LILIAN ALVES SAMPAIO Vaidade e ressentimento dos músicos ...
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA
LILIAN ALVES SAMPAIO
Vaidade e ressentimento dos msicos populares e o
universo musical do Rio de Janeiro no incio do sculo XX
So Paulo 2011
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA
Vaidade e ressentimento dos msicos populares e o
universo musical do Rio de Janeiro no incio do sculo XX
Lilian Alves Sampaio
Orientador: Prof. Dr. Srgio Miceli Pessa de Barros
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Sociologia.
So Paulo 2011
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RESUMO
Esta pesquisa teve como objeto as condies sociais de produo da msica popular
no Rio de Janeiro nas trs primeiras dcadas do sculo XX e se desdobrou em trs
dimenses distintas: os significados culturais da msica popular na sociedade da poca, a
organizao do espao de produo dessa msica e as experincias profissionais de alguns
msicos que se destacaram no perodo, como Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth,
Catullo da Paixo Cearense, Eduardo das Neves, Sinh e Pixinguinha.
O estudo sobre as representaes que os escritores registraram em romances,
contos, crnicas, palestras, crticas e artigos de jornal mostram certa ambigidade nos
significados atribudos msica popular. Se por um lado esse universo de produo
cultural revela-se, j no incio do sculo XX, um espao de produo de um bem simblico
que vai ser a base para a construo da auto-representao dos msicos como merecedores
da admirao e considerao pblica, por outro lado, no oferece uma base legtima para o
reconhecimento social de seu valor pelos agentes da cultura dominante, que vo enfatizar a
vaidade e a presuno desses msicos. Mas essa convico definitiva de seu prprio
valor sugere o incio de uma transio na ordem estabelecida pela cultura legtima e que
vai se tornar evidente apenas nas dcadas seguintes. Ao mesmo tempo, o estudo do espao
de produo da msica de divertimento mostra um universo pouco autnomo e pouco
estruturado, mas com capacidade de oferecer diferentes tipos de recompensas aos seus
msicos: recompensas materiais nos circuitos que concentram as novas mdias e eventos
culturais de massa, como o Disco e o Carnaval, e recompensas simblicas nos circuitos
prximos aos espaos legtimos de produo cultural, como o Teatro e a Literatura.
Este estudo pretende contribuir para o conhecimento do universo musical do
perodo, ainda pouco explorado, bem como contribuir para a reflexo sobre os modos
como os condicionantes desse universo foram vivenciados e agenciados de diferentes
maneiras por alguns dos msicos mais famosos do perodo.
Palavras-chave: msica popular, espao de produo simblica, biografias, dominao
simblica, sociologia da cultura.
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ABSTRACT
The objective of this research is to present the social conditions underlying the
production of popular music in Rio de Janeiro during the first thirty years of the 20th
century, which was manifest in three separate dimensions: the cultural meanings of popular
music in society at the time; how the space for producing such music was organized; and
the professional experiences of some distinguished musicians of the period like Chiquinha
Gonzaga, Ernesto Nazareth, Catullo da Paixo Cearense, Eduardo das Neves, Sinh and
Pixinguinha.
Representations of popular music that writers recorded in novels, stories, narratives,
speeches, critiques and magazine/journal articles express a certain ambiguity in the
significance attributed to the genre. While, on the one hand, cultural production in the early
twentieth century presents itself as a space for producing a symbolic good for musicians to
construct their identities as meritorious of public admiration and consideration, on the
other hand, it fails to offer a legitimate base for representatives of the dominant culture to
socially acknowledge the value of this new genre, with those of the dominant culture
notably emphasizing the vanity and arrogance of the emerging popular musicians. Yet this
definitive conviction of their own value suggests the beginnings of a transition in the
order established by the legitimate culture, a transition that only becomes clear decades
later. At the same time, the productive space of entertainment music reveals an
unstructured universe that is barely autonomous yet capable of offering various ways to
compensate musicians: material compensation through new media circuits and mass
cultural events, such as the gramophone records and Carnaval, and symbolic compensation
through circuits near legitimate spaces of cultural production, such as the theater and
literature.
This study is intended to add to our knowledge of the musical universe of the
period, which is still underexplored, and to contribute to our reflections on how the means
and conditions of this artistic world where experienced and represented in different ways
by some of the most famous musical artists of the time.
Keywords: popular music, symbolic production space, biographies, sociology of culture,
symbolic dominance.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo, em primeiro lugar, CAPES pela concesso da bolsa de estudos, sem a
qual a realizao desta pesquisa no teria sido possvel, e ao Programa de Ps-Graduao
em Sociologia que tanto se esfora para manter o nvel de excelncia de seus cursos.
Agradeo, especialmente a meu orientador, Prof. Dr. Srgio Miceli, pela maior
parte do instrumental sociolgico que acumulei ao longo dos anos de pesquisa, bem como
um certo modo de objetivar a realidade infinita e catica que pretendemos compreender,
mas agradeo sobretudo suas crticas, s vezes devastadoras, mas que muito me ajudaram a
amadurecer e endurecer meu eu-intelectual. A outra parte no insignificante devo aos
meus professores do Programa de Ps-Graduao em Sociologia, especialmente Prof. Dr.
Ricardo Musse, Prof. Dr. Flvio Pierucci e Prof. Dr. Fernando Pinheiro, com os quais tive
oportunidade de reler alguns dos clssicos da sociologia nesses quatro anos. Agradeo
imensamente a Maria ngela Ferraro de Souza, Tcnica Acadmica do Programa, que
esteve sempre disponvel para resolver os muitos problemas e dvidas que me afligiram
durante todo o processo, obrigada pela dedicao, pacincia e bom humor com que realiza
seu trabalho.
Agradeo Profa. Gisle Sapiro e ao seu grupo de doutorandos, que me acolheram
ao longo do meu estgio na Frana, no CSE-EHESS, e me apresentaram novas
perspectivas analticas, tericas e metodolgicas, que muito me ajudaram na construo
desta tese. Agradeo especialmente a Mauricio Bustamante, que tudo me ensinou sobre os
princpios de funcionamento do software UCINET, por sua generosidade e perspiccia
sociolgica que muito me ajudaram a construir as anlises do captulo 5.
A Melissa Mann pela amizade e pelo abstract e a Maria Elizabeth de Freitas Castro
pela imerso na cultura carioca e por me abrir sua biblioteca particular.
Aos meus amigos doutorandos, Juliana Neves, Amlia Siegel, Fbio Keinert
Cardoso, Flvio Moura, Dmitri Fernandes e Clia Arribas, com quem compartilhei uma
parte desta jornada, trocando idias e estmulos fundamentais para continuar avanando
nesses caminhos incertos e angustiantes da vida acadmica.
A Rosa Maria Alves Sampaio pelo amor e coragem que sempre demonstrou diante
da vida e que muito me inspiraram na conduo da minha, e a Andre Kohler pelos
inmeros meatings, mas acima de tudo por nutrir meu corao.
A Laurent pela companhia preciosa que muito me ajudou a prosseguir nos
momentos mais difceis e de grande solido que a redao de uma tese s vezes nos inflige.
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SUMRIO
INTRODUO .......................................................................................................................................................9
AS ORIGENS DA MSICA POPULAR BRASILEIRA: UM CONSENSO DISSONANTE................................................9 QUESTES DE MTODO ...................................................................................................................................... 16
I. Definio do objeto de estudo.................................................................................................................. 16 II. Fontes e orientaes tericas ................................................................................................................. 19
PARTE I A AMBIGUIDADE DA MSICA POPULAR........................................................................ 22
CAPTULO 1 DOIS MSICOS NA LITERATURA BRASILEIRA E AS CONDIES SOCIAIS DE PRODUO DA MSICA POPULAR ............................................................................................................................................... 22
I. A msica para os romnticos................................................................................................................... 23 II. O compositor de polcas entre a estima dos graves e o amor dos frvolos ................................. 31 III. O compositor de modinha entre o desprezo e o afeto social............................................................... 38
CAPTULO 2 OS MLTIPLOS SIGNIFICADOS DA MSICA POPULAR ............................................................. 45 I. O caso Corta-jaca e as disputas entre as elites ................................................................................. 45 II. Prestgio e desprestgio do msico popular .......................................................................................... 63
PARTE II O UNIVERSO DA MSICA DE DIVERTIMENTO NO RIO DE JANEIRO................. 66
CAPTULO 3 OS MSICOS: CIDADOS POTENCIAIS DE UMA REPBLICA OLIGRQUICA .......................... 66 I. Casos hbridos : msico concertista nos circuitos profanos ................................................................. 71 II. Morfologia social dos msicos profanos ............................................................................................... 77 III. A tica dos operrios chores ............................................................................................................... 84
CAPTULO 4 AS MSICAS: CHORO, MODINHA E SAMBA ............................................................................ 93 I. A idealizao romntica versus a realidade cotidiana ........................................................................ 106 II. Orquestrao e arranjo ........................................................................................................................ 111 III. O modo de cantar................................................................................................................................. 112 IV. A tica da malandragem ...................................................................................................................... 116
CAPTULO 5 OS CIRCUITOS MUSICAIS E A UNIFICAO DO ESPAO DE PRODUO DA MSICA DE DIVERTIMENTO ................................................................................................................................................. 120
Classificao dos circuitos musicais ........................................................................................................ 126 Anlise de rede social baseada nos circuitos musicais ........................................................................... 132 I. O polo legtimo externo .......................................................................................................................... 136 II. O polo amador de baixo impacto comercial ou polo de formao.................................................... 141 III. O polo comercial.................................................................................................................................. 155
PARTE III AS TRAJETRIAS DE ALGUNS MSICOS PROFANOS .......................................... 166
CHIQUINHA GONZAGA: OS RESSENTIMENTOS DE UMA MAESTRINA DO TEATRO .......................................... 168 ERNESTO NAZARETH: ANSEIOS E FRUSTRAES DE UM PIANEIRO DOS CINEMAS ........................................ 185 EDUARDO DAS NEVES: PRESUNO E CARISMA DE UM CANTOR DO DISCO.................................................. 207 CATULLO DA PAIXO CEARENSE: A VAIDADE DE UM POETA DOS SALES................................................... 214 SINH: O ORGULHO DE UM COMPOSITOR DO CARNAVAL .............................................................................. 229 PIXINGUINHA: A CONFIANA DE UM GNIO DO CHORO ................................................................................. 247
CONCLUSO..................................................................................................................................................... 262
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................................................ 265
ANEXO: Caderno de imagens ......................................................................................................................... 276
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Ao meu pai, Joel Sampaio, in memoriam, que foi na juventude um msico de uma banda militar em Guaratinguet, e que, como tantos outros que aparecem nas pginas deste trabalho, viveu os limites e possibilidades de ser msico no Brasil.
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Hoje ainda um tanto difcil dar uma idia da dimenso da dependncia das pessoas em relao s outras.
Que o sentido de tudo o que uma pessoa faz esteja no que ela significa para os outros, no apenas para os que agora esto vivos, mas tambm para as geraes futuras, que ela seja, portanto, dependente da continuidade
da sociedade humana por geraes, certamente uma das mais fundamentais das mtuas dependncias humanas, daqueles do futuro em relao aos do passado, daqueles do passado em relao aos do futuro.
(Norbert Elias, A solido dos moribundos)
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INTRODUO _________________________________________________________________________
As origens da msica popular brasileira: um consenso dissonante
A primeira questo que originou esta pesquisa e que de certa forma orientou a
elaborao da tese que vou tratar aqui, foi: qual a posio social que ocupavam os msicos
populares na passagem do sculo XIX para o sculo XX na capital da recm proclamada
Repblica brasileira?
Essa questo foi sugerida pela leitura dos diversos trabalhos sobre o assunto, nas
quais a msica popular era frequentemente descrita como um bem cultural de baixo valor,
desprezada pelas elites ou pelas famlias mais abastadas, considerado por estas um
produto da ignorncia da populao sem recursos materiais, e que pouco a pouco se
transforma em um bem de alto valor cultural. Por isso quando iniciei esta pesquisa, a
questo que me motivou era como e em quais espaos um bem cultural desprezado pode
encontrar oportunidades para se reproduzir, e, por outro lado, como ele se transforma em
algo valorizado. Mas logo no incio da pesquisa percebi uma dissonncia entre a
interpretao dos estudiosos da msica popular carioca e os dados que eles apresentavam.
Consultando o material historiogrfico, podemos deduzir uma posio desprestigiada do
msico popular, entretanto, nos sugerido pelo mesmo material que esses msicos
possuam uma importante posio na configurao da poca.
So narradas histrias e anedotas que confirmam essa posio desprestigiada da
msica popular, como a reao de Rui Barbosa, senador liberal, quando da execuo da
msica da maestrina do teatro, Chiquinha Gonzaga, o Corta-jaca no Palcio Presidencial,
que iremos tratar no segundo captulo desta tese; a reao de Jlio Reis, msico e
compositor reconhecido pelas instituies da msica de concerto e crtico musical com
uma coluna no jornal A Rua, que critica a ida do grupo Os Batutas para Paris outra; ou o
episdio do pandeiro de Joo da Baiana apreendido pela polcia por ser instrumento de
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vagabundo, e que lhe rendeu um novo pandeiro oferecido pelo senador Pinheiro Machado,
com dedicatria que lhe assegurou a partir de ento imunidade diante da perseguio
policial: Ao Joo da Baiana, minha admirao. Senador Pinheiro Machado. Essas
mesmas narrativas sugerem uma hiptese oposta hiptese do desprestgio da msica e do
msico popular: a hiptese de um certo prestgio social experimentado por esses msicos,
e as novas possibilidades de auto-representao da identidade desses msicos.
Joo do Rio, o afamado cronista da Gazeta de Notcias, em um artigo publicado na
revista Kosmos, em 1905, intitulado A Musa urbana, nos oferece um precioso material
para essa reflexo. O escritor vai citar o nome de alguns bardos ocasionais da stira e da
paixo" que brotam na calada como cogumelos, mas que so mais dados evidncia
que a maioria. Entre esses est o nome de Eduardo das Neves, um que tinha sido
bombeiro antes de ser notvel. Joo do Rio vai dedicar alguns pargrafos a esse cantor,
compositor, poeta, violonista e palhao de circo; personagem muito conhecido das ruas da
capital do pas.
Quando foi nmero de music hall, perdeu a tramontana e andava de smoking azul e chapu de seda. A sua fantasia foi mais longe: chegou a publicar um livro intitulado Trovador da malandragem, e esse Trovador tem um prefcio cheio de clera contra pessoas que duvidam da autoria das suas obras. Por que duvidais?, diz ele, isto , no acreditais quando aparece qualquer choro, qualquer composio minha que cai no gosto do pblico e decorada, por toda a gente e em toda a parte, desde nobres sales at pelas esquinas nas horas mortas da noite? Ningum ouviu os choros do sr. Eduardo nos sales fidalgos, mas o sr. Eduardo tem essa convico definitiva, alm de muitas outras. Depois de cantar algumas intimidades da sua vida, chegou mesmo, num lundu intitulado O crioulo, a desvendar o mistrio de uma senhora loucamente apaixonada pela sua voz. No final do negcio a dama murmura:
Diga-me ao menos Como se chama
E ele, complacente: Sou o crioulo
Dudu das Neves
Esse sentimento acusado por Joo do Rio, essa convico definitiva do
compositor popular em seu prprio valor, interpretada pelo jornalista como vanglria, ou
seja, uma presuno infundada no valor-prprio. Para nossa anlise, devemos assumir uma
posio mais refletida, analisando alm do sentimento atribudo ao bardo Eduardo das
Neves, o estranhamento do escritor da gerao dourada1. Pode-se perceber sob a ironia
do cronista, o sentimento de que existia uma descompasso entre a idia que o msico fazia
de si mesmo e a opinio do cronista. Para Joo do Rio existia um desacordo entre a
1 Como definiu Brito Broca em A vida literria no Brasil 1900... (1960), Joo do Rio fazia parte do grupo de jovens escritores considerados os mais talentosos, cultos e refinados da poca.
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imagem que Eduardo das Neves tinha de si prprio e a sua identidade real, aquela
percebida e compartilhada por um grande nmero de pessoas, e que inclua o escritor.
Eduardo das Neves era um negro retinto que iniciou sua carreira de sucesso
como ele mesmo qualificou nos versos de sua composio O crioulo cantando em circo,
chegando ao music hall e aos estdios de gravao da pioneira Casa Edison. Era um
homem que trocou a vida certa do funcionalismo pblico, pelas incertezas de uma vida de
profissional do divertimento. Ele realizou sua fantasia e conseguiu viver de seu canto e
de seus versos, gravados pela Casa Edison e editados pela Livraria Quaresma. Joo do Rio
era o jovem escritor dandy, afinado com a moda europia, extremamente preocupado com
a aparncia e o modo de vestir, que cultivava um gosto e comportamento refinado, e que
logo vai ser consagrado como um dos mais importantes escritores do perodo pela principal
instituio literria do pas, a Academia Brasileira de Letras. A distncia social que
separava o escritor e o bardo, por si s, uma explicao para tal descompasso de
opinies. E Joo do Rio no o nico escritor a notar a vaidade dos artistas populares.
Lima Barreto, apesar de uma origem social mais popular, tambm vai observar
com o mesmo estranhamento a vaidade dos compositores carnavalescos, apontando os
jornais como os principais responsveis, pois animam a vaidade de tais poetas,
publicando-lhes, sem exame, a sua enxurrada de vocbulos que no querem dizer nada.
(BARRETO, Feiras e Mafus, 1956, p. 210). Escreve sobre o mesmo assunto ainda em
outra crnica:
Os jornais esto a postos e at pem redatores de sobressalente, para registrar nomes dos diretores e outros dados importantes do bloco, do rancho, do grupo e do cordo que possam interessar os seus leitores. Um nome sair no jornal que , em geral, cousa difcil, nesses dias fcil. Basta que o seja do caboclo do cordo Flor de Jurumbeba. (BARRETO, Vida Urbana, 1956, p. 273). Os compositores carnavalescos, segundo o escritor, so estimulados pelas folhas e
pelo prestgio fugaz de ter o nome publicado na imprensa. Vemos que sob o olhar crtico e
condenatrio de certos escritores, agentes da cultura legtima, a msica popular, na forma
de sambas, marchas ou modinhas, prolifera pela cidade estimulada pelos jornais e tambm
pelas livrarias populares.
Essa presuno de Eduardo das Neves registrada por Joo do Rio vai aparecer em
outros depoimentos sobre outros compositores conhecidos na poca, como veremos ao
longo desse estudo. O mesmo Joo do Rio que aponta a presuno de Eduardo das Neves,
vai escrever sobre o pernosticismo de Catulo da Paixo Cearense, outro bardo dado
evidncia na poca. Outros testemunhos da poca contam como Catulo se irritava quando
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nos sales no era escutado com o devido silncio, sinal de reverncia que esperava diante
de sua obra. Da mesma forma Ernesto Nazareth reagia com desagrado se o pblico no
fosse atento e silencioso enquanto ele executava seus tangos. Sinh, o famoso compositor
de sambas, tinha fama de ser pernstico e vaidoso extremado, com seu fraque e colarinho
em p. Esse mesmo orgulho exacerbado que muitos msicos traduzem em um
pernosticismo, numa vaidade ostensiva, na pretenso artstica, chegando a um cabotinismo,
como j fora acusado Catullo, pode assumir forma mais diversa ainda, como no caso da
famosa maestrina dos teatros de revista da praa Tiradentes, a Sra. Francisca Gonzaga,
hoje mais conhecida como Chiquinha Gonzaga. Na maestrina um certo ressentimento
que vai sugerir a tal convico definitiva apontada por Joo do Rio. Todas essas formas
denotam uma crena desses msicos compositores em seu prprio valor.
O cantor, compositor, violonista e tambm palhao de circo, Eduardo das Neves
parece, aos olhos de Joo do Rio, ter um alto juzo de seu prprio valor2, um orgulho
desmesurado por suas composies, fazendo-o parecer pedante e tolo aos olhos do escritor.
No entanto, essa vaidade detectada por Joo do Rio, no um sentimento sem lastro social,
que deva ser atribudo ao temperamento pessoal do compositor. Seria antes um sentimento
resultante das condies sociais de produo da prpria msica popular naquele momento
histrico, condies que so o objeto deste estudo. Eduardo das Neves compartilha com
muitas pessoas da poca o sentimento que suas composies tinham um grande valor. A
questo compreender que tipo de valor esse. certo que no um valor artstico, no
sentido de consider-lo uma obra de arte, ou seja, um valor legitimado por instituies
sociais. Ela possua um valor comercial, sem dvida, mas tambm um valor que vou
chamar por enquanto afetivo, como sugere o escritor e crtico literrio, Andrade Muricy,
em um longo artigo sobre Ernesto Nazareth.
Convidado a participar da srie [de conferncias no salo do Centro Paulista, organizadas por Adelino Magalhes], optei por um tema musical. Somente mais tarde, em 1937, daria eu incio a uma funo ativa de crtico musical. Entretanto, a msica de Nazareth ocupava uma vasta rea afetiva em meu esprito desde a minha infncia, quando o Brasil inteiro ressoava ao som do Brejeiro e do Bambino, como uma emanao natural e fragrante de sua alma. (MURICY, 1963, p. 42) E no foi o primeiro intelectual a chamar ateno para esse lado afetivo da msica
popular. O acadmico Affonso Arinos em palestra realizada em 1905 tambm referia-se
musa popular nesses termos:
Esta necessariamente ignorante, mas profundamente genial; tem aquelle mysterioso poder de intuio que chamareis um raio de razo divina e com elle desvenda arcanos, que so
2 Termo utilizado pelo prprio Joo do Rio ao falar dos msicos ambulantes publicado originalmente na Gazeta de Noticias, em 3/2/1906, ver RIO, 2008, p. 116.
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velados sciencia e se, como a sciencia, no governa os espritos, tem mais alto poder, pois reina sobre os coraes. Neste sentido, eu bendigo a minha ignorncia da matria, com effeito, tendo de falar da musica popular, devo imanar-me com ella, para s interpretal-a com o sentimento e s traduzil-a pelo corao. (...) 3 A msica chamada, por esses dois escritores e crticos literrios, popular, era vista
com afeio j no incio do sculo XX, afeio que era transformada em capital social
pelos criadores dessa msica. Durante toda a pesquisa busquei os indcios de que essa
pretenso dos msicos mais famosos nas trs primeiras dcadas do sculo, tinha um lastro
social, ou seja, no era uma caracterstica pessoal da personalidade de cada msico. Essa
vaidade era o reflexo, de um lado, da posio que esses msicos ocupavam no recm
contitudo universo da msica popular e, de outro, no grau de reconhecimento que esse
universo vai alcanar entre os diferentes agentes da cultura legtima.
Se pararmos na observao que a msica popular era desprezada, no podemos
compreender a dinmica social que faz com que algo desprezado se torne algo de valor,
estimulado por toda a sociedade. Algumas tentativas de explicao colocaram nfase
demasiada na proximidade entre msicos e intelectuais4, ou na ao desses intelectuais
como agentes de legitimao dessa msica. Sem negar o papel fundamental desses
intelectuais no processo de legitimao da msica popular nacional, chamamos ateno
para as outras condies sociais que permitiram aos prprios msicos sonharem e
realizarem uma vocao reconhecida socialmente. Quando se observa a proximidade dos
intelectuais com alguns msicos populares, podemos ver que ela se deu quando a atividade
musical j florescia na cidade, j tinha suas razes, j tinha seus reis, j tinha seus agentes
prprios. Foi o fato da atividade de msico j ser difundida pela cidade, o que estimulou o
interesse dos intelectuais para se aproximarem desses msicos e no o contrrio. O papel
dos intelectuais deve ser compreendido dentro do processo em direo autonomizao do
espao de produo da msica popular, e foi um dos principais fatores na constituio do
campo da msica popular ao longo do sculo XX. No entanto, no perodo estudado aqui, o
papel dos intelectuais reduzido, e sua importncia deve ser avaliada com cuidado.
Fernandes (2010) em sua tese, j havia chamado ateno para o papel central dos
reprteres e cronistas carnavalescos freqentadores dos redutos do samba, chamado pelo
3 Preleo feita em Petrpolis, em 26/03/1905, no salo do Club dos Dirios, e publicada no ms seguinte na revista Kosmos, pgina 26. 4 Ver o j clssico estudo de Hermano Vianna, O mistrio do Samba, 2004 e de Andr Gardel, O encontro de Sinh e Bandeira, 1996. Ambos autores se limitam observao de uma proximidade entre intelectuais e msicos, sem se preocuparem em analisar as condies sociais especificas de produo dessa proximidade.
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pesquisador de intelectuais-prias, em contraposio aos intelectuais consagrados pelas
instncias legtimas, no processo de construo e reconhecimento do gnero nacional.
O que pretendo mostrar que se, por um lado, a msica popular era uma atividade
desprezada, por outro, ela oferecia muitas recompensas sociais aos seus msicos. Essa
aparente ambigidade se deve ao fato de a msica popular j se constituir um espao de
produo cultural e simblica, mas um espao heternomo, sem instituies capazes de
legitimar seu valor artstico. A hiptese que o interesse dessa atividade para os msicos
est em que ela lhes oferece, j na primeira dcada do sculo XX, um elemento positivo na
construo de sua identidade social, que ir em muitas situaes compensar muitas das
desvantagens sociais que eles carregavam, tais como a origem social e geogrfica, a
escassez de capital econmico e simblico, os estigmas da pobreza e da cor da pele, e a
ausncia do habitus dos grupos dominantes.
Este estudo uma pequena tentativa de compreender como se dava o complexo
processo de dominao simblica na sociedade da poca, tendo como referncia o universo
musical. Se havia uma clara hierarquia na cabea das pessoas, na qual a msica europia
legitimada pelas instituies oficiais ocupavam uma posio superior em relao msica
popular, no significava que esta no fosse um signo capaz de transferir valor social a
seus msicos. As sanes infringidas pelos agentes defensores da legitimidade da msica
europia, tais como a interdio de alguns espaos e imagens depreciativas em relao a
outras prticas musicais, no vo ter uma eficcia absoluta sobre a totalidade das
interaes sociais. A msica popular apesar de sua inferioridade simblica naquele
momento histrico, encontrou espao frtil para se desenvolver, e vai chegar ao ponto de
poder competir, no perodo seguinte quele visado nesse estudo, pelo prestgio de um bem
cultural de valor universal s conferido s obras de arte.
O texto se divide em trs partes. Na parte I, ser explorada uma primeira hiptese
deste estudo, a de que o significado da msica popular no perodo era ambguo, o que
permitia que ela fosse utilizada como um signo de desprestgio, mas, tambm, como um
signo de distino. Se por um lado, era um bem menosprezado pela cultura dominante, por
outro, era uma atividade que oferecia recompensas a seus msicos e um signo mobilizado
por alguns representantes da elite poltica, econmica e cultural como um bem de alto
valor cultural para a nao. No primeiro captulo, trataremos da representao do msico
popular na literatura do perodo. Analiso dois personagens de dois autores diferentes,
Machado de Assis em um conto, O homem clebre, Lima Barreto em seu mais famoso
romance, Triste fim de Policarpo Quaresma. Veremos que ambos autores constroem suas
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personagens colocando em evidncia a existncia de uma vocao de msico popular, que
permite a transformao do talento de compositor em um capital cultural que mobilizado
nas relaes sociais desses dois msicos, que apesar de fictcios vo oferecer uma chave de
interpretao para a anlise das biografias de alguns msicos na ltima parte. No segundo
captulo, ser explorado o valor positivo que a msica popular possua entre alguns grupos
da elite poltica e cultural, a partir de um famoso evento poltico ocorrido em 1914, nos
ltimos dias do mandato presidencial do marechal Hermes da Fonseca, o caso do Corta-
jaca, ttulo da famosa composio de Chiquinha Gonzaga. Veremos que a msica
popular nacional assumia diferentes significados para os diferentes grupos que formavam
a elite poltica e letrada do pas, podendo funcionar como um signo de desprestgio mas
tambm como um signos de status.
Na parte II, procuro objetivar os condicionantes do universo musical ainda pouco
hierarquizado, ao mesmo tempo em que busco as tendncias de estruturao que vo se
consolidar ou desaparecer nas dcadas seguintes. No captulo 3, veremos quem so esses
msicos, buscando traar uma morfologia social das primeiras geraes de msicos, com
nfase na origem social e na ocupao profissional de mais de 300 msicos que tiveram os
nomes registrados pelos enciclopedistas e estudiosos da msica popular. No captulo 4,
apresento os principais gneros nacionais produzidos no perodo, procurando colocar em
evidncia os diferentes significados culturais que os diferentes gneros possuam e que
foram mobilizados pelos msicos nas disputas pelas posies mais vantajosas dentro do
universo musical brasileiro. Enquanto que no captulo 5, a nfase est na apresentao dos
diferentes circuitos, mdias, espaos de performance e eventos culturais que formavam o
universo da msica popular, utilizando como instrumento de anlise a rede social formada
pela circulao dos msicos nesses circuitos. Podemos observar que apesar de pouco
estruturado o universo da msica popular no era um espao homogneo, possua circuitos
diferenciados, com uma distribuio desigual das recompensas materiais e simblicas.
Na parte III, analiso seis biografias de msicos que alcanaram uma posio de
destaque nesse universo musical e que so representativos da experincia objetivada de
modo coletivo na segunda parte deste estudo. A experincia individual de cada um dos
msicos mostra como os condicionantes de um universo musical que estava em vias de se
constituir foram vivenciados de diferentes maneiras. O capital social e cultural de cada
msico ofereceu condies diversas para o agenciamento dos dois vetores que comeam a
organizar o espao da msica popular: o reconhecimento dos agentes da cultura legtima e
o reconhecimento comercial.
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Questes de mtodo
I. Definio do objeto de estudo
Antes de tratar das condies sociais de produo da msica popular necessrio
definir o que estou chamando de msica popular, ou em outros termos, qual o objeto
deste estudo. Para evitar qualquer equvoco, necessrio esclarecer o sentido do termo
popular que ser utilizado ao longo deste texto. Em geral, o termo popular utilizado
para se referir idia de povo, aquilo que relativo ou pertencente ao povo, que
produzido pelo povo, ou que agrada o povo. Entretanto, irei utilizar esse termo aqui num
outro sentido, que o desvincula da idia de povo e elite e nos livra do embarao de ter
que definir esses dois ltimos conceitos. Popular, aqui, ser utilizado como um termo
negativo, que marca a diferena entre dois tipos de msica: msica de concerto e msica
de no-concerto. Portanto, uma msica popular uma msica que no criada para ser
ouvida em um recital ou concerto; ela atende a outras finalidades mais imperativas, tais
como fazer danar e cantar o seu pblico, ou mesmo provocar estados psquicos
transcendentes, como a msica ritual e religiosa podem almejar.
Msica popular , portanto, a msica que no obedece s condies sociais de
produo da msica erudita ocidental, que por isso no pode compartilhar os mesmos
espaos que esta, nem o seu prestgio de coisa sagrada5. Por isso, o termo profano vai ser
utilizado neste estudo como sinnimo de popular. Mas esse genrico termo engloba um
subgrupo de msicas, a msica que circula nos circuitos comerciais e semi-comerciais do
divertimento do carioca. Quando estiver me referindo msica no-concertstica produzida
pelo grupo genrico de msicos, utilizarei msica popular e msico popular, e para falar de
um grupo mais especfico de profissionais e semi-profissionais da msica, utilizarei msica
de divertimento. Portanto, esses dois termos tambm so utilizados quase como sinnimos,
mas enquanto msica popular o termo mais geral, que designa as msicas no
consagradas pelas instituies da msica erudita, msica de divertimento um termo mais
restrito, que se refere msica comercial feita para o mercado de divertimento noturno,
para os estabelecimentos comerciais ou para as festas privadas.
5 A sociologia da cultura empresta o termo cunhado pela sociologia da religio, aproximando a dinmica social de produo da obra de arte daquela observada pelos socilogos na separao que todas as religies realizam entre sagrado e profano. Ver Durkheim, 1987; Weber, 2000, 2006; Bourdieu, 1996.
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Essa separao entre msica de concerto e msica popular a separao mais
corrente no senso comum das pessoas que viveram naquela poca. No vamos aqui, fazer a
crtica do senso comum, antes iremos nos servir desse senso comum, pois nos interessa
compreender o significado que as pessoas que viveram no incio do sculo na capital do
pas, atribuam a essa msica no-erudita. No irei, portanto, tentar definir o que merece e
o que no merece ser chamado msica popular em seu sentido positivo, o que pertence
ou no ao povo, ou em seu sentido pejorativo, o que foi desvirtuado pelas populaes dos
centros urbanos e pelos interesses comerciais, como tm feito os crticos desde o final do
sculo XIX, a comear por Slvio Romero, at os dias atuais. Na dcada de 1960, essa
separao entre uma msica popular autntica e outra falsificada, parece j ser um senso
comum nos discursos dos crticos musicais, como podemos observar no trecho abaixo.
Assim como o povo que faz uma lngua, pensamos tambm que so os compositores, arranjadores, cantores, msicos, que fazem a msica popular. Mas se o povo faz a lngua, so os gramticos que a disciplinam. Assim tambm cabe ao critico um papel disciplinador importante. necessrio que ele separe, em msica popular, o trigo do joio, ou seja, o legitimo e artstico do esprio e comercial. legio o nmero de compositores que visam apenas o xito fcil. Esto voltados somente para o Bezerro de Ouro do sucesso comercial, esquecendo que h valores mais altos que no podem ser desprezados. A critica pode tambm aqui fazer alguma coisa mas seu esforo ser praticamente intil se no contar com um publico educado e consciente. Urge, para deter a enxurrada do falso sucesso, da falsa msica popular brasileira, a formao de uma elite de ouvintes que prestigie a msica verdadeira e repudie a falsa, mesmo que ela seja vomitada da garganta escancarada de todas as estaes de rdio, TV e eletrolas juntas. necessrio que surjam, de um lado, uma critica capaz e sem compromissos outros que o da defesa da verdadeira msica popular brasileria seja tradicional ou bossa-nova e do outro lado, uma elite de publico que cultive os mestres do gnero mas estimule tambm os novos valores, interessados em produzir msica atendendo a consideraes outras que no o sucesso fcil e o lucro financeiro dele decorrente. Pois msica popular brasileria a formula de Wilde pode encontrar aqui perfeita aplicao s existe tambm de duas espcies : a boa e a m. (VASCONCELOS, 1964, p. 29-30)
A leitura desse trecho nos sugere que um campo da msica popular nacional j est
delimitado em 1964, a ponto de Ary Vasconcelos enunciar claramente o papel do crtico
musical no espao de produo simblica da msica popular brasileira. Mas claro que
esse no foi o primeiro, e muito menos o nico, a tentar estabelecer as balizas do campo da
msica popular brasileira, mas espantoso a clareza e desenvoltura com que reivindica a
sua importante posio como agente legitimador dentro de um campo claramente ordenado
por um polo puro, autntico, legtimo, e um outro comercial, de massa, ou seja, produtor de
um bem sem valor artstico e cultural.
Iremos encontrar bem antes dessa data, jornalistas reivindicando um saber
especializado em questo de msica urbana, que lhes outorga uma posio privilegiada
para traar os limites que deixam de fora o inautntico. Fernandes (2010) em sua tese,
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citada acima, colocado em evidncia dois jornalistas Vagalume e Orestes Barbosa, que se
empenharam no incio da dcada de 1930 momento em que o rdio se impe como o
grande difusor da msica popular a separar segundo critrios diferentes o joio do
trigo, os msicos que mereciam o ttulo de produtores de uma msica autntica, dos
imitadores e falsificadores da msica nacional, mas, esses dois, apenas em termos de
Samba.
Antes, ainda, na dcada de 1920, encontramos um crtico vindo do universo
literrio e intelectual, e j com um prestgio acumulado nesses espaos, ensaiar umas
primeiras demarcaes no territrio ainda selvagem da msica popular. Trata-se de Mrio
de Andrade. E antes deste, ainda, podemos encontrar escritores, poetas, crticos literrios,
folcloristas, jornalistas empenhados na defesa da msica popular urbana. Falo de Mello
Morais Filho, Mozart de Arajo, Andrade Muricy, Affonso Arinos, que saem em defesa do
valor cultural da msica de divertimento com caractersticas nativas, em relao s msicas
importadas da Europa. Encontramos o termo popular para se referir msica produzida
no Brasil por amadores j em 1905, como em uma palestra dada por Afonso Arinos, em
Petrpolis sob o ttulo A msica popular6; no selo da gravadora de Joo Gonzaga,
companheiro de Francisca Gonzaga, nos anos 1919, chamado Disco Popular; o termo
tambm utilizado por Andrade Muricy em palestra de 1926, etc. Mas no encontramos em
nenhum desses casos a tentativa de ordenar o espao de produo dessa msica em dois
plos de produo, um legtimo e outro sem legitimidade, como Mrio de Andrade inicia
sistematicamente a partir da dcada de 1930.
No nos interessa aqui entrar no debate para definir o que a autntica msica
popular brasileira, tarefa deixada aos agentes do campo musical, mas nos interessa
compreender como os significados da msica popular engendraram novas possibilidades e
novos limites para a ao dos homens que viveram naquele perodo. Dessa forma, um
msico popular no porque faz msica para as classes populares, mas porque faz uma
msica realizada dentro de certas condies sociais, cujo objetivo deste trabalho
desvendar. Uma msica que se diferencia da msica de concerto, no por sua qualidade,
mas pelos espaos onde se realiza ou pelos circuitos onde vai circular.
Na passagem do sculo XIX para o XX, a categoria msica popular brasileira
no existia, no entanto, a idia de uma msica nacional, fosse ela uma msica de
concerto ou uma msica de divertimento, j despertava as conscincias de alguns homens
6 O ttulo da palestra foi A msica popular, proferida em 26 de maro de 1905, no salo do Club dos Dirios, e publicada na revista Kosmos em abril/1905.
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que vo se manifestar principalmente nas crticas teatrais publicadas nos jornais e nos
estudos e conferncias sobre as manifestaes da populao do interior do pas e mais
tarde sobre as manifestaes musicais urbanas. O termo msica popular, comea a ser
utilizado mais regularmente nos anos 1920, por estudiosos, musiclogos e folcloristas, no
sentido da manifestao cultural de um coletivo que definido por sua nacionalidade,
abarcando as manifestaes urbanas comerciais alm das manifestaes espontneas
realizadas por amadores do interior do pas, associando os dois termos popular e
nacional.
Neste estudo quando utilizo o termo msico popular estou me referindo a todos
aqueles que circulam nos circuitos no legitimados pelas instituies da msica de
concerto, ou seja, todos os msicos dos circuitos da msica de divertimento, sejam eles
profissionais ou amadores. Existem rarssimos casos em que o mesmo msico concertista
e tambm pode ser chamado popular, como veremos no captulo 3. O grupo dos msicos
populares , portanto, bastante heterogneo, inclui todo tipo de msico desde o de p-de-
calada, o de porta de botequim, os msicos do choro que animam bailes e festas e
acompanham serenatas, os msicos dos ranchos de carnaval at os profissionais que
garantem o prprio sustento ao produzirem msicas para o mercado do divertimento. Esse
estudo vai se ocupar apenas com alguns tipos de msicos, que atuavam nos espaos
amadores e profissionais da msica de divertimento, os quais iremos definir com maior
preciso na segunda parte.
II. Fontes e orientaes tericas
O material utilizado so as representaes dos msicos populares nos romances,
crnicas, ensaios, conferncias, artigos de jornais e memrias produzidos por escritores,
jornalistas e intelectuais no incio do sculo XX; assim como as trajetrias profissionais de
352 msicos que desenvolveram atividades musicais nas trs primeiras dcadas do sculo
passado, relatadas pelos estudiosos do assunto; pude me servir tambm, mas de forma mais
fragmentada, dos versos das msicas impressos em livros, bem como das gravaes da
poca realizadas em disco; dos depoimentos pontuais de algumas pessoas que conheceram
este ou aquele msico, das raras entrevistas realizadas com msicos da poca, alm dos
rarssimos registros escritos de prprio punho por um ou outro msico, como cartas,
prefcios de livro, e o surpreendente livro de memrias escrito por um msico do choro,
chamado Alexandre Gonalves Pinto.
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Minhas fontes so as fontes da historiografia oficial e apesar dessas fontes serem
limitadas e escassas, elas conformam um interessante material que abre novas
possibilidades analticas que devero ser confirmadas ou refutadas por estudos futuros. O
mrito desse estudo , portanto, propor novas hipteses mesmo se carrega a fraqueza de
dispor de uma base de dados inicial e fragmentada.
No podemos ignorar que o grosso do material que dispomos restringe-se aos
discursos impressos de pessoas que viveram o perodo, suas memrias, suas representaes
literrias, suas anlises, classificaes e apreciaes intelectuais; enfim, o que as pessoas
que detinham a capacidade de expresso escrita e os meios de impresso da poca, nos
contam e sugerem sobre a configurao social e o lugar que a msica e o msico
ocupavam nessa configurao. A sociologia de Erwing Goffman, em livros como a
Representao do Eu na Vida Cotidiana ou Estigma, nos mostra como sempre tentamos
situar o outro e a ns mesmos dentro das categorias sociais e pessoais que consideramos
importantes e que possuem significado para ns. Ento as pessoas vo ter mais ou menos
nossa estima, de acordo com o clculo, em geral inconsciente ou subconsciente, que
realizamos em nossas interaes. Para cada descrio que um escritor realiza de um
msico preciso levar em conta a posio desse escritor na sociedade mais ampla para
poder compreender a posio relativa do msico.
No entanto, essa representao do outro e de seu valor, no uma construo
individual e pessoal, como Norbert Elias mostrou em vrios de seus estudos. A vida social
se realiza num fluxo incessante, no qual os indivduos se encontram ligados uns aos outros
por fora da influncia mtua e da determinao recproca que exercem uns sobre os
outros. Essa interdependncia entre as percepes subjetivas dos homens, o que garante a
manuteno de uma certa ordem social, sendo que a ausncia dessa interdependncia
poderia engendrar conflitos que vo resultar em muitos casos numa violncia extrema7.
Nos casos analisados aqui, no podemos pensar em uma dissociao entre a
imagem que os msicos possuam de si prprios e a imagem que possuam aos olhos de
seus contemporneos. Sabemos, pelos destinos que tiveram esses msicos, que els
compartilhavam as crenas em uma ordem social na qual possuam uma posio de
inferioridade na escala de valores sociais, e apenas subconscientemente contriburam para
alter-la. Essas percepes mais ou menos compartilhadas pelos indivduos vo orientar os
mais diferentes domnios do julgamento humano, como o julgamento moral e esttico8,
7 Sobre essa questo ver Estudos sobre a gnese da profisso naval in ELIAS, 2006. 8 Sobre o julgamento esttico ver BOSCHETI, 2009.
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bem como, iro agir na escolha dos conceitos empregados para descrever seu mundo
social. E aqui esbarramos na teoria desenvolvida por Pierre Bourdieu.
Ento, quando perguntamos quem era o msico popular, temos que ter em mente
que quem vai nos responder so certas pessoas que viam essa categoria a partir de um
lugar social determinado, definido pelo grupo social ao qual pertencia, e pelos interesses
desse grupo. Mas sabemos que essa percepo construda e compartilhada pelos diversos
grupos, mesmo se seus contedos podem ser objeto de disputas, como geralmente o so.
Se olharmos a msica popular do ponto de vista da hierarquia cultural estabelecida,
no h como negar sua posio inferior, mas preciso algumas nuances idia de
dominao simblica desenvolvida por Pierre Bourdieu. Veremos que as condies de
produo dessa msica podiam atenuar os efeitos do julgamento cultural legtimo, ou
compensar a dominao sofrida pela msica no consagrada pelas instncias legtimas. Os
msicos pertenciam simultaneamente a diversos planos de referncias e prticas que
complexificavam os mecanismos de dominao. Tentarei em cada caso descrever quais
eram esses planos de referncias que orientavam a percepo desses msicos e suas
prticas, e como elas estavam ligadas s diferentes posies que os msicos ocupavam
dentro do universo da msica popular.
A literatura corrente sobre o assunto tende a homogeneizar esse universo,
colocando todos os msicos populares em p de igualdade. Ao mesmo tempo, tentam
apagar os limites criados socialmente para separar as diferentes manifestaes musicais,
querendo diluir as fronteiras que separam o erudito e o popular, numa tentativa de
aumentar o prestgio do popular. Neste estudo, manteremos esse limites criados pelos
prprios agentes, para podermos compreender as estratgias que eles empreenderam e a
percepo que possuam do mundo que os cercava.
importante salientar que o espao de produo da msica popular no perodo que
analisamos ainda pouco estruturado como veremos ao longo deste estudo, no podendo
ser entendido como um campo artstico nos termos de Pierre Bourdieu. A teoria da
dominao desenvolvida por Bourdieu , portanto, utilizada muito mais como um modo de
apreenso da realidade social, que inspirou muitas das indagaes colocadas aqui, e menos
como um mtodo coerente de anlise.
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Parte I A ambiguidade da msica popular _________________________________________________________________________
Captulo 1 Dois msicos na literatura brasileira e as condies sociais de produo da msica popular
Dois escritores brasileiros vo explorar a relao entre os anseios sociais do msico
popular e as condies sociais de produo da msica, no final do sculo XIX e incio do
XX, na Capital do pas. A anlise de um conto de Machado de Assis e de um romance de
Lima Barreto nos sugere certa ambigidade da figura do msico popular, que oscila entre o
menosprezo e o afeto de seus contemporneos, e contribui na compreenso dos
significados compartilhados a respeito da msica e da posio dos msicos populares na
sociedade da poca.
Em seu conto Um homem clebre, Machado de Assis explora os sentimentos de
um pianista chamado Pestana em sua relao com as diferentes vocaes musicais naquele
perodo: aquela voltada para a msica sria, feita para ser escutada em um concerto, e a
vocao para a msica ligeira, feita para ser danada nos saraus e bailes, para animar as
festas e reunies. Pestana era pianista e compositor de polcas durante o ano de 1875
apesar do ano de publicao do conto em jornal ter sido 1888 e em livro apenas em 1896
e a personagem central da trama narrativa. Lima Barreto em seu famoso romance
Triste fim de Policarpo Quaresma explora as relaes sociais tambm de um compositor
popular, mas de outro gnero, a modinha. Ricardo Corao dos Outros um violonista,
que vive a revoluo da Armada em 1893 sob o governo de Floriano Peixoto apesar da
histria ter sido publicada em folhetim de jornal em 1911 e em livro em 1915 e um
personagem coadjuvante, mas que ocupa posio importante na narrativa. O romance
escrito em um momento em que a cano nacional j um gnero aceito nos sales dos
homens de letras em Botafogo, mas vai retratar o perodo anterior, quando a modinha
vista como um gnero praticado apenas por gente desclassificada.
Apesar de todas as diferenas que possamos estabelecer entre as personagens, para
alm das j evidentes traadas pela temporalidade, pelo instrumento e pelos gneros de
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composies de cada um, assim como pela centralidade em relao ao eixo da narrativa,
ambos tem algo em comum, vo colocar em questo os anseios sociais e o reconhecimento
que os compositores de msica popular conseguem alcanar. Ambos personagens, apesar
das diferenas sociais que os caracterizam, so produtores de uma msica que no exigia
uma formao nas instncias oficiais da msica ocidental e que no possua instituies
que a legitimasse como uma Arte, mas que j oferecia as condies para a construo de
uma vocao reconhecida socialmente.
A literatura, aqui, no ser utilizada como fonte historiogrfica, no sentido de
fornecer dados sobre a realidade do perodo estudado e que possam servir de substrato
material para confirmar as hipteses sobre o lugar que o msico popular ocupava naquela
sociedade. A literatura oferece pistas sobre os diferentes significados que a msica popular
possua, significados compartilhados por escritores, crticos, editores e pblico, todos
envolvidos na produo do bem literrio; e como esses significados eram mobilizados de
diferentes maneiras segundo a situao social construda pelo escritor. Nesse sentido, a
leitura de romances e contos funcionam menos como uma fonte de dados e mais como
indicador de uma lgica social que os dois escritores tentam desvelar em suas fices.
Os primeiros romances brasileiros j utilizavam a msica como um signo para
caracterizar seus personagens, se valendo de uma lgica de distino social na qual os
prprios escritores estavam enredados. Mas, como veremos a seguir, esse vis sociolgico
aparece nos primeiros romances de maneira simplista, refletidos em conflitos maniquestas
que vo ser resolvidos no final da narrativa.
I. A msica para os romnticos
So raros os personagens msicos populares nos romances, mas vemos que a
msica faz apario em vrios. De uma maneira geral, ela utilizada como signo para
identificar as personagens desde os primeiros romances nacionais. A msica est sempre
presente como elemento da vida cotidiana, das festas, e principalmente das relaes entre
homens e mulheres, e, assim como a dana, utilizada como um signo que ajuda a
caracterizar alguns personagens em funo da admirao que ela evoca em outros. O bom
gosto no vestir, o refinamento de maneiras e gestos, a beleza, assim como a ausncia
desses atributos, so indicadores do lugar social que devemos atribuir a certos
personagens. Da mesma forma, o gosto musical, assim como o domnio de uma prtica
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corporal como a valsa, so importantes elementos para situar e identificar as personagens a
certas categorias sociais, com mais ou menos prestgio aos olhos dos outros personagens e
aos olhos do prprio pblico leitor. Os escritores esto sempre falando a um certo pblico
com o qual ele compartilha um quadro de valores e segundo o qual o seu texto faz sentido.
Machado de Assis em seus primeiros romances vai empregar esse mesmo
dispositivo sociolgico para caracterizar seus personagens, o qual j era utilizado pela
gerao de escritores anterior sua, e da qual fazia parte seu amigo pessoal, o famoso Jos
de Alencar e o no menos famoso Joaquim Manuel de Macedo, mais conhecido como Dr.
Macedo.
Joaquim Manuel de Macedo era cronista de um dos mais importantes jornais na
poca, Jornal do Commercio, teve como formao a medicina e ocupou cargo de
comendador, fora considerado por alguns como o criador do primeiro romance brasileiro9,
no qual j aparecem os gneros de msica nacional, como a modinha e o lundu. E no
por acaso, pois Macedo alm de ser um nome reconhecido no universo literrio brasileiro,
fora tambm autor de modinhas. Em A Moreninha, a personagem principal, Carolina, canta
uma modinha que transcrita inteiramente, chamada balada de Ahy, a qual o narrador
diz tratar-se de uma modinha conhecida, mas da qual o incansvel pesquisador Tinhoro
diz no ter encontrado vestgio nas regulares publicaes de coletneas de modinhas e
lundus muito comuns na poca, a maior parte publicada pela livraria e editora Quaresma,
atravs dos quais os vates nacionais atualizavam e compartilhavam os repertrios de
modinhas10. No mesmo romance, o escritor transcreve um lundu de sua autoria, Conselho
s Moas o qual, por sua vez, consta no volume do Trovador coleo de modinhas,
recitativos, rias, lundus, etc., de 1876 (TINHORO, 2000, p. 85). Era comum, na poca,
poetas conhecidos terem seus versos musicados por compositores annimos e publicados
nessas coletneas11, o que no deve ser interpretado como proximidade entre os poetas e os
trovadores populares, mas sugere uma afinidade entre o universo musical e literrio que
ser tratada na ltima parte deste estudo.
9 Existe uma disputa para definir esse lugar de primeiro romance, pois O filho do pescador foi publicado em 1943, mas foi considerado mal escrito, sem uma estrutura narrativa bem definida, perdeu o ttulo para o romance de J. M. de Macedo, A moreninha, publicado em 1944. 10 Tais como o Trovador, Cancioneiro Popular, a Lira Brasileira, Choros de Violo, Trovador Moderno, Trovador Martimo, Cantor de Modinhas, Lira de Apolo, Lira Popular, Trovador de Esquina e Serenatas, entre outros. Ver TINHORO, 2000, v. 1, p. 76. 11 Nessas mesmas publicaes encontram-se nomes de outros poetas da gerao romntica, como Casimiro de Abreu, Gonalves Dias, Bittencourt da Silva, Mello Morais, a leva dos ex-acadmicos atuais conselheiros, e esse estranho lvares de Azevedo, citados por Joo do Rio em sua crnica publicada na revista Kosmos, A Musa urbana em 1905 (RIO, 2008, p. 238).
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Joaquim Manuel de Macedo, alm de autor de modinhas, era j no sculo XIX, um
defensor da msica nacional. Em Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, publicado em
duas sries sob a forma de folhetim no Jornal do Commercio, em 1862 e 1863, podemos
ler:
E o pior que o gosto e a originalidade desses cantos, cuja msica tinha um carter que a fazia distinguir da msica caracterstica de todas as outras naes, tem-se ido perdendo pouco a pouco, sacrificada ao canto italiano, cuja imitao , desde alguns anos, o pensamento dominante dos nossos compositores. As modinhas e os lundus brasileiros quase que j no existem seno na memria dos antigos; foram banidos dos sales elegantes e com todos os costumes primitivos, dos bosques vizinhos do litoral pelo rudo da conquista dos homens, fogem para as sombrias florestas do interior. (apud TINHORO, 2000, v. 1, p. 93) Para Macedo a modinha teve origem nobre nos sales de Lisboa e se popularizou
at o interior do pas, ao mesmo tempo que saa de moda para os grupos elegantes da
capital. Ele se ressente da invaso da msica italiana e defende o produto nacional. A
modinha e o lundu, aos olhos de Macedo, tornaram-se fora de moda, coisa do interior
para as pessoas da poca. Isso ele escreve em 1862, mas na passagem do sculo a cano
nacional baseada nos versos dos poetas romnticos e nas melodias dos compositores
annimos continua muito em voga, como sugere Luiz Edmundo em suas descries do Rio
de Janeiro de seu tempo de juventude. O jornalista e escritor acadmico observa a
efervescente comercializao das brochuras com as modinhas impressas, que se vendem
at pelas portas dos engraxates, a cavalo, num barbante, e graas as quais a cano
popular, estimulada, cresce, palpita, e os poetas do gnero comeam a aparecer.
(EDMUNDO, 1984, p. 281). Segundo Luiz Edmundo, a efervescncia estimulada pela
editora popular Quaresma, apenas na passagem do sculo d ensejo a autonomizao da
cano nacional em relao ao universo literrio, com o surgimento de seus prprios
poetas populares, dentre os quais o mais famoso ser Catullo da Paixo Cearense.
Entretanto, em 1849, quando Macedo publica seu romance Rosa, a cano nacional
ainda um gnero do passado, mas que oferece uma distino de pessoa refinada e de bom
gosto sua personagem principal. Rosa canta uma ria italiana e logo depois canta uma
msica viva e alegre em seu prprio idioma, o que sugere a coexistncia da msica
nacional com as msicas importadas dos pases europeus e americano. Mas talvez Macedo
coloca lado a lado o canto italiano e a msica viva e alegre de carter nacional para
compensar essa disputa que ele via como perdida por esta ltima. No possvel se fiar
nessa descrio para pensar a configurao da poca, mas a escolha desta ou daquela
msica para caracterizar um personagem significativo, no aleatrio e fala apenas
indiretamente do significado cultural que a cano nacional possua na poca. preciso
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para compreender a figurao que o autor constri do espao musical, compreender a
posio da personagem que gosta desta ou daquela msica, pois a msica um dos
elementos que na poca em que foi escrito o romance poderia ajudar na caracterizao das
personagens, pois fazia parte da experincia cotidiana da populao leitora, sendo utilizada
como signo de distino social e psicolgica das personagens.
O romance Mulheres de mantilha escrito por Macedo em 1870, um pouco depois
do prognstico do esquecimento das msicas nacionais em seu Um passeio pela cidade do
Rio de Janeiro; mas ele vai situar a modinha e o lundu um sculo antes em 1760, momento
em que decorre o romance. Os mesmos gneros aparecem no seu romance histrico e
temos a impresso que ele projeta o significado que a modinha e o lundu tinham em 1870,
momento em que escreve, no passado. Comparando o significado que Macedo atribui
modinha e ao lundu em 1767 com o significado que atribui a esses mesmos gneros em
outros romances que se passam nos anos de 1870, pode-se notar que so o mesmo, apesar
de separ-los um sculo. Enfim, nada podemos dizer sobre os anos 1760, mas temos a
viso de Macedo dos anos 1870. No ltimo captulo do livro, narrado um jantar no
palcio do Conde da Cunha, Vice-rei da colnia brasileira, reunio para a qual o prspero
comerciante Jernimo Lrio convidado juntamente com sua famlia. Aps a ceia, os
convidados passam para outra sala para dar seqncia s atividades previstas para esse tipo
de reunio. o momento em que se canta, toca e por vezes se dana. O Vice-rei seguindo a
formalidade pergunta ao comerciante se seu futuro genro Isidoro gostaria de cantar. O
desejo do Vice-rei era um decreto. Isidoro cantou; mas delicado e conveniente escolheu
para executar msica apropriada cerimnia festa. (apud TINHORO, 2000, v. 1, p.
102) O comerciante desejoso de obsequiar o Conde da Cunha, e um pouco vaidoso do
merecimento de suas filhas, propem que Irene e Ins cantem tambm.
Irene cantou melanclica e suavemente a mais terna de suas modinhas. Ins, ignorante da etiqueta, sem a inspirao das convenincias de uma festa oficial, sem que a tivessem prevenido do que lhe cumpria fazer, escolheu para cantar o que melhor sabia, e com que mais gabes ganhava; cantou o mais engraado dos lundus. Se a modinha fora mal cabida, o lundu era inteiramente fora de propsito. Jernimo Lrio arrependia-se do estouvamento de sua vaidade de pai, e olhava severo para a menina Ins, que s via Isidoro. Mas a inocncia, a graa e a beleza de uma jovem tem privilgios quase ilimitados. O lundu cantado por Ins foi revolta feliz contra a etiqueta. O vice-rei pos-se a rir, a assemblia a aplaudir, e a cantora, animada pelos aplausos, requebrou de graa e de sainete, e deixou o cravo no meio de uma revoluo de alegria, em que o Conde da Cunha no era o menos revoltoso. (apud TINHORO, 2000, p. 103)
Isidoro canta uma msica apropriada que no precisamos saber o gnero, basta
saber que era um gnero apropriado; as filhas cantam dois gneros nacionais que eram
mal cabido ou inteiramente fora de propsito. Mas o gnero que funcionaria como um
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desqualificador da personagem diante das pessoas que com ela interage neutralizado por
outras caractersticas da jovem, como a inocncia, a graa e a beleza. O que no
acontecer a Brs Mimoso, um personagem de outro romance do mesmo escritor, O Moo
Loiro.
Neste romance utiliza os gneros musicais para caricaturar trs personagens: D.
Incia cantou uma modinha, D. Rita um romance, e Brs-Mimoso um lundu. E em
seguida explicita as caractersticas de cada personagem: Incia era moa desenvolta, de
personalidade j formada; Rita era mais nova e mais recatada, Brs-Mimoso, um velho
com sua dentadura postia, sua peruca de cachos e seu espartilho que o fazia teso,
direito e gracioso como uma palmeira e continua:
Com o crescer da idade, conheceu que se ia tornando pesado; Brs-Mimoso no perdeu mais em sarau alguma ocasio de danar a valsa de corropio, e por ltimo fez-se mestre dos sapateados da polca. (apud TINHORO, 2000, p. 96) Tudo acentua o lado ridculo da personagem, que insiste em fazer coisas de jovens,
como a valsa de corropio e a polca, o que leva a crer que o lundu tambm seria uma coisa
que poderia ficar bem na boca de um jovem, mas ridculo para Brs-Mimoso, cujo prprio
nome sugere o riso. O lundu cantado pela jovem graciosa visto como revolta feliz contra
a etiqueta, mas o lundu cantado pelo velho que quer parecer jovem, provoca a
ridicularizao diante dos olhos dos outros personagens, assim como aos olhos do prprio
narrador e do leitor. Cria-se uma cumplicidade, que se baseia no fato do escritor
compartilhar com os leitores um sistema de valores, e essa cumplicidade que garante que
o leitor vai achar graa na situao criada pelo escritor, enfim, vai entender a piada. Nessa
figurao a modinha exige desenvoltura e uma personalidade bem formada, pois no
um gnero que agrade aos mais conservadores e caiba em todos os ambientes, apesar de
ser aceito em outros e at ser um signo positivo para caracterizar a sensibilidade da
personagem principal; o lundu s pode ser cantado por jovens ousados, belos e inocentes,
capazes de romper as regras de decoro sem se fazerem ridculos. As caractersticas
valorizadas da personagem Ins so mais relevantes que a quebra do decoro que pratica ao
cantar o lundu. J para Brs-Mimoso o lundu apenas contribui para desacreditar ainda mais
o personagem diante dos outros.
Da mesma forma como o lundu ao ser cantado em determinado ambiente provoca
uma ruptura nas regras de boas maneiras, provocando o riso e a descrena na dignidade do
personagem, a valsa sendo executada por pessoas que no incorporaram em seu habitus a
elegncia dos gestos e postura dos grupos refinados, tambm motivo de riso. o que vai
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explorar outro escritor do perodo, Lus Guimares Junior em seu romance cmico de
1870, A famlia Agulha, mostrando como os elementos de distino dos grupos das
famlias refinadas, ao serem utilizados por pessoas de outra origem social, so motivo de
riso, pois o uso que fazem desse signo desastrado, indecoroso, de algum que outsider.
Os personagens fazem uso dos signos de distino, mas como no conhecem a gramtica
intuitiva incorporada ao longo dos primeiros anos de socializao, no podem extrair o
prestgio que eles conferem. A valsa enquanto elemento deslocado do ambiente requintado
dos sales da gente rica, vai funcionar como signo de ridicularizao das personagens
envolvidas na dana alucinada. Eufrsia Sistema Agulha, morre ao danar a valsa
arrebatadamente. Danou desastradamente, afobadamente, chegando ao ponto de cair no
cho numa cena de vexame incompatvel com uma boa atuao, com a qual se consegue a
admirao, o respeito, ou mesmo a inveja dos outros. No respeitou as regras do decoro12,
no pode usufruir do prestgio que a valsa conferia, na poca, aos danarinos.
D. Januria dominou o tumulto com a sua grandloqua voz de trovo: Sr. Verssimo! No dance mais! No dance mais! O infeliz professor, esticando o pescoo, olhou arregaladamente para todos, abriu com desespero a boca incomensurvel e gritou: No posso!. Eufrsia Sistema prendia-o e arrastava-o sem conceder-lhe um momento de respirao e descanso. A valsa tocou ao delrio! O pianista s vezes assustado retinha a fria das notas; mas Eufrsia Sistema vociferava e era foroso dar ao turbilho o competente acompanhamento.13 Esta cena o negativo da cena descrita por Alencar em Senhora, publicada em
1875, onde uma valsa de Strauss tambm termina por se tornar um turbilho musical. No
entanto, neste romance, mesmo o mais intenso sentimento que tambm termina pelo
desfalecimento da danarina no atrapalha a boa atuao da dupla e se passa de forma
discreta, provocando significados apenas para o par envolvido.
Foi um relance. O elegante par sumira-se atrs da folhagem, e j emergia da sombra e nadava na claridade deslumbrante da sala que ia de novo atravessar na elipse fugaz. Mas Fernando sentiu na face um sopro gelado. Olhou: Aurlia estava desmaiada em seus braos. A gentil cabea ao desfalecer no vergara para o peito. Como se a prendesse o ima dos olhos que a enlevara, inclinou-se espdua do cavalheiro, com o rosto voltado para ele. Os lbios descorados, moviam-se brandamente, como se a sua alma, que ali ficara, estivesse conversando com a outra alma que ali passara. Seixas ergueu a mulher nos braos e levou-a da sala. (ALENCAR, 1985, p. 193) Enquanto que nA famlia Agulha o marido com um pontap nas portas estende a
perna e faz cair sua mulher Eufrsia Sistema e seu professor de dana Verssimo dos
12 Sobre a questo do decoro e da representao do eu de uma pessoa ver Goffman, 1994; Martins, 1999. 13 Luis Guimares Junior, cap. XXII (Concluso), em Dirios do Rio de Janeiro, 30 de maro, 1870, apud TINHORO, op. cit., p. 160.
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Anjos, a dana em nada se parece com a graa e espiritualidade que emanam do par de
Alencar:
(...) despreendendo uns gritos continuados e surdos, j no marcava o passo metdico da dana; eram pulos, saltos, ziguezagues sem classificao possvel, contraes, movimentos, arrancos, raiva, clera, desespero! (apud TINHORO, 2000, v. 1, p. 161) O piano outro elemento utilizado para provocar o riso. Um signo de distino
para as famlias respeitadas, ele um instrumento que mal tocado denota a discrepncia
entre o prestgio que o signo porta e a condio social que no permitiu o aprendizado para
usufruir do signo. Ao invs de transferir a seus portadores o prestgio dos grupos refinados,
os faz parecerem ainda uma vez ridculos, o que provoca nosso riso:
Eufrsia, tentou de novo aprender a vibrar o ingrato instrumento! (...) No passou nunca de um lunduzinho com a mo direita e um dedo da mo esquerda. Para isso foi necessrio que um condescendente amigo de Anastcio Agulha grudasse vrios pedacinhos de papel numerados sobre as teclas em que a rude discpula deveria extrair o cobiado lundu. O piano parecia um jogo de roleta 1, 2, 3, 6, 10, 11, 4 e outros nmeros significativos. Majestoso, minha filha! Bate-se! bate bastante no nmero 6! Era o acompanhamento da mo esquerda. (Ibidem, p. 174) As personagens de Lus Guimares Junior so o negativo das personagens criadas
por Jos de Alencar, as quais vo se destacar pela perfeita incorporao do habitus dos
grupos elegantes.
Jos de Alencar considerado por muitos crticos o patriarca da literatura brasileira,
foi jornalista e poltico, eleito deputado pela provncia do Cear, chegou, mais tarde, a
ocupar cargo de Ministro da Justia sob o reinado de D. Pedro II. Dividido entre a vida
poltica e literria, Jos de Alencar figura na histria oficial como um dos autores
fundadores de uma literatura nacional. Ele traz para a literatura o objetivo poltico de
constituir uma identidade brasileira baseada na lngua portuguesa, mas que deveria se
distinguir das Letras portuguesas. Jos de Alencar com seus personagens mitolgicos,
torna-se o autor brasileiro mais lido no Segundo Reinado, sendo consagrado o principal
escritor brasileiro com a apresentao nos teatros da Europa da pera de mesmo nome que
seu romance, O Guarani, de Carlos Gomes, e que fez um estrondoso sucesso no Brasil.
Tinhoro, em seu estudo sobre a msica popular no romance brasileiro, chama a ateno
para o modo que tinha Jos de Alencar de construir suas personagens recorrendo aos
signos oferecidos pela sociedade, os quais denotam um habitus particular:
Sempre preocupado em evidenciar pela escolha das msicas o refinamento de seus personagens, Jos de Alencar j havia pginas atrs descrito um momento de devaneio de Guida em que a moa, sentada ao piano, e para fugir lio com a professora particular, Mrs. Trowsky, faz soar as notas frescas, brilhantes e vivazes de um romance de Schubert. (TINHORO, op.cit., vol. 1, p. 143)
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O estudioso observa que a preocupao em construir um imaginrio de requinte
era to grande em Alencar, que suas descries do ambiente musical urbano carioca se
restringem praticamente a citao dos dois gneros musicais mais apreciados pelos grupos
aristocrticos e considerados os mais elegantes: a valsa e a quadrilha. Continua Tinhoro,
para garantir esse clima de refinamento social, alis, na noite do casamento de Aurlia,
haveria intervalos [na dana] durante os quais, um insigne pianista que fora mestre de
Aurlia, executava os melhores trechos de peras ento em voga. (Ibidem, p. 151)
Tambm em Sonhos douro (1872) vai aparecer uma pera, quando a personagem canta
La Traviata de Verdi, o mesmo em Encarnao. Neste folhetim de 1877, publicado em
livro apenas em 1893, Amlia, uma jovem volvel e caprichosa cantava duetos nos
saraus elegantes da famlia e tomara o hbito de recordar trechos da pera que ouvia no
teatro, como o Addio del Passato de La Traviata, ou a ria da loucura da pera Lucia
de Lammermoor, de Donizetti.
Nos primeiros romances de Machado de Assis vemos o mesmo dispositivo de
Alencar. Em Helena, publicado em 1876 e ambientado em 1850, vemos a descrio de
como a jovem Eugnia dana com graa, elegncia e perfeio a valsa:
Quando Mendona valsava com Eugnia todos os olhos se centravam neles. Eram valsistas de primeira ordem. As ondulaes do corpo de Eugnia, e a serenidade e segurana de seus passos, adaptavam-se maravilhosamente quela espcie de dana. Era belo v-los percorrer o vasto crculo deixado aos movimentos; v-los enfim parar com a mesma preciso e sem o menor sintoma de cansao. A descrio no deixa dvidas acerca do habitus social dos personagens afinados
com os valores da civilizao ocidental. Muito diferente da afobao da famlia Agulha, a
jovem Eugnia domina a prtica dessa dana, o que lhe permite usufruir do prestgio que a
valsa oferece, e o que leva o narrador a dizer que a dana no era para a filha de Camargo
um gosto ou um recreio, somente; era tambm um adorno e uma arma. Machado de
Assis toca, aqui, na questo que aparece com freqncia em seus textos: a manipulao dos
signos externos de reconhecimento social pelos seus personagens homens e mulheres e da
qual depende a existncia social dos indivduos. Entre esses signos figura a msica.
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II. O compositor de polcas entre a estima dos graves e o amor dos frvolos
O conto de Machado de Assis, Um homem clebre, foi escrito na dcada de 1870, e
publicado pela primeira vez no jornal apenas em 1888, ano da abolio da escravido no
Brasil. O personagem principal do famoso conto um compositor de polcas clebre na
Capital do pas, o pianista Pestana. Apesar de clebre, era um homem acabrunhado por
uma frustrao: em seu ntimo cultivava a obsesso de compor uma pea erudita, que
pudesse imortaliz-lo junto com os grandes compositores da msica clssica, como
Mozart, Beethoven, Bach, Schumann, cujos retratos pendiam da parede de seu salo,
postos ali como santos de uma igreja. Mas Pestana parecia dotado apenas para compor
polcas. Suas composies publicadas em partituras eram campes de vendas e executadas
em todos os cantos da cidade, nos pianos das casas, nos assobios pelas ruas... eram o
sucesso do momento. Mas essa celebridade de nada lhe valia, chegava a sentir nuseas de
si mesmo, um constrangimento profundo quando era aplaudido entusiasticamente pela
audincia e dio a quem lhe pedia a nova polca da moda. Fugia para a sala dos retratos,
onde passaria mais uma noite em claro, evocando a inspirao para compor a to sonhada
obra de arte; e de novo era mais uma polca que lhe surgiria na mente sem os esforos da
vspera, sem exasperao, sem nada pedir ao cu, sem interrogar os olhos de Mozart.
Nenhum tdio. Vida, graa, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.
Neste conto Machado de Assis nos oferece pistas para pensar uma determinada
configurao social diante da qual o pianista e compositor de polcas, Pestana, se deparava
no final do sculo XIX.
Pestana sofre de um desajuste entre seu talento e a vocao que almeja. Seu talento
para compor polcas, mas sonha em ser compositor clssico. A oposio construda pelo
escritor pode ser colocada em termos de uma oposio entre natureza e sociedade, na qual
os anseios sociais esto em desacordo com a natureza do msico14. A natureza que impe
os estigmas, tais como os defeitos congnitos, as doenas e a origem social inferior,
tambm oferece alguns trunfos como o talento, a beleza e a inteligncia, que podem ser
capitalizados no jogo social. O talento, visto como um dom natural, pode ser canalizado
para uma vocao definida socialmente, como o caso da vocao de um msico
14 O mesmo tema reaparece em outros contos, a mesma discrepncia entre o talento e a vocao, aparece em Cantiga de esponsais, em que Mestre Romo gozava de grande fama como intrprete, to grande quanto a dos atores de teatro. No entanto, mestre Romo vive atormentado pela sua incapacidade de compor uma obra que tornasse seu nome imortal para as geraes futuras.
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concertista, cultivada e legitimada pelas instituies da msica ocidental15. Mas o que mais
chama a ateno neste conto a presena de uma segunda vocao, a de msico popular.
Uma vocao que existe mesmo sem instituies para legitim-la.
Pestana rejeita a vocao de compositor de msica para danar, pois naquele
momento ela no pode lhe oferecer a glria que ele anseia. Ele quer ser reconhecido como
gnio, capaz de escrever uma obra de arte, que imortalizasse e enaltecesse a sua existncia;
algo que o mundo das polcas e do mercado editorial no podia lhe oferecer. Em
contrapartida, esse universo que ele despreza o mesmo que lhe oferece os meios de
sobrevivncia e um outro tipo de admirao e amor de seus semelhantes, a fama. Mais do
que apontar para o desprestgio que a msica popular gozava na sociedade da poca,
Machado de Assis nos conta sobre a emergncia de uma nova vocao, ligada a um outro
universo de consagrao, sem retratos para serem colocados na parede, mas que j desperta
o mesmo sentimento que os heris romnticos nas jovens16. Esse novo universo musical
aparece no conto como desprezado, pois incapaz de oferecer o mesmo prestgio aos seus
msicos que aquele oferecido pela msica erudita ocidental. No entanto, o universo da
msica que chamamos aqui popular ou profana, era j um espao de produo simblica
no momento em que Machado de Assis escreve o conto, e que vai ganhar importncia e
autonomia ao longo do sculo XX.
A consagrao enquanto msico popular era uma consagrao indesejada para
Pestana, pois implicava a renncia consagrao do universo erudito, capaz de oferecer
um prestgio universal. H durante todo o conto a tenso entre as duas vocaes, a desejada
e aquela que se realiza. Por mais que ele quisesse ser um compositor de peas ao sabor
clssico ele no conseguia evitar essa outra vocao de compositor popular. Ambas
vocaes eram produzidas e reproduzidas socialmente, mas enquanto uma vocao estava
ligada a instituies seculares vindas do passado europeu, a outra estava ligada a uma
atividade pueril, que trazia dinheiro e fama, mas no a considerao social e artstica do
compositor erudito.
Machado de Assis oferece um quadro no qual a msica popular desperta o afeto de
seus contemporneos, mas no satisfaz o anseio de Glria do compositor. Ele mostra a
realidade cotidiana do compositor que est entre pessoas que admiram suas composies,
mas sonha em conquistar a mais alta considerao que a sociedade pode oferecer, a
15 Sobre a questo da vocao ver o volume organizado por Gisle Sapiro dedicado s Vocations Artistiques da revista Actes de la recherche en sciences sociales, n 168, Paris, Seuil, 2007. 16 A questo do amor das jovens j fora observado por Cac Machado, 2007.
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identidade de artista. Sua existncia se perde entre a ambio da Glria que a msica
erudita pode trazer, mas para a qual ele no tem talento, e uma vocao que ele realiza com
graa e inspirao, mas que no vai lhe trazer as recompensas sociais sonhadas.
Para ns o que interessa neste conto a figurao social construda pelo escritor na
qual a polca e outros gneros da poca, que tinham a mesma funo de msica para danar,
ocupam uma posio precisa, com menor prestgio do que a msica clssica mas com
muitas recompensas que vo ser menosprezadas por Pestana. isso o que d o tom
cmico-irnico do conto, Pestana parece no enxergar essas recompensas, ou pior, ele
despreza essas recompensas. A atividade de msico popular no to gratificante
socialmente quanto a de um msico concertista, mas na situao descrita no conto, ela j
oferece recompensas.
Ah! O SENHOR que o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: Desculpe meu modo, mas... mesmo o senhor? (...) Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moas lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado (...) (COSTA, Aquarelas do Brasil. Contos da nossa msica popular, 2006, p. 19)
Volta a Sinhazinha Mota duas pginas adiante:
(...) Nenhuma imagem, desvario ou reflexo trazia uma lembrana qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idia conjugal tirou moa alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. (Ibidem, p. 21) Um pouco depois oferece outra informao sobre a fama que o compositor possua
na cidade:
Exposta venda, esgotou-se logo a primeira edio. A fama do compositor bastava procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gnero, original, convidava a dan-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava clebre. (...) Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele l foi a um deles. No desgostou tambm de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado. (Ibidem, p. 23) As recompensas que satisfaria a mais modesta vaidade, como o amor feminino e
a celebridade instantnea, no interessavam a Pestana, pois no traziam a estima duradoura
que s a msica clssica poderia trazer.
Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos.(...) E a voltaram as nuseas de si mesmo, o dio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforo de compor alguma coisa ao sabor clssico, uma pgina que fosse, uma s, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. (...) Noites e noites, gastou-as assim, confinado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mo da msica fcil... Tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, que ia engendrar uma famlia de obras srias, profundas, inspiradas e trabalhadas. (...) Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de S. Cristvo. Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas... Viva a polca! Homens que passavam
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por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambio e a vocao... (Ibidem, p. 25) Msica fcil que se opem a obras srias, profundas, inspiradas e trabalhadas,
e cada qual ligada a uma vocao diferente. Ele sonha em ser identificado como
compositor clssico, enquanto que ser identificado como compositor popular lhe causava
nuseas. O cmico da situao est no exagero, no qual o anseio desmedido, que se
transforma em uma obsesso destrutiva, era proporcional ao seu talento para compor
polcas, a qual jorrava de sua alma como uma fonte perene.
O universo musical no perodo oferecia a situao de uma polarizao entre duas
vocaes que ofereciam recompensas diferentes. A msica fcil com suas recompensas
que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir, e a msica sria a Glria, com
letra maiscula. A vocao da msica popular no pode satisfazer esse anseio de glria
legtima aos olhos dos homens srios, ela atrai apenas o amor e admirao do pblico
feminino e dos homens jovens. Essa mesma polarizao, entre a fama e a glria, aparecera
nas primeiras pginas do romance que inaugura a fase madura do escritor, Memrias
Pstumas de Brs Cubas. No prlogo intitulado Ao Leitor com que o finado Braz Cubas
inicia suas memrias, ele faz referncia s duas colunas mximas da opinio: a estima
dos graves e o amor dos frvolos, a partir das quais os homens e mulheres vo
desenvolver suas estratgias de sobrevivncia e ascenso social.
A polca e a identidade social na literatura machadiana
Apenas em 1871, o escritor publica seu primeiro romance, Ressurreio, aos 32
anos de idade. E apenas depois de quatro rom