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  • 7/27/2019 Bakhtin Conceitos -Chaves

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    BRAITH, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. So Paulo: Contexto, 2005, 264p.

    Beth Braith convida-nos a um passeio pelos diferentes conceitos presentes notrabalho e no pensamento de Mikhail Bakhtin, a partir de textos seus e de outrosautores que se relacionam com o chamado Crculo de Bakhtin. MikhailMikhailovitch Bakhtin, filsofo, historiador da cultura, esttica e filologia, nasceu naRssia, em 1895, e viveu o conturbado perodo da Revoluo Russa, dapossibilidade de uma nova sociedade e das impossibilidades ditadas pelo governostalinista. Sua extensa obra caracterizada por uma concepo dialgica dalinguagem, da vida e dos sujeitos. "Como um crtico do formalismo russo, ops sua monotonia monolgica, uma viso de mundo pluralista polissmica epolifnica" (Freitas, 1996, p. 118).

    Os estudos contemplados em Bakhtin: conceitos-chave trazem forte vinculaodas temticas abordadas com situaes atuais, contribuindo para o entendimentodas diversas concepes sobre a arquitetura bakhtiniana, nem sempre fceis deserem compreendidas. Ato, evento, autor, autoria, tica, estilo, polifonia, palavra,tema, significao, enunciao, gneros discursivos... situam-se entre os conceitosanalisados.

    Entre tantas exemplificaes textos informativos, literrios, jornalsticos;propagandas, capas de revistas, manchetes, fotos, palavras... deparamo-noscom uma anlise aprofundada do atentado aos Estados Unidos, presente no textode Adail Sobral, "Ato/atividade e evento", no qual o autor relaciona conceitosdescritos anteriormente complexidade do ato terrorista envolvendo "razeshistricas, sociolgicas, pessoais, religiosas, econmicas etc." (p. 31).

    Refletindo sobre o ato que, nas concepes de Bakhtin, envolve essencialmenteresponsabilidade tica, Sobral destaca que a posio dos Estados Unidos da

    Amrica do Norte, enquanto smbolo do capitalismo neoliberal hegemnico,propicia "um conjunto de eventos que tm nos atentados um ato de uma srie deatos praticados por sujeitos concretamente caracterizveis (embora noindividualizveis) em resposta a outra srie de atos praticados por sujeitos tambmconcretamente caracterizveis (e igualmente no individualizveis), envolvendoresposta e responsabilidade" (p. 32). Esse , sem dvida, um dos melhores textosdo livro, por situar-nos dentro da complexa realidade atual constituda pelas aes

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    e pelos sentidos das aes humanas, em atos/eventos/atividades, que nosremetem reflexo sobre tica.

    Sobral comparece com mais dois estudos de sua autoria: "tico e esttico: navida, na arte e na pesquisa em cincias humanas" e "Filosofias (e filosofia) emBakhtin". O primeiro, remete-nos novamente filosofia do ato, na qual a ticatambm se mostra presente, sublinhando questes como dialogismo, percepoou pensamento, constituio da conscincia, para explicitar a concepobakhtiniana de esttico, resultado "de um processo que busca representar omundo do ponto de vista da ao exotpica do autor, que est fundada no social eno histrico, nas relaes sociais de que participa o autor" (p. 108). O segundo,em contraposio a esse prazer pelo lido, revelou-se bastante rduo diante dasinmeras referncias da dialogicidade que o autor percebe entre Bakhtin e outros

    estudiosos enfatizando os dilogos com Kant e por meio de Kant.

    Percebe-se um constante entrecruzar das idias de Bakhtin nas diferentesnarrativas trazidas por Beth Braith e seus parceiros de pesquisas e co-autores dolivro. Braith, j na introduo, descreve o percurso enfrentado na construo daobra sobre o pensador: um glossrio, sugerido inicialmente mas depoisdescartado, concretizou-se em uma coletnea "em que alguns termos essenciais compreenso da arquitetura bakhtiniana foram trabalhados, funcionando comouma amostra dos pilares do edifcio" (p. 9).

    Beth Braith e Rosineide de Melo analisam "Enunciado/enunciadoconcreto/enunciao" a partir da diversidade de definies e empregos dessestermos at chegar ao pensamento de Bakhtin e seu crculo. Logo a seguir, Braithfala de "Estilo", relacionando-o estreitamente com dialogismo e com a atitudeavaliativa do autor. As relaes entre o autor e o heri tambm serodeterminantes no estilo de um enunciado.

    Carlos Alberto Faraco traz-nos "Autor e autoria", enfatizando a posio do autor-criador, "aquele constituinte que d forma ao objeto esttico, o piv que sustenta aunidade do todo esteticamente consumado" (p. 37). Heteroglossia, excedente deviso, relao autor/heri, autocontemplao so alguns dos pilares que dosustentao a uma abordagem mais aprofundada sobre exotopia.

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    Irene Machado refere-se aos "Gneros discursivos" e como os diferentes usos dalinguagem transformam os discursos em manifestaes de pluralidade. "Ideologia",texto escrito por Valdemir Miotello, focaliza aspectos de ideologia oficial e ideologia

    do cotidiano e de signo ideolgico: "todo signo signo ideolgico" (p. 170). Umnico termo, "Palavra", -nos oferecido e desmembrado nos estudos de PauloRogrio Stella, que constri uma reflexo fundamentada nas quatro propriedadesdefinidoras da palavra: "pureza semitica, possibilidade de interiorizao,participao em todo ato consciente, neutralidade" (p. 179).

    Paulo Bezerra discorre sobre "Polifonia" mostrando que as vozes e asconscincias presentes no romance polifnico so "sujeitos de seus prpriosdiscursos" (p. 195). E, finalmente sem, contudo, finalizar, pois que toda obra paraBakhtin carrega em si seu inacabamento , William Cereja apresenta-nos"Significao e tema" voltando palavra e sua historicidade; e ao signo,pensando-o "no apenas no domnio da lngua, mas tambm no domnio dodiscurso e, portanto, da vida" (p. 201).

    Propondo uma volta ao comeo um recomeo desejo explicitar meu prazermaior na leitura de Bakhtin: conceitos-chave: a possibilidade de interagir com umBakhtin mais prximo de meu entendimento, alm de conhecer um pouco mais de

    Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimares Rosa, entre outros.

    O conceito de linguagem em Bakhtin

    Luis Filipe Ribeiro

    Universidade Federal Fluminense

    Resumo:

    Este artigo, na verdade uma conferncia para alunos de Letras, tenta fazerentender, de forma didtica, os conceitos fundamentais, atravs dos quais MikhailBakhtin aborda a difcil problemtica filosfica da linguagem humana.

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    Indagar-se sobre os conceitos na obra de Mikhail Bakhtin sempre um desafio,pois sabe-se que a est tudo em movimento permanente e no h terreno slidopara as construes formais. Mesmo porque, se h alguma coisa que caracterize oseu pensamento, essa alguma coisa uma adeso inconteste filosofia domovimento. Nada , em sua obra, definitivo, nada est estabelecidopermanentemente, tudo oscila com as alteraes do quadro histrico, em que asaes humanas se desenrolam.

    Minha proposta, hoje, tentar alinhavar em linhas gerais como seu pensamentotrabalha com a linguagem.

    Este um terreno minado, pelas muitas teorias e filosofias que dele se ocuparam.Mas, tanto melhor, pois ser do dilogo de tantas vozes discordantes que podersurgir uma possibilidade de entendimento desse fenmeno que absolutamentecentral tanto na vida social, como na nossa existncia pessoal.

    Talvez, uma primeira aproximao possa ser feita pela comparao do seu

    pensamento com o de Ferdinand de Saussure, fundador da lingstica tradicional.Este, ao aproximar-se do fenmeno da linguagem, assim se expressa:

    Mas, o que a lngua? Para ns ela no se confunde com a linguagem, ela apenas uma parte dela, essencial, verdade. , ao mesmo tempo, um produtosocial da faculdade da linguagem e um conjunto de convenes necessrias,adotadas pelo corpo social para possibilitar o exerccio de tal faculdade pelosindivduos. Considerada em sua totalidade, a linguagem multiforme e heterclita;

    cavalgando sobre diferentes domnios, ao mesmo tempo fsico, fisiolgico epsquico, ela pertence ainda ao domnio individual e ao domnio social; ela no sedeixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos, e por isso que nosabemos como determinar sua unidade.

    A lngua, ao contrrio, um todo em si mesmo e um princpio de

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    classificao. Uma vez que nos lhe atribumos o primeiro lugar entre os fatos dalinguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto que no se presta anenhuma outra classificao.1

    O lingista genebrino faz um movimento epistemolgico, no mnimo curioso.Primeiro admite que a linguagem diferente da lngua, que ele define como oobjeto de estudo da lingstica. A lngua uma parte apenas da linguagem que eleadmite ser muito mais ampla que a primeira. Logo, a lingstica no tem comoobjeto de estudo a linguagem humana, mas uma parte dela.

    De outra parte, ao afirmar que a lngua um produto social da faculdade dalinguagem e um conjunto de convenes necessrias, adotadas pelo corpo social

    para possibilitar o exerccio de tal faculdade pelos indivduos, Saussure est nosdizendo que a lngua apenas um instrumento que possibilita o exerccio dalinguagem pelos indivduos, ademais de ser um conjunto de convenes.Trocando em midos, a lngua no pode ser confundida com o uso da linguagemhumana. At porque o nosso lingista vai afirmar, tambm, que

    a linguagem multiforme e heterclita; cavalgando sobre diferentes domnios,ao mesmo tempo fsico, fisiolgico e psquico, ela pertence ainda ao domnio

    individual e ao domnio social; ela no se deixa classificar em nenhuma categoriados fatos humanos, e por isso que no sabemos como determinar sua unidade.

    Ou seja, Saussure descarta a possibilidade de um conhecimento cientfico dalinguagem humana e, em funo disto, determina que se estude apenas o seuaparato tcnico. um pouco como dizer que j que no posso entendersistematicamente a msica, vou estudar o tocador de cds.

    Isto, em absoluto, no desqualifica a estudo da lingstica que, de todo modo, fundamental. Apenas sublinha claramente que ela no foi construda paraentender a linguagem humana, mas seu instrumental tcnico, a lngua. Isto explicaporque o campo da semntica sempre foi o irmo mais pobre em estudos e embibliografia lingsticas. Exatamente porque ele aponta para a nica coisa que ficarealmente fora da lngua, ou seja, o mundo. Um clarividente lingista americano,

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    Edward Sapir, afirmou, com propriedade, que a semntica no pertencia lingstica, mas antropologia. Num gesto que marca bem claramente o problemaque estamos tentando desenhar.

    O estudo da lngua fundamental, sem ele no avanamos muito no campo dalinguagem; mas, por outro lado, insuficiente, se nosso objetivo conhecer oexerccio efetivo da fala em sociedade.

    A partir da, o mais decorrncia deste movimento fundador bsico. ParaSaussure, alm da linguagem e da lngua, existe ainda a fala. A linguagem incognoscvel; a lngua o estudo dos signos e das suas regras de combinao; afala o mero exerccio individual dentro dos limites da lngua e, igualmente,

    descartada como objeto de estudo da lingstica. Ou seja, nem a linguagem fenmeno social por excelncia ; nem a fala o exerccio pessoal da linguagem podem ser estudados pela lingstica. Ela vai dedicar-se inteiramente ao estudodo instrumental que nos possibilita a fala. Para entender melhor tal afirmao euso aqui uma gratificante experincia com meu filho caula de um ano e trsmeses de idade uma criana que ainda no fala, nem por isso deixa de possuirlinguagem. Ela se comunica, expressa seus desejos, manifesta seus desagrados,busca seus objetivos prticos no dia-a-dia. Mas ela ainda no fala. E no falaporque no domina totalmente o instrumental tcnico que a lngua. No a usacomo emissor, mas a entende perfeitamente como receptor. Ou seja, dela tem umdomnio parcial, com ela se orienta no mundo, mas no lhe conhece as manhas eas produes vocais, que h de aprender por imitao direta dos falantes que acercam. Mas no se pode dizer que no tenha linguagem. E, voltando atrs no seutempo de vida, antes mesmo de que pudesse entender a lngua falada, j tinhauma linguagem, com a qual se ia inserindo no mundo adulto e agindo sobre ele.No tm os pais que aprender a identificar diferentes tipos de choro de um beb,para poder atend-lo, quando o caso, e desatend-lo, quando no?

    Isto pode tornar os limites entre os nossos dois tericos Saussure e Bakhtin mais claros e mais palatveis. Ou seja, torn-los acessveis ao maior nmero. Poisse h uma coisa de que quero afastar-me de uma universidade vemdesaprendendo gradualmente a falar claro e em lngua de gente.

    Bakhtin que o objeto de minha exposio nesta mesa situa-se quase como

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    antpoda de Saussure e, por isso, ns que o estudamos, no o vemos como umlingista, mas como um filsofo da linguagem. E por que? Porque, para serlingista ele teria que aceitar as premissas da lingstica traadas por Saussure, oque ele absolutamente no aceita. Quase contemporneo de Saussure, Bakhtincritica duramente os fundamentos de sua concepo terica ao longo de sua obra,

    mas com especial ateno em Marxismo e Filosofia da Linguagem.

    E qual , basicamente, sua proposta terica?

    Bakhtin pretende, no fundamental, entender o exerccio da linguagem humana porparte dos indivduos. Ele escolhe a msica e no o CdPlayer, por difcil que seja ocaminho a desbravar. O que Saussure excluiu do estudo da lingstica

    exatamente o que atrai as atenes de Bakhtin.

    Para ele o nico objeto real e material de que dispomos para entender o fenmenoda linguagem humana o exerccio da fala em sociedade. A lngua falada, nascasas e nas feiras, na rua e na igreja, no quartel e na repartio, no baile e nobordel, sempre o que existe de materialmente palpvel para o estudo. Para ele,a lngua que Saussure considera o objeto da lingstica no passa de ummodelo abstrato, construdo pelo terico a partir da linguagem viva a real.

    Coerentemente Saussure afirmava que no o objeto que precede o ponto devista, mas o ponto de vista que cria o objeto. No caso da lingstica exatamente o que ocorre: o seu objeto criado a partir do ponto de vista de que alinguagem humana no pode ser objeto de conhecimento cientfico, assim como oexerccio da fala.

    Para entender um pouco mais a fundo tal diferena, necessrio remontar sorigens filosficas de cada um deles. Saussure surge em cena, durante a ondaascendente do positivismo, que balizava, de forma muito ampla, a produo dacincia ocidental. E o mtodo por excelncia do positivismo o quantitativo. S real e material aquilo que pode ser medido, pesado, tocado, manipulado. Era umaforma de contrapor-se s teses escolsticas e metafsicas que constituram,durante sculos, o cenrio do pensamento no Ocidente.

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    J Bakhtin surge na cena cientfica, na Rssia Sovitica nascente e em que omarxismo, na sua leitura leninista e stalinista, constitua o nico pensamentoaceitvel. Bakhtin se defronta, ento, com dois problemas ao mesmo tempo. Deum lado, pensar o marxismo com Marx e no com o Partido Comunista; de outro,discutir o modelo ocidental, positivista por excelncia. Sua sada foi buscar apoio

    em uma erudio literria invejvel e um conhecimento filosfico sofisticado. Aerudio literria ofereceu-lhe um contacto privilegiado com a linguagem humanareal e o conhecimento filosfico uma vacina eficaz contra as simplificaespositivistas seja do marxismo oficial, seja da cincia que se fazia no Ocidente. Suaescolha foi decididamente por uma filosofia do movimento, que vem de Herclitoaos nossos dias. E, esta opo pelo movimento, afasta-o decididamente dasfilosofias da forma, que trabalham com um mundo pronto, acabado e congeladoem formas imutveis, cuja origem remonta a Plato com o seu mundo das idias,fora do tempo e fora do espao.

    Bakhtin trabalha com um mundo em movimento e em perene transformao, seuobjeto est sempre em processo, no se submete a uma forma fixa e imutvel.

    E exatamente por isso que ele no pode aceitar que uma lngua seja umconjunto de formas (signos) e suas regras de combinao (sintaxe). ParaSaussure, um signo uma relao entre um significante (um som, uma imagemacstica ou um grafema) e um significado (um conceito). Para Bakhtin, osignificado uma impossibilidade terica. Um signo, aceitando-o provisoriamente,no tem um significado, mas receber tantas significaes quantas forem assituaes reais em que venha a ser usado por usurios social e historicamentelocalizados. Em uso, a lngua muito diferente do seu modelo terico. Para alingstica um signo tem um significado. Sabemos entretanto que, ao falar, nsestamos diariamente modificando, acrescentando, excluindo, torcendo ossignificados codificados pela lngua.

    Mas, muito mais do que isto, para Bakhtin, j que se trata de linguagem e no delngua, a unidade bsica no pode ser o signo, mas o enunciado. Um enunciadono um signo pela simples razo de que para existir ele exige a presena de umenunciador (quem fala, quem escreve) e de um receptor (quem ouve, quem l). Osigno faz parte de uma construo terica que dispensa os sujeitos reais dodiscurso. Um signo, num dicionrio, no e no pode ser um enunciado. Esteexige uma realizao histrica. Um enunciado acontece em um determinado local

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    e em um tempo determinado, produzido por um sujeito histrico e recebido poroutro. Cada enunciado nico e irrepetvel. A mesma frase, exatamente a mesma,pronunciada em situaes sociais diferentes, ainda que pelo mesmo enunciador,no constitui um mesmo enunciado e no pode constituir. Imaginem que, daqui aalgumas horas, eu leia este mesmo texto, palavra a palavra, na Estao

    Rodoviria de Campos, para um pblico que no esperava ouvir-me. Ser omesmo texto, mas seguramente no o mesmo enunciado. Aqui, leio uma palestrapara um pblico que, presumivelmente (eu espero!), deseja ouvir-me dissertarsobre as questes da linguagem num terico de nome estrangeiro e complicado.L, as pessoas estaro possivelmente esperando as chamadas para as suasviagens e sem nenhum interesse pelas coisas que eu venha a dizer. Tudo o queconseguirei uma fama de maluco, maior do que a j carrego, por ser professoruniversitrio nesse nosso triste pas.

    O enunciado no um conceito meramente formal; um enunciado sempre umacontecimento. Ele demanda uma situao histrica definida, atores sociaisplenamente identificados, o compartilhamento de uma mesma cultura e oestabelecimento necessrio de um dilogo. Todo enunciado demanda outro a queresponde ou outro que o responder. Ningum cria um enunciado sem que sejapara ser respondido. Mesmo isto que eu agora leio, ainda que no venha areceber respostas exteriorizadas, por certo as provocar interiormente e, desde j,esboo as minhas rplicas neste dilogo sem fim.

    Como se v, cada enunciado um ato histrico novo e irrepetvel. E esteenunciado a unidade bsica do conceito de linguagem de Bakhtin. Toda linguagems existe num complexssimo sistema de dilogos, que nunca se interrompe. Aodecidir falar sobre este tema, nesta mesa, retomei meu j longo dilogo comMikhail Bakhtin; mas com Paulo Bezerra, meu amigo dileto e tradutor da sua obra;mas com minhas experincias ao lidar com a linguagem, antes de conhecer a obrade Bakhtin; mas com outros textos que venho escrevendo e lendo ao longo deuma vida de estudos. Tudo isto est aqui, neste enunciado que, neste momento,

    centraliza o dilogo com essa coleo to ampla de outros enunciados.

    Mas, para que adquira consistncia histrica e possa acontecer, este enunciadoque agora leio precisou, primeiro, dialogar com um pblico ainda virtual, nomomento em que foi escrito, e, agora, dialogar, ao vivo e em cores, com vocs,seus receptores reais. D para perceber que no estou me referindo a apenas um

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    enunciado, mas a, pelo menos, dois. Quando, no meu escritrio em minha casa doRio de Janeiro, dialogava com um pblico virtual que o nico de que disponhoagora quando escrevo produzia um enunciado. Agora, quando leio este texto que, para o escritor que est escrevendo, esse agora futuro , dialogando comum pblico real (e seguramente diferente do que poderia imaginar quando

    escrevia), produzo outro enunciado, ainda quando o texto seja exatamente omesmo (pelo menos at esta frase, pois no posso ainda saber das futuras quechegaro a seu turno).

    Mas, notem bem, para poder escrever o que escrevo tenho que construir umreceptor muito definido. Sei que vou falar na UENF, em Campos, para um pblicouniversitrio ligado preferencialmente rea de Comunicao, com a presenainteligente e vigilante do Mrio Galvo companheiro de tantas jornadas de vida

    , possivelmente com a presena de colegas da rea que estaro conferindo osmeus possveis desvios de rota e assim por diante. Sem construir esta imagem deenunciatrio, no teria como escrever, pois s os chupadores de nuvens socapazes de escrever para ningum. Pois mesmo os solilquios dos momentos decrise e solido pessoal so feitos para um enunciatrio que construmos, que umoutro eu, capaz de sentir peninha de mim mesmo.

    Mas, para poder escrever o que escrevo, tenho que construir uma imagem de mimmesmo, uma imagem de autor. Tenho que avaliar que expectativa depositam emmim, que imagem construram desse senhor que vem de fora para lhes falar.Tenho que me perguntar se j leram algum de meus textos, se j tinhamreferncias prvias ou se serei um completo desconhecido. Ou seja, quem lhesescreve tambm teve que se construir como escritor, para que o dilogo pudessese estabelecer. Mas, assim como o pbico real no h de coincidir com aquele queimaginei previamente, por outro lado, quem escreve neste momento no amesma pessoa que ser daqui a quatro dias, quando dever estar lendo o queagora escreve. O enunciador de hoje no ser o mesmo que ler o texto no dia 1.No mnimo estar quatro dias mais velho, o que, no meu caso, j constitui um srio

    problema...

    Sero enunciados diferentes, unidades de anlise distintas.

    Por outro lado, todo dilogo ou seja, todo enunciado alm de um enunciador

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    e de um enunciatrio ou receptor, demanda a presena daquilo que Bakhtindenominou de o terceiro do dilogo. que todo dilogo (ou todo discurso) semprepressupe algum diante de quem se dialoga. Posso supor, neste momento eneste dilogo, que o terceiro, para mim, possa ser o prprio Bakhtin (ou seja, aimagem que tenho dele, pois no sou esprita), que me olha preocupado com o

    que ando a fazer com suas idias, ou mesmo seu representante mais autorizadonesta mesa, meu amigo Paulo Bezerra. com a responsabilidade de no lhe sermuito infiel que falo diante dessa imagem de Bakhtin que, de alguma forma, balizameu discurso. Ele constitui o terceiro diante de quem em falo. Mas, este apenaso meu terceiro. Para quem me ouve, os terceiros podero e devero variar.Imagino, por exemplo, um leitor desses problemas que discorde do pensamentoque tento expor aqui. Ele, seguramente, me ouvir com as orelhas do espritoafiadssimas pelas suas convices filosficas, buscando os argumentos para mecontradizer. O seu terceiro ser constitudo por essas mesmas convices. J um

    outro, leitor de Bakhtin que com ele possa concordar, estar me ouvindo tendocomo terceiro a sua imagem de Bakhtin e estar atentssimo, buscandoconcordncias que o satisfaam e registrando discordncias que o conduziro aodilogo.

    Resumindo, sempre construmos um enunciado a partir de uma refernciaaxiolgica, um conjunto de valores que, paradoxalmente, daro consistncia aoque dizemos e estaro vigiando a nossa adequao ou no s propostas quedizemos defender. Este conjunto de valores constituiro a imagem do terceiro do

    dilogo. por isso que ele pode ser representado por uma imagem de autor, poruma autoridade, religiosa ou laica, por uma ideologia, por entidades como classe,histria, destino e quejandos.

    Ou seja, falamos sempre diante de algum ou de algo que acreditamos respeitar.E, mesmo quando falamos contra algum, o fazemos diante de algum ou algoque supomos concordar com nossa avaliao. o terceiro que nos ampara e nosvigia, na difcil tarefa de entender o mundo e os nossos semelhantes.

    Dando um passo adiante, na construo do enunciado, pode-se observar queexistem duas dimenses distintas e complementares: de uma lado, existe amaterialidade tcnica do texto e, de outro, aquilo que escapa aos limites de lngua,para ascender ao plano da linguagem. Nas palavras do prprio Bakhtin:

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    Portanto, por trs de cada texto est o sistema da linguagem. A essesistema correspondem no texto tudo o que repetido e reproduzido e tudo que pode ser repetido e reproduzido, tudo o que pode ser dado fora de tal texto (o

    dado). Concomitantemente, por m, cada texto (como enunciado) algo individual, nico e singular, e nisso reside todo o seu sentido (a sua inten o em prol da qual ele foi criado). aquilo que nele tem rela o com a verdade, com a bondade, com a beleza, com a histria.2

    Vemos assim que aquilo que diz respeito lngua o que repetvel, o que recorrente, o que reprodutvel. O que, enfim, no tem identidade prpria. Osfonemas (ou as letras na linguagem escrita), os significantes, a sintaxe, enfim, ossignos e sus regras de combinao, na linguagem de Saussure. As mesmaspalavras podem participar de enunciados diferentes, as mesmas figuras deretrica, uma mesma construo sinttica. Tudo isto fica no domnio da lngua, doaparato tcnico da linguagem. Mas o que efetivamente identifica um enunciado aquilo que ele efetivamente diz, naquele momento, para aquele enunciatrio, nascondies especficas em que produzido e recebido. Assim, uma nica e mesmapalavra dicionarizada repetvel, portanto pode participar de enunciadosdiferentes. Basta que mudem as condies de sua enunciao. O clssicoexemplo da palavra fogo. Se pronunciada pelo comandante de um batalho defuzilamento para os seus comandados, diante de um condenado atado ao muro de

    execues, constituir um enunciado completamente diferente, do que enunciadapor um fumante aflito, com um cigarro apagado na mo, dirigindo-se a um possvelpossuidor de fsforos ou isqueiro. Ou, um passeante noturno solitrio, flagrandoum princpio de incndio e dirigindo-se a quem quer possa prestar auxlio naemergncia. O que se repete a palavra e esta pertence ao plano da lngua. Oirrepetvel em cada caso a situao que confere a essa mesma palavrasignificaes to distintas em cada um dos enunciados.

    Mas para que esta construo de enunciados possa ser realizada, h que levarem considerao um outro fenmeno extremamente rico de possibilidades. adistino que Bakhtin vai estabelecer entre tema e significao. Aqui, igualmente,pertence significao aquilo que repetvel, reitervel e que portanto se situa noplano da lngua. O conjunto de palavras de um dicionrio est nesta situao: elasapresentam uma significao que socialmente compartilhvel e que garantem lngua a sua continuidade e comunicao a sua possibilidade. J o tema nicoem cada enunciado, corresponde a uma significao global daquele enunciado e

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    enunciado que um livro. Se no o alcanarmos, a leitura se frustra e se torna umexerccio maante de decodificao de palavras.

    Creio que com estas pinceladas, rpidas e superficiais, se possa fazer uma idia,ainda que plida, de alguns dos conceitos chaves com que Mikhail MikhailovitchBakhtin tenta pensar a questo da linguagem. Seria invivel, no limite de umapalestra, tentar esgotar um assunto que ele no conseguiu esgotar numa longa eprodutiva existncia pessoal e intelectual.

    Apenas pretendi trazer algum ordenamento e alguma organizao s idias maisgerais desse pensador genial que, com o riso e o carnaval, com a galhofa e osdestronamentos, tentou nos mostrar que a linguagem, como tudo o que humano,

    sempre muito mais complexo do que pretende a arrogncia intelectual do saberacadmico.

    Para finalizar, bastaria lembrar que a sua tese de doutoramento A Obra deFranois Rabelais: a Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento foirecusada pela Academia de Cincias da Unio Sovitica. Para algum que semprepensou na contra-mo dos discursos oficiais, que valorizou a cultura popular, queresgatou a fora da oralidade, que valorizou o riso como forma de denncia, foi

    realmente uma sorte. Se a Academia de Cincias da Unio Sovitica o houvesseaprovado como doutor, isto hoje poderia comprometer a fora irreverente edevastadora de seu pensamento radicalmente revolucionrio.

    Rio de Janeiro, 27 a 29 de novembro de 2006.

    Notas:

    1 Saussure, Ferdinand de - Cours de Linguistique Gnrale. Paris:Payot, 1966. P.25

    2 Bakhtin. Mikhail. Esttica da Criao Verbal. Traduo de Paulo Bezerra, edio

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    eletrnica.

    Luis Filipe Ribeiro mestre em Letras e Doutor em Histria, professor daUniversidade Federal Fluminense, autor de Mulheres de Papel: um estudo doimaginrio em Jos de Alencar e Machado de Assis, Niteri: Eduff, 1996.

    E-mail:[email protected]

    Tenda dos Milagres, de Jorge Amado

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    Verso para impresso

    Em Tenda dos Milagres, segundo romance de Jorge Amado, publicado em1969, o autor apresenta a violncia dos brancos diante de rituais de origemafricana, e oferece o ingresso para um outro mundo, onde a mistura no s deraas, mas tambm de religies. um grito contra o preconceito racial e religioso.E na nsia de nos apresentar a figura de um certo Pedro Archanjo em suainteireza, o autor encheu-se de ambio, quis abarcar o mundo com as pernas,misturou tempos e espaos romanescos.

    Tenda dos Milagres uma obra em que o dilogo com as teorias da identidadenacional explorado em sua mxima potncia. Seu personagem principal, PedroArchanjo, transita entre teorias populares e eruditas, torna-se autor (sem jamaisser inserido formalmente na academia, entrando pela porta de trs) e debate compersonagens que podem ser reconhecidos em tericos como Nina Rodriques eManoel Querino.

  • 7/27/2019 Bakhtin Conceitos -Chaves

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    O candombl, a capoeira e as festas populares da Bahia fazem parte douniverso de Pedro Archanjo, escritor, sbio, malandro e personagem central daobra. Os tipos folclricos das ladeiras de Salvador esto presentes tambm emTenda dos Milagres. um dos maiores e mais perfeitos personagens da literaturauniversal. Ele descrito como Ojuob (ou "olhos de Xang"). Mulato e capoeirista,

    mestre Archanjo, como tambm era conhecido, tocava viola, era bom de cachaae pai de muitas crianas com as mais lindas negras, mulatas e brancas. Noromance, ele quem percorre as ladeiras de Salvador e recolhe dados sobre oconhecimento dos negros africanos sua cultura. Pedro um mulato sociolgo quecombate os preconceitos da Salvador do comeo do sculo e que continuafreqentando os terreiros mesmo depois que deixa de acreditar nos orixs. Tudopara no deixar esmorecer o nimo dos perseguidos e evitar o triunfo da polcia eda elite racista.

    Romance sociolgico, esta obra segue a linha tpica dos romances de JorgeAmado, que tem, como j citado, a cidade de Salvador como cenrio e ,basicamente, a narrativa das proezas e dos amores de Pedro Archanjo, bedel daFaculdade de Medicina da Bahia, que se converte em estudioso apaixonado desua gente, publicando livros sobre a mestiagem gentica e os sincretismossimblicos do povo baiano. Mostra sua luta pela afirmao da cultura popular.

    Em Tenda dos Milagres a vida do povo baiano apresentada em um enredofascinante e pleno de personagens os mais variados e interessantes, que vo dosmestres da capoeira gente do candombl, professores, doutores e bomios.

    E muitas so as mulheres que encheram de encanto a narrativa do escritor:Rosa de Oxal, Dorotia, Rosenda, Risoleta, Sabina dos Anjos, Ded, a maioriamulatas baianas, e a nrdica Kirsil. Mas dentre tantos tipos que povoam a histria,se sobressai, sem dvida, a figura de Pedro Archanjo.

    Tenda dos milagres: Sntese da obra

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    Da Pgina 3 Pedagogia & Comunicao

  • 7/27/2019 Bakhtin Conceitos -Chaves

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    Pedro Archanjo Ojuob, os olhos de Xang, o pai do povo deserdado da Bahia.Dos negros, dos mestios, da gente pobre. Rei do terreiro, dos afoxs, chamegodas mulheres, amigo dos seus pares, confidente e conselheiro de quantos o

    procuram. Pedro Archanjo o bedel da Faculdade de Medicina, mas tambm omentor da Tenda dos Milagres, uma casa de saber, uma oficina de impresso, umacasa de espetculos, enfim uma quase universidade popular assentada na ladeirado Tabuo.

    Dizem que Tenda dos Milagres era o livro preferido de Jorge Amado. Difcil dizeragora que ele no est mais aqui para confirmar. Mas certamente um livro desua maturidade como ficcionista. Um livro em que ele consegue aliar a dennciasocial, que sempre permeou sua obra, a uma prosa corrente, de saborosa leitura,onde os tipos to caractersticos de seus personagens parecem que esto at hojea nos espreitar em cada beco, em cada ladeira do centro de Salvador.

    Histria entrelaada

    A narrativa de Tenda dos Milagres se d em dois tempos, entrelaados ao longoda histria. O tempo presente, aquele em que o autor escreveu o romance, idos de1969, relata a chegada de um estrangeiro ao Brasil, cujo propsito era conhecer aterra de Pedro Archanjo, autor de uns tantos livros que ele admira, e que at entoera um ilustre desconhecido de todos ns.

    Causa alvoroo as declaraes do estrangeiro, suficiente para pr toda a imprensana busca de informaes sobre to afortunado personagem. Que logo se tornaobjeto de estudo dos eruditos de planto e foco de no sei quantas homenagensde polticos oportunistas. impossvel no ver nessa passagem a ironia do autor,

    a registrar nossa cultura colonizada, to suscetvel aos arroubos de qualquer olharestrangeiro.

    Num outro tempo (comeo do sculo XX) est Pedro Archanjo e sua tenda dosmilagres. Um mestio, intelectual autodidata, sem formao acadmica, masforjado pela vida, pela vivncia das ruas, pelo convvio com seu povo. Um mstico,

  • 7/27/2019 Bakhtin Conceitos -Chaves

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    envolvido e digno representante do sincretismo religioso da Bahia, mas ao mesmotempo uma inteligncia racional a servio de uma causa: a defesa da mestiagemdas raas como elemento de combate ao racismo e a elevao da cultura negra.

    Mas Pedro Archanjo tambm o amigo fiel, capaz de abdicar em favor do mestreLdio Corr, de Rosa de Oxal, o amor de sua vida. A negra Rosa, mulher paramuita competncia, conforme descreve o autor. Paixo sublimada, masinsuficiente para impedir que Pedro seja um homem de muitos amores, comoatestam Kirsi, Sabina, Roslia, Ded e tantas outras que ficaram pelas ladeiras desua memria.

    Figura central do romance, Pedro Archanjo um heri combatido pelo poder

    constitudo, mas amado por muitos. Um digno personagem da extensa galeria detipos da obra de Jorge Amado. Um ser encantado, que permanece imortal nasdobras das lendas criadas pela cultura popular e to bem retratadas pelo autor.

    Veja tambm