O Conceito de Linguagem Em Bakhtin

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O conceito de linguagem em BakhtinJ Bakhtin surge na cena cientfica, na Rssia Sovitica nascente e em que o marxismo, na sua leitura leninista e stalinista, constitua o nico pensamento aceitvel. Bakhtin se defronta, ento, com dois problemas ao mesmo tempo. De um lado, pensar o marxismo com Marx e no com o Partido Comunista; de outro, discutir o modelo ocidental, positivista por excelncia. Sua sada foi buscar apoio em uma erudio literria invejvel e um conhecimento filosfico sofisticado. A erudio literria ofereceu-lhe um contacto privilegiado com a linguagem humana real e o conhecimento filosfico uma vacina eficaz contra as simplificaes positivistas seja do marxismo oficial, seja da cincia que se fazia no Ocidente. Sua escolha foi decididamente por uma filosofia do movimento, que vem de Herclito aos nossos dias. E, esta opo pelo movimento, afasta-o decididamente das filosofias da forma, que trabalham com um mundo pronto, acabado e congelado em formas imutveis, cuja origem remonta a Plato com o seu mundo das idias, fora do tempo e fora do espao. Bakhtin trabalha com um mundo em movimento e em perene transformao, seu objeto est sempre em processo, no se submete a uma forma fixa e imutvel. E exatamente por isso que ele no pode aceitar que uma lngua seja um conjunto de formas (signos) e suas regras de combinao (sintaxe). Para Saussure, um signo uma relao entre um significante (um som, uma imagem acstica ou um grafema) e um significado (um conceito). Para Bakhtin, o significado uma impossibilidade terica. Um signo, aceitando-o provisoriamente, no tem um significado, mas receber tantas significaes quantas forem as situaes reais em que venha a ser usado por usurios social e historicamente localizados. Em uso, a lngua muito diferente do seu modelo terico. Para a lingstica um signo tem um significado. Sabemos entretanto que, ao falar, ns estamos diariamente modificando, acrescentando, excluindo, torcendo os significados codificados pela lngua. Mas, muito mais do que isto, para Bakhtin, j que se trata de linguagem e no de lngua, a unidade bsica no pode ser o signo, mas o enunciado. Um enunciado no um signo pela simples razo de que para existir ele exige a presena de um enunciador (quem fala, quem escreve) e de um receptor (quem ouve, quem l). O signo

faz parte de uma construo terica que dispensa os sujeitos reais do discurso. Um signo, num dicionrio, no e no pode ser um enunciado. Este exige uma realizao histrica. Um enunciado acontece em um determinado local e em um tempo determinado, produzido por um sujeito histrico e recebido por outro. Cada enunciado nico e irrepetvel. A mesma frase, exatamente a mesma, pronunciada em situaes sociais diferentes, ainda que pelo mesmo enunciador, no constitui um mesmo enunciado e no pode constituir. Imaginem que, daqui a algumas horas, eu leia este mesmo texto, palavra a palavra, na Estao Rodoviria de Campos, para um pblico que no esperava ouvir-me. Ser o mesmo texto, mas seguramente no o mesmo enunciado. Aqui, leio uma palestra para um pblico que, presumivelmente (eu espero!), deseja ouvir-me dissertar sobre as questes da linguagem num terico de nome estrangeiro e complicado. L, as pessoas estaro possivelmente esperando as chamadas para as suas viagens e sem nenhum interesse pelas coisas que eu venha a dizer. Tudo o que conseguirei uma fama de maluco, maior do que a j carrego, por ser professor universitrio nesse nosso triste pas. O enunciado no um conceito meramente formal; um enunciado sempre um acontecimento. Ele demanda uma situao histrica definida, atores sociais plenamente identificados, o compartilhamento de uma mesma cultura e o estabelecimento necessrio de um dilogo. Todo enunciado demanda outro a que responde ou outro que o responder. Ningum cria um enunciado sem que seja para ser respondido. Mesmo isto que eu agora leio, ainda que no venha a receber respostas exteriorizadas, por certo as provocar interiormente e, desde j, esboo as minhas rplicas neste dilogo sem fim. Como se v, cada enunciado um ato histrico novo e irrepetvel. E este enunciado a unidade bsica do conceito de linguagem de Bakhtin. Toda linguagem s existe num complexssimo sistema de dilogos, que nunca se interrompe. Mas, para que adquira consistncia histrica e possa acontecer, este enunciado que agora leio precisou, primeiro, dialogar com um pblico ainda virtual, no momento em que foi escrito, e, agora, dialogar, ao vivo e em cores, com vocs, seus receptores reais. D para perceber que no estou me referindo a apenas um enunciado, mas a, pelo menos, dois. Quando, no meu escritrio em minha casa do Rio de Janeiro, dialogava com um pblico virtual que o nico de que disponho agora quando escrevo produzia um enunciado. Agora, quando leio este texto que, para o escritor que est escrevendo, esse agora futuro , dialogando com um pblico real (e seguramente diferente do que poderia imaginar quando escrevia), produzo outro enunciado, ainda quando o texto seja exatamente o

mesmo (pelo menos at esta frase, pois no posso ainda saber das futuras que chegaro a seu turno). Mas, notem bem, para poder escrever o que escrevo tenho que construir um receptor muito definido. Sei que vou falar na UENF, em Campos, para um pblico universitrio ligado preferencialmente rea de Comunicao, com a presena inteligente e vigilante do Mrio Galvo companheiro de tantas jornadas de vida , possivelmente com a presena de colegas da rea que estaro conferindo os meus possveis desvios de rota e assim por diante. Sem construir esta imagem de enunciatrio, no teria como escrever, pois s os chupadores de nuvens so capazes de escrever para ningum. Pois mesmo os solilquios dos momentos de crise e solido pessoal so feitos para um enunciatrio que construmos, que um outro eu, capaz de sentir peninha de mim mesmo. Mas, para poder escrever o que escrevo, tenho que construir uma imagem de mim mesmo, uma imagem de autor. Tenho que avaliar que expectativa depositam em mim, que imagem construram desse senhor que vem de fora para lhes falar. Tenho que me perguntar se j leram algum de meus textos, se j tinham referncias prvias ou se serei um completo desconhecido. Ou seja, quem lhes escreve tambm teve que se construir como escritor, para que o dilogo pudesse se estabelecer. Mas, assim como o pbico real no h de coincidir com aquele que imaginei previamente, por outro lado, quem escreve neste momento no a mesma pessoa que ser daqui a quatro dias, quando dever estar lendo o que agora escreve. O enunciador de hoje no ser o mesmo que ler o texto no dia 1. No mnimo estar quatro dias mais velho, o que, no meu caso, j constitui um srio problema... Sero enunciados diferentes, unidades de anlise distintas. Por outro lado, todo dilogo ou seja, todo enunciado alm de um enunciador e de um enunciatrio ou receptor, demanda a presena daquilo que Bakhtin denominou de o terceiro do dilogo. que todo dilogo (ou todo discurso) sempre pressupe algum diante de quem se dialoga. Posso supor, neste momento e neste dilogo, que o terceiro, para mim, possa ser o prprio Bakhtin (ou seja, a imagem que tenho dele, pois no sou esprita), que me olha preocupado com o que ando a fazer com suas idias, ou mesmo seu representante mais autorizado nesta mesa, meu amigo Paulo Bezerra. com a responsabilidade de no lhe ser muito infiel que falo diante dessa imagem de Bakhtin que, de alguma forma, baliza meu discurso. Ele constitui o terceiro diante de quem em falo. Mas, este apenas o meu terceiro. Para quem me ouve, os terceiros podero e devero variar. Imagino, por exemplo, um leitor desses problemas que discorde do pensamento que tento expor aqui. Ele, seguramente,

me ouvir com as orelhas do esprito afiadssimas pelas suas convices filosficas, buscando os argumentos para me contradizer. O seu terceiro ser constitudo por essas mesmas convices. J um outro, leitor de Bakhtin que com ele possa concordar, estar me ouvindo tendo como terceiro a sua imagem de Bakhtin e estar atentssimo, buscando concordncias que o satisfaam e registrando discordncias que o conduziro ao dilogo. Resumindo, sempre construmos um enunciado a partir de uma referncia axiolgica, um conjunto de valores que, paradoxalmente, daro consistncia ao que dizemos e estaro vigiando a nossa adequao ou no s propostas que dizemos defender. Este conjunto de valores constituiro a imagem do terceiro do dilogo. por isso que ele pode ser representado por uma imagem de autor, por uma autoridade, religiosa ou laica, por uma ideologia, por entidades como classe, histria, destino e quejandos. Ou seja, falamos sempre diante de algum ou de algo que acreditamos respeitar. E, mesmo quando falamos contra algum, o fazemos diante de algum ou algo que supomos concordar com nossa avaliao. o terceiro que nos ampara e nos vigia, na difcil tarefa de entender o mundo e os nossos semelhantes. Dando um passo adiante, na construo do enunciado, pode-se observar que existem duas dimenses distintas e complementares: de uma lado, existe a materialidade tcnica do texto e, de outro, aquilo que escapa aos limites de lngua, para ascender ao plano da linguagem. Nas palavras do prprio Bakhtin:Portanto, por trs de cada texto est o sistema da linguagem. A esse sistema correspondem no texto tudo o que repetido e reproduzido e tudo que pode ser repetido e reproduzido, tudo o que pode ser dado fora de tal texto (o dado). Concomitantemente, porm, cada texto (como enunciado) algo individual, nico e singular, e nisso reside todo o seu sentido (a sua inteno em prol da qual ele foi criado). aquilo que nele tem relao com a verdade, com a bondade, com a beleza, com a histria.2

Vemos assim que aquilo que diz respeito lngua o que repetvel, o que recorrente, o que reprodutvel. O que, enfim, no tem identidade prpria. Os fonemas (ou as letras na linguagem escrita), os significantes, a sintaxe, enfim, os signos e sus regras de combinao, na linguagem de Saussure. As mesmas palavras podem participar de enunciados diferentes, as mesmas figuras de retrica, uma mesma construo sinttica. Tudo isto fica no domnio da lngua, do aparato tcnico da linguagem. Mas o que efetivamente identifica um enunciado aquilo que ele efetivamente diz, naquele momento, para aquele enunciatrio, nas condies especficas em que produzido e recebido. Assim, uma nica e mesma palavra dicionarizada repetvel, portanto pode participar de enunciados

diferentes. Basta que mudem as condies de sua enunciao. O clssico exemplo da palavra fogo. Se pronunciada pelo comandante de um batalho de fuzilamento para os seus comandados, diante de um condenado atado ao muro de execues, constituir um enunciado completamente diferente, do que enunciada por um fumante aflito, com um cigarro apagado na mo, dirigindo-se a um possvel possuidor de fsforos ou isqueiro. Ou, um passeante noturno solitrio, flagrando um princpio de incndio e dirigindo-se a quem quer possa prestar auxlio na emergncia. O que se repete a palavra e esta pertence ao plano da lngua. O irrepetvel em cada caso a situao que confere a essa mesma palavra significaes to distintas em cada um dos enunciados. Mas para que esta construo de enunciados possa ser realizada, h que levar em considerao um outro fenmeno extremamente rico de possibilidades. a distino que Bakhtin vai estabelecer entre tema e significao. Aqui, igualmente, pertence significao aquilo que repetvel, reitervel e que portanto se situa no plano da lngua. O conjunto de palavras de um dicionrio est nesta situao: elas apresentam uma significao que socialmente compartilhvel e que garantem lngua a sua continuidade e comunicao a sua possibilidade. J o tema nico em cada enunciado, corresponde a uma significao global daquele enunciado e inclui uma srie de elementos que, alm de no pertencer lngua, podem inclusive ser no-verbais. Aqui, nesta minha fala, meus gestos, minha entonao, as pausas que fao, as expresses faciais que assumo, minha forma de falar e de vestir, tudo se inclui no conjunto do tema do enunciado. Um tema no pode ser nunca exaustivamente delimitado e no se repete de uma enunciao a outra. Assim, num enunciado estaremos diante de uma permanente dialtica entre as significaes, j cristalizadas, e o tema, a cada vez outro. Na verdade h uma luta permanente entre o velho e o novo a cada enunciado que pronunciamos. O velho so as significaes que herdamos ao aprender a falar uma lngua e ao longo de seu exerccio social. O novo, aquilo que cada situao de enunciao apresenta de novidade e de ato histrico original. Posso assim afirmar, sem medo de erro, que vocs nunca leram duas vezes o mesmo livro. Se o livro, materialmente, o mesmo, o leitor e a situao de leitura no podem s-lo. Numa segunda leitura, o leitor um leitor que j conta com a experincia da primeira leitura, entre uma e outra sua vida e suas convices podem e devem ter mudado, e o livro para ele um livro que ele j conhece e de que tem uma primeira leitura e, logo, no o mesmo livro. Este exemplo reafirma a questo do tema e da significao. O livro, enquanto objeto material, est dotado de um conjunto de palavras cuja significao me imprescindvel, ou quase, conhecer para que a

leitura seja possvel. E a estamos no plano da lngua, no plano da significao. Mas, sabemos todos, por bvio, que conhecer cada uma das palavras de um livro no significa hav-lo entendido. A leitura no um acmulo de significaes buscadas num dicionrio. Se assim fosse, eu ignorante do Alemo, com a ajuda de um bom dicionrio e com uma boa dose de disciplina germnica, poderia ler o Fausto de Goethe, no original. E, mais que isso, um computador, igualmente amparado em um bom dicionrio da Lngua Russa, dispensaria o meu fraterno amigo Paulo Bezerra da tarefa herclea de traduzir Dostoivski. No. A leitura adentrar de cabea no tema e no ficar catando milho nos dicionrios, escritos ou no. Ler tentar entender, recriando-as, as circunstncias em que o livro foi pensado e escrito; adentrar pelas possibilidades culturais da poca; comparar a sociedade em que o livro foi escrito com aquela em que ele lido; construir um mundo imaginrio equivalente quele que habitou o escritor antes, durante e depois da escrita. E tudo isto constitui o tema deste grande enunciado que um livro. Se no o alcanarmos, a leitura se frustra e se torna um exerccio maante de decodificao de palavras. Creio que com estas pinceladas, rpidas e superficiais, se possa fazer uma idia, ainda que plida, de alguns dos conceitos chaves com que Mikhail Mikhailovitch Bakhtin tenta pensar a questo da linguagem. Seria invivel, no limite de uma palestra, tentar esgotar um assunto que ele no conseguiu esgotar numa longa e produtiva existncia pessoal e intelectual. Apenas pretendi trazer algum ordenamento e alguma organizao s idias mais gerais desse pensador genial que, com o riso e o carnaval, com a galhofa e os destronamentos, tentou nos mostrar que a linguagem, como tudo o que humano, sempre muito mais complexo do que pretende a arrogncia intelectual do saber acadmico. Para finalizar, bastaria lembrar que a sua tese de doutoramento A Obra de Franois Rabelais: a Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento foi recusada pela Academia de Cincias da Unio Sovitica. Para algum que sempre pensou na contra-mo dos discursos oficiais, que valorizou a cultura popular, que resgatou a fora da oralidade, que valorizou o riso como forma de denncia, foi realmente uma sorte. Se a Academia de Cincias da Unio Sovitica o houvesse aprovado como doutor, isto hoje poderia comprometer a fora irreverente e devastadora de seu pensamento radicalmente revolucionrio. Rio de Janeiro, 27 a 29 de novembro de 2006.

Notas: 1 Saussure, Ferdinand de - Cours de Linguistique Gnrale. Paris:Payot, 1966. P. 25 2 Bakhtin. Mikhail. Esttica da Criao Verbal. Traduo de Paulo Bezerra, edio eletrnica.

Um Olhar Interdisciplinar: Percorrendo A Temtica Da SecaA importncia da formao interdisciplinar bastante evidente na atualidade. Se voltarmos nossos pensamentos para a Esttica da Recepo, teoria da escola de Constana tratada por Hans Robert Jauss, notaremos que a interdisciplinaridaridade pode ser bastante valiosa neste sentido. Isso se deve ao fato de que os horizontes de expectativas dos alunos na contemporneidade, inseridos em um mundo onde a rapidez e a tecnologia so to patentes,podem estar bastante ligados msica e s outras artes alm da Literatura. Dessa maneira, trabalhar em sala de aula com o cinema, msicas, fotografias, quadros, notcias de jornais e o teatro pode ser uma arma poderosa para que, paulatinamente, o professor de Literatura se aprofunde nos estudos dos textos literrios. Assim, o profissional de Letras v-se acrescido de novas funes, como nos afirma Diniz (2002, p. 179) O intelectual que um dia trabalhou com literatura enquanto discurso especfico, transformado por foras de grandes mudanas epistemolgicas e tambm por exigncia do mercado das idias e suas vaidades e estratgias, v-se, no subtrado, e sim acrescido de novas funes. Repensar-se criticamente implica firmeza, tolerncia e capacidade de propor novos olhares, atributos tpicos de uma vida cultural democratizada e plural. Dois pontos cruciais podem ser observados na citao acima. Primeiramente, pode-se falar da vida pluralizada do mundo contemporneo. Em um pas como o Brasil no se pode falar sobre uma identidade cultural como um ente fechado, mas sim em identificaes que dentro de uma sala de aula podem ser as mais diversas. Temos aqueles alunos que preferem msicas poesias, dentro disso os que preferem o rock msica popular brasileira, os que preferem as poesias romnticas s parnasianas, ainda temos aqueles alunos que preferiro fotografias, quadros e assim sucessivamente. Em segundo lugar o repensar-se criticamente, tendo em vista que as novas funes dos professores podem ser as mais variadas e, dentre elas, conseguir atender a esse pblico to miscigenado com o qual se depararo em sala de aula. Uma proposta bastante inovadora e talvez eficaz o Mtodo Recepcional, proposto por Bordini e Aguiar a partir da Esttica da Recepo. Tal mtodo se divide em cinco etapas, sendo elas: 1) Levantamento do horizonte de expectativas; 2) Atendimento do horizonte de expectativas; 3) Ruptura do horizonte de expectativas; 4) Questionamento do horizonte de expectativas); e 5) Ampliao do horizonte de expectativas.

A importncia desse mtodo verifica-se na medida em que se partiria do horizonte de expectativas dos alunos, ou seja, o professor conheceria o universo de expectativas de seus alunos para, ento, passo a passo, ampli-lo. Unindo esse mtodo a idia de aulas interdisciplinares, poder-se-ia partir da msica, do cinema, de fotografias, de quadros e do teatro, para ento chegar ao texto literrio e a um aprofundamento do mesmo. A partir desses pressupostos, e enfatizando a importncia das outras artes para o ensino de literatura, esse trabalho tem o intuito de evidenciar quais materiais poderiam ser usados para um trabalho interdisciplinar em sala de aula. Para isso, teremos como tema central a seca e as diversas formas artsticas de represent-la. Em uma segunda etapa, pretende-se fazer uma comparao entre o romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e o filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Tendo em vista que estas obras clssicas foram produzidas em dois momentos importantes da cultura brasileira, as dcadas de 30 e 60 do sculo XX, concomitantemente ao modernismo social e ao cinema novo respectivamente, verifica-se que a seca vem sendo retratada em momentos diversos por artistas distintos, comprovando que esta uma questo recorrente, presente em diferentes manifestaes artsticas. Tanto a linguagem verbal, do romancista, quanto a visual, do cineasta, , possuem uma esttica realista, sendo o filme a verdadeira releitura crtica da realidade social retratada no romance. Embora uma e outra obra apresente pontos divergentes, devido aos recursos que cada uma delas utiliza, ao passo que o romance se dispe da oniscincia multi-seletiva do narrador e dos monlogos interiores, demarcados pelo discurso indireto livre, para que o leitor conhea o interior psicolgico das personagens, enquantoa pelcula optou por evidenciar os fatos narrados atravs da focalizao da cmerano olhar das personagens, ambas apresentam em comum a mesma temtica da seca nordestina e a decorrncia desse fenmeno para a vida da populao pobre daquela regio. A seguir, teremos dois tpicos que ilustraro possveis anlises relacionadas ao romance Vidas Secas e outras manifestaes artsticas, comprovando, assim, a possibilidade de um trabalho interdisciplinar pautado no horizonte de expectativas de alunos do Ensino Mdio. As diferentes manifestaes artsticas obre a temtica da Seca (Uma proposta de leitura) O trabalho com a interdisciplinaridade aqui proposto contempla um nmero significativo de obras artsticas e de textos jornalsticos que tematizam a seca, permitindo aos alunos a ampliao de seus horizontes culturais e exigindo deles constantes associaes entre elas, pois de alguma forma essas obras dialogam entre si e representam a diversidade cultural de nossa sociedade. Tal diversidade cultural ajuda-nos a compreender melhor as "identidades flutuantes" ou "identificaes" (Jlio Diniz) com as quais nos deparamos em nossa sociedade, justificando assim a importncia de uma formao interdisciplinar. Temos a seguir elencadas as obras que tematizam a seca: Romance: Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Filme: Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Fotos: livro Terra, de Sebastio Salgado. Quadros: srie Os Retirantes, de Cndido Portinari. Msicas: Segue o Seco, de Carlinhos Brown; Assentamento, Levantados do Cho, Fantasia e Brejo da Cruz, de Chico Buarque de Holanda; Lamento Sertanejo, de Gilberto Gil e Dominguinhos; Cano Nordestina, de Geraldo Vandr;

Asa Branca e A Volta de Asa Branca, de Luiz Gonzaga e A Triste Partida, de Patativa do Assar. Clip da msica Segue o Seco, com interpretao de Marisa Monte. Artigos de jornais revistas sobre a seca nordestina. Leitura da pea teatral Morte e Vida Severina, de Joo Cabral de Melo Neto. O objetivo desse trabalho intertextual no se restringe apenas comparao de diferentes linguagens em torno da temtica da seca e transmisso de um saber especializado sobre o romance Vidas Secas, mas busca tambm levar os alunos a perceberem que a literatura, como todas as outras formas de expresso artstica, enraza-se na dinmica da vida de uma cultura, em um processo dialgico ininterrupto devendo ser sempre vista enquanto uma arte em processo de desenvolvimento scio-cultural e esttico. Alm disso, com um material to rico seria fcil partir do que mais prximo aos alunos, por exemplo as msicas ou o cinema, para ento, gradativamente, questionar, romper e ampliar o "horizonte de expectativas" destes alunos. A seguir, ser exposta uma anlise comparativa da msica Lamento Sertanejo com excertos do romance Vidas Secas para ilustrar como este trabalho interdisciplinar poderia ser posto em prtica: Lamento Sertanejo (Gilberto Gil e Dominguinhos) Por ser de l do serto L do serrado L do interior, do mato Da caatinga, do roado Eu quase no saio Eu quase no tenho amigo Eu quase no consigo Ficar na cidade sem viver contrariado Por ser de l Na certa, por isso mesmo No gosto de cama mole No sei comer sem torresmo Eu quase no falo

Eu quase no sei de nada Sou como rs desgarrada Nessa multido boiada Caminhando a esmo. Pelos limites deste trabalho e por falta de conhecimentos mais aprofundados em teorias musicais, a anlise aqui exposta se restringir a letra da msica de Gil e Dominguinhos. Outro ponto a ser ressaltado o fato de que a comparao poderia ser feita entre todas as manifestaes artsticas e no apenas com o romance como aqui ser feito. Na primeira estrofe da msica constatamos um sujeito-lrico sem amigos, que no gosta da vida na cidade, assim como a personagem Fabiano, como se pode constatar nos fragmentos seguintes: Como poderia haver tantas casas e tanta gente? Com certeza os homens iriam brigar. (Ramos 1980:74) Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava com os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. (Ramos 1980: 76) Vivia longe dos homens, s se dava bem com animais. (Ramos 1980: 19) Estava convencido de que todos os habitantes da cidade eram ruins. (Ramos 1980: 76) Notamos nitidamente o dilogo que h entre a msica e o romance, j que ambos descrevem o homem sertanejo da mesma forma. Sempre homens que no confiam nos outros homens, sem amigos e que preferem o serto cidade. O "sujeito-lrico" da msica tambm pode ser comparado personagem Fabiano no aspecto de quase no falar, uma vez que, em vrias passagens do livro, verificamos quase no h comunicao entre a famlia do retirante e quando essa acontece feita atravs de sons guturais: E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silncio grande.(Ramos 1980: 10) Ainda vlido ressaltar a comparao entre os versos musicais: No gosto de cama mole e o desejo nunca satisfeito de Sinha Vitria em trocar a cama de varas por uma cama de lastro de couro, como se nota no fragmento abaixo: Sinha Vitria desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual de seu Toms da Bolandeira. (Ramos 1980: 46) Muitas outras comparaes poderiam ser estabelecidas, no entanto o que se quer evidenciar aqui a possibilidade de resultados positivos com um trabalho interdisciplinar. Tambm seria vivel a cooperao de um profissional da rea de msica, para que esse pudesse analisar o ritmo, a melodia, enfim, uma anlise mais aprofundada da msica. Ainda pertinente destacar que as anlises e comparaes deveriam ser feitas, em sala de aula,entre todas as manifestaes artsticas, onde os alunos expressariam seus pensamentos, debateriam o tema em questo e, aps esta primeira etapa, teriam, atravs do professor e de leituras tericas, uma viso mais crtica e reflexiva sobre a temtica ressaltada. Outro ponto bastante pertinente, seria uma anlise comparativa mais detalhada entre o romance e o filme Vidas Secas, apontando quais as principais convergncias e divergncias

existentes nessas obras. Pensando nisso, observaremos a seguir uma breve anlise das divergncias nos focos narrativos destas obras. As divergncias no foco narrativo de Vidas Secas: romance e filme Essa parte dotrabalho caracteriza-se como um estudo comparativo do foco narrativo no romance de Graciliano Ramos, publicado em 1938, na segunda fasedo Modernismo, e de sua transposio homnima para o cinema, feita por Nelson Pereira dos Santos, em 1963, concomitante ao movimento do Cinema Novo. Tanto na narrativa literria quanto na narrativa cinematogrfica, o foco narrativo assume papel central. Todavia, h diferenas significativas na perspectiva adotada em uma e em outra obra, uma vez que a linguagem faz uso de signos verbais e, o cinema, de signos visuais, o que leva ao uso de procedimentos especficos em uma e outra arte. No romance Vidas Secas, tem-se um narrador em terceira pessoa cuja oniscincia multi-seletiva, que se efetiva por meio do discurso indireto livre, permite adentrar o interior das personagens. Diversamente, o filme no dispe dos mesmos recursos de focalizao, passando a utilizar o olhar das personagens, conforme se observa nas palavras de Rocha: No livro, o narrador trabalha com o discurso indireto livre, sua conscincia solidria com a do sertanejo, e por isso eles no poderiam ter referncia de qualquer calendrio mais abrangente, a no ser aquele marcado pelas manifestaes da natureza. O narrador s domina o que as personagens dominam e a ao s avana com a participao deles (sic). No filme, o recorte temporal define o distanciamento do narrador, isto , o narrador domina a histria que ser mostrada, apesar de tambm no avanar a ao sem a participao das personagens. Nesse sentido, as seqncias so mostradas a partir do ponto de vista, ora de uma, ora de outra personagem. (ROCHA 1987: 410 - 1) Desse modo, procedendo ao estudo comparativo das duas obras em questo, no que se refere ao foco narrativo, analisaremos os captulos "Festa", "Inverno" e "Baleia" e as cenas do filme correspondentes a estes captulos, no sentido de mostrar as divergncias existentes. Em primeiro lugar, observa-se uma diferena entre os eventos narrados nas duas narrativas. No romance, trata-se da festa de Natal, sendo a focalizao do narrador onisciente uma constante. No filme, por outro lado,h uma substituio da festa natalina pela festa do bumba-meu-boi. Embora os acontecimentos enfocados sejam diversos, os narradores do romance e do filme aproximam-se, na medida em que, nas cenas citadas, a oniscincia comum a ambos. No caso do romance, a oniscincia manifesta-se do incio ao fim da narrativa, sendo ela a tcnica que permite adentrar o interior das personagens. Todavia, o que parece problemtico, no caso do filme, a mudana brusca, e mesmo incoerente, da focalizao na cena referente ao bumba-meu-boi. Como dissemos anteriormente, o filme utiliza-se do olhar das personagens Fabiano, Sinh Vitria, Baleia e outros para mostrar a realidade. Assim, a cena do bumba-meu-boi, ao optar pela focalizao onisciente, destoa marcadamente da perspectiva adotada no restante do filme, conforme afirma Caccese: Em nenhum momento at ento, e posteriormente, o narrador onisciente, pois os fatos so apresentados segundo a perspectiva das personagens. Contudo Nelson Pereira dos Santos nos mostra uma cena de que no poderamos ter conhecimento j que nenhum dos protagonistas estava presente. (CACCESE 1977: 162) Se nas duas cenas em questo, a festa de Natal e a do bumba-meu-boi, encontramo-nos diante da focalizao onisciente no podemos dizer que o efeito produzido por tal perspectiva seja semelhante no romance e no filme. Na narrativa de Graciliano Ramos, a manuteno de determinada focalizao revela coerncia e a eficcia do ponto de vista adotado. J no filme de Nelson Pereira dos Santos, a focalizao destoante do todo presente na cena do bumba-meuboi rompe a harmonia existente at ento. Vejamos, contrapondo as cenas do Natal e do bumba-meu-boi, como o trabalho com a oniscincia difere nas duas narrativas.

Noromance de Graciliano Ramos o narrador, embora onisciente, no se coloca em uma posio demirdica, mostrando os fatos e as personagens de um ponto de vista distanciado. Ao contrrio, a oniscincia em Vidas Secas permite que o narrador se aproxime das personagens atravs do discurso indireto livre e misture sua voz a delas, fazendo com que as situaes possam ser visualizadas da perspectiva da personagem, como se observa na cena da festa de Natal: Sinh Vitria achava-se em dificuldade: torcia-se para satisfazer uma preciso e no sabia como se desembaraar. Podia esconder-se no fundo do quadro, por detrs das barracas, para l dos tambores das doceiras. Ergueu-se meio decidida, tornou a acocorar-se. Abandonar os meninos, o marido naquele estado? Apertou-se e observou os quatro cantos com desespero, que a preciso era grande. Escapuliu-se disfaradamente, chegou esquina da loja, onde havia um magote de mulheres agachadas. E, olhando as frontarias das casas e as lanterna de papel, molhou o cho e os ps das outras matutas. (RAMOS 1980: 82) O fragmento acima mostra que, por meio do discurso indireto livre, a voz do narrador se mescla da personagem, no sendo, portanto, a oniscincia total do narrador que se manifesta, pois, a fuso de vozes permite que "enxerguemos" a situao atravs do olhar de Sinh Vitria. A cena do bumba-meu-boi, correspondente cena da festa de Natal do romance, no utiliza os mesmos procedimentos. Quando, de acordo com o que mostramos, Nelson Pereira dos Santos opta por, nesta cena, adotar uma perspectiva onisciente, at ento no existente no filme, torna-se confessa a presena do cineasta, do olhar de fora e distante, o que jamais ocorre no romance de Graciliano Ramos, ainda que nele tenhamos a presena de um narrador onisciente durante toda a narrativa, conforme podemos inferir no comentrio de Caccese: Se a primeira vista considerei a cena "uma concesso ao folclore", sentindo que destoava do prprio filme, analisando as possveis causas dessa impresso, encontrei-as nesta falha do tratamento cinematogrfico da obra. como se o Diretor abandonasse por alguns momentos o roteiro, para "dar uma voltinha" pela cidade, quando era preciso considerar que o importante para Graciliano no nunca o acontecimento em si, mas as reaes das personagens diante dos fatos e situaes. (CACCESE 1977: 162) De igual maneira, a diferena entre osprocedimentos flmicos e os romanescos se faz presente em outros aspectos. No romance, h escassez de dilogo entre as personagens, que se comunicam verbalmente, quando muito, por meio de monosslabos e sons rudimentares. Diante de tal fato, a transposio flmica dos monlogos, cujo papel fundamental na narrativa de Graciliano Ramos, encontra-se frente a uma situao difcil de ser resolvida e a opo pelo dilogo, no filme, faz com que este se afaste um pouco do romance, de acordo com o comentrio de Caccese: curioso observar que, dada a incapacidade de comunicao oral dos protagonistas, o romance s excepcionalmente nos apresenta dilogo (sic) rudimentares. como se fosse um filme mudo. No entanto, o filme, realizado quase como tal, violenta essa realidade fundamental, pois a ausncia dos monlogos interiores essenciais no livro, ou de recursos cinematogrficos correspondentes, acentua o fato social, em detrimento da repercusso dele no mago dos protagonistas. E quando procura registrar a tentativa de comunicao entre Sinh Vitria e Fabiano nos monlogos paralelos j mencionados -, a pelcula falha completamente. ( CACCESE 1977: 162) A transposio dos monlogos interiores do romance para a forma de dilogo, no filme, no consegue, ainda, manter o objetivo alcanado por Graciliano Ramos com o uso do monlogo, ou seja, aproximar o leitor do interior de suas personagens, como se observa nos exemplos abaixo: Seu Toms tinha uma cama de verdade, feita pelo carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a enx, com juntas abertas a formo, tudo embutido direito, e um couro cru em cima, bem esticado e bem pregado. Ali podia um cristo esticar os ossos. (RAMOS 1980: 45)

Pobre de seu Toms. Um homem to direito sumir-se como cambembe, andar por este mundo de trouxa nas costas. Seu Toms era pessoa de considerao e votava. Quem diria? (RAMOS 1980: 27) Os trechos acima referem-se, respectivamente, aos monlogos de Sinh Vitria e Fabiano. Atravs deles, podemos observar como Graciliano Ramos conduziu seu romance ao criar um narrador que conhece a conscincia das personagens, mas que, ao mesmo tempo, cede a voz s mesmas atravs do discurso indireto livre, fazendo com que seu interior seja revelado no apenas por uma instncia de fora e distante, o narrador, mas por elas mesmas, fato que no se constata no filme. Na transposio cinematogrfica vale ressaltar, ainda, que foi necessria a unio de monlogos de captulos distintos, "Sinh Vitria" e "Cadeia", para que o dilogo fosse possvel numa nica cena, que equivale ao captulo "Inverno" do romance. Assim, fica evidente que a tentativa de Nelson Pereira dos Santos de transpor os monlogos do romance para dilogo tornou-se complicada, j que tanto Sinh Vitria quanto Fabiano estavam presos s suas reminiscncias, no podendo essas lembranas, que so distintas, formarem um dilogo. Podemos perceber essas distines quando Sinh Vitria pensa na cama de lastro de couro, ao passo que Fabiano pensa na contingncia humana ao constatar que seu Toms, embora culto, no podia fugir das misrias causadas pela seca. Se, at o momento, observarmos a presena de divergncias notrias no que se refere configurao do foco narrativo no romance e no filme Vidas Secas, possvel verificar, por outro lado, semelhanas entre as duas narrativas, o que ocorre, por exemplo, com a cena da morte da cachorra Baleia. Como sabemos, a cachorra Baleia sofre um processo de antropomorfizao, o que a eleva condio de membro integrante da famlia de Fabiano em ambas as obras. O prprio nome dado a cachorra uma forma de demonstrar o carinho, dispensado ao animal, pela famlia de retirantes. A condio assumida por Baleia, por outro lado, contrape-se a dos filhos dos sertanejos, uma vez que estes passam por um processo inverso, o de zoomorfizao, no possuindo nem mesmo nomes. O captulo que se refere a morte de Baleia revela-nos a grande dor sofrida pela famlia com a doena do animal, pois at mesmo um "bruto" como Fabiano hesita na hora de mat-la. O processo de antropomorfizao de Baleia evidente, ainda, em seus monlogos interiores, os quais revelam a sua dor e seu sofrimento: De fronte ao carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois ps, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. (RAMOS 1980: 88) Olhou-se de novo, aflita. Que estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se . Senti o cheiro bom dos pres que desciam do morro mas o cheiro vinha fraco e havia nele partculas de outros viventes. (RAMOS 1980: 88-9) Os fragmentos citados evidenciam o sofrimento de Baleia, que, prestes a morrer, tem um delrio, vendo pres. Para o animal os pres so sinnimos de felicidade, na medida em que serviam de alimento para ela e para a famlia de retirantes, afastando-os da fome causada pela seca. A morte de Baleia transposta para o filme fielmente. A cena cinematogrfica oferece a impresso de um real sofrimento, analogamente aquilo que se encontra no romance. O diretor conseguiu, ao posicionar a cmera sob o ponto de vista de Baleia, mostrar o interior da personagem, enredando o espectador em sua morte. Nesta cena, tem-se um exemplo pertinente do poder de interpretao de sentimentos e sensaes de Baleia antes de morrer, sendo que a se verifica a possibilidade de transposio feliz dos monlogos interiores para cenas do filme. Contrapondo a cena da morte de Baleia cena referente ao captulo "Inverno", podemos concluir que seria mais fcil passar para a linguagem visual os monlogos interiores de Sinh

Vitria e Fabiano do que os de Baleia. No entanto, quando Nelson Pereira dos Santos tentou transformar o pensamento de Sinh Vitria e Fabiano em um dilogo, fugiu da inteno de Graciliano Ramos de explorar intrinsecamente cada personagem, o que o cineasta conseguiu fazer com o magistral captulo "Baleia" ao transp-lo, com absoluta fidelidade, para a linguagem cinematogrfica. Em sntese, pode-se afirmar que nem sempre Nelson Pereira dos Santos consegue transpor a linguagem verbal de Graciliano Ramos para a linguagem visual com eficcia em se tratando do foco narrativo. Enquanto o romancista podia se utilizar de recursos como a oniscincia multiseletiva e o discurso indireto livre, o diretor optou por mostrar toda a histria a partir da viso das personagens, procedimento este que, nem sempre obteve bom xito, conforme verificamos ao analisar a cena do bumba-meu-boi e a dos monlogos interiores de Sinh Vitria e Fabiano. Provavelmente, se o cineasta no tivesse unido os monlogos interiores num nico dilogo, mantendo-os na parte referente ao romance e os transposto realmente como monlogos interiores, como fez com a cena de Baleia, o resultadoteria sido mais eficaz. Na cena do bumba-meu-boi, o que faltou foi a presena de uma das personagens, pois assim a histria continuaria sempre sendo contada pela perspectiva de uma das personagens, o que condiria com o foco narrativo do romance e com o foco narrativo utilizado at ento, e, posteriormente, na pelcula. Com essa comparao poder-se-ia estar ampliando os "horizontes de expectativas" dos alunos, alm de, claro, estar ampliando seus conhecimentos em teoria literria e, concomitantemente, aprendendo um pouco mais sobre o cinema, em especial o Cinema Novo. CONSIDERAES FINAIS Todas essas observaes, sobre a interdisciplinaridade, a Esttica da Recepo, o horizonte de expectativas, a identidade de cada aluno e as anlises feitas para ilustrar a proposta de leitura do romance Vidas Secas, so vlidas em diversos sentidos. Um dos principais evidenciar a importncia de uma formao interdisciplinar. A qual pode ser verificada atravs da proposta de leitura com a temtica da seca. Obviamente, essa proposta poderia ser bem mais esmiuada, na medida em que todas as obras citadas anteriormente poderiam, em sala de aula, ser analisadas detalhadamente, dependendo do tempo que o professor tiver. No entanto, o prprio levantamento de materiais j nos comprova que tal proposta seria possvel de ser aplicada no momento em que o docente fosse trabalhar com o Modernismo social de 30 ou na aplicao dos elementos da narrativa: tempo, espao, narrador, foco narrativo, enredo e personagens. Outro ponto pertinente a relevncia de partir do prprio horizonte de expectativas dos alunos, para que a leitura passe pelas etapas de prazer, fruio literria e, depois, prazer esttico, aquela leitura que nos faz mais crticos e reflexivos. Mais uma vez, o trabalho interdisciplinar mostra suas vantagens, j que, com ele, tanto os alunos interessados em Literatura, Msica, Fotografia, Pintura, ou seja, em qualquer uma das manifestaes artsticas citadas no decorrer deste trabalho, estariam prximos de seu principal interesse, ao tempo que aprenderiam sobre as outras artes. Ainda vlido ressaltar que uma proposta intertextual nos d o direito de dizer que no somos um povo com uma identidade cultural restrita, mas, ao contrrio disso, temos vrias identificaes que podem se modificar de acordo com a ampliao de nossos horizontes de expectativas. Assim, alm da Literatura, a conhecimento geral dos alunos tambm seriam bastante ampliados. Referncia Bibliogrfica CACCESE, Neusa Pinsard. "Vidas Secas": Romance e Fita. In: BRAYNER, Snia (org). Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1977.

CANDIDO, Antonio. A Literatura e a Formao do Homem. Cincia e Cultura. So Paulo: V. 24, n.9, p. 3 9, 1972 DINIZ, Jlio. Msica Popular Leituras e Desleituras. In: OLINTO, H. K. e SCHOLLHAMMER, K. E.. Literatura e Mdia. Rio de Janeiro: PUC-Rio; So Paulo, Loyola, 2002 RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 45ed. So Paulo: Record, 1980. Bibliografia AGUIAR, Vera Teixeira de. O leitor competente luz da teoria da literatura. Revista Tempo Brasileiro. N 124. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, ed trimestral, 1996. BORDINI, M e AGUIAR, V. T. A Formao do Leitor: Alternativas Metodolgicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988 ___________________________. Literatura: a formao do leitor: alternativas metodolgicas. Porto Alegre: Mercado Livre, 1988 CACCESE, Neusa Pinsard. "Vidas Secas": Romance e Fita. In: BRAYNER, Snia (org). Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1977. DINIZ, Jlio. Msica Popular Leituras e Desleituras. In: OLINTO, H. K. e SCHOLLHAMMER, K. E.. Literatura e Mdia. Rio de Janeiro: PUC-Rio; So Paulo, Loyola, 2002 JAUSS, Hans Robert. A histria da literatura como provocao teoria literria. Trad. Srgio Tellaroli. So Paulo: tica, 1980. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. So Paulo: tica,1997. LIMA, Luiz Costa. A Literatura e o Leitor. Textos de Esttica da Recepo. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979 PERROTI, Edimir. Literatura e Escola: dilogo difcil. Difcil? Pginas Abertas. Revista de Letras. Bibliografia de Edio Paulinas. N. 64, 1990. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 45ed. So Paulo: Record, 1980. ROCHA, Antnio do Amaral. Graciliano no Cinema. In: GARBUGLIO,Jos Carlos, Bosi, Alfredo e Facioli, Valentim. "Graciliano Ramos". So Paulo: tica, 1987. ZILBERMAN, Regina, SILVA, Ezequiel Theodoro da. Literatura e pedagogia. Ponto e contraponto. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990. (Srie Contrapontos)

Autor: Ana Paula Miqueletti

Vidas Secas

Mas ningum tem a licena de fazer medo nos outros, ningum tenha. O maior direito que meu - o que quero e sobrequero - : que ningum tem o direito de fazer medo em mim! (Guimares Rosa Grande Serto: veredas) Ol! Estou aqui de novo, com o mesmo carinho de sempre, para o nosso encontro semanal no Mire e Veja Travessia. E hoje recomendarei uma obra clssica da literatura brasileira: Vidas Secas de Graciliano Ramos. A obra aborda o sertanejo nordestino humilhado pelas secas e pelos homens, onde as condies subumanas nivelam animais e pessoas. Temos personagens que giram em crculo, procurando subsistncia e que terminam emigrando para o Sul, como milhes de Nordestinos. Todas as personagens so indefesas e esto sujeitas agressividade dos outros, do patro ou do poder pblico. Aproveito agora que Vidas Secas o tema das nossas aulas, onde introduzimos o assunto com a Msica ltimo Pau de Arara, estamos assistindo ao filme (foto) adaptao da obra e vamos abordar a segunda fase do Modernismo brasileiro e as diversas variedades lingusticas, para deixar um recado: um momento apropriado para ler o livro que explorado em vrios vestibulares do pas, na FUVEST e tambm no Enem, e ainda nos proporciona um conhecimento sobre o tema, ampliando a nossa viso cultural, social e poltica. uma tima indicao de leitura no s para estudantes, mas para todas as pessoas que ainda no tiveram a oportunidade de ler o livro. Graciliano Ramos, assim como vrios escritores da dcada de 30 e de outros tempos, foi atuante na sociedade de sua poca e fez da literatura uma espcie de denncia social. Para ele preciso conhecer a realidade para transform-la. E para conhecer ainda mais esta temtica, nada melhor do que um texto de um grande poeta l da regio do Cariri (Cear): Patativa do Assar. O poema foi musicado por Luiz Gonzaga. Como cidad, educadora e crist,

considero ser nosso papel conhecer e continuar transformando a nossa sociedade. Vamos ao poema: A TRISTE PARTIDA Setembro passou, outubro e novembro J tamo em dezembro, Meu Deus, o que de ns? Assim fala o pobre do seco Nordeste, Com medo da peste, Da fome feroz. * A treze do ms, ele fez a experina, Perdeu sua crena Nas pedras de sal, Mas noutra esperana Com gosto se agarra, Pensando na barra do alegre Natal. * Rompeu-se o Natal, porm barra no veio, O sol, bem vermeio, Nasceu muito alm. Na copa da mata, buzina a cigarra, Ningum v a barra, Pois barra no tem. * Sem chuva na terra descamba janeiro, Depois fevereiro, E o mesmo vero Entonce o nortista pensando consigo, Diz: isso castigo! No chove mais no! * Apela pra maro, que o ms preferido Do Santo querido, Sinh So Jos. Mas nada de chuva! T tudo sem jeito, Lhe foge do peito O resto da f. * Agora pensando ele segue outra tria, Chamando a famia Comea a dizer: Eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo, Nois vamo a So Paulo Viver ou morrer. * Nois vamo a So Paulo, que a coisa t feia;

Por terras alheia Nois vamo vagar. Se o nosso destino no for to mesquinho, A pro mrmo cantinho Nois torna voltar. * E vende seu burro, jumento e o cavalo, Int mesmo o galo Vendro tambm, Pois logo aparece feliz fazendeiro, Por pouco dinheiro Lhe compra o que tem. * Em um caminho ele joga a famia Chegou o triste dia, J vai viajar. A seca terrivi, que tudo devora, Lhe bota pra fora Da terra natal. * O carro j corre no topo da serra. Oiando pra terra, Seu bero, seu lar, Aquele nortista, partido de pena, De longe inda acena: Adeus, meu lugar! * No dia seguinte, j tudo enfadado, E o carro embalado, Veloz a correr, To triste, coitado, falando saudoso, Com seu filho choroso Escrama, a dizer: * - De pena e saudade, papai, sei que morro! Meu pobre cachorro, Quem d de comer? J outro pergunta: - Mezinha, e meu gato? Com fome, sem trato, Mimi vai morrer! * E a linda pequena, tremendo de medo: - Mame, meus brinquedo! Meu p de ful! Meu p de rosra, coitado, ele seca! E a minha boneca Tambm l ficou. *

E assim vo deixando, com choro e gemido, O bero querido O cu lindo e azul. O pai, pesaroso, nos fio pensando, E o carro rodando Na estrada do Sul. * Chegaram em So Paulo - sem cobre, quebrado. E o pobre, acanhado, Percura um patro. S v cara estranha, de estranha gente, Tudo diferente Do caro torro. * Trabaia dois ano, trs ano e mais ano, E sempre nos prano De um dia vortar Mas nunca ele pode, s vive devendo, E assim vai sofrendo sofrer sem parar. * Se alguma notia das banda do Norte Tem ele por sorte O gosto de ouvir, Lhe bate no peito saudade de mio, E as gua nos io Comea a cair. * Do mundo afastado, ali vive preso Sofrendo desprezo Devendo ao patro. O tempo rolando, vai dia e vem dia, E aquela famia No vorta mais no! * Distante da terra, to seca mas boa, Exposto garoa, lama e ao pa, Faz pena o nortista, to forte, to bravo, Viver como escravo No Norte e no Sul. Postado por Eliran Oliveira s Quarta-feira, Junho 23, 2010 Marcadores: Vidas Secas

PATATIVA DO ASSAR

POETA DO CORDEL. ANLISE E RESUMO DA OBRA DO POETA CORDELISTA ANTONIO GONALVES DA SILVA (1909-2002)

INTRODUO Este trabalho objetiva apresentar em resumo a obra de Patativa do Assar. Com o intuito de apresentar o autor em diferentes contextos, ou seja, nas poesias, na literatura de cordel, nos repentes e desafios com parceiros de viola, transcrevemos neste, vrios trechos de suas obras a fim de sedimentar o que ser dito em cada leitura. Patativa do Assar teve trs livros editados, sendo: Inspirao Nordestina (1956), Patativa do Assar (1970) e Ispinho e Ful (1991). Mostraremos ao longo deste trabalho, o resultado de vrias pesquisas, leituras e consultas que fizemos e elaboramos no decorrer do perodo em que labutamos na organizao e confeco deste trabalho. Alm dos trechos de algumas poesias, apresentaremos, tambm, outras na ntegra por julgarmos serem verdadeiros clssicos da literatura nordestina e, por que no dizer, da literatura brasileira. Algumas poesias foram transcritas na forma em que foram publicadas para no perdermos a originalidade e a essncia, coisa que com certeza iria deixar o poeta "por dimais insatisfeito". Colocamos em destaque a oralidade do universo cultural do autor e a experincia como violeiro, que influenciaram profundamente a poesia de Patativa, cuja trajetria como repentista se presentifica nos poemas que se estruturam em forma de peleja e na sua capacidade de esgrimir as palavras construindo uma trama que se tece medida em que os versos so enunciados. Encontrar-se- neste trabalho, dentre as partes que o compe, algumas fotos ilustrativas e imagens do autor e da gente de sua terra, sumrio, introduo, biografia, contexto histrico, prmios e homenagens, cronologia, entrevistas e, ainda no desenvolvimento, abordaremos sobre a literatura de cordel, sua mtrica, seus cantadores, falaremos dos folhetos, das capas e contracapas, enfim, trataremos de reproduzir neste trabalho toda a satisfao que sentimos desde o primeiro contato que tivemos com as obras do autor e, por fim, apresentaremos a concluso e a bibliografia que nos deu fundamentos e orientaes sobre este poeta que to bem escreve sobre os desmandos, sofrimento e injustias sofridas pelo povo sertanejo, pelo povo brasileiro. Apresentamos tambm um captulo contendo as comparaes e analogia deste rico e imenso trabalho, com obras de Euclides da Cunha e Gonalves Dias, acentuando em alguns detalhes a intertextualidade destas obras, bem como a importncia e a influncia deste grande poeta na cultura do povo brasileiro.

PRODUO LITERRIA EM FORMA DE FOLHETOS O lbum Patativa do Assar - Cordis uma sntese da produo literria de Antnio Gonalves da Silva: a novela picaresca, o conto fantstico, proselitismo, ecologia e informao esto presentes. A coletnea, organizada pelo pesquisador Gilmar de Carvalho, foi publicada em 1993. Seria bem natural se o poeta, mesmo aposentada a viola, companheira de comeo, sasse a divulgar seus versos no suporte conhecido do cordel. Assim o fazem e fizeram geraes de contadores de histria e vates caminhantes pelo serto. Mas Patativa do Assar zela por sua musa, comerciar seus poemas nunca seria um mister. E Antnio Gonalves da Silva pouco se permitiu utilizar a forma do folheto, livreto em quarto de pgina, a capa resumindo em cromo ou gravura o contedo das pginas, em geral 16. Em 1993, por iniciativa do pesquisador Gilmar de Carvalho, saiu uma coletnea de criaes do Patativa em 13 cordis, o conjunto acondicionado numa caixinha de cartolina. Este lbum amostra representativa da diversidade do artista de Assar.

Brosog, Milito e o Diabo uma novelinha picaresca, com pitadas de fantstico, aqui representado pela figura do Co. Miangueiro (ou camel), Brozog corria mundo com sua maletinha. Na fazenda de Milito, nada vendeu, saiu devendo meia dzia de ovos. No dia de pagar, o coronel cobrou uma exorbitncia: cada ovo viraria uma poedeira, o pobre do ambulante lhe devia todo um galinheiro. Foi salvo pelo Diabo, que advogou em seu favor, livrando Brozog com o engodo de plantar feijo cozido. Do clssico rabe As Mil e Uma Noites, Patativa adaptou a Histria de Aladim e a Lmpada Maravilhosa; do romanceiro iberosertanejo, a saga aventurosa de Ablio e seu Cachorro Jupi. O serto nordestino o tema maior de Patativa. Nessa coleo foram includos os poemas Emigrao, A Triste Partida e ABC do Nordeste Flagelado. Como elucidam os ttulos, a questo da seca e seu squito de retirantes do o mote. Em O Meu Livro, o poeta, como o personagem Chico Brana, conta em versos sua profisso de f: ser o cantor da natureza, traduzindo em poesia a linguagem dos bichos, das plantas, dos lugares. No folheto O Doutor Raiz, Patativa alerta contra os falsos curandeiros, ao mesmo tempo que tambm critica a medicina popular. Glosas sobre o Comunismo apresenta um Patativa veemente versando sobre o mote ``o comunismo fatal / no queremos no Brasil''. Um dos mais belos poemas-denncia de Patativa do Assar tambm est presente no lbum em O Padre Henrique contra o Drago da Maldade, o poeta conta a trgica histria do jovem padre pernambucano, ligado a D. Hlder Cmara e Teologia da Libertao. Antnio Henrique tinha apenas 27 anos quando foi assassinado pelas foras repressivas, no violento ano 1969, em Recife. Outro folheto onde a lira de Patativa descreve o protesto Vicena e Sofia ou o Castigo de Mame, um libelo contra o preconceito racial.

PATATIVA DO ASSAR, UM POETA POPULAR Fiel tradio dos poetas de cordel, ele mesmo autor de cordis, Patativa do Assar compe uma poesia essencialmente narrativa que testemunha a histria quotidiana do sertanejo e torna-se, de qualquer maneira, "o mediador encarregado de traduzir o mundo exterior aos sertanejos". Esta obra, "nascida no seio do povo, aplaudida e amada por esse mesmo povo", coloca-se ao lado das referncias literrias do Nordeste como A Bagaceira, Pedra Bonita, Vidas secas, O Quinze, Grande Serto: veredas, na medida em que o autor contribui para a elaborao de uma imagem da identidade nordestina e de representaes simblicas que nos permitem compreender melhor os valores fundamentais do sertanejo atravs das personagens encenadas. Se a origem social do poeta e a origem social de seu pblico so determinantes para qualificar esta poesia como popular, preciso igualmente levar em considerao outros critrios que permitem caracterizar sua obra: os assuntos tratados, a funo do poeta e a filosofia empregada. Ao longo da leitura de ttulos de cordis recentemente editados pela URCA, constata-se a presena de numerosos temas habitualmente abordados na literatura popular nordestina: o ciclo religioso e o messianismo, a tradio pica, a descrio da vida do Nordeste com seus flagelos, caatinga, inundaes, secas, migraes: Saudao ao Juazeiro do Norte, Histria de Aladim e a lmpada maravilhosa, ABC do Nordeste flagelado, A Triste Partida, Emigrao Uma leitura mais abrangente da obra descobre tambm a presena de personagens tradicionais do serto: o vaqueiro, o caboclo, o roceiro, o caador, o mendigo, sem esquecer os animais familiares como o cavalo, o boi e o cachorro. preciso ressaltar, enfim, a grande variedade de personagens que habitam os poemas e que so nomeados de forma tradicional e popular, seja por referncia ao pai(Z Geraldo), me (Z de Ana), ou atividade profissional (Cia do Barro Cru). Entretanto, nem as narrativas das aventuras de um destes habitantes do serto (Brosog, Milito e o Diabo, As faanhas de Joo Mole, Vicena e Sofia, ou o castigo de mame), nem a descrio das dificuldades encontradas pelo sertanejo so jamais apresentadas fora de uma preocupao educativa: divertindo o ouvinte ou o leitor, o poeta tem por tarefa instru-lo, transmitindo valores morais. Do ponto de vista da funo determinada para a poesia popular, encontramos paradoxalmente um dos componentes do ideal clssico: "agradar e instruir". Quanto estrutura mesma dos textos, eles esto muito prximos do modelo da fbula: conduz o leitor abertura, narra, formulao da moral no desfecho. Com efeito, os primeiros versos focalizam a ateno sobre as intenes do autor ou sobre os valores morais que ele se prope a transmitir aos receptores; como, por exemplo, a abertura de As Faanhas de Joo Mole, a seguir: "Neste pequenino drama O caro leitor ver

Que dentro de cada homem Um pouco de ao est E um s homem sem coragem No nosso mundo no h" Esta vontade didtica est claramente afirmada na medida em que os cordis terminam geralmente por uma evocao direta do leitor e por uma lembrana da lio que convm extrair da histria escutada. A ltima estrofe do cordel acima citado se encerra nestes termos: "Agora, caro leitor, No desaprove o que digo Todo homem tem coragem O rico, o pobre e o mendigo No ponto da hora H Insulte um, e ver O mais feroz inimigo" Os valores morais aos quais se refere Patativa do Assar no so fundados sobre os princpios tericos; so ou simples heranas de geraes anteriores, ou fruto direto de uma experincia vivida. Sua concepo do mundo e sua relao com o outro repousam sobre uma crena que se poderia qualificar de humanista ou de crist e que corresponde, alm disto, uma realidade cultural nordestina. Assim a abertura de Brosog, Milito e o Diabo afirma como ponto de partida os valores seguintes: "O melhor da nossa vida paz, amor e unio E em cada semelhante A gente v um irmo" Raymond Cantel j havia, por sua vez, sublinhado largamente as intenes moralistas da literatura popular nordestina: "Os sentimentos tradicionais, a famlia e o amor do prximo so celebrados, mas trata-se, antes de tudo, de ensinar ao sertanejo, sempre distraindo-o, que se ele no souber resistir aos impulsos de seu temperamento, ele ter de suportar as conseqncias". Patativa do Assar explica a origem de certas composies por estas mesmas razes: melhor que punir um de seus netos desobedientes ou um menino da vizinhana que lhe havia enganado para melhor roub-lo, ele optou por recorrer poesia, com o duplo objetivo de expor publicamente aquele que cometeu uma falta (punio que ele julga mais eficaz do que um acerto de contas cara a cara) e ensinando-o, ao mesmo tempo, o perdo e a boa conduta (Incelncia das Cuinhas). Esta atitude de sabedoria popular constitui um ensinamento moral prtico que toma suas referncias no quotidiano. Em "La Littrature Populaire Brsilienne", 1993, Poitiers, p.16, Cantel afirma "A literatura popular existe em outros pases, mas nenhuma to relevante quanto do Nordeste (...) Aqui, no Nordeste, ela resiste e se transforma cada vez mais". assim que Patativa do Assar preenche sua funo de educador tanto junto s crianas consideradas por ele como um elemento fundamental "A criana, para mim, a maior riqueza do mundo", quanto junto aos seus compatriotas sertanejos: "Ele (o poeta) deve empregar a sua lira em benefcio do povo, em favor do bem comum. Ele deve empregar a sua poesia numa poltica em favor do bem comum, uma poltica que requer os direitos humanos e defende o direito de cada um". Em um contexto de misria e analfabetismo largamente propagado, em outros termos, em meio ausncia de estruturas educativas de base, o poeta

popular desempenha um papel importante no despertar da conscincia cvica e poltica, Patativa do Assar afirma sua solidariedade com a luta dos sertanejos pelo reconhecimento de seus direitos e com a reivindicao de uma reforma agrria que lhe permitiria ter um nvel de vida mais digno: "A temtica social que domina sua poesia est assentada em aspiraes universais de justia e igualdade, sem qualquer refinamento ideolgico". Agricultor, ele denuncia a morosidade dos polticos que jamais tentaram eliminar a seca, flagelo maior do Nordeste, que a origem das constantes migraes de sertanejos: "A seca pertence ao imprio da natureza, mas pode ser resolvida pelo homem. Em pases de clima igual ou pior que o nosso, o problema de abastecimento de gua foi superado. A diferena aqui que os donos do poder no se interessam pela soluo. "Eles vivem do problema", declara Patativa do Assar. Na coletnea Cante l que eu canto c, ele confere uma posio preponderante questo da terra e numerosos poemas evocam esta realidade dramtica: O poeta da roa, Eu e o serto, E coisa do meu serto, Vida sertaneja, Caboclo roceiro, Cabocla da minha terra, No terreiro da choupana, A terra natural, O retrato do serto, Serra de Santana, Minha Serra, Coisas do meu serto, ABC do Nordeste flagelado. O poeta, com efeito, ergue no somente uma atestao amarga da realidade quotidiana, "Minha vida uma guerra E duro o meu sofrimento Sem t um parmo de terra: Eu no sei como sustento A minha grande famia" (Terreiro da Choupana) mas, reivindica a necessidade de uma reforma agrria: "A bem do nosso progresso Quero o apoio do congresso Sobre uma Reforma Agrria Que venha por sua vez Libertar o campons Da situao precria" (Eu quero) Defendendo, assim, a principal reivindicao dos habitantes do serto, ele torna-se verdadeiramente a voz do Nordeste e o smbolo de um processo de reconhecimento dos direitos elementares: "Em todas as grandes lutas sociais e polticas do Cear, Patativa disse: presente ". Este comprometimento, faz com que um certo nmero de poemas como Triste partida, Lio do Pinto, Vaca Estrela e Boi Fub tenham se tornado emblemas do povo nordestino, atestando a importncia do sucesso que ele alcanou junto aos sertanejos. Com efeito, Patativa do Assar passou de uma poesia sentimental e lrica para uma poesia de protesto: "uma poesia que pede reforma agrria, reclama contra o abandono do nordestino, contra o sistema de meao vigente no campo, contra a seca". VACA ESTRELA E BOI FUB

Seu dot, me d licena Pra minha histora eu cont. Se hoje eu tou na terra estranha E bem triste o meu pen, Mas j fui muito feliz Vivendo no meu lug. Eu tinha cavalo bom, Gostava de campe E todo dia aboiava Na portra do curr. Vaca Estrela, Boi fub. Eu sou fio do Nordeste, No nego o meu natur Mas uma seca medonha Me tanjeu de l pra c. L eu tinha meu gadinho No bom nem magin, Minha bela Vaca Estrela E o meu lindo Boi Fub, Quando era de tardezinha Eu comeava a aboi. Vaca Estrela, Boi fub. Aquela seca medonha Fez tudo se trapai; No nasceu capim no campo Para o gado sustent,

O serto esturricou, Fez os aude sec, Morreu minha Vaca Estrela, Se acabou meu Boi Fub, Perdi tudo quanto tinha Nunca mais pude aboi. Vaca Estrela, Boi fub. E hoje, nas terras do S, Longe do torro nat, Quando vejo em minha frente Uma boiada pass, As gua corre dos io, Comeo logo a chor, Me lembro da Vaca Estrela, Me lembro do Boi Fub; Com sodade do Nordeste D vontade de aboi. Vaca Estrela, Boi fub.

PATATIVA DO ASSAR, UMA IDENTIDADE SERTANEJA verdade que no somente a lngua, os personagens e o quotidiano descrito pertencem ao mundo rural sertanejo que viu nascer e viver Patativa do Assar, mas tambm as aspiraes sociais, as reivindicaes polticas e econmicas. O combate que ele conduz aquele do "caboclo roceiro, do campons sertanejo, da classe matuta". Com efeito, o elemento mais tocante da identidade sertaneja esta evocao constante de uma vida extremamente difcil, de uma terra particularmente hostil, de um universo encerrado sobre si mesmo. Patativa do Assar testemunha de forma direta: C no serto eu infrento A fome, a d e a misera. Pra s poeta divera Precisa t sofrimento"

(Cante l que eu canto c), ou ainda: "Pois aqui vive o matuto De ferramento na mo. A sua comida sempre Mio, farinha e fejo" (Coisas do meu serto) Por outro lado, as numerosas expresses colhidas por Plcido Cidade Nuvens em seu estudo intitulado O Universo fascinante do serto, fazendo referncia a um quotidiano brutal, massacrante, absurdo, asfixiante, traduzem esta luta constante do sertanejo: "vida apertada, lida pesada, sina tirana, grande labutao, vida de cativo, correr estreito, tormento do triste agregado, vida mesquinha, rojo seguro, gaio duro, situao crua, quebradeira, horrvel peleja, aperreio, grande canseira, meu cativeiro, constante lida, batalha danada, verdadeiro inverno, situao mesquinha". Todas estas denominaes refletem o abandono, o isolamento, a extrema penria. Manifestam a tenacidade, a obstinao, a resistncia do sertanejo. A coragem, a pacincia, a resistncia fadiga aparecem como atributos fundamentais dos sertanejos. A poesia cabocla, feita de suor, de fome e de fatiga, e nascida desta misria, reivindica sua diferena face a poesia de salo: "Meu verso rastro, singelo e sem graa, No entra na praa, no rico salo, Meu verso s entra no campo e na roa Nas pobre paioa, da serra ao serto" (O poeta da roa). Uma das figuras recorrentes desta afirmao de identidade a oposio: o sertanejo se determina essencialmente pela diferena. O poema inaugural de sua obra escrita, "Ao leit", avisa ao leitor que ele vai descobrir uma poesia marcada pela deficincia; a ladainha das negaes e das restries sublinha estilisticamente esta confisso: "No v percur neste livro singelo Os cantos mais belo da lira vaidosa, Nem brio de estrla, nem moa encantada, Nem ninho de fada, nem chro de rosa". (IN, p.15) Em Cante l que eu canto c, o poeta sertanejo salienta, sempre por negaes anafricas, a pobreza que o condena ao duro trabalho da terra: "Sou matuto sertanejo Daquele matuto pobre Que no tem gado nem qujo, Nem ro, prata nem cobre"

(Vida sertaneja) Igualmente, o sistema de negaes parece ser a pedra angular de uma percepo desvalorizada de si. Patativa do Assar tece, paralelamente a isto, uma rede semntica de conotao negativa. No poema O poeta da roa, ele se apresenta como "cant de mo grossa, poeta das brenha, no tenho sabena, meu verso rastro, singelo e sem graa". Em Seu Dot me conhece?, ele se define como "o mendigo sem sossgo, desgraado, aqule rocero sem camisa e sem dinhro"(IN, p.69). Em No meu serto, Patativa do Assar salienta sua falta de educao "Inducao eu no tenho"(IN, p.75). Em "Aos poetas clssicos", ele recorda sua origem humilde: "Sou um caboclo rocro, sem letra e sem instruo" (CLCC, p.19). Em "O retrato do serto", ele recorda que "poeta de mo calosa, () que no conhece cinema, teatro, nem futebol"(CLCC, p.238). Em "Emigrante nordestino no sul do pas", ele define seus compatriotas como "vagando constantemente, sem roupa, sem lar, sem po". Toda descrio, toda desvalorizao se faz sempre em referncia ao cidado urbano, ao letrado, ao rico, ao Sul. Patativa do Assar prope uma viso dicotmica do mundo tanto sobre o plano espacial (serto / cidade; Nordeste / Sul) quanto sobre o plano temporal (passado / presente). Na coletnea Cante l que eu canto c, esta oposio espacial anunciada desde o ttulo, se traduz por uma constante recordao das diferenas de identidade. A oposio mundo urbano/mundo rural est construda a partir de diferenas scio-culturais e do sistema de valores: educao e saber contra analfabetismo e ignorncia; dinheiro e bem-estar contra pobreza e sofrimento; hipocrisia e vaidade contra honestidade e modstia. Patativa do Assar rejeita o "poeta niversitaro, poeta de cademia de rico vocabularo cheio de mitologia" (Aos poetas clssicos) a quem ele recomenda cantar "a cidade que sua", porque ele teve inducao, aprendeu munta ciena, mas das coisa do serto no tem boa esperina" (Cante l que eu canto c) . Assim como faz com o ensinamento moral, as tomadas de posio de Patativa do Assar so fundadas sobre a experincia: aquele que no conheceu o serto na carne, dele no pode falar; a nica legitimidade admissvel a de pertencer a seu povo: "Na minha pobre linguage A minha lira servage Canto que a minha arma sente E o meu corao incerra, As coisa de minha terra E a vida da minha gente (Aos poetas clssicos). Ao dinheiro, ele ope a felicidade; assim, em "Ser Feliz" ele ressalta que a felicidade "nasceu na simplicidade sem ouro, sem lar nem po". Ope os bens materiais riqueza interior: "Dentro da minha pobreza, eu tinha grande riqueza"(A morte de Nana) e fustiga aqueles que so escravos dos bens materiais em detrimento do respeito aos valores humanos. (A escrava do dinheiro). Com efeito, o sertanejo confere uma importncia maior qualidade das relaes humanas: "O que mais estima e qu, a paz, a honra e o brio, o carinho de seus fio e a bondade da mui"(Vida sertaneja). Ser Feliz Que tens, rico poderoso, Que em vez de um supremo gozo Tu vives to desgostoso, Cabisbaixo e triste assim?

Nessa tristeza absorto, Com o teu corao morto, No achars um conforto Nos teus tesouros sem fim? Se a por esse ambiente, Ante o cofre reluzente Tua pobre alma no sente Prazer e consolao, Abandona o teu tesouro, O brilhante, a prata e o ouro, E vem consolar teu choro Nas cabanas do serto. Vem matar o teu desejo Aqui, onde o sertanejo, Fruindo um prazer sobejo, No sente o peso da cruz, E onde a lua cor de prata, Linda, majestosa e grata, Estende por sobre a mata Sua toalha de luz. (...) Ser nobre ser venturoso, No ser um poderoso, Ser rico ter posio. A doce felicidade filha da soledade, Nasceu na simplicidade Sem ouro, sem lar, sem po.

Este olhar sobre o mundo, numa perspectiva espacial, recupera tambm uma oposio passado/presente; tradio/modernidade. A situao do sertanejo obrigado a abandonar sua terra em funo da seca, a ir em direo s cidades do litoral, ou ento em direo s cidades do Sul, uma posio delicada, na medida em que ele passa sem transio de um mundo rural escala humana a um mundo urbano onde impera o anonimato. O encontro destes dois universos , no raro, doloroso e acompanhado de um voltarse para os valores tradicionais. As cidades, o progresso, a tcnica so acusados de veicular os piores males da civilizao: "Mas a civilizao faz coisa que eu acho ruim"(O puxad de roda). O sul, em particular, tido como a sede da corrupo: "Nos centros desconhecidos Depressa v corrompidos Os seus filhos inocentes, Na populosa cidade de tanta imoralidade e costumes diferentes" (Emigrante nordestino no sul do pas). Assim, o universo descrito por Patativa do Assar percebido como um espelho da realidade. O aspecto quase documental da sua poesia foi salientado por um certo nmero de crticos, entre os quais Luzanira Rego que afirma que sua obra: " reflete em seus poemas todo o mundo visionrio e fantasmagrico do caboclo nordestino, pintando, em cidas estrofes, a realidade de uma regio, onde o homem e a terra se unem pela fora do mesmo abandono". Para sustentar esta afirmao presenteia-nos com o poema: A Triste Partida.

A TRISTE PARTIDA Setembro passou com oitubro e novembro J tamo em dezembro Meu Deus que de ns Assim fala o pobre do seco Nordeste, Com medo da peste da fome feroz. A treze do ms ele fez esperiena, Perdeu sua crena Na pedra de s. Mas nouta esperiena Com gosto se agarra Pensando na barra Do alegre nat. (...) Trabaia dois ano, tris ano e mais ano, E sempre no prano De um dia inda vort. Mas nunca ele pode, s veve devendo, E assim vai sofrendo sofr sem par.

Se arguma nutia das banda do Norte Tem ele por sorte O gosto de uvi Lhe bate no peito sodade de mio E guas dos io Comea a ca Do mundo afastado sofrendo desprezo Ali veve prso, Devendo ao patro. O tempo rolando, vai dia e vem dia E aquela famia No vorta mais no Distante da terra to seca mais boa, Exposto garoa A lama e ao pa Faz pena o nortista, to forte, to bravo, Viv como escravo No Norte ou no S.

INTERTEXTUALIDADE ENTRE AS OBRAS DE PATATIVA E "OS SERTES" DE EUCLIDES DA CUNHA (1866-1909) OS SERTES tm por tema os personagens e cenrios da insurreio de Canudos em 1897, no Nordeste da Bahia. Divide-se em trs partes -- "A terra", "O homem", "A luta", ao longo das quais o autor analisa as caractersticas geolgicas e hidrogrficas da regio, sua flora, sua fauna e a gente sofrida que fez a histria daqueles dias: gente convulsionada pela esperana messinica e pelo desespero social, capaz de resistir at os ltimos frangalhos humanos. Patativa do Assar, em suas poesias, tambm retrata o povo nordestino e suas agruras, retrata com extrema retido as situaes e coisas de sua terra, ou seja, retrata a realidade do homem e na terra. "O SERTANEJO" "O sertanejo , antes de tudo, um forte. No tem o raquitismo exaustivo dos mestios neurastnicos do litoral. A sua aparncia, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrrio. Falta-lhe a plstica impecvel, o desempenho, a estrutura corretssima das organizaes atlticas. desgracioso, desengonado, torto. Hrcules-Quasmodo, reflete no aspecto a fealdade tpica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo,

quase gingante e sinuoso, aparenta a translao de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente acurvada, num manifestar de displicncia, que lhe d um carter de humildade deprimente. A p, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rpido, no traa trajetria retilnea e firme. Avana celeremente, num bambolear caracterstico, de que parecem ser o trao geomtrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo -- cai, o termo -- de ccoras, atravessando largo tempo numa posio de equilbrio instvel, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos ps, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridcula e adorvel. o homem permanentemente fatigado. Reflete a preguia invencvel, a atonia muscular perene em tudo: na palavra demorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadncia langorosa das modinhas, na tendncia constante mobilidade e quietude. Entretanto, toda esta aparncia de cansao ilude. Nada mais surpreendente do que v-la desaparecer de improviso. Naquela organizao combalida operam-se, em segundos, transmutaes completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Impertiga-se estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabea firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe prestes, numa descarga nervosa instantnea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos rgos; e da figura vulgar do tabaru achamboado, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um tit acobreado e potente, num desdobramento inesperado de fora e agilidade extraordinrias"... POESIA DE PATATIVA DE ASSAR. CABOCLA DE MINHA TERRA. Quem me dera s poeta Da mais rica inspirao Pr na linguage correta Faz do choro cano Faz riso do gemido Ah! Se os ispiritu sabido De Catulo e Juven Falasse por minha boca Pru modi cant cabca Da minha terra nat. Dessa terra de gulora Meu quirido Cear Que conhecido na histra Por terra dos Alenc

Terra dos indios valente E que mataro muita gente De flecha e tambm de pau E terra aonde premero O povo do cativro Se livr dos bacaiau. A sua pobre cabca bela, forte e gentil Porm minha idia pca Pr eu diz tudo aqui Tem ela o corpo composto Tambm a marca no rosto Do quente sol do serto E tem a cabea chata De tanto carreg lata Com gua do cacimbo. Ela no anda decente Nem pissui inducao Pois veve constantemente De alpragata e pe no cho No tem de letra ricurso No sabe faz discurso No sabe l nem cont (...) simples muito singela Porm tem grande valor Quem veve pertinho dela Tem um anjo protet

Ela no tem pele fina Como as donzela gr-fina Que tivero inducao Nem tem dedo despontado O seu dedo achatado De enchada e de pilo. Mas porm a gente nota Nela um jeito no sei qu Com rizinho ela bota Qualquer rapaz pr corr boa magra e bonita E quando o amor palpita Querendo arranjar xod Tem cabca teu feitio No precisa de artifo No bota ruge nem p. Pensando no casamento Veve cheia de praz O bjo do atrevimento No gosta de receb No gosta de certas graa E muitas veiz at passa Deiz ano sem namor Esperando o noivo amado Que saiu do seu estado Prs banda do Paran. (...) Muita prova tu tem dado

Da mais disposta mui Eu que vivo do teu lado T vendo e sei quem tu Bela forte muito boa Mas te peo me perdoa Eu no te posso cant Pru que no s potregido Pelos espirito sabido De Catulo e Juven.

INTERTEXTUALIDADE ENTRE PATATIVA DO ASSAR E "A CANO DO EXLIO" DE GONALVES DIAS 1823-1864. Encontramos na obra de Patativa do Assar alguns traos que nos remete "a cano do exlio" de Gonalves Dias. Na Poesia "Lamento Nordestino" o poeta apresenta-se muito aborrecido por estar longe de sua terra e saudoso por querer reencontr-la. Apresenta as mesmas figuras de Gonalves Dias (sabi), as rvores (palmeiras) em Gonalves Dias e cajueiro em Patativa, alm de toda a igualdade do contexto, ou seja, suplica para voltar terra natal devido o descontentamento com o desterro.

CANO DO EXLIO Minha terra tem Palmeiras, Onde canta o Sabi, As aves que aqui gorjeiam No gorjeiam como l. Nosso cu tem mais estrelas, Nossas vrzeas tm mais flores, Nossos bosques tm mais vida Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, noite, Mais prazer encontro eu l, Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabi.

Minha terra tem primores, Que tais no encontro eu c; Em cismar sozinho, noite Mais prazer encontro eu l, Minha terra tem palmeiras Onde canta o Sabi. No permita Deus que eu morra Sem que volte para l; Sem que desfrute os primores Que no encontro por c, Sem quinda aviste as palmeiras, Onde canta o sabi.

POESIA DE PATATIVA LAMENTO NORDESTINO Eu sou sertanejo das terras do Norte, Mas a negra sorte me faz arribar. Hoje vivo ausente, Sem ver minha gente, O meu sol ardente E o meu branco luar. Ai quem dera voltar Ai quem dera voltar Ao meu lar! Oh! Terra querida da minha amizade, A dor da saudade me faz soluar. H tempo no vejo O So Joo sertanejo Com o seu festejo

De fogo do ar. Ai quem dera voltar Ai quem dera voltar Ao meu lar! Pra ver o meu casebre de pilha de cco, Tapando a reboco que eu deixei l E ouvir no terreiro Sobre o cajuzeiro Cantar prazenteiro O meu sabi. Ai quem dera voltar Ai quem dera voltar Ao meu lar! Santa Aparecida, Rainha Celeste, Me leva ao Nordeste, que eu quero escutar A vaca mugindo, Chocalho tinido, Cachorro latindo Vaqueiro aboiar. Ai quem dera voltar Ai quem dera voltar Ao meu lar

LITERATURA DE CORDEL Quando se fala de literatura brasileira ou de qualquer outra, geralmente se aborda a literatura dos "grandes escritores", isto , daqueles que escrevem "livros difceis", como diria toda a faixa de pblico que no tem acesso a tais obras. Extensssima no Brasil, essa faixa no conhece a literatura "tradicional", a literatura oficial.

Mas no preciso ter tido acesso cartilha para gostar de contar e ouvir histrias... Em todo o mundo, desde tempos imemoriais, grande tradio, da literatura escrita correspondeu sempre, em todas as culturas, a pequena tradio oral de contar. s vezes, porm, o contador pegava lpis e papel e se punha a escrever ou a ditar o que j estava havia tempo em sua memria, ou o que de novo inventava, ampliando um pouco o seu pblico. Quando surgiram as mquinas impressoras, a divulgao dessas obras de pequena tradio literria estendeu-se a um nmero maior de leitores: algumas eram escritas em prosa; a maioria, porm, aparecia em verso, pois era mais fcil, a um pblico analfabeto, decorar versos e mais versos, lidos por algum. Esta foi a trajetria daquilo que se chamou, na Frana, literatura de colportage (mascate); na Inglaterra, chapbook ou balada; na Espanha, pliego suelto; em Portugal, literatura de cordel ou folhas volantes. No Brasil, e tambm na Amrica espanhola, a mesma trajetria foi seguida. Tambm aqui se conta e se canta, em prosa e verso. H, em todo o pas, uma longa tradio e a pre

A LITERATURA DE CORDEL COMO FONTE DE INCENTIVO NO ENSINO DE LITERATURA

CAMOCIM CEAR 2006

RESUMO Este trabalho tem como objetivo identificar e analisar dados sobre uma das competncias menos desenvolvidas no ensino de literatura em sala de aula, que sem dvida alguma o gnero cordel, que pode ser uma boa oportunidade do aluno ter um contato com a experincia cultural que emanar desta literatura e toda sua riqueza expressiva, quanto articulao de vrias linguagens - verbal oral, verbal escrita, musical e visual e quanto aos diversificados temas que o aborda. Podemos assim conhecer, valorizar e respeitar a multiculturalidade prpria do nosso pas e os significados e coletividades, experincias comunitrias, e o imaginrio do folclore, presente na produo do cordel. Alm disso, bem interessante discutir com os alunos como a literatura de cordel, at por sobrevivncia acaba de incorporar inovaes da industrial cultural o que a torna mais rica e diversificada. 1. INTRODUO muito rica e diversificada a produo cultural de um povo; mas o nordestino especial. No entanto, talvez o nosso maior problema seja a no valorizao daquilo que temos. mais propcio aceitar o que a mdia prope do que explorar o que est em nosso dia-a-dia. A literatura de cordel exatamente isso cultura popular. Os versos esto sempre relatando acontecimentos, fatos polticos, artsticos, lendrios, folclricos ou pitorescos da vida como ela realmente . Sua produo simples como o povo; no requer tanto "estilsmo" ou "formalidades"; sua abrangncia alcana todos as classes sociais. Assim, o que falta o reconhecimento e a valorizao. Ao propor este trabalho para os alunos em sala de aula, estaremos oferecendo um leque de recursos que os ajudaro em vrias carncias de aprendizagem, como a produo textual, a leitura, a escrita, a linguagem no verbal (na anlise da xilogravura), apreciao artstico-literria e um universo para a socializao e cidadania, principalmente, no campo da Literatura. um campo de estudo pedaggico onde os professores tero subsdios didticos para trabalhar vrios tipos de contedos, pois estes podem ser adotados aos objetivos que forem traados. Ao mesmo tempo uma oportunidade para que este ramo da literatura

popular tenha uma chance de aceitao e valorizao; fazendo despertar entre as pessoas o gosto pela preservao dos nossos artistas e da cultura nordestina nas escolas. 1.1. OBJETIVOS 1.1.1. Objetivo Geral. Proporcionar a escola e ao professor a incluso da Literatura de Cordel em sala de aula para que se estabeleam propostas para a difuso dessa arte literria entre os alunos, fazendo com que se promova a qualidade da leitura, o trao forte da oralidade, presente nas falas dos personagens populares (sertanejos, brejeiros, ...) e a elaborao textual focalizando bem como a histria do cordel a vida e a obra de grandes cordelistas para que possa conhecer esta riqussima expresso literria popular . 1.1.2. Objetivos Especficos. Conhecer uma rica manifestao da nossa literatura (nordestina) caracterizao de valores pedaggicos (leitura, escrita e mtrica dos versos) na utilizao do cordel. Possibilitar o aluno o conhecimento da linguagem cordelista, enfocando a cultura nordestina em prol da valorizao das nossas razes. Promover uma aproximao do aluno com a cultura popular nordestina. Estimular um olhar crtico e simultaneamente potico sobre a realidade sertaneja. 1.2 . JUSTIFICATIVA Sabe-se que o contexto educacional, desde os tempos mais remotos, vem sempre relutando em relao ao ensino-aprendizagem, ou seja constates mudanas em prol da aprendizagem, porm ainda a de melhorar eis o que o aluno de hoje no tem a capacidade de interpretar ou discutir o que esta lendo e de que se trata o texto. Diante dessa questo e considerando ainda o "contexto educacional"; esse trabalho tem como justificativa reconhecer a diversidade cultural e lingstica do pas, conforme avalia Maria Jos em seu artigo da revista "Nova Escola" sobre o incentivo da literatura de cordel, "... utilizei a literatura de cordel e textos de Patativa do Assar para quebrar preconceitos da lngua portuguesa., "Mostre a seu alunos que a lngua popular muitas vezes e ridicularizada porque o povo discriminado", afirma a professora . pea que eles descubram a regra desses versos, que fogem do padro institucionalizado. Trabalhando com msicas de Luiz Gonzaga, f confesso de Lampio, tambm poder ser bons matrias para ilustrar a vida do povo nordestino. Coloque msica do rei do baio para seus alunos ouvirem e danarem . " um reconhecimento da diversidade cultural e lingstica do pais. Assim sendo, e considerado o que foi expresso acima, a literatura de cordel um assunto interessante e de grande importncia para nossa regio, pois todo ser humano tem necessidade de conhecer suas origens, o passado, sua histria , a cultura e os costumes da sociedade onde vive, de sua regio. A literatura de cordel nas escolas no muito conhecida nem explorada, pois a mesma e vista de forma avessa pelos os alunos, no trazem consigo o sabor de que "Literatura vida, arte" devido essa percepo a respeito da falta de divulgao e conhecimento sobre literatura de cordel nas salas de aulas , tornou-se necessrio que os alunos conheam a riqueza que existe nos versos da literatura da cordel para que possam produzi textos, enriquecer como leitor e conhecer uma das mais ricas manifestaes da lngua. 1.3. METODOLOGIA

Propor aos alunos uma oficina de literatura, utilizando o cordel, como estudo. Estudar o cordel, a origem, a historia, a mtrica. Desenvolver um projeto "resgatando o cordel" para ser apresentado em sala de aula. Assistir vdeos onde a linguagem utilizada seja em forma de cordel.

Utilizar filme "A Quenga e o Delegado" inspirado no cordel de Antonio Kelvisson Vianna de Lima, onde mostra a linguagem do cordel, narrativa estrutura em versos e rimas e assim desenvolver o interesse do aluno sobre a linguagem cordelista. Aproveitar o teor do filme "A Quenga e Delegado" para fazer um painel enfocando questes como a seca, condies de trabalho no campo, diferena social, as crenas populares, a religiosidade do sertanejo, o mito, o lendrio e a vinculao de crticas sociais e polticas. A temtica principal deste gira em torno do interesse popular.

2. BASE TEORICA. 2.1 A origem da literatura de cordel. Do romanceiro popular portugus originou-se a literatura de cordel comeou a ser divulgada nos sculos XVI e XVII, trazida pelos colonos portugueses cuja venda era privilgio dos cegos . A partir do sculo XIX o romanceiro nordestino tornou-se independente, com caracterstica prpria, esse nome surgiu a partir de um cordel ou barbante em que os folhetos eram pendurados em exposio. Na origem, a literatura de cordel se liga divulgao de histrias tradicionais, narrativas de pocas passadas que a memria popular conservou e transmitiu. Essas narrativas enquadram-se na categoria de romance de cavalaria, amor, guerras, viagem ou conquista martimas. Mais tarde apareceram no mesmo tipo de poesia a descrio de fatos recentes e de acontecimentos sociais contemporneos que prendiam a ateno da populao. Na Espanha, o mesmo tipo de literatura popular era chamada de "pliegos sueltos", o corresponde em Portugal, s folhas volantes, folhas soltas ou literatura de cordel. No Mxico, na Argentina, na Nicargua e no Peru h o corrido, compe-se em geral de dois grupos: os de romance tradicionais, com temas universais de amor e morte, classificados em profanos, religiosos e infantis; e os corridos nacionales, com assuntos patriticos e polticos estes ltimos os menos cantados. Na Frana, o mesmo fenmeno corresponde "litteratue de colportage", literatura volante , mais dirigida ao meio rural, atravs do "occasionnels", enquanto nas cidades prevalecia o "canard". Na Inglaterra os folhetos so semelhantes aos nossos eram correntes e denominados "cockes" ou "catchpennies", em relao aos romances e estrias imaginarias; e "broadsiddes" relativos s folhas volantes sobres fatos histricos , que equivaliam aos nossos folhetos de motivao circunstaciais. Os chamados folhetos de poca ou "acontecidos". Na Alemanha, os folhetos tinham formato tipgrafos em quarto e oitavo de quatro e a dezesseis folhas. Editados em tipografias avulsas, destinavam-se ao grande pblico, sendo vendidos em mercados, feiras, tabernas, diante das igrejas e universidades. Suas capas (exatamente como ainda hoje , no Nordeste brasileiro) traziam xilogravuras, fixando aspectos do tema tratado. Embora a maioria dos folhetos germnicos fosse em prosa, outros apareciam em versos, inclusive indicao, no frontispcio, para ser cantado com melodia conhecida da poca. No Brasil no mais se discute a literatura de cordel, nos chegou atravs dos colonizadores lusos, em "folhas soltas" ou "manuscritos". S mais tarde, com o aparecimento das pequenas tipografias, fins do sculo passado a literatura de cordel se fincou razes sobretudo no Nordeste justamente para provar que uma literatura bem popular, surgem tambm os chamados repentistas, que criam as letras na hora, de acordo com o pedido da platia que lhes do o assunto, e os cantadores obedecem geralmente cantam em dupla, e esses tem revelado os escndalos sociais e polticos e econmicos que nos ltimos anos tm nos castigados.O cordel uma das peculiaridades da cultura regional. A custa de muita luta, tanto os que cantam como os que escrevem o cordel, tem sobrevivido. Graas vontade de fazer algo diferente o cordel tem rompido barreiras que pareciam intransponveis, para poder ocupar o lugar que esta sendo habitado por coisas que no so do nosso pais. 2.2. Literatura de Cordel. Os folhetos de cordel brasileiro, com seus mltiplos temas e expressiva forma de composio potica, tm sido objetos de estudo para pesquisadores do nosso pas e tambm estrangeiros. Os textos de cordel poeticamente estruturados tendo como a sextilha como estrofe bsica, so ilustrados com xilogravuras , chichs de cartes postais, fotografias, desenhos e outras composies grficas e oferecem farto material para pesquisas ensejando variadas interpretaes que remetem para o contexto scio-cultural em que se

inserem cada texto. Assim, os folhetos sobre os mais diversos temas, tradicionais