser jornalista pela oportunidade de ser uma testemunha privilegiada. Ver

coisas que a maioria das pessoas não poderia e, obviamente, contá-las.

Se pudesse decidir o que fazer e onde estar, em seu ideal ele voltaria ao contexto

colombiano para ser o editor internacional de Semana. Mas com garantias salariais e

261      

conseguindo duas coberturas internacionais por ano. Santi fica entre a vontade de retornar ao

país e a incerteza de se irão valorizá-lo como merece.

“A realidade do mercado colombiano é muito dura. Acho que na Colômbia não tem

gente com minha idade que sabe o que sei. Mas lá isso não vale; e isso é triste. Hoje, na

Colômbia, não valho o que me pagam aqui no mercado jornalístico. Não quer dizer que não

voltarei à Colômbia. Mas fica difícil.”

Digo a ele que às vezes dinheiro e planos de carreira não caminham juntos. Que ele

está muito próximo de chegar aonde quer, mas talvez o dinheiro não venha junto. Que será

super respeitado na Colômbia, mas não sei se isso vai lhe trazer dinheiro. Isso o atordoa.

“Somos jornalistas. Aspiramos que nossos filhos tenham estrutura.” E a ligação cai.

Quando restabelecemos a conversa, Santiago demora a formular frases e a conseguir falar o

que pensa.

É muito difícil enfrentar esse tipo de coisas. No Brasil, tem um grande mercado. No

México também, apesar de não haver tanta qualidade. Aqui, 80% dos jornais estão

compostos por notícias de agências. Na Colômbia, por exemplo, usamos muito apenas em

internacional. Mas o mercado na Colômbia não te proporciona muita chance...

Despeço-me lhe dizendo que escolheu um caminho que requer muita coragem e que

vida vai lhe recompensar. Santi me agradece pela oportunidade de poder falar e se ver em

perspectiva.

“Te mando as matérias para o doutorado e você me faz críticas se não tiver algo

correto... É sempre importante ter uma opinião a mais e aprender com isso.”