Azul da vaidade: o selo de verificação do Twitter

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1 UNIVERSIDADE DE SOROCABA PRÓ-REITORIA ACADÊMICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA Azul da vaidade: o selo de verificação do Twitter Luiz Guilherme Leite Amaral, mestrando em Comunicação e Cultura pela Universidade de Sorocaba (bolsa PROSUP/CAPES) e graduado em Comunicação Social pela Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação de Sorocaba. ___________________________ Quando Zygmunt Bauman nos trouxe a modernidade líquida, trouxe também a constatação de que os sentimentos são igualmente líquidos. Trouxe a constatação de que não apenas a sociedade em que vivemos, mas a forma com que pensamos e nos relacionamos com as coisas e pessoas, também passou por um processo de modificação. Ainda que alguns atributos, identificados há séculos, perdurem sob nossas peles, existe uma outra parte que parece ter sido atualizada com uma nova versão, assim como um software. Montaigne nos alerta de que “o grande problema do mundo é a comparação”, mas estamos em um tempo em que não só apenas comparar é suficiente para balizar se há vitória ou derrota: há que se estabelecer como alguém notável. Há que se demonstre participar de uma casta que é privilegiada, que se deixe evidente que você faz parte de um grupo que é mais que os outros, mesmo que todos circulem pelo mesmo ambiente. Esta é a época em que dar uma carteirada, expressão que designa o ato de mostrar alguma credencial reconhecidamente superior dentro do estabelecido a fim de

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UNIVERSIDADE DE SOROCABA PRÓ-REITORIA ACADÊMICA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA

Azul da vaidade: o selo de verificação do Twitter

Luiz Guilherme Leite Amaral, mestrando em Comunicação e Cultura pela Universidade de

Sorocaba (bolsa PROSUP/CAPES) e graduado em Comunicação Social pela Escola Superior

de Administração, Marketing e Comunicação de Sorocaba.

___________________________

Quando Zygmunt Bauman nos trouxe a modernidade líquida,

trouxe também a constatação de que os sentimentos são igualmente

líquidos. Trouxe a constatação de que não apenas a sociedade em que

vivemos, mas a forma com que pensamos e nos relacionamos com as

coisas e pessoas, também passou por um processo de modificação. Ainda

que alguns atributos, identificados há séculos, perdurem sob nossas

peles, existe uma outra parte que parece ter sido atualizada com uma

nova versão, assim como um software. Montaigne nos alerta de que “o

grande problema do mundo é a comparação”, mas estamos em um

tempo em que não só apenas comparar é suficiente para balizar se há

vitória ou derrota: há que se estabelecer como alguém notável. Há que se

demonstre participar de uma casta que é privilegiada, que se deixe

evidente que você faz parte de um grupo que é mais que os outros,

mesmo que todos circulem pelo mesmo ambiente. Esta é a época em que

dar uma carteirada, expressão que designa o ato de mostrar alguma

credencial reconhecidamente superior dentro do estabelecido a fim de

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obter uma vantagem sobre os demais, deixou de ser uma atitude

mesquinha para se tornar um divisor entre uns e outros.

A vaidade é um evento do viver que é amplamente analisado por

diversas frentes filosóficas. O cristianismo traz suas alegorias e axiomas

sobre privilegiar o eu em detrimento do nós, os gregos também trazem

suas conclusões e histórias mitológicas que tentam dizer que é mais

importante encontrar algum lastro de felicidade no que você próprio

carrega do que tentar buscar incessantemente algo que você não tem ou

não é – e veja que não é um discurso desencorajador; é somente uma

forma de tentar frear desejos, algo que, sabemos, não deu nada certo.

Aliás, na filosofia grega este querer incessante criou calços para que

ideias mais atuais – mais líquidas – estabelecessem novas regras de

convívio dentro das sociedades e que tergiversassem outras regras que

fossem consideradas fracassadas. Assim, o ter tornou-se mais valioso

que o ser, ainda que, dentro de uma ontologia existencialista seria

impossível ter sem ser mas, pelo bem do argumento, continuemos.

Esta vaidade, conforme Leandro Karnal resume em uma de suas

reflexões, é que parecer é mais importante. Os ambientes virtuais, no

entanto, não conseguiam fazer transparecer qualquer tipo de

superioridade que fosse alardeada anteriormente a qualquer contato. No

mundo físico, chegar em um lugar com um automóvel esportivo

caríssimo demonstra algum tipo de importância ou êxito no jogo

capitalista; exibir um prêmio na estante instalada estrategicamente no

caminho de qualquer visita que entre na sua casa demonstra um êxito

no jogo da competição; ter um físico atlético e demonstrá-lo ao vestir

roupas com numeração inferior ao que seu tamanho exige é um êxito no

jogo da perseverança. Então aqui estamos lidando com a ideia de ter para

ser, ou seja, a sua representatividade como entidade está circunscrita na

premissa de que alguém lhe confere valor de existência. Seu nome e sua

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fotografia não são mais suficientes; é preciso que alguém diga que você é

quem você é. Se você é usuário do Twitter, então o sistema deve dizer

que você é autêntico, no sentido de que você realmente existe e não é

uma fraude, para que todos possam se sentir seguros ao iniciar o contato

com você dentro desta plataforma. O Twitter entendeu isto e criou o selo

de verificação, um carimbo que fica ao lado do seu nome e que diz que

você é realmente você.

O selo de verificação do Twitter.

No início deste movimento, a intenção foi criar uma diferenciação

entre corporações com perfis reais e os falsos – os fakes. É possível que

existam centenas de perfis com o nome Nike, com símbolos e textos que

possam ludibriar os mais incautos e forçar a abertura de brechas de

segurança em seus computadores. O selo de verificação, portanto, atesta

que o perfil de uma empresa é verdadeiro e que não há pessoas mal

intencionadas em seu controle. O cerne da discussão deste texto iniciou-

se, porém, quando o Twitter abriu a possibilidade de que, aquele que

requeresse, pudesse ostentar um selo de verificação, atestando que está

por trás daquele perfil. Este foi o gatilho de uma nova barganha nesta

rede social: não é interessante apenas que você ostente milhares de

seguidores (perfis que se associam a você e leem o que você escreve) e

estipule a elasticidade da sua influência – que, em última análise,

transforma-se em capital –, mas que você também se sobressaia perante

os outros por ter um selo de exclusividade. Tal como o corpo atlético que

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vence o desafio da perseverança, o selo de verificação do Twitter é o

êxito no jogo de influência.

Ter para ser define um sistema de querer constantemente algo e

este algo representa o que você é. Significa que, dentro da modernidade

líquida de Bauman, quando você diz quem você é e um regulador do

sistema ao qual você está inserido aprova e confirma, você é elevado a

um platô e, neste, as pessoas que anseiam pelo que você pode oferecê-las

prostram-se e recebem o que você despeja sobre elas. O jogo de

representatividade social torna-se uma roda viva em que a vaidade é o

principal alimento e se transforma, inclusive, em inveja. “Se ele pode ter

este selo eu também posso”. Assim como a autoajuda proclama que o

orgulho de si é autoestima e não vaidade. Existe uma inversão de valores

em que a humildade deixa de ser uma qualidade para se tornar uma

fraqueza, e que ostentar sua importância dentro do contexto em que

está inserido tem mais valor até do que você propriamente diz. Um perfil

com selo de verificação pode atrair seguidores simplesmente pela cor

azul que está ao lado do nome e este perfil restringir-se a publicar

propagandas de investidores e lucrar com isto sem que nada mais

relevante seja dito. A finalidade original do selo de verificação foi

prostituída pela vaidade.

Ter para ser extrapola a máxima da autoajuda de que “se eu não

me amar, ninguém também o fará”, pois reside nisto toda uma

intencionalidade que se descreve da seguinte maneira: para que me

amem (e me respeitem), é necessário que eu seja reconhecido por quem

está no controle. Se eu tenho o reconhecimento da minha importância

dentro do contexto ao qual estou exposto e me torno participativo, então

eu sou mais do que os outros que não têm. O selo de verificação do

Twitter é mais que um carimbo, é uma moeda de barganha para que o

ser humano continue fazendo, agora dentro de um novo espaço, algo

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que já vem fazendo há pelo menos 5 mil anos no plano real: hierarquizar

e assumir controle mediante influência. Da mesma forma que o

judaísmo criou hierarquia e sistematizou o monoteísmo a ponto de

lograr em exportar este modelo para outras duas religiões – cristianismo

e islamismo –, a vaidade fez com que houvesse uma hierarquia dentro do

Twitter que culminasse na melhor oportunidade de investimento em

mídia e na possibilidade de consumir conteúdo relevante. Ainda que a

religião cuidasse para que o eu não sobrepujasse a entrega de si próprio

ao transcendental, as pessoas ainda deram um jeitinho de misturar

receitas diferentes e criar um comportamento Frankenstein para

chegarem aonde querem. Então estamos lidando com pessoas que são

religiosas, que entendem o sentido da supressão da vaidade mas que não

o fazem pois têm “um pé na igreja e outro no mundo”.

Bauman argumenta sobre a vaidade no mundo líquido, pois ela

exige que uma pessoa seja abastecida com elogios e que o eu seja

colocado acima de tudo. O selo de verificação do Twitter torna-se,

portanto, não apenas o elogio máximo que alguém poderia receber nesta

plataforma, mas também o santo graal para que outras pessoas que

também persigam a ostentação, o reconhecimento, a exclusividade,

possam se esforçar para entrar neste clubinho – no diminutivo, pois são

pouco mais de 200 mil em um universo de 400 milhões de usuários. A

vaidade de se parecer melhor que os outros tem todo o sentido dentro de

uma plataforma em que a reputação resulta em lucro, em que ser

popular, um conceito tão estadunidense e que sempre fez pouco sentido

para nós, brasileiros, agora é a chave de um sucesso igualmente líquido

pois, se as relações são frouxas e imediatistas, a moeda de troca torna-se

extremamente volátil. O ter para ser é uma vaidade que está ligada ao

exibicionismo, mas que também está calcada no neoliberalismo; uma

vaidade que é assegurada pela teologia da prosperidade, na qual Deus

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quer que você tenha cada vez mais para que ele possa lhe recompensar,

destroçando cada letra de um dos conceitos mais cristãos dentro de toda

esta teologia, que diz: “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma

agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. Bom seria se o selo de

verificação fossem vanitas.