Autorização concedida ao Repositório da Universidade de ......nizadoras) -- Brasília: Liber...

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Autorização concedida ao Repositório da Universidade de Brasília (RIUnB) pelos organizadores, com as seguintes condições: disponível sob Licença Creative Commons 4.0, que permite copiar, distribuir e transmitir o trabalho, desde que seja citado o autor e licenciante. Não permite o uso para fins comerciais nem a adaptação desta. Authorization granted to the Repository of the University of Brasília (RIUnB) by the organizers of the book, with the following conditions: available under Creative Commons License 4.0, that allows you to copy, distribute and transmit the work, provided the author and the licensor is cited. Does not allow the use for commercial purposes nor adaptation. Referência: VIANA, Terezinha de Camargo et. al. Psicologia clínica e cultura contemporânea. Brasília: Liber Livros, 2012. 555 p.

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Page 1: Autorização concedida ao Repositório da Universidade de ......nizadoras) -- Brasília: Liber Livros, 2012. 555p. (Coleção Psicologia Clínica e Cultura UnB 1) ISBN: 978-85-7963-114-6

Autorizaccedilatildeo concedida ao Repositoacuterio da Universidade de Brasiacutelia (RIUnB) pelos organizadores com as seguintes condiccedilotildees disponiacutevel sob Licenccedila Creative Commons 40 que permite copiar distribuir e transmitir o trabalho desde que seja citado o autor e licenciante Natildeo permite o uso para fins comerciais nem a adaptaccedilatildeo desta

Authorization granted to the Repository of the University of Brasiacutelia (RIUnB) by the organizers of the book with the following conditions available under Creative Commons License 40 that allows you to copy distribute and transmit the work provided the author and the licensor is cited Does not allow the use for commercial purposes nor adaptation

Referecircncia

VIANA Terezinha de Camargo et al Psicologia cliacutenica e cultura contemporacircnea Brasiacutelia Liber Livros 2012 555 p

Coleccedilatildeo Psicologia Cliacutenica e Cultura UnB

Organizadoras

Terezinha de Camargo VianaGlaacuteucia Starling DinizLiana Fortunato Costa

Valeska Zanello

Psicologia Cliacutenica eCultura Contemporacircnea

Volum

e I C

oleccedilatildeo Psicologia C

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ontem

poracircnea

wwwpsiccunbbr

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo emPsicologia Cliacutenica e Cultura

Instituto de Psicologia

Volume I

P974 Psicologia cliacutenica e cultura contemporacircnea Terezinha de Camargo Viana et all (orga-nizadoras) -- Brasiacutelia Liber Livros 2012555p (Coleccedilatildeo Psicologia Cliacutenica e Cultura UnB 1)ISBN 978-85-7963-114-61 Psicologia cliacutenica 2 Psicanaacutelise 3 Psicoterapia e Tratamento 4 Saude Mental 5 Trans-tornos alimentares 7 Drogadiccedilatildeo Adolescecircncia 9 Gecircnero e violecircncia Avaliaccedilatildeo Psicoloacutegica ITerezinha de Camargo Viana IIGlaacuteucia Starling Diniz III Liana Fortunato Costa IV Valeska ZanelloV TiacutetuloCDU ndash 1599364658=1331=1343

Iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico

1 Psicologia Psicoterapia Problemas sociais 15993646582 Problemas sociais Psicologia 3646581599

REITOR

Ivan Marques de Toledo Camargo

DECANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO

Jaime Martins de Santana

DIRETOR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA

Hartmut Gunther

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CLIacuteNICA

Balsem Pinelli Junior

COORDENADORA DO PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA E CULTURA

Terezinha de Camargo Viana

FUNDACcedilAtildeO UNIVERSIDADE DE BRASIacuteLIA

CONSELHO EDITORIAL

Bernadete A Gatti

Iria Brzezinski

Maria Ceacutelia de Abreu

Osmar Favero

Pedro Demo

Rogeacuterio de Andrade Coacuterdova

Sofia Lerche Vieira

PROJETO GRAacuteFICO CAPA E DIAGRAMACcedilAtildeO

Leandro Celes ltleandrocelesgmailcomgt

EDITORA

Liber Livro Editora Ltda

wwwliberlivrocombr

Organizaccedilatildeo

Terezinha de Camargo Viana

Glaacuteucia Starling Diniz

Liana Fortunato Costa

Valeska Zanello

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura

Universidade de Brasiacutelia

2012

Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea

Coleccedilatildeo Psicologia Cliacutenica e Cultura UnB - Volume I

Sumaacuterio

Sobre os autores 10

Apresentaccedilatildeo 26

Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida 32

Teresa Cristina O Carreteiro

Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual 47

Bruno NogueiraLiana Fortunato Costa

A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil 67

Maria Inecircs GandolfoRaquel Cairus

Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica 87

Elvia Taracena

Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo 141

Teresa Cristina O C CarreteiroAlan Teixeira LimaBianca Cauper BohnertClaacuteudia Valente Lopes Daniela Serrina de Lima RodriguesLeticia de Luna FreireLuciana Ribeiro BarbosaMarcos Ceacutesar da Rocha Salema

De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento 155

Luiz Felipe Castelo Branco da Silva Maria Faacutetima Olivier Sudbrack

Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila 171

Adriana Barbosa Soacutecrates Maria Faacutetima Olivier Sudbrack

Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees 193

Eugene Enriquez

Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea 204

Luiz Augusto Monnerat Celes

Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010 227

Christian Ingo Lenz Dunker

Corpo em psicanaacutelise e obesidade 242

Eliana Rigotto Lazzarini Carolina Franccedila Batista Terezinha de Camargo Viana

Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea 256

Maacutercia Cristina MaessoDaniela Scheinkman ChatelardAndrea Horteacutelio Fernandes

Narcisismo e estados limites 268

Maacutercia Teresa Portela de CarvalhoEliana Rigotto Lazzarini Terezinha de Camargo Viana

O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho 281

Tainaacute Pinto Tania Rivera

A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo 297

Dione de Medeiros Lula ZavaroniTerezinha de Camargo VianaMassimo Ammaniti

O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado 313

Maria Izabel TafuriGilberto Safra

Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias 330

Valeska ZanelloFrancisco Martins

Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais 349

Laiacutes Macecircdo Vilas BoasDeise Matos do Amparo

Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional 366

Maria Izabel TafuriDione Lula ZavaroniMaria do Rosaacuterio Dias VarelaMaria Cicilia de Carvalho RibasClaude Schauder Janaiacutena Franccedila

Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves 380

Ileno Iziacutedio da CostaNeriacutecia Regina de Carvalho

Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores 414

Juacutelia Sursis Nobre Ferro Bucher-MaluschkeCamila de Aquino MoraisDeise Matos do AmparoMaria Aparecida PensoKarl Christoph Kaumlppler

8

Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea 430

Glaacuteucia DinizTerezinha Feacuteres-Carneiro

Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo 448

Sheila Giardini MurtaZilda A P Del Prette Almir Del Prette Valeska Zanello

O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise 470

Marcelo TavaresBlanca Susana Guevara Werlang

Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica 494

Mauricio S Neubern

Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios 514

Meirilane NavesMarcelo TavaresAlexandre DomanicoAnna Elisa de Villemor-Amaral

Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia 532

Roque GuiVera Lucia Decnop Coelho

9

10

Sobre os autoresAdrianaBarbosaSoacutecrates

Universidade de Brasiacutelia

Doutoranda em Psicologia Cliacutenica e Cultura - PPG PsiCCPCLIPUnB Mestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura PPGPsiCCPCLIPUnB Especialista em Teoria Psicanaliacutetica absocratesgmailcom

AlanTeixeiraLimaUniversidade Federal Fluminense - UFF

Atua como psicoacutelogo cliacutenico nos seguintes contextos chefe da Seccedilatildeo Psicossocial na UFF membro da Equipe de Referecircncia Infanto-juvenil para accedilotildees de atenccedilatildeo ao uso de Aacutelcool e outras Drogas (ERIJAD) e membro do Nuacutecleo de Apoio agrave Estrateacutegia Sauacutede da Famiacutelia (NASF) Realiza pesquisas sobre as seguintes temaacuteticas atenccedilatildeo psicssocial trabalho drogas juventude violecircncia cidadania gestatildeo e poliacuteticas puacuteblicas

AlexandreDomanicoFaculdade de Ciecircncias Sociais e Tecnoloacutegicas ndash FACITEC

Escola Nacional de Administraccedilatildeo Puacuteblica ndash ENAP

Professor na graduaccedilatildeo em Administraccedilatildeo e na poacutes-graduaccedilatildeo em Gestatildeo de Pessoas FACITEC Professor na poacutes-graduaccedilatildeo em Gestatildeo de Pessoas ENAP Especialista em Administraccedilatildeo Estrateacutegica de Sistemas de Informaccedilotildees FGV Mestre em Psicologia Cliacutenica UnB Consultor organizacional desde 1996 Psicoacutelogo Atuaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica com abordagem psicodinacircmica (2000-2010) domanicoymailcom

11Sobre os autores

AlmirDelPretteUniversidade Federal de Satildeo Carlos

Professor Titular Orientador nos Programas de Educaccedilatildeo Especial e Psicologia Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Experiecircncia na aacuterea de Psicologia com ecircnfase em Processos Grupais e de Comunicaccedilatildeo Temas de pesquisa habilidades sociais competecircncia social assertividade intervenccedilatildeo em grupo e desenvolvimento interpessoal adpretteufscarbr

AndreaHorteacutelioFernandesUniversidade Federal da Bahia

Professora adjunta do Instituto de Psicologia da UFBA onde atua na graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo Poacutes-doutora em Psicologia Cliacutenica e Cultura PPGPsiCCPCLIPUnB Mestre em Psicanaacutelise Universiteacute de Paris VIII Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanaacutelise Universiteacute de Paris VI Psicanalista ahfernandes03gmailcom

AnnaElisadeVillemor-AmaralUniversidade Satildeo Francisco - Faculdade de Psicologia da PUCSatildeo Paulo

Professora Associada Doutora do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia da Universidade Satildeo Francisco Professora da Faculdade de Psicologia da PUCSatildeo Paulo Graduaccedilatildeo em psicologia PUCSP Mestrado e doutorado em Ciecircncias UNIFESPEPM Poacutes-doutorado Universidade de Savoia Franccedila (2003) Liacuteder do grupo de pesquisa Avaliaccedilatildeo Psicoloacutegica em Sauacutede Mental Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq Coordenadora do GT de Meacutetodos Projetivos da ANPEPP (2008 a 2012) Desenvolve pesquisas na aacuterea de psicologia da sauacutede e psicopatologia com Meacutetodos Projetivos annavillemorusfedubr

BiancaCauperBohnertUniversidade Federal Fluminense - UFF

Aluna de Graduaccedilatildeo do Curso de Psicologia UFF bolsista da UFF Estagiaacuteria da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro

12

BlancaSusanaGuevaraWerlangPontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Diretora (2005 a 2009) e Professora Titular da Faculdade de Psicologia da PUCRGS Psicoloacuteloga Especializaccedilatildeo em Diagnoacutestico Psicoloacutegico Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade PUCRGS Doutorado em Ciecircncias MeacutedicasSauacutede Mental Universidade Estadual de Campinas Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq Membro do Grupo de Trabalho instituiacutedo para implantar a Estrateacutegia Nacional de Prevenccedilatildeo ao Suiciacutedio do Ministeacuterio da Sauacutede Brasil (2005- 2006) Membro da Comissatildeo Consultiva em Avaliaccedilatildeo Psicoloacutegica do Conselho Federal de Psicologia bwerlangpucrsbr

BrunoNogueiradaSilvaCostaUniversidade de Brasiacutelia

Mestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura - PPG PsiCCPCLIPUnB Psicoacutelogo do Centro de Atenccedilatildeo e Estudos Psicoloacutegicos (CAEP) do Instituto de Psicologia da UnB psico_brunocostayahoocombr

CamiladeAquinoMoraisUniversidade de Brasiacutelia

Doutoranda em Psicologia Cliacutenica e Cultura - PPG PsiCCPCLIPUnB Bolsista do CNPqPsicoacuteloga Mestre em Psicologia do Desenvolvimento UFRGS camilasmoraisgmailcom

CarolinaFranccedilaBatistaUniversidade de Brasiacutelia

Mestranda do Programa Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura - Bolsista do CNPq Especializaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica UnB Psicoacuteloga Cliacutenica carolinapsifbgmailcom

13Sobre os autores

ChristianIngoLenzDunkerUniversidade de Satildeo Paulo

Professor Associado do Departamento de Psicologia Cliacutenica do Instituto de Psicologia da USP Poacutes-doutorado - Manchester Metropolitam University Livre Docecircncia - Instituto de Psicologia da USP Psicanalista Analista Membro da Escola de Psicanaacutelise do Forum do Campo Lacaniano Autor de Estrutura e constituiccedilatildeo da cliacutenica psicanalitica - Precircmio Jabuti 2012 ndash Melhor Livro de 2012 em Psicologia e Psicanaacutelise

ClaudeSchauderUniversidade de Strasbourg-Franccedila

Professor Associado da Faculdade de Psicologia da Universidade de Strasbourg-Franccedila Orientador de Mestrado e de Doutorado Psicoacutelogo Presidente da Associaccedilatildeo ldquoLire Dolto aujourdrsquohuirdquo-Paris-Franccedila Coordenador da Pesquisa Internacional sobre ldquoPrevenccedilatildeo em Parentalidade estudo comparativo inter-culturalrdquo e do Plano de Perinatalidade na Franccedila-2005-2007) ncschauderhotmailcom

ClaacuteudiaValenteLopesUniversidade Federal Fluminense - UFF

Psicoacuteloga

DanielaScheinkmanChatelardUniversidade de Brasiacutelia

Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Graduaccedilatildeo em Psicologia Universidade Santa Uacutersula Mestrado em Psicanalise Universite de Paris VIII Doutorado em Filosofia Universite de Paris VIII Autora do livro O Conceito de Objeto na Psicanaacutelise do fenocircmeno agrave escrita Ed Universidade de Brasiacutelia 2005 Membro fundador da Abebecirc - Associaccedilatildeo Brasileira de Estudos sobre o Bebecirc Temas de pesquisa transferecircncia constituiccedilatildeo subjetiva objeto sujeito gozo e desejo Analista membro da Escola dos Foacuteruns do Campo Lacaniano-IF dchatelardgmailcom

14

DanielaSerrinadeLimaRodriguesUniversidade Federal Fluminense - UFF

Psicoacuteloga

DeiseMatosdoAmparoUniversidade de Brasiacutelia

Professora do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Doutora em Psicologia - UnB Poacutes-Doutorado - Laboratoacuterio de Psicopatologia Cliacutenica da Universidade Paris Descartes - Franccedila Bolsista de Produtividade do CNPq e pesquisadora da FAPDF Temas de pesquisa psicopatologia meacutetodo de Rorschach psicodiagnoacutestico risco psicossocial violecircncia adolescecircncia Presidente da Associaccedilatildeo Brasileira de Rorschach e Meacutetodos Projetivos - ASBRO (20112014) deiseamparomatosgmailcom

DioneLulaZavaroniUniversidade de Brasiacutelia

Psicoacuteloga Doutora em Psicologia Cliacutenica e Cultura-UnB Pesquisadora do Laboratoacuterio de Psicanaacutelise e Subjetivaccedilatildeo e do PPGPsiCC Coordenadora do Grupo de Atendimento a Crianccedilas com Dificuldades e Transtornos da AlimentaccedilatildeoVice-coordenadora do Centro de Atendimento e Estudos Psicoloacutegicos CAEPIPUnB zavaroniunbbr

ElianaRigottoLazzariniUniversidade de Brasiacutelia

Professora Adjunto do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Doutorado em Psicologia e Mestrado em Psicologia Cliacutenica UnB Psicoacuteloga cliacutenica Especialista em Teoria Psicanaliacutetica - UnB e Psicodrama Terapecircutico - Federaccedilatildeo Brasileira de Psicodrama Temas de Pesquisa psicanaacutelise narcisismo e cultura contemporacircnea distuacuterbio alimentar (anorexia bulimia obesidade) e intervenccedilatildeo terapecircutica elianarlterracombr

15Sobre os autores

ElviaTaracenaUniversidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico

Profesora Investigadora de la Facultad de Estudios Superiores-Iztacala de la Universidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico etaracenaryahoocom

EugeneEnriquezUniversiteacute Paris VII ndash Denis Diderot

Professor emeacuterito do Laboratoire de Changement Social Redator chefe da ldquoNouvelle Revue de Psychosociologierdquo Fundador do CIRFIP ndash Centre International de Recherche Formation et Intervention Psychosociologiques

FranciscoMartinsUniversidade Catoacutelica de Brasiacutelia - Universidade de Brasiacutelia

Professor na Graduaccedilatildeo e na Poacutes-graduaccedilatildeo da Universidade Catoacutelica de Brasiacutelia Professor Titular aposentado da Universidade de Brasiacutelia e Pesquisador Colobaorador Senior doDepartamento de Psicologia Clinica e do PPG PsiCC Mestrado em Psicologia pela UnB (1982) Mestrado (1984) e Doutorado em Psicologia Universidade de Louvain (1986) Poacutes-doutorado na Universidade de Louvain (1998) e Kent University (Inglaterra) Temas de pesquisa psicopatologia psicoterapia sauacutede mental linguagem atos de fala metaacutefora placebo e processos de cura fmartinsunbbr

GilbertoSafraUniversidade de Satildeo Paulo

Professor Titular do Instituto de Psicologia (USP) Professor assistente doutor da PUCSP Graduaccedilatildeo em Psicologia (1976) mestrado em Psicologia Cliacutenica pela Universidade de Satildeo Paulo (1984) e doutorado em Psicologia Cliacutenica pela Universidade de Satildeo Paulo (1990) Coordenador do LET- Laboratoacuterio de Estudos da Transicionalidade e do Instituto Sobornost Temas de pesquisa psicanalise psicanalise-clinica-winnicott psicologia psicanalise-winnicott e pesquisa- poacutesgraduaccedilatildeo

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GlaacuteuciaRibeiroStarlingDinizUniversidade de Brasiacutelia - UnB

Professora do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Graduaccedilatildeo em Psicologia UFMG Especializaccedilatildeo em Sauacutede Coletiva pela Escola de Sauacutede de Minas GeraisUFMGFIOCRUZ Mestrado e Doutorado no Marriage And Family Therapy Program - United States International UniversityAlliant International University EUA Temas de pesquisa famiacutelia casamento contemporacircneo interaccedilatildeo gecircnero casamento e trabalho gecircnero e violecircncia gecircnero e sauacutede mental gdinizunbbr

IlenoIziacutediodaCostaUniversidade de Brasiacutelia - UnB

Professor Adjunto do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Coordenador do Grupo Personna - Estudos e Pesquisas sobre perversatildeo psicotia e criminalidade e do Grupo de Intervenccedilatildeo Precoce nas Psicoses - GIPSI Presidente da Associaccedilatildeo de Sauacutede Mental do Cerrado (ASCER) Temas de pesquisa psicoses esquizofrenia psicopatologia sauacutede mental psicoterapias psicanaacutelise famiacutelia casal teoria sistecircmica filosofia da mente e da linguagem intervenccedilatildeo precoce nas psicoses poliacuteticas puacuteblicas em sauacutede mental aacutelcool e outras drogas luta antimanicomial e reforma psiquiaacutetrica ilenounbbr

JanaiacutenaFranccedilaUniversidade de Brasiacutelia - UnB

Doutoranda do Programa de Psicologia Cliacutenica e Cultura PCLIPUnB Pesquisadora do Laboratoacuterio de Psicopatologia e Psicanaacutelise Membro da equipe da pesquisa ldquoPrevenccedilatildeo em Parentalidade estudo comparativo interculturalrdquo Psicoacuteloga janainaffcyahoocomb

17Sobre os autores

JuacuteliaSursisNobreFerroBucher-MaluschkeUniversidade Catoacutelica de Brasiacutelia

Doutora em Psicologia e Sexologia pela Universidade Catoacutelica de Louvain Beacutelgica Fullbright Scholar na St Johnrsquos University New York EEUU Poacutes-doutorado na Universidade de Tuumlbigen Alemanha Professora Emeacuterita da Universidade de Brasiacutelia UNB Professora da Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia - UCB Docente colaboradora do PPGPsiCC Coordenadora do GT Famiacutelia Processos de Desenvolvimento e Promoccedilatildeo da Sauacutede da Associaccedilatildeo Nacional de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia ( ANPEPP) psibuchergmailcom

KarlChristophKaumlpplerTechnische Universitaumlt Dortmund

Psicoacutelogo Albert-Ludwigs-Universitaumlt Freiburg (1987) Mestrado Childrens Rights - Universite de Fribourg (2004) Mestrado Psicologia (1990) e Doutorado em Psicologia - Albert-Ludwigs-Universitaumlt Freiburg (1994) Diretor do Conruhr Ameacuterica-Latina - Universitaumltsallianz Metropole Ruhr Professor - Technische Universitaumlt Dortmund

LaiacutesMacecircdoVilasBoasUniversidade de Brasiacutelia

Mestranda do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura Bolsista de Mestrado - CNPq Psicoacuteloga

LeticiadeLunaFreireUniversidade Federal Fluminense - UFF

Psicoacuteloga Pesquisadora da UFF Doutorado em Antropologia UFF Mestrado em Psicologia Social UERJ

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LianaFortunatoCostaUniversidade de Brasiacutelia

Professora do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura - PPGPsiCCPCLIPUnB Psicoacuteloga Terapeuta Conjugal e Familiar Psicodramatista Doutora em Psicologia Cliacutenica pela USP Poacutes-doutorado em Psicossociologia ndash Histoacuteria de Vida UFF Temas de pesquisa relaccedilotildees interpessoais famiacutelia abuso sexual comunidade adolescecircncia exclusatildeo social e violecircncia sexual lianafterracombr

LucianaRibeiroBarbosaUniversidade Federal Fluminense - UFF

Psicoacuteloga Curso de Especializaccedilatildeo em Sauacutede da Famiacutelia pela ENSP - Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica Seacutergio Arouca FIOCRUZ Trabalha no NASF-Nuacutecleo de Apoio agrave Sauacutede da Famiacutelia (Janauacuteba-MG)

LuizAugustoMonneratCeles Universidade de Brasiacutelia

Pesquisador Colaborador Senior Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura (IP-UnB) Professor Titular aposentado do Departamento de Psicologia Cliacutenica da UnB tendo atuado na graduaccedilatildeo poacutes-graduaccedilatildeo estrito senso e lato senso Doutor em Psicologia Cliacutenica - PUC-Rio Poacutes-doutorados - UCL Beacutelgica 1996 PUC-SP 2003 PUC-Rio 2010 Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Temas de pesquisa cliacutenica psicanaliacutetica temporalidade sexualidade pulsatildeo Freud e processos de subjetivaccedilatildeo lamcelesgmailcom

LuizFelipeCasteloBrancodaSilvaCentro de Atenccedilatildeo Psicossocial em Aacutelcool e outras Drogas - Sobradinho II DF

Mestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura (PPGPsiCCPCLIPUnB Terapeuta Familiar e de Casais (PUCGO) Especialista em Teoria e Praacutetica Junguiana (UVA-RJ) Gerente do CAPSad-Sobradinho II Distrito Federal Docente do Centro Regional de Referecircncia - Universidade de Brasiacutelia

19Sobre os autores

MarceloTavaresUniversidade de Brasiacutelia

Professor Adjunto do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPG PsiCC PCLIPUnB Graduaccedilatildeo em psicologia - UFMG Mestre e Doutor em Psicologia Cliacutenica - United States International University Especialista em Psicanaacutelise - Teorias das Relaccedilotildees Objetais Washington School of Psychiatry Coordenador do Nuacutecleo de Intervenccedilatildeo em Crise e Prevenccedilatildeo do Suiciacutedio desde 1995 Membro do Grupo de Trabalho para implantar a Estrateacutegia Nacional de Prevenccedilatildeo ao Suiciacutedio do Ministeacuterio da Sauacutede Brasil (2005- 2006) Membro da Comissatildeo Consultiva em Avaliaccedilatildeo Psicoloacutegica do Conselho Federal de Psicologia Temas de pesquisa psicoterapia intervenccedilatildeo em crise e seus temas correlatos - a psicopatologia o psicodiagnoacutestico cliacutenico as teacutecnicas de intervenccedilatildeo e a prevenccedilatildeo em Sauacutede Mental marsatavaresgmailcom

MaacuterciaCristinaMaessoUniversidade de Satildeo Paulo

Doutora em Psicologia Cliacutenica pelo Instituto de Psicologia da USP Psicanalista Poacutes-doutoranda do Programa de Psicologia Cliacutenica e Cultura IP UnB maessomterracombr

MaacuterciaTeresaPorteladeCarvalhoUniversidade de Brasiacutelia

Pesquisadora Colaboradora Plena do Laboratoacuterio de Subjetivaccedilatildeo e Psicanaacutelise Professora Substituta do Departamento de Psicologia Cliacutenica Doutora em Psicologia Cliacutenica e Cultura (UnB) Especialista em Teoria Psicanaliacutetica e Gestalt Terapia cptmarciabrturbocombr

MarcosCeacutesardaRochaSalemaUniversidade Federal Fluminense - UFF

Psicoacutelogo

20

MariaAparecidaPensoUniversidade Catoacutelica de Brasiacutelia

Professora do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia UCB Psicoacuteloga Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasiacutelia Poacutes-doutorado no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Universidade Federal Fluminense Assessora Teacutecnica do Nuacutecleo de Sauacutede do Adolescente da Secretaria de Sauacutede do Distrito Federal pensoucbbr

MariaCiciliadeCarvalhoRibasUniversidade Federal de Pernambuco

Professora Adjunta de Psicologia do CAV-UFPEDoutora em Psicologia Clinica Universite Paris 5 Pesquisadora colaboradora do projeto de pesquisa ldquoPrevenccedilatildeo em Parentalidade estudo comparativo interculturalrdquo ciciribahotmailcom

MariadoRosaacuterioDiasVarelaUniversidade Paulista ndash Campus Brasiacutelia

Professora titular e coordenadora do Curso de PsicologiaUnipBrasiacutelia Psicoacuteloga e psicanalista Doutora em Psicologia Cliacutenica e Cultura Pesquisadora do Projeto ldquoPrevenccedilatildeo em Parentalidade estudo comparativo interculturalrdquo conjuntamente com o Laboratoacuterio de Psicopatologia do IPUnB mrvarellahotmailcom

MariaFaacutetimaOlivierSudbrackUniversidade de Brasiacutelia

Professora Titular do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCC PCLIPUnB Coordenadora do Programa de Estudos e Atenccedilatildeo agraves Dependecircncias Quiacutemicas ndash PRODEQUI Doutora- Psicologia Universiteacute de Paris XIII Poacutes-Doutora em Psicossociologia Universiteacute Paris VII Especialista - Terapia Familiar e Psicologia Juriacutedica CEFA- Centre drsquoEtudes de la FamilleParis) Coordenadora - Comitecirc Gestor do Programa de Proteccedilatildeo de Adolescentes Ameaccedilados de MortePPCAAM DF mfosudbrackgmailcom

21Sobre os autores

MariaInecircsGandolfoConceiccedilatildeoUniversidade de Brasiacutelia

Professora do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Psicoacuteloga Especialista em Psicologia Hospitalar Psicodramatista Doutora em Psicologia UnB Poacutes-doutorado UFF Bolsista de Estaacutegio Secircnior da CAPES-University of Toronto Coordenadora do Laboratoacuterio de Famiacutelia Grupos e Comunidades Pesquisadora do Programa de Estudo e Atenccedilatildeo agraves Dependecircncias Quiacutemicas Temas de pesquisa drogadiccedilatildeo adolescentes em conflito com a lei violecircncia meacutetodos qualitativos em pesquisa inclusatildeo social psicodrama e sociodrama fatores de risco sauacutede e reabilitaccedilatildeo inesgandolfogmailcom

MariaIzabelTafuriUniversidade de Brasiacutelia

Professora Adjunto - Departamento de Psicologia CliacutenicaIPUnB Doutora em Psicologia USP Psicoacuteloga e Psicanalista Coordenadora no Brasil da Pesquisa internacional ldquoPrevenccedilatildeo em Parentalidade estudo comparativo interculturalrdquo Pesquisadora do Laboratoacuterio de Psicopatologia e Psicanaacutelise IPUnB Membro Fundador da ABEBE - Associaccedilatildeo Brasileira de Estudos sobre o Bebecirc Membro Fundador da ABRAFIPP Presidente da ABENEPPIDF izabeltafurigmailcom

MassimoAmmanitiUniversidade de Roma La Sapienza

Professor de Psicopatologia do Desenvolvimento Membro do Board of Directors della World Association of Infant Mental Health (WAIMH) Presidente da Associazione Italiana per la Salute Mentale Infantile Psicanalista da International Psychoanalytical Association maammanitinit

MauricioSNeubern

Universidade de Brasiacutelia

Professor Adjunto do Departameto de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Doutor em Psicologia pela UnB com estaacutegio sanduiacuteche no Laboratoire de Changement Social Universiteacute Paris VII Temas de pesquisa

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ldquoComplexidade das Relaccedilotildees Terapecircuticasrdquo hipnose dores crocircnicas epistemologia da cliacutenica psicoterapia religiatildeo sistemas culturais de cura e cuidado corpo subjetividade e cultura Vice-presidente da Associaccedilatildeo Brasileira de Hipnose Fundador do Instituto Milton Erickson de Brasiacutelia mneubernunbbr

MeirilaneNavesUniversidade de Brasiacutelia

Doutoranda em Psicologia Cliacutenica e Cultura Mestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura Membro do Nuacutecleo de Intervenccedilatildeo em Crise e Prevenccedilatildeo do Suiciacutedio Graduaccedilatildeo em psicologia UFU Integrante do Programa de Promoccedilatildeo da Sauacutede Integral da UnB Coordenadoria de Intervenccedilatildeo em Crise (desde 2003) ndash funccedilotildees Coordenadora Executiva (2003ndash2009) Coordenadora Cliacutenica (2010ndash2011) e Supervisora Institucional (2011-2012) Bolsista do Projeto REUNI (2009ndash2010) navesmeirilanegmailcom

NeriacuteciaReginadeCarvalho SilvaUniversidade Federal do Maranhatildeo

Psicoacuteloga Cliacutenica da UFMA Especialista em Bioeacutetica (UnB) Mestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura PPGPsiCCPCLIPUnB Ex-integrante do GIPSI - Grupo de Intervenccedilatildeo Precoce nas Psicoses

RaquelCairusSecretaria de Estado do Desenvolvimento Social - GDF

Psicoacuteloga da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social do Governo do Distrito Federal Mestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura raquelcairushotmailcom

RoqueTadeuGuiDoutor em Psicologia Cliacutenica e Cultura PPGPsiCCPCLIPUnB Mestre em Psicologia pela Universidade de Brasiacutelia (UnB) Psicoacutelogo e psicoterapeuta junguiano roquetadeugmailcom

23Sobre os autores

SheilaGiardiniMurtaUniversidade de Brasiacutelia

Professora Adjunta e Orientadora no PPGPsiCCPCLIPUnB Doutora em Psicologia Social e do Trabalho UnB Estaacutegio de doutoramento na Queensland University of Technology - Brisbane Austraacutelia Poacutes-Doutorado UFSCar Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Temas de pesquisa desenvolvimento e avaliaccedilatildeo de programas de prevenccedilatildeo primaacuteria a riscos para transtornos mentais e promoccedilatildeo de competecircncias associadas agrave sauacutede mental giardiniunbbr

TainaacutePintoMestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura PPGPsiCCPCLIPUnB Psicoacuteloga tainahopgmailcom

TaniaRiveraUniversidade Federal Fluminense ndash Universidade de Brasilia

Professora da UFF e Professora Colaboradora do PPGPsiCCPCLIPUnB Graduaccedilatildeo em Psicologia pela UnB Mestrado e Doutorado em Psicologia pela Universiteacute Catholique de Louvain Beacutelgica Poacutes-Doutorado em Artes Visuais na escola de Belas-Artes UFRJ (2006) Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Psicanalista Atua nas aacutereas de teoria e cliacutenica psicanaliacuteticas e fundamentos e criacutetica das taniariverauolcombr

TeresaCristinaOthenioCordeiroCarreteiroUniversidade Federal Fluminense - UFF

Professora titular do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Graduada em Psicologia PUCRJ Doutorado em Psicologia Social Cliacutenica - Universite de Paris VII Poacutes-doutorado em Sociologia Clinica Universiteacute de Paris VII Coordenadora do Laboratoacuterio NUPESV-UFF Associada ao Laboratoire de Changement Social e ao Institut Internacional de Sociologie Clinique Franccedila tecar2uolcombr

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TerezinhadeCamargoVianaUniversidade de Brasiacutelia

Professora Associada do Departamento de Psicologia Cliacutenica e Coordenadora do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Coordenadora do Curso de Especializaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Psicoacuteloga Cliacutenica Doutorado (USP) Poacutes-doutorados Antropologia (UNICAMP) e Psicologia Cliacutenica - Instituto Superior de Psicologia Aplicada ISPA-Lisboa Temas de Pesquisa psicanaacutelise subjetivaccedilatildeo teoria psicanaliacutetica transtornos alimentares feminilidade cultura esteacutetica literatura arte e psicoterapia tcvianaunbbr

TerezinhaFeacuteres-CarneiroPontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro

Professora Titular Graduaccedilatildeo em Psicologia PUCRJ Especializaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica - Intervenccedilatildeo Familiar PUCRJ Mestrado em Psicologia Cliacutenica pela PUCRJ Doutorado em Psicologia Cliacutenica pela PUCSP Poacutes-doutorado pela Universidade de Paris V-Sorbonne Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Tem experiecircncia na aacuterea de Psicologia com ecircnfase em Tratamento e Prevenccedilatildeo Psicoloacutegica Temas de pesquisa avaliaccedilatildeo familiar entrevista familiar pesquisa em psicologia tefercapuc-riobr

ValeskaZanelloUniversidade de Brasiacutelia

Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Graduaccedilatildeo em Psicologia (1997) graduaccedilatildeo em Filosofia (2005) e doutorado em Psicologia pela UnB (2005) com periacuteodo de doutorado-sanduiacuteche no Instituto Superior de Filosofia Universithe Catholique de LouvainBeacutelgica (2004) Especializaccedilatildeo em Psicopedagogia pela UFRJ (1999) e em Filosofia e Existecircncia pela UCB (2007) Temas de pesquisa Sauacutede mental Psicopatologia Gecircnero Psicanaacutelise e Filosofia da Linguagem valeskazanellouolcombr

25Sobre os autores

VeraLuciaDecnopCoelhoUniversidade de Brasiacutelia

Professora aposentada e Pesquisadora Colaboradora Plena do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Graduaccedilatildeo em Psicologia pela UFF Mestrado em Psicologia FGVRJ Mestrado e Doutorado em Psicologia - Case Western Reserve University Temas de pesquisa envelhecimento com ecircnfase em questotildees psiacutequicas e soacutecio-culturais da maturidade e da velhice estrateacutegias de prevenccedilatildeo promoccedilatildeo e tratamento em sauacutede mental de idosos e seus familiares no contexto do Sistema Puacuteblico de Sauacutede modalidades de intervenccedilatildeo grupal de caraacuteter multiinterdisciplinar veradecnopgmailcom

ZildaAPDelPretteUniversidade Federal de Satildeo Carlos

Professora Titular Orientadora nos Programas de Educaccedilatildeo Especial e Psicologia Departamento de Psicologia Graduaccedilatildeo em Psicologia UEL Mestrado em Psicologia Social UFPB Doutorado em Psicologia Experimental USP Poacutes-Doutorado em Psicologia das Habilidades Sociais Universidade da Califoacuternia Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Temas de pesquisa relaccedilotildees Interpessoais habilidades sociais competecircncia social assertividade praacutetica pedagoacutegica e desenvolvimento interpessoal zdpretteufscarbr

26

Apresentaccedilatildeo

O seacuteculo XXI se inicia sob o signo de intensas mudanccedilas sociais e tecnoloacutegicas Giddens

em Mundo em descontrole o que a globalizaccedilatildeo estaacute fazendo de noacutes afirma que vivemos

em ldquoum mundo em descontrolerdquo e que tal descontrole eacute produto de dinacircmicas ligadas

agrave globalizaccedilatildeo e aos processos econocircmicos e sociais que lhe datildeo sustentaccedilatildeo Tais movi-

mentos influenciam profundamente a vida cotidiana mudam a vida social e as formas

de inserccedilatildeo no mundo do trabalho e transformam tambeacutem a vida privada e os proces-

sos afetivo-relacionais

A preocupaccedilatildeo com esse embate entre velhos e novos modelos e seu impacto sobre a

condiccedilatildeo humana e social marca a produccedilatildeo cientiacutefica em aacutereas como a psicologia a

sociologia a histoacuteria a literatura dentre outras Atravessa continentes e busca desnu-

dar a complexidade de fatores que afetam a vida contemporacircnea Reflexotildees de Giddens

(2005) e de Jablonski (19911998) ndash um inglecircs o outro brasileiro um escrevendo na

metade da primeira deacutecada do seacuteculo XXI e o outro problematizando processos que jaacute

anunciavam mudanccedilas e rupturas em nossa forma de viver ao longo da uacuteltima deacutecada

do seacuteculo XX constituem exemplos desse comprometimento Ambos os autores cha-

mam atenccedilatildeo para o fato que vivemos em um mundo que privilegia o instante a rup-

tura o descartaacutevel as novidades ou seja tudo que revele desapego e que se oponha a

qualquer ideia de permanecircncia O fato eacute que o acesso a formas de comunicaccedilatildeo raacutepidas

estaacute a alterar o modo de funcionar das pessoas e suas expectativas pessoais relacionais

e sociais (Diniz 2012)

27Apresentaccedilatildeo

Vivemos portanto em um novo tempo pautado pela secularizaccedilatildeo da vida pela minimi-

zaccedilatildeo dos preceitos e da moral religiosa pelo aumento da longevidade pelo surgimento

de novas tecnologias de fertilizaccedilatildeo e de controle da natalidade Tudo isso associado

agraves mudanccedilas nos eixos estruturantes das relaccedilotildees ou seja ao valor dado ao afeto e ao

amor agrave sexualidade agrave individualidade ao sucesso pessoal profissional e financeiro agrave

satisfaccedilatildeo obtida na relaccedilatildeo e no trabalho tem produzido impactos profundos em todas

as aacutereas da vida (Diniz 2012 Jablonski 19911998)

Ao revisitar e refletir sobre trabalhos que pautaram a construccedilatildeo de uma suposta identi-

dade cultural brasileira Rago (2006) aponta que esses tinham em comum a busca por

pontos fixos por uma ldquoldquo essenciardquo oculta nas profundezas da terra e da psiquerdquo (pg 4)

No entanto a autora eacute contundente ao afirmar que

ldquo() as constantes desterritorializaccedilotildees a que somos expostos cotidianamente tecircm abalado tatildeo profundamente o sentimento de pertencimento a um grupo fixo como a Naccedilatildeo que necessitamos de outros operadores conceituais para a compreensatildeo do presente para nos situarmos no mundo e tambeacutem para reorganizarmos nosso espaccedilo interno delimitando a constituiccedilatildeo de novas subjetividades fugazes e mutantes antes impensaacuteveis (pg 4)rdquo

Tais mudanccedilas colocam vaacuterios desafios para noacutes psicoacutelogos Koocher (2007) aponta

que um deles eacute (re) pensar o papel social da psicologia e sua missatildeo de contribuir para

a sauacutede e o bem estar das pessoas Outro desafio segundo o autor eacute considerar como

as novas tecnologias vatildeo afetar a forma de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave distacircncia e por meios

eletrocircnicos E uma vez que esses dois processos nos colocam desafios eacuteticos o autor nos

convida a (re) ver nossas responsabilidades enquanto pessoas e profissionais

O Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura ao eleger o debate entre a

Cliacutenica e as vaacuterias dimensotildees da Cultura como o eixo articulador de sua estrutura de

ensino e pesquisa assume o compromisso claro de contribuir com essa reflexatildeo O

livro que ora apresentamos Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea tem a pretensatildeo

de lanccedilar luz sobre a multiplicidade de possibilidades de se pensar e fazer a psicologia

cliacutenica na atualidade

Falemos brevemente como estruturamos Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea

Como linhas a entrelaccedilar os discursos estatildeo os produtos do conhecimento gerado por

projetos de pesquisa abrigados nas quatro linhas de pesquisa do PPGPsiCC ndash 1 Pro-

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cessos Interacionais no Contexto do Casal da Famiacutelia do Grupo e da Comunidade 2

Psicanaacutelise Subjetivaccedilatildeo e Cultura 3 Psicopatologia Psicoterapia e Linguagem 4 Sauacute-

de Mental e Cultura Contudo tal disposiccedilatildeo primeira de organizaccedilatildeo natildeo se pretende

restrita ao nosso programa de poacutes-graduaccedilatildeo Temos que dizer que nossa produccedilatildeo eacute

construiacuteda num contexto de permanente de interlocuccedilatildeo e de estabelecimento de redes

e parcerias com colegas de outras universidades do paiacutes e do exterior ndash buscamos evi-

denciar esta faceta em diferentes trabalhos Dessa forma podemos dizer que o conjunto

dos trabalhos apresentados permite um debate significativo e ampliado e no cenaacuterio da

psicologia cliacutenica

As pesquisas psicocliacutenicas sobre a realidade brasileira contemporacircnea exigem atenccedilatildeo

especial Os dados censitaacuterios e dados referentes agraves poliacuteticas puacuteblicas e agraves diretrizes ju-

riacutedicas oferecem um paracircmetro importante de anaacutelise de mudanccedilas que vecircm ocorrendo

em diversas aacutereas da vida Resultados do Censo Brasileiro do ano de 2010 foram articu-

lados com resultados de outras pesquisas para apresentar desafios e dilemas que mar-

cam a conjugalidade contemporacircnea A situaccedilatildeo de crianccedilas e adolescentes eacute analisada

do ponto de vista de um aparato juriacutedico de acolhimento e prevenccedilatildeo de exclusatildeo social

Refletir sobre dispositivos poliacuteticos e examinar as proposiccedilotildees c diretrizes presentes

nas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para a proteccedilatildeo integral de crianccedilas de adolescentes da

mulher e das famiacutelias eacute uma tarefa presente em vaacuterios momentos de Psicologia Cliacutenica

e Cultura Contemporacircnea Aleacutem de problematizar aspectos das Poliacuteticas Nacionais vol-

tadas para esses grupos osas autoresas discutem as possibilidades de inserccedilatildeo e os

limites que essas poliacuteticas colocam para a atuaccedilatildeo de psicoacutelogos

Ainda com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo de crianccedilas de adolescentes e de jovens configuram-se

importantes aacutereas de estudos os distuacuterbios alimentares presentes na primeira infacircncia

desafios do autismo infantil pesquisa internacional que explora a constituiccedilatildeo da pa-

rentalidade no mundo atual constituem algumas das temaacuteticas endereccediladas No texto

que abre Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea dados de pesquisa sobre a histoacuteria

laboral de jovens deixam claras as implicaccedilotildees de viver em um cenaacuterio de competiccedilatildeo

de dificuldade de acesso ao trabalho de instabilidade e precariedade que podem gerar o

medo constante do desemprego A vida nas ruas muacuteltiplas formas de trabalho infantil

assim como outras vaacuterias circunstacircncias que levam ao uso e ao traacutefico de drogas foram

temas objeto de pesquisas-intervenccedilotildees

29Apresentaccedilatildeo

As violecircncias dentre elas o abuso sexual ocupa um espaccedilo importante tanto na miacutedia

quanto na academia O estudo de dinacircmicas conjugais e familiares constitui uma ferra-

menta fundamental para a compreensatildeo das manifestaccedilotildees da sexualidade e da violecircn-

cia em especial de fatores que geram situaccedilotildees de abuso sexual de meninos e meninas

Pesquisa- intervenccedilatildeo realizada com adolescentes que cometeram abuso sexual e suas

famiacutelias aponta o uso do Grupo Multifamiliar como estrateacutegia eficaz para conhecer o

pensamento e a realidade de vida desses adolescentes e de suas famiacutelias Ao mesmo

tempo essa teacutecnica permite criar um contexto propiacutecio agrave revisatildeo dos paracircmetros fami-

liares sociais e culturais que permeiam a construccedilatildeo da identidade masculina para que

os jovens possam encontrar formas adequadas de exerciacutecio de sua sexualidade

Haacute que se dizer tambeacutem que sexualidade eacute pensada em perspectivas diversas em Psico-

logia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea A constituiccedilatildeo da sexualidade eacute problematizada

com diferentes ecircnfases em textos de orientaccedilatildeo psicanaliacutetica Outra vertente parte de

uma criacutetica aos modelos heteronormativos Com base em uma perspectiva de gecircnero

questiona-se as praacuteticas culturais que estabelecem modelos riacutegidos para os papeacuteis de

gecircnero que categorizam como desviante uma orientaccedilatildeo sexual que natildeo seja heteroafe-

tiva Interessa agrave psicologia cliacutenica em sua articulaccedilatildeo com uma criacutetica aos paracircmetros

culturais normativos e hegemocircnicos apontar os impactos do sexismo e do heterosse-

xismo da discriminaccedilatildeo e dos preconceitos sobre a sauacutede e em especial sobre a sauacutede

mental Um segundo passo eacute propor estrateacutegias de accedilotildees preventivas no contexto das

poliacuteticas puacuteblicas

O diaacutelogo criacutetico com as poliacuteticas puacuteblicas envolve tambeacutem pensar a questatildeo das psico-

patologias e consequentemente os desafios relacionados agrave avaliaccedilatildeo dos proacutedomos e a

oferta de tratamento diante das manifestaccedilotildees das primeiras crises psicoacuteticas Torna-se

fundamental entender o que constitui uma ldquocriserdquo e as dimensotildees que atestam sua gra-

vidade A maneira como oa profissional concebe a crise influencia o modo como elea

trata pessoas com sofrimento psiacutequico grave

Um nuacutemero expressivo de trabalhos de Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea rela-

cionam-se a questotildees especiacuteficas que comparecem no fazer cliacutenico e agraves demandas cliacuteni-

cas na atualidade ndash as novas patologias e tipos cliacutenicos a avaliaccedilatildeo das psicoterapias os

instrumentais de registros e avaliaccedilotildees cliacutenicas a discussatildeo quanto as diferentes moda-

lidades de intervenccedilatildeo cliacutenica (hipnose psicoterapias existenciais psicanaacutelise atendi-

30

mento emergencial etc) a psicossomaacutetica e as questotildees da corporeidade o sonhar e a

cultura a discussatildeo sobre os diferentes espaccedilos de se fazer a clinica psi

Novos tipos cliacutenicos ou seja novas formas de subjetivaccedilatildeo e manifestaccedilotildees de adoeci-

mento satildeo pensadas a partir da interlocuccedilatildeosobreposiccedilatildeo entre modos de ser e estar no

mundo de personagens de mitos e textos claacutessicos e de personagens do agora produtos

de um cotidiano marcado por exigecircncias pressotildees e limitaccedilotildees de natureza diversa

Um conjunto de estudos propotildeem com base em uma leitura psicanaliacutetica reflexotildees

sobre a constituiccedilatildeo do sujeito como processual e imbricada de forma indissociaacutevel

agrave cultura A partir da pergunta ldquoPor que evocar o amorrdquo o papel central do amor na

dinacircmica entre o si mesmo e outro na produccedilatildeo da coesatildeo grupal na constituiccedilatildeo dos

laccedilos sociais assim como na prevenccedilatildeo das patologias narciacutesicas A psicanaacutelise tambeacutem

eacute problematizada tanto como praacutetica cliacutenica de subjetivaccedilatildeo na singularidade de cada

sujeito quanto como teoria e criacutetica da cultura Assim as divergecircncias presentes no inte-

rior da psicanaacutelise assim como as linhas da psicanaacutelise contemporacircnea satildeo exploradas

A riqueza de eixos teoacutericos e metodoloacutegicos marca a produccedilatildeo teoacuterica do PPGPsiCC

Em um dos capiacutetulos a hipnose eacute pensada como dispositivo metodoloacutegico em contextos

cliacutenicos onde as pessoas apresentam temaacuteticas de cunho espiritual Questotildees explo-

radas em Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea revelam que a pesquisa e o fa-

zer cliacutenico atravessam as vaacuterias fazes do ciclo vital e de desenvolvimento promovem

a articulaccedilatildeo entre diversas categorias ndash gecircnero raccedila classe idade niacutevel educacional

condiccedilotildees de vida de sauacutede e de acesso a bens serviccedilos ao trabalho lazer e agrave cultura

O pessoal o relacional e o poliacutetico satildeo vistos como indissociaacuteveis O texto mostra ainda

a importacircncia de entender especificidades da cultura brasileira em sua articulaccedilatildeo com

processos cliacutenicos

Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea evidencia com propriedade a imbricada tes-

situra entre a produccedilatildeo de conhecimento ndash a pesquisa e o compromisso da psicologia

cliacutenica com a construccedilatildeo e investigaccedilatildeo de estrateacutegias de atuaccedilatildeo Como bem aponta

Elvia Taracena uma das autoras deste livro aponta uma caracteriacutestica fundamental da

produccedilatildeo de conhecimento na aacuterea cliacutenica em seus muacuteltiplos contextos ldquola necesidad

de hacer una investigacion ligada al campo de la intervencion que permita caracterizar la

complejidad del fenomeno de la vidardquo

31Apresentaccedilatildeo

Em Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea as coautorias ndash entre docentes e discen-

tes entre docentes do PPG PsiCC e de outros programas no paiacutes e no exterior assim

como as autorias nacionais e internacionais deixam claro que pensar as muacuteltiplas arti-

culaccedilotildees entre a cliacutenica e a cultura exige abertura para diaacutelogos que revelem o encontro

de distintas estrateacutegias metodoloacutegicas e perspectivas dentro do campo do saber e do

fazer cliacutenico Esperamos que os vaacuterios textos apresentados nesse livro fomentem re-

flexotildees que tenham o potencial de mobilizar novos diaacutelogos entre o grupo de autores e

outros colegas de diversos campos de produccedilatildeo do conhecimento e de atuaccedilatildeo Ousa-

mos desejar que o proacuteximo volume dessa coletacircnea que ora se inicia jaacute contenha frutos

desse diaacutelogo ampliado

Desejamos a todosas uma oacutetima leitura

Terezinha de Camargo Viana

Glaacuteucia Starling Diniz

Liana Costa Fortunato

Valeska Zanello

Referecircncias

Diniz G R S (2012) Ateacute que a vida - ou a morte - os separe anaacutelise de paradoxos das

relaccedilotildees violentas Em Terezinha Feacuteres-Carneiro (org) Capiacutetulo de livro no prelo Satildeo

Paulo Editora Casa do Psicoacutelogo

Giddens A (2005) Mundo em descontrole o que a globalizaccedilatildeo estaacute fazendo de noacutes Rio

de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Jablonski (19911998) Ateacute que a vida nos separe a crise do casamento contemporacircneo

Rio de Janeiro Agir

Koocher Gerald P (2007) Twenty-first century ethical challenges for psychology

American Psychologist Vol 62(5) 375-384

Rago M (2006) Sexualidade e identidade na historiografia brasileira Revista Aulas

Dossiecirc Identidades Nacionais Glaydson Joseacute da Silva (Org) 2

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Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

TeresaCristinaOCarreteiro

Este texto eacute composto de duas partes que se articulam 1Na primeira parte seratildeo discuti-

das e problematizadas vaacuterias perspectivas que compotildeem o campo de estudo da histoacuteria

de vida O propoacutesito eacute traccedilar aproximaccedilotildees entre estas discussotildees com a perspectiva

teoacuterica e metodoloacutegica denominada ldquoRomance Familiar e Trajetoacuteria Socialrdquo A segunda

parte discorreraacute sobre uma pesquisa que teve por objeto a histoacuteria de vida laboral de jo-

vens Seratildeo debatidas duas zonas de sentido fruto da anaacutelise a obrigaccedilatildeo de se adquirir

muitas formaccedilotildees acadecircmicas e o serviccedilo puacuteblico como campo de projetos profissionais

Histoacuteriahistoacuteriadevidaenarraccedilatildeo

Todo indiviacuteduo participa da construccedilatildeo de uma pluralidade de campos histoacutericos do

grupo familiar comunitaacuterio social entre outros Aqui a referecircncia ao indiviacuteduo eacute con-

1 Conferecircncia dada como Aula Inaugural no Programa de Poacutes graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura Universidade de Brasilia em novembro de 2012

33Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

siderada de modo bastante amplo tanto aqueles que satildeo invisibilizados pela socieda-

de quanto os que satildeo visibilizados ou os que tecircm uma hiper visibilidade Pensamos

que a Histoacuteria natildeo eacute feita soacute pelos poderosos mas por todos os humanos Ela eacute uma

construccedilatildeo e enquanto tal ela se presta a muacuteltiplas interpretaccedilotildees e leituras A Histoacuteria

estaacute sempre sendo construiacuteda e reconstruiacuteda como qualquer outra disciplina social ou

humana recebe influencias da conjugaccedilatildeo de forccedilas que se apossam dela e de outras

forccedilas que lutam por fazecirc-lo (Deleuze 1962)

Se deslocarmos as ideias sobre as forccedilas histoacutericas e sociais para o plano dos sujeitos

diremos que elas tecircm influencias nas construccedilotildees das subjetividades No entanto exis-

tiraacute uma relaccedilatildeo dialeacutetica continua entre ser influenciado pelas produccedilotildees da histoacuteria

e influenciar as mesmas Deste modo as vaacuterias modalidades interpretativas histoacutericas

e sociais e as construccedilotildees subjetivas estatildeo sempre podendo passar por reconstruccedilotildees

Uma das ideias exposta por Freud em ldquoPsicologia das Massas e anaacutelise do eurdquo eacute que as

relaccedilotildees que interferem no indiviacuteduo desde a sua infacircncia satildeo tambeacutem relaccedilotildees sociais

Ele diz a conhecida frase ldquoNa vida psiacutequica do indiviacuteduo considerado isoladamente o

outro interveacutem regularmente como modelo objeto suporte e adversaacuterio Por este fato

a psicologia individual eacute ao mesmo tempo e simultaneamente uma psicologia socialrdquo

(Freud 1981 p 123) Pode-se desmembrar esta ideia em outras (Carreteiro 1993) - a

identificaccedilatildeo qualquer que seja ela jaacute traz um social incorporado e as grandes noccedilotildees

do pensamento freudiano (pulsotildees fantasias projeccedilotildees etc) natildeo podem ser circunscri-

tas unicamente na perspectiva do pensamento individual agem igualmente no campo

social

A narrativa eacute uma modalidade de compreensatildeo das condiccedilotildees soacutecio histoacutericas de pro-

duccedilatildeo de vida dos sujeitos humanos Ela permite observar o conjunto de eixos que

intervecircm nas histoacuterias de vida (psiacutequicos familiares coletivos sociais econocircmicos e

tantos outros) Eacute atraveacutes da articulaccedilatildeo entre as diversas dimensotildees que atravessam o

indiviacuteduo que a construccedilatildeo subjetiva se faz mantendo sempre certo niacutevel de abertura

visto que a vida nas suas vaacuterias dimensotildees continua sempre pulsando

A narrativa oral ou escrita eacute um principio de expressatildeo do ser vivo que narra seus suces-

sos evoca suas experiecircncias sentimentos e emoccedilotildees sempre vinculados a seu universo

social (Enriquez 2002 p 36) A anaacutelise da histoacuteria de vida vai buscar compreender o

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trabalho da incorporaccedilatildeo da heranccedila ligada agraves origens sociais familiares e institucio-

nais Ela permite estudar as modalidades de como a histoacuteria coletiva tem influecircncia

sobre os destinos individuais (Gaulejac 2005)

Diversos campos teoacutericos estudam as narrativas de vida (Pineau amp Le Grand 1993) Nes-

te texto nos focalizaremos sobre o denominado ldquoRomance Familiar e Trajetoacuteria Socialrdquo

(Gaulejac amp Levy 2000) que faz uma vinculaccedilatildeo entre o que eacute da ordem do psiacutequico

e o que eacute da ordem do social Mas antes de abordaacute-lo percorreremos perspectivas que

tecircm proximidades teoacutericas e que auxiliam a melhor adentrar o campo de nosso estudo

A perspectiva etno socioloacutegica na qual se situa Bertaux (1971 1980) tem por objetivo

estudar um fragmento particular de realidade social histoacuterica compreender como ele

funciona e como se transforma enfocando as configuraccedilotildees das relaccedilotildees sociais os

mecanismos os processos as loacutegicas de accedilatildeo que o caracterizam Em sua obra Bertaux

propotildee chamar a histoacuteria de vida de abordagem biograacutefica (approche biographique)

Esta denominaccedilatildeo ressalta a construccedilatildeo progressiva de uma nova abordagem socioloacutegi-

ca a qual permite conciliar observaccedilatildeo e reflexatildeo Estudando as questotildees voltadas para

o trabalho propotildee denominar as narrativas de vida como narrativas de praacuteticas Sugere

que elas sejam compreendidas natildeo como um objeto uacutenico do qual se busca apreender o

sentido mas sim como um conjunto de relaccedilotildees pessoais e interpessoais As narrativas

de praacuteticas permitem a reconstruccedilatildeo da loacutegica de produccedilatildeo destas praacuteticas e sua vincula-

ccedilatildeo nas relaccedilotildees sociais Cada narrativa de praacutetica eacute concebida como a de um ser huma-

no que eacute influenciado sucessivamente por diferentes subconjuntos de relaccedilotildees sociais

A narrativa de praacutetica favorece a observaccedilatildeo do processo de distribuiccedilatildeo dos seres hu-

manos nas relaccedilotildees sociais o qual Bertaux denomina processo de antropo-distribuiccedilatildeo

Concebe a produccedilatildeo antroponocircmica como a produccedilatildeo da energia humana (Bertaux

1973) tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo (concretizaccedilatildeo na praacutexis

Ex energia do artesatildeo do homem de negoacutecios da dona de casa entre outros) A famiacute-

lia para o autor eacute o lugar principal de produccedilatildeo antroponocircmica Natildeo se refere agrave famiacute-

lia no sentido global mas especiacutefico operaacuteria burguesa camponesa entre outras As

relaccedilotildees que determinam as praacuteticas de cada uma delas satildeo diferentes O que vai ser

determinante eacute a vinculaccedilatildeo das famiacutelias nas relaccedilotildees de classe

35Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

O ser humano vai ser portador da maneira como ele eacute produzido Pode-se deste modo

afirmar que ele eacute portador de traccedilos de praacuteticas Esta questatildeo eacute importante pois toda

narrativa conteacutem elementos que se vinculam a forma como o narrador se insere no es-

paccedilo social do qual faz parte A ideia impliacutecita eacute que a perspectiva social tem uma forte

influecircncia na construccedilatildeo do humano e as modalidades de praacuteticas sociais satildeo incorpo-

radas ao sujeito

Eacute atraveacutes das narrativas que o sentido que os indiviacuteduos datildeo para suas accedilotildees vai poder

ser apreendido Toda narrativa faraacute referecircncias impliacutecitas ou expliacutecitas a diversos per-

tencimentos sociais a uma variedade de instituiccedilotildees grupos (famiacutelia escola trabalho

vida associativa amigos etc) e organizaccedilotildees Deste modo a dimensatildeo coletiva estaacute sem-

pre presente na narrativa Quando ela eacute oral se dirige sempre a um outro seja o ouvinte

uma pessoa um grupo ou ainda um pesquisador Quando eacute escrita pode ou natildeo ser

dirigida a um puacuteblico bem especifico como o citado acima

Quando estudamos a histoacuteria de vida podemos dizer que a narrativa autobiograacutefica eacute

uma praacutetica humana (Ferrarotti 1983) Ferrarotti considera se inspirando em Sartre

que toda praacutetica individual humana eacute uma atividade sinteacutetica uma totalizaccedilatildeo ativa do

conjunto do contexto social Uma vida eacute uma praacutetica que se apropria de relaccedilotildees sociais

as interiorizando e as retransformando em estruturas psicoloacutegicas atraveacutes da atividade

de desestruturaccedilatildeo-reestruturaccedilatildeo Em cada um de nossos atos sonhos deliacuterios e com-

portamentos encontramos o sistema social Para este autor todo indiviacuteduo eacute um poacutelo

ativo na rede de relaccedilotildees Quando afirma que ele tem uma praacutetica sinteacutetica quer signi-

ficar que ele se apropria do social o midiatizando o filtrando e o projetando em outra

dimensatildeo ou seja a dimensatildeo de sua subjetividade

Porque pensamos que a narraccedilatildeo da histoacuteria de vida permite conhecer natildeo soacute os in-

diviacuteduos mas ainda o contexto social no qual eles foram produzidos Pois ldquoSe cada

indiviacuteduo representa a reapropriaccedilatildeo singular do universo social e histoacuterico que o cerca

poderemos conhecer o social partindo da especificidade irredutiacutevel de uma praacutetica in-

dividualrdquo (Ferrarotti 1983 p 51) Por isto o autor considera ser possiacutevel conhecer ldquouma

sociedade atraveacutes de uma biografiardquo o que se desdobra na ideia de que uma biografia

natildeo eacute unicamente a narrativa de experiecircncias vividas por um indiviacuteduo mas ela se apre-

senta tambeacutem como uma microrrelaccedilatildeo social

36

Consideramos que a escuta e a anaacutelise das narrativas biograacuteficas devem poder estar

atentas a vaacuterios aspectos as zonas cronificadas que se repetem assim como as sinaliza-

ccedilotildees de movimentos espontacircneos e novos que participam de sua construccedilatildeo A escuta

plural vai ser sensiacutevel agrave pluralidade de dimensotildees que compotildeem as narrativas Por elas

natildeo serem unificadas mas poliformes a escuta deve poder detectar as nuances que as

compotildeem Elas tecircm sincronias ambiguidades contradiccedilotildees e ainda vaacuterias oscilaccedilotildees

pulsatoacuterias mesmo que estas sejam difiacuteceis de serem apreendidas Eacute a escuta sensiacutevel

que vai poder detectar estas dimensotildees e buscar junto com o narrador construir sen-

tidos Estes natildeo devem ser postulados como fixos pois satildeo sempre passiacuteveis de serem

reconstruiacutedos Os sentidos natildeo satildeo visto como compondo verdades mas hipoacuteteses que

mudam segundo as forccedilas que as atravessam Aqui seguimos Morin (1990) para quem

os fenocircmenos satildeo sempre muito mais complexos do que podemos apreender Enriquez

(2002) tambeacutem ajuda a pensar esta questatildeo ao afirmar que todo fenocircmeno teraacute zonas

de desconhecimento Estes dois autores ajudam a se ter uma posiccedilatildeo de humildade na

elaboraccedilatildeo de sentidos

A narrativa teraacute sempre um interlocutor real ou imaginaacuterio (Rheacuteaume 2012) A dimen-

satildeo relacional funciona como um suporte de acolhimento da produccedilatildeo da narrativa

Deve-se considerar que lugar social e simboacutelico se estaacute ocupando e a quem se fala (tanto

a dimensatildeo psiacutequica quanto social) Enfim existe um conjunto de forccedilas que partici-

pam na construccedilatildeo narrativa

As formas e os conteuacutedos que se desenvolvem ao longo da narrativa tecircm uma relaccedilatildeo

com o interlocutor e com o tipo de viacutenculo estabelecido entre o que escuta e o que narra

sua vida No caso de uma pesquisa entre entrevistado e entrevistador se forma uma

espeacutecie de feedback circular

A histoacuteria soacute eacute acessiacutevel pela memoacuteria que eacute coletiva e simboacutelica A memoacuteria eacute sempre

percebida em uma perspectiva dinacircmica ela estaacute sempre sendo reconstruiacuteda seu senti-

do eacute buscado atraveacutes de um trabalho de interpretaccedilatildeo que eacute determinado pela situaccedilatildeo

atual daquele que narra sua histoacuteria e do conjunto de circunstacircncias presentes na qual

se inclui a relaccedilatildeo com o pesquisador Entre os elementos presentes estatildeo tambeacutem as

exigecircncias do inconsciente O trabalho da memoacuteria natildeo existe sem o do luto e da perda

Ricoeur nos diz que ldquoestes trabalhos afetam nossos esforccedilos para narrar de outros mo-

dos nossas histoacuterias de vida sejam elas individuais ou coletivasrdquo (Ricœur 2004 p 2)

37Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

Egrave neste ponto que podemos introduzir a perspectiva do ldquoRomance Familiar e Trajetoacuteria

Socialrdquo (RFTS) (Gaulejac 2002) Ao mesmo tempo em que ela tem proximidades com

as outras abordagens descritas ela articula as dimensotildees soacutecio histoacutericas agraves exigecircncias

do inconsciente Poder pensar no engendramento destas dimensotildees nos faz evitar cair

em posiccedilotildees extremas que satildeo de um lado o sociologismo e do outro o psicologismo

Trata-se de ter leituras muacuteltiplas que se vinculam e permitem anaacutelises transdisciplina-

res Uma das originalidades do meacutetodo ldquoRomance Familiar e Trajetoacuteria Socialrdquo eacute poder

vincular a realidade objetiva dos fatos sociais e a realidade da experiecircncia subjetiva A

hipoacutetese levantada eacute que a histoacuteria pessoal eacute produzida por uma multideterminaccedilatildeo

de fatores (psiacutequicos sociais ideoloacutegicos econocircmicos poliacuteticos entre outros) e que a

construccedilatildeo subjetiva vai depender da arte de cada sujeito de se construir em permanecircn-

cia a partir dos diferentes eixos que o atravessam (Carreteiro 2002)

Os estudos e pesquisa oriundos da abordagem RFTS mostram existir em toda narrativa

de vida uma forte tensatildeo entre o sujeito produto da histoacuteria (que sofre o peso da histoacute-

ria) e o sujeito agente de historicidade ou seja aquele que quer ser autor de sua histoacuteria

e ser reconhecido como construtor de histoacuteria

Perspectivasmetodoloacutegicas

Toda pesquisa na orientaccedilatildeo RFTS tem uma visatildeo de emancipaccedilatildeo ou seja considera

que os sujeitos natildeo satildeo informantes mas ativos no processo de pesquisa e capazes com

os recursos que lhes satildeo disponiacuteveis de traccedilarem hipoacuteteses sobre suas vidas refletindo

sobre as influecircncias que as determinam Isto abre brechas para o desenvolvimento da

funccedilatildeo de historicidade que remete a compreensatildeo por parte dos sujeitos dos modos

atraveacutes dos quais eles satildeo produzidos pela histoacuteria e das possiacuteveis opccedilotildees que tiveram

na construccedilatildeo de suas trajetoacuterias considerando as determinaccedilotildees sociais conscientes e

inconscientes Natildeo eacute possiacutevel transformar o passado mas sim mudar as relaccedilotildees que

se tecircm com ele Neste ponto voltamos agrave questatildeo da memoacuteria Ela eacute dinacircmica e pode

sempre ser mobilizada pelo presente

A visatildeo de emancipaccedilatildeo que existe nestas pesquisas nos remete a um outro elemento

as transformaccedilotildees que os narradores podem vivenciar decorrente do trabalho sobre

suas histoacuterias de vida Podem ocorrer efeitos de mudanccedilas mesmo quando estes natildeo

38

foram previstos na construccedilatildeo da pesquisa Outras vezes eles satildeo esperados quando se

trata de uma pesquisa- intervenccedilatildeo

As pesquisas sobre histoacuteria de vida tecircm vaacuterios objetivos Pode-se por exemplo realizar

o desenvolvimento do conjunto de uma histoacuteria de vida deixando que o narrador faccedila as

pontuaccedilotildees que julgar conveniente Outra possibilidade eacute pesquisar recortes precisos

Os exemplos satildeo inuacutemeros narrativas laborais escolares amorosas entre tantas ou-

tras Qualquer que seja a dimensatildeo analisada eacute importante o pesquisador ter claro que

toda narraccedilatildeo eacute uma produccedilatildeo Ela eacute sempre uma interpretaccedilatildeo como jaacute dissemos feita

pelo narrador de parte de sua vida que por sua vez teraacute elementos do grupo social no

qual aquela narrativa se constroacutei A escuta do pesquisador tambeacutem passaraacute por filtros

Eacute importante lembrar Bourdieu (2004) quando se diz que a histoacuteria eacute sempre narrada

em um momento diferente de quando ela foi vivida A narraccedilatildeo sempre ocorre a poste-

riori (apreacutes coup) e eacute ai entatildeo que lhe atribuiacutemos um sentido e uma ordenaccedilatildeo O autor

considera ser uma ilusatildeo atribuir agraves biografias uma loacutegica sequencial Neste sentido a

ordenaccedilatildeo biograacutefica seraacute sempre uma construccedilatildeo o que Bourdieu denomina de ilusatildeo

biograacutefica O mundo no qual a biografia foi construiacuteda eacute sem ordenaccedilatildeo

Na maioria das vezes a pesquisa em ciecircncias humanas natildeo faz parte de uma encomen-

da submetida ao pesquisador A questatildeo da demanda deve entatildeo ser considerada visto

natildeo ser o narrador que se dirige ao pesquisador com uma demanda de investigaccedilatildeo O

que ocorre eacute o inverso Nestes casos podemos dizer que a demanda eacute do pesquisador

Eacute ele que se voltaraacute a determinadas pessoas e solicitaraacute que narrem aspectos de suas

trajetoacuterias de vida Takeuti (2009) considera que os pesquisadores captam demandas da

sociedade ou seja de problemas que remetem a indiviacuteduos em situaccedilotildees reais tensas A

pesquisa soacute se realizaraacute em um solo profiacutecuo se dois aspectos forem respeitados

bull Se a temaacutetica trabalhada compuser um campo de interesse ou preocupaccedilatildeo ao nar-

rador Neste caso ao longo do desenvolvimento da(s) entrevista(s) podemos ver

que haacute um compartilhamento da demanda Se ela no iniacutecio pertencia ao pesqui-

sador agrave medida que avanccedila tambeacutem eacute apropriada pelo narrador

bull Se houver confianccedila da parte do narrador no pesquisador Ele sente isto de vaacuterias

maneiras Percebe que a escuta natildeo eacute unicamente em relaccedilatildeo ao que narra mas

que haacute um interesse nele enquanto sujeito Os narradores apreendem de algum

39Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

modo quando a escuta eacute instrumentalizada e a diferenciam de uma escuta da

pessoa

O pesquisador deve ter tanto uma atenccedilatildeo ao narrador quanto a sua proacutepria implicaccedilatildeo

na pesquisa No que se refere ao primeiro sua escuta se voltaraacute ao que este diz sente

as reflexotildees expostas e as formas de comunicaccedilatildeo Mas ao mesmo tempo estaraacute atento

agrave repercussatildeo que o narrador e a narrativa tecircm sobre ele Aqui retomamos os termos

psicanaliacuteticos de transferecircncia e contra transferecircncia na pesquisa levando tambeacutem em

consideraccedilatildeo os elementos soacutecio histoacutericos Os elementos transferecircncia e contra trans-

ferecircncia natildeo satildeo alvos diretos do trabalho de pesquisa mas podem orientar a elaboraccedilatildeo

reflexiva do pesquisador e o tipo de interaccedilatildeo que ele manteacutem com o narrador Dito de

outro modo o trabalho de pesquisa natildeo eacute feito sobre a transferecircncia e a contra transfe-

recircncia mas estes elementos devem ser considerados (Revault drsquoAllonnes 1989)

Entre os objetos metodoloacutegicos podem ser construiacutedos suportes mediadores que fa-

cilitam a produccedilatildeo da narratividade Alguns auxiliam a objetivaccedilatildeo da histoacuteria de vida

(aacutervore genealoacutegica fotos correspondecircncias entre outros) outros auxiliam a expressi-

vidade como os desenhos e as dramatizaccedilotildees (Penso Conceiccedilatildeo Costa amp Carreteiro

2012) Muitos destes mediadores em um primeiro tempo servem como tela objetiva ou

projetiva Eles satildeo executados em um momento e soacute posteriormente se solicita que se

comente sobre o que foi produzido Os suportes satildeo importantes pois criam uma dis-

tacircncia em relaccedilatildeo ao vivido Eacute soacute no segundo tempo quando a narratividade eacute solicitada

que uma reflexatildeo mais ativa eacute engendrada

A construccedilatildeo metodoloacutegica pode ser entatildeo bastante variada Ela vai depender do grupo

ou das pessoas que estatildeo participando da pesquisa e dos objetos de estudo do pesquisa-

dor A construccedilatildeo metodoloacutegica eacute feita em funccedilatildeo do objeto pesquisado

Umapesquisaemanaacutelise

Trata-se de uma pesquisa que focalizou a histoacuteria laboral O recorte aqui apresentado se

voltaraacute para o projeto profissional de jovens adultos onde este foi analisado a partir da

metodologia de historia de vida laboral Era solicitado aos entrevistados que narrassem

suas trajetoacuterias de trabalho a partir de eixos temaacuteticos que pudessem cobrir de modo

cronoloacutegico os estudos e as formaccedilotildees realizadas as influecircncias familiares e de contex-

40

to e as ideias referentes aos contextos empregatiacutecios atuais Antes de nos focarmos na

pesquisa propriamente dita abordaremos questotildees atuais relativas ao trabalho anali-

sando suas repercussotildees subjetivas

Axel Honnett (2000) afirma que tanto Hegel quanto Mead insistem sobre a necessida-

de que cada indiviacuteduo tem de ser reconhecido como um sujeito singular digno de amor

digno de ser considerado como um verdadeiro cidadatildeo reconhecido pelos outros e os

reconhecendo

Ter um trabalho se constitui como um dos siacutembolos da contribuiccedilatildeo do indiviacuteduo para

a sociedade em que se encontra Sem trabalho ou com trabalhos precaacuterios sem ser re-

conhecido como digno de estima o indiviacuteduo se qualifica como um cidadatildeo diminuiacutedo

(Carreteiro 1993) acendendo minimamente a estima de si Isto eacute gerador de sofrimen-

to pois ele se vecirc distanciado dos grandes projetos da sociedade se sente responsaacutevel

por seu fracasso e tem grande inseguranccedila em relaccedilatildeo ao futuro (Sennett 2004) Deste

modo inferimos que a precariedade e a instabilidade presentes no mercado de trabalho

satildeo geradoras de sofrimento pois os sujeitos temem se aproximar da figura de inuti-

lidade social (Carreteiro 1999) que os remete a ausecircncia de reconhecimento que os

alimenta narcisicamente

Ao mesmo tempo em que se refere a uma atividade econocircmica o trabalho eacute um aspecto

central na construccedilatildeo subjetiva (Carreteiro amp Barros 2011 Gaulejac 2011) O traba-

lho considerado na sua complexidade envolve vaacuterios campos da vida humana como

o fazer o ter e o ser enfim nada lhe escapa (Gaulejac 2011) Todo trabalhador atende

continuamente agraves demandas do psiquismo e do social o que remete a pensarmos em

uma perspectiva cliacutenica (Lhuilier 2006) As praacuteticas laborais produzem sentido se refe-

rindo por um lado agrave proacutepria atividade do trabalho (Clot 2011) e por outro permitindo

a construccedilatildeo progressiva dos sujeitos ao longo de suas vidas (Amado amp Enriquez 2011)

As grandes mudanccedilas ocorridas nesse uacuteltimo quarto de seacuteculo acarretaram um movi-

mento em que as pessoas se responsabilizam individualmente pela situaccedilatildeo contempo-

racircnea de desemprego trabalho informal e instabilidade empregatiacutecia Percebe-se que

se invertem cruelmente as loacutegicas de compreensatildeo da situaccedilatildeo se retira do mercado de

trabalho a causalidade e a localiza no indiviacuteduo lhe atribuindo a responsabilidade por

exemplo pelo desemprego Essa eacute uma das questotildees inerentes agrave proacutepria organizaccedilatildeo

41Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

neoliberal do trabalho As exigecircncias sobre as pessoas natildeo cessam de aumentar dando-

-lhes a sensaccedilatildeo de estarem sempre aqueacutem

Os cacircmbios acelerados nas atividades laborais tecircm atingido todo e qualquer trabalhador

Na pesquisa que mencionamos interrogamos sobre as diferenccedilas nas formas de socia-

lizaccedilatildeo referentes ao trabalho de duas geraccedilotildees (50-60 e 20-30) de uma mesma famiacutelia

que eixos as atravessam que representaccedilotildees constroem sobre os contextos de trabalho

que valores lhes associam e o que transmitem ou pretendem transmitir agraves proacuteximas

geraccedilotildees O recorte que fazemos neste texto nos faraacute abordar somente a geraccedilatildeo mais

nova e destacar duas zonas de sentido (Gonzaacutelez-Rey 2002) A obrigaccedilatildeo de se adquirir

muitas formaccedilotildees e O serviccedilo puacuteblico como campo de projetos profissionais

Aobrigaccedilatildeodeseadquirirmuitasformaccedilotildees

Sennett (2004) aponta como consequecircncia do ldquonovo capitalismordquo a sensaccedilatildeo de inse-

guranccedila Esta assola o conjunto da sociedade e natildeo oferece condiccedilotildees para se planejar o

futuro em longo prazo Em face desta realidade os jovens adultos pensam seguindo os

ditames do mercado que devem se equipar com cursos e formaccedilotildees diversas para poder

enfrentar o mercado de trabalho

Esta geraccedilatildeo vivecircncia a instabilidade empregatiacutecia e sente a obrigaccedilatildeo de adquirir qua-

lificaccedilotildees contiacutenuas para ingressar continuar ou evoluir no mercado de trabalho Haacute

o sentimento de estar sempre aqueacutem das exigecircncias demandadas Pode-se aproximar

este aspecto do que Erhenberg (1998) denomina ldquoindiviacuteduo insuficienterdquo aquele que

incorpora as exigecircncias sociais de se superar continuamente

Mas as formaccedilotildees tambeacutem tecircm efeitos paradoxais visto que haacute jovens que tecircm cursos

universitaacuterios e estatildeo exercendo empregos de niacutevel meacutedio Eles apesar da escolaridade

natildeo conseguiram encontrar empregos compatiacuteveis com suas formaccedilotildees Muitos deles

apoacutes a conclusatildeo dos estudos e um periacuteodo de desemprego assumem a estrateacutegia de

natildeo mencionar no curriacuteculo a escolaridade superior No entanto estas mesmas pessoas

natildeo abandonam o interesse de realizar cursos

Os jovens geralmente de extratos sociais meacutedios ou altos sabedores da grande compe-

ticcedilatildeo existente no mercado de trabalho sentem que devem estar sempre se atualizando

42

Este eacute um modo de se manterem competitivos e tentarem fazer face agraves exigecircncias sem-

pre maiores de seus trabalhos Vivem uma pressatildeo para natildeo se tornarem obsoletos em

suas formaccedilotildees e competecircncias Adquirir novos conhecimentos compotildee as diretrizes

que se obrigam a seguir A frase ldquodeve-se ter um diferencialrdquo eacute bastante comum entre os

jovens Haacute nesta ideia um quadro impliacutecito de competiccedilatildeo onde os mais qualificados

satildeo os que tecircm melhores postos

As anaacutelises apontaram que eacute presente entre muitos jovens com niacutevel de escolaridade

universitaacuterio o desejo de ter um emprego na funccedilatildeo puacuteblica

Oserviccedilopuacuteblicocomocampodeprojetosprofissionais

A instabilidade e os processos de intensificaccedilatildeo presentes no mundo do trabalho levam

muitos jovens a terem como projeto realizar concursos para se tornarem funcionaacuterios

puacuteblicos

Este dado em nossa pesquisa foi mais presente em pessoas que tinham niacutevel universitaacute-

rio Havia famiacutelias que tinham forte inscriccedilatildeo no puacuteblico Deste modo o puacuteblico era de

um lado um aspecto da heranccedila familiar e do outro era reforccedilado pelo difiacutecil contexto

empregatiacutecio atual onde a instabilidade adquire um peso determinante Para outras

pessoas o puacuteblico natildeo se inscrevia como heranccedila mas era mobilizado por questotildees de

contexto Para todos o puacuteblico era considerado como promotor de estabilidade Natildeo

eram as condiccedilotildees previdenciaacuterias que eram mobilizadas mas sim evitar um contexto

instaacutevel

Havia pessoas com niacutevel universitaacuterio que realizavam os concursos disponiacuteveis para

o niacutevel meacutedio O objetivo era ter um trabalho e posteriormente continuar realizando

concursos ateacute alcanccedilar a funccedilatildeo almejada Neste sentido se pode dizer que a maior parte

do cotidiano deles se concentra em estudar para concursos Podemos denominaacute-los

subjetividades concursantes (Oliveira 2010) No entanto estas pessoas constroem tra-

jetoacuterias mutantes quando almejam encontrar outro lugar profissional dentro do serviccedilo

puacuteblico

43Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

Estudar e realizar concursos condensam aspectos que satildeo muito evidentes no mercado

de trabalho atual a exigecircncia de se estudar e a forte competiccedilatildeo O numero de vagas

nos concursos eacute pequeno face ao grande numero de candidatos daiacute os entrevistados

se sentirem obrigados a estudarem muito O cotidiano se concentra em torno de uma

riacutegida rotina de estudos Muitos se sentem culpados quando estatildeo realizando atividades

que lhes afastam dos estudos

Se fizermos uma vinculaccedilatildeo entre a primeira parte deste texto e esta segunda onde

citamos brevemente a pesquisa sobre histoacuteria de vida laboral podemos elaborar as se-

guintes construccedilotildees

bull As narrativas laborais dos jovens que almejam ter uma funccedilatildeo puacuteblica e os que jaacute

estatildeo no serviccedilo puacuteblico se apresentam como ldquotraccedilos de praacuteticas sociaisrdquo dos con-

curseiros Eles expotildeem suas ideias sobre o mercado de trabalho como compotildeem

os seus cotidianos e suas anguacutestias Os que ainda natildeo conseguiram ingressar nar-

ram seus sentimentos suas ansiedades e os medos de fracasso Outros estatildeo tatildeo

mobilizados que apresentam traccedilos depressivos bastante acentuados

bull Os que jaacute tecircm um trabalho puacuteblico querem alcanccedilar outra funccedilatildeo que corresponda

mais aos seus anseios e ambiccedilotildees profissionais Eles em vaacuterias ocasiotildees se sentem

desencorajados por estarem construindo suas vidas em torno de dois poacutelos traba-

lho e estudo Muitos parecem dilacerados entre continuar a riacutegida rotina estabele-

cida ou se acomodar em uma posiccedilatildeo jaacute conquistada

bull Muitas famiacutelias participam ativamente do processo de estudo dos filhos o que nos

leva a pensar em ldquofamiacutelias concursantesrdquo Satildeo aquelas que criam todas as condi-

ccedilotildees para facilitarem o estudo dos filhos Elas projetam neles seus ideais ou os

acompanham em seus ideais

Contratransferecircncianapesquisa

A equipe desta pesquisa eacute de jovens bolsistas que ainda natildeo concluiacuteram o curso de

Psicologia ou de jovens psicoacutelogas que tecircm pouco tempo de formadas e ainda vivem

uma indefiniccedilatildeo profissional Este fato muitas vezes cria uma grande identificaccedilatildeo com

os narradores Eacute necessaacuterio poder forjar condiccedilotildees de elaboraccedilatildeo para estabelecer uma

distanciaccedilatildeo entre narrador e pesquisador para que uma escuta atenta agraves nuances da

44

narrativa possa ocorrer A possibilidade de ter um grupo de pesquisa permite este traba-

lho pois cada pesquisador contribui com visotildees diferentes da anaacutelise da situaccedilatildeo

Conclusatildeo

A pesquisa com a histoacuteria de vida laboral tem mostrado as grandes contradiccedilotildees exis-

tentes no mundo hiper moderno Ao mesmo tempo em que as referecircncias em todos os

campos satildeo volaacuteteis fluiacutedas (Bauman 2002) e os sujeitos sociais parecem se adequar

a esta fluidez existe o desejo de se ter referecircncias mais estaacuteveis Eacute isto que observamos

no campo empregatiacutecio quando muitos jovens optam pelo serviccedilo puacuteblico como lugar

de realizaccedilatildeo profissional No entanto para poderem tentar viabilizar este projeto em-

penham um tempo enorme e uma grande mobilizaccedilatildeo psiacutequica Surgem sentimentos

diversos frutos do desconhecimento de como seraacute o resultado do esforccedilo para a reali-

zaccedilatildeo dos concursos Os sujeitos concursantes se angustiam pois duvidam em muitos

momentos se poderatildeo construir um lugar social mais soacutelido pelo trabalho

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Sulina

47 Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

BrunoNogueira

LianaFortunatoCosta

Esse texto tem por objetivo apresentar uma metodologia de atendimento grupal a ado-

lescentes que cometeram ofensa sexual2 Desde 2001 autores vinculados ao Progra-

ma de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura da Universidade de Brasiacutelia e ao

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia da Universidade Catoacutelica de Brasiacutelia em

pesquisa interinstitucional vecircm desenvolvendo adaptaccedilotildees da metodologia de Grupo

Multifamiliar para diferentes contextos de intervenccedilatildeo psicossocial (Costa Penso amp

Almeida 2005 Costa Almeida Ribeiro amp Penso 2009) A partir de 2009 iniciou-

-se mais uma experiecircncia em continuidade a essas adaptaccedilotildees desta vez em relaccedilatildeo a

2 Texto baseado em Nogueira B (2012) Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual Dissertaccedilatildeo de mestrado em Psicologia Cliacutenica e Cultura Universidade de Brasiacutelia Orientadora Liana Costa Fortunato

48

adolescentes que cometeram ofensa sexual e suas famiacutelias (Costa Ribeiro Junqueira

Meneses amp Stroher 2011) Em 2012 o primeiro autor desse texto buscou investigar so-

bre a expressatildeo da sexualidade envolvendo esses sujeitos ainda na perspectiva de cons-

truccedilatildeo de conhecimento no contexto do Grupo Multifamiliar Sendo assim o texto trata

principalmente da descriccedilatildeo desse meacutetodo de atendimento grupal a esses adolescentes

e suas famiacutelias

AdolescentesqueCometeramAbusoSexual

A definiccedilatildeo de cometimento de violecircncia sexual por adolescentes eacute muito ampla e natildeo

oferece a possibilidade de elaboraccedilatildeo de um perfil do agressor pois natildeo estamos falando

de pedofilia (Oliver 2007 Seto 2009) Nossa referecircncia para apontar a conduta do ado-

lescente que comete ofensa sexual baseia-se nas observaccedilotildees de Chagnon (2008) que

aponta esse ato violento como decorrecircncia de um acting out produzido pela constacircncia

de praacuteticas educativas familiares erradas ou seja violentas

A Vara da Infacircncia e da Juventude do Tribunal de Justiccedila do Distrito Federal e Territoacuterios

identificou no periacuteodo de 2010 a 2011 uma incidecircncia maior de abuso sexual cometido

por adolescentes mais do que por adultos (VIJCEREVS 2011) resultado diferente do

que as pesquisas tradicionalmente apontam (Abrapia 2003 Aded Dalcin amp Cavalcanti

2007) O resultado da VIJDF nos interessa pois se trata de nosso contexto de estudo e

atuaccedilatildeo No entanto eacute necessaacuterio mais pesquisas para identificar se a maior incidecircncia

desses atos eacute cometida por adolescentes e eacute vaacutelido considerar pesquisas que afirmam

que as primeiras experiecircncias de abuso sexual de adultos foram no periacuteodo da adoles-

cecircncia (Oliver 2007)

A literatura internacional tem produzido ao longo de cinco deacutecadas muitas informaccedilotildees

sobre adolescentes que cometeram abuso sexual Worling e Langstroumlm (2003) identi-

ficaram que natildeo eacute o fato do adolescente ter sofrido abuso sexual na sua infacircncia que

configura um fator determinante para reproduzir a violecircncia As histoacuterias de violecircncia

entre pais e filhos e o isolamento social constituem para esses autores como os fatores

de risco para o desenvolvimento de uma sexualidade ofensiva nos adolescentes O uso

de uma pedagogia da violecircncia como recurso educativo dos pais e relaccedilotildees familiares ad-

jetivadas pela ausecircncia de trocas afetivas satildeo caracteriacutesticas geralmente encontradas em

49Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

famiacutelias de adolescentes que cometeram abuso sexual (Chagnon 2008 Costa 2012

Marshall 2001)

Para se obter o efeito esperado os fatores de proteccedilatildeo que auxiliam no combate a situ-

accedilotildees individuais familiares e sociais de riscos devem ser de natureza transversal Na

dimensatildeo individual as pesquisas identificaram que o desenvolvimento de orientaccedilatildeo

proacute-social a estimulaccedilatildeo da resiliecircncia o desenvolvimento para a autonomia autoesti-

ma e autoeficaacutecia representam objetivos a serem alcanccedilados no tratamento Na dimen-

satildeo familiar os fatores protetivos satildeo relaccedilotildees significativas e iacutentimas pelo menos com

um dos pais valores parentais proacute-sociais supervisatildeo monitoramento dos pais rela-

ccedilotildees de cuidado e proteccedilatildeo estaacuteveis No ambiente escolar as relaccedilotildees positivas entre pro-

fessores e adolescentes e o envolvimento destes uacuteltimos com as atividades escolares

configuram em importantes fatores de proteccedilatildeo Na dimensatildeo da comunidade alguns

dos fatores protetivos satildeo as atividades recreativas e o relacionamento com outros adul-

tos com valores proacute-sociais E por fim na relaccedilatildeo com os grupos de pares os fatores de

proteccedilatildeo satildeo relaccedilotildees positivas e iacutentimas e relaccedilotildees com amigos com valores proacute-sociais

(Rich 2009 Rogers 2000)

OsGruposMultifamiliaresemSituaccedilotildeesdeAbusoSexual

A proposta dos Grupos Multifamiliares (GM) possui sua gecircnese na Terapia Multifa-

miliar adotada por psicoacutelogos e assistentes sociais nos Estados Unidos e no Canadaacute

(Laquer 1976) Os fundamentos epistemoloacutegicos dessa metodologia satildeo a psicoterapia

de grupo e a terapia familiar (Narvaz 2010) O GM articula vaacuterios fatores facilitadores

identificados pela psicoterapia de grupo (vivecircncia comum do sofrimento reaccedilatildeo de es-

pelho pelas ressonacircncias e identificaccedilotildees experiecircncia emocional corretiva solidarieda-

de e oportunidade de troca e ajuda muacutetua entre outros) com as noccedilotildees sistecircmicas da

terapia familiar (circularidade criatividade espontaneidade)

A adaptaccedilatildeo do GM para situaccedilotildees de abuso sexual foi estudada extensamente por Cos-

ta et a 2005 Costa et al 2009 e Costa et al 2011 como jaacute apontado na introduccedilatildeo

desse texto O GM eacute considerado como um modelo de atendimento psicossocial que

se fundamenta em cinco aportes teoacutericos o da Psicologia Comunitaacuteria com a proposta

de Santos (1999) de articular diferentes saberes cientiacuteficos e populares o da Psicologia

Social Criacutetica e Histoacuterica a qual percebe o ser humano em uma relaccedilatildeo dialeacutetica com

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o seu meio (Lane amp Sawaia 1995) o da Terapia Familiar que concebe a famiacutelia como

um sistema e consequentemente a relaccedilatildeo familiar eacute o ponto focal do trabalho tera-

pecircutico (Minuchin Colapinto amp Minuchin 1999) Em outras palavras a valorizaccedilatildeo

maior eacute a da dimensatildeo interpsiacutequica O Sociodrama (Moreno 1993) eacute outro aporte que

fundamenta este GM ao conceber o grupo como protagonista e as famiacutelias possuindo

objetivos em comum E por fim o uacuteltimo marco teoacuterico eacute a Teoria das Redes Sociais

(Sluzki 1996) que enfoca a interaccedilatildeo humana como troca de experiecircncia desenvolven-

do a capacidade autorreflexiva e autocriacutetica

Essa articulaccedilatildeo busca atender ao puacuteblico alvo que satildeo famiacutelias pertencentes agraves classes

D (renda familiar de dois a quatro salaacuterios miacutenimos) e E (renda familiar ateacute dois salaacuterios

miacutenimos) e que pouco tecircm acesso aos profissionais da sauacutede mental e o atendimento

raramente eacute efetivado na perspectiva sistecircmica (a famiacutelia como cliente) Aleacutem disso o

modelo de atendimento deve considerar ainda as atribuiccedilotildees da interface Psicologia e

Direito (Costa et al 2005 Costa et al 2011) pois esses adolescentes satildeo muitas vezes

encaminhados pelo sistema justiccedila

O meacutetodo do GM apresenta vaacuterias vantagens principalmente no contexto da sauacutede puacute-

blica Narvaz (2010) lista estas vantagens o grupo possibilita aos participantes diminu-

iacuterem a intensidade do controle e das defesas de modo que permita o desenvolvimento

de uma discussatildeo livre os membros satildeo encorajados a responder uns aos outros espon-

taneamente o GM estimula as famiacutelias mutuamente de modo que aspectos saudaacuteveis e

criativos emerjam com a intenccedilatildeo de romper com os padrotildees disfuncionais mantenedo-

res do sistema (o grupo promove novas visotildees e narrativas sobre os problemas compar-

tilhados de modo que a famiacutelia construa novos significados sobre suas dificuldades) as

famiacutelias podem significar o grupo como uma comunidade empenhada na resoluccedilatildeo dos

problemas o GM promove a formaccedilatildeo de redes de apoio reciacuteproco entre os membros

o GM neutraliza o isolamento de famiacutelias (principalmente quando estas vivenciam si-

tuaccedilotildees de violecircncia) oferecendo forccedila objetividade e modelos de um grupo de iguais

o GM possibilita a construccedilatildeo de um espaccedilo de escuta diferenciado fundamentado em

relaccedilotildees de confianccedila de solidariedade e de accedilatildeo coletiva Aleacutem destes benefiacutecios o GM

eacute um modelo de terapia breve e com um investimento natildeo tatildeo oneroso para a sauacutede

puacuteblica Costa et al (2005) identificaram outro importante benefiacutecio do GM no contexto

juriacutedico Ele pode ocorrer enquanto o moroso processo judicial tramita de modo que

51Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

o atendimento do GM possa contribuir com a justiccedila na conclusatildeo dos casos de abuso

sexual

Como todo meacutetodo de intervenccedilatildeo o GM apresenta alguns limites O GM pode apre-

sentar um menor controle sobre os casos e dessa forma pode comprometer a eficaacutecia

da terapecircutica Identificou-se tambeacutem que haacute a possibilidade do terapeuta natildeo se en-

volver ativamente com alguma famiacutelia uma vez que o grupo que eacute o cliente e natildeo uma

famiacutelia especiacutefica O GM oferece perigo de uma identificaccedilatildeo predominantemente pro-

blemaacutetica com outras famiacutelias que tecircm funcionamento semelhante ao dele e permite

que a pressatildeo sobre os terapeutas para provocar mudanccedilas estenda-se a um grupo

mais numeroso de co terapeutas Aleacutem do exposto a proacutepria temaacutetica do abuso sexual

eacute um fator de complicaccedilatildeo por tocar numa dimensatildeo muito privada da experiecircncia hu-

mana ndash a intimidade ndash dificultando o conhecimento sobre os conflitos inerentes deste

tipo de violecircncia sexual (Narvaz 2010 Costa et al 2005)

ComosefazoGM

Eacute preciso informar que essa descriccedilatildeo aqui apresentada foi baseada em uma pesquisa

qualitativa cujo contexto de realizaccedilatildeo foi o Centro de Orientaccedilatildeo Meacutedico-Psico pedagoacute-

gica ndash COMPP oacutergatildeo pertencente agrave Secretaria de Estado de Sauacutede do Distrito Federal

(SES-DF) O objetivo do COMPP eacute prestar atendimentos de natureza multi e interdisci-

plinar em sauacutede mental (neuropediatras psiquiatras psicoacutelogos nutricionistas fono-

audioacutelogos pedagogos psicopedagogos assistentes sociais enfermeiros e professores

de educaccedilatildeo fiacutesica) agrave crianccedila ao adolescente e seus respectivos familiares do Distrito

Federal e do entorno em diferentes niacuteveis de prevenccedilatildeo (primaacuteria secundaacuteria e terciaacute-

ria) A Unidade acolhe tanto pacientes que apresentam sofrimento psiacutequico leve como

grave (neurose psicose transtornos invasivos do desenvolvimento entre outros) A meacute-

dia anual de atendimentos eacute de 34 mil A adoccedilatildeo de meacutetodos grupais visa maximizar

atendimentos e otimizar tanto filas de espera como encaminhamentos provenientes do

sistema de Justiccedila

Seleccedilatildeo das famiacutelias - Para a seleccedilatildeo das famiacutelias participantes utilizou-se como instru-

mento de apoio uma entrevista semiestruturada com a finalidade de obter informaccedilotildees

sobre a estrutura familiar as condiccedilotildees socioeconocircmicas as regras familiares caracte-

riacutesticas da violecircncia cometida pelo adolescente entre outras informaccedilotildees Essa entrevis-

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ta eacute realizada antes do iniacutecio do GM Os criteacuterios de inclusatildeo no GM satildeo adolescentes

do sexo masculino com idade entre 12 e 18 anos incompletos encaminhados pela rede

de proteccedilatildeo do Distrito Federal e do entorno (Conselho Tutelar ndash CT Centro de Referecircn-

cia de Assistecircncia Social ndash CRAS Ministeacuterio Puacuteblico do Distrito Federal e Territoacuterios

ndash MPDFT ndash e Vara da Infacircncia e da Juventude ndash V I J) que abusaram sexualmente de

alguma crianccedila da famiacutelia ou de alguma crianccedila de convivecircncia proacutexima Os criteacuterios de

exclusatildeo satildeo adolescentes com deficiecircncia mental que cometeram abuso sexual adoles-

centes sem viacutenculos familiares e adolescentes com 18 anos completos

Procedimentos - Apoacutes a seleccedilatildeo das famiacutelias o GM se iniciou com um planejamento de

sete encontros Cada encontro teve a duraccedilatildeo meacutedia de trecircs horas Em relaccedilatildeo agrave equipe

de atendimento esta foi composta por cinco psicoacutelogos (um do sexo masculino e qua-

tro do sexo feminino) uma assistente social dois estagiaacuterios de psicologia (um do sexo

masculino e uma do sexo feminino) e uma estagiaacuteria de pedagogia A infraestrutura foi

composta por uma sala grande o suficiente para reunir todos os membros de todas as

famiacutelias mais trecircs salas meacutedias para realizar atividades com grupos especiacuteficos

Os subgrupos eram de pais e matildees (alocados na sala grande e tiveram como profissio-

nais responsaacuteveis uma psicoacuteloga uma assistente social e o apoio de um estagiaacuterio de

psicologia que foi responsaacutevel pelo registro dos encontros) de adolescentes que come-

teram abuso sexual (alocados em uma das salas meacutedias e tiveram como profissionais

responsaacuteveis um psicoacutelogo uma psicoacuteloga e o apoio de uma estagiaacuteria de psicologia

quem foi responsaacutevel pelo registro dos encontros) de adolescentes do sexo feminino

(alocados em sala meacutedia e tiveram como profissional responsaacutevel uma psicoacuteloga e o

apoio de uma estagiaacuteria de pedagogia quem foi responsaacutevel pelo registro dos encon-

tros) e de crianccedilas (alocados na outra sala meacutedia com uma psicoacuteloga infantil) Antes

de prosseguir eacute importante fazer a seguinte nota O subgrupo de adolescentes do sexo

feminino foi estabelecido na medida da necessidade em funccedilatildeo desse grupo conter

muitas adolescentes meninas

Os temas dos encontros foram adaptados da proposta de Costa et al (2011) que contem-

pla a discussatildeo dos temas da proteccedilatildeo e do cuidado tanto de crianccedilas como de adoles-

centes que cometeram ofensas sexuais a sexualidade de todos os membros familiares

a responsabilizaccedilatildeo dos adolescentes que cometeram abuso sexual pelo ato cometido

assim como a responsabilidade dos pais e das matildees a transgeracionalidade da violecircncia

53Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

e um projeto de futuro das relaccedilotildees familiares Dessa forma os encontros foram assim

estabelecidos primeiro encontro ldquoProteccedilatildeo eu preciso proteger outras crianccedilas mas

ainda preciso de proteccedilatildeordquo segundo encontro ldquoSexualidade o que eacute e como expressordquo

terceiro encontro ldquoFantasias quebrando o tabu e compartilhando segredosrdquo quarto

encontro ldquoViolecircncia eacute um crime nenhum tipo de violecircncia tem justificativardquo quin-

to encontro ldquoGenograma precisamos conhecer as histoacuterias de nossos antepassadosrdquo

sexto encontro ldquoApresentaccedilatildeo dos Genogramas Vamos compartilhar o que temos em

comum e o que temos de diferenterdquo seacutetimo encontro ldquoProjeto de futuro da Relaccedilotildees

Familiares organizar o presente para um futuro conscienterdquo Essa proposta possibilitou

oferecer aos participantes um espaccedilo de escuta para o sofrimento particular de cada

famiacutelia e de cada membro familiar assim como suas duacutevidas sentimentos e pensamen-

tos de modo a promover mudanccedilas na relaccedilatildeo intrafamiliar

Dinacircmica do GM - Cada encontro do GM se desenvolveu em trecircs etapas definidas A

primeira etapa foi o aquecimento na qual todas as famiacutelias foram reunidas com o obje-

tivo de promover a integraccedilatildeo do grupo bem como preparar todos os participantes para

a conversaccedilatildeo do tema especiacutefico do encontro A etapa seguinte ndash desenvolvimento ndash

aprofunda os objetivos do tema do dia Nessa etapa subdivide-se o grupo por criteacuterio de

idade adultos adolescentes e crianccedilas Essa subdivisatildeo permite a adequaccedilatildeo da conver-

saccedilatildeo referente a cada grupo etaacuterio jogos dramaacuteticos debates role playing desenhos

colagens Ao final desta etapa cada subgrupo elabora um informe do que foi produzido

em grupo E por fim o uacuteltimo momento ndash fechamento ndash consiste na reuniatildeo de todos

os presentes com o objetivo de compartilhar o informe elaborado na etapa anterior

PlanejamentodosEncontros

1ordmEncontroProteccedilatildeo eu preciso proteger outras crianccedilas mas ainda preciso de proteccedilatildeo

A escolha do tema proteccedilatildeo como ponto de partida para ao iniacutecio do trabalho se fun-

damenta nas orientaccedilotildees de Fishman (1996) que afirma que ao atender famiacutelias que

se comunicam por meio da violecircncia eacute necessaacuterio fazer uma rica e profunda reflexatildeo

sobre as consequecircncias negativas do uso da violecircncia nas relaccedilotildees e sobre a proteccedilatildeo

A proposta eacute que as famiacutelias atualizem o seu contrato relacional e que a regra de natildeo

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cometer mais violecircncia possa dirigir as accedilotildees entre os membros familiares Para atingir

este objetivo adotamos a estrateacutegia abaixo descrita

Momento Aquecimento - O primeiro momento do GM aconteceu com a apresentaccedilatildeo

da equipe de trabalho com a explanaccedilatildeo da proposta dos encontros e respectivos obje-

tivos do grupo Em seguida foi solicitado a cada participante que falasse brevemente

sobre si proacuteprio enquanto enrolava um pedaccedilo de barbante no dedo indicador de uma

das matildeos Apoacutes este momento foi proposto o jogo dramaacutetico ldquoO gato e o ratordquo Neste

jogo um participante por livre escolha fez o papel do gato e outros trecircs escolheram

fazer o papel do rato Os demais participantes do grupo fizeram uma grande roda com

as matildeos dadas O objetivo do gato eacute furar a roda e pegar os ratos que estatildeo dentro da

roda O objetivo do grupo eacute proteger o rato fazendo da uniatildeo dos corpos uma muralha

Apoacutes os comentaacuterios sobre essa brincadeira foi feita a divisatildeo do grupo em subgrupos

de pais adolescentes masculinos adolescentes femininos e crianccedilas

Momento Desenvolvimento Subgrupo de Adolescentes - O iniacutecio da atividade ocorreu

com o debate sobre o conceito da palavra proteccedilatildeo entre os adolescentes Apoacutes o debate

foi solicitado aos adolescentes que relatassem os momentos em que eles se sentiram

protegidos e os momentos que eles tiveram que proteger algueacutem E em seguida foi

solicitado que eles relatassem os momentos em que eles se sentiram desprotegidos ao

longo da vida Foi promovida uma reflexatildeo profunda isto eacute procurou-se saber quais

eram as implicaccedilotildees emocionais e comportamentais de estar em uma situaccedilatildeo de des-

proteccedilatildeo Por fim foi trabalhada a reflexatildeo com os adolescentes quando eles mesmos

se colocam em risco A intenccedilatildeo de aprofundar essas reflexotildees eacute instrumentalizar o

adolescente a procurar ajuda de poder analisar melhor as situaccedilotildees em que eles estatildeo

inseridos e de tomar decisotildees conscientes Ao final do debate os adolescentes elabora-

ram uma siacutentese do que foi discutido com a finalidade de apresentar para os demais

subgrupos no momento do fechamento

Momento Fechamento - Ao final do encontro cada subgrupo apresentou para os de-

mais participantes do GM o material produzido Apoacutes as apresentaccedilotildees foi solicitado agraves

famiacutelias que conversassem sobre o que foi discutido no encontro e que nova proposta de

relaccedilatildeo e organizaccedilatildeo familiar pudesse ser dialogada entre os membros de cada famiacutelia

Ao fim do encontro foi feita uma dinacircmica de grupo com o objetivo de avaliar como

55Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

foi o encontro Posicionou os participantes e terapeutas em roda e todos avaliaram o

encontro em uma palavra

2ordmEncontro Sexualidade o que eacute e como expresso

A razatildeo de se enfocar essa temaacutetica fundamenta-se em experiecircncias anteriores do proacute-

prio GM nas quais os adolescentes confundem os conceitos de sexo e sexualidade Ou-

tra razatildeo diz respeito aos adolescentes trazerem na proacutepria histoacuteria de expressatildeo de sua

sexualidade a associaccedilatildeo entre sexualidade e violecircncia e a dissociaccedilatildeo entre sexo e afeto

(Costa 2012) A utilizaccedilatildeo de um discurso de gecircnero como recurso de intervenccedilatildeo para

o desenvolvimento da associaccedilatildeo entre sexo e afeto e a dissociaccedilatildeo entre sexualidade e

violecircncia para o presente autor e a presente autora eacute a melhor estrateacutegia Nesse mo-

mento eacute fundamental a reflexatildeo com os adolescentes de como eacute a experiecircncia de ser

homem Nessa discussatildeo subtemas como a virilidade e as provas sexuais que os ado-

lescentes passam para provar a proacutepria masculinidade entra em reflexatildeo A justificativa

para refletir essas questotildees fundamenta-se na tese de Bourdieu (1998) que a virilidade

tem como objetivo a honra masculina que eacute realizada na exploraccedilatildeo e dominaccedilatildeo de

pessoas em desvantagem (mulheres e crianccedilas)

Momento Aquecimento ndash O encontro tem iniacutecio com a vivecircncia de uma dinacircmica de

integraccedilatildeo grupal A proposta do jogo foi com um pedaccedilo de barbante em uma das

matildeos o participante enrolava o fio no dedo indicador da outra matildeo enquanto ele falava

um pouco sobre o seu cotidiano Apoacutes enrolar todo o barbante no dedo o participante

parava de falar e entregava o barbante para outra pessoa

Momento Subgrupo com Adolescentes - A atividade iniciou com a apresentaccedilatildeo do

tema para os adolescentes e logo em seguida pediu-se que eles relatassem como com-

preendem sexualidade e quais palavras ou imagens poderiam estar relacionadas com

essa palavra Com base nas associaccedilotildees dos adolescentes propocircs-se uma discussatildeo so-

bre o tema do encontro Ao fim da atividade os adolescentes elaboraram uma siacutentese

do que foi discutido

Momento Fechamento - No final do encontro cada subgrupo apresentou suas produ-

ccedilotildees e compartilhou suas posiccedilotildees Esse momento possibilitou que pais e adolescentes

conversassem sobre sexualidade e negociassem regras intrafamiliares em relaccedilatildeo ao

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tema A intenccedilatildeo de promover esse diaacutelogo natildeo foi para facilitar a determinaccedilatildeo de

regras mas sim para enfocar o tema em pauta como tabu familiar

3ordmEncontroFantasias quebrando o tabu e compartilhando segredos

As fantasias eroacuteticas fazem parte dos scripts sexuais intrapsiacutequicos que ldquo utilizam

elementos simboacutelicos fragmentaacuterios cenaacuterios culturais mais amplamente compartilha-

dos e elementos de experiecircncia pessoal ndash que satildeo organizados em esquemas cognitivos

estruturados e tomam a forma de sequecircncias narrativas planos e fantasias sexuaisrdquo

(Bozon 2004 p 130) Este script coordena a vida mental e o comportamento social de

modo a discriminar situaccedilotildees sexuais e os estados corporais

Eacute importante frisar que estes scripts satildeo uma construccedilatildeo soacutecio-histoacuterica-cultural (Bozon

2004 Vance 1995 Weeks 2000) de modo que as fantasias sexuais (como tambeacutem os

outros atos sexuais) e os significados sexuais satildeo variaacuteveis (Heilborn 1999 Loyola

1999) ou seja a importacircncia social e o significado subjetivo dependem da definiccedilatildeo

e da compreensatildeo das diferentes culturas em seus diferentes periacuteodos histoacutericos Em

outras palavras essas construccedilotildees organizam e significam a experiecircncia sexual coletiva

por meio do impacto das identidades definiccedilotildees ideologias e regulaccedilotildees sexuais Dessa

forma compreende-se que as fantasias sexuais satildeo vivecircncias subjetivas derivadas de um

determinado momento histoacuterico

Com base nessa compreensatildeo sobre fantasias sexuais e fantasias eroacuteticas a razatildeo de

escolhermos essa temaacutetica para fazer parte dos conteuacutedos discutidos no GM funda-

menta-se na associaccedilatildeo entre sexo e violecircncia e na intenccedilatildeo de se promover reflexotildees

sobre como foram construiacutedas as fantasias que os adolescentes expressaram Aleacutem de

refletir sobre o que essas fantasias subjacentemente comunicam a respeito dos papeacuteis

masculinos e femininos e tentar promover fantasias sexuais cujas regras sejam a con-

sensualidade

Momento Aquecimento - No iniacutecio do encontro cada participante falou um pouco sobre

como foi a sua semana Em seguida foi proposto um jogo dramaacutetico para a integraccedilatildeo

das famiacutelias A intenccedilatildeo deste jogo foi para a construccedilatildeo de redes de apoio entre os

participantes do GM O jogo adotado para este fim foi a dinacircmica do cordatildeo O grupo

recebeu um rolo de barbante e cada membro tinha que pegar uma parte do barbante

57Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

enrolar no dedo e falar seu nome idade o que faz e caracteriacutesticas pessoais Em segui-

da a pessoa escolhia algueacutem aleatoriamente para dar prosseguimento com a dinacircmica

Apoacutes todos falarem mostrava ao grupo a figura que foi criada com o barbante eviden-

ciando que o grupo tinha histoacuterias e caracteriacutesticas em comum e que isso os ligava uns

aos outros

Momento Subgrupo com Adolescentes - Quando o grupo de adolescentes se reuniu foi

apresentado o tema do encontro Foi solicitado aos participantes que dissessem o que

eles compreendem como fantasias e quais fantasias sobre sexo eles tecircm Apoacutes essas

falas foi proposto aos adolescentes se dividirem em dois grupos e cada grupo deveria

criar uma histoacuteria por meio de colagens de revistas masculinas ou desenhos sobre

essas fantasias

Momento Fechamento - Cada subgrupo apresentou a sua siacutentese com exceccedilatildeo dos ado-

lescentes A decisatildeo de natildeo apresentarem o produto da discussatildeo (os cartazes) foi toma-

da pelo fato da natureza iacutentima dos cartazes e por se considerar que havia crianccedilas nes-

se momento final Contudo foi dito para as famiacutelias que poderiamdeveriam expressar

suas curiosidades sobre o tema do trabalhado em casa

4ordmEncontro Violecircncia eacute um crime nenhum tipo de violecircncia tem justificativa

Como relatado anteriormente os adolescentes que cometeram abuso sexual foram en-

caminhados pela rede proteccedilatildeo do DF e do entorno sendo que alguns adolescentes

estatildeo cumprindo atendimento sob obrigaccedilatildeo como parte da aplicaccedilatildeo de medida socio-

educativa (ECA 1990) Mas a medida ndash accedilatildeo do sistema legal ndash em si natildeo significa que

eles assumiram a autoria (fenocircmeno psicoloacutegico) da violecircncia cometida A admissatildeo

legal natildeo implica nem eacute sinocircnimo de responsabilizaccedilatildeo psicoloacutegica Por isso natildeo raro

encontra-se adolescentes que natildeo admitem o cometimento do abuso sexual Por isso

considera-se fundamental a inclusatildeo desse item de discussatildeo

Ao considerar o exposto o GM foi estruturado com a cautela de ser uma accedilatildeo afirmativa

e cooperadora com as intervenccedilotildees normativas e legais mas sem deixar de considerar os

princiacutepios e as diretrizes da sauacutede mental e dos direitos humanos Em outras palavras

afirma-se que a reflexatildeo da responsabilidade psicoloacutegica deve ser mediada por meio da

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empatia e da compreensatildeo (processos psicoloacutegicos) do profissional de modo que este

consiga identificar os processos mediadores que possibilitaram o desenvolvimento de

uma expressatildeo sexual ofensiva Alerta-se que a identificaccedilatildeo desses processos natildeo pode

ter o objetivo de desculpar o adolescente que cometeu o abuso sexual

Eacute importante considerar que um dos processos que contribuem no desenvolvimento de

uma sexualidade ofensiva eacute a violecircncia praticada por outros membros da famiacutelia prin-

cipalmente da parte dos pais e das matildees direcionada aos filhos (Costa 2012 Marshall

2001) Dessa forma a razatildeo de tratar este tema no GM eacute para promover a responsabi-

lizaccedilatildeo psicoloacutegica de todos os membros familiares que utilizaram da violecircncia para se

comunicar

Momento Aquecimento - Neste encontro houve atrasos da maioria dos participantes

que relataram dificuldades no tracircnsito Como o tempo do encontro foi reduzido a equi-

pe decidiu para a atividade do aquecimento realizar apenas a dinacircmica do barbante

que jaacute foi descrita no segundo encontro

Momento Subgrupo com Adolescentes - Para trabalhar o tema do encontro foi escolhi-

do um recorte de viacutedeo da novela Fina Estampa da Rede Globo que abordou o tema da

violecircncia intrafamiliar A partir daiacute foi proposto aos adolescentes um juacuteri simulado para

decidir se um dos protagonistas de uma cena de violecircncia era culpado ou natildeo

Momento Fechamento - Nesse momento cada subgrupo apresentou uma siacutentese do

que foi trabalhado Apoacutes a fala de cada representante do subgrupo os proacuteprios partici-

pantes comeccedilaram a negociar mudanccedilas nas regras familiares

5ordmEncontro Genograma precisamos conhecer as histoacuterias de nossos antepassados

Usamos o Genograma por representar graficamente a composiccedilatildeo da famiacutelia e dos re-

lacionamentos em pelo menos trecircs geraccedilotildees (Carter amp McGoldrick 1995) Por meio

desse diagrama estrutural eacute possiacutevel obter diferentes informes sobre a famiacutelia como a

estrutura familiar os viacutenculos a posiccedilatildeo de cada membro na estrutura familiar aspec-

tos importantes do relacionamento familiar em niacutevel intergeracional e transgeracional

conflitos padrotildees repetitivos ocorrecircncias importantes como doenccedilas alcoolismo uso

59Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

de drogas prisatildeo violecircncia separaccedilotildees nascimentos entre outras informaccedilotildees (Carter

amp McGoldrick 1995 McGoldrick Gerson amp Petry 2012 Penso Costa amp Ribeiro 2008)

Aleacutem disso a importacircncia da utilizaccedilatildeo do Genograma eacute que este instrumento daraacute

continuidade na proposta do tema anterior isto eacute a compreensatildeo dos processos psiacutequi-

cos repetitivos facilitaraacute que a famiacutelia desenvolva uma percepccedilatildeo sistecircmica da violecircncia

cometida pelo adolescente e dessa forma os pais e as matildees poderatildeo expressar empatia

e compreensatildeo ao filho

Ademais natildeo eacute incomum no puacuteblico estudado que as relaccedilotildees entre os filhos que

cometeram abuso sexual e os pais e as matildees sejam afetivamente instaacuteveis e com as

fronteiras difusas Os responsaacuteveis demonstram sentimentos ambiacuteguos como tristeza

raiva e maacutegoa como forma de expressar a decepccedilatildeo com a rejeiccedilatildeo dos filhos e ansieda-

de anguacutestia e tensatildeo como forma de expressar a preocupaccedilatildeo com o futuro deles Parte

dessa postura se fundamenta por uma compreensatildeo atomizada da violecircncia cometida

pelo adolescente e natildeo por uma compreensatildeo sistecircmica da atitude do filho

Procedimento ndash Neste encontro todo o tempo foi destinado exclusivamente para a cons-

truccedilatildeo do genograma de todas as famiacutelias Cada membro da equipe ficou como respon-

saacutevel por uma famiacutelia que estava participando tanto da pesquisa como do atendimento

Esse momento teve um criteacuterio diferente do ateacute entatildeo adotado que foi a reuniatildeo de

todos os membros de cada famiacutelia e natildeo o criteacuterio de subdivisatildeo por idade

6ordmEncontroApresentaccedilatildeo dos genogramas vamos compartilhar o que temos em comum e o que temos de diferente

Neste encontro assim como no anterior todo o tempo foi destinado exclusivamente agrave

apresentaccedilatildeo dos Genogramas de cada famiacutelia para os demais participantes As famiacute-

lias quando estavam na posiccedilatildeo de ouvintes compartilharam seus posicionamentos

diante dos conflitos da famiacutelia que apresentava o Genograma

Em experiecircncias anteriores percebemos que participantes do GM assume uma posiccedilatildeo

de co terapeutas apoacutes a apresentaccedilatildeo do Genograma de cada famiacutelia na medida em que

as caracteriacutesticas da presenccedila da violecircncia satildeo observadas percebidas e discutidas por

todos os presentes Eacute essa integraccedilatildeo entre os participantes que reforccedila a importacircncia

desse espaccedilo pois se identificou a solidificaccedilatildeo da construccedilatildeo de redes sociais de apoio

60

entre eles Muitas famiacutelias se identificam com as histoacuterias e as experiecircncias das outras

famiacutelias Apoacutes a revelaccedilatildeo do abuso sexual as famiacutelias tendem a se isolar socialmente

(Costa 2012) e consequentemente aumentam o risco de entrarem em outras situaccedilotildees

de vulnerabilidade (Sluzki 2006) A integraccedilatildeo obtida durante o GM possibilita o au-

mento da rede configurando em um espaccedilo de fator de proteccedilatildeo (Costa 2012 Penso

Conceiccedilatildeo Costa amp Carreteiro 2012)

7ordmEncontroProjeto de futuro das relaccedilotildees familiares organizar o presente para um futuro consciente

O uacuteltimo encontro considerou o fato de que algumas famiacutelias que passaram por situa-

ccedilotildees de estresse e conflito como o abuso sexual paralizam o seu projeto de vida familiar

(Carter amp McGoldrick 1995) A razatildeo deste encontro se fundamenta na importacircncia de

promover a reorganizaccedilatildeo das famiacutelias e a construccedilatildeo de novos projetos familiares e in-

dividuais Com os adolescentes eacute necessaacuterio refletir sobre a proacutepria expressatildeo sexual no

futuro por meio da reflexatildeo sobre um projeto de namoro Esse momento configura em

um espaccedilo proacuteprio para os adolescentes colocarem suas duacutevidas sobre namoro sexo

formas de abordar uma pessoa que tem interesse e como cuidar e construir a relaccedilatildeo

afetivo-sexual

Procedimento ndash Para o objetivo de reorganizar as famiacutelias e construir novos projetos fa-

miliares cada famiacutelia andou sobre uma fita adesiva a qual representava a linha do tem-

po O iniacutecio da linha representou o tempo atual e o fim da linha representou o tempo

da famiacutelia apoacutes 10 anos Ao longo da caminhada pais matildees e filhos relataram desejos

projetos e expectativas a serem alcanccedilados Com os adolescentes foi feito uma roda de

conversa onde os aspectos citados acima sobre namoro eram debatidos entre eles com

a mediaccedilatildeo dos terapeutas

PotencialidadesLimiteseDesafios

O meacutetodo do GM permite muitos avanccedilos no atendimento a essa populaccedilatildeo princi-

palmente no acircmbito das instituiccedilotildees puacuteblicas Mas o mais importante eacute que viabiliza

uma necessidade amplamente apoiada por estudiosos dos adolescentes que cometeram

ofensa sexual (Hengeller Chapman Borduin Schewe amp McCart 2009 Marshall 2001

61Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

Oliver 2007 Zankman amp Bonomo 2004) que eacute a atenccedilatildeo agrave famiacutelia desses sujeitos Es-

ses autores preconizam que o atendimento ao adolescente natildeo pode se dar dissociado

de sua famiacutelia sob pena do surgimento de recidivas do ato violento

O primeiro encontro com o tema da proteccedilatildeo ajudou a problematizar os modelos pa-

rentais de educaccedilatildeo facilitando a reconstruccedilatildeo familiar de novas regras como natildeo cau-

sar dano natildeo fazer o mal (Fishman 1996) O segundo e o terceiro encontros (sexu-

alidade e fantasias) ajudaram os pais a reconhecerem o desenvolvimento psicossexual

dos adolescentes e possibilitaram aos adolescentes a reflexatildeo de como eles expressam

a proacutepria sexualidade A partir dessa reflexatildeo foi possiacutevel direcionar o desenvolvimento

de uma expressatildeo sexual que respeite as crianccedilas e que busque momentos espaccedilos e

pessoas proacuteximas de sua idade e do seu desenvolvimento psiacutequico O quarto encontro

(violecircncia eacute um crime) ajudou os pais novamente a refletir sobre os instrumentos uti-

lizados para estabelecer hierarquia autoridade regras e valores Este encontro tambeacutem

possibilitou aos adolescentes tomarem consciecircncia de seus atos violentos e que estes

atos possuem raiacutezes em diversas origens (individual famiacutelia escola e sociedade) Aleacutem

disso foi possiacutevel mostrar a eles a importacircncia de se responsabilizarem pelas atitudes

cometidas diante da crianccedila e da famiacutelia O quinto e o sexto encontros destinados ao

procedimento do Genograma ajudaram as famiacutelias a compreenderem o ciclo familiar

a heranccedila familiar e fenocircmenos como a repeticcedilatildeo da violecircncia E o uacuteltimo encontro

ajudou as famiacutelias a projetarem um futuro consciente e planejado e cooperarem com

os adolescentes na expectativa de exercerem uma sexualidade satisfatoacuteria com namoros

futuros

O GM configurou-se como um espaccedilo no qual as crianccedilas tiveram voz para expressarem

seus sentimentos seus desejos de maior proteccedilatildeo e trocas de afeto os adolescentes

tiveram um momento legiacutetimo para expressarem suas necessidades seus arrependi-

mentos suas esperanccedilas e firmarem novos compromissos com as famiacutelias e os pais

e as matildees tiveram a oportunidade de expressarem seus sentimentos de amor de faze-

rem exigecircncias plausiacuteveis e de propor novas regras familiares Em outras palavras o

GM possibilitou novas organizaccedilotildees familiares com o compromisso de buscar relaccedilotildees

familiares saudaacuteveis e de evitar os padrotildees disfuncionais Mas o principal potencial do

GM eacute que esta proposta eacute condizente com o contexto e a dinacircmica da sauacutede puacuteblica

Em outras palavras o GM oferece uma praacutetica social de sauacutede para um problema legiacuteti-

62

mo de sauacutede puacuteblica (abuso sexual) produzindo respostas que toda uma coletividade eacute

atendida direta e indiretamente

Em relaccedilatildeo aos limites precisamos avanccedilar na avaliaccedilatildeo de risco de repeticcedilatildeo do com-

portamento violento de cada adolescente com o objetivo de identificar detalhes do de-

senvolvimento psicoloacutegico familiar e sexual Infere-se que uma avaliaccedilatildeo dessa natu-

reza pode apresentar outras informaccedilotildees relevantes e esclarecedoras da impulsividade

sexual dos adolescentes Essa avaliaccedilatildeo mais acurada vai permitir que ao final do GM

se tenha melhor noccedilatildeo da possibilidade de recidiva do ato violento e a necessidade de

encaminhamento para atendimento individualizado

Dois desafios aqui se colocam em relevo O primeiro eacute que uma boa parte dos ado-

lescentes enfocados no GM apresentou demandas de desenvolvimento de habilidades

sociais mais especificamente na aacuterea de relacionamentos afetivo-sexuais Sugere-se que

um momento para o desenvolvimento dessas habilidades no GM pode ajudar o ado-

lescente a direcionar a sua sexualidade de acordo com os padrotildees e regras sociais bem

como melhorar sua competecircncia social O outro desafio beneficia os pais A maioria

deles concordou que eacute necessaacuterio utilizar outros recursos para educar poreacutem natildeo sa-

bem como usar outros meacutetodos uma vez que eles tecircm domiacutenio apenas do recurso da

violecircncia Precisamos pensar em durante o atendimento a adoccedilatildeo de um momento

destinado aos pais para desenvolvimento de estrateacutegias educacionais construtivas

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67 A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

MariaInecircsGandolfo

RaquelCairus

Neste texto pretende-se discutir os marcos legais que subsidiam as poliacuteticas de assistecircn-

cia agrave infacircncia e adolescecircncia no Brasil e paralelamente descrever a execuccedilatildeo das poliacuteti-

cas puacuteblicas referentes agrave proteccedilatildeo integral no que concerne ao atendimento de crianccedilas

e adolescentes e suas famiacutelias sob a oacutetica do sistema de garantia primaacuterio (envolvendo

a proteccedilatildeo baacutesica prevista na poliacutetica de assistecircncia social) secundaacuterio (no referente agrave

proteccedilatildeo especial da referida poliacutetica) e o terciaacuterio (sobre as medidas soacutecioeducativas)

68

O Art 2273 da Carta Magna de 1988 introduz no Brasil a Doutrina da Proteccedilatildeo Integral

conforme pontua Saraiva (1998) O autor lembra que a Constituiccedilatildeo Federal Brasileira

se adianta agrave Convenccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas na adoccedilatildeo da Proteccedilatildeo Integral sendo esta

uacuteltima aprovada pela Assembleacuteia-Geral das Naccedilotildees Unidas em 1989

Nesse contexto eacute criado o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente ndash ECA (Lei nordm 80691990)

que representa um marco histoacuterico no Brasil quanto agrave atenccedilatildeo agrave infacircncia e a adolescecircn-

cia Portanto o ECA se coaduna tambeacutem com a convenccedilatildeo internacional colocando

o Brasil no status de um dos paiacuteses com sistema legal mais avanccedilado no que tange ao

direito de crianccedilas e adolescentes

Esse avanccedilo representa uma grande mudanccedila paradigmaacutetica A partir do reconheci-

mento da condiccedilatildeo inerente agrave infacircncia e adolescecircncia enquanto fase peculiar de desen-

volvimento exige-se do Estado e da famiacutelia cuidados que lhes garantam o desenvolvi-

mento pleno e saudaacutevel Desloca-se desse modo a indeterminaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo

irregular para a responsabilizaccedilatildeo do Estado e da famiacutelia quanto agrave proteccedilatildeo e cuidados

das crianccedilas e adolescentes sujeitos de direitos e deveres Mas o que de fato eacute a proteccedilatildeo

integral Como entendecirc-las a partir do ECA Como se concretiza a proteccedilatildeo integral a

partir das poliacuteticas E quem satildeo os responsaacuteveis por esta proteccedilatildeo

A importacircncia dessa mudanccedila paradigmaacutetica pode ser melhor compreendida a partir

do resgate histoacuterico das poliacuteticas voltadas para a infacircncia e juventude Conceiccedilatildeo Toma-

sello e Pereira (2003) analisam essa questatildeo e apontam que na histoacuteria do Brasil tais

poliacuteticas eram voltadas diferencialmente para o ldquomenor abandonadordquo ou ldquodelinquumlenterdquo

Em 1906 surgiu o primeiro projeto de lei de proteccedilatildeo agrave infacircncia com base na ordem e

na higiene promulgado em 1927 como o Coacutedigo de Menores Sob o regime militar em

1964 o Estado elabora uma poliacutetica unificada e cria a Poliacutetica Nacional do Bem-Estar do

Menor (PNBEM) que fundamenta a Fundaccedilatildeo do Bem-Estar do Menor (FUNABEM)

3 Art 227 Eacute dever da famiacutelia da sociedade e do Estado assegurar agrave crianccedila e ao adolescente com absoluta prioridade o direito agrave vida agrave sauacutede agrave alimentaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo ao lazer agrave profissionalizaccedilatildeo agrave cultura agrave dignidade ao respeito agrave liberdade e agrave convivecircncia familiar e comunitaacuteria aleacutem de colocaacute-los a salvo de toda forma de negligecircncia discriminaccedilatildeo exploraccedilatildeo violecircncia crueldade e opressatildeo (Constituiccedilatildeo Federal 1988)

69A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

Pautada por esta Fundaccedilatildeo surgem as FEBEMs instituiccedilotildees totais para internaccedilatildeo e

reclusatildeo de menores denominadas como unidades educacionais ou terapecircuticas mas

que escondiam o mesmo discurso moralista e conservador destinados tambeacutem a jovens

abandonados e infratores E ainda eram seguidos de abordagens assistencialistas para

os abandonados e repressoras para os infratores Aleacutem de considerar como publico-alvo

ldquoo menor em situaccedilatildeo irregular e de periculosidade () caindo nesse espectro toda crianccedila da

camada popular brasileirardquo (Cheniaux citado por Conceiccedilatildeo amp cols 2003)

A partir da deacutecada de 1980 com o fim desse regime totalitaacuterio uma revisatildeo criacutetica dos

procedimentos adotados frente agrave questatildeo da infacircncia e juventude brasileira ganha forccedila

e inicia-se uma mobilizaccedilatildeo social sem precedentes na histoacuteria que culminaram com o

ECA tal como eacute conhecido hoje Os autores ainda apontam a mudanccedila paradigmaacutetica

engendrada desde a implantaccedilatildeo desse estatuto ao natildeo considerar a crianccedila e o adoles-

cente enquanto menor destituiacutedo de direitos e deveres perceber que as condiccedilotildees de

vida do adolescente em conflito com a lei eacute que satildeo irregulares e natildeo o adolescente

Como enfatiza Carvalho (2001) ldquocom a instituiccedilatildeo do paradigma da proteccedilatildeo integral

crianccedilas e adolescentes passam a ser considerados seres humanos em condiccedilatildeo peculiar de de-

senvolvimento sujeitos de direitos que devem ser prioridade absoluta da famiacutelia da sociedade

e do Estadordquo (p 153) Acredita-se que reside aiacute a grande inovaccedilatildeo do Estatuto e com ela haacute

a implicaccedilatildeo de ldquoum reordenamento institucional da relaccedilatildeo entre a Uniatildeo e os Estados e os

Municiacutepiosrdquo (p 153) em torno das questotildees afetas a crianccedilas e adolescentes

No Estatuto da Crianccedila e do Adolescente a palavra proteccedilatildeo aparece 26 vezes que se

concentram principalmente na parte que trata dos direitos fundamentais De acordo

com Saraiva (2004) o ECA eacute organizado sob trecircs sistemas de garantia

a o Sistema Primaacuterio que daacute conta das Poliacuteticas Puacuteblicas de Atendimento a crianccedilas

e adolescentes (especialmente os arts 4ordm e 8587)

b o Sistema Secundaacuterio que trata das Medidas de Proteccedilatildeo dirigidas a crianccedilas e ado-

lescentes em situaccedilatildeo de risco pessoal ou social natildeo autores de atos infracionais

de natureza preventiva ou seja crianccedilas e adolescentes enquanto viacutetimas enquan-

to violados em seus direitos fundamentais (especialmente os arts 98 e 101)

70

c o Sistema Terciaacuterio que trata das medidas socioeducativas aplicaacuteveis a adolescen-

tes em conflito com a Lei autores de atos infracionais ou seja quando passam a

condiccedilatildeo de vitimizadores (especialmente os arts 103 e 112) (ECA 2004)

No sistema primaacuterio eacute contemplado o acesso das crianccedilas e adolescentes agraves poliacuteticas

sociais baacutesicas como sauacutede educaccedilatildeo seguranccedila assistecircncia social entre outros Jaacute o

sistema secundaacuterio envolve crianccedilas e adolescentes vitimizados por situaccedilotildees de risco

onde satildeo aplicadas as medidas protetivas E por fim o sistema terciaacuterio quando o ado-

lescente comete algum ato infracional e eacute submetido a alguma medida socioeducativa

Esses trecircs sistemas compotildeem uma teia de proteccedilatildeo para as crianccedilas e adolescentes

Nesse sentido mesmo que estes cometam algum ato infracional respondem pelo ato

em conformidade com o seu estaacutegio de desenvolvimento seguindo sistemas peculiares

no cumprimento das medidas Como pode ser observado na forma da lei ateacute mesmo

a legislaccedilatildeo prevecirc o mau funcionamento do sistema Isto eacute quando natildeo se garante o

cumprimento das poliacuteticas sociais baacutesicas recorre-se ao sistema secundaacuterio que por

sua vez quando inoperante desemboca em accedilotildees do sistema terciaacuterio

Contudo constata-se que a legislaccedilatildeo foi construiacuteda sob o novo paradigma de proteccedilatildeo

mas entre os proacuteprios operadores do direito existe ambiguidade ao pensar o adolescen-

te nesse contexto Saraiva (1998) pontua a condiccedilatildeo do adolescente que cometeu ato

infracional como vitimizador e natildeo mais como vitimizado Ora se o novo paradigma

pressupotildee que natildeo eacute o adolescente que eacute irregular e sim sua situaccedilatildeo dever-se-ia consi-

derar que no miacutenimo o adolescente que comete o ato infracional passa da condiccedilatildeo de

somente vitimizado para vitimizado e vitimizador Compreendendo que o cometimento

do ato infracional envolve tambeacutem outras questotildees para aleacutem da uacutenica responsabilidade

do adolescente ndash tais como as dinacircmicas psicossociais

71A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

Especificamente sobre o sistema secundaacuterio que trata das Medidas Protetivas o ECA

dispotildee no artigo 984 que estas satildeo aplicaacuteveis sempre que os direitos reconhecidos nes-

ta lei forem ameaccedilados ou violados prevendo medidas para esses casos em seu artigo

1015

Quanto ao que Saraiva (2004) denomina de Sistema Terciaacuterio ndash que trata das medidas

aplicadas quando o adolescente comete o ato infracional6 ndash o ECA no artigo 103 de-

termina que ato infracional eacute ldquoa conduta descrita como crime ou contravenccedilatildeo penalrdquo De

acordo com o estatuto adolescente eacute aquele entre 12 e 18 anos de idade Nessa condiccedilatildeo

o adolescente eacute inimputaacutevel (natildeo responde criminalmente) mas estaacute sujeito agraves medidas

socioeducativas Aqueles que tecircm menos de 12 anos satildeo considerados crianccedilas e quan-

do cometem ato infracional ficam subordinados agraves medidas protetivas

4 Art 98 - As medidas de proteccedilatildeo agrave crianccedila e ao adolescente satildeo aplicaacuteveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaccedilados ou violados I - por accedilatildeo ou omissatildeo da sociedade ou do Estado II - por falta omissatildeo ou abuso dos pais ou responsaacutevel III - em razatildeo de sua conduta (ECA 2004)

5 Verificada qualquer das hipoacuteteses previstas no art 98 autoridade competente poderaacute determinar dentre outras as seguintes medidas I ndash encaminhamento aos pais ou responsaacutevel mediante termo de responsabilidade II ndash orientaccedilatildeo apoio e acompanhamento temporaacuterios III ndash matriacutecula e frequumlecircncia obrigatoacuterias em estabelecimento oficial de ensino fundamental IV ndash inclusatildeo em programa comunitaacuterio ou oficial de auxiacutelio agrave famiacutelia agrave crianccedila e ao adolescente V ndash requisiccedilatildeo de tratamento meacutedico psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico em regime hospitalar ou ambulatorial VI - inclusatildeo em programa oficial ou comunitaacuterio de auxiacutelio orientaccedilatildeo e tratamento a alcooacutelatras e toxicocircmanos VII ndash abrigo em entidade VIII - Colocaccedilatildeo em famiacutelia substituta Paraacutegrafo uacutenico O abrigo eacute medida provisoacuteria e excepcional utilizaacutevel como forma de transiccedilatildeo para a colocaccedilatildeo em famiacutelia substituta natildeo implicando privaccedilatildeo de liberdade (ECA 2004)

6 Art 112 Verificada a praacutetica de ato infracional a autoridade competente poderaacute aplicar ao adolescente as seguintes medidas I - advertecircncia II - obrigaccedilatildeo de reparar o dano III - prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade IV - liberdade assistida V - inserccedilatildeo em regime de semi-liberdade VI - internaccedilatildeo em estabelecimento educacional VII - qualquer uma das previstas no art 101 I a VI (ECA 2004)

72

AExecuccedilatildeodasMedidasdeProteccedilatildeo

O Conselho Tutelar eacute o principal agente operador das medidas protetivas eacute um ldquooacutergatildeo

permanente e autocircnomo natildeo jurisdicional encarregado pela sociedade de zelar pelo cum-

primento dos direitos da crianccedila e do adolescente definidos nesta Leirdquo (ECA 2004) Satildeo

previstos cinco conselheiros por municiacutepio escolhidos pela comunidade local por voto

direto cujo processo eleitoral eacute fiscalizado pelo Ministeacuterio Puacuteblico A lei municipal regu-

lamenta o local e horaacuterio de funcionamento bem como a remuneraccedilatildeo dos conselhei-

ros O ECA dispotildee que estes tenham idade superior a 21 anos residam no municiacutepio e

possuam reconhecida idoneidade moral

O papel do Conselho Tutelar postulado no ECA eacute entre outros aplicar as medidas pre-

vistas no artigo 101 (medidas protetivas) e requisitar os serviccedilos puacuteblicos nas diversas

aacutereas relacionadas a fim de assegurar o que o Estatuto prevecirc Cury Garrido e Marccedilura

(2000) lembram que cabe ao Conselho Tutelar somente a aplicaccedilatildeo dos incisos de I a

VII do artigo 101 do ECA Jaacute agrave autoridade judiciaacuteria cabe aplicar todos os incisos inclusi-

ve o inciso VIII do mesmo artigo e as medidas que tratam sobre o ato infracional entre

outros Atualmente existe um movimento de responsabilizaccedilatildeo e fortalecimento dos

Conselhos com o encaminhamento para estes oacutergatildeos dos casos envolvendo a aplicaccedilatildeo

das medidas protetivas que natildeo envolvam a guarda da crianccedila ou do adolescente

Liberati (1995) lembra que os incisos acima contemplam o exposto no art227 da Cons-

tituiccedilatildeo Federal abrangendo o atendimento agraves crianccedilas em seus direitos fundamentais

O que bem representa o paradigma da proteccedilatildeo integral em detrimento da ldquosituaccedilatildeo

irregularrdquo exposta no antigo Coacutedigo de Menores Ou seja ao compreender que os di-

reitos da crianccedila e do adolescente foram violados ou ameaccedilados se identifica o que o

autor chama de ldquosituaccedilatildeo de risco pessoal e social da crianccedila e do adolescenterdquo (p 64) que

se sobrepotildee a ldquofiguras casuiacutesticas tais como lsquomenor abandonadorsquo lsquodelinquentersquo etcrdquo (p 64)

Deste modo percebe-se o respeito ao estaacutegio de desenvolvimento peculiar das crianccedilas

e dos adolescentes quando se atribui responsabilidades a terceiros na proteccedilatildeo desses o

que se reflete nos incisos que remetem aos pais e ao Estado a competecircncia da proteccedilatildeo

Sobrepuja-se assim em termos legais a imaterialidade da responsabilidade bem como

a atribuiccedilatildeo desta somente aos ldquomenoresrdquo pela situaccedilatildeo em que vivenciam Inclusive

com a presenccedila de oacutergatildeos ligados ao Judiciaacuterio (como o Conselho Tutelar e a Vara da

Infacircncia) que exercem a funccedilatildeo mediadora no exerciacutecio dessas responsabilidades

73A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

No entanto o inciso II parece vago quando se refere ao tipo de acompanhamento a

ser realizado ldquo() A orientaccedilatildeo apoio e acompanhamento temporaacuterios que poderatildeo ser

realizada pelo Conselho Tutelar ou por serviccedilo de assistecircncia social ou ainda por serviccedilos

especializados do proacuteprio Poder Judiciaacuterio onde existam tem aplicaccedilatildeo em casos onde natildeo haacute

uma causa que possa ser incluiacuteda dentre as hipoacuteteses de tratamento meacutedico-psicoloacutegico e onde

natildeo exista omissatildeo imputaacutevel aos pais ou responsaacutevel a justificar a aplicaccedilatildeo das medidas dos

incisos VII ou VIII por exemplordquo (Mezzomo 2004 p 3)

Outros autores ponderam que o acompanhamento previsto no inciso II seja adminis-

trado pelo Conselho Tutelar que por sua vez deveraacute orientar seu desenvolvimento

execuccedilatildeo e conclusatildeo Liberati (1995) entende que o inciso II ldquoeacute o estudo social do caso

concreto que permitiraacute decidir se o acompanhamento da crianccedila ou adolescente seraacute feito na

famiacutelia ou em estabelecimento de educaccedilatildeo ou aprendizagem profissionalrdquo (p 67) Alberga-

ria (1991) pressupotildee a existecircncia de uma equipe interprofissional nessas instituiccedilotildees

que orientem ou ldquoassistamrdquo as crianccedilas e adolescentes Ele acrescenta que esta equipe

deveraacute enviar relatoacuterios ao Conselho Tutelar sobre o ldquotratamento educativo do menor e de

seu contexto familiarrdquo (p 73)

Todavia o inciso I parece ser mais claro ao tratar do encaminhamento aos pais Por

exemplo quando a crianccedila ou adolescente fogem de casa satildeo encaminhados aos pais

pelo Conselho Tutelar mediante termo de responsabilidade como pontua Liberati

(1995) Albergaria (1991) lembra que esse termo natildeo se restringe a uma formalidade

legal mais que isso deve ser apresentado aos pais diretrizes por parte da equipe inter-

disciplinar que o autor sugere ser da Vara da Infacircncia ou do Conselho Tutelar (p122)

Com relaccedilatildeo ao inciso IV Albegaria (1991) afirma que o programa comunitaacuterio eacute ldquodesti-

nado agrave promoccedilatildeo do bem-estar humano e social da populaccedilatildeo marginalizadardquo (p73) e prevecirc

a participaccedilatildeo da sociedade conjuntamente com o Estado na proteccedilatildeo social agraves crianccedilas

e adolescentes Este inciso tambeacutem parece vago embora Liberati (1995) enumere os

clubes oacutergatildeos de orientaccedilatildeo e aconselhamento familiar como recursos de execuccedilatildeo de

programas agrave famiacutelia agrave crianccedila e ao adolescente

Nota-se aqui que a histoacuteria da poliacutetica de assistecircncia social se entrelaccedila com o avanccedilo

sob o qual o ECA foi construiacutedo Pois assim como o estatuto a poliacutetica de assistecircncia

social tal como hoje eacute concebida eacute produto de uma mobilizaccedilatildeo histoacuterica Nogueira

74

(1994) acentua que a poliacutetica de assistecircncia social eacute sobretudo uma poliacutetica de in-

clusatildeo pois pretende alterar a situaccedilatildeo de exclusatildeo e para tanto deve ser alterativa e

alternativa ao inveacutes de ser simplesmente alternativa compensatoacuteria O autor coloca que

diferente da poliacutetica de assistecircncia social que eacute alternativa o assistencialismo pretende

manter o status quo como uma poliacutetica de anestesia ldquovocecirc anestesia aquela sociedade para

que ela suporte a dor para que natildeo se torne agudo o sofrimentordquo (p 17) O autor declara que

o sofrimento agudo suscita revolta e o crocircnico apatia

Alguns marcos legais representam bem essa mudanccedila Conforme disposto no artigo

203 da Constituiccedilatildeo Federal Brasileira a assistecircncia social eacute prestada a quem dela ne-

cessitar contrariamente agrave ideia de que a assistecircncia social seria somente para aqueles

empobrecidos economicamente Para tanto em 1993 foi publicada a Lei Orgacircnica da

Assistecircncia Social (LOAS) que regulamenta baseada nos princiacutepios da Carta Magna

Brasileira a assistecircncia social no paiacutes Em 2003 foi deliberada a construccedilatildeo do SUAS

(Sistema Uacutenico da Assistecircncia Social) enquanto um sistema que garante o que a LOAS

prevecirc integrando estados e municiacutepios na execuccedilatildeo dos direitos soacutecio-assistenciais

Por fim no ano de 2004 comeccedila a ser construiacuteda e implementada a Poliacutetica Nacional

de Assistecircncia Social (PNAS) com o objetivo de apontar ldquodiretrizes para a efetivaccedilatildeo da

assistecircncia social como direito de cidadania e responsabilidade do Estadordquo (PNAS 2004)

A PNAS entende a realidade entre outros olhares como ldquouma visatildeo social de proteccedilatildeordquo

(PNAS 2004) e aponta este conceito baseado em Di Giovanni

formas institucionalizadas que as sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de seus membros Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natural ou social tais como a velhice a doenccedila o infortuacutenio as privaccedilotildees () Neste conceito tambeacutem tanto as formas seletivas de distribuiccedilatildeo e redistribuiccedilatildeo de bens materiais (como comida e o dinheiro) quanto os bens culturais (como os saberes) que permitiratildeo a sobrevivecircncia e a integraccedilatildeo sob vaacuterias formas na vida social Ainda os princiacutepios reguladores e as normas que com intuito de proteccedilatildeo fazem parte da vida das coletividades (PNAS 2004)

A PNAS (2004) tem como diretrizes a descentralizaccedilatildeo administrativa ou seja a execu-

ccedilatildeo dos serviccedilos compete aos estados e municiacutepios ainda que as normas e coordenaccedilatildeo

geral sejam da esfera federal participaccedilatildeo popular por meio de organizaccedilotildees represen-

tativas e centralidade na famiacutelia na concepccedilatildeo e accedilatildeo dos serviccedilos Satildeo considerados

usuaacuterios da Poliacutetica de Assistecircncia Social famiacutelias e indiviacuteduos com perda ou fragilida-

75A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

de de viacutenculos de afetividade pertencimento e sociabilidade ciclos de vida identidades

estigmatizadas em termos eacutetnico cultural e sexual desvantagem pessoal resultante de

deficiecircncias exclusatildeo pela pobreza e ou no acesso agraves demais poliacuteticas puacuteblicas uso

de substacircncias psicoativas diferentes formas de violecircncia advinda do nuacutecleo familiar

grupos e indiviacuteduos inserccedilatildeo precaacuteria ou natildeo inserccedilatildeo no mercado de trabalho formal

e informal estrateacutegias e alternativas diferenciadas de sobrevivecircncia que podem repre-

sentar risco pessoal e social

Percebe-se que a PNAS abrange diversos segmentos no que se refere aos seus usuaacuterios

natildeo apenas agraves pessoas empobrecidas economicamente Com relaccedilatildeo agrave proteccedilatildeo social

a PNAS traz duas definiccedilotildees a proteccedilatildeo social baacutesica e a proteccedilatildeo social especial A pri-

meira voltada agrave prevenccedilatildeo dirige-se a desenvolver potencialidades e o fortalecimento

de viacutenculos familiares e comunitaacuterios Seu puacuteblico eacute a populaccedilatildeo que vive em situaccedilatildeo

de vulnerabilidade social decorrente da pobreza privaccedilatildeo (ausecircncia de renda precaacuterio

ou nulo acesso aos serviccedilos puacuteblicos dentre outros) e ou fragilizaccedilatildeo de viacutenculos afe-

tivos ndash relacionais e de pertencimento social (discriminaccedilotildees etaacuterias eacutetnicas de gecircnero

ou por deficiecircncias dentre outras)

As accedilotildees de proteccedilatildeo social baacutesica satildeo realizadas nos Centros de Referecircncia da Assis-

tecircncia Social (CRAS) Segundo a PNAS os centros devem desenvolver atividades de

convivecircncia e fortalecimento de viacutenculos para crianccedilas adolescentes jovens e idosos

bem como a execuccedilatildeo de programas de inclusatildeo produtiva e enfrentamento da pobreza

voltados para o trabalho e o Programa de Atenccedilatildeo Integral agraves Famiacutelias Este uacuteltimo con-

siste em ldquoum conjunto de accedilotildees relativas agrave acolhida informaccedilatildeo e orientaccedilatildeo inserccedilatildeo em

serviccedilos da assistecircncia social tais como socioeducativos e de convivecircncia encaminhamentos

a outras poliacuteticas promoccedilatildeo de acesso agrave renda e especialmente acompanhamento sociofami-

liarrdquo (Ministeacuterio do Desenvolvimento Social e Combate agrave Fome Programa de Atenccedilatildeo

Integral agrave Famiacutelia sd)

Quanto agrave proteccedilatildeo social baacutesica conta-se tambeacutem com os Centros de Orientaccedilatildeo Socioe-

ducativos (COSEs) Nestes centros estatais assim como em entidades conveniadas com

o governo local satildeo realizadas as atividades de convivecircncia Tambeacutem satildeo os locais de

execuccedilatildeo do inciso IV do ECA referente a programas de auxiacutelio agrave famiacutelia a crianccedila e ao

adolescente Embora natildeo haja regulamentaccedilatildeo sobre essa informaccedilatildeo na praacutetica esta

tem sido sua forma de funcionamento

76

Ao lembrar que a famiacutelia em medida protetiva eacute aquela cujo direito foi violado pode-

-se concluir que existe nesses centros uma interface tambeacutem com a proteccedilatildeo social

especial haja vista que baseado no exposto na PNAS a diferenccedila da proteccedilatildeo baacutesica e

da proteccedilatildeo especial eacute que esta uacuteltima trata de um atendimento dirigido a situaccedilotildees de

violaccedilotildees de direitos Haacute portanto uma relaccedilatildeo tecircnue de difiacutecil diferenciaccedilatildeo tendo em

vista a falta de definiccedilatildeo mais expliacutecita dos conceitos Seraacute que famiacutelias em vulnerabili-

dade em funccedilatildeo da situaccedilatildeo econocircmica jaacute natildeo tiveram seus direitos violados E seraacute que

famiacutelias em situaccedilatildeo de vulnerabilidade tecircm seus viacutenculos fragilizados

Assim eacute definida a proteccedilatildeo social especial eacute a modalidade de atendimento assistencial

destinada a famiacutelias e indiviacuteduos que se encontram em situaccedilatildeo de risco pessoal e so-

cial por ocorrecircncia de abandono maus tratos fiacutesicos e ou psiacutequicos abuso sexual uso

de substacircncias psicoativas cumprimento de medidas socioeducativas situaccedilatildeo de rua

situaccedilatildeo de trabalho infantil entre outras (PNAS 2004)

Nos Centros de Referecircncia Especial da Assistecircncia Social (CREAS) satildeo realizados entre

outros serviccedilos de orientaccedilatildeo e apoio sociofamiliar visando fortalecer o conviacutevio fami-

liar e comunitaacuterio A PNAS prevecirc que cabe ao CREAS o acompanhamento das medidas

socioeducativas em meio aberto

AsMedidasSocioeducativas

O objetivo preciacutepuo da medida socioeducativa eacute educar o adolescente para o conviacutevio so-

cial de forma que ele natildeo volte a cometer atos infracionais e aprenda a conviver em so-

ciedade sem quebrar normas Portanto o foco de intervenccedilatildeo do psicoacutelogo no contexto

da socioeducaccedilatildeo deve levar em consideraccedilatildeo os trecircs aspectos fundamentais referentes

agraves funccedilotildees da medida socioeducativa descritas por Selosse (1997) quais sejam 1) seu

caraacuteter sancionatoacuterio ou seja o aspecto coercitivo da medida face agrave transgressatildeo come-

tida isto eacute a relaccedilatildeo do adolescente com a lei 2) seu caraacuteter educativo ou reeducativo a

reconciliaccedilatildeo do adolescente com seu entorno social em outros padrotildees relacionais ou

seja a relaccedilatildeo do adolescente com a sociedade e 3) seu caraacuteter reparatoacuterio a reconcilia-

ccedilatildeo do adolescente consigo mesmo por meio de processo interno que favorece a resti-

tuiccedilatildeo de sua imagem pessoal que fora contaminada pelo ato infracional ou a relaccedilatildeo

do adolescente com ele mesmo

77A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

Apoacutes a verificaccedilatildeo do ato infracional as medidas socioeducativas satildeo aplicadas pelo

juiz que considera a capacidade do adolescente em cumpri-las (ECA 2004) Veronese

(2006) comenta que a gravidade da infraccedilatildeo tambeacutem eacute analisada para aplicaccedilatildeo das me-

didas e deve ser feito de maneira ponderada considerando as circunstacircncias O adoles-

cente responderaacute pelo ato a partir do processo legal O ato eacute investigado pela delegacia

especializada ndash a Delegacia da Crianccedila e do Adolescente (DCA) ndash e depois a notificaccedilatildeo

eacute remetida agrave Vara da Infacircncia e Juventude (VIJ) para a instauraccedilatildeo do processo

Entende-se que a DCA e a VIJ ainda que tratem do processo legal relacionado aos atos

infracionais exercem seu poder de proteccedilatildeo por assegurar o devido andamento a esse

processo Contudo para assegurar outros direitos de proteccedilatildeo agrave crianccedila e ao adolescen-

te a populaccedilatildeo em vulnerabilidade natildeo conta com oacutergatildeos que lhes sejam acessiacuteveis

quanto agrave localizaccedilatildeo

Apoacutes o julgamento do processo as medidas socioeducativas satildeo aplicadas

Advertecircncia censura verbal realizada pelo juiz seguida de um termo assinado Volpi

(2005) acredita que esta medida eacute coercitiva e possui caraacuteter intimidatoacuterio que deveraacute

contar com a presenccedila dos responsaacuteveis como um ato ritualiacutestico (p 25) Contudo Vero-

nese (2006) descreve a natureza pedagoacutegica desta medida e ressalta que a presenccedila dos

pais eacute importante em razatildeo da responsabilidade desses sobre os adolescentes

Obrigaccedilatildeo de reparar o dano o juiz determina que o adolescente restitua eou recom-

pense a viacutetima Volpi (2005) considera esta medida ldquocoercitiva e educativa levando o

adolescente a reconhecer o erro e a reparaacute-lordquo (p 23) Veronese (2006) complementa que o

autor do ato infracional tambeacutem pode responder civilmente dependendo da natureza

de sua accedilatildeo Liberati (1995) pondera que os pais respondem solidariamente no processo

pela obrigaccedilatildeo de ressarcir o dano se seus filhos tiverem entre 16 e 21 anos antes disso

somente os pais ou responsaacuteveis legais respondem civilmente Mezzomo (2004) ressal-

ta quanto a esta medida que ldquoobrigaccedilatildeo de reparar o dano por oacutebvio que pressupotildee infraccedilatildeo

compatiacutevel com a espeacutecie visto que nem toda infraccedilatildeo deixa um dano a repararrdquo (p 7)

A prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade com duraccedilatildeo maacutexima de seis meses o adoles-

cente realiza tarefas gratuitamente em instituiccedilotildees de interesse puacuteblico respeitando o

horaacuterio da escola e de trabalho (caso exerccedila) Atualmente esta medida assim como a

78

obrigaccedilatildeo de reparar o dano eacute acompanhada pela Seccedilatildeo de Medidas Socioeducativas da

1ordf Vara da Infacircncia e Juventude do Tribunal de Justiccedila do Distrito Federal e Territoacuterios

(SEMSEVIJTJDFT) Veronese (2006) lembra que para a prestaccedilatildeo de serviccedilo eacute suge-

rido que haja uma relaccedilatildeo com o ato infracional mas que tal condiccedilatildeo natildeo eacute determi-

nada legalmente (p 100) Liberati (1995) acrescenta que ldquoas tarefas devem ser atribuiacutedas

conforme a aptidatildeo do adolescenterdquo (p 86) Esta medida evidencia a co-participaccedilatildeo social

no trato agraves questotildees da adolescecircncia tal qual previsto legalmente (Albergaria 1991)

uma vez que o adolescente presta serviccedilo em meio comunitaacuterio Por fim Volpi (2005)

ressalta que esta medida seraacute mais efetiva ldquona medida em que houver o adequado acompa-

nhamento do adolescente pelo oacutergatildeo executor o apoio da entidade que o recebe e a utilidade

real da dimensatildeo social do trabalho realizadordquo (p 24)

Liberdade Assistida (LA) adotada quando eacute a medida pertinente para ldquoacompanhar au-

xiliar e orientar o adolescenterdquo (ECA 2004) quando do cometimento de um ato infracio-

nal Volpi (2005) avalia a medida de LA como coercitiva por sua necessidade de acom-

panhamento da vida social do adolescente e educativa na garantia de ldquoproteccedilatildeo inserccedilatildeo

comunitaacuteria cotidiano manutenccedilatildeo de viacutenculos familiares frequumlecircncia agrave escola e inserccedilatildeo no

mercado de trabalho eou cursos profissionalizantes e formativosrdquo (p 24)

Esta medida tem a duraccedilatildeo miacutenima de seis meses podendo ser substituiacuteda prorrogada

ou revogada pelo oacutergatildeo de justiccedila Trata-se de um acompanhamento especial ao adoles-

cente em meio aberto supervisatildeo que inclusive Albergaria (1991) afirma depender o

cumprimento adequado da medida O autor acrescenta que agrave medida de LA o juiz pode

aplicar concomitantemente as outras duas medidas socioeducativas supracitadas bem

como realizar outros encaminhamentos como algum tratamento por exemplo

As medidas em meio aberto tem a vantagem de manter o adolescente em seu meio

natural natildeo o afastando de sua convivecircncia familiar e comunitaacuteria e portanto devem

ser acompanhadas e aplicadas preferencialmente nas localidades de moradia dos ado-

lescentes Neste sentido faz-se imprescindiacutevel um acompanhamento que propicie que

este adolescente ressignifique sua realidade ao estar nela inserido

Regime de semi-liberdade esta medida natildeo possui prazo normalmente sendo conce-

dida como transiccedilatildeo ao meio-aberto Assim como a medida de LA a medida de semi-

-liberdade eacute aplicada quando do cometimento de ato infracional e possui como eixo de

79A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

acompanhamento a obrigatoriedade escolar e a preocupaccedilatildeo com a inserccedilatildeo no merca-

do de trabalho Como lembra Veronese (2006) nesta medida o adolescente eacute recolhido

em um estabelecimento mas durante o dia pode realizar atividades externas A autora

acrescenta que esta medida pode ser determinada desde o inicio ou como relaxamento

do regime de internaccedilatildeo no caminho para a liberdade assistida

Internaccedilatildeo uacuteltima medida a ser aplicada quando todas as outras natildeo couberem mais

quando existe ameaccedila ou violecircncia agrave pessoa repeticcedilatildeo das infraccedilotildees ou descumprimen-

to injustificaacutevel da medida anterior A internaccedilatildeo dura no maacuteximo trecircs anos devendo

ser avaliada a cada seis meses Se o motivo da internaccedilatildeo for o descumprimento injus-

tificaacutevel da medida anterior o prazo de internaccedilatildeo natildeo poderaacute exceder trecircs meses Aos

21 anos a liberaccedilatildeo eacute compulsoacuteria ponderando que o limite maacuteximo de internaccedilatildeo eacute de

trecircs anos e caso o adolescente tenha cometido o ato infracional aos 17 anos ele poderaacute

ficar no regime de internaccedilatildeo somente ateacute esse prazo

Haacute duas modalidades de internaccedilatildeo a provisoacuteria de no maacuteximo 45 dias na qual o ado-

lescente aguarda o pronunciamento judicial e a estrita onde eacute cumprida essa medida

socioeducativa Posteriormente o adolescente eacute submetido agrave semi-liberdade ou agrave liber-

dade assistida como transiccedilatildeo agrave liberdade

Concomitante agraves medidas socioeducativas estaacute prevista a aplicaccedilatildeo de qualquer um

dos incisos previstos no artigo 101 Isto porque lembrando o inciso III do artigo 98 a

medida protetiva pode ser aplicada em funccedilatildeo da conduta do proacuteprio adolescente nesse

caso o ato infracional

Volpi (2005) ressalta que a medida de internaccedilatildeo limita ldquoo exerciacutecio pleno do direito e ir e

vir e natildeo de outros direitos constitucionaisrdquo (p 28) podendo sair acompanhado da equipe

teacutecnica para atividades externas salvo impedimento judicial (artigo 121 sect1 ECA) Outros

direitos satildeo assegurados no que concerne agrave internaccedilatildeo conforme artigo 123 do ECA a

saber a exclusividade do local de cumprimento da medida a separaccedilatildeo dos adolescentes

pela idade gravidade da infraccedilatildeo e porte fiacutesico No artigo 124 do ECA tambeacutem satildeo pre-

vistos o acesso dos adolescentes em internaccedilatildeo agrave informaccedilatildeo processual escolarizaccedilatildeo

profissionalizaccedilatildeo atividades culturais esportivas meios de comunicaccedilatildeo contato com

familiares e amigos visitas semanais condiccedilotildees de higiene e salubridade entre outros

80

Eacute inequiacutevoca a constataccedilatildeo de que a pena de reclusatildeo eacute falha em seu aspecto correcional

da conduta social Tem sido sistematicamente observado que a sanccedilatildeo de restriccedilatildeo de

liberdade cria seacuterios obstaacuteculos agrave ressocializaccedilatildeo aleacutem de ferir direitos fundamentais

do cidadatildeo Por outro lado tal medida tem sido cada vez mais adotada em adolescentes

principalmente em se tratando daqueles que praticaram crimes contra o patrimocircnio

porte de armas e envolvimento com traacutefico de drogas

De fato na maioria dos casos o adolescente que comete um ato infracional de maior

gravidade acumula um histoacuterico de pequenas transgressotildees do que se pode deduzir

que as medidas anteriormente aplicadas natildeo foram eficazes pois natildeo preveniram a

reincidecircncia Assim a medida de internaccedilatildeo eacute a opccedilatildeo indicada quando todas as demais

medidas falharam em seu propoacutesito soacutecioeducativo Poreacutem natildeo se pode responsabili-

zar o Estatuto pelas falhas na aplicaccedilatildeo das medidas pois na realidade as medidas natildeo

estatildeo sendo aplicadas de acordo com o que estaacute previsto A responsabilidade natildeo eacute outra

senatildeo da proacutepria sociedade que fracassou na aplicaccedilatildeo dos mecanismos estabelecidos

mas que insiste na praacutetica estereotipada de travestir sua culpa e condenar os proacuteprios

adolescentes pela inobservacircncia da lei

Paralelamente ao movimento antimanicomial ndash que libertou os loucos da reclusatildeo dos

hospiacutecios ndash e na contramatildeo da humanizaccedilatildeo dos serviccedilos a histoacuteria tenta repetir o iso-

lamento social dos jovens indesejaacuteveis trancafiando-os em verdadeiras prisotildees

Vaacutelido lembrar como exposto por Volpi (2005) que as medidas soacutecioeducativas devem

garantir ao adolescente as ldquooportunidades de superaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo de exclusatildeordquo (p 21)

com a participaccedilatildeo da famiacutelia e da comunidade

Mesmo com os direitos previstos no ECA em 2004 foi sistematizada e organizada a

proposta do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) Pretende-se

que este sistema guie a implementaccedilatildeo das medidas soicoeducativas Nele satildeo contem-

plados desde paracircmetros pedagoacutegicos ateacute questotildees de financiamento e responsabilida-

de de gestatildeo avaliaccedilatildeo e monitoramento perpassando tambeacutem por normas e defini-

ccedilotildees teacutecnicas relacionadas ao aspecto arquitetocircnico das unidades aleacutem de princiacutepios

e marcos legais que norteiam esse sistema com o conceito de integraccedilatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas

81A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

Muito se fala dos direitos expostos no ECA Secircda (1993) recorda que o conceito de ci-

dadania aplicado a crianccedilas e adolescentes enquanto sujeito de direitos foi difundido

inicialmente como se estes soacute tivessem direitos questatildeo que foi disseminada nos meios

de comunicaccedilatildeo aos pais passando por educadores e liacutederes comunitaacuterios

Comeccedilaram assim a se formar novos usos e costumes em que pessoas mal informadas

ou mal informadoras induzem a desvios ao afirmarem que o Estatuto enfraqueceu o po-

der dos pais na educaccedilatildeo dos filhos que crianccedilas e adolescentes tecircm o direito (ilimitado)

de ir e vir natildeo podendo ser molestados que a poliacutecia estaacute impedida de cumprir suas

funccedilotildees quando depara no mundo do crime com crianccedilas e adolescentes que crianccedilas

e adolescentes natildeo podem ser punidos quando se desviam das normas e assim por

diante (Secircda 1993 p 24)

O autor membro da comissatildeo redatora do Estatuto lembra que o ECA eacute um instrumen-

to ldquoa favor da sociedaderdquo (p 25) e que a todos crianccedilas adultos adolescentes e idosos

satildeo determinados direitos e responsabilidades Secircda (1993) descreve que ldquoo direito de

cada um se inicia com o seu dever Dever de respeitar o direito do outro Esse eacute o mundo da

eacutetica da responsabilidade socialrdquo (p 26) O autor tambeacutem pontua a diferenccedila de adultos

adolescentes e crianccedilas com relaccedilatildeo ao Direito assinalando que os primeiros tecircm ldquoo po-

der de se autodeterminarem em suas relaccedilotildees sociaisrdquo (p 31) Por exemplo conforme a legis-

laccedilatildeo brasileira a partir dos 12 anos o adolescente tem a capacidade de discernimento

para fazer ou natildeo atos que a lei define como crimes e contravenccedilotildees sendo portanto

autodeterminado para esse fim especiacutefico e natildeo para outros Jaacute no caso de crianccedilas ateacute

12 anos quando da praacutetica de tais atos ficam submetidas (conforme jaacute mencionado) agraves

medidas de proteccedilatildeo

Nesse sentido Veronese (2006) ressalta que

O Estatuto obriga sim ele responsabiliza condutas compreendidas como atos infracionais atraveacutes das medidas socioeducativas portanto servindo-se de mecanismos instrumentos de caraacuteter social e educacional pretende-se a real inserccedilatildeo do adolescente que praticou o suposto ato sem discriminaccedilotildees sem roacutetulos sem a perversidade da exclusatildeo social (p 110)

Saraiva (1998) lembra que a ldquoinimputabilidade natildeo implica impunidade uma que estabele-

ce medidas de responsabilizaccedilatildeo compatiacuteveis com a condiccedilatildeo peculiar de pessoa em desenvol-

vimento destes agentesrdquo (p 15) Diante do exposto observa-se que o ECA eacute um potencial

82

instrumento de direitos e deveres e sobretudo de proteccedilatildeo que se coaduna sincronica-

mente com os princiacutepios constitucionais e que envolve uma ampla rede de atendimen-

to

Contudo o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente tambeacutem eacute alvo de controveacutersias tanto

referente aos seus fundamentos que em geral natildeo satildeo bem interpretados ou possui

equiacutevocos juriacutedicos (Cavallieri 1995) quanto agrave sua execuccedilatildeo responsabilidade dos Po-

deres Legislativo Executivo e Judiciaacuterio e dos demais atores e agentes da sociedade civil

organizada e natildeo organizada

Pereira (2006) ao analisar o ECA e os comportamentos de diversos aplicadores e exe-

cutores da lei esclarece que o ECA eacute balizado na atenccedilatildeo prioritaacuteria e garante a imple-

mentaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para crianccedilas e adolescentes proporcionando ldquoo

efetivo caraacuteter de promoccedilatildeo de mudanccedilas nas praacuteticas culturais existentesrdquo (p 12) Poreacutem

o comportamento dos executores natildeo corresponde ainda a tais mudanccedilas Vaacuterias pes-

quisas que permeiam o direito das crianccedilas e adolescentes possuem essa criacutetica Nessa

direccedilatildeo Fucks (2004) apresenta as contradiccedilotildees entre o direito real e o direito legal e

mostra a natildeo prioridade do adolescente autor de ato infracional nas poliacuteticas puacuteblicas

refletida na morosidade insuficiecircncia e ineficaacutecia dos serviccedilos prestados aos adolescen-

tes Nogueira (1994) pontua que o anuacutencio dos direitos de crianccedilas e adolescentes agraves

vezes se transforma em uma ironia diante da realidade de natildeo acesso a esses direitos

por alguns deles tal qual acena Dimenstein (1998) em Cidadatildeo de Papel

ConsideraccedilotildeesFinais

Percebe-se que o paradigma da proteccedilatildeo integral e o estatuto que o alicerccedila representam

uma notaacutevel mudanccedila na compreensatildeo dos cuidados com a infacircncia e a adolescecircn-

cia no Brasil Sob essa perspectiva a proteccedilatildeo aplica-se prioritariamente agrave crianccedila e ao

adolescente com a integraccedilatildeo da famiacutelia da sociedade e do Estado em detrimento de

uma poliacutetica que buscava defender muitas vezes a famiacutelia a sociedade e o Estado dos

ldquomenores perigososrdquo Em vista disso eacute o princiacutepio do melhor interesse que prevalece cuja

primazia se faz em torno dos interesses e necessidades das crianccedilas e adolescentes E

como lembra Amin (2008) ldquomaterializaacute-lo eacute dever de todosrdquo (p 29)

83A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

Nesse sentido Mioto (2006) aponta duas questotildees relevantes para a consolidaccedilatildeo da

proteccedilatildeo integral uma nova concepccedilatildeo de assistecircncia agraves famiacutelias e por conseguinte

outra postura diante destas A primeira diz respeito agrave compreensatildeo de que proteger as

famiacutelias implica em proteccedilatildeo agraves crianccedilas e aos adolescentes ldquodessa forma ela (a famiacutelia)

tem o direito de ser assistida para que possa desenvolver com tranquumlilidade suas tarefas de

proteccedilatildeo e socializaccedilatildeo das novas geraccedilotildees e natildeo penalizada pelas suas impossibilidadesrdquo (p

57) Para tanto a sociedade e especialmente os teacutecnicos dos programas de atendimento

agraves famiacutelias tecircm agrave sua frente o desafio de sobrepujar a conceituaccedilatildeo dicotocircmica entre

ldquofamiacutelias capazes e incapazes normais ou patoloacutegicas e os estereoacutetipos e preconceitos delas

decorrentesrdquo (p 57)

Por uacuteltimo conveacutem refletir sobre as reais possibilidades do alcance do trabalho da psi-

cologia nesses contextos e compreender que assim como o SINASE preconiza a in-

completude das instituiccedilotildees e a necessidade da integraccedilatildeo de diferentes atores institu-

cionais tambeacutem o psicoacutelogo precisa reconhecer a incompletude de sua atuaccedilatildeo isolada

Por isso mesmo deve nutrir-se das forccedilas de suas redes de apoio social para que suas

accedilotildees natildeo pareccedilam apenas uma gota no oceano Trabalhar em rede eacute tambeacutem exercitar

a humildade o trabalho do psicoacutelogo pode muito mas natildeo pode tudo

A pesquisa de avaliaccedilatildeo dos 10 anos do ECA jaacute apontava como ldquoo grande desafio a efetiva

implementaccedilatildeo do paradigma da proteccedilatildeo integralrdquo (p 195) para a qual o clientelismo e a

repressatildeo no acircmbito das poliacuteticas sociais representavam fortes obstaacuteculos Entre outros

aspectos a pesquisa aponta a atuaccedilatildeo em redes e o protagonismo juvenil como itens

importantes para a consolidaccedilatildeo do ECA Ainda hoje remanesce tal desafio de garantia

da proteccedilatildeo integral e do papel protagocircnico do adolescente Passados quase duas deacuteca-

das da implementaccedilatildeo do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente o cenaacuterio das poliacuteticas

de atenccedilatildeo agrave infacircncia e juventude brasileiras em situaccedilatildeo de vulnerabilidade continua

refletindo o discurso e a praacutetica das abordagens estigmatizantes do velho paradigma mi-

norista Continuamos distantes do ideal de garantir a proteccedilatildeo integral preconizada pelo

estatuto Ainda que as concepccedilotildees oriundas dos antigos coacutedigos devessem ser ldquocoisa do

passadordquo seus ldquofantasmasrdquo se manifestam de forma contundente principalmente no

discurso e na praacutetica do atendimento ao adolescente em cumprimento de medida de in-

ternaccedilatildeo dos quais ressalta o aspecto punitivo da medida em detrimento de seu aspecto

socioeducativo Resta agrave sociedade civil e ao Estado a tarefa peremptoacuteria de vigilacircncia e

observacircncia do cumprimento da lei

84

O mais importante eacute que devemos reafirmar o compromisso eacutetico profissional defen-

der os direitos humanos a garantia da humanizaccedilatildeo destes serviccedilos e criar propostas

ousadas de atendimento principalmente aos adolescentes em conflito com a lei para

que se viabilize a emergecircncia do protagonismo juvenil longe das paacuteginas policiais Eacute

importante a presenccedila atuante do psicoacutelogo nesses contextos para fazer valer os direitos

do adolescente A privaccedilatildeo de liberdade deve se restringir apenas ao direito de ir e vir

Devem-se garantir a proteccedilatildeo integral a crianccedilas e adolescente aleacutem de seus direitos agrave

liberdade de expressatildeo de comunicaccedilatildeo de criaccedilatildeo de manifestaccedilatildeo da espontaneida-

de de dar e receber afeto de poder acreditar

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87 Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

ElviaTaracena

En este artiacuteculo se presenta una siacutentesis de los trabajos de investigacioacuten realizados des-

de una perspectiva socio-cliacutenica a lo largo de 15 antildeos en torno al programa Subjetivi-

dad y Sociedad de la FES-Iztacala Retomamos tambieacuten algunos otros estudios que son

acordes a la perspectiva que manejamos para ampliar la mirada y enriquecer nuestros

trabajos

Hemos defendido en todos estos antildeos la necesidad de hacer una investigacioacuten ligada al

campo de la intervencioacuten que permita caracterizar la complejidad del fenoacutemeno de la

vida en la calle En cada uno de los acercamientos a nintildeos y joacutevenes en riesgo o en situa-

cioacuten de calle hemos propuesto actividades que les sean uacutetiles y que puedan interesarles

a traveacutes de eacutestas hemos podido observar el fenoacutemeno de la vida en la calle y los aspectos

de su vida personal o su entorno social que los pone en riesgo asiacute como los procesos de

adaptacioacuten a la calle y su forma de responder a los conflictos Tomar en cuenta la posibi-

88

lidad de devolver a los nintildeos y joacutevenes y a las Asociaciones u organizaciones que trabajan

con ellos algo a cambio de aceptar dialogar con nosotros ha permitido equilibrar los

teacuterminos de la relacioacuten

En el mismo sentido un aspecto sumamente importante es el anaacutelisis de la implicacioacuten

del investigador en un proceso de intervencioacuten-investigacioacuten Ya que los sentimientos

las emociones las representaciones influyen las hipoacutetesis de trabajo y la relacioacuten con

los joacutevenes

Privilegiamos una perspectiva cualitativa de investigacioacuten ya que en nuestra opinioacuten

posibilita estudiar de manera fina los procesos implicados en los fenoacutemenos de margi-

nalizacioacuten y estigmatizacioacuten que se manifiestan en la vida en la calle En esta trayectoria

de investigacioacuten-intervencioacuten han participado la autora de este artiacuteculo investigadores

de este programa y estudiantes de Psicologiacutea quienes han realizado sus tesis mismas

que se citan en sus aportaciones

A traveacutes de estos trabajos se intenta dar cuenta de la realidad psicosocial del joven en si-

tuacioacuten de calle7 de su relacioacuten con el espacio de su relacioacuten con la economiacutea informal

y con las relaciones de poder Se han realizado estudios de caso individuales o de grupo

auxiliaacutendose con entrevistas cliacutenicas en profundidad y utilizando a menudo el dibujo

para explorar la realidad psiacutequica del nintildeo y del joven (Taracena y Tavera 1992 1996

1998 2001 Martiacutenez y Melgarejo 1996 Maacuterquez y Ordoacutentildeez 1996 Taracena Tavera y

Castillo 1993) En cada caso se pretende articular los aspectos sociales que caracterizan

la vida en la calle con las formas de expresioacuten singular de grupos o individuos con los

que hemos estado en relacioacuten para comprender mejor lo que significa la experiencia de

vivir y trabajar en la calle

El intereacutes de los estudios realizados ha sido tambieacuten explorar el caraacutecter psicosocial de

los fenoacutemenos de la salida a la calle de nintildeos y joacutevenes y resaltar la imposibilidad de la

familia y las instituciones como espacios previstos por la sociedad para la crianza del

7 A lo largo de nuestro trabajo hemos observado que el numero de nintildeos solos en las calles ha disminuido y ha aumentado el de adolescentes o joacutevenes adultas es por esta razoacuten que ha menudo utilizamos en este artiacuteculo el teacutermino joven para designar de forma geneacuterica los nintildeos y los adolescentes que se encuentran en la calle por otro lado el teacutermino en situacioacuten de calle designa los nintildeos que trabajan y los que viven en la calle

89Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

pequentildeo para funcionar como lugares de contencioacuten Por ello pensamos que es necesa-

rio mostrar que este fenoacutemeno estaacute ligado al sistema de inequidad en el cual estaacute basada

la sociedad mexicana actual En Meacutexico encontramos contradicciones tales como el he-

cho de que un hombre pueda acumular una riqueza imposible de gastaacutersela en su vida

y tampoco en la de varias generaciones de sus descendientes y que al mismo tiempo

haya millones de mexicanos que viven en una situacioacuten de pobreza extrema

La vida en la calle es una expresioacuten de esa inequidad y se va matizando por las historias

particulares de familias y de personas Especialmente en las grandes urbes la calle

ofrece espacios donde se pueden obtener beneficios materiales y formas de subsisten-

cia pero donde tambieacuten se roza la miseria el abuso del poder y la violencia Es por

esto que en nuestro trabajo vamos siempre de las condiciones sociales a las historias

individuales y viceversa en un movimiento recursivo que intenta dar cuenta de la com-

plejidad del fenoacutemeno

Los objetivos de estos estudios han sido

bull Conocer las representaciones que tienen los diferentes sectores sociales del fenoacute-

meno del trabajo y la vida de los nintildeos en la calle

bull Conocer las condiciones de vida y de trabajo de los nintildeos y joacutevenes de la calle para

sentildealar los riesgos que enfrentan pero tambieacuten sus posibilidades de aprendizaje

bull Conocer la representacioacuten que tiene la prensa de los joacutevenes de la calle

bull Conocer las caracteriacutesticas y la relacioacuten que establecen con sus familias asiacute como

la representacioacuten que tienen ellas

bull Realizar una reflexioacuten teoacuterica sobre la constitucioacuten de la identidad en condiciones

de marginalidad y sobre los mecanismos psico-sociales implicados en el grupo

como forma de organizacioacuten de la vida en la calle

Con base en dichos estudios planteamos hipoacutetesis sobre las condiciones de vida de

los joacutevenes de la calle Hemos puesto atencioacuten al anaacutelisis de los procesos sociales que

influyen en las trayectorias personales sin restarles importancia a las mismas Nos ha

interesado tambieacuten abordar el fenoacutemeno de la vida en la calle desde varias disciplinas

articulando conceptos que nos permitan tener una mejor comprensioacuten de la compleji-

dad del problema

90

Laeconomiacuteadelasupervivencia

De acuerdo con los datos del Banco Mundial sobre Meacutexico en el antildeo 2007 el ingreso Per

capita estimado es de 10108 doacutelares sin embargo tambieacuten sentildealan que de una pobla-

cioacuten total de 1074 millones el 45 gana menos de un doacutelar al diacutea y el 204 menos

de dos doacutelares esto significa que casi 25 millones de mexicanos estaacuten muy lejos de ac-

ceder al salario miacutenimo Por otro lado de acuerdo con los datos del CONEVAL (Consejo

Nacional de la Evaluacioacuten de la Poliacutetica de Desarrollo Social) en el 2007 se plantea que

A pesar de la tendencia a la reduccioacuten de la pobreza en los uacuteltimos antildeos se aprecia que este indicador se encuentra hoy en diacutea en niveles similares a los de 1992 47 por ciento de la poblacioacuten del paiacutes estaacute en situacioacuten de pobreza patrimonial y 182 por ciento en pobreza alimentaria De no incrementarse de manera acelerada los salarios reales y el empleo en el paiacutes los cuales son los principales motores del ingreso la pobreza no podraacute reducirse de manera sustantiva en el mediano y largo plazo

Esto significa que las estimaciones inducen a errores si se piensa que la calidad de

vida ha aumentado en Meacutexico ya que un sector importante de la poblacioacuten enfrenta

problemas de pobreza y en consecuencia desnutricioacuten y dificultades en atencioacuten a la

salud De acuerdo con el estudio realizado por el Dr Abelardo Aacutevila Curiel del Instituto

Nacional de Ciencias Meacutedicas y Nutricioacuten ldquoSalvador Zubiraacutenrdquo (INNSZ) sobre el estado

de la desnutricioacuten en Meacutexico se reporta que hay 972534 nintildeos desnutridos has el 18 de

septiembre del 2008

A consecuencia de la crisis econoacutemica y alimentaria el INNSZ estima un probable

aumento en la desnutricioacuten infantil en el 20 por ciento de la poblacioacuten maacutes pobre del

paiacutes y que se detenga el descenso de la mortalidad infantil que se habiacutea logrado en la

uacuteltima deacutecada8

8 httporganicconsumersorgACOartiacuteculos_15620cfm

91Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

La diferencia entre los niveles de vida y los ingresos entre las diferentes poblaciones en

Meacutexico ha sido muy marcada La distancia entre los pobres y los ricos se hace cada diacutea

mayor Ya en 1995 Julieta Campos observaba que la distancia entre los ricos y los po-

bres aumentoacute como resultado de los movimientos poliacuteticos y de adaptacioacuten del modelo

econoacutemico neoliberal La autora sentildeala que ya desde el noventa y cinco el ingreso de las

24 familias maacutes ricas de Meacutexico es equivalente al de 25 millones de los mexicanos maacutes

pobres

En un periodo de la historia reciente del paiacutes se creyoacute en un milagro econoacutemico Entre

los antildeos 30 y los 70 Meacutexico obtuvo un crecimiento espectacular de su PIB duplicaacutendolo

praacutecticamente9 lo que produjo una migracioacuten hacia las ciudades en particular hacia

la ciudad de Meacutexico que en 40 antildeos ha quintuplicado su poblacioacuten10 Un crecimiento

tan raacutepido ha impedido la absorcioacuten de estas poblaciones y con ello asistimos a la pro-

liferacioacuten de cinturones de miseria Estas nuevas entidades han alterado las formas de

organizacioacuten de la ciudad en particular el cambio de los barrios populares en el des-

plazamiento de poblaciones Las personas que llegan a Meacutexico desarrollan estrategias

de apropiacioacuten de la tierra de demanda de servicios y crean nuevas formas de acultu-

racioacuten11

Sin embargo las diversas crisis econoacutemicas que han golpeado al paiacutes desde los antildeos 80

no han hecho maacutes que aumentar la tasa de pobreza el nuacutemero de personas que viven

en un estado extremo de pobreza ha aumentado constantemente12 La crisis econoacutemica

y la migracioacuten en las zonas urbanas han contribuido al aumento del nuacutemero de perso-

nas que subsisten gracias al comercio ambulante Podemos distinguir varias categoriacuteas

de vendedores algunos de ellos teniendo un papel importante en la economiacutea informal

otros situaacutendose en el liacutemite de la mendicidad disfrazada

9 Seguacuten numerosos estudios el PIB pasoacute del 36 al 67 en ese periacuteodo

10 Meacutexico teniacutea en 1960 54 millones de habitantes y actualmente cuenta con maacutes de 25 millones

11 Un ejemplo interesante es el de Ciudad Netzahualcoacuteyotl que pasa de ser un gran cinturoacuten de miseria a ser un barrio popular con servicios y con una identidad propia en un periodo de 20 antildeos

12 Seguacuten Pieck y Aguado (1995) entre 1984 y 1989 la poblacioacuten en situacioacuten de pobreza extrema pasoacute de 11 millones a 149 millones Ademaacutes de acuerdo con los autores este porcentaje deberaacute incrementarse dado que el modelo de desarrollo y las poliacuteticas de modernizacioacuten e industrializacioacuten no benefician maacutes que a los exportadores

92

Los vendedores ambulantes son una institucioacuten en Meacutexico cuentan con una compleja

organizacioacuten y participan a traveacutes de sus liacutederes en la vida poliacutetica y social de los barrios

Estos mismos liacutederes aseguran los lazos entre los sectores formales e informales de la

economiacutea de un barrio y poseen a traveacutes de actividades como la negociacioacuten de permi-

sos y de espacios una forma importante de poder (Castro 1990)13

Otro caso es el de los vendedores de las esquinas o de semaacuteforos en alto quienes de-

ben negociar tambieacuten su lugar de venta pero participan mucho menos en las redes de

poder Estos vendedores ofrecen productos de moda o de uso corriente a bajos precios

Se trata de un mercado muy dinaacutemico pues los objetos deben ser renovados perioacutedica-

mente Este trabajo requiere ciertas habilidades el vendedor debe negociar raacutepidamen-

te convencer al cliente y buscar el beneficio mayor debe poder tambieacuten resistir a las

inclemencias del clima sol y lluvia y de la contaminacioacuten de la ciudad

Otra categoriacutea de vendedores es la que se define por las caracteriacutesticas de las personas

maacutes que por los productos vendidos Se trata de los nintildeos las mujeres de origen indiacute-

gena que a menudo llevan un nintildeo en brazos los ancianos o los discapacitados Estas

personas venden en general productos de bajo costo como dulces o chicles La relacioacuten

de venta se hace la mayoriacutea de las veces apoyada en una relacioacuten de ayuda ademaacutes del

intercambio mercantil

Los joacutevenes que lavan los parabrisas los tragafuegos o los pequentildeos payasos cuya ac-

tividad se encuentra maacutes proacutexima a la mendicidad son a menudo joacutevenes que viven en

la calle

En la Ciudad de Meacutexico hay familias enteras que sobreviven gracias a las diferentes

formas de comercio descritas A menudo toda la familia participa esto constituye una

especie de modelo familiar para asegurar los recursos econoacutemicos Las investigaciones

realizadas (Taracena 1995 Bueno 1990) muestran que ciertos joacutevenes vendedores en

la calle o aquellos que lavan los parabrisas pueden tener mayores ganancias que ciertos

obreros en una faacutebrica en ese contexto la importancia de la cantidad de dinero aportada

13 Castro Nieto (1990) estudioacute el papel de los liacutederes de los vendedores ambulantes en el Barrio de Tepito El autor pone en evidencia en su estudio la funcioacuten de control poliacutetico y social que pueden ejercer

93Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

por cada miembro de la familia puede introducir tensiones que transforman algunas

veces los lazos familiares (Taracena y Tavera 1996) Las relaciones de autoridad pueden

verse trastocadas ya que algunas veces un nintildeo pequentildeo puede aportar maacutes dinero a la

familia que alguno de los padres A menudo la consecuencia de este hecho es que el

nintildeo acepta mucho maacutes difiacutecilmente las reglas planteadas por la familia y se encuentra

seducido por el ambiente de la calle dejando de lado la escuela

En la economiacutea de la supervivencia encontramos entonces diferentes posiciones y es-

tatus desde los vendedores ambulantes organizados hasta los joacutevenes callejeros que

trabajan en situaciones maacutes o menos estructuradas hasta llegar a veces a situaciones

proacuteximas a la mendicidad

Los conceptos teoacutericos que nos pueden ayudar a dar cuenta de esta realidad no son

faacuteciles de elegir En los esfuerzos de los intelectuales mexicanos por dar cuenta de la

pobreza y de las formas de la sobrevivencia en los medios populares se escribioacute mucho

en los antildeos setenta sobre la nocioacuten de marginalidad un ejemplo de ello es el trabajo de

Lomnitz (1978) Este concepto fue abandonado en beneficio del de mercado informal

que implica una comprensioacuten populista (Fassin 1996) En esa liacutenea antropoacutelogos y so-

cioacutelogos se interesaron por el estudio de la cultura popular como una manera de conocer

los aspectos identitarios de las clases populares Las criacuteticas a esta posicioacuten mostraron

que la idea de cultura popular es un terreno de produccioacuten de discursos de estado o folk-

loacutericos que buscan definir los lazos de identidad

De acuerdo con Fassin (1996) la nocioacuten de exclusioacuten es otra propuesta para pensar la

posicioacuten de aquellos que no acceden a los derechos sociales fundamentales y deberiacutea

ser puesta en tela de juicio en ciertos paiacuteses en particular en Ameacuterica Latina donde la

poblacioacuten llamada excluida nunca ha sido incluida en una situacioacuten de empleo formal

Tal es el caso de Meacutexico en donde una parte importante de la poblacioacuten mexicana vive

de su participacioacuten en el sector informal y soacutelo una pequentildea parte de la poblacioacuten tiene

una seguridad en el empleo

De acuerdo con el observatorio de la economiacutea informal en su publicacioacuten del 9 de

Mayo del 2009 ldquoDevereux pone en primer teacutermino el hecho de que el ser humano

Los Vendedores callejeros son la cara visible de una economiacutea sumergida que no figura en las

94

estadiacutesticas oficiales pero que seguacuten el Fondo Monetario Internacional representa hasta el 30

por ciento del Producto Interno Bruto (PIB) de Meacutexico

La economiacutea informal emplea a unos 12 millones de mexicanos o la tercera parte de la poblaci-

oacuten ocupada del paiacutes seguacuten datos de la Caacutemara Nacional de la Industria de Transformacioacuten14

Quizaacute el teacutermino que maacutes se acercariacutea a la posibilidad de dar cuenta del fenoacutemeno de

los nintildeos y joacutevenes en situacioacuten de calle es el desafiliacioacuten social (Castel 1995) pues los

joacutevenes de la calle son excluidos de los sistemas de educacioacuten y salud Aunque lo ante-

rior no significa que ellos no tengan sus mecanismos de auto-adscripcioacuten a grupos de

joacutevenes que les permiten un sentimiento de pertenencia y que definen formas diferen-

tes de socializacioacuten que los impuestos por la cultura dominante

La pregunta que surge a menudo cuando se realizan acciones institucionales para tra-

bajar con esta poblacioacuten es iquestPor queacute esos joacutevenes se encuentran en la calle A menudo

la explicacioacuten que proponen los servicios sociales es maacutes bien de iacutendole psicoloacutegica ya

que tiende a responsabilizar al joven o a su familia de la expulsioacuten del nintildeo a la calle Asiacute

se insiste en constatar las fallas o faltas individuales o del grupo familiar

La descripcioacuten y anaacutelisis de la situacioacuten socio-econoacutemica y poliacutetica que subyace al incre-

mento de la poblacioacuten en situacioacuten de supervivencia es importante porque ante todo

el problema de los joacutevenes de la calle es resultado de una situacioacuten social El tratar de

explicar el fenoacutemeno de callejerizacioacuten soacutelo a partir de un marco psicoloacutegico contribui-

riacutea a des-responsabilizar al Estado y a la sociedad en su conjunto de un hecho que no

es maacutes que la expresioacuten de la sociedad en la que vivimos que se concretiza en personas

particulares

Tenemos la hipoacutetesis de que los joacutevenes que se encuentran ahora en la calle provienen

de familias que migraron del campo a la ciudad hace dos o tres generaciones y que en

el proceso de adaptacioacuten a la Ciudad de Meacutexico perdieron sus referentes culturales sin

adquirir otros Es innegable que el porcentaje mayor de joacutevenes de la calle se encuentra

en las zonas urbanas ya que en las comunidades pequentildeas los nintildeos que deben trabajar

conservan en general sus lazos con la familia y la comunidad

14 httpeconomia-informalblogspotcom

95Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

Algunos estudios realizados en la Ciudad de Meacutexico van en ese sentido Un estudio

realizado por Ekstein (1999) de 1967 a 1997 muestra la evolucioacuten de poblaciones que

participan en la economiacutea informal y en la economiacutea de la supervivencia La autora es-

tudioacute tres barrios de la Ciudad de Meacutexico en donde se realizan actividades de comercio

y donde se encuentra un gran nuacutemero de talleres y de micro-empresas familiares Uno

en el centro de la ciudad y otros dos en la periferia

En el curso de los treinta antildeos en el que Ekstein realizoacute su estudio observoacute una pauperi-

zacioacuten de las poblaciones estudiadas que los obliga a cambiarse de barrio en la buacutesque-

da de espacios y mano de obra maacutes baratos Esta movilidad ha roto a menudo el espiacuteritu

comunitario el modo de organizacioacuten y los haacutebitos de solidaridad La autora subraya

que se ha producido un incremento en las actividades del comercio ligadas a la droga

Se trata de un mercado domeacutestico secundario de drogas poco caras principalmente

marihuana e inhalantes Los habitantes de estos barrios estaacuten entrampados en una eco-

nomiacutea en la que juegan un doble papel como consumidores y como distribuidores

particularmente las generaciones joacutevenes La autora piensa que la peacuterdida de espiacuteritu

comunitario cobra un papel importante en la dificultad para luchar con este fenoacutemeno

Ciertos haacutebitos culturales y familiares de organizacioacuten y de solidaridad permiten ―en

ocasiones― a las familias maacutes pobres hacer frente a la falta de empleo y a las condicio-

nes de precariedad de la vida cotidiana Los cambios econoacutemicos producen migracio-

nes modos de urbanizacioacuten que rompen a menudo con estas cadenas de solidaridad el

sujeto se encuentra de maacutes en maacutes aislado de su grupo de referencia y debe hacer frente

solo o en el mejor de los casos en el seno de una familia mono-nuclear a las dificultades

para encontrar formas de supervivencia

En ese sentido es interesante el trabajo de Bronfman (1993) quien ha estudiado las

familias que muestran un porcentaje elevado de mortalidad infantil en las colonias po-

bres de la ciudad de Meacutexico El autor comparoacute 74 familias y encontroacute que en condi-

ciones sociodemograacuteficas equivalentes la tasa de mortalidad infantil estaacute ligada a la

ausencia de relaciones sociales que les ayudan a hacer frente a las urgencias en caso de

enfermedad o accidente

Es innegable entonces que la peacuterdida del lazo social se encuentra en la base del fenoacute-

meno que queremos estudiar pero queda por responder por queacute algunos joacutevenes en

96

particular Mediante una investigacioacuten de campo sustentada en maacutes de 100 joacutevenes en

situacioacuten de calle entrevistados (Taracena y Tavera 1996) encontramos que algunos

se encuentran en la calle cuando sus hermanos permanecieron en casa a pesar de vivir

condiciones similares de pobreza o de violencia por lo que se plantea que no se pueden

establecer lazos directos yo lineales entre pobreza violencia y situacioacuten de calle En

muchas de las historias de los nintildeos que se encuentran en la calle hay testimonios de

violencia pero lo que llama la atencioacuten es que encuentran en la calle tanta o maacutes violen-

cia que en su casa queda entonces la pregunta por responder en cuanto a las razones

por las cuales el nintildeo permanece en la calle y del poco arraigo que tiene a las Institucio-

nes que le ofrecen proteccioacuten

En la primera parte de nuestras investigaciones hemos realizado un diagnoacutestico de las

condiciones de vida de varios sectores de los joacutevenes que trabajan y de los que permane-

cen en la calle de manera constante o durante el diacutea Siempre nos ha interesado en los

estudios realizados no insistir solamente en sus dificultades y carencias sino tambieacuten

conocer sus capacidades en particular para subsistir en condiciones difiacuteciles Hemos

buscado conocer sus condiciones de vida sus modos de estructuracioacuten y la construcci-

oacuten de su identidad asiacute como su realidad psiacutequica

Asiacute en un estudio que llevamos a cabo (Taracena Tavera y Castillo 1993) hemos obser-

vado las diferencias entre cuatro categoriacuteas de nintildeos que trabajan tratando de describir

diferentes situaciones y tomando en cuenta la desarticulacioacuten o no de su familia y la

realizacioacuten de un proyecto escolar

a Nintildeos empacadores en los supermercados

b Nintildeos vendedores

c Nintildeos que prestan servicios

d Nintildeos que hacen diversos trabajos o realizan espectaacuteculos en la calle

97Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

a) Los nintildeos que empacan en los supermercados

Se trataba de chicos entre trece y diez y seis antildeos que trabajaban en los supermercados

ayudando a la gente a meter sus compras en las bolsas de plaacutestico y a llevarlas hasta su

automoacutevil a cambio de una propina

La mayoriacutea de estos joacutevenes trabajaban entre cuatro o cinco horas por diacutea y realizaban

esta actividad ademaacutes de sus estudios No teniacutean un salario pero como la mayoriacutea de la

gente les daba una propina percibiacutean una cantidad maacutes o menos regular por diacutea Por

esta razoacuten los supermercados les plantean un cierto nuacutemero de exigencias Por ejem-

plo los chicos debiacutean tener una autorizacioacuten por escrito de sus padres debiacutean mostrar

que estaban inscritos a la escuela y que compraban ellos mismos su uniforme Estar

siempre limpios ser puntuales y disciplinados en la organizacioacuten de su trabajo

Entrevistamos a doce joacutevenes empacadores entre los cuales habiacutea dos chicas La mayo-

riacutea de ellos teniacutean entre catorce y quince antildeos y estaban en segundo o tercero de secun-

daria Solamente dos de los joacutevenes habiacutea abandonado la escuela De acuerdo con las

entrevistas y la opinioacuten de los mismos joacutevenes el trabajo no implicaba ninguacuten riesgo

importante Encontramos que para los doce joacutevenes el trabajo era formativo y completa-

ba la experiencia de la escuela y de la familia en el proceso de socializacioacuten

El motivo por el cual trabajaban de acuerdo con la mayoriacutea de los entrevistados era

el de tener un dinero personal Sin embargo solamente cuatro lo guardaban soacutelo para

ellos y los ocho restantes compartiacutean su dinero con la familia

En cuanto a su proyecto personal cinco dijeron tener deseos de hacer estudios univer-

sitarios tres de hacer estudios teacutecnicos uno de ser empleado y tres no hablaron de un

proyecto particular

b) Los nintildeos vendedores

Se trataba de nintildeos que vendiacutean diversos objetos en las calles por ejemplo chicles dul-

ces fruta bebidas antojitos juguetes globos artiacuteculos de decoracioacuten etceacutetera

Entrevistamos a catorce nintildeos vendedores la mayoriacutea entre ocho y quince antildeos encon-

tramos uno solo de siete y tres de diez y seis antildeos entre quienes dos eran chicas La

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mayoriacutea de estos nintildeos estudiaban entre el tercer antildeo de la escuela primaria y el primero

de secundaria Una de las muchachas llegoacute hasta la preparatoria pero debioacute interrum-

pirla para dedicarle maacutes tiempo a su trabajo De acuerdo con las entrevistas y a juzgar

por el lugar donde el nintildeo realizaba las ventas los riesgos maacutes claros eran para tres de

ellos la exposicioacuten demasiado directa a la contaminacioacuten para ocho el riesgo de acci-

dentes y para dos la incompatibilidad con la escuela por el nuacutemero de horas dedicadas

al trabajo Nueve trabajaban todos los diacuteas tres solamente los fines de semana Uno de

manera irregular y uno de ellos una vez por semana

En lo que concierne a la elaboracioacuten de un proyecto personal cinco expresaron un

deseo de hacer estudios universitarios entre ellos la joven que interrumpioacute su prepa-

ratoria manifestando al mismo tiempo el sentimiento de que seguramente no llegariacutea

a hacerlo porque era prioritario ayudar a su familia tres expresaron su deseo de tener

un comercio propio dos de ser artistas y cuatro no expresaron un proyecto particular

El motivo por el cual estos nintildeos trabajaban de acuerdo con ellos mismos es el de

la necesidad de subsistir Cuatro de ellos hablaban de la falta de dinero en su familia

como una situacioacuten que produciacutea conflictos tres perteneciacutean a familias que inmigraron

a la ciudad de Meacutexico en busca de trabajo Diez de estos nintildeos daban todo el dinero que

ganaban a su familia tres se quedaban con una parte para ellos mismos y solamente

uno dijo no dar dinero a su familia y reservarlo soacutelo para sus gastos personales

De acuerdo con la entrevista consideramos que para nueve nintildeos el trabajo podiacutea con-

siderarse como una situacioacuten formativa que completaba su proceso de socializacioacuten

Para cinco de ellos no lo era ya sea porque eran demasiado joacutevenes o porque su trabajo

resultaba incompatible con la escuela

c) Los nintildeos que prestan servicios

En esta categoriacutea encontramos joacutevenes entre doce y quince antildeos todos del sexo mas-

culino con una escolaridad promedio entre el sexto de primaria y el primero de secun-

daria Se trataba de joacutevenes que realizaban trabajos tales como limpiar zapatos lavar

carros cargar bultos u objetos pesados o hacer quehaceres domeacutesticos lavar parabrisas

entre otros

99Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

Solamente pudimos entrevistar cuatro joacutevenes que realizaban este tipo de trabajo Uno

que limpiaba parabrisas que lo haciacutea todos los diacuteas uno que lavaba coches solamente

los fines de semana uno que haciacutea quehaceres domeacutesticos de manera irregular y uno

que cargaba los instrumentos de muacutesica de los integrantes de un grupo de rock los fines

de semana Los cuatro joacutevenes hablaban de riesgos de violencia con sus compantildeeros

quienes intentaban quitarles su dinero dos estaban muy expuestos a la contaminacioacuten

y uno a riesgos de accidentes por la naturaleza de su trabajo

Uno de estos nintildeos daba todo el dinero que ganaba a su familia dos les daba la mitad y

la otra mitad lo reservaban para ellos mismos y uno lo conservaba todo para siacute mismo

El motivo que enunciaron de por queacute trabajaban era el de tener dinero sin que el he-

cho de que no lo obtuvieran pareciera producir conflictos en su familia Consideramos

que para estos cuatro chicos la experiencia de trabajo era formativa y les ayudaba en su

desarrollo

Concerniendo la posibilidad de enunciar un proyecto en particular uno de ellos habloacute

de su deseo de hacer estudios profesionales uno de ser muacutesico y los dos restantes no

hablaron de ello

d) Los nintildeos que hacen trabajos diversos o realizan espectaacuteculos

En esta categoriacutea se encontraban los nintildeos menos estructurados y que tienen menos

lazos con sus familias Entrevistamos seis nintildeos que realizaban este tipo de actividad

La edad promedio de los chicos era de doce antildeos

Fue necesario analizar separadamente las entrevistas de cinco de ellos pues perteneciacute-

an a un grupo de nintildeos que viviacutean completamente en la calle cerca de los respiraderos

del metro que producen calor y debajo de un puente que les brindaba un poco de protec-

cioacuten Estos nintildeos no teniacutean ninguacuten lazo con su familia trabajaban de manera irregular

algunos de ellos limpiando parabrisas a veces otros ayudando en los mercados algunos

otros de tragafuegos en los semaacuteforos Deciacutean trabajar soacutelo el tiempo indispensable

para juntar dinero para sus necesidades maacutes importantes que ellos mismos enuncia-

ban en el orden siguiente comida droga (cemento y alcohol) y la posibilidad de pagar

por utilizar los videojuegos El otro nintildeo que perteneciacutea a esta categoriacutea era cantante en

100

la calle y los autobuses conservaba lazos deacutebiles y conflictivos con su familia pero no

habiacutea roto totalmente con ella

Los nintildeos de esta categoriacutea deciacutean tener la posibilidad de reunir entre veinte y treinta

pesos por diacutea Para todos ellos los riesgos encontrados en su trabajo fueron el contacto

con la contaminacioacuten y sobre todo para cinco de ellos los que viviacutean solos la violencia

de la policiacutea y la violencia del contacto con sus propios compantildeeros o con otros grupos

que viviacutean como ellos Ninguno hablaba de un proyecto social Todos referiacutean la nece-

sidad de trabajar para subsistir y tres de ellos de la violencia familiar como motivo de

separacioacuten de sus familias

El grado de escolaridad era mayor en los nintildeos que ayudaban en los supermercados (en

general secundaria) el de los vendedores y de los servicios era equivalente (primaria

incompleta) mientras que el de trabajos diversos y espectaacuteculos era muy bajo (2o de

primaria)

Los riesgos van en aumento de ninguno en el grupo 1 hasta riesgos importantes como

violencia y droga en el grupo 4 Hay un mayor nuacutemero de nintildeos en el grupo 1 que utili-

zaba su dinero para siacute mismo en los grupos 2 y 3 habiacutea un mayor nuacutemero de nintildeos que

dan todo su dinero a la familia

Los proyectos sociales eran maacutes ambiciosos para el caso de los joacutevenes del grupo 1 esto

coincide con el grado de escolaridad de los hermanos que era maacutes elevado y la ocupa-

cioacuten de los padres con mayor estatus y posiblemente mayor estabilidad de hecho en

ese grupo habiacutea tambieacuten un mayor nuacutemero de madres que se quedaban en casa esto

hablariacutea quizaacute de una situacioacuten econoacutemica mejor de la familia en donde no se requeriacutea

necesariamente que las madres trabajasen No es asiacute para el caso del grupo de vendedo-

res en donde diez de catorce madres trabajaban

Una vez maacutes confirmamos las hipoacutetesis de Bourdieu y Passeron (1970) en lo que con-

cierne a la reproduccioacuten de la situacioacuten social de los padres y la escolaridad de los nintildeos

Es claro en el caso del grupo 2 en donde habiacutea una perfecta coherencia entre la activi-

dad que realizaban los nintildeos las de los padres y las ambiciones de los nintildeos

En general pudimos observar que en el grupo 2 y 3 las condiciones materiales de la fa-

milia eran maacutes precarias habiacutea un mayor nuacutemero de hijos que trabajaban habiacutea mayor

101Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

ausencia de los padres y por consecuencia mayor nuacutemero de madres que debiacutean hacer

de jefe de familia y atender al mismo tiempo los aspectos materiales que los relacionales

en la familia No pensamos que las condiciones de precariedad o de pobreza sean las

responsables directamente de los problemas de relacioacuten de una familia pero pueden en

un momento actuar como catalizador para aumentar la dimensioacuten del problema Fue

de hecho el caso del grupo 2 donde habiacutea maacutes nintildeos que percibiacutean a sus padres como

poco atentos o disponibles

Encontramos tres tipos de situacioacuten para los chicos que participaron en este estudio la

primera representada por el grupo 1 donde encontramos en general condiciones fami-

liares favorables Para este grupo el trabajo era maacutes formativo y agradable a causa de

varios factores la mayor parte de ellos decidioacute trabajar por su propia iniciativa aunque

con el consentimiento de sus padres la mayoriacutea de los joacutevenes se encontraban alrede-

dor de los quince antildeos lo que les permitiacutea aprovechar la experiencia teniacutean mejores

condiciones en su trabajo y se confrontaban a una situacioacuten maacutes estructurada que sig-

nificaba un mayor aprendizaje de las reglas Los conflictos encontrados en este grupo

fueron en general los propios de su edad

La segunda es una situacioacuten que nosotros llamariacuteamos de riesgo representada por los

grupos 2 y 3 Las condiciones que acompantildeaban el trabajo del nintildeo eran maacutes difiacuteci-

les En estos grupos eran maacutes joacutevenes doce antildeos en promedio muchos de ellos con

una experiencia de trabajo de varios antildeos A menudo estos nintildeos mostraban un cierto

cansancio o desaacutenimo El dinero que ganaban era importante y necesario para el sus-

tento familiar situacioacuten que produce en algunos casos una cierta tensioacuten en la relacioacuten

padres- hijos sobre todo en el caso de que el dinero pudiera faltar Percibimos maacutes

riesgos de abandono escolar La familia aparece menos estructurada y aparentemente

teniacutea mayores dificultades de cumplir con su funcioacuten de contencioacuten y de apoyo En este

grupo percibiacuteamos mayores problemas de inseguridad en los nintildeos

La tercera situacioacuten la representaban los nintildeos del grupo 4 en la que se encontraba una

situacioacuten francamente de desarticulacioacuten familiar y de desadaptacioacuten social expresada

en el uso frecuente de drogas y un comportamiento sexual correspondiente a joacutevenes

de mayor edad Estos nintildeos teniacutean problemas en su capacidad de establecer lazos afec-

tivos y en su auto-estima Los resultados obtenidos a lo largo de entrevistas de las ob-

servaciones y del anaacutelisis de los dibujos confirma la observacioacuten de Taboada-Leonetti

102

(1990) en cuanto a que en algunos casos el nintildeo o el adolescente tiende a afirmarse en

la imagen estigmatizada que se le presenta de siacute mismo encontramos tambieacuten muchas

coincidencias con el trabajo de Aacutengel Botbol y Facy (1987) sobre los procesos implica-

dos en el uso de inhalantes Podemos considerar que la utilizacioacuten de esta droga es un

siacutentoma que se encuentra entre una problemaacutetica social y los conflictos intra-psiacutequicos

del individuo A menudo el chico que inhala inviste su cuerpo a defecto de una funcioacuten

psiacutequica maacutes elaborada y de una posibilidad de simbolizacioacuten La primaciacutea de las sensa-

ciones corporales ocupa tambieacuten un lugar importante en su vida en el ejercicio precoz

de su sexualidad

Elprocesodecallejerizacioacuten

El estudio de la marginalidad permite la reflexioacuten y la elaboracioacuten de conceptos teoacutericos

alrededor de la funcioacuten social de los grupos minoritarios sobre la funcioacuten que cumplen

como depositarios de la diferencia del no ser del no saber del no tener Las formas de

referirse en los estudios de investigadores y educadores a los joacutevenes cuyas vidas trans-

curren mayoritariamente en la calle ha cambiado por un lado por que se trata de un

proceso dinaacutemico y no estaacutetico De las clasificaciones propuestas por UNICEF que se

abordan de manera detallada en el primer capiacutetulo de este libro al concepto de nintildeos y

joacutevenes en situacioacuten de calle o en proceso de callejerizacioacuten se encuentran tambieacuten las

preocupaciones de las organizaciones que trabajan con ellos de no contribuir a su estig-

matizacioacuten En todo caso nos parece importante insistir que se trata de un proceso de

una suerte de trayectoria que sigue el nintildeo en su relacioacuten con la calle y que da como re-

sultado diferentes posiciones existenciales Nos parecioacute importante darle la voz a nintildeos

y joacutevenes que se encontraban en diversas posiciones en cuanto a su relacioacuten con la calle

y la actividad que desempentildean en ella pero tambieacuten quisimos darle la voz a los transe-

uacutentes a los ciudadanos que diacutea con diacutea recorren la Ciudad de Meacutexico y miran a estos

nintildeos con una mezcla de indiferencia compasioacuten y a veces rechazo para saber cuaacuteles

eran sus representaciones con respecto de estos nintildeos Por uacuteltimo quisimos tambieacuten

conocer la imagen que la prensa da de ellos y la consecuencia que eacutesta puede tener en el

fenoacutemeno de callejerizacioacuten Sabemos que la mirada del otro construye al sujeto y que

en algunos casos eacuteste se siente atrapada por ella Los nintildeos y joacutevenes que subsisten en la

calle diariamente se cruzan con miles de miradas y a su vez las imaacutegenes de los medios

y de la prensa construyen nuestra mirada

103Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

A traveacutes de entrevistas semi-directivas con una orientacioacuten cliacutenica en donde se ha pues-

to el eacutenfasis en el anaacutelisis de los procesos de transferencia y contra-transferencia se

intentoacute aprehender la representacioacuten del problema de diferentes sectores sociales en la

Ciudad de Meacutexico

Un anaacutelisis de contenido permitioacute tener una visioacuten global en relacioacuten a la imagen del

problema que tiene cada sector entrevistado Las entrevistas fueron divididas en dife-

rentes categoriacuteas de acuerdo al tipo de trabajo realizado por el nintildeo vendedores servi-

cios espectaacuteculos y limpiador de parabrisas Este uacuteltimo fue motivo de una categoriacutea

aparte de la de servicios (boleros lava carros o cargadores) pues observamos que los

limpia parabrisas son percibidos de una manera particular por la gente ya que son los

que tienen mayor contacto con la poblacioacuten en la ciudad

Se observoacute que el nivel de estudios del nintildeo es diferente dependiendo del trabajo re-

alizado la mayoriacutea de los vendedores terminaron la primaria y el 37 continuaban

asistiendo a la escuela Los nintildeos que se dedicaban a servicios en su mayoriacutea la inter-

rumpieron alrededor del tercer antildeo de primaria y los que realizaban espectaacuteculos eran

casi todos analfabetos funcionales Esta diversidad contrastaba con la imagen que da la

prensa unificada alrededor del nintildeo que trabaja en la calle como casi sin escolarizacioacuten

La opinioacuten de la prensa la de los transeuacutentes y la informacioacuten de los nintildeos coincidiacutean

en los horarios de trabajo La mayoriacutea de los nintildeos trabajaban entre 6 y 10 horas por diacutea

y durante 6 diacuteas o maacutes Nuestras observaciones nos permiten hablar de una categoriacutea

particular de nintildeos vendedores que representa el 32 de ellos y que trabajaban sola-

mente el fin de semana muchos de ellos en compantildeiacutea de otros miembros de la familia

Eran seguramente los mismos que continuaban su escolarizacioacuten

Por su parte los transeuacutentes y los nintildeos a traveacutes de las entrevistas percibiacutean como acti-

vidad principal la del comercio dato confirmado por COESNICA (1992) que reportaba

un 699 de nintildeos que realizaban esta actividad

En lo que concierne a la imagen del nintildeo en relacioacuten con la actividad realizada los nintildeos

afirmaban que la gente aceptaba sus servicios cuando eacutesta los necesitaba Los transeuacuten-

tes confirmaban generalmente la misma idea pero el 30 de los entrevistados situaba

a los nintildeos en la mendicidad Por su parte la prensa los colocaba francamente en la

104

mendicidad como individuos inuacutetiles para la sociedad Esta imagen no era reconocida

por los propios nintildeos quienes en su mayoriacutea consideraban realizar un trabajo

Los nintildeos hablaban de su trabajo como una actividad faacutecil los limpiaparabrisas y los

de servicios deciacutean realizar una actividad cansada Los transeuacutentes pensaban tambieacuten

que esta actividad era cansada pero ademaacutes agregaban la dimensioacuten de peligro que en

general no era reconocida como tal por los propios nintildeos

En relacioacuten a la percepcioacuten de los nintildeos en lo que se refiere a la actitud de la gente eacutesta

variaba de acuerdo a la categoriacutea de los nintildeos entrevistados los limpiaparabrisas y los de

servicios sentiacutean la actitud de la gente mucho maacutes hostil que los vendedores Los transe-

uacutentes percibiacutean la actitud de la gente hacia los nintildeos como hostil La prensa la describiacutea

maacutes en teacuterminos de agresividad

En lo que concierne a la actitud de los propios nintildeos a la gente solamente los vendedo-

res en un 33 hablaban de ser amables con el puacuteblico la mayoriacutea de los nintildeos deciacutean

reaccionar de la misma manera en que eran tratados Los transeuacutentes pensaban lo mis-

mo La prensa poniacutea el eacutenfasis en la agresividad explicando que como son a menudo

maltratados por el puacuteblico ellos tambieacuten reaccionan de una manera agresiva

En cuanto al origen del problema las tres categoriacuteas analizadas los nintildeos los transeuacuten-

tes y la prensa estaban de acuerdo en el hecho de que es la pobreza en primer lugar y la

desintegracioacuten familiar en segundo lugar los motivos principales de este problema La

prensa y los transeuacutentes pensaban tambieacuten que la inmigracioacuten campo-ciudad era una

causa importante sin embargo en nuestras entrevistas hay pocos casos de nintildeos que

proveniacutean de la provincia

En la categoriacutea riesgos de la actividad los nintildeos y los transeuacutentes reconociacutean la enferme-

dad como el riesgo maacutes importante seguida por la violencia por parte de la policiacutea Los

nintildeos que realizaban espectaacuteculos los de servicios y los limpiaparabrisas en un 26

hablaban de la droga como un riesgo importante Los transeuacutentes lo pensaban tambieacuten

en su mayoriacutea La prensa hablaba de la adiccioacuten a los inhalantes no como un riesgo sino

como un hecho afirmando que el 80 o 90 de los nintildeos que estaban en la calle en ese

entonces se drogaban La delincuencia y la homosexualidad eran reconocidas por los

nintildeos como un riesgo La prensa hablaba de la homosexualidad en algunos nintildeos como

105Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

un problema que atantildee a todos La prensa y los transeuacutentes tendiacutean en lo general a aso-

ciar mecaacutenicamente y muy directamente el hecho de estar en la calle y el de convertirse

en delincuente

Sobre las posibilidades de aprendizaje y de construccioacuten en tanto individuo el resultado

de las entrevistas hace pensar que los aprendizajes maacutes importantes estaacuten alrededor de

la posibilidad de organizar su tiempo y su dinero tambieacuten en la capacidad de tomar de-

cisiones y de evaluar los riesgos y sobre todo de ser independiente y autosuficiente Por

uacuteltimo de ganar dinero para eacutel y su familia Los transeuacutentes no reconociacutean en general

la experiencia de la calle como una experiencia que pudiera ser constructiva en algunos

aspectos En este caso por el contrario la prensa coincidiacutea con nosotros reconociendo

el desarrollo de las mismas habilidades que observamos pero agregando ademaacutes la ca-

pacidad de organizarse en grupos de compantildeeros y de crear lazos de solidaridad entre

ellos

En relacioacuten a la representacioacuten de sus relaciones familiares la categoriacutea de vendedores

es diferente a las de otras actividades realizada por los nintildeos el 47 hablaban de su

familia como una familia constituida solamente el 21 de los nintildeos vendedores reco-

nociacutean conflictos familiares importantes Los que realizaban servicios deciacutean tener una

familia constituida en un 29 y los limpiadores de parabrisas hablaban mucho maacutes en

teacuterminos de una familia incompleta siendo eacutestos el 67 de los nintildeos entrevistados La

prensa presentaba la imagen del nintildeo en la calle viviendo con otros nintildeos con una idea

de libertad y de proteccioacuten entre ellos tambieacuten hablaba de los nintildeos en relacioacuten con un

adulto que pueda brindarles proteccioacuten Los transeuacutentes imaginaban la familia del nintildeo

como una familia desintegrada o bien como la imagen de la prensa en un grupo de

iguales Tambieacuten expresaban la idea del nintildeo en relacioacuten con un adulto en una relacioacuten

de proteccioacuten o a menudo en una relacioacuten de explotacioacuten

En el campo de la salud las enfermedades maacutes a menudo reportadas por los nintildeos

fueron las enfermedades respiratorias y gastrointestinales en segundo lugar los acci-

dentes y en tercero la utilizacioacuten de inhalantes y las complicaciones fiacutesicas y psicoloacute-

gicas que se derivan Tanto la prensa como los transeuacutentes coincidiacutean en los mismos

problemas de salud pero la prensa exageraba especialmente el problema de la droga

hablando algunas veces de un 90 de nintildeos que se drogaban Soacutelo el 15 de los nintildeos

entrevistados reconociacutean haberse drogado alguna vez Un dato importante es que de

106

la categoriacutea de vendedores ninguno de los nintildeos entrevistados se drogaba En esta ca-

tegoriacutea la enfermedad maacutes importante fue la de viacuteas respiratorias seguramente por el

contacto prolongado con la contaminacioacuten

En la relacioacuten con sus compantildeeros se encontroacute coincidencia de parte de la prensa los

transeuacutentes y los nintildeos en pensar que lo que prevaleciacutea entre estos uacuteltimos eran las re-

laciones de ayuda y complicidad aunque los nintildeos sobre todo los de espectaacuteculos y de

servicios hablaban tambieacuten de manera importante de la violencia existente entre ellos y

de algunos casos de abuso fiacutesico y de robo de dinero

En lo que se refiere a la relacioacuten con las Instituciones se encontroacute que el problema maacutes

importante para los nintildeos era el contacto con la policiacutea a menudo en el registro del

abuso fiacutesico y el de la explotacioacuten en lo que se refiere al dinero Los nintildeos que hablaron

de su experiencia con organismos gubernamentales los cuales fueron pocos narraron

malas experiencias los transeuacutentes en su mayoriacutea dijeron ignorar la existencia de or-

ganismos de proteccioacuten para ese tipo de nintildeo La prensa por su cuenta criticoacute las insti-

tuciones del gobierno describieacutendolas como ineficientes y calificaacutendolas de escuelas de

delincuencia y de vicios por el contrario hablaba en buenos teacuterminos de las institucio-

nes no gubernamentales

En lo que se refiere a la religioacuten la mayoriacutea de los nintildeos deciacutean ser catoacutelicos y un buen

nuacutemero de ellos asistir a misa regularmente Los transeuacutentes pensaban que los nintildeos

que trabajaban en la calle creiacutean seguramente en Dios pero que no participaban mucho

en actos religiosos La prensa no abordaba este aspecto de su vida

El anaacutelisis de los datos expuestos anteriormente permite hacer las siguientes observa-

ciones la prensa tendiacutea a unificar la imagen del nintildeo que trabaja en la calle alrededor de

un nintildeo casi no escolarizado o en todo caso plantear como incompatible la escolarizaci-

oacuten con el trabajo Tambieacuten exageraba la dimensioacuten de la droga y de la homosexualidad

De la misma manera los situaba maacutes cerca de la mendicidad y habiendo perdido los

lazos con su familia pues la imagen maacutes frecuente en la prensa fue la del nintildeo viviendo

en grupo con otros nintildeos que viviacutean en la calle

Sin embargo nuestro estudio coincide con el de COESNICA en varios puntos la mayo-

riacutea de los nintildeos que se encuentran en la calle se dedican al comercio es en esta categoriacutea

107Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

que se encuentran los maacutes escolarizados y los que continuacutean la escuela auacuten trabajando

Si la mayoriacutea ejercen el comercio hay muchos menos que mendigan o se dedican a una

actividad que se encuentra cercana a eacutesta La mayor parte de los nintildeos no ha perdido los

lazos con su familia soacutelo el 93 para COESNICA (1992)

Los resultados nos permiten pensar que la imagen que los transeuacutentes entrevistados

teniacutean del nintildeo que trabaja en la calle estaacute maacutes cerca de la imagen que da la prensa

que lo que piensa el nintildeo o del resultado de nuestras observaciones o las de COESNICA

(1992 1995)

Quisieacuteramos suponer que la exageracioacuten de ciertos rasgos destructivos de los nintildeos que

se encuentran en la calle por la prensa y la generalizacioacuten abusiva de las caracteriacutesticas

de los nintildeos de la calle a los nintildeos en la calle estaacute relacionada con un cierto deseo de los

periodistas de influir en la opinioacuten puacuteblica para crear una cierta conciencia en la gente

aunque desafortunadamente corremos el riesgo de crear una imagen estigmatizada y

caricatural del nintildeo que agrave el problema en lugar de ayudar a resolverlo

LasformasdeorganizacioacutenengrupoenlosnintildeosyjoacutevenesdelacalleenlaCiudaddeMeacutexico

Habiendo realizado observaciones regulares durante casi ocho antildeos de investigacioacuten

con nintildeos y joacutevenes en situacioacuten de calle llevamos a cabo un estudio comparativo de

dos grupos ubicados en los parques de Tacuba y de Indios Verdes en el Distrito Federal

con el fin de comprender la funcioacuten del grupo en sus formas de organizacioacuten y en su

estructura psiacutequica (Taracena y Tavera 2001) Para hacer este estudio se utilizoacute una

caacutemara de foto en la que los propios joacutevenes tomaron las fotos de ellos mismos de su

grupo y de nosotros como investigadores ya que nos interesaba saber la imagen que

ellos teniacutean de siacute mismos de su relacioacuten con sus compantildeeros y con nosotros

Objetivos

I Enriquecer la caracterizacioacuten de los modos de vida de los joacutevenes de la calle de la

zona de Tacuba y de Indios Verdes

108

II Comprender la funcioacuten del grupo dentro de la organizacioacuten de los joacutevenes de la

calle asiacute como el papel que juega en su estructura psiacutequica

Hipoacutetesis

El trabajo realizado con anterioridad con estos grupos de joacutevenes nos permite formular

las siguientes hipoacutetesis

a El grupo para los joacutevenes de la calle tiene un papel preponderante en su funciona-

miento psiacutequico

b EL grupo en los joacutevenes de la calle tiene un papel de sustitucioacuten familiar

c El grupo cumple para estos joacutevenes un papel protector en su relacioacuten con la calle

d Hay una relacioacuten entre la manera en que los joacutevenes de la calle representan al gru-

po en los dibujos y en las fotos con la funcioacuten psiacutequica que tiene para ellos

Espacio de Trabajo

El trabajo se realizoacute en dos parques

El de Tacuba ubicado a un costado de la estacioacuten del metro del mismo nombre Se trata

de un parque pequentildeo de estructura redonda con bancas de concreto y algunas aacutereas

verdes Cuando realizamos el estudio el parque era ocupado por grupos de alcohoacutelicos

viejos sin hogar y joacutevenes de la calle En una parte relativamente protegida del parque

estos joacutevenes acondicionaron un espacio con viejos sillones colchones y algunas co-

bijas donde conviviacutean y dormiacutean con una docena de perros Durante el diacutea jugaban

conversaban y se drogaban en el parque pediacutean dinero en los alrededores o limpiaban

parabrisas iban al mercado maacutes cercano en busca de comida y eventualmente haciacutean

pequentildeos trabajos que les aportaban dinero Los joacutevenes casi nunca saliacutean de la zona

de Tacuba en donde eran conocidos y relativamente protegidos por los comerciantes

trabajadores y personas que ejerciacutean la prostitucioacuten en la zona con quienes algunas

ocasiones teniacutean tambieacuten conflictos El trabajo se realizoacute en una de las pequentildeas zonas

verdes a un lado de donde soliacutean dormir dentro de las condiciones naturales de paso y

109Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

convivencia con los demaacutes intentando sin embargo contar con un espacio particular

para las actividades

El parque de Indios Verdes se encuentra entre un gran puente y frente a un Centro

Comercial es una zona verde aproximadamente de 500 metros que no es accesible a

los peatones protegida con alambre en el que los joacutevenes hicieron un hoyo para entrar

y salir Durante la noche dormiacutean en las coladeras en desuso En el diacutea utilizaban el

parque para descansar jugar fuacutetbol conversar y drogarse Como en el caso de Tacuba

los joacutevenes conviviacutean tambieacuten con grupos grandes de perros teniacutean relaciones con los

comerciantes con otros joacutevenes que acudiacutean a drogarse con ellos y personas que ejerciacute-

an la prostitucioacuten pediacutean dinero en los alrededores limpiaban parabrisas y acudiacutean al

mercado cercano en busca de comida El trabajo se realizoacute en el pasto de este parque

tratando tambieacuten de dedicar un espacio para la actividad realizada

Caracterizacioacuten de la poblacioacuten

Previo a este estudio se trabajoacute durante tres antildeos en estas dos colonias Tacuba e Indios

Verdes se efectuaron intervenciones con diversos temas por ejemplo ldquoLa utilizacioacuten

del teatro como una forma de educacioacuten para la prevencioacuten del SIDArdquo (Jayme y Juaacute-

rez 1995) ldquoLa cultura popular y los nintildeos de la callerdquo (Martiacutenez y Melgarejo 1996) el

trabajo con grupos utilizando las teacutecnicas propuestas por Pichoacuten Riviere (Maacuterquez y

Ordoacutentildeez 1996) Estas intervenciones fueron realizadas en periodos de seis meses a un

antildeo efectuando tres sesiones a la semana para trabajar con los nintildeos y joacutevenes en activi-

dades educativas luacutedicas y de expresioacuten Esto nos permitioacute conocer observar y realizar

entrevistas con los joacutevenes de los dos grupos

Caracterizacioacuten del grupo Tacuba

El lugar donde habitaban estos nintildeos estaba situado en una de las demarcaciones maacutes

pobladas y concurridas de la Ciudad Este punto fue catalogado como uno de los maacutes

frecuentados por los joacutevenes de la calle ya que les facilita la satisfaccioacuten de sus necesida-

des baacutesicas un parque varias salidas del Metro espacios sin habitar sitios en donde los

muchachos podiacutean dormir dos mercados y diversos puestos ambulantes de comida que

les facilitaba el acceso a eacutesta La estacioacuten del Metro y los diversos paraderos ocasionaban

mucho traacutensito de automoacuteviles y personas posibilitando oportunidades de trabajo yo

mendicidad ademaacutes existiacutea una gran cantidad de vendedores semifijos y ambulantes

110

quienes empleaban a algunos de estos nintildeos para ayudarles en mandados yo la limpie-

za de sus puestos

Sobre la base de los testimonios de los nintildeos calculamos que en este sitio se habiacutean es-

tablecido grupos de nintildeos de la calle desde hace aproximadamente diez antildeos La pobla-

cioacuten era flotante muchos de sus integrantes regresaron a este mismo punto despueacutes de

temporadas en Instituciones de cuidado de permanencia en otros puntos de la Ciudad

o de estancias con sus familias

Condiciones de vida

Entre veinte y cuarenta joacutevenes conformaban el grupo Tacuba ellos viviacutean cerca de la

zona del mercado y soacutelo habiacutean cambiado de lugar para dormir a pesar de que eran

corridos frecuentemente por la policiacutea o por los propietarios de los terrenos asiacute habiacutean

permanecido alguacuten tiempo a la salida del Metro en un estacionamiento en una casa

abandonada o en un jardiacuten este uacuteltimo es en el que pudieron permanecer maacutes tiempo

sin ser corridos y por lo tanto el que les proporcionoacute mayor tranquilidad

Los joacutevenes casi nunca abandonaban la zona del mercado y menos el aacuterea de Tacuba

Utilizaban las instalaciones sanitarias destinadas al personal de limpieza del Departa-

mento del Distrito Federal (DDF) en donde eventualmente se bantildeaban o se aseaban

Nosotros tuvimos contacto maacutes regularmente con veintitreacutes joacutevenes de entre doce y

veintidoacutes antildeos En el grupo habiacutea un hombre de treinta y ocho antildeos al que reconociacutean

como el fundador del grupo pero la mayor parte de los miembros teniacutean entre catorce y

veintiuacuten antildeos Su nivel de escolaridad era muy bajo el 27 analfabeto el 60 asistioacute a

dos o tres antildeos de primaria y solamente el 13 realizoacute un antildeo de secundaria

Entre los motivos por los cuales dejaron su casa destacan los siguientes la ausencia o

muerte de la madre (en general en forma violenta por ejemplo suicidio o asesinato)

por problemas de alcoholismo y la mayor parte por violencia familiar El tiempo prome-

dio de estancia en la calle era de siete antildeos y los rangos fluctuaban entre dos y veinte

antildeos El 36 habiacutea permanecido entre dos y cinco antildeos otro 36 entre seis y diez y el

28 entre diez y quince antildeos Lo anterior significa que la mayor parte de estos joacutevenes

habiacutea pasado maacutes de la mitad de su vida en la calle

111Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

Las actividades que realizaban para obtener dinero dependiacutean en gran medida de la

edad ya que los maacutes pequentildeos se dedicaban a pedir dinero y en ocasiones ayudaban a

vender los maacutes grandes tambieacuten pediacutean dinero pero se dedicaban maacutes a hacer man-

dados a los comerciantes o a ayudar a lavar los puestos Tambieacuten algunos se dedicaban

a robar y a prostituirse es interesante notar que estos uacuteltimos eran chicos que teniacutean

maacutes de diez antildeos de vivir en la calle y tambieacuten mucho tiempo de consumir alguacuten tipo

de droga El dinero que ganaban lo destinaban generalmente a comprar droga comida

y para jugar en los videojuegos

Estos joacutevenes inhalaban cemento regularmente y ocasionalmente fumaban marihua-

na Practicaban relaciones homosexuales entre ellos pero al exterior del grupo teniacutean

relaciones heterosexuales salvo algunos que se prostituiacutean ocasionalmente con homo-

sexuales

El 68 de estos joacutevenes habiacutea estado en Instituciones para menores centros de desin-

toxicacioacuten llevados por la policiacutea centros de readaptacioacuten o caacuterceles dependiendo de la

edad o cargo por el que fueron remitidos El 12 solamente habiacutea estado en casas para

menores y el 30 no habloacute de experiencias en instituciones

En general ellos teniacutean opiniones negativas sobre los centros de reeducacioacuten ya que

desde su punto de vista existiacutea mucho abuso y represioacuten Su opinioacuten de las Organiza-

ciones civiles ya sea centros de diacutea o casas para nintildeos de la calle era mejor ya que refi-

rieron que alliacute les ofreciacutean comida servicio meacutedico y a veces ropa Por otro lado estos

muchachos algunas veces iban a visitar a su familia sin embargo siempre regresaban

a Tacuba ya sea porque sus familiares les manifiestan que no habiacutea maacutes espacio para

ellos o porque ellos mismos se sentiacutean fuera de lugar De la misma manera que en In-

dios Verdes en Tacuba existiacutea una gran movilidad en los integrantes que conformaban

el grupo sin embargo siempre permaneciacutea un nuacutecleo que lo manteniacutea

Los muchachos de Tacuba no se preocupan por la limpieza ni en su ropa ni en su perso-

na salvo algunos muchachos del grupo la mayoriacutea rara vez se bantildeaban

Conformacioacuten del grupo

Observamos la existencia de reglas impliacutecitas en el grupo no robarse entre ellos mis-

mos no hablar de cosas que comprometiacutean a los demaacutes no denunciar a nadie prote-

112

gerse mutuamente de la agresioacuten externa ocuparse de los maacutes joacutevenes compartir la

comida la ropa y la droga con los maacutes necesitados no intervenir en las peleas de los

demaacutes compantildeeros cuando existiacutea un motivo justificado para la rintildea

Estos joacutevenes inhalaban cemento regularmente y ocasionalmente fumaban marihua-

na Practicaban relaciones homosexuales entre ellos pero al exterior del grupo teniacutean

relaciones heterosexuales salvo algunos que se prostituiacutean ocasionalmente con homo-

sexuales

Se agrupaban faacutecilmente en pequentildeos subgrupos dependiendo de la actividad que rea-

lizaban y en esos casos aceptaban momentaacuteneamente la direccioacuten de alguno de ellos

A diferencia del grupo de Indios Verdes en Tacuba no aceptaban mujeres entre sus

miembros ya que las ocasiones en que lo permitieron se generaron varios problemas y

peleas Durante el periodo en que trabajamos con ellos una jovencita de dieciseacuteis antildeos

se incorporoacute al grupo durante dos meses ella mantuvo relaciones con varios de los mu-

chachos del grupo y esto ocasionoacute varios pleitos entre ellos incluso uno de los joacutevenes

terminoacute en un hospital en vista de esto le pidieron a la joven que abandonara el grupo

Algunos muchachos manteniacutean relaciones con mujeres fuera del grupo de manera re-

gular y ocasionalmente con prostitutas de la colonia

Caracterizacioacuten del grupo Indios Verdes

En la delegacioacuten poliacutetica Gustavo A Madero localizada al norte de la ciudad se encuen-

tra el paradero del Metro Indios Verdes ademaacutes existe tambieacuten una gran cantidad de

paraderos de autobuses y microbuses lo que hace de esta zona un punto clave donde la

gente puede transportarse a diferentes puntos de la ciudad y zona metropolitana Por lo

tanto este lugar es visto por las posibilidades de trabajo que suscita para obtener una re-

muneracioacuten econoacutemica asiacute podemos encontrar una gran cantidad de comercios entre

ellos el mercado de Indios Verdes junto a eacuteste un pequentildeo parque con varios puestos

semi-fijos y con muchos vendedores ambulantes Cerca de alliacute varias viacuteas raacutepidas y un

gran puente peatonal con algunas aacutereas verdes Es en este punto donde se ubicaba un

grupo de nintildeos de la calle ya que las caracteriacutesticas del lugar resultaban muy apropiadas

para sus necesidades por una parte teniacutean lugares para dormir debajo del puente en

las aacutereas verdes y en un canal del desaguumle en desuso ahiacute tambieacuten podiacutean guardar sus

escasas pertenencias debido al gran traacutefico y a la cercaniacutea del mercado las posibilidades

113Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

de trabajo eran frecuentes de acuerdo con algunos testimonios el grupo habiacutea perma-

necido en este lugar desde aproximadamente cinco antildeos

Condiciones de vida

Este grupo estaba formado por nintildeos y joacutevenes de entre 7 y 23 antildeos aproximadamente

Se reuniacutean maacutes o menos entre 25 y 40 joacutevenes dentro del grupo existiacutean varias mu-

jeres de entre 14 y 16 antildeos Ellos pasaban la mayor parte del tiempo en el lugar donde

habitaban y se desplazaban rara vez a otras partes de la ciudad Muchos de estos joacutevenes

sabiacutean leer y escribir un 75 asistioacute a maacutes de tres antildeos de educacioacuten primaria algunos

terminaron la primaria y otros asistieron a la secundaria

Los motivos maacutes frecuentes que fueron referidos para estar en la calle violencia fami-

liar problemas econoacutemicos y el alcoholismo de uno o ambos padres La mayor parte

de estos joacutevenes habiacutea permanecido en la calle entre 2 y 4 antildeos pero hubo quien teniacutea

viviendo en la viacutea puacuteblica 12 antildeos o maacutes en cambio existiacutean otros que soacutelo teniacutean un

antildeo o menos Habiacutea un grupo de adolescentes que compartiacutean con los otros miembros

del grupo todas las actividades de la mantildeana y en las tardes regresaban a sus casas Apa-

rentemente soacutelo se ligaban al grupo a traveacutes de las drogas

Para conseguir dinero se dedicaban a mendigar a los transeuacutentes y tambieacuten realizaban

pequentildeos trabajos para los comerciantes de la zona ocasionalmente robaban El dinero

lo destinaban para comprar comida y droga

Todos los integrantes del grupo inhalaban cemento con regularidad el primero de ellos

que conseguiacutea dinero compraba un bote de inhalante y despueacutes eacutel vendiacutea o regalaba

a los otros pedazos de estopa impregnados de la sustancia En el grupo se hablaba de

ciertos casos de relaciones homosexuales sin embargo se privilegiaban las de iacutendole

heterosexual los casos de prostitucioacuten eran raros eventualmente vendiacutean droga para

completar sus ingresos

Todas sus redes sociales se desarrollaban en el mercado ahiacute manteniacutean relaciones im-

portantes con los comerciantes que les daban de comer a cambio de pequentildeos trabajos

Estos joacutevenes teniacutean una relacioacuten muy importante con los perros habiacutean adoptado a

cuando menos una docena y jugaban y conviviacutean con ellos de una manera muy estre-

cha ademaacutes compartiacutean con los animales su comida e inhalantes

114

Casi todos ellos habiacutean estado en instituciones para menores pero no quisieron hablar

sobre ellas Aunque no con frecuencia algunas veces iban a visitar a sus familias

Conformacioacuten del grupo

El grupo era movible en su composicioacuten podiacutea aumentar o disminuir coyunturalmente

tampoco existiacutea un liacuteder fijo los joacutevenes podiacutean aceptar ser dirigidos momentaacuteneamen-

te por uno u otro de los miembros del grupo en funcioacuten de la actividad que realizaban

Estos joacutevenes se protegiacutean entre ellos de las agresiones externas y trataban de regular

las internas tomando en consideracioacuten la edad de los contrincantes y las razones de

la pelea Los maacutes grandes protegiacutean y corregiacutean a los maacutes pequentildeos cuando alguacuten

integrante del grupo estaba herido o enfermo entre todos trataban de cuidarlo pro-

porcionarle comida y si era posible medicinas Tambieacuten eran capaces de respetar las

parejas sexuales de los integrantes del grupo Pareciacutean estar de acuerdo con las reglas

de funcionamiento grupal y con las condiciones de pertenencia Tambieacuten manifestaban

solidaridad respeto y amistad entre sus integrantes igualmente observaacutebamos situa-

ciones de mucha agresividad de manera frecuente

Para ser aceptado por el grupo existiacutea una prueba inicial que consistiacutea en embarrar al

aspirante con aceite sucio y despueacutes le pediacutean que inhalara cemento el mayor tiempo

posible quien lograba aguantar mucho tiempo podiacutea incorporarse

Las mujeres del grupo generalmente teniacutean un compantildeero fijo dentro del mismo y

jugaban en cierto sentido un rol materno por ejemplo los hombres les confiaban su

dinero para que lo distribuyeran en lo que se fuera necesitando y guardaran el resto

La funcioacuten del grupo

Indudablemente la organizacioacuten en grupo de las personas que sobreviven en la calle tie-

ne una funcioacuten de proteccioacuten y de racionalizacioacuten de los recursos A menudo encontra-

mos un nuacutecleo maacutes o menos fijo sobre el que vienen a agregarse otros personajes que

tienen una presencia irregular pero que buscan al grupo para satisfacer sus necesidades

afectivas y a menudo de obtencioacuten de drogas Podemos reconocer una funcioacuten psiacutequica

que se va entrelazando con una funcioacuten social

115Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

Nuestro trabajo permitioacute destacar que los nintildeos y joacutevenes de Tacuba teniacutean dificultades

para reconocer al grupo como algo exterior a ellos con frecuencia encontramos a traveacutes

de las fotos que ellos tomaron la disposicioacuten corporal de los miembros del grupo como

un conjunto de individuos amontonados aglutinados y traslapados dando la impresi-

oacuten ndashparadoacutejicamente- de que la piel del otro en tanto que presencia constituye en un

mismo tiempo tanto unidad como liacutemite reencontrado un deseo de fusioacuten que evoca

a la madre

Podriacuteamos recordar ciertas representaciones del grupo propuestas por Kaumles (1977) en

donde plantea al grupo como un organismo como un cuerpo en particular con el cuer-

po de la madre ldquotodas las representaciones del grupo como un cuerpo o como parte del cuerpo

se hallan conectadas a un escenario fantasmaacutetico a traveacutes del cual el sujeto se representa el ori-

gen y el destino de su concepcioacuten de su nacimiento de la sexualidad y de la diferencia entre los

sexos Estos fantasmas originarios tienen propiedades grupales en el sentido de que articulan y

representan de manera a la vez individual y colectiva personalizada y anoacutenima un conjunto

coherente y escenarizado de vinculaciones y procesos entre los objetos psiacutequicosrdquo (p110)

En cuanto a la fantasmaacutetica del origen podriacuteamos recordar el deseo de regresar al vientre

materno y los fantasmas de la escena primitiva con las imaacutegenes del grupo en posicioacuten de

fusioacuten-confusioacuten Este tipo de organizacioacuten nos devuelve a la imagen de la madre ldquoun lugar

materno bueno que escapa al orden de la sociedad mala en rigor un lugar de autarquiacutea y

autogeneracioacuten ya que se trataraacute de vivir por siacute mismo y para siacute mismo y de escapar gracias

a ello a la ley del trabajo y de la realidad social exteriorrdquo (Kaumles 1977 p 135)

El grupo constituido de esta manera tiene una funcioacuten contra las angustias psicoacuteticas

de fragmentacioacuten persecucioacuten y depresioacuten el objeto-grupo asegura un lazo preobjetal

de narcisismo funcional y una posibilidad de identificacioacuten en espejo al objeto comuacuten

lazo que cubre la funcioacuten de proteccioacuten de barrera y de defensa contra las angustias de

la separacioacuten y el ataque

Al mismo tiempo se constatoacute que en este caso los muchachos se apoyaban en los ima-

gos familiares en busca de apoyos de identificacioacuten que les permitiacutea escapar de la fami-

lia ldquo y transformar al grupo en otra familia en la que pareciacutea predominar el principio

del placer entre iguales y la realidad modelarse por el suentildeo El grupo es un conjunto

unido prieto homogeacuteneo cerrado en el que nos entendemos bien en el que se dibuja un deseo

116

insatisfecho en la familiahellip (p126) El grupo es un campo cerrado es el cierre del campo de

las relaciones con respecto a un exterior decepcionante que frustra y amenaza en su interior

se resuelven en lo imaginario las mayores insatisfacciones infligidas por la debilidad de los

otros -especialmente de la familia- para recibir y dar amor Al grupo se le fantasea como repre-

sentacioacuten plena en el pecho- falo materno o como agregacioacuten a la fratriacutea narcisista todopode-

rosa El grupo es ademaacutes encierro en un cerco que protege contra el exterior contra la salida

hacia una historia se le quiere precisamente sin historia(s) sin conflictos pero tambieacuten sin

devenir estacionario intemporalrdquo (Kaumles 1977 p130)

Con base en nuestros hallazgos podemos sentildealar que los nintildeos de la calle tienden a de-

positar la imagen de buen grupo en el que tienen en la calle y la imagen de mal grupo

a su grupo familiar O a veces ocurre que juegan alternativamente con estas dos imaacute-

genes a veces idealizando el recuerdo de la familia sobre todo cuando los padres han

desaparecido y a veces depositando el lado malo en el grupo de la calle En todo caso lo

que llama la atencioacuten es que la circulacioacuten de la violencia es importante y sin embargo

hay un apego importante al grupo

Una de las cosas que maacutes observamos en los nintildeos y joacutevenes que viven en la calle es la

manera en que establecen contacto fiacutesico A menudo manifestaban la sensacioacuten de re-

querir con urgencia establecer contacto con ellos Las sensaciones producidas por esos

contactos se encuentran entre la demanda afectiva y una maacutes ligada a la sensualidad

ya que por un lado existe un componente manifestado de una manera muy primaria

como lo realizariacutea cualquier nintildeo pequentildeo pero al mismo tiempo se establece un con-

tacto erotizado que estaacute presente y que se manifiesta principalmente en las sensaciones

olfativas Esta sensacioacuten la hemos podido percibir tanto con los grupos de nintildeos de la

calle como con nintildeos que son abandonados en Instituciones de cuidado de menores y

que despueacutes se instalan en la calle

Retomando los elementos propuestos por Winnicott (1984) y por Aulagnier (1979) po-

driacuteamos decir que esta necesidad de contacto se asemeja a reacciones regresivas ligadas

a fases de relacioacuten muy primarias con la madre

Winnicott (op cit) habla de esos movimientos regresivos que son a menudo asociados

con periodos muy satisfactorios en donde el yo estaacute constituido como una forma de

defensa por el nintildeo con carencias emocionales Aulagnier (op cit) enuncia la relacioacuten

117Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

del nintildeo con su cuerpo y con las sensaciones ligadas a la oralidad y con el placer como

esenciales en la constitucioacuten del yo en el nintildeo

No podemos pasar por alto la observacioacuten de los gestos de los nintildeos cuando inhalan la

droga en donde la sensacioacuten de placer se centra en la oralidad y en la funcioacuten gustativa

De manera evidente podemos reconocer una erotizacioacuten en la funcioacuten respiratoria De

acuerdo con Aulagnier (op cit) en la toxicomaniacutea la droga es una fuente de placer que

despueacutes se convierte en una necesidad

Otro elemento para discutir es el relativo a la promiscuidad homosexual de los mucha-

chos de los grupos callejeros No podriacutea asegurarse que en sentido estricto ese tipo de

relaciones debieran ser denominadas como homosexuales ya que aparentemente no

existe una relacioacuten de objeto tampoco hay un participante privilegiado ni existen celos

cuando alguno de esos mismos joacutevenes establece relaciones heterosexuales buscan es-

tablecer un compantildeero uacutenico y los problemas de celos pueden terminar en pleitos muy

serios Aquiacute maacutes bien aparece como un elemento muy importante en las relaciones en-

tre los hombres la nocioacuten de dominante-dominado No es el caso para aquellos quienes

reconocen su homosexualidad y eligen una pareja del mismo sexo En este caso la dinaacute-

mica afectiva es muy similar a la de las parejas heterosexuales En cualquier forma nos

parece que la promiscuidad sexual a una edad precoz y la utilizacioacuten de drogas (Angel

P Botbol M y Facy F 1987) son elementos importantes para bloquear la posibilidad

de pensar y simbolizar A menudo los dibujos de estos nintildeos muestran una gran canti-

dad de imaacutegenes ligadas a la sexualidad genital

Retomando el trabajo de Kaumles (1977) podriacuteamos decir que la relacioacuten en algunos gru-

pos corresponde a la imagen de grupo-objeto en su forma maacutes primitiva de preobjeto

maternal faacutelico y en otros a una forma maacutes secundaria que se refiere a una organizaci-

oacuten ediacutepica o a un modelo familiar

Todo grupo tiene la funcioacuten de proteccioacuten sin embargo ciertos grupos son maacutes abier-

tos que otros y permiten al nintildeo situaciones de socializacioacuten diferentes Las situacio-

nes regresivas la falta de posibilidad de simbolizacioacuten y elaboracioacuten de los joacutevenes asiacute

como el funcionamiento del grupo se retroalimentan ya que las primeras determinan

la estructura del grupo y al mismo tiempo el grupo favorece las situaciones y las activi-

dades que refuerzan esa falta

118

Por su parte las relaciones sexuales precoces y el consumo de drogas impiden la capa-

cidad de simbolizacioacuten y de elaboracioacuten al mismo tiempo mantienen las formas de

relacioacuten y de dependencia con el grupo lo cual disminuye las posibilidades de hacer

actividades de manera independiente y de desarrollar la autonomiacutea

Las posiciones maacutes abiertas en cuanto al funcionamiento grupal como es el caso de

Indios Verdes favorecen a los nintildeos la expresioacuten de su creatividad en la formulacioacuten de

reglas la creacioacuten de espacios luacutedicos y la negociacioacuten de relaciones con los adultos y

las autoridades

A menudo se tiene la impresioacuten de que las enormes posibilidades de adaptacioacuten que

tienen los nintildeos de la calle hacen que puedan pasar de una situacioacuten afectiva a una situ-

acioacuten social muy raacutepidamente y en forma aparentemente contradictoria Podriacutea decirse

que hay momentos en que aparentan ser muy autoacutenomos y otros muy dependientes

con algunos momentos en que aparecen como muy haacutebiles y otros en gran dificultad

En este sentido el anaacutelisis psicoloacutegico en relacioacuten a la funcioacuten del grupo puede ser

enriquecido por los trabajos de Lucchini (1995) en particular la nocioacuten del funciona-

miento del grupo de los joacutevenes que viven en la calle en forma de red y no de banda en

donde no hay un liacuteder fijo en el grupo sino que esa funcioacuten se comparte y se distribuye

coyunturalmente En lo que concierne a nuestras observaciones el liderazgo se plantea

en funcioacuten de las actividades o de las relaciones de poder en el espacio donde se en-

cuentra el grupo Este modo de funcionamiento requiere un entorno social particular y

una gran flexibilidad en la organizacioacuten En la dimensioacuten social encontramos tambieacuten

que el grupo ofrece posibilidades de identificacioacuten con los pares que entre otras cosas

significa una lucha contra la sensacioacuten de soledad y de desproteccioacuten La vida en la calle

es una forma de resistencia colectiva a la injusticia al abuso del poder a la miseria

Para disentildear una forma de trabajo con estos nintildeos y joacutevenes es necesario realizar un

diagnoacutestico maacutes preciso del modo de funcionamiento interno de cada grupo Sin em-

bargo este trabajo permite hacer una serie de reflexiones en cuanto al encuentro ―a me-

nudo difiacutecil y desfasado― con las Instituciones de Asistencia Social sean casas hogares

o centros de reeducacioacuten

En primera instancia aparece el problema de los liacutemites Se trata de un problema de

liacutemites externos y de liacutemites internos La funcioacuten del grupo que viene a cubrir reparar

119Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

una falla interna o encontrar fantasmaacuteticamente el cuerpo de la madre implica una ma-

nera de tomar al otro para poder sentir los liacutemites de siacute mismo Hay un problema con

la expresioacuten de la individualidad es como si la sensacioacuten de seguridad en este tipo de

estructura proviniera del yo grupal en donde el yo de cada quien estaacute un poco perdido

es decir con-fundido

El grupo tal como es descrito por Kaumles (1977) como teatro de manifestaciones pulsio-

nales y soporte proyectivo de deseos muy arcaicos favorece en los joacutevenes la transicioacuten

de pasajes al acto como la drogadiccioacuten y las relaciones sexuales precoces que implican

una confusioacuten en la construccioacuten de liacutemites internos Asiacute las manifestaciones del deseo

de fusioacuten y de borrar los liacutemites externos tiene su equivalente en los liacutemites internos y

se expresa en la incapacidad de simbolizacioacuten de los joacutevenes y en la utilizacioacuten del inha-

lante que produce un material sensorial que ocupa su pensamiento

Respecto a la funcioacuten de las reglas construidas por ellos mismos la existencia de estas

reglas puede significar la presencia de una estructura efectivamente auacuten si el grupo

representa un lugar fusional y regresivo las reglas tienen que ver con las relaciones

en el grupo y con la necesidad de garantizar la calidad y la duracioacuten de los lazos para

proteger la propia estructura grupal al mismo tiempo que cubren la funcioacuten de barrera

protectora del grupo frente al exterior

Es necesario sentildealar que estos joacutevenes son capaces de negociar con el exterior una serie

de comportamientos sociales con la policiacutea los comerciantes los transeuacutentes para

utilizar los espacios hacer trabajos eventuales para ser aceptados en lugares puacuteblicos

etceacutetera Este aprendizaje social parece estar desfasado del funcionamiento afectivo Es

por eso quizaacute que a menudo se tiene la sensacioacuten de que esos joacutevenes pueden pasar de

posiciones infantiles a posiciones adultas y que en su comportamiento hay un desfase

constante entre el saber praacutectico sus demandas afectivas y su adscripcioacuten en las rela-

ciones

El problema del encuentro de estos joacutevenes con las Instituciones es la diferencia del

grupo como lugar de vida y de la institucioacuten que implica una nocioacuten de sujeto comple-

tamente diferente La institucioacuten parte de la idea de un sujeto responsable deseoso con

un proyecto personal y ninguno de esos joacutevenes puede corresponder a ese perfil

120

El modo de funcionamiento del grupo produce una gran dificultad de ruptura sobre

todo porque aparentemente vienen a buscar en el grupo y en el consumo de la droga

disminuir las angustias de separacioacuten de una madre ausente La separacioacuten del grupo

produce al momento de tratar de integrarse a una institucioacuten una gran depresioacuten que

para algunos es irresoluble por la que recurrentemente vuelven al grupo

Finalmente hay un problema de lugar Estos joacutevenes tienen un lugar en su grupo un

lugar creado por ellos y que aparentemente nadie maacutes les puede quitar siendo la calle

un lugar de todos auacuten si la sociedad puede expresar que no es un buen lugar para un

nintildeo es el lugar creado imaginado vivido e investido por ellos El problema de las Ins-

tituciones es que en el mejor de los casos en las mejores concepciones de Institucioacuten

hay una especie de anonimato y de indiferencia afectiva inevitable a la nocioacuten de Insti-

tucioacuten Se puede intentar disminuir esta dificultad mejorar las propuestas psicopeda-

goacutegicas tratar de manifestar sentimientos de afeccioacuten pero finalmente no deja de ser

una Institucioacuten con una loacutegica propia En el grupo creado por los nintildeos ellos tienen el

sentimiento de que es un grupo escogido por ellos para sustituir a su familia y tienen

una calidad de lazos y de solidaridad que difiacutecilmente pueden encontrar en una Institu-

cioacuten sensacioacuten exacerbada por la corta duracioacuten de sus estancias

Aunado a esto muchas Instituciones tienen una racionalidad guiada por los proyectos

pedagoacutegicos o de socializacioacuten y cambian a los nintildeos frecuentemente de grupo o de es-

pacio fiacutesico aludiendo a etapas por las que debe pasar el nintildeo ignorando muchas veces

las cuestionas afectivas que los ligan a los grupos En nuestra opinioacuten esto produce una

reedicioacuten de los procesos traumaacuteticos de separacioacuten vividos por el nintildeo y en consecuen-

cia muchas veces una huiacuteda a la calle

Laconstruccioacutendelaidentidaddelosnintildeosyjoacutevenesensituacioacutendecalle

Camilleri y cols (1990) consideran que para explicar la identidad hay que tomar en

cuenta primero los procesos de identificacioacuten y de apego afectivo el acento debe po-

nerse en la percepcioacuten que tiene de siacute mismo el sujeto y finalmente se debe tomar en

consideracioacuten el peso del inconsciente sobre los deseos y elecciones del sujeto Estos

autores resumen los trabajos sobre la identidad en tres corrientes 1) Los de la antropo-

121Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

logiacutea psicoanaliacutetica que basaacutendose en los trabajos de Freud proponen categoriacuteas para

entender el proceso de construccioacuten de la identidad como autores representantes de

esta corriente abordan a Erikson y Devereux 2) Los de la psicologiacutea social con el con-

cepto de self desarrollado por autores como Mead Heider Festinger y Goffman y 3) La

de la sociologiacutea con conceptos tales como identidad social como una representacioacuten de

siacute mismo propuestos por Lavov Bernstein Ziegler y Wood

En lo que se refiere a la corriente de antropologiacutea psicoanaliacutetica la identificacioacuten fue

definida por Freud como un proceso mientras que la identidad fue planteada como un

producto La identidad aparece como la resultante de diferentes identificaciones del

sujeto pero de acuerdo con Erikson no puede ser concebida como la simple adicioacuten de

identificaciones pasadas Surge de la seleccioacuten y de la asimilacioacuten de identificaciones de

la nintildeez asiacute como de la integracioacuten de una nueva configuracioacuten que a su vez depende

de un proceso gracias al que una sociedad (a menudo a traveacutes de los grupos interme-

dios) identifica al individuo joven reconocieacutendolo de acuerdo a un deber ser La aceptaci-

oacuten de la comunidad termina esta construccioacuten de manera tal que la identidad final que

se fija al teacutermino de la adolescencia encierra todas las identificaciones significativas

pero las transforma tambieacuten para hacer un todo razonable coherente y especiacutefico La

identidad para Erikson tiene que ver con 1) Un sentimiento de especificidad individual

2) Un esfuerzo inconsciente de establecer una continuidad de la experiencia vivida (maacutes

allaacute de la diversidad de roles y de discontinuidades temporales) y de la participacioacuten del

individuo de los ideales culturales del grupo

Otro elemento que ha sido abordado por Erikson es que lejos de tratarse de una conste-

lacioacuten estaacutetica de rasgos y de roles la identidad es un fenoacutemeno dinaacutemico y conflictivo

Hay una tensioacuten en ella entre un polo positivo y uno negativo La identidad psico-social

encierra una jerarquiacutea de elementos positivos y negativos que resultan de los prototipos

ideales a los que se confronta el nintildeo Estos prototipos representan modelos que es ne-

cesario copiar pero tambieacuten representan otros modelos que es necesario evitar

ldquoDevereux pone en primer teacutermino el hecho de que el ser humano es socializado seguacuten

un modelo sexuado que encuentra su sentido y su complementariedad definieacutendose en

relacioacuten al otro sexo Tanto la masculinidad como la feminidad y esto no importa en

que cultura presuponen la existencia del otro sexo y representan respuestas significati-

vas a su existenciardquo Es asiacute que seguacuten Devereux no se puede ser humano sin ser hombre

122

o mujer y de la misma manera el modelamiento sexual determina una manera par-

ticular de existir El modelamiento imprime una coloracioacuten particular al inconsciente

individual puesto que el inconsciente idiosincraacutesico tiene sus raiacuteces en el inconsciente

eacutetnico al que se relaciona

En este marco teoacuterico las diversas facetas de la identidad no son solamente una repre-

sentacioacuten de siacute mismo sino llegan al conjunto de lo que es el individuo las modalida-

des de su existencia las interpretaciones que hace y auacuten las desviaciones de la norma

que se expresan de acuerdo a un conjunto de posibilidades propuestas por la cultura

(Camilleri y Cols 1992)

En cuanto a la aproximacioacuten de la psicologiacutea social de acuerdo con Lipiansky (1990)

Mead es uno de los primeros autores que plantean la conciencia de siacute el self como una

entidad en estrecha relacioacuten con los procesos sociales donde el sujeto se encuentra in-

merso Seguacuten Mead se prueba a siacute mismo no directamente sino solamente adoptando

el punto de vista de los otros o del grupo social al cual pertenece Esta aproximacioacuten

lleva a Mead a asegurar que el siacute en tanto que objeto para siacute es esencialmente una estruc-

tura social que nace en la experiencia social Es entonces el proceso ce comunicacioacuten

social que produce el siacute y las diversas facetas del siacute que reflejan los diversos aspectos de

ese proceso

Lipiansky ( Op cit) retoma a Tajfel para explicar la influencia del otro sobre la elabora-

cioacuten de las percepciones del sujeto de acuerdo con eacutel los dos determinantes principales

de la seleccioacuten y organizacioacuten social son los valores sociales y el consenso social Los va-

lores se refieren a intereses placeres gustos preferencias deseos necesidades recha-

zos y atracciones mientras que el consenso social influye sobre la actividad cognitiva

determinando las modalidades de la percepcioacuten social

Por su cuenta los trabajos de Goffman (1993) reconocen la relatividad de las normas y

el dinamismo de las identidades Basando sus reflexiones en las identidades estigmati-

zadas o negativas el autor pone el acento en la facultad que tiene el individuo como ac-

tor de verse como si viera una peliacutecula de su vida actuando un papel (o una identidad)

es decir sentildealando la distancia entre el YO y la identidad Esta aproximacioacuten supone

una cierta distancia entre las identidades del actor social y la esencia de su YO o si se

quiere la existencia de dos clases de identidades la identidad existencial y profunda que

123Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

representa la continuidad de la persona y el conjunto de identidades que hace suyas a lo

largo de su vida Esta es una de las razones quizaacute de la dificultad de precisar las historias

de los joacutevenes de calle ademaacutes de las resistencias propias a la evocacioacuten de situaciones

dolorosas existen tambieacuten las muacuteltiples facetas e identidades con las que juega el joven

en situacioacuten de calle desde la adopcioacuten de diferentes nombres o sobrenombres hasta

la invencioacuten de diferentes historias de acuerdo con el interlocutor que tiene y lo que eacutel

imagina que aquel quiere escuchar El autor pone tambieacuten el acento en la incertidumbre

del estigmatizado sobre en queacute categoriacutea puede ser ubicado de ahiacute que muchos joacutevenes

hagan preguntas sobre coacutemo se les percibe

Goffman (Opcit) hace notar que el individuo estigmatizado vacila a menudo entre la

actitud de retraimiento y actitudes agresivas y de bravata pasando faacutecilmente de una a

otra Por su parte De Gaulejac (2008) retomando a Taboada-Leonetti habla del comple-

jo del Ave Feacutenix para explicar la necesidad de tocar fondo y de recurrir a la exageracioacuten

destructiva en la abyeccioacuten como forma de posicionarse como sujeto A menudo en

nuestro encuentro con los joacutevenes de calle sentimos que hay cierto goce en ponerse en

situaciones de peligro y de liacutemite El sentimiento de omnipotencia del sujeto resulta

fortalecido en esta lucha cotidiana para sobrevivir A veces nos parece que la situacioacuten

de supervivencia y de jugar con el peligro es del mismo orden de aquellos que buscan

los deportes de alto riesgo para sentirse fortalecidos en su capacidad de mantenerse en

vida soacutelo que la vida en la calle no es una eleccioacuten conciente sino el uacuteltimo eslaboacuten de

elecciones no siempre realizadas por el propio sujeto

El punto de vista socioloacutegico de acuerdo con Lipiansky Taboada- Leonetti y Vaacutezquez

(1990) se ha desarrollado igualmente a partir de estudios sobre la identidad social con-

cebida como una representacioacuten de siacute en tanto que individuo pero sobre todo en tanto

grupo moldeado por la ideologiacutea dominante en una sociedad dada Lavov a partir de

investigaciones sobre la clase obrera o grupos minoritarios muestra como los grupos

sociales interiorizan una cierta interpretacioacuten del lugar que ocupan en las relaciones de

produccioacuten y las relaciones de poder de manera tal que no perciben la influencia de los

determinismos sociales sobre su destino individual Bernstein agrega que en este caso

la identidad impuesta equivale a un tipo de alienacioacuten de siacute porque ese tipo de grupos

sociales no pueden tomar conciencia de su identidad a partir de lo que poseen sino a

partir de lo que han estado privados Hoogart en la misma liacutenea de reflexioacuten agrega

que la identidad alienada no es maacutes que una ilusioacuten de identidad puesto que implica

124

el repliegue sobre siacute mismo la marginalidad y la no percepcioacuten de contradicciones y de

relaciones de poder

Retomando nuestro trabajo con los nintildeos que trabajan en la calle y la representacioacuten

que de eacutestos tienen los diferentes sectores parece que el resumen presentado anterior-

mente confirma la importancia que puede tener la imagen del otro en la construccioacuten

psiacutequica del individuo Algunos autores ponen el acento maacutes en las estructuras y en la

historia del sujeto otros en las experiencias del aquiacute y ahora algunos maacutes en la elabo-

racioacuten racional del individuo de su identidad otros maacutes en los procesos inconscientes

algunos maacutes en el grupo mientras que otros en el individuo pero lo que es innegable es

que todos coinciden en la importancia de la imagen que los otros proyectan al individuo

de siacute mismo

El trabajo de Taboada-Leonneti (1990) sobre las estrategias de construccioacuten en los

individuos pertenecientes a grupos minoritarios nos permite pensar que cada nintildeo

puede asumir estrategias diferentes para internalizar y ulteriormente convivir con la

imagen que se proyecta de eacutel Para algunos la viacutea es afirmaacutendola de manera exagerada

y proyectaacutendola de manera agresiva al grupo y a la sociedad asumieacutendose drogadictos

o delincuentes por ejemplo otros negaacutendola y reafirmaacutendose en la identidad contraria

algunos aceptaacutendola y con ello permitieacutendose el construir algo con ella Este podriacutea

ser el caso de los nintildeos de la calle que siendo adultos se convierten en educadores de

la calle para ayudar a otros nintildeos que se encontraban en sus mismas condiciones Esto

dependeraacute seguramente de la propia estructura del nintildeo y del trabajo que pueda reali-

zarse con eacutel

Si retomamos la importancia de la mirada del otro en la construccioacuten de la identidad

adquiere mucha relevancia el anaacutelisis de la imagen que proyecta la prensa del nintildeo en

la construccioacuten social que se estaacute haciendo de eacutesta asiacute como en el sentimiento de ex-

terioridad con que la gente vive este proceso Sabemos que toda situacioacuten que produce

angustia genera mecanismos de defensa para poder soportarlos la sola presencia de

los nintildeos en las calles en situaciones difiacuteciles tiende a generar mecanismos de toma de

distancia La fabricacioacuten de una imagen a partir de la prensa como futuro delincuente

del nintildeo y como drogadicto genera una actitud de rechazo y de hostilidad hacia eacutel

acentuando el proceso de toma de distancia y de sentimiento de exterioridad en relacioacuten

este fenoacutemeno Ha sido frecuente en nuestro trabajo el estar con joacutevenes de la calle y ob-

125Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

servar las miradas las actitudes de aquellos que se consideran dentro de la norma esta

mirada no soacutelo responde a los propios miedos de la mayoriacutea frente a la marginalidad

sino tambieacuten a la imagen que los medios masivos van construyendo de la misma como

un peligro para la sociedad Difiacutecilmente la gente puede pensar que tambieacuten la sociedad

ha puesto en peligro a estos joacutevenes

En nuestros estudios sobre el impacto de la representacioacuten social del fenoacutemeno de la

vida en la calle en gran parte producida por los medios de informacioacuten observamos

que partes del discurso de los nintildeos (de la calle y de las escuelas) coinciden con los pro-

ducidos por la clase media y por las Instituciones Por otro lado de cuarenta y nueve ar-

tiacuteculos analizados en seis perioacutedicos y tres revistas de difusioacuten nacional sobre los nintildeos

de la calle se concluyoacute que la primera causa que provoca la salida de los nintildeos a la calle

es la pobreza y la segunda la violencia familiar

Lucchini (1993) ha encontrado en diversos paiacuteses de Ameacuterica Latina que los nintildeos de

la calle responden muy faacutecilmente a las expectativas de sus interlocutores periodistas

educadores de calle turistas investigadores entre otros Se ha observado que los nintildeos

utilizan con frecuencia su marginalidad como una carta de presentacioacuten para establecer

una forma de relacioacuten basada en la seduccioacuten Ellos juegan con su marginalidad pero

tambieacuten con el deseo del otro de hacerlos salir de esa marginalidad

Un estudio realizado sobre la participacioacuten de los joacutevenes de la calle en el teatro (Tara-

cena y Tavera 2002) nos permitioacute acceder a las representaciones que ellos tienen de siacute

mismos Eacutestas a menudo son una re-elaboracioacuten de las representaciones que diversos

sectores sociales tienen de ellos

Se trabajoacute la relacioacuten identidad-cuerpo a traveacutes de un video de una puesta en escena que

se realizoacute en una plaza puacuteblica donde una organizacioacuten civil que trabaja con joacutevenes de

calle utilizoacute el teatro como una viacutea de educacioacuten sexual y en particular de la prevencioacuten

de enfermedades sexualmente transmisibles con el fin de producir en el infante de la

calle una especie de conciencia sobre el siacute mismo que le permita construir proyectos

alternativos

Posteriormente se invitoacute a los joacutevenes a ver el video de la obra de teatro realizada por

ellos mismos y se registraron todos los comentarios relacionados a su imagen Se les

126

pidioacute tambieacuten que dibujaran para tener acceso al imaginario que se puso en marcha con

su propia imagen Este dispositivo nos permitioacute profundizar el estudio de la conforma-

cioacuten de su identidad y del discurso que producen de la misma

De acuerdo con Linard y Prax (1980) al mirar su imagen puede ser llevado al fenoacuteme-

no de inquietante extrantildeeza a las viejas heridas narcisistas que marcaron su renuncia

al Yo ideal y su pasaje al estado de signo diferente El individuo es confrontado a una

doble imagen de siacute mismo la perceptiva y la interiorizada desdoblaacutendose en su Yo piel

y abandonado a la captura visual de la mirada del otro el signo que pareciacutea estable y que

se desbarata dentro de su liacutemites y sus barreras proyectado algunas veces por su propio

debilitamiento lejos en la historia de sus identificaciones y de sus relaciones con el otro

El caso de un nintildeo de la calle confrontando a su propia imagen es particular debido a su

propia historia de rupturas su fragilidad narcisista y tambieacuten porque eacutel no estaacute habitua-

do a verse dentro de una peliacutecula para todos estos joacutevenes era la primera experiencia de

este tipo Esta podriacutea ayudarnos a comprender por queacute ellos insistieron en mostrar una

identificacioacuten con su toxicomaniacutea apoyaacutendose en el hecho de que la droga les permite

enfrentar su cotidianeidad yendo a veces hasta substituirse por el bote de cemento esto

se encuentra tambieacuten en sus comentarios en los dibujos que realizaron ltsolamente

cuando estoy hasta atraacutes no me da penagt lttuacute estabas tambieacuten bien hasta atraacutesgt ltiexclMiacute-

ralo con su bote (risas)gt Es evidente que en el discurso de los nintildeos hay una alusioacuten a

la problemaacutetica narcisista y a la mirada del otro

Una problemaacutetica importante a reflexionar de esta experiencia es aquella que se relacio-

na con el cuerpo y la identidad de los nintildeos Relacionando estas observaciones con las

de Aacutengel P Botbol M y Facy F (1987) sobre los adolescentes inhaladores de Pariacutes

se puede decir que el deseo de drogarse no se situacutea en un nivel mental sino maacutes bien a

nivel corporal Ellos tambieacuten consideran a la inhalacioacuten como una traba para la menta-

lizacioacuten

En palabras de un nintildeo de la calle la relacioacuten entre el cuerpo y la droga es explicada asiacute

ltAlgunas veces nuestro cuerpo nos lo pide la droga nos llamagt Los autores antes men-

cionados citan la investidura libidinal de la funcioacuten respiratoria el apoyo sobre la fun-

cioacuten respiratoria de una libidinizacioacuten de la respiracioacuten o de la erotizacioacuten respiratoria

como un elemento importante en la toxicomaniacutea de los inhalantes Ellos citan tambieacuten

127Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

las imaacutegenes de satisfaccioacuten de las primeras experiencias respiratorias y alimenticias

ldquoComo el espasmo del primer llanto la inhalacioacuten voluntaria de solventes podriacutea ser

definida como el pasaje al acto para realizar esos fantasmas de satisfaccioacuten ligadas a

trazos mneacutesicos de imaacutegenes dejadas por las verdaderas satisfaccionesrdquo (p115)

Ellos subrayan la significacioacuten del inhalar ya que conduce al pasaje al acto y tambieacuten

al riesgo en caso de los nintildeos de la calle esos componentes se encuentran reforzados

constantemente por la presencia misma del nintildeo en la calle en donde estaacute obligado a

convivir con la muerte y el peligro esto aumenta su sensacioacuten de omnipotencia cada

vez que sale ileso de esas experiencias

Diversas investigaciones permiten constatar que estos nintildeos son incapaces de estable-

cer un lazo entre las enfermedades y los riesgos de contraerlas Citaremos en particular

el caso del SIDA y la rabia Tratando de hacerles comprender los mecanismos del con-

tagio a menudo ellos no fueron capaces de tomar las precauciones necesarias (Jayme

y Juaacuterez 1995) Ellos seguramente establecen una relacioacuten entre la muerte y un senti-

miento de invulnerabilidad parecida a la ya citada en los inhaladores (Angel P Botbol

M y Facy F 1987)

El video de la obra de teatro regresa a los joacutevenes al problema de su identidad ltEstaacute

bien estar en una casa porque tenemos una familia quien nos cuide quien nos veagt

ltHacemos teatro porque nos sentimos bien para que las personas nos mirengt ltEn

la calle la gente nos trata bien yo me siento bien ahiacute ellos no te critican Bueno hay

algunos que siacute lo hacen Hay personas que nos ayudan y otras que nos miran como si

fueacuteramos basura como un animal No seacute por queacute puede ser porque estamos suciosgt

Todas las anteriores intervenciones de diferentes nintildeos evidencian la importancia de

la mirada del otro la imagen que el otro puede devolverles de siacute mismos Lo mismo Za-

zzo que Lacan ha hablado de la experiencia especular como un momento decisivo de la

construccioacuten del sujeto El problema de la mirada del otro nos remite a las dificultades

narcisistas y al problema de la identidad

De acuerdo con Lipiansky (1992) se puede considerar a la identidad como un proceso

cognoscitivo que incluye componentes afectivos y que se apoya en la identificacioacuten de

128

proyecciones e introyecciones que pueden ser cambiadas o ajustadas a lo largo de la vida

del sujeto

A menudo se ha encontrado en los nintildeos de la calle una dificultad para decir su nombre

y apellidos Ellos se presentan siempre con un apodo y prefieren conocer tambieacuten a sus

compantildeeros por su apodo Una de las primeras tareas de las Instituciones que actual-

mente se acercan a los nintildeos es el tratar de convencerlos para que acepten la utilizacioacuten

de sus nombres En una de ellas se realizoacute una dinaacutemica de grupo para favorecer la uti-

lizacioacuten de sus nombres los nintildeos se sientan alrededor de una mesa y cada uno repite

el nombre de sus compantildeeros Cuando se llevoacute a cabo lo anterior los nintildeos mostraron

una gran dificultad para lograrlo dejando ver un cierto nerviosismo

Una gran parte del grupo se levantoacute y se salioacute de la sala un nintildeo mostroacute la tensioacuten que

le produciacutea el ejercicio y se levantoacute diciendo ltYo no quiero saber el nombre de nadie

yo no quiero que sepan el miacuteogt Sucede lo mismo cuando se le pregunta a un nintildeo su

apellido ltYo no seacute Peacuterez Saacutenchez oacute Loacutepez es lo mismogt o bien ltYo soy nadiegt o ltYo

soy nadagt

En este contexto las alusiones a la mirada del otro nos llevan a pensar en los primeros

estadios arcaicos de la infancia en la relacioacuten dual de la madre y en la problemaacutetica nar-

cisista reactualizada por algunos joacutevenes en la toxicomaniacutea la inhalacioacuten revive visual

y sensorialmente la imagen del pecho materno

Por su parte Lucchini (1993) enfatiza el problema del reconocimiento de la madre una

vez que el nintildeo ha abandonado su hogar como un elemento importante de su buacutesqueda

identitaria particularmente al entrar a la adolescencia De esta manera para construir

su realidad el nintildeo de la calle se apoya en su grupo de compantildeeros en el espacio fiacutesico

que le rodea y sobre sus relaciones con los diferentes actores sociales que estaacuten en la

calle

Para finalizar resulta importante subrayar que al igual que otros autores como Erikson

Devereux Wallon y Zazzo se puede pensar que el desarrollo de la identidad implica un

lazo constante entre lo subjetivo y lo social Los problemas manifestados por los nintildeos

de la calle a partir de su experiencia en el teatro nos hacen reconocer la importancia

129Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

que tiene para la construccioacuten del sujeto el encuentro entre los factores psiacutequicos y los

sociales

Dentro de la construccioacuten de su identidad y de la relacioacuten con su cuerpo hay una refe-

rencia constante a sus primeras experiencias personales en la relacioacuten con la madre

aunque tambieacuten en las referencias al espacio a la situacioacuten social a la violencia que

caracteriza ciertos medios sociales e incluso al rol de la madre y del padre determinado

por esta pertenencia en donde con frecuencia hay una presencia mucho mayor de la

madre y mucho menor del padre Si el joven conserva algunas imaacutegenes difusas en ge-

neral sensoriales de la primera relacioacuten con la madre en el nivel consciente lo que re-

salta maacutes a menudo es el sentimiento de ausencia abandono y a menudo de violencia

Esta violencia de su primera historia se re-edita en su vida en la calle Violencia concreta

en sus lazos con las personas que encuentra en su entorno inmediato La relacioacuten con

la policiacutea es ambivalente por un lado a veces se le extorsiona y se le utiliza como chivo

expiatorio y algunas otras se le permite la trasgresioacuten con cierta complicidad Lo mismo

sucede con la gente que por un lado los discrimina y por el otro les proporciona dinero

y comida Por uacuteltimo con las instituciones establecen una complicidad y algunas veces

no los reconocen Violencia simboacutelica de la sociedad que no encuentra otro lugar que

darles que la calle que no los protege y que a menudo soacutelo los reconoce en lo negativo

Esta violencia es revertida en sus relaciones y en los grupos en los que se encuentra aun

en los casos de relaciones de ayuda y de apoyo

Dentro de esta dialeacutectica se tejen las historias de los nintildeos de la calle los cuales sorpren-

den por su capacidad para resolver los problemas praacutecticos por su inteligencia y por su

forma de vivir y de enfrentar continuamente a la muerte pero tambieacuten con sus enor-

mes fragilidades sus desfases su capacidad de pasar raacutepidamente de adultos a nintildeos

en actitudes y comportamientos

Otrasinvestigacionessobreelfenoacutemenodelavidaenlacalle

Desde la antropologiacutea social el trabajo de Sara Makowski (2004) representa una mi-

rada original desde una propuesta antropoloacutegica para el anaacutelisis de las condiciones so-

ciales de produccioacuten del fenoacutemeno de los joacutevenes de la calle una propuesta que intenta

130

rescatar la mirada y la memoria de los joacutevenes esa memoria de la exclusioacuten de la que

la sociedad quiere saber poco o quiere ignorar Esta investigacioacuten ofrece tambieacuten un

material inapreciable para reflexionar sobre los modos de vida de los joacutevenes la relacioacuten

con la calle y con los objetos que en ella existen como uacutenico modo de recrear algo que

sientan suyo Dicha investigacioacuten coincide con las realizadas por nuestro equipo de tra-

bajo en el deseo de comprender y de escapar a los marcos normalizantes de las ciencias

sociales y de las instituciones que pretenden a menudo patologizar todo aquello que se

aleja del comportamiento de la mayoriacutea

La autora trabajoacute con joacutevenes que teniacutean maacutes de diez antildeos en la calle en lugares del cen-

tro de la ciudad que en cierto sentido son emblemaacuteticos de la presencia de los joacutevenes

callejeros La autora misma describioacute los lugares y su carga simboacutelica y afectiva la in-

vestigacioacuten transcurrioacute por muacuteltiples espacios puacuteblicos muy cercanos unos de otros y

que conformaban el repertorio de lugares del grupo de joacutevenes de la calle La etnografiacutea

―itinerante como la experiencia de los propios chavos de la calle― se escribioacute con partes

de las coladeras del Museo Franz Mayer de las aceras de la iglesia de la Santa Veracruz

de la explanada de la Plaza de Zarco de las escaleras de las estaciones del metro Hidal-

go y Bellas Artes de la esquina de Balderas y Av Juaacuterez del kiosco de la Alameda y del

campamento montado en la Plaza de la Solidaridad Todos estos lugares fueron a su

manera fragmentos de un hogar

Esta investigacioacuten utilizoacute como herramientas las entrevistas las fotos y los videos reali-

zados por los propios chavos y por la autora La historia oral de los grupos y los dibujos

y croquis de sus espacios y circuitos de itinerancia De este modo Makowski planteoacute

tres ejes para analizar los datos recolectados el de la experiencia el de los lugares y el

de la memoria

En cuanto al de la experiencia de acuerdo con la autora la calle representa polos opues-

tos y contradictorios en sus palabras ldquoLa calle condensa todos los paisajes de la peacuter-

dida La calle es abandono desproteccioacuten muerte olvido evaporacioacuten del tiempo y

del sentido La intemperie social es soacuterdida y aacuterida al igual que la propia intemperie

biograacutefica de cada uno de los chavos de la calle Pero a contraluz de esa densidad la calle

representa un juego de existencia irradia autonomiacutea libertad y atraccioacuten vitalrdquo (Mako-

wski 2004 p4) Lugar de visibilidad e invisibilidad los somete a la indiferencia a la que

ellos se rebelan con actos de acuerdo con sus propias reglas y formas de socializacioacuten

131Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

Por su parte el eje de los lugares del estudio tambieacuten estaacute lleno de paradojas los joacute-

venes de la calle no tienen un lugar reconocido socialmente pero al mismo tiempo se

mueven en un deseo de encontrar un lugar que sin embargo estaacute poblado de rupturas

y sin lugares En cuanto al eje de la memoria Makowski lo analiza desde la perspectiva

de la relacioacuten entre la memoria social y la individual en donde la segunda hace eco a

la primera en las memorias de los chavos de la calle hay algo que siempre persiste La

desinscripcioacuten la violencia los huecos en la transmisioacuten familiar la no herencia todo

esto insiste en la fragilidad de esas memorias iquestMemorias de una cataacutestrofe De la ca-

taacutestrofe individual y colectiva del rompimiento del lazo social Un quiebre que en pocos

casos tendraacute alguna posibilidad de sutura

Otro eco de las memorias de la exclusioacuten proviene de la propia grupalidad Un complejo

ensamblaje de fragmentos de memorias propias y de otros conforman las memorias de

los chavos de la calle Recuerdos de aventuras compartidas de actos heroicos contra la

violencia policial de eventos traumaacuteticos colectivos como la clausura de las coladeras

de afectividades que penetraron muy profundamente de solidaridades indisolubles

de ausencia de compantildeeros de risas de verguumlenzas todos estos materiales arman el

patchwork de las memorias de los chavos de la calle

Cuando el afluente de la grupalidad irriga activamente la memoria colectiva se reeditan

en forma paralela las memorias individuales Zonas de olvido y episodios desdibuja-

dos en las biografiacuteas encuentran otro orden y otra escena para recrearse La memoria

colectiva opera a veces como una barrera que detiene las disoluciones de la memoria

individual (Op Cit p8)

La autora encontroacute asiacute una manera de relacionar la historia de la ciudad de los lugares

habitados por los joacutevenes en el Centro Histoacuterico la historia colectiva de los grupos cre-

ados por los mismos y la historia individual de cada uno de ellos Aunado a ello una

dimensioacuten de la memoria particularmente interesante es la memoria corporal que el

trabajo de Makowski muestra de manera graacutefica las huellas en la piel de los joacutevenes de

la vida en la calle que en una suerte de mimetizacioacuten replican las figuras las texturas

las cicatrices de la calle

Por su parte los trabajos de Steacutephane Tessier en el Centro Internacional de la Infancia

(Tessier 1994 1995 y 1998) reunieron a investigadores de diferentes continentes que

132

constataron muacuteltiples coincidencias en el fenoacutemeno de la vida de los joacutevenes en la calle

Una de ellas es la utilizacioacuten de los inhalantes como forma de resistir a la vida en la

calle y de olvidar Pareciera que la utilizacioacuten del inhalante forma parte de la identidad

del nintildeo y el joven de la calle tanto es asiacute que muchas veces aquellos que consumen

esa droga y no viven en la calle niegan utilizarla pues dicen que es propia de los maacutes

desheredados

La relacioacuten con el espacio constituyoacute tambieacuten uno de los ejes de reflexioacuten la manera en

que cada sociedad va definiendo lo privado y lo puacuteblico y coacutemo las sociedades actuales

principalmente en la urbes preocupadas por la seguridad se ha ido construyendo el

espacio de la calle como un lugar de paso de traslado de un lugar a otro perdieacutendose

asiacute la concepcioacuten de la calle como espacio de aprendizaje asiacute quien permanece hoy en

la calle se considera ocioso o delincuente cuando en generaciones anteriores muchos

joacutevenes se constituyeron como adultos en referencia a los grupos que utilizaban la calle

como espacio de socializacioacuten

Otro aspecto discutido en estos trabajos es el del trastrocamiento de las relaciones fami-

liares por el hecho de que el nintildeo puede aportar a veces mayor cantidad de dinero que

los padres Hemos encontrado muchas veces el testimonio de madres de familia que

dicen no poder poner reglas a sus hijos por el hecho de que ellos tienen conciencia de

aportar una buena parte del ingreso familiar tal es el caso de las familias de origen in-

diacutegena que migran a la Ciudad de Meacutexico Este problema y el de la ausencia de la figura

paterna son frecuentes en los paiacuteses de Ameacuterica Latina como pudimos constatar en las

reuniones del Centro Internacional de la Infancia

Una preocupacioacuten importante del Centro Internacional de la Infancia fue el de analizar

las herramientas mediante las cuales podriacutea trabajarse con las poblaciones callejeras

asiacute se llevaron a cabo reuniones en el espacio de la Villette en Paris donde se encon-

traron alrededor de la muacutesica poblaciones callejeras de diferentes paiacuteses tambieacuten se

exploroacute el teatro como forma de expresioacuten para estos grupos

Otra referencia sobre el trabajo con los joacutevenes de la calle es la de las investigaciones re-

alizadas por Lucchini en Brasil Uruguay y Meacutexico El autor muestra que en las familias

maacutes pobres de la ciudad todos los miembros deben colaborar con el presupuesto fami-

liar y tambieacuten son las mujeres y los nintildeos los que deben trabajar El bajo nivel educativo

133Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

y la escasez de oportunidades impiden a algunos padres incorporarse al ambiente labo-

ral satisfactorio haciendo que las familia se quede a veces sin los ingresos suficientes

para subsistir hecho que obliga a los nintildeos a participar en las actividades generadoras

de ingresos a traveacutes de sus trabajos en la calle y reducen poco a poco su adscripcioacuten

escolar Muchas de estas familias ademaacutes son numerosas viven generalmente en zonas

marginadas o barrios populares que se caracterizan por tener elevados iacutendices de vio-

lencia intrafamiliar asiacute como un nivel de bienestar miacutenimo La pertenencia a estratos

populares con tales caracteriacutesticas de pobreza y marginalidad modela e influye sobre las

formas de relacioacuten el comportamiento las praacutecticas los valores las metas culturales y

la educacioacuten que se da a menores Seguacuten el autor se estima que el 30 de las familias

pobres de las regiones urbanas no reciben contribucioacuten alguna de los hombres y el 20

de ellas sobrevive gracias al trabajo de los nintildeos

Casi toda la totalidad de los nintildeos de la calle con los que Lucchini (1996) realizoacute su

estudio procediacutean de familias monoparentales o de familias en las que la madre viviacutea

con una pareja que no era el padre de todos los hijos y en algunos casos no era el padre

de ninguno de ellos Las condiciones econoacutemicas desastrosas la falta de empleo que

impide pensar en un futuro prometedor la promiscuidad de uno o de ambos coacutenyuges

vivida como un problema entre la pareja y la falta de un bienestar estructural aumentan

la presioacuten y deterioran las relaciones familiares que en la mayoriacutea de los casos se es-

cinden yo fragmentan Las frecuentes separaciones o los divorcios resultantes de este

deterioro son perjudiciales para todos los miembros de la familia particularmente para

los nintildeos quienes no reciben la atencioacuten necesaria e incluso en muchos casos reciben

maltrato por parte de la nueva pareja del padre o la madre La falta de comunicacioacuten

la escasez de respeto de solidaridad y de convivencia provoca un distanciamiento que

puede terminar en su expulsioacuten a la calle

El concepto que hemos retomado del autor es el de carrera del nintildeo de la calle el cual

surge a partir de una criacutetica realizada a las definiciones planteadas por las organizacio-

nes internacionales y los organismos que se ocupan de los joacutevenes de la calle15 El autor

considera que estas definiciones son demasiado estaacuteticas en cambio lsquocarrera de nintildeo

15 Muchas de las discusiones que llevaron a Lucchini a proponer el concepto de carrera del nintildeo de la calle provienen de las reuniones que se realizaron en el Centre International de lrsquoenfance dirigido por Steacutephane Tessier en los antildeos 90-95 (comunicacioacuten personal con Steacutephane Tesssier)

134

de la callersquo implica una visioacuten dinaacutemica del proceso en el cual el nintildeo pasa un tiempo

largo entre la calle y su casa con idas y vueltas entre una y la otra asiacute mismo sentildeala

que dependiendo del momento en que se encuentra el nintildeo la intervencioacuten debe ser

diferente (Lucchini 1996)

Para Lucchini (1998) es importante la imagen que tienen los educadores y los trabaja-

dores sociales de los nintildeos de la calle en la forma de intervencioacuten El autor advierte que

las imaacutegenes del nintildeo viacutectima y el nintildeo asocial son muy reductoras de la realidad vivida

por el nintildeo de la calle y que estas imaacutegenes tienden a borrar la cultura del nintildeo de su

familia y de los grupos a los que pertenece

Conclusiones

La vida en la calle es un universo complejo y ninguna historia de quienes la habitan es

igual Nos hemos esforzado por dar una imagen de esta diversidad y de crear meacutetodos

de estudio que respetando la singularidad puedan tambieacuten profundizar en los procesos

que nos permitan comprender el fenoacutemeno en su conjunto

Los joacutevenes de la calle se encuentran en una situacioacuten de supervivencia posiblemente

la salida de sus familias fue necesaria para resguardar su deseo de vivir por las condicio-

nes de violencia fiacutesica y psicoloacutegica el quedarse en sus familias quizaacute significariacutea una

situacioacuten maacutes amenazante Es la ausencia de padres o de alguna figura de substitucioacuten

la que contribuye a definirlo como perteneciente a la calle La ley y la autoridad son en

general representadas por la represioacuten y el maltrato en la figura de la policiacutea ante la

cual el joven se situacutea a menudo en la trasgresioacuten y en el sentimiento de ser abusado

La violencia fiacutesica y simboacutelica es el eje principal en la vida de estos joacutevenes paradoacutejica-

mente salen des sus casas muchas veces para evitar la violencia y la reproducen ellos

mismos con sus pares y hacia ellos mismos Asiacute la relacioacuten con su cuerpo refleja esta

violencia a menudo en el consumo de la droga aunque en el consumo de la misma se

mezcla tambieacuten una buena dosis de placer elemento que hay que reconocer como uno

de los motores del consumo

A traveacutes de estos textos podemos sentir las texturas de la calle y lo que implica vivir en

ella podemos apreciar las formas diferentes de socializacioacuten que plantean los joacutevenes

135Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

de la calle con sus reglas en sus espacios aunque a la vez sean espacios de todos y de

nadie Los grupos se apropian de ella a tal grado que muchas veces los transeuacutentes evi-

tan pasar por sus puntos de reunioacuten Podemos pensar que la calle no es un lugar propio

para el desarrollo de los nintildeos o de las familias o de los joacutevenes y sin embargo cada diacutea

hay maacutes personas que dependen de la calle para su supervivencia

Las reflexiones realizadas a partir de las investigaciones psicosociales nos sirven tambi-

eacuten para dimensionar la fuerza de la calle como un polo de atraccioacuten inevitable que resul-

ta difiacutecil de dejar La calle impone sus reglas la loacutegica del aquiacute y el ahora la sensacioacuten

de libertad y de falta de ataduras aunque la calle constituya una atadura en siacute misma

Significa entonces todo un reto pensar en plantear un proyecto educativo para estos joacute-

venes indudablemente en este proyecto deberaacute incluirse un trabajo sobre la memoria

sobre la pertenencia sobre las reglas y los liacutemites partiendo de lo que es su realidad

Estos textos nos permiten tambieacuten medir las distancias que puede haber entre la vida

en la calle y las demandas o exigencias de las instituciones que trabajan con los joacutevenes

de la calle Podemos entender con mayor facilidad por queacute la mayoriacutea de los joacutevenes

tienen una relacioacuten instrumental con las instituciones de las que entran y salen regular-

mente Esta relacioacuten les permite aliviar un poco la dureza de la vida en la calle y a veces

les permite sontildear que alguacuten diacutea su vida podriacutea cambiar sin embargo no se produce el

arraigo suficiente para renunciar a la vida en la calle posiblemente porque es la uacutenica

manera de sentir que ellos son sujetos de su existencia El asistencialismo que domina

en la mayoriacutea de las Instituciones contribuye a crear una identidad de viacutectimas y no

favorece la posibilidad de visualizarse como actores de su propio destino Es entonces

que en la lucha cotidiana por la supervivencia en la calle ellos tienen la sensacioacuten de

ser independientes

Las investigaciones realizadas por nuestro equipo y por otros investigadores Boudjemai

(1998) nos llevan a evaluar la importancia de trabajar con los joacutevenes en situacioacuten de

calle a traveacutes de actividades de expresioacuten corporal artiacutesticas luacutedicas y educativas para

favorecer los procesos de elaboracioacuten reflexioacuten y creatividad que les permita visualizar-

se de manera diferente A menudo hemos encontrado reticencias de las Instituciones

para abordar las historias de vida de estos joacutevenes pensamos que esto tiene que ver con

la misma reticencia que los mismos joacutevenes muestran entre otras cosas por el mal uso

que se ha hecho de sus historias en la mediatizacioacuten de la miseria Sin embargo esta-

136

mos convencidos que para que un sujeto pueda elaborar un proyecto a futuro tiene que

dimensionar y elaborar su pasado Es necesario elaborar poliacuteticas puacuteblicas que apunten

a mejorar la calidad de vida de las poblaciones callejeras y a disminuir el riesgo de conta-

gio de enfermedades sexuales transmisibles y del consumo de drogas poniendo eacutenfasis

en la capacidad de ellos de convertirse en actores y dejando de lado el asistencialismo

que funda muchas de las intervenciones

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141 Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

TeresaCristinaOCCarreteiro

AlanTeixeiraLima

BiancaCauperBohnert

ClaacuteudiaValenteLopes

DanielaSerrinadeLimaRodrigues

LeticiadeLunaFreire

LucianaRibeiroBarbosa

MarcosCeacutesardaRochaSalema

A juventude residente em localidades socialmente desfavorecidas tem recebido atenccedilatildeo

de inuacutemeros projetos de assistecircncia pesquisa e intervenccedilatildeo em sua maioria indepen-

142

dentes do Estado 16Em geral a preocupaccedilatildeo que norteia esses projetos eacute o fato de serem

os jovens das favelas e periferias os mais afetados diretamente pela falta de oportunida-

des de trabalho e pelo natildeo provimento de direitos baacutesicos como sauacutede e educaccedilatildeo o que

lhes concede uma dupla vulnerabilidade agrave violecircncia ndash como agentes e como viacutetimas17

Essa questatildeo poreacutem natildeo deve ser entendida de maneira simplista ou reducionista

Trata-se de um fenocircmeno muito mais complexo pois haacute uma seacuterie de fatores que atra-

vessam a vida destes jovens e que no entanto nenhuma teoria ou abordagem daacute conta

de sua totalidade

A relaccedilatildeo do jovem com o trabalho (ou a sua ausecircncia) por exemplo eacute uma problemaacute-

tica que natildeo pode ser pensada isolada de um contexto mais amplo e dinacircmico Nesse

sentido este artigo natildeo tem a pretensatildeo de esgotar a discussatildeo a respeito do binocircmio

juventude-trabalho mas busca apenas compartilhar e discutir uma experiecircncia singu-

lar contribuindo assim para o debate acerca desta temaacutetica Este trabalho eacute um desdo-

bramento da pesquisa-accedilatildeo ldquoDrogas e Complexidade a ressonacircncia do fenocircmeno das

drogas nas redes sociais de jovens de contextos desfavorecidos e a construccedilatildeo de meto-

dologias de intervenccedilatildeo preventivardquo

Desenvolvida na localidade de Acari zona norte do municiacutepio do Rio de Janeiro esta

pesquisa teve como objetivos principais investigar de que maneira a presenccedila das dro-

gas (tanto o consumo quanto o traacutefico) atua no estabelecimento ou na ruptura de viacuten-

culos afetivos e sociais para os jovens desta localidade analisar como esta questatildeo eacute

enfrentada nos seus diferentes niacuteveis de expressatildeo (individual grupal familiar e insti-

tucional) e construir metodologias de intervenccedilatildeo comunitaacuteria preventivas agrave drogadi-

ccedilatildeo e agrave marginalizaccedilatildeo desses jovens

16 Este trabalho eacute um desdobramento da pesquisa-accedilatildeo ldquoDrogas e Complexidade a ressonacircncia do fenocircmeno das drogas nas redes sociais de jovens de contextos desfavorecidos e a construccedilatildeo de metodologias de intervenccedilatildeo preventivardquo A pesquisa foi vinculada ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenada pela professora Teresa Cristina Carreteiro

17 Natildeo se trata de ratificar a relaccedilatildeo entre favela e violecircncia como uma relaccedilatildeo intriacutenseca como o faz muitas vezes a miacutedia mas de constatar que por diversos aspectos ldquoa violecircncia eacute em grande parte produzida na favela e natildeo pela favela e seus moradoresrdquo como afirma Rumba Gabriel membro do Movimento Popular de Favelas) Quanto aos jovens segundo pesquisa feita em 2000 eacute na faixa de 15 aos 24 anos que os homiciacutedios atingem sua maior incidecircncia chegando a ser no Rio de Janeiro a causa de mais da metade dos oacutebitos juvenis (Waiselfisg Julio Jacobo Mapa da Violecircncia III Brasiacutelia UNESCO Instituto Ayrton Senna Ministeacuterio da JusticcedilaSEDH 2002)

143Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

Seguindo o enfoque teoacuterico da psicossociologia francesa e a perspectiva da complexida-

de proposta por Edgard Morin (1996) consideramos que o fenocircmeno das drogas eacute mui-

to dinacircmico Ele eacute diretamente conectado com inuacutemeros outros fenocircmenos devendo-se

sempre considerar as dimensotildees micro e macro sociais Na perspectiva singular enten-

demos que todo sujeito eacute um sujeito social ou seja que o indiviacuteduo e a sociedade natildeo

satildeo categorias que se encontram isoladas nem tampouco opostas mas em constante e

imbricada relaccedilatildeo

Nesse sentido diante de todas as questotildees que nos defrontamos em Acari buscamos

considerar tanto o niacutevel individual quanto o coletivo o afetivo e o institucional os pro-

cessos inconscientes e os processos sociais (Gaulejac 2001) que ali se apresentam de

forma indissociaacutevel Inicialmente desenvolviacuteamos grupos semanais com os jovens

de duas instituiccedilotildees locais Denominados ldquoOficinas da Conversardquo esta atividade tinha

como objetivo criar espaccedilos de circulaccedilatildeo da palavra favorecer o diaacutelogo e a expressatildeo

dos jovens a respeito de temas pregnantes em seu cotidiano tais como famiacutelia escola

lazer trabalho drogas e violecircncia Para adquirir a confianccedila dos jovens e contrapor-se

agrave chamada ldquolei do silecircnciordquo que vigorava imperiosa nas localidades marcadas pela pre-

senccedila do traacutefico de drogas estabeleciacuteamos nos grupos um pacto de sigilo entre seus in-

tegrantes e utilizaacutevamos recursos luacutedicos plaacutesticos e dinacircmicos que pudessem facilitar

a ldquosubstituiccedilatildeo do combate pelo exerciacutecio do debaterdquo (Carreteiro 1993)

Iniciamos nossas atividades em campo apenas com os jovens e percebemos que estaacute-

vamos privilegiando apenas este segmento Atentos a esta questatildeo buscamos construir

coletivamente dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo sobre os projetos profissionais dos

jovens em Acari de modo que envolvessem a participaccedilatildeo de outros atores sociais Para

isso realizamos cinco encontros na localidade com a presenccedila de jovens familiares

liacutederes locais e educadores Esses encontros intitulados ldquoFoacuterum Trabalho e Juventude

em Acarirdquo tinham como objetivo proporcionar um espaccedilo de debate sobre as perspec-

tivas e possibilidades de trabalho da juventude local Pretendiacuteamos ainda discutir os

projetos existentes na localidade para os jovens possibilitando a troca de experiecircncias

entre seus representantes e o estabelecimento de parcerias

Os encontros se desenvolveram de maneira dinacircmica e descontiacutenua jaacute que o grupo

nunca se mantinha o mesmo (oscilava entre seis e doze pessoas aleacutem de nossa equipe)

144

assim como o local onde era realizado 18 Alguns encontros foram gravados e filmados

de maneira que houvesse um registro das imagens e falas sobre os temas abordados

Embora cada encontro tenha se caracterizado de modo particular foi possiacutevel mapear

alguns discursos predominantes Os principais discursos que destacamos foram em

relaccedilatildeo agrave famiacutelia educaccedilatildeo poliacutetica estigma e traacutefico de drogas

Odiscursofamiliarista

Um discurso bastante recorrente entre os participantes foi aquele no qual a famiacutelia apa-

rece como a grande responsaacutevel pelo sucesso ou fracasso de seus filhos Ressaltou-se

a atenccedilatildeo e dedicaccedilatildeo que os pais devem ter com seus filhos oferecendo ldquobons exem-

plosrdquo mantendo uma vida honesta e digna

ldquoNosso filho vai trabalhar de acordo com o que a gente daacute pra ele Apoiar o filho no que eacute bom eacute importantiacutessimordquo (fala do pai de um jovem)

Apesar disso eacute interessante notar que ao perguntarmos a uma matildee sobre o seu projeto

para seus filhos esta nos respondeu relatando o amor que sente por eles Tal fato denota

algo jaacute observado em outras ocasiotildees em Acari de que os pais frequumlentemente natildeo tecircm

um projeto definido para seus filhos Pensamos que isto pode estar relacionado com

dois aspectos Primeiramente por viverem uma temporalidade imediatista que pelas

proacuteprias condiccedilotildees de vida natildeo lhes permitem fazer planos ou pensar no futuro e em

segundo lugar por seus projetos se constituiacuterem natildeo a partir de uma afirmativa mas

de uma negaccedilatildeo ou seja do que natildeo desejam para seus filhos em geral que se tornem

ldquobandidos e marginaisrdquo

A autoridade e o controle sobre a vida e as amizades dos filhos tambeacutem foram aponta-

dos como uma maneira de tentar lhes garantir um ldquobom caminhordquo o que conforme

observamos em outras situaccedilotildees faz com que muitos pais eduquem seus filhos para

18 Sendo os participantes de diferentes aacutereas de Acari e tendo estas aacutereas simbologias diversas tal como demonstra Alvito (2001) dificultando a circulaccedilatildeo dos moradores tivemos o cuidado de realizar os encontros em locais que fossem vistos com ldquobons olhosrdquo pela comunidade como uma creche comunitaacuteria e uma das Associaccedilotildees de Moradores Pensamos que o conhecimento dessas representaccedilotildees eacute crucial para o desenvolvimento de quaisquer atividades que requeiram a participaccedilatildeo dos moradores dessas localidades

145Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

ficarem em casa e terem poucos amigos em contrapartida o ldquomundo da ruardquo eacute visto

como perigoso lugar de movimento surpresas e tentaccedilotildees (Da Matta 1984)

ldquoTem que ir atraacutes tomar conta dar conselho se dependesse da gente o filho natildeo entrava para o mau caminhordquo (fala da matildee de uma jovem)

ldquoMatildee tem que exigir controlar olhar a caderneta da escola todo diardquo

(fala do pai de um jovem)

ldquoEle [o jovem] tem que ser dominado ter respeito pela matildee e pelo pairdquo

(fala da matildee de duas jovens)

Ao mesmo tempo que esta visatildeo atribui agrave famiacutelia um papel importante sobre o futuro

dos jovens atraveacutes da educaccedilatildeo e da transmissatildeo de valores esta influecircncia na medida

que eacute vista como uacutenico elemento determinante de que os filhos seratildeo ldquotrabalhadoresrdquo

ou ldquocairatildeo na vidardquo (do crime) passa a refletir um sentimento de culpa e fracasso fa-

miliar Percebemos neste discurso familiarista uma falta de criacutetica em relaccedilatildeo a uma

menor participaccedilatildeo do Estado e da sociedade em geral Assumindo para si uma respon-

sabilidade que natildeo eacute meramente individual mas tambeacutem social a famiacutelia despolitiza os

acontecimentos e assim se despotencializa

Aeducaccedilatildeocomoocupaccedilatildeo

A educaccedilatildeo tambeacutem eacute apontada como um elemento importante para o futuro profissio-

nal dos jovens possibilitando-os ldquoser algueacutem na vidardquo poreacutem eacute mais valorizada como

apenas uma opccedilatildeo frente ao oacutecio Este por sua vez eacute visto como algo que predispotildee o

jovem ao mundo das drogas e da criminalidade O discurso predominante eacute ldquoocupar

os jovens para que natildeo fiquem agrave toa e faccedilam coisas erradasrdquo natildeo importando muito a

qualidade da ocupaccedilatildeo como podemos verificar nessas falas

ldquoO estudo e o trabalho andam juntos mas a maioria dos jovens vecirc o estudo para preencher um vazio fazer a vontade dos paisrdquo (fala de uma jovem)

ldquoA mente desocupada fica poluiacutedardquo (fala do pai de um jovem)

A ociosidade nas camadas pobres da sociedade eacute vista pelo discurso dominante como uma ldquobomba reloacutegiordquo pois aquele que natildeo estaacute integrado no ldquomundo do trabalhordquo eacute suscetiacutevel de integrar a ldquobandidagemrdquo como

146

nos aponta a pesquisadora Irma Rizzini (1997) em estudo realizado sobre as poliacuteticas puacuteblicas para a infacircncia no Brasil Ela constatou que satildeo dispensadas posturas diferentes para aqueles identificados como ldquopobres dignosrdquo e ldquopobres viciososrdquo Aos primeiros satildeo destinadas intervenccedilotildees que ldquofortalecem os valores morais e preceitos religiosos por pertenceram a uma classe mais vulneraacutevel aos viacutecios e as doenccedilasrdquo Jaacute para os segundos por natildeo pertencerem ao ldquomundo do trabalhordquo satildeo vistos como ldquoportadores de delinquumlecircncia libertinos maus pais e vadiosrdquo

Essa ideologia natildeo se encontra somente no discurso do poder puacuteblico sobre as classes

populares mas tambeacutem na forma como esses indiviacuteduos se reconhecem frente ao so-

cial No ldquoFoacuterum Trabalho e Juventude em Acarirdquo percebemos grande frequecircncia desse

discurso na fala de educadores lideranccedilas comunitaacuterias e familiares no que tange o

lugar que o trabalho ocupa na vida dos jovens O trabalho por diversas vezes eacute citado

como um artifiacutecio de dignificaccedilatildeo humana capaz de elevar a autoestima e de impedir o

jovem de ldquose misturarrdquo agraves maacutes companhias

Quanto agrave educaccedilatildeo formal cabe dizer que as escolas puacuteblicas no entorno de Acari se-

gundo as famiacutelias e os proacuteprios jovens funcionavam de modo bastante precaacuterio tanto

em termos de infraestrutura quanto da qualidade do ensino Aleacutem disso era comum

fazerem referecircncia agrave presenccedila de drogas e violecircncia nesses espaccedilos reforccedilando o sen-

timento de inseguranccedila dos moradores Esse esvaziamento da instituiccedilatildeo escolar pode

ser exemplificado com a fala de uma jovem ldquona escola vocecirc entra burro e sai bandidordquo

Desse modo a escassez de outras instituiccedilotildees que possam ldquoocuparrdquo e oferecer algum

aprendizado aos jovens na localidade eacute frequumlentemente enunciada pelos moradores

ldquoOs jovens que procuram ocupaccedilatildeo [cursos em Acari] tem que pagar e a maioria natildeo tem condiccedilatildeordquo (fala da matildee de duas jovens)

ldquoAqui na redondeza natildeo tem trabalho para os jovens a uacutenica coisa que tem pra eles aqui eacute forroacuterdquo (fala da avoacute de uma jovem)

Odiscursopoliacutetico

Embora em menor proporccedilatildeo um discurso mais politizado tambeacutem pocircde aparecer

principalmente nas falas daqueles mais articulados e que exerciam participaccedilatildeo poliacutetica

direta em Acari como os liacutederes comunitaacuterios Este discurso versava sobre os niacuteveis

econocircmicos sociais e poliacuteticos buscando sempre marcar o dever e a participaccedilatildeo (ou

147Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

ausecircncia) do Estado e da sociedade nas problemaacuteticas atuais Sobrepotildee-se ao discurso

familiarista uma vez que relacionava as questotildees do campo pessoal com o campo so-

cial Nesse sentido favorecia a organizaccedilatildeo coletiva e a luta pela cidadania

ldquoOs jovens natildeo estatildeo trabalhando porque os oacutergatildeos de alto niacutevel natildeo datildeo oportunidadesrdquo (fala do pai de um jovem)

ldquoSe a gente se organizar pra mudar a gente muda O direito era para ser igual mas natildeo eacuterdquo (fala de uma liacuteder comunitaacuteria)

Oestigmacomoobstaacuteculoagraveprocuradetrabalho

Historicamente as favelas tecircm sido consideradas espaccedilos tiacutepicos de concentraccedilatildeo da

pobreza da violecircncia e da criminalidade Esta representaccedilatildeo embora desmistificada nos

trabalhos de Valladares (1991 1999 2005) vem sendo reforccedilada pela miacutedia contri-

buindo assim para a construccedilatildeo de uma visatildeo preconceituosa acerca destes espaccedilos e

seus respectivos moradores vistos como perigo social ameaccedila agrave ordem e agraves normas

vigentes

Segundo Goffman (1982) a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas fa-

zendo com que os ambientes sociais determinem quais indiviacuteduos podem ser encontra-

dos nos respectivos espaccedilos Nesse sentido os que residem nessas localidades passam

a ser vistos socialmente como uma grande massa homogecircnea O que ocorre portanto

eacute que apesar de uma parcela iacutenfima da populaccedilatildeo local atuar em atividades ilegais e cri-

minosas todo o conjunto dos moradores eacute afetado pelo preconceito social pois como

nos relatou uma moradora ldquoas pessoas de fora acham que aqui na favela soacute mora bandidordquo

De acordo com o discurso dos moradores essa estigmatizaccedilatildeo interfere diretamente

nas relaccedilotildees dos jovens com o ldquomundo do trabalhordquo apresentando-se como mais um

obstaacuteculo a ser vencido

ldquoOs jovens satildeo discriminados pelo endereccedilo no curriacuteculordquo (fala de uma educadora)

ldquoSe vocecirc mora na favela as pessoas te pichamrdquo (fala da matildee de duas jovens)

ldquoEu falo pro meu filho natildeo eacute porque a gente mora na favela que vocecirc eacute pior que o jovem da zona sulrdquo (fala da matildee de duas jovens)

148

Para fazer face ao estigma na procura de trabalho os moradores criam diversas taacuteticas de defesa tais como omitir seu endereccedilo em curriacuteculo ou fichas de emprego substituindo-o pelo endereccedilo de amigos ou parentes que residam fora da favela A identificaccedilatildeo de Acari como aacuterea sob o domiacutenio de uma determinada facccedilatildeo criminosa ndash no caso o Terceiro Comando ndash tambeacutem eacute algo que interfere na busca dos jovens por oportunidades de trabalho fora da favela

ldquoPor causa do comando o jovem tem medo de sair da favela arrumar estaacutegio forardquo

(fala de uma educadora)

Aleacutem do estigma de ldquoser faveladordquo haacute o preconceito racial que acaba contribuindo para uma baixa auto-estima dos jovens Vejamos como uma senhora tenta lidar com o racismo sofrido por seu neto que natildeo consegue trabalho fora de Acari

ldquoO importante eacute ser preto e direito Natildeo eacute porque vocecirc eacute pretinho natildeo mas vocecirc tem que estudarrdquo (fala da avoacute de um jovem)

Eacute importante assinalar que os jovens muitas vezes satildeo estigmatizados dentro da proacutepria

localidade fundamentalmente pela atuaccedilatildeo arbitraacuteria da poliacutecia Uma educadora que

trabalha num projeto com jovens da comunidade nos relata indignada o discurso de um

policial posicionado na entrada do estabelecimento Em tom de deboche o policial re-

ferindo-se aos jovens do projeto lhe perguntou ldquoQuantos desses aiacute satildeo infratores Essa

instituiccedilatildeo soacute trabalha com infratorrdquo Este fato vem de encontro com uma pesquisa19 re-

alizada sobre a juventude carioca que demonstrou que as relaccedilotildees dos policiais com os

jovens pobres satildeo vistas por estes como relaccedilotildees de desrespeito agressatildeo e humilhaccedilatildeo

ldquoSorte do jovem se o policial for com a cara delerdquo (fala da matildee de duas jovens)

Situaccedilotildees que exemplifiquem esta loacutegica satildeo frequumlentes em Acari evidenciando uma

inversatildeo no papel que em tese deveria ter a instituiccedilatildeo policial Enquanto agente do

19 Esta pesquisa - intitulada ldquoJuventude violecircncia e cidadania no municiacutepio do Rio de Janeirordquo e publicada em livro sob o tiacutetulo ldquoFala Galerardquo - eacute uma parceria entre UNESCO FIOCRUZ Instituto Ayrton Senna e Fundaccedilatildeo Ford e teve como objetivo central analisar o sentido que os jovens cariocas pertencentes a distintos estratos socio-econocircmicos atribuem agrave juventude agrave violecircncia e agrave cidadania especialmente no acircmbito de seu cotidiano familiar escolar e de sociabilidade

6 R

149Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

Estado a poliacutecia ao inveacutes de proteger os moradores comuns abusa de sua autoridade

praticando accedilotildees de violecircncia e humilhaccedilatildeo que atingem em especial os jovens Con-

forme afirmam os moradores os policiais natildeo sabem diferenciar ldquobandidordquo e ldquotraba-

lhadorrdquo tratando todos como marginais em potencial Em livro que mistura realidade

e ficccedilatildeo Ronaldo Alves escritor nascido e criado na Rocinha relata que para a poliacutecia

nas favelas ldquotodos os pobres os negros e os que satildeo encontrados sem carteira profissio-

nal ldquoassinadardquo- prova irrefutaacutevel de homem decente ndash seratildeo eternamente suspeitosrdquo 20

Diante de sua vulnerabilidade acrescida do medo de represaacutelias muitos moradores

aconselham seus filhos a natildeo saiacuterem de casa sem o documento de identidade ou a car-

teira escolar na esperanccedila que estes possam lhes conferir alguma proteccedilatildeo no caso de

serem abordados por policiais evitando assim as possiacuteveis agressotildees e humilhaccedilotildees

Portanto percebemos que a estigmatizaccedilatildeo eacute um problema de muitas faces com efeitos

muacuteltiplos no campo social poliacutetico e cultural Por um lado vimos que o estigma age

diretamente na vida desses jovens produzindo efeitos de reclusatildeo e isolamento tornan-

do-os receosos muitas vezes de ldquosair da favelardquo em busca de outras oportunidades de

trabalho e estilos de vida Por outro lado este processo implica num reconhecimento

social negativo destes jovens Na medida em que satildeo reconhecidos na categoria de sus-

peitos esse reconhecimento os invalida envergonha e humilha (Carreteiro 2001)

Otraacuteficodedrogascomoldquoopccedilatildeordquo

Para os moradores trabalhar para o traacutefico de drogas surge como uma alternativa muito

atraente para os jovens de Acari que por diversos fatores se sentem solitaacuterios e impo-

tentes na tentativa de dirimir esse poder de atraccedilatildeo Entretanto como podemos verifi-

car satildeo bastante distintas as motivaccedilotildees desses jovens assim como as accedilotildees referidas

como preventivas agrave sua entrada para o ldquomovimentordquo

ldquoOs jovens entram pro traacutefico por causa das condiccedilotildees financeiras da famiacuteliardquo

(fala de um educador)

20 Referimo-nos ao livro O bandido e outras histoacuterias da Rocinha publicado pela Editora Sette Letras 1997

150

ldquoFome e desemprego satildeo as causas principais Viver com dignidade evita a entrada do jovem no traacuteficordquo (fala de uma liacuteder comunitaacuteria)

ldquoAs crianccedilas natildeo tecircm uns trocados os outros vatildeo ver ele chegar com uns trocados e vatildeo querer tambeacutemrdquo (fala da avoacute de um jovem)

ldquoA uacutenica condiccedilatildeo de lutar contra o traacutefico de drogas eacute investir nos jovens dentro das comunidadesrdquo (fala de um educador)

ldquoEles entram [para o traacutefico] pra ter famardquo (fala de uma liacuteder comunitaacuteria)

ldquoO trabalho deles [os policiais] hoje aqui eacute ateacute levar esses garotos pro traacuteficordquo

(fala da matildee de duas jovens)

De modo geral as principais motivaccedilotildees dos jovens a participarem das atividades do

traacutefico relatadas foram 1)- a possibilidade de ganho financeiro ldquoalto raacutepido e faacutecilrdquo

reforccedilada pelo desemprego generalizado e as dificuldades de inserccedilatildeo no mercado de

trabalho formal 2)- o sentimento de pertenccedila a um grupo com coacutedigos proacuteprios e 3)-

uma manifestaccedilatildeo de revolta diante do preconceito social e da accedilatildeo violenta e arbitraacuteria

da poliacutecia na favela Mesmo sabendo que como nos disse um morador ldquoquem entra

natildeo sai soacute pra morrerrdquo parece-nos que os riscos reais natildeo satildeo ao menos de forma cons-

ciente muito considerados pelos jovens no momento de sua entrada no traacutefico

Conforme podemos notar o ingresso dos jovens no traacutefico de drogas pode ser analisado

por muacuteltiplos aspectos Destacaremos nesse trabalho um duplo aspecto Em primeiro

lugar a desvalorizaccedilatildeo do trabalho honesto como via de ascensatildeo social pois como

diz Cenoura personagem do romance ldquoCidade de Deusrdquo de Paulo Lins ldquosoacute os otaacuterios

trabalham com a certeza de que nunca vatildeo desfrutar das coisas boas da vidardquo Como aponta

Zaluar (1994) os jovens explicitam uma rejeiccedilatildeo ao tipo de vida dos pais e avoacutes vistos

entatildeo como ldquootaacuteriosrdquo e passam a negar e evitar seguir a mesma trajetoacuteria Em segun-

do lugar o reconhecimento que os traficantes adquirem na comunidade tanto pelo

poder que dispotildeem quanto pela forccedila que impotildeem atraveacutes de execuccedilotildees exemplares

do inimigo Natildeo eacute agrave toa que o traficante chefe do comeacutercio local de drogas eacute chamado

pelos moradores de ldquoo dono da favelardquo Afinal como afirma Alvito (2001 p 219) ldquosua

importacircncia natildeo deriva apenas do poder que ele deteacutem por vezes superestimado mas

daquilo que sintetiza que simbolizardquo

151Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

Expressando um certo fasciacutenio com a figura do traficante os meninos demonstram de

diversas formas o desejo de serem reconhecidos socialmente Pela ausecircncia ou presen-

ccedila enfraquecida de instituiccedilotildees sociais em Acari que lhe confiram o reconhecimento de

sua alteridade este desejo acaba encontrando mais facilmente respaldo nas malhas do

traacutefico de drogas local De acordo com Carreteiro (2002) ldquoignorar os sujeitos significa

ausecircncia de reconhecimento uma vez que eles se sentem deixados de lado abandona-

dos agrave proacutepria sorte Associado agrave reestruturaccedilatildeo econocircmica esse sentimento de desam-

paro favoreceu o estabelecimento de atores alternativos que se fortaleceram nas aacutereas

em que ocorreu debilitaccedilatildeo do poder do Estado Nos territoacuterios esquecidos em seus

direitos de cidadania o traacutefico de drogas () ganhou amplitude significativardquo

No que tange as accedilotildees preventivas agrave inserccedilatildeo desses jovens nas malhas tatildeo proacuteximas do

traacutefico de drogas e agrave sua marginalizaccedilatildeo Zaluar (1996 p 55) traz agrave luz uma importante

reflexatildeo

ldquoA imagem do menino favelado que com uma Ar-15 ou metralhadora UZI na matildeo as quais considera como siacutembolos de sua virilidade e fonte de grande poder local com um boneacute inspirado no movimento negro da Ameacuterica do Norte ouvindo muacutesica funk cheirando cocaiacutena produzida na Colocircmbia ansiando por um tecircnis Nike do uacuteltimo tipo e um carro do ano natildeo pode ser explicada para simplificar a questatildeo pelo niacutevel do salaacuterio miacutenimo ou pelo desemprego crescente no Brasil nem tampouco pela violecircncia costumeira do sertatildeo nordestinordquo

Atraveacutes das temaacuteticas aqui explicitadas concluiacutemos que o ldquoFoacuterum Trabalho e Juventude

em Acarirdquo possibilitou uma ampla discussatildeo entre os diversos segmentos da comuni-

dade local familiares jovens educadores e liacutederes comunitaacuterios Muitos projetos des-

tinados aos jovens desenvolvidos na localidade foram divulgados e debatidos por todos

que estavam presentes multiplicando a rede de informaccedilotildees num local em que a ldquolei

do silecircnciordquo imperava Aleacutem disso pessoas que natildeo se falavam por desavenccedilas poliacuteticas

e histoacutericas dentro da comunidade puderam estabelecer maiores contatos e expor seus

pontos de vista sobre as temaacuteticas que foram relatadas

Outro aspecto relevante que podemos destacar no que tange a relaccedilatildeo entre juventude e

trabalho eacute o lugar que o trabalho ocupava para esses indiviacuteduos Nos segmentos sociais

menos favorecidos o trabalho representa muito mais do que a possibilidade de prover o

sustento familiar Ele confere uma identidade social de pertencimento e reconhecimen-

152

to institucional conforme nos relata um jovem ldquoDeveria ter mais instituiccedilotildees para acolher

os jovens que ficam sem fazer nada e sem ter outros deveresrdquo

Essas questotildees nos possibilitou criar novos dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo junto

aos moradores da localidade Como um prosseguimento deste Foacuterum nos aprofunda-

mos no tema da relaccedilatildeo entre trabalho e juventude em Acari com a criaccedilatildeo de um outro

projeto - intitulado ldquoOficina de Viacutedeordquo - direcionado aos jovens e utilizando o recurso au-

diovisual como disparador de discussotildees Os jovens aleacutem de aprenderem a filmar criar

cenografia e atuar trazendo sempre a realidade e o cotidiano na qual estatildeo inseridos

puderam refletir de modo mais concreto sobre seus projetos e suas histoacuterias de vida

Consideramos que a utilizaccedilatildeo de equipamentos audiovisuais pode ser um importante

instrumento para a criaccedilatildeo de novos espaccedilos de sociabilidade em locais desfavorecidos

socialmente pois conforme relatamos estas pessoas tinham pouco espaccedilo e oportuni-

dade de refletir sobre seus projetos de vida incluindo o projeto profissional

Para concluir o dispositivo do Foacuterum permitiu envolver vaacuterios segmentos da localidade

para debater questotildees relativas a juventude junto com os jovens Ele permitiu confron-

tar ideacuteias mobilizar estereoacutetipos buscar potencializar novas parcerias entre os diversos

atores para pensar imaginar e projetar novos horizontes para os jovens que levassem

em conta os recursos nas dimensotildees institucionais poliacuteticas familiares

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154

155 De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

LuizFelipeCasteloBrancodaSilva

MariaFaacutetimaOlivierSudbrack

Nesta pesquisa21 objetivou-se estudar a expressatildeo da demanda espontacircnea para tratamen-

to em sujeitos abusadores e dependentes de aacutelcool no contexto do acolhimento

de um Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Aacutelcool e outras Drogas em Brasiacutelia A opccedilatildeo

epistemoloacutegica se fundou na Epistemologia Qualitativa de Gonzaacutelez Rey Como re-

ferencial teoacuterico adotou-se a Teoria Sistecircmica complementada pelos pressupostos

da Entrevista Motivacional e o modelo Transteoacuterico dos Estaacutegios da Mudanccedila Uti-

lizou-se a metodologia da pesquisa qualitativa de Gonzaacutelez Rey Como instrumento

21 Texto baseado em Silva L F C B (2009) Do caacutelice que cala agrave escuta que liberta as expressotildees da demanda de abusadores e dependentes de aacutelcool no contexto do acolhimento em um Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Aacutelcool e outras Drogas no Distrito Federal Dissertaccedilatildeo de mestrado em Psicologia Cliacutenica e Cultura Universidade de Brasiacutelia Brasiacutelia Orientadora Maria Fatima Olivier Sudbrack

2

156

utilizado optou-se pela entrevista semi-estruturada aplicada em nove sujeitos do sexo

masculino entre 30 e 51 anos de idade e de distintas classes soacutecio- econocircmicas Como

parte dos resultados verificou-se a demanda pela interrupccedilatildeo do ciclo de violecircncia

intrafamiliar mimetizado na dimensatildeo intergeracional e relacionado com o abuso ou

dependecircncia de bebidas alcooacutelicas dos pais

Introduccedilatildeo

A compreensatildeo da drogadiccedilatildeo enquanto fenocircmeno sustenta-se na consideraccedilatildeo da triacute-

ade na qual se tem um sujeito consumidor uma droga eleita que eacute consumida e um

contexto no qual o uso da mesma eacute realizado (Colle 2001 Kalina amp Kovadloff 1983

Olievestein 1985) No consumo de bebidas alcooacutelicas esta configuraccedilatildeo natildeo se revela

diferente exigindo-se a profunda compreensatildeo de cada um desses elementos em relaccedilatildeo

entre em si Quando se busca ampliar a consideraccedilatildeo do comportamento etilista para

aleacutem da diacuteade sujeito-bebida possibilita-se a contemplaccedilatildeo da dimensatildeo contextual

que pode estar situada no eixo horizontal ou vertical do sistema soacutecio-familiar Como

eixo horizontal pode-se compreender o contexto atual da famiacutelia enquanto o eixo ver-

tical refere-se agrave dimensatildeo histoacuterica das geraccedilotildees familiares (Penso Costa amp Ribeiro

2008)

A coesatildeo familiar eacute em parte mantida pela transmissatildeo de regras de valores e

de expectativas que podem ter diversos niacuteveis de visibilidade e que moldam formas de se

comportar de se situar no mundo e na vida Recebe-se em heranccedila tudo o que as

geraccedilotildees precedentes adquiriram fazendo de cada ser humano natildeo mais do que

um elo numa longa cadeia de transmissotildees que datam do primoacuterdio da humanida-

de (Prieur 1999) Natildeo obstante nesta heranccedila podem ser transmitidos padrotildees disfun-

cionais e nem sempre claramente perceptiacuteveis capazes de imprimir exigecircncias sutis e

dificilmente recusaacuteveis Como destacaram Nichols e Schwartz (1998) carrega-se onde

quer que se esteja a reatividade emocional natildeo resolvida com os pais sob a forma de

vulnerabilidades para mimetizar os mesmos antigos padrotildees em todo relacionamento

novo e intenso que se inicia

Diante de inuacutemeras evidecircncias em torno das influecircncias dos legados familiares de ou-

tras geraccedilotildees na famiacutelia atual constatou-se a fecundidade de estudos que exploraram

157De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

a dimensatildeo multigeracional - diversidade de geraccedilotildees anteriores - e intergeracional

- influecircncias entre geraccedilotildees familiares (Bowen 1991 Bucher-Maluschke 2008 Penso

amp Costa 2008) Destarte verificou-se coexistir um mimetismo do problema em geraccedilotildees

distintas o que ampliou o olhar em direccedilatildeo agrave verticalidade da presenccedila dos problemas

associados ao consumo de aacutelcool verificando-se a presenccedila de padrotildees transmitidos trans-

geracionalmente (Krestan amp Bepko 1995 Silva 2009 Steinglass 1997 Trindade 2007)

Entende-se que uma heranccedila pode se tornar uma escravidatildeo quando os padrotildees exigem

sacrifiacutecios capazes de comprometer a sauacutede mental dos herdeiros mesmo que estes

natildeo tenham consciecircncia disso No complexo movimento dialeacutetico de pertencimento e

separaccedilatildeo ampliado para o processo de transmissatildeo multigeracional estabelece-se a exis-

tecircncia de padrotildees herdados de geraccedilotildees anteriores para as seguintes que transferem

expectativas por meio de delegaccedilotildees e exigem lealdades no cumprimento das mesmas

A assimilaccedilatildeo das delegaccedilotildees desta heranccedila e lealdade na continuidade das mesmas

oferece elementos para a constituiccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade individual e cole-

tiva dos membros familiares assim como podem gerar aprisionamentos em torno

de padrotildees que solapam a possibilidade de renovaccedilatildeo do funcionamento familiar Deste

modo a demanda percebida em alguns colaboradores da pesquisa revela-se no sentido

de buscar romper com padrotildees insalubres e promover possibilidades de novos niacuteveis

de autonomia

Meacutetodo

Este estudo apoiou-se na Epistemologia Qualitativa defendida por Gonzaacutelez Rey (2005)

que se funda em torno de trecircs princiacutepios 1) o conhecimento eacute uma produccedilatildeo

construtivo- interpretativa o que significa afirmar que o conhecimento natildeo traduz

a somatoacuteria de fatos definidos por constataccedilotildees imediatas do momento empiacuterico

A interpretaccedilatildeo se caracteriza enquanto um processo no qual o pesquisador integra

reconstroacutei e apresenta em construccedilotildees interpretativas indicadores obtidos no decor-

rer da pesquisa que natildeo possuiriam sentido se fossem tomados isoladamente como

constataccedilotildees empiacutericas 2) o caraacuteter interativo do processo de produccedilatildeo do conhe-

cimento que aponta que as relaccedilotildees pesquisador-pesquisado satildeo uma condiccedilatildeo para o

desenvolvimento das pesquisas nas ciecircncias humanas A dimensatildeo interativa eacute essencial

no processo de produccedilatildeo de conhecimentos revelando-se as relaccedilotildees entre os envolvidos

no processo de construccedilatildeo da informaccedilatildeo o principal cenaacuterio da pesquisa e 3) a signifi-

158

caccedilatildeo da singularidade como niacutevel legiacutetimo da produccedilatildeo do conhecimento Este

aspecto ressalta um resgate da singularidade enquanto fonte legiacutetima de conhecimen-

to cientiacutefico Dessa maneira o conhecimento cientiacutefico diante da perspectiva qualitativa

natildeo se destaca pela quantidade de sujeitos a serem estudados mas pela qualidade de

sua expressatildeo

A pesquisa aconteceu em um Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Aacutelcool e outras Drogas

do Distrito Federal no contexto do acolhimento deste serviccedilo Utilizou-se uma en-

trevista semi- estruturada com nove homens de idades entre 30 e 51 anos que buscaram

o serviccedilo volitivamente em decorrecircncia do alcoolismo As entrevistas foram gravadas e

degravadas mediante autorizaccedilatildeo por escrito dos participantes A discussatildeo dos dados

baseou-se na anaacutelise de discurso advogada por Gonzaacutelez Rey (2005) resultando portan-

to na construccedilatildeo de indicadores e zonas de sentido

Os participantes da pesquisa foram selecionados entre os usuaacuterios que chegaram ao

serviccedilo pela primeira vez a partir de demanda espontacircnea com histoacuterico de abuso e

dependecircncia de bebidas alcooacutelicas nos uacuteltimos 2 anos natildeo ter associado ao problema

com o aacutelcool consumo de drogas iliacutecitas nos uacuteltimos 10 anos e ter assinado o termo de

consentimento livre e esclarecido

Discussatildeodosresultados

Da anaacutelise dos achados percebeu-se existir o pedido pela interrupccedilatildeo de ciclos de

violecircncia intrafamiliar que se reproduziram em distintas geraccedilotildees familiares provocan-

do lembranccedilas dolorosas como a brutalidade do paipadrasto ser receptaacuteculo da violecircncia

materna e tornar-se reprodutor da violecircncia sofrida poreacutem sem desejaacute-lo As discussotildees

das informaccedilotildees obtidas nesta pesquisa estatildeo dispostas na sequecircncia

1) ldquoO que me machuca mais eacute a lembranccedilardquo trajetoacuteria de vida marcada pela violecircncia intrafamiliar pela negligecircncia e pelo desamparo

Nas histoacuterias reconstituiacutedas a partir das narrativas dos participantes da pesquisa perce-

beu- se a presenccedila do consumo de bebidas alcooacutelicas (BA) no subsistema parental

Notou-se a existecircncia de pais e matildees habituados com padrotildees de consumo suficientes

159De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

para a produccedilatildeo no miacutenimo de intoxicaccedilatildeo alcooacutelica O padratildeo abusivo ou dependente

do consumo de BA feita por estes pais natildeo apenas foi apontado como fator influencia-

dor do iniacutecio do consumo dos filhos Tambeacutem revelou indiacutecios de repercussotildees negativas

no acircmbito familiar no qual os participantes da pesquisa foram criados uma vez que os

pais alcoolistas natildeo puderam cumprir com seus papeacuteis para com os filhos

Para Minuchin e Fishman (1985) a famiacutelia representa o contexto natural para crescer

e para receber auxiacutelio Caracteriza-se tambeacutem pelo locus no qual os indiviacuteduos receberatildeo

apoio para a individuaccedilatildeo sem perda do sentimento de pertencimento Na famiacutelia os

filhos tecircm o direito de serem cuidados protegidos e socializados internalizando regras e

valores assim como estilos de enfrentamento de conflitos e de negociaccedilatildeo dos mesmos

As famiacutelias assumem ou renunciam suas funccedilotildees de acordo com as necessidades cultu-

ras ou conforme a capacidade psiacutequica e maturidade de seus membros

Para Krestan e Bepko (1995) o nascimento de um primeiro filho pode despertar antigos

conflitos conjugais ou mais antigos do que o advento do matrimocircnio e ainda natildeo resolvi-

dos Essa sensaccedilatildeo de inabilitaccedilatildeo para lidar com as responsabilidades pela criaccedilatildeo

dos filhos pode desencadear um quadro de futuro alcoolismo como forma de lidar com

a erupccedilatildeo dessas questotildees conflituosas Considerando-se a presenccedila de pais alcoolistas

as funccedilotildees dos mesmos para com os filhos ficam prejudicadas De acordo com Gomes

Deslandes e Veiga (2002) os problemas associados ao consumo de BA podem pro-

vocar comportamentos agressivos negligecircncia e abandono dos cuidados com os proacute-

prios filhos Tambeacutem representa fator de risco para maus-tratos contra crianccedilas (Ramos amp

Oliveira 2008) Diversas evidecircncias empiacutericas apontam para o fato que o consumo de

BA no acircmbito familiar potencializa a ocorrecircncia de conflitos interpessoais desen-

tendimentos familiares e afetivos separaccedilatildeo de casais abuso fiacutesico e sexual homiciacutedio

suiciacutedio e envolvimento em manifestaccedilotildees de violecircncia no acircmbito intrafamiliar (Peluso

amp Blay 2008)

Das narrativas apresentadas pelos participantes destacou-se a trajetoacuteria de vida na qual

a violecircncia se revelou recorrente Natildeo raramente a cultura do beber associada agrave violecircncia

vitimou matildees irmatildeos e os proacuteprios sujeitos Embora a ecircnfase na modalidade de violecircncia

fiacutesica tenha sido destaque na fala dos colaboradores natildeo significa afirmar que outros tipos

de violecircncia natildeo tenham ocorrido ldquo() problema mesmo assim familiar neacute () soacute mes-

160

mo que meu pai me batia em mim e na minha matildee eacute soacute isso ai (JEOVAacute) na metodologia eacute

preciso dizer se os nomes satildeo fictiacutecios ou natildeo

De acordo com Guerra (2001) reconhecem-se quatro tipos de violecircncia domeacutestica

violecircncia sexual violecircncia fiacutesica violecircncia psicoloacutegica e negligecircncia A primeira caracteri-

zar-se- ia como toda accedilatildeo ou jogo sexual relaccedilatildeo hetero ou homossexual entre um ou mais

adultos e uma crianccedila ou adolescente tendo por objetivo estimular sexualmente esta

crianccedila ou adolescente ou utilizaacute-lo para lograr estimulaccedilatildeo sexual sobre sua pessoa

ou de terceiro Embora esta manifestaccedilatildeo de violecircncia domeacutestica natildeo tenha sido ver-

balizada deve-se considerar que por sua natureza normalmente assume a dimensatildeo

de segredo familiar expressando-se de forma camuflada (Ramos amp Oliveira 2008)

Adicionalmente existem correlaccedilotildees significativas entre o histoacuterico de abuso sexual e o

consumo posterior de drogas e aacutelcool (Bastos Bertoni amp Hacker 2005) assim como o

consumo de BA atua como fator de risco para abuso sexual (Chavez Ayala et al 2009)

A violecircncia fiacutesica de acordo com Guerra (2001) revela-se enquanto conceito controver-

so Existem segmentos que afirmam tratar-se de atos que resultam em danos fiacutesicos agraves

viacutetimas Outras correntes a definem como todo ato capaz de causar no miacutenimo dor

fiacutesica nas viacutetimas Sem embargos esta praacutetica constitui-se como uma das principais

causas de mortalidade de crianccedilas e adolescentes em todo mundo (Gomes et al 2002)

Em situaccedilotildees nas quais a praacutetica de violecircncia fiacutesica natildeo resulta em oacutebito ela produz

marcas no corpo que se tornam registros eternizados na pele dos vitimados que po-

deratildeo ativar lembranccedilas e o sofrimento vivenciado configurando-se em uma contiacutenua

tortura psiacutequica que poderaacute solapar as potencialidades de realizaccedilatildeo dessas viacutetimas na

vida Essas consequumlecircncias danosas se amplificam quando existe a presenccedila da violecircncia

psicoloacutegica e a negligecircncia associada agrave anterior Para Ballone e Ortolani (2002) e Guerra

(2001) a violecircncia psicoloacutegica se caracterizaria pelos atos de depreciaccedilatildeo de hu-

milhaccedilatildeo de discriminaccedilatildeo de chantagens e xingamentos cujos efeitos podem causar

danos emocionais para o resto da vida Enquanto a negligecircncia se define como atos de

omissatildeo dos pais agraves necessidades dos filhos quanto agrave alimentaccedilatildeo condiccedilotildees de vida

educaccedilatildeo carinho (Lippi 1985) Essas desassistecircncias satildeo capazes de provocar danos du-

radouros no psiquismo das viacutetimas

Em uma das narrativas apresentou-se o histoacuterico de um dos participantes que quase

teve seu braccedilo decepado pelo padrasto quando crianccedila Olhar para a marca no braccedilo

161De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

feita por um padrasto alcoolizado ativava a memoacuteria de cenas doloridas e recalcitrantes

em desaparecer Esta reiteradamente comparecia no relato da histoacuteria da marca no

braccedilo como se a reproduccedilatildeo do contar e recontar o ocorrido pudesse estar promovendo

alguma cicatrizaccedilatildeo em feridas natildeo mais no braccedilo mas enraizadas na interioridade da-

quele ser humano ldquoEsse corte aqui eu devia ter uns 10 ou 11 anos Viu Esse corte aqui

degolou meu braccedilo assim e eu dei sorte que num cortou num num num decepou o

nervo () o tamanho disso maior que os peacutes () E aiacute eu o que me machuca mais eacute a

lembranccedilardquo (SOacuteCRATES)

2) Receptaacuteculo da violecircncia materna

Em outras situaccedilotildees os participantes revelaram situaccedilotildees na infacircncia nas quais servi-

ram como receptaacuteculo no qual as matildees descontentes com a vida ou com os maridos

violentos e alcoolistas descarregavam seu sofrimento em forma de violecircncia fiacutesica ou

verbal Eles assumiam esse papel de aliviar a tensatildeo dessas matildees aceitando a violecircncia

depositada neles ldquo() eu sofri muito apanhei muito ela me bateu muito mas eu natildeo

culpo ela de nada ()batia batia de fio eleacutetrico batia de cinto ()Eu acho que ela

me batia mais sem necessidade Me bateu muitas das vezes sem precisatildeo Sem

precisatildeo mas eu tambeacutem natildeo culpo ela natildeo porque porque tenho que pensar o

seguinte minha matildee era soacute cheio de fiacute tinha um marido becircbado desgramado

dentro de casa Que soacute vivia judiando dela que soacute dava pra pinga que soacute dava pra

Caracu que soacute dava pra jogo entendeu Eacute E ela e ela era bem pobrezinha

do Maranhatildeo gente pobre vocecirc sabe como eacute A pessoa se esquentura (SOacuteCRATES)

Ao inveacutes dos pais cumprirem as tarefas de proteccedilatildeo e cuidados dos filhos estes assumiam

o lugar daqueles que passavam a servir como amortecedores da tensatildeo intrafamiliar Esta

inversatildeo passa a ser a regra Os filhos ficam sobrecarregados ao ponto de tornarem-se

impedidos de ser crianccedila Tornam-se crianccedilas com responsabilidades adultas (Krestan amp

Bepko 1995) cuidando de pais pueris e imaturos que possivelmente natildeo receberam

os devidos cuidados quando crianccedilas fenocircmeno este denominado parentalizaccedilatildeo ou

papel de filho parental (Boszormenyi-Nagy amp Spark 2008 Penso 2003) A possibili-

dade de ruptura da famiacutelia (separaccedilatildeo dos pais em virtude dos problemas associados ao

consumo de BA e agrave violecircncia por exemplo) mobiliza algo ou algueacutem que promova um

adiamento dessa desconstituiccedilatildeo familiar Assim um dos filhos eacute eleito como aquele

que assumiraacute essa tarefa Esta situaccedilatildeo evoca o conceito de triangulaccedilatildeo de Bowen (1976)

162

que se refere a um sistema de interaccedilatildeo entre trecircs pessoas Segundo ele quando um par

apresenta um niacutevel de ansiedade proacuteximo ao insuportaacutevel um dos membros da diacuteade

elege um terceiro como reforccedilo

A diacuteade original passa a se constituir como triacuteade a qual natildeo raramente deixa um dos

componentes originais do par do lado de fora da nova configuraccedilatildeo Natildeo obstante

Guerin Fay Burden e Kauto (1987) destacam que a formaccedilatildeo de triacircngulos pode ocor-

rer natildeo apenas da maneira anteriormente destacada Eles apontam adicionalmente

a possibilidade de uma terceira pessoa sensibilizada com a ansiedade de um dos

membros da diacuteade ou com o conflito neste sistema mover-se em direccedilatildeo aos envolvi-

dos para oferecer-se como apaziguador ou aliado de uma das partes Independentemente

da maneira como as relaccedilotildees triangulares se formam todas tecircm o objetivo de reduzir ou

aplacar a ansiedade inicial

No entanto embora haja uma reduccedilatildeo nos sentimentos desestabilizadores do sistema

o conflito permanece congelado sem atingir uma resoluccedilatildeo efetiva (Nichols Schwartz

1998) Nos casos onde um dos filhos eacute envolvido na triangulaccedilatildeo o processo de diferen-

ciaccedilatildeo deste membro fica prejudicado Uma vez fusionado com a matildee por exemplo um

filho que procure se emancipar de sua famiacutelia sem deixar de pertencer agrave mesma

vecirc-se em um conflito de lealdade A desvinculaccedilatildeo do triacircngulo e a busca por au-

tonomia significaria trair os pactos acordados sutilmente no seio familiar Desse

modo existe o sacrifiacutecio da proacutepria vida em nome das expectativas depositadas ou

ldquovolitivamenterdquo assumidas por este membro familiar para que haja minimizaccedilatildeo da

ansiedade no sistema familiar e se mantenha a coesatildeo deste

3) Tornar-se reprodutor da violecircncia sofrida mas sem desejaacute-lo

Quando a triangulaccedilatildeo constituiacuteda natildeo se revela com capacidade suficiente para lidar com

a ansiedade presente no intuito de abrangecirc-la ou dissipaacute-la haacute o aparecimento de

formaccedilotildees triangulares adicionais denominados como triacircngulos imbricados (Bowen

1976) ou triacircngulos justapostos (Andres 1971 citado por Nichols amp Schwartz 1998)

De acordo com esses autores a inserccedilatildeo contiacutenua de novas pessoas na triangulaccedilatildeo

inicial produz muacuteltiplas triangulaccedilotildees que formam uma tessitura caoacutetica e caracte-

rizada por sobreposiccedilotildees de triacircngulos de difiacutecil observaccedilatildeo A meta deste muacuteltiplo

envolvimento se inscreveria com o mesmo objetivo de apartar a ansiedade familiar A

163De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

imaturidade dos filhos em terem que assumir o papel de continecircncia aos anseios dos

pais imaturos associada agrave insustentabilidade de ser receptaacuteculo amortecedor da

violecircncia intrafamiliar e o lidar com as questotildees edipianas produzidas pela intensa fusatildeo

entre matildee e filho resultaria na necessidade de inclusatildeo de um novo elemento na triangu-

laccedilatildeo inicial

Nestes termos pode-se dizer que a nova inserccedilatildeo natildeo se restringiria necessariamente a

uma nova pessoa podendo se direcionar para outros elementos Desta maneira com-

preendeu-se do empiacuterico que o consumo de BA disponibilizou-se como elemento de uma

nova triangulaccedilatildeo O ato de beber excessivamente compreendido enquanto sintoma fa-

miliar instalar-se-ia em situaccedilotildees nas quais a ansiedade familiar se encontrasse elevada

excedendo-se a capacidade do sistema familiar de ligaacute-lo ou neutralizaacute-lo (Bowen 1974)

O esquecimento provocado pela BA seria uma forma apresentada de lidar com o in-

suportaacutevel da relaccedilatildeo familiar ldquoQuando quando eu bebo eu natildeo lembro de nada A

minha bebida eacute uma bebida que eu esqueccedilo de tudordquo (TESEU) ldquoAh a gente a

gente esquece das coisas neacute A gente esquece dos problemas se tu tiver algum

problema tu esquece vocecirc se sente mais animado pra fazer alguma coisa eacute diferente

demaisrdquo (AKHENATOacuteN)

Durante anos o beber serviu ou serve como um regulador auxiliar ateacute que os filhos se tor-

nam como os pais atores reprodutores de violecircncia natildeo tendo mais no beber um aliado

mas um gatilho para a repeticcedilatildeo do ciclo de violecircncia vivenciado durante anos Este

padratildeo se reproduz na proacutepria famiacutelia e aquele que era viacutetima se transparece em al-

goz e fiel cumpridor dos padrotildees vividos e condenados no passado A teoria sistecircmica

contribuiu para o pensamento humano no sentido de direcionar o foco para aleacutem das

personalidades individuais redescobrindo a interconectividade fundamental da condi-

ccedilatildeo humana Neste sentindo algumas perspectivas contribuiacuteram para a teoria e a praacute-

tica do trabalho com os sistemas soacutecio-familiares Conhecidas como terapias familiares

intergeracionais (Elkaiumlm 1998) as propostas contidas nesses modelos compreensivos

e interventivos pressupotildeem que as famiacutelias possuem uma histoacuteria que extrapola a fa-

miacutelia nuclear e envolve a famiacutelia extensa (Penso Costa amp Ribeiro 2008) As questotildees

que aparecem em uma geraccedilatildeo podem passar para uma geraccedilatildeo seguinte de outra forma

mas mantendo-se um padratildeo das famiacutelias repetirem a si mesmas (Carter amp McGoldrick

2007) Estas heranccedilas recebidas contemplam tanto aspectos positivos quanto negativos

(Boszormenyi-Nagy 1986) O patrimocircnio herdado em sua vertente positiva serviria para

164

assegurar a sobrevivecircncia transgeracional assim como facilitar a sobrevivecircncia huma-

na Em sua dimensatildeo negativa caracterizar-se-ia pela heranccedila de padrotildees disfuncionais

(Bucher-Maluschke 2008) Dessa maneira o patrimocircnio dos problemas associados ao

consumo de aacutelcool e da violecircncia seriam exemplos de padrotildees transferiacuteveis ao longo

das geraccedilotildees

Na busca de compreender este fenocircmeno de mimetismo de padrotildees intergeracio-

nais Bowen (1974) desenvolveu o conceito de processo de transmissatildeo multigeracional

Segundo ele a famiacutelia eacute uma unidade emocional portanto um sistema cujo funciona-

mento afeta e eacute afetado por todos seus membros O padratildeo emocional da famiacutelia eacute trans-

mitido atraveacutes de muacuteltiplas geraccedilotildees onde todos os membros satildeo agentes e reagentes

dos problemas que surgem Para este autor todas as famiacutelias possuem dois processos

basilares que se influenciam mutuamente de maneira dialeacutetica Uma das forccedilas se

direciona para a uniatildeo das personalidades individuais no seio familiar enquanto a outra

visa o logro da individualidade e separaccedilatildeo da famiacutelia O desequiliacutebrio pendente para a

uniatildeo denominou ldquofusatildeordquo ldquoaglutinaccedilatildeordquo ou ldquoindiferenciaccedilatildeo do selfrdquo enquanto a capacida-

de de funcionamento autocircnomo estaria relacionada agrave maior diferenciaccedilatildeo do self

Quando essa indiferenciaccedilatildeo ocorre nas famiacutelias de origem - conceito de massa egoacuteico-

familiar indiferenciada - as relaccedilotildees se caracterizam pelo fusionamento emocional

destacada dificuldade de diferenciaccedilatildeo dos membros caos cognitivo coletivo e exces-

sivo apego (Bucher Maluschke 2008) Nestes termos os pais transmitiriam aos

filhos o equivalente ao niacutevel de maturidade ou imaturidade que alcanccedilaram por

meio de um processo denominado de projeccedilatildeo familiar sendo que o filho que eacute o

alvo do processo de projeccedilatildeo torna-se mais ligado aos pais e menos diferenciado em

termos de self enquanto os filhos menos envolvidos tenderiam a lograr niacuteveis mais

altos de diferenciaccedilatildeo (Bowen 1974)

De acordo com Boszormenyi-Nagy e Spark (2008) a manutenccedilatildeo dessas heranccedilas

recebidas por diversas geraccedilotildees ocorre por meio de lealdades invisiacuteveis compreendidas

como a existecircncia de um conjunto de expectativas familiares em torno da adesatildeo a certas

regras e padrotildees e orquestradas em torno de distribuiccedilatildeo de compromissos entre

todos os membros Esta distribuiccedilatildeo tambeacutem conhecida por delegaccedilatildeo2 implica na

execuccedilatildeo de tarefas missotildees encomendadas de forma inconsciente que estatildeo vincula-

das aos anseios do grupo familiar Seu cumprimento fiel defere prova de solidariedade e

165De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

compromisso agraves expectativas familiares aleacutem de conferir status de pertencimento agravequele

que se revela leal O seu contraacuterio se concentra naqueles que transgridem ao que foi dele-

gado podendo ocasionar a expulsatildeo do membro traidor (Simon Stierlin amp Wynne 1988)

Nestes termos o ciclo de violecircncia descrito pode ser pensado enquanto produto de redes

complexas de delegaccedilotildees lealdades invisiacuteveis projeccedilotildees familiares que exigem uma ma-

nutenccedilatildeo da tradiccedilatildeo familiar em seu eixo vertical (relativo agraves muacuteltiplas geraccedilotildees) Natildeo

obstante no niacutevel horizontal esta continuidade do ciclo de violecircncia pode encontrar ex-

pectativas natildeo condizentes com aquelas transmitidas transgeracionalmente Esta situa-

ccedilatildeo pode gerar conflitos de lealdade ocasionando percepccedilotildees estranhas sobre si mesmo

Em um dos participantes esta situaccedilatildeo revelou- se exemplar quando o mesmo destacou

existir uma espeacutecie de duplo dentro de si Um almeja mudar a relaccedilatildeo com o beber

e aquilo que o padratildeo abusivo ou dependente acarreta enquanto o outro parece servir

aos propoacutesitos de outra entidade ldquoE eu sei laacute a gente eu faccedilo forccedila aiacute pra natildeo ver

se natildeo daacute vontade gente parece que tem duas pessoas mas tem hora que daacute um

trem uma coisa esquisita dentro da gente a parece eacute duas duas pessoas dentro

de mim Uma hora eu falo que natildeo vou beber () Aiacute quando daacute quando eu penso que

natildeo jaacute taacute com um cigarro no dedo uma bebida na boca E isso que eacute chato demais ()rdquo

(AKHENATOacuteN)

Esta manifestaccedilatildeo de uma espeacutecie de duplo parece apontar para aspectos que falam

tanto de uma atualidade sofrida descrita pelos sujeitos mas tambeacutem parece enunciar

uma verdade encoberta Este duplo ldquoesquisitordquo dentro dessas pessoas adotando-se a

cosmovisatildeo sistecircmica aponta para realidades aleacutem do sujeito singular Esta realidade

traduz-se em uma constituiccedilatildeo interna que se manteacutem fiel aos padrotildees herdados na

contiacutenua verticalidade transgeracional que rivaliza com outra vertente que almeja a

possibilidade da mudanccedila A consideraccedilatildeo desta perspectiva amplia o conceito de

ambivalecircncia destacado por Miller e Rollnick (2001) descrito pelos mesmos enquanto

conflito de vontades entre a mudanccedila e a manutenccedilatildeo do comportamento disfuncional

No alcoolismo a pessoa deseja mudar sua relaccedilatildeo com o aacutelcool mas concomitan-

temente revela existirem fatores mantedores do comportamento ndash que geramcul-

minam (n)a ambivalecircncia Nestes termos entende-se que este fenocircmeno pode estar

vinculado a um conflito de lealdades visiacuteveis e portanto verbalizaacuteveis quanto invisiacuteveis

e perceptiacuteveis de forma indireta o que exige uma melhor consideraccedilatildeo deste fenocircmeno

no contexto terapecircutico

166

Diante do exposto o pedido em torno da questatildeo do ciclo de violecircncias se associa com a

preocupaccedilatildeo em torno da continuidade dos possiacuteveis prejuiacutezos para as novas geraccedilotildees

Existe o conhecimento sobre as perturbaccedilotildees advindas da experiecircncia trazida pelo ciclo

violento vivido com o padrasto que se encontra atuante no presente podendo afetar

negativamente as novas geraccedilotildees O pedido de ajuda parece se direcionar para o logro

de um barramento ou ruptura do ciclo violento com a finalidade de garantir uma vida

diferente para os filhos ldquoEle ganhava bem Ele fazia soacute feirinha e levava pra casa O

resto ele perdia tudo na sinuca e na bebida neacute () aquela onda de violecircncia dentro

de casa Eu acho que isso ajuda muito na destruiccedilatildeo da gente e dos filho da gente

sabia Que eacute o meu medo laacute dentro de casa Eacute por isso que eu procurei aqui ()

Eacute Porque eu fui criado com um padrasto que natildeo me dava nada soacute violecircncia

dentro de casa () Poxa eu eu num lugar que natildeo sou (referindo-se ao seu pai3

alcoolista e violento) padrasto sou pai e ficar dando lugar pra futuramente meus

filho ficar com o juiacutezo perturbado tambeacutemrdquo (SOacuteCRATES)

A busca por ruptura com aspectos de uma heranccedila transgeracional escravizante

e disfuncionalizante natildeo objetiva contudo o despertencimento o deixar de ser herdeiro

Implica na possibilidade de promoccedilatildeo de mudanccedilas produtoras de novas possibilidades

relacionais entre as geraccedilotildees e seus membros

Consideraccedilotildeesfinais

A busca volitiva por serviccedilos de CAPSad revelam demandas que natildeo se restringem agrave

simples mudanccedila da relaccedilatildeo do sujeito com a bebida alcooacutelica Nesses pedidos subjazem

diversos niacuteveis de solicitaccedilotildees que nem sempre satildeo compreendidas pelos profissionais de

sauacutede mental que atuam nesses serviccedilos A consideraccedilatildeo da dimensatildeo transgeracio-

nal oportuniza identificar a miriacuteade de disposiccedilotildees disfuncionais na forma como as

famiacutelias em que se tem um ou mais membros alcoolistas Possibilita perceber que

podem coexistir agrave dificuldade de mudanccedila do comportamento de beber abusivo ou

dependente a transmissatildeo e manutenccedilatildeo de padrotildees comportamentais que enges-

sam a possibilidade de novas formas de funcionamento familiar

Nestes termos entende-se que o processo de acolhimento deve almejar uma escuta que

natildeo se restrinja agrave descriccedilatildeo do sintoma do beber ou que tenha como uacutenico foco o bene-

167De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

ficiaacuterio dos serviccedilos dos CAPS ad o sujeito singular Este deve ser compreendido como

um ser em relaccedilatildeo natildeo podendo seu sistema soacutecio-familiar ser excluiacutedo do processo de

compreensatildeo de suas questotildees e demandas no contexto do acolhimento A exemplo

disso se a violecircncia intrafamiliar pode ser compreendida enquanto resultante do be-

ber problemaacutetico o beber abusivo ou dependente pode servir como alternativa de para

lidar com feridas provocadas por histoacutericos de violecircncia posteriores e cuja dinacircmica eacute

transmitida para outras geraccedilotildees como uacutenica forma aprendida de lidar com situa-

ccedilotildees problema

Entende-se das falas dos participantes da pesquisa que existe o pedido para a interrup-

ccedilatildeo da atividade de padrotildees escravizantes transmitidos e mantidos atraveacutes das geraccedilotildees

familiares e pela construccedilatildeo de heranccedilas benfazejas para as proacuteximas geraccedilotildees na

linhagem familiar A consideraccedilatildeo desses aspectos poderaacute promover uma escuta

mais integralizadora e capaz de permitir que novas formas de vinculaccedilatildeo e relacio-

namento inter e intrafamiliar se dinamizem natildeo tendo no alcoolismo e nos padrotildees

violentos respostas de lidar com os desafios da vida

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171 Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

AdrianaBarbosaSoacutecrates

MariaFaacutetimaOlivierSudbrack

Introduccedilatildeo

A definiccedilatildeo do local de realizaccedilatildeo da pesquisa assunto do presente artigo ocorreu em

funccedilatildeo de uma parceria entre o Programa de Estudos e Atenccedilatildeo agraves Dependecircncias Quiacute-

micas - PRODEQUI do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura do

Departamento de Psicologia Cliacutenica da Universidade de Brasiacutelia e a Promotoria Espe-

cial Criminal do Ministeacuterio Puacuteblico do Distrito Federal e Territoacuterios do Juizado Especial

172

Criminal 22 E teve como propoacutesito a implementaccedilatildeo de um Projeto que previa a exe-

cuccedilatildeo de Grupos de Intervenccedilatildeo Psicossocial para usuaacuterios de drogas enquadrados no

Artigo 28 Lei 1134306 situados nos crimes de menor potencial ofensivo conforme a

Lei 909995 dos Juizados Especiais Criminais

Tratou-se portanto da execuccedilatildeo de um projeto piloto intitulado Intervenccedilatildeo Psicosso-

cial para jurisdicionados do MPDFT em cumprimento de medida de pena alternativa

pelo uso de drogas que previu em suas diretrizes accedilotildees mais eficazes de conscientiza-

ccedilatildeo acerca dos prejuiacutezos pessoais e sociais do uso de drogas por meio de medidas de

educaccedilatildeo e informaccedilatildeo operacionalizadas em dois momentos distintos Acolhimento

Psicossocial ndash AP e Grupos de Intervenccedilatildeo Psicossocial - GIP

Este artigo aborda o estudo no momento do Acolhimento Psicossocial do referido Pro-

jeto das experiecircncias subjetivas reveladas no envolvimento com a Justiccedila por uso de

drogas levando em consideraccedilatildeo o sujeito deste envolvimento e suas experiecircncias sub-

jetivas aqui consideradas como pessoal singular e com o social pelos caminhos possiacute-

veis E teve como objetivo verificar a hipoacutetese de que o envolvimento com a Justiccedila pode

ser um caminho capaz de propiciar experiecircncias subjetivas e o Acolhimento Psicosso-

cial pode ser uma possibilidade para esse caminho no contexto da Justiccedila

As informaccedilotildees relatadas neste estudo se legitimam pela capacidade dialoacutegica intriacutense-

ca neste contexto mesmo quando se verifica pouco ou nenhum espaccedilo no acircmbito da

Justiccedila para os envolvidos em processos serem ouvidos em seus discursos e razotildees E

certamente este foi um dos aspectos motivadores para a realizaccedilatildeo deste estudo jaacute que

a presenccedila da pesquisadora ocorreu em diferentes momentos na execuccedilatildeo do Projeto

designado como campo de pesquisa favorecendo inevitavelmente a existecircncia de um

espaccedilo de escuta e observaccedilatildeo

22 Texto baseado em Socrates A S (2008) Do sujeito agrave lei da lei ao sujeito- o revelar das experiecircncias subjetivas de envolvimento com a justiccedila por uso de drogas no contexto do acolhimento psicossocial Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Psicologia Cliacutenica e CullturaUniversidade de Bras[ilia Orientadora Mara Fatima Olivier Sudbrcak

173Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

A definiccedilatildeo dos procedimentos para apreensatildeo e elaboraccedilatildeo das informaccedilotildees nesta

pesquisa representando os procedimentos de coleta e anaacutelise dos dados em pesqui-

sa qualitativa viabilizou a revelaccedilatildeo de experiecircncias dos sujeitos usuaacuterios de drogas

considerados como colaboradores deste estudo que obteve um espaccedilo de fala e de voz

para relatarem e significarem suas experiecircncias Nesse intuito elegeu-se como fonte

primaacuteria das informaccedilotildees as entrevistas semi-estruturadas realizadas no decorrer do

Acolhimento Psicossocial

Neste estudo o Serviccedilo Psicossocial no contexto da Justiccedila foi considerado como um

lugar de possibilidades para intervenccedilotildees que convocam o sujeito para aleacutem de seus

atos capturados pela Justiccedila As questotildees de investigaccedilatildeo perpassaram o propoacutesito de

conhecer as experiecircncias de envolvimento com a Justiccedila com vistas a verificar como os

usuaacuterios de drogas vivenciavam a experiecircncia de apreensatildeo pela Justiccedila o que a situaccedilatildeo

de apreensatildeo judicial mobilizou enquanto reflexatildeo sobre a relaccedilatildeo com as drogas como

os usuaacuterios de drogas significavam e re-significavam suas experiecircncias judiciais no

mundo das drogas quais possibilidades a apreensatildeo judicial permitiu que vislumbras-

sem e quais desdobramentos ela representou em suas vidas como entendiam a nova

lei sobre drogas quais suas reflexotildees criacuteticas e suas experiecircncias em torno das situaccedilotildees

desta e de outras apreensotildees pela poliacutecia como se percebiam simbolicamente nesta

intervenccedilatildeo psicossocial como avaliavam sua relaccedilatildeo consigo mesmo com as drogas

e suas relaccedilotildees com o social famiacutelia trabalho apoacutes este e envolvimento com a Justiccedila

Neste sentido o AP representou um lugar de convocaccedilatildeo do sujeito e o ponto de partida

deste estudo que teve como objetivo geral fornecer subsiacutedios teoacutericos e metodoloacutegicos

aos profissionais psicossociais do acircmbito juriacutedico em razatildeo da promulgaccedilatildeo da Lei nordm 1134306 Os objetivos especiacuteficos consistiram na investigaccedilatildeo psicossocial e psicanaliacute-

tica das experiecircncias subjetivas de envolvimento com a Justiccedila por uso de drogas Neste

cenaacuterio subjetivo os colaboradores foram descritos por fotografias simboacutelicas a partir

da forma como se simbolizaram nesta experiecircncia

Este estudo retratou o lugar ofertado pelo Acolhimento Psicossocial aos colaboradores

que em suas vozes relatam suas experiecircncias subjetivas a partir do envolvimento com

a Justiccedila por uso de drogas Percebemos a riqueza das possibilidades concentradas na

oferta deste lugar que foram percebidas nos indicadores de sentido que permitiram um

174

tracircnsito psiacutequico e emocional para produccedilatildeo de quatro zonas de sentidos como alterna-

tiva para a construccedilatildeo de inteligibilidade e de conhecimento cientiacutefico

Trata-se portanto de acordo com Fernando Gonzalez Rey (2005) do princiacutepio inter-

pretativo-construtivo como possibilitador dos processos de construccedilatildeo da informaccedilatildeo

a partir da expressatildeo subjetiva muito mais metafoacuterica do que descritiva e passiacutevel

de ser construiacuteda somente no estudo singular dos diferentes sujeitos ou nos espaccedilos

concretos da subjetividade social a serem estudados Assim o tracircnsito das direccedilotildees nos

movimentos e nos caminhos que foram trilhados neste estudo sugere o magniacutefico do

ser humano ou seja sua singularidade

Este artigo situa-se ainda na interface entre a psicologia e o direito o ser humano e a

Justiccedila em busca da emancipaccedilatildeo do sujeito como construtor de sua proacutepria histoacuteria A

Justiccedila parece estar entre o sujeito e suas accedilotildees e com a possibilidade de tornaacute-lo cons-

ciente das mesmas ou alienaacute-lo ainda mais Acredita-se que a conscientizaccedilatildeo de suas

accedilotildees por meio de espaccedilos de escuta e fala oportunos podem tornar dinacircmica a relaccedilatildeo

do sujeito consigo mesmo a partir dos sentidos subjetivos atribuiacutedos e incorporados por

eles agraves suas experiecircncias de envolvimento com a Justiccedila por uso de drogas

Este estudo teve como base teoacuterica a psicossociologia e a teoria psicanaliacutetica que com-

preendem o sujeito para aleacutem de seu envolvimento com a Justiccedila E que possibilita a

denuacutencia de diferentes significados no entrelaccedilamento entre o sujeito e a Lei como

uma busca reciacuteproca da subjetividade revelada nas experiecircncias de envolvimento com a

Justiccedila por uso de drogas

Meacutetodo

Trata-se de um estudo orientado pela epistemologia qualitativa proposta por Rey (2005)

no qual se buscou privilegiar o estudo das experiecircncias subjetivas de envolvimento com

a Justiccedila por uso de drogas reveladas no Acolhimento Psicossocial

Neste estudo buscaram-se infinitamente no discurso dos sujeitos as possibilidades

para promover a construccedilatildeo de zonas de sentido como marco de novas linhas de in-

teligibilidade aglomeradas ao que se pensou previamente nos objetivos e ao que foi

apreendido e apropriado no decorrer do processo de construccedilatildeo das informaccedilotildees Como

175Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

aponta Rey (2005) a epistemologia qualitativa como orientaccedilatildeo metodoloacutegica promo-

ve o caraacuteter construtivo-interpretativo da produccedilatildeo cientiacutefica considerando o conheci-

mento um processo permanente de produccedilatildeo de inteligibilidade mediante a construccedilatildeo

de novas zonas de sentido sobre o problema estudado

De acordo com Rey (2005) a pesquisa qualitativa emergiu como uma forma de romper

com o ponto de vista estreito e opressivo do positivismo Este autor propotildee um processo

de pesquisa qualitativa apoiada na epistemologia qualitativa amplamente utilizada em

estudos complexos sobre a construccedilatildeo de modelos compreensivos e que necessitam

de uma metodologia capaz de interagir e fazer sentindo para as ciecircncias afins e natildeo

apenas para a psicologia e que ainda tenha um valor heuriacutestico para a construccedilatildeo do

conhecimento dentro do campo de pesquisa Ou seja a realidade como um domiacutenio

infinito de campos inter-relacionados e o conhecimento como imbuiacutedo de um caraacuteter

construtivo-interpretativo

Os colaboradores consistiram em 24 sujeitos usuaacuterios de drogas apreendidos usando

ou portando drogas pela Poliacutecia Militar ou Civil e enquadrados no Artigo 28 da Lei

1134306 tendo participado de audiecircncias realizadas no decorrer dos meses de setem-

bro e outubro do ano de 2007 no 1deg Juizado Especial Criminal do Distrito Federal

Para uma melhor compreensatildeo e retrataccedilatildeo das experiecircncias subjetivas expressadas pe-

los 24 (vinte e quatro) colaboradores deste estudo entendeu-se necessaacuterio descrevecirc-los

um a um a partir de trecircs aspectos em contiacutenua articulaccedilatildeo quais sejam forma como se

representaram nas entrevistas por meio de siacutembolos informaccedilotildees contidas nos proces-

sos judiciais sobre as apreensotildees e a interpretaccedilatildeo e compreensatildeo da pesquisadora Tais

fotografias simboacutelicas foram retiradas pela maacutequina fotograacutefica lsquocapacidade de pensar

os pensamentosrsquo da pesquisadora e reveladas pelo entrelaccedilamento entre o teoacuterico e o

empiacuterico no decorrer da pesquisa Esta metodologia de descriccedilatildeo dos colaboradores foi

proposta pela pesquisadora e teve o objetivo de aproximar o leitor dos sujeitos impres-

sos nos colaboradores pela forma que se permitiram ser fotografados Dessa forma os

sujeitos foram fotografados simbolicamente e nomeados de O tatuado O self O praiano

O poeta O definido O forasteiro O militar O pastor O cego A guerreira O pombo branco

O lento A muacutesica O resolvido O competidor O profeta O filho O cantor O metamorfose

O deus O indefinido O famiacutelia O sensaccedilatildeo O (sem) vergonha

176

Dos 24 colaboradores 22 eram homens e 2 mulheres com idade meacutedia entre 25 e 26

anos sendo a miacutenima 19 e a maacutexima 40 anos Quanto agrave escolaridade a maioria dos

colaboradores cursavam niacutevel meacutedio 6 cursavam niacutevel superior e 2 eram formados

Em relaccedilatildeo ao trabalho 15 colaboradores estavam empregados 3 desempregados 3 re-

alizavam atividades informais e 2 estaacutegio de niacutevel superior A renda alcanccedilava uma me-

dia de R$ 49500 variando de R$ 150000 a R$ 27000 sendo que 5 colaboradores natildeo

possuiacuteam renda Tais informaccedilotildees coadunam com a explanaccedilatildeo de muitos colaborado-

res acerca do valor gasto com as drogas exceder o planejamento financeiro e prejudicar

os gastos essenciais apresentando de uma forma geral condiccedilatildeo soacutecio-econocircmica baixa

Quanto ao estado civil a maioria eram solteiros 15 sendo que 5 estavam casados 3

conviventes e 1 divorciado Quanto agrave residecircncia 12 residiam com a famiacutelia sendo que

5 residiam com a matildee 2 residiam com o pai 5 residiam com os pais 7 residiam com a

esposa 3 residiam com o cocircnjuge e familiares e 2 (dois) residiam sozinhos Apesar de

haver 15 colaboradores solteiros muitos ainda residiam com os pais ou com um deles e

apenas 2 deles residiam sozinhos o que reforccedila a concepccedilatildeo de que haacute pouca autono-

mia e individuaccedilatildeo dos mesmos frente agrave vida (Bulacci 1992)

A religiatildeo mais seguida pelos colaboradores era a catoacutelica com 12 seguidores sendo

que 2 eram espiacuteritas 1 evangeacutelico 1 do cristianismo 1 agnoacutestico 2 ateus 1 kardesista 2

sem religiatildeo e 2 que apenas acreditavam em Deus Estas informaccedilotildees trazem um inte-

ressante dado em relaccedilatildeo agrave crenccedila social de que o usuaacuterio de drogas natildeo possui religiatildeo

e que possuir uma religiatildeo seria um caminho para a cura Talvez com base na ideacuteia da

busca eterna da cura do sentimento de ter que lidar com a condiccedilatildeo ontoloacutegica do ser

humano como ser finito (Safra 2006)

Em relaccedilatildeo agraves informaccedilotildees obtidas a partir da Ficha de Acolhimento entendemos rele-

vante haver uma busca por informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria da sauacutede e de envolvimento

com a Justiccedila dos colaboradores Portanto 17 deles nunca realizaram algum tratamento

psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico em funccedilatildeo das drogas ou por outra razatildeo e 6 realizaram

tratamento psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico Destes 2 compareceram ao NUPS na eacutepoca

Nuacutecleo Psicossocial Forense do Tribunal de Justiccedila e atual Serviccedilo de Atendimento a

Usuaacuterios de Substacircncias Quiacutemicas - SERUQ para atendimento psicoloacutegico em razatildeo

do cumprimento de medida de pena alternativa 2 permaneceram internados em clini-

177Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

cas por mais de 6 meses 1 frequumlentou o atendimento ambulatorial do Hospital de Base

1 foi atendido pelo serviccedilo de psicologia e psiquiatria do HUB por 2 anos e 1 estava sen-

do atendido no CAPSad do Guaraacute-DF na ocasiatildeo do Acolhimento Psicossocial

Mesmo havendo um nuacutemero maior de colaboradores que natildeo realizaram tratamento

algum muitos deles possuiacuteam certo grau de comprometimento da sauacutede em funccedilatildeo do

uso de drogas bem como possuiacuteam outros envolvimentos com a Justiccedila Por essa razatildeo

persiste a percepccedilatildeo acerca do envolvimento com a Justiccedila possuir vaacuterios e diferentes

desdobramentos e significados para os colaboradores o que instigou ainda mais a ouvir

suas histoacuterias acerca de suas experiecircncias neste contexto

A trajetoacuteria de envolvimento com a Justiccedila dos colaboradores se mostrou similar agrave da

sauacutede talvez pelos mesmos motivos Dentre os 24 colaboradores 16 puderam optar

pela transaccedilatildeo penal23 agrave tramitaccedilatildeo processual e mesmo 2 deles possuiacuterem anteceden-

tes criminais ambos tiveram as exigecircncias legais de 5 anos para nova transaccedilatildeo penal

atendidas E 8 deles foram contemplados pela suspensatildeo condicional do processo por

possuiacuterem antecedentes variando entre um ou mais de um acumulados dos artigos

do Coacutedigo Penal Brasileiro A transaccedilatildeo penal agrave tramitaccedilatildeo processual impotildee o cumpri-

mento de medida de pena alternativa que pode ser a aplicaccedilatildeo de um dos Incisos do

Artigo 28 da Lei 1134306 I ndash advertecircncia II ndash prestaccedilatildeo de serviccedilo agrave comunidade e

III ndash participaccedilatildeo em grupos educativos

Em relaccedilatildeo ao uso de drogas verificou-se que 23 dos colaboradores faziam uso de maco-

nha sendo que 14 faziam uso soacute de maconha e 9 utilizavam a maconha concomitante-

mente agrave outras drogas E 7 deles consumiam tambeacutem aacutelcool juntamente com as outras

drogas como cocaiacutena merla aacutelcool LSD rupinol Apenas 1 (um) colaborador fazia uso

apenas de crack cocaiacutena e aacutelcool

Os procedimentos para apreensatildeo dos processos de construccedilatildeo da informaccedilatildeo foram

realizados por diferentes fontes de informaccedilatildeo tendo em vista ampliar a apreensatildeo da

realidade em foco Definiu-se como fonte primaacuteria de informaccedilatildeo as entrevistas semi-

-estruturadas realizadas no Acolhimento Psicossocial e como fonte secundaacuteria os dife-

23 Opccedilatildeo dada ao envolvido com a Justiccedila que natildeo tenha transaccedilatildeo penal nos uacuteltimos 5 anos para cumprir medidas alternativas em lugar da tramitaccedilatildeo do Processo podendo culminar na condenaccedilatildeo

178

rentes registros provenientes da observaccedilatildeo participante no Juizado Especial Criminal

e no Grupo de Intervenccedilatildeo Psicossocial nas supervisotildees e discussotildees da equipe acerca

dos temas relevantes agrave execuccedilatildeo do Projeto e na anaacutelise de documentos dos Processos

Judiciais dos colaboradores entrevistados

A busca das informaccedilotildees ocorreu durante a execuccedilatildeo do primeiro momento do Projeto

Piloto de Intervenccedilatildeo psicossocial para jurisdicionados do MPDFT em cumprimento

de medida de pena alternativa pelo uso de drogas Neste primeiro momento ocorreu

a entrevista semi-estruturada no Acolhimento Psicossocial que se caracterizou pela

oferta de um espaccedilo de escuta e pelo encaminhamento dos sujeitos colaboradores para

o segundo momento o Grupo de Intervenccedilatildeo Psicossocial

Durante a realizaccedilatildeo das entrevistas no Acolhimento Psicossocial foram preenchidas

as Fichas de Acolhimento para o Grupo de Intervenccedilatildeo Psicossocial com o objetivo de

registrar dados pessoais e sociais dos colaboradores tanto para a pesquisa como para

o Projeto fornecidos por eles mesmos fator considerado tambeacutem importante em um

estudo sobre as experiecircncias subjetivas ou seja o fato de proporcionar o falar de si e

o fornecer dados pessoais na voz e comando de quem os possui Aleacutem da assinatura

do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apoacutes a explicaccedilatildeo sobre os objetivos

riscos e benefiacutecios da pesquisa As entrevistas foram realizadas logo apoacutes a ocorrecircncia

das audiecircncias no Juizado Especial Criminal pelo fato de ser este momento oportuno

jaacute que todos os colaboradores receberam o mesmo tratamento pela Justiccedila encaminha-

mento ao Grupo de Intervenccedilatildeo Psicossocial apoacutes tendo em vista o cumprimento de

medida alternativa Os colaboradores logo apoacutes a realizaccedilatildeo de suas audiecircncias eram

entatildeo conduzidos a uma sala privada disponibilizada no local onde ocorreram as 24

entrevistas de acolhimento

Apenas uma das 24 entrevistas realizadas natildeo pocircde ocorrer conforme o descrito pelo

fato do colaborador natildeo estar se sentindo bem na audiecircncia No entanto foi realizada

a entrevista um pouco antes do horaacuterio de iniacutecio do primeiro encontro do Grupo de

Intervenccedilatildeo Psicossocial

De uma forma geral nas Entrevistas de Acolhimento Psicossocial parece ter havido

um lsquovoltar-se a si mesmorsquo e um lsquopoder refletir sobre o que estava acontecendorsquo talvez

de forma imediata e instantacircnea por terem sido realizadas logo apoacutes a audiecircncia in-

179Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

tenccedilatildeo primordial do estudo deste artigo Verificou-se que a Entrevista de Acolhimento

Psicossocial tenha funcionado como integradora das experiecircncias subjetivas e de seus

desdobramentos no envolvimento com a Justiccedila pelo uso de drogas

A elaboraccedilatildeo dos processos de construccedilatildeo da informaccedilatildeo ocorreu a partir da abertura de

possibilidades para construir novas articulaccedilotildees e aumentar a sensibilidade do modelo

teoacuterico em desenvolvimento avanccedilar na criaccedilatildeo de novos momentos de inteligibilidade

e elaborar novas zonas de sentido a partir de indicadores de sentido

Trata-se portanto do procedimento investigativo-interpretativo e de acordo com Rey

(2005) no qual as informaccedilotildees que as entrevistas nos reportam satildeo suscetiacuteveis de estra-

teacutegias diferentes de construccedilatildeo as quais natildeo estatildeo limitadas agrave uma anaacutelise fragmentada

feita por perguntas

Na elaboraccedilatildeo dos processos de construccedilatildeo da informaccedilatildeo realizou-se inicialmente

uma leitura flutuante do conteuacutedo das 24 (vinte e quatro) entrevistas com o objetivo

de elencar os indicadores de sentido mais significativos em articulaccedilatildeo com o modelo

teoacuterico adotado que orienta a seleccedilatildeo dessas informaccedilotildees E posteriormente a anaacutelise

interpretativo-construtivo com vistas a estabelecer conexotildees interpretaccedilotildees acerca das

experiecircncias subjetivas de envolvimento com a Justiccedila por uso de drogas reveladas nas

entrevistas

ResultadoseDiscussatildeo

Deste niacutevel de anaacutelise resultou a construccedilatildeo de 2 (duas) dimensotildees de anaacutelise em 4

(quatro) zonas de sentido A primeira dimensatildeo contemplou as experiecircncias do sujeito

com o pessoal singular atraveacutes das zonas de sentido Mobilidade do sujeito agrave droga e da

droga ao sujeito e O movimento do sujeito entre os altos e baixos da vida A segunda di-

mensatildeo consistiu nas experiecircncias do sujeito com o social a partir das zonas de sentido

O creacutedito do descreacutedito e o descreacutedito do creacutedito as vaacuterias faces da Justiccedila e O tracircnsito

de significaccedilotildees entre a Justiccedila o sujeito e suas relaccedilotildees sociais afetivas

Este artigo abordaraacute apenas a dimensatildeo das experiecircncias subjetivas de envolvimento

com a Justiccedila com o pessoal singular Nesta dimensatildeo verificou-se uma Mobilidade do

sujeito agrave droga e da droga ao sujeito e um Movimento do sujeito entre os altos e baixos

180

da vida Dessa forma esses movimentos foram retratados nas experiecircncias dos sujeitos

tanto com a droga como consigo mesmos e com a vida Recorreu-se ainda com vistas a

retratar esses movimentos agrave hermenecircutica do revelar do idioma pessoal proposta por

Safra (2006)

Notou-se prevalecer esta mobilidade uma vez que as experiecircncias primordiais do su-

jeito com a droga muitas vezes representam este movimento E assim justificou-se o

nome dado agrave zona de sentido Tal constataccedilatildeo vai de encontro ao que se tem na literatura

acerca da busca da droga se movimentar em prol do retorno agrave uma experiecircncia originaacute-

ria como repeticcedilatildeo ou como recuperaccedilatildeo de algo tido como natildeo vivenciado

Noutro giro a experiecircncia de uso de drogas se apresentou para cada sujeito de forma

singular No caso do uso de maconha a droga mais utilizada pelos colaboradores deste

estudo verificou-se que um nuacutemero significativo de colaboradores expressaram atingir

sensaccedilotildees relaxantes e de aliacutevio mental Nesse sentido Martins (2003) afirma que a

maconha funciona em muitas situaccedilotildees como ansioliacutetico ou analgeacutesico sendo que o

efeito mais importante incorre em atos sobre o pensamento facilitando a imaginaccedilatildeo

por um lado e impregnando uma motivaccedilatildeo diminuiacuteda por outro

A relaccedilatildeo do sujeito com a droga eacute complexa e pode compreender vaacuterias categorias

como uso recreativo abusivo e adicccedilatildeo Esta uacuteltima pode ainda atingir uma situaccedilatildeo

limite que implica a lsquoescravidatildeorsquo do indiviacuteduo diante da droga que se torna o objeto

de um prazer sentido como necessidade e que assume o comando das accedilotildees do sujei-

to Considerou-se para o presente estudo conforme aponta Martins (2003) ao citar a

trilogia de Olievenstein (1989) ser necessaacuterio para compreender o uso de drogas nos

inclinarmos agrave um sujeito em relaccedilatildeo com uma substacircncia inserido em um determinado

contexto

Situamos os sujeitos colaboradores em relaccedilatildeo com as drogas como o abordado pela

psicanaacutelise e que por essa via como nos aponta Santos (2007) visa estabelecer uma

relaccedilatildeo intersubjetiva um novo laccedilo social capaz de possibilitar o transcender da mobi-

lidade das experiecircncias com as drogas para as experiecircncias do sujeito com ele mesmo

Ao longo dos processos de construccedilatildeo da informaccedilatildeo houve a constataccedilatildeo de uma mo-

bilidade na relaccedilatildeo do sujeito com a droga que traduz algo moacutevel do sujeito agrave droga e

181Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

da droga ao sujeito Apesar de ter havido discrepacircncias de envolvimento com as drogas

entre os colaboradores as muitas dimensotildees dessa relaccedilatildeo reveladas retrataram um

movimento pendular amparado nos seguintes indicadores de sentido que sustentaram

esta zona de sentido as vivecircncias em relaccedilatildeo agraves drogas e as drogas em relaccedilatildeo agraves vivecircn-

cias a dependecircncia do uso e o uso da dependecircncia a consciecircncia do risco e o risco da

consciecircncia as consequumlecircncias do uso e o uso das consequumlecircncias a pessoa da droga e a

droga da pessoa aleacutem das oscilaccedilotildees entre os pensamentos e os sentimentos em relaccedilatildeo

ao uso de drogas

Considerou-se importante indicar a evidecircncia de vivecircncias diversificadas sobre os efeitos

das drogas pelos colaboradores Sentir animado estar de bem com a vida aliviar a mente

da tensatildeo o pensamento fica mais raacutepido foram expressotildees que delinearam essas vivecircn-

cias demarcadas pela motivaccedilatildeo para o uso Por outro lado essas vivecircncias alcanccedilaram

extremos indesejados como sinaliza O definido ldquoE dependendo da pessoa a percepccedilatildeo fica

tatildeo grande que acaba fazendo mal como agraves vezes faz para mim Vocecirc estaacute conversando e sua

percepccedilatildeo fica tatildeo grande que vocecirc acaba criando as coisas natildeo eacute mais uma percepccedilatildeordquo Po-

reacutem ao diminuiacuterem a frequumlecircncia do uso vivenciavam melhoras tanto na sauacutede como

no humor Assim como um aumento dessa frequumlecircncia representa pioras significativas

Percebe-se portanto um movimento nessas vivecircncias como nos mostra O forasteiro

ldquoDe certa forma a droga ajuda a pensar mas atrapalha o pensamento desconcentrardquo

O uso de drogas parece estar livre da dependecircncia quando realizado sem prejudicar as

atividades cotidianas numa baixa frequumlecircncia sem adquirir a droga comprando como

a busca de algo Como exemplo o que apontou A muacutesica ldquo a maconha abre a minha

cabeccedila agraves vezes ateacute pra tocar eu consigo pensar em arranjos em coisas diferentes

que eu tenho uma concentraccedilatildeo que vocecirc pode ter tambeacutem mas que eacute uma abertura

Eacute a abertura da minha mente assim sabe Ateacute no momento que natildeo me cause essa

dependecircnciardquo Este uso da dependecircncia consiste na forma encontrada para lsquomanipularrsquo

e lsquocontrolarrsquo o uso em uma crenccedila onipotente Apesar dos efeitos das drogas depen-

derem do organismo e do psiquismo de quem as consome este territoacuterio de uso de

drogas parece ser aacuterido de vivecircncias emocionais e construtivas pelo fato de ser a via

que impossibilita o experimentar de vivecircncias em suas condiccedilotildees naturais em lugar de

experiecircncias artificiais No entanto parece ser a via eleita para lidar consigo e com o

mundo mesmo engendrando necessidades orgacircnicas e psiacutequicas em decorrecircncia das

vivecircncias em torno desse uso

182

Nesse sentido O filho relatou ldquoHoje eu fumo maconha natildeo fumo mais cigarro Jaacute fu-

mei muito cigarro Fumo maconha Hoje eu digo que abre o apetite daacute uma sensaccedilatildeo

de libertar natildeo eacute Hoje eu uso cada vez mais como uma necessidaderdquo

Algumas expressotildees dos colaboradores escapam ao uso que relatam fazer da consciecircn-

cia e dos riscos das drogas Como foi possiacutevel verificar nas palavras de O forasteiro ldquoA

droga para mim hoje em dia eu vejo que estaacute me trazendo mais riscos que benefiacutecios

Eu vejo que tenho a consciecircncia mas eu tenho que ter a vontade de parar de ter aquele

estopim parou Ter um ponto de partida vai vocecirc vai conseguir Entendeu Eacute isso que

eu penso Eu quero parar eu tenho a pretensatildeo de parar e minha pretensatildeo de parar eacute

porque sei que eacute a coisa que me atrapalha a estudarrdquo

Convocando o dinamismo psiacutequico inerente a todos os seres humanos foi possiacutevel

perceber que os colaboradores conhecem os riscos do uso de drogas e mesmo assim

as utilizam Os riscos advindos dos relatos dos mesmos em relaccedilatildeo ao uso de drogas

alertam para o fato de natildeo considerarem adequado um uso compulsivo mas um uso

aleatoacuterio e de acordo com o ambiente pois relacionam o uso ao contexto que o incita

O uso do risco perpassa as possibilidades de escolha da droga de uso ou seja a droga

eleita por um sujeito depende do sujeito que a escolhe bem como do ambiente em que

a utiliza e dos efeitos advindos (Olievenstein 1989)

Os colaboradores mencionaram em seus relatos sobre suas experiecircncias com o pessoal

singular as consequumlecircncias do uso que remontam ao uso das consequumlecircncias em prol de

um aprendizado nesse vivenciar em diferentes niacuteveis Quanto a isso O definido apon-

tou ldquo as consequumlecircncias ajudam a gente a tomar um rumo diferente caso isso natildeo tivesse

acontecidordquo Ou seja o envolvimento com a Justiccedila por uso de drogas reverencia o limite

e a contenccedilatildeo

De acordo com o que expressaram os colaboradores acerca do uso das consequumlecircncias

parecem estar tateando as consequumlecircncias do uso e revelando-as como uma via de matildeo

dupla sendo que em uma via as consequumlecircncias incitam reflexotildees e noutra consti-

tuem justificativas para o uso Relataram ainda estabelecer com a droga uma relaccedilatildeo

que coincide a vontade de usar drogas com a de parar de usaacute-las pois acreditam que

as aquisiccedilotildees que obtecircm a partir do seu uso podem ser alcanccediladas de outras formas

Talvez por nunca terem percorrido outros caminhos senatildeo o das drogas para vivenciar

183Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

diferentes sensaccedilotildees Percebe-se neste ponto a droga com a funccedilatildeo de vida trazendo

consigo sensaccedilotildees para um corpo que natildeo as possui Isto eacute a vida na morte subjetiva

Nesta seara foram constatas singularidades nas vivecircncias com as drogas expressas pelos

colaboradores ldquosatildeo vaacuterios pensamentos curiosidade aventura aproveitar ali a sensa-

ccedilatildeo sentir se achar eacute algo bem pessoal a onda eacute diferente para cada um um fuma e fica

chapado outro estaacute nervoso outro fuma e estaacute alegre cada um eacute cada um isso eacute bem

psicoloacutegico bem de pessoa para pessoa na hora eacute pra se divertir mas tem outros meios

aiacute pra se divertir sem ser drogardquo

Das oscilaccedilotildees existentes nas possibilidades para refletir geradas pelo uso de drogas agraves

reflexotildees acerca do que pode proporcionar a droga constatamos expressotildees dos colabo-

radores sobre o impacto ao outro no ato de se drogar As palavras de O poeta retratou

tal proposiccedilatildeo ldquoPelo produto tem muita coisa que faz mal para a sauacutede e mesmo assim

eacute liberado mas natildeo estou falando que a maconha faz bem para a sauacutede vocecirc estaacute ali

puxando fumaccedila para dentro do seu pulmatildeo vai da loacutegica fumaccedila natildeo faz bem droga

tambeacutem natildeo Muitas coisas que fazemos fazem mal tomar sol comer maionese mas

nossa preocupaccedilatildeo deve ser natildeo fazer mal ao proacuteximordquo

De acordo com Bulaccio (1992) a droga eacute uma resposta natildeo eacute uma pergunta sendo a

soluccedilatildeo encontrada pelo sujeito para lidar com sua anguacutestia Para este autor a toxico-

mania se sustenta no outro no social e onde ocorre sua plenitude Para aleacutem da toxico-

mania percebemos as experiecircncias dos colaboradores com o pessoal singular por meio

de suas expressotildees que culminaram na mobilidade evidenciada do sujeito agrave droga e da

droga ao sujeito

Posto isto partiu-se rumo ao movimento dos sujeitos entre os altos e baixos da vida

consistindo a outra zona de sentido implicada nas experiecircncias dos colaboradores com

o pessoal singular que proporcionaram pensamentos e reflexotildees profundos e revelado-

res oscilantes e taacutecitos flexiacuteveis e frutos de elaboraccedilotildees incalculaacuteveis tal como a vida

se apresenta Tais constataccedilotildees impotildeem ao Acolhimento um ambiente holding capaz de

sustentar os colaboradores em suas experiecircncias por meio de compreensotildees adequadas

e necessaacuterias ao revelar de experiecircncias tal como aponta Winnicott (2001)

184

De acordo com Safra (2005) cada acontecimento na vida de uma pessoa a obriga a se

posicionar frente a estas questotildees de alguma forma e a estabelecer sentidos para os

misteacuterios que respiram em seu ser Este eacute o drama do ser humano e ao mesmo tempo

a sua fecundidade A partir do movimento dos sujeitos entre os altos e baixos da vida

ilustrou-se a forma como os colaboradores foram se posicionando frente agraves experiecircncias

com a Justiccedila utilizando o Acolhimento Psicossocial como um caminho para a reve-

laccedilatildeo da subjetividade nesse contexto mediante os seguintes indicadores de sentido

Parando para pensar na vida pelos veacutertices do sofrimento e Aproveitando os momentos

crescimento e aprendizado nos altos e baixos da vida

Assim quando uma pessoa experimenta a atualizaccedilatildeo de uma possibilidade em que

desdobramentos de um modo de ser se realizam ela jaacute natildeo eacute mais a mesma estaacute exis-

tencialmente posicionada de forma distinta (Safra 2005)

Percebeu-se em um dos veacutertices do sofrimento a presenccedila do sentimento de solidatildeo

como condiccedilatildeo para pensar na vida como demonstrou A guerreira ao apontar ldquo per-

cebo que todo mundo estaacute preocupado com sua proacutepria vidardquo Indicamos o sofrimento

como uma importante via para o ser humano reavaliar suas condutas e escolhas Sentir-

-se sozinha pode indicar entre outras revelaccedilotildees sua condiccedilatildeo de natildeo estar bem consigo

mesmo Aliaacutes podemos inferir que os colaboradores relataram por meio de seus atos

a dificuldade de entrarem em contato com seu mundo interno uma vez que utilizam

substacircncias para mediar esse contato e assegurar o si do si mesmo

Ferro (2005) postula que a gecircnese do sofrimento psiacutequico deriva da vivencia de um

trauma e do gradiente de disponibilidade da mente do outro juntamente com o tipo e

a qualidade de emoccedilotildees percebidas e presentes na mente desse outro que se relaciona

Ele defende ainda que o ato de falar antes mesmo do ato de refletir propicia o contato

com o funcionamento oniacuterico da mente que eacute capaz de criar mais nexos e sentidos que

qualquer reflexatildeo

O mais eficaz meacutetodo de evitar o desprazer contido no sofrimento consiste nas alte-

raccedilotildees quiacutemicas pela via da intoxicaccedilatildeo apesar de ser o meacutetodo mais grosseiro As

substacircncias quiacutemicas administradas neste intuito alteram tanto as condiccedilotildees que di-

rigem nossa sensibilidade quanto os impulsos desagradaacuteveis da vida psiacutequica A esse

respeito Freud (1930) afirma

185Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

O serviccedilo prestado pelos veiacuteculos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraccedila eacute tatildeo altamente apreciado como um benefiacutecio que tanto indiviacuteduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido Devemos a tais veiacuteculos natildeo soacute a produccedilatildeo imediata de prazer mas tambeacutem um grau altamente desejado de independecircncia do mundo externo pois sabe-se que com o auxiacutelio desse acuteamortecer de preocupaccedilotildees` eacute possiacutevel em qualquer ocasiatildeo afastar-se da pressatildeo da realidade e encontrar refuacutegio num mundo proacuteprio com melhores condiccedilotildees de sensibilidade Sabe-se igualmente que eacute exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos Satildeo responsaacuteveis em certas circunstacircncias pelo desperdiacutecio de uma grande quota de energia que poderia ser empregada para o aperfeiccediloamento do destino humano (p 86)

O acuteamortecer de preocupaccedilotildees` referido acima parece representar uma das funccedilotildees da

droga ou da busca da droga como a forma encontrada para conviver com a realidade Ou

seja o amortecer da energia sentida e aproximada ao desprazer necessita de uma des-

carga imediata de prazer adquirida momentaneamente pela substacircncia quiacutemica poreacutem

natildeo adveacutem de uma construccedilatildeo de sentido psiacutequico fruto de uma forma aprendida de

lidar com o desprazer Talvez seja uma forma de evitar o desprazer artificialmente que

alcanccedila um estado sensiacutevel imediato capaz de neutralizar as sensaccedilotildees ou melhor o

sofrimento meio pelo qual o organismo estaacute regulado

No entanto natildeo existe uma regra a seguir para um percurso satisfatoacuterio e equilibrado

entre prazer e desprazer Cada ser humano precisa conhecer e reconhecer de que modo

pode ser conduzido e se conduzir ao longo da vida Acredita-se que as substacircncias quiacute-

micas como meacutetodo de evitar o desprazer ou de buscar o prazer imediato impedem

o aprendizado e a construccedilatildeo necessaacuterios agrave capacidade de lidar com situaccedilotildees adver-

sas proacuteprias da vida e suas intercorrecircncias e oscilaccedilotildees Jaacute que as vivecircncias internas

articulam-se agraves vivecircncias externas ao sujeito em sua constituiccedilatildeo e como decorrecircncia do

desenvolvimento humano podendo haver sempre um muacutetuo aprendizado

As relaccedilotildees estabelecidas ao longo da vida proporcionam o desenvolvimento psiacutequico

e emocional necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo psiacutequica do sujeito A relaccedilatildeo entendida entre o

sujeito e a droga ocupa o lugar mantido economicamente impossibilitando de propor-

cionar essa relaccedilatildeo de aprendizagem por se localizar ligada ao sujeito impedindo-o de

ver a si mesmo e ao outro Dessa forma entende-se que haacute uma relaccedilatildeo dual entre o

sujeito e a droga que pode inviabilizar o vivenciar do sofrimento como transformador

186

A psicanaacutelise situa o sujeito em busca de suas redes de ligaccedilatildeo entre seus sintomas

e seus diversos sentidos Assim o sujeito implicado com o uso de drogas passa a ser

considerado para aleacutem de seu sintoma como forma de abranger os seus reais sentidos

Tanto como sintoma quanto como funcionamento psiacutequico o sujeito parece construir

suas relaccedilotildees e suas aquisiccedilotildees pela via do aliacutevio das tensotildees psiacutequicas e emocionais do

dia-a-dia e da vida cotidiana Cada sujeito vivencia o aliacutevio psiacutequico de formas diferen-

ciadas e com desdobramentos diversos

Haacute no aparelho psiacutequico desde o iniacutecio da vida a construccedilatildeo de modelos24 de inuacutemeras

formulaccedilotildees acerca da vivecircncia de experiecircncias emocionais e da capacidade de pensar

os pensamentos A abstraccedilatildeo adveacutem desses modelos que tornam possiacutevel sua continui-

dade ou seja o conteuacutedo desses modelos proporciona um somatoacuterio de experiecircncias de

ter suas necessidades atendidas pelo ambiente que caracteriza a abstraccedilatildeo

A partir da forma como foram vivenciadas as experiecircncias emocionais ao longo da vida

determina-se a capacidade de pensar e de utilizar os pensamentos como desenvolvi-

mento de um aparelho capaz de tolerar frustraccedilatildeo O conceito de consciecircncia de Freud

(1911) como oacutergatildeo sensiacutevel agrave percepccedilatildeo de atributos psiacutequicos fornece tal aparelho que

ordena as percepccedilotildees primordiais e suas constituiccedilotildees

Bion (1991) aponta que parte do aparelho psiacutequico primitivo se amolda para prover o

aparelho como dispositivo indispensaacutevel por substituir a descarga motora e sugere ser o

pensar algo que se impotildee ao aparelho pelas exigecircncias da realidade tal como o predomiacute-

nio do princiacutepio do prazer proposto por Freud A capacidade para pensar adveacutem de um

aparelho adaptado e apto a adaptar-se agraves tarefas proacuteprias agrave satisfaccedilatildeo dos requisitos da

realidade Institui-se por essa via o aprender com a experiecircncia que se liga agrave funccedilatildeo que

Freud atribui agrave atenccedilatildeo quando afirma que de modo intermitente sonda o mundo exter-

no com familiaridade caso surja uma necessidade urgente Bion (1991) complementa

indicando serem esses os modelos utilizaacuteveis para a satisfaccedilatildeo urgente de necessidades

internas ou externas e que trazem a reminiscecircncia das experiecircncias emocionais

24 O modelo eacute a abstraccedilatildeo da experiecircncia emocional ou a concretizaccedilatildeo da abstraccedilatildeo (Bion 1991 p 112)

187Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

O aprender com a experiecircncia e a capacidade para pensar o pensamento fornecem

meios para restringir a descarga motora ou seja natildeo mais alivia o aparelho mental dos

acreacutescimos de estiacutemulos mas agora altera adequadamente a realidade Epistemologica-

mente Bion (1991) considera o pensamento anterior ao pensar e desenvolve o pensar

como meacutetodo ou aparelho para lidar com os pensamentos e seus desdobramentos A re-

sultante do pensar o pensamento institui a evacuaccedilatildeo e o pensar A evacuaccedilatildeo soluciona

o problema se a personalidade eacute dominada pelo impulso para fugir agrave frustraccedilatildeo e por

pensar os objetos se dominada pelo impulso de modificar a frustraccedilatildeo

Nessa vertente verificou-se que os colaboradores estatildeo ldquosegurando as pontasrdquo ou estatildeo

sendo ldquosegurados pelas pontasrdquo face agrave linha tecircnue que separa o sujeito de suas esco-

lhas os sofrimentos das consequumlecircncias de suas escolhas num tecido costurado pela

fragilidade das relaccedilotildees estabelecidas com as drogas

Tais experiecircncias incorporam-se agrave histoacuteria de vida dos colaboradores que a situam como

aprendizado para ser utilizado posteriormente Ou seja quando parece ser possiacutevel para

os colaboradores se apropriarem de suas vivecircncias torna-se igualmente possiacutevel utilizaacute-

-las quando entenderem necessaacuterio ao longo da vida Pelo que se observou os colabora-

dores inseriram o revelar dessas experiecircncias em suas subjetividades

De todo modo o Acolhimento Psicossocial se revelou como um ambiente capaz natildeo soacute

de sustentar os colaboradores mas tambeacutem de situaacute-los em suas experiecircncias de envol-

vimento com a Justiccedila em diversos aspectos E tornou possiacutevel tambeacutem o desvendar o

movimento do sujeito entre os altos e baixos da vida

Conclusotildees

O Acolhimento Psicossocial passou a ser revelador dos desdobramentos do envolvi-

mento com a Justiccedila por uso de drogas para cada colaborador acionando neles diferen-

tes formas de relatar e lidar com essa situaccedilatildeo e apropriar-se dela como experiecircncia no

curso de suas vidas

A dimensatildeo das experiecircncias subjetivas vivenciadas entre o sujeito com ele mesmo natildeo

estaacute estanque e se desenvolve pelo diaacutelogo nessa dimensatildeo constituindo um processo

relacional na busca do sujeito pela Lei como instauradora e constitutiva do mesmo

188

psiacutequica e emocionalmente bem como na busca da Lei pelo Sujeito como instauraccedilatildeo

de sua constituiccedilatildeo

Considerou-se o Acolhimento Psicossocial propiciador de condiccedilotildees favoraacuteveis agrave ex-

pressatildeo dos colaboradores sobre suas experiecircncias de envolvimento com a Justiccedila por

uso de drogas bem como revelador do idioma pessoal dos mesmos Favorecer a expres-

satildeo de suas singularidades reporta-nos agrave Safra (2005) quando se refere que falar sobre

qualquer fenocircmeno impotildee a possibilidade de nomear as diferentes experiecircncias e fazer

relaccedilotildees entre elas Era o que foi proposto no momento em que foi oportunizado espaccedilo

para palavras isto eacute o apropriar-se das mesmas e poder utilizaacute-las como aprendizado a

partir das experiecircncias

Sugere-se com o presente estudo que o Acolhimento Psicossocial tenha funcionado

como um aparelho para ajudar a pensar os pensamentos e proporcionar o aprender

com as experiecircncias Considerou-se que o envolvimento com a Justiccedila representou para

os colaboradores a modulaccedilatildeo de um aparelho para pensar os pensamentos exercendo

a reformulaccedilatildeo de um aparelho para pensar os pensamentos como propotildee Bion (1991)

Verificou-se que o acolhimento inserido na Intervenccedilatildeo Psicossocial nestes moldes

convoca os colaboradores a refletirem e a pensarem sobre seus atos e a conferirem a eles

pensamentos e consequumlentemente aprendizados a partir da experiecircncia

Tocou-se por essa via na vertente cliacutenica que convoca os colaboradores como sujeitos

constituiacutedos e constituidores de sua proacutepria histoacuteria Neste sentido Rey (2003) aponta

a psicanaacutelise como a inauguradora da psicologia na vertente cliacutenica tendo em vista bus-

car enfrentar os problemas derivados da praacutetica cliacutenica

No contexto da Justiccedila percebemos que o Acolhimento Psicossocial funcionou ainda

como o elo de ligaccedilatildeo entre os colaboradores e o cumprimento da medida de pena al-

ternativa pelo fato de esse funcionamento apresentar-se como aparelho para pensar os

pensamentos e proporcionar o aprender com as experiecircncias A vertente cliacutenica fez-se

presente neste entendimento pois convocou o sujeito como constituiacutedo e constituidor

de sua proacutepria histoacuteria

Natildeo se trata de defender a cliacutenica como meacutetodo para Intervenccedilotildees Psicossociais mas

destacar a importacircncia de um Acolhimento neste contexto que favoreccedila a auto-reflexatildeo

189Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

e o sentimento de receber creacutedito da Justiccedila por meio de um lugar ofertado de existecircn-

cia e de palavra devolvendo aos lsquoprocessadosrsquo a autoria de suas histoacuterias Para justificar

estes pensamentos recorreu-se a Lavenu (1985) psicoloacutegica de presidiaacuterios na Franccedila

conforme citada por Sudbrack (1992)

Privar o ato do sentido (em niacutevel das inscriccedilotildees inconscientes) do qual ele tenta fugir eacute deixar o criminosa em seu status de Ator e portanto encorajar a repeticcedilatildeo O processo a histoacuteria inscrita no seu dossiecirc judiciaacuterio tornar-se-aacute uma autobiografia escrita pelas palavras dos outros O anti-heroiacute poderaacute permanecer ator de sua vida Mas aquele que assumindo seu crime teraacute podido colocaacute-lo em palavras e inscrever sua histoacuteria em uma aventura terapecircutica teraacute uma chance de tornar-se AUTOR de seu ato e talvez de seu destinordquo

Constatou-se que o acima mencionado coaduna como nossa perspectiva teoacuterica e meto-

doloacutegica tendo em vista trazer agrave tona o sujeito para aleacutem de seus atos e envolvimentos

judiciais

Dessa forma este estudo foi firmado tambeacutem no cenaacuterio cliacutenico da intervenccedilatildeo psi-

cossocioloacutegica pois a praacutetica da psicossociologia como nos mostra Machado (2001)

transforma-se na anaacutelise cliacutenica do discurso dando ecircnfase agrave histoacuteria relatada e real dos

sujeitos dos grupos das organizaccedilotildees e da coletividade A anaacutelise social de documentos

e entrevistas compotildee a pesquisa qualitativa podendo ser utilizada na busca do senti-

do e das significaccedilotildees aleacutem de produzir novas realidades em diferentes contextos A

Intervenccedilatildeo Psicossocial eacute condizente com a praacutetica da psicossociologia uma vez que

remonta agrave complexa relaccedilatildeo entre o sujeito e o social

Leacutevy (1995) citado por Machado (2001) sinaliza que o discurso desvela a realidade so-

cial com seus conflitos Ou seja os atos de linguagem que remodelam e interpretam o

discurso interferem na realidade individual e social dos sujeitos simultaneamente

Verificou-se que os colaboradores utilizaram a Justiccedila como a via possiacutevel e passiacutevel de

proporcionar reflexotildees acerca de suas posturas pessoais e sociais Infere-se que quando

os colaboradores vivenciaram esse envolvimento como um creacutedito da Justiccedila encontra-

ram respaldo para se apropriarem de suas experiecircncias no curso de suas vidas Neste

sentido conferiu-se a isso um patamar de possibilidades para pensar e aprender com a

experiecircncia pela via do creacutedito da Justiccedila

190

Por outro lado quando natildeo haacute esse creacutedito tanto na Justiccedila como nas relaccedilotildees pessoais

e afetivas dos colaboradores constatamos rupturas no percurso de vida psiacutequica e emo-

cional retratados pelas expressotildees sobre descreacutedito preconceito banalizaccedilatildeo fragilida-

des nas relaccedilotildees sociais afetivas uso de drogas

O Acolhimento Psicossocial se revelou nesta pesquisa acolhedor dessas rupturas opor-

tunizando um espaccedilo para pensar os pensamentos transformando-os em aprendizado

frente agraves adversidades da vida Notamos suas possibilidades pelas palavras e expressotildees

dos colaboradores que tornaram possiacutevel o revelar do idioma pessoal singular de cada

um

Podemos pensar que para muitos colaboradores o Sujeito busca a Lei pelo envolvimen-

to com a Justiccedila como uma possibilidade encontrada inconscientemente para ressigni-

ficar a lei interna e reguladora de suas relaccedilotildees com o mundo Da mesma forma a Lei

representa o limite organizador para o Sujeito e o remete a si mesmo impondo sua pre-

senccedila simboacutelica e ordenadora Constatou-se um movimento contiacutenuo e ininterrupto do

Sujeito agrave Lei e da Lei ao Sujeito caracterizado no compasso da vida interna e externa

inquieta e dinacircmica

O uso de drogas perfaz a via utilizada pelos colaboradores para lidar com a vida interna

e externa e por incriacutevel que pareccedila consiste justamente no instaurador do compareci-

mento agrave Justiccedila Inferiu-se dessa forma a droga como a via rumo agrave Lei e agrave Justiccedila como

uma busca de continecircncia para sentimentos adversos vivenciados pelos sujeitos pesso-

al e socialmente Talvez por esse motivo o Acolhimento tenha marcado sua diferenccedila

sustentadora na Intervenccedilatildeo Psicossocial como uma condiccedilatildeo ofertada e aproximada

das necessidades dos colaboradores

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193 Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

EugeneEnriquez

Pourquoi eacutevoquer lrsquoamour Lrsquoamour semble ne plus faire partie des preacuteoccupations

centrales de nos socieacuteteacutes alors qursquoau Moyen-acircge lrsquoamour courtois eacutetait devenu un des

ressorts essentiels de la socieacuteteacute europeacuteenne et un des signes des capaciteacutes drsquoideacutealisation

et de sublimation de celle-ci qursquoau 17egraveme siegravecle le sentiment amoureux eacutetait mis au pi-

nacle par les Preacutecieuses qui dessinaient la ldquocarte du Tendrerdquo qursquoau 18egraveme il eacutetait le souci

principal des libertins qui eacutetaient charmeacutes ou obseacutedeacutes par la conquecircte amoureuse et des

bourgeois qui espeacuteraient reacuteussir aussi bien dans le mariage que dans les affaires qursquoau

19egraveme siegravecle lrsquoamour romantique ne mettait en contact que deux cœurs qui srsquoaccordaient

au delagrave de toutes les conventions et au risque de la mort Pourquoi parler maintenant

drsquoune passion indeacutefinissable qui comme lrsquoeacutecrivait Andreacute Le Chapelain est ldquoun je ne sais

quoi qui vient de je ne sais ougrave et qui srsquoen va je ne sais commentrdquo et il ajoutait ldquoet par ces

termes qui ne nous apprennent rien ils nous apprennent tout ce qui peut srsquoen savoirrdquo

Pourquoi ne pas parler plutocirct de sexualiteacute dans une socieacuteteacute ougrave nombre de magazines

procircnent les rencontres eacutepheacutemegraveres prodiguent des conseils pour accroicirctre tous azimuts

le plaisir sexuel ougrave se multiplient les peep-shows les revues et les films pornographiques

194

dans une socieacuteteacute donc ougrave la libeacuteration sexuelle continue agrave ecirctre agrave lrsquoordre du jour et ougrave elle

semble demeurer le mot drsquoordre drsquoune eacutepoque voueacutee agrave la jouissance

Il serait possible de reacutetorquer agrave bon droit que de parler constamment de sexualiteacute est

en reacutealiteacute la faire taire Nous le savons bien nous qui avons eacuteteacute inteacuteresseacutes au sens fort

du terme par la deacutecouverte freudienne concernant le fonctionnement inconscient de

la psycheacute et qui nous sommes rendus compte que plus on invoquait lrsquoinconscient et

les reacutepercussions de son pouvoir dans la vie la plus quotidienne plus on le banalisait

le travestissait le rendait inopeacuterant et lrsquoempecircchait drsquoecirctre cette ldquoblessure narcissiquerdquo

fondamentale que Freud avait cru infliger agrave lrsquohumaniteacute A force de traiter de sexualiteacute agrave

force de mettre lrsquoinconscient agrave toutes les sauces notre socieacuteteacute fait perdre son tranchant

aux hypothegraveses et aux deacutemonstrations freudiennes les plus novatrices

Crsquoest pourquoi nous laissons le discours sur la sexualiteacute agrave drsquoautres Non qursquoil ne soit pas

drsquoimportance mais parce qursquoil est tellement envahissant qursquoil nous paraicirct relevant de

tenter drsquoexplorer drsquoautres terres qursquoon croie bien connaicirctre et qui sont comme lrsquoacircme

dirait A Schnitzler des ldquoterres eacutetrangegraveresrdquo

Si nous restons fidegraveles agrave lrsquoinspiration freudienne nous sommes obligeacutes de nous rendre

compte de trois eacuteleacutements fondamentaux de notre socieacuteteacute 1) Lamonteacutee de la ldquomaladie rsquo

des conduites pathologiques 2) Le rocircle central de lrsquoamour aussi bien dans ldquole narcis-

sisme des petites diffeacuterencesrdquo que dans le repli sur soi ou au contraire dans la forma-

tion ldquodrsquoentiteacutes toujours plus grandesrdquo 3) Lrsquoimportance de lrsquoamour dans la Kulturarbeit

Reprenons ces divers points

Lamonteacuteedelamaladie

Nous nrsquoavons peut-ecirctre pas accordeacute suffisamment drsquoattention agrave la phrase suivante de

Freud ldquoUn solide eacutegoiumlsme preacuteserve de lrsquoamour mais agrave la fin on doit se mettre agrave aimer

pour ne pas tomber malade et lrsquoon doit tomber malade lorsqursquoon ne peut aimerrdquo

Essayons de tirer tout le sue de cette phrase en nous reacutefeacuterant naturellement aussi agrave

drsquoautres aperccedilus de Freud ou agrave drsquoautres auteurs importants pour notre propos

195Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

Le ldquosolide eacutegoiumlsmerdquo connote la libido du moi qui envahissante peut devenir une libido

uniquement ldquonarcissiquerdquo Or que signifie ecirctre uniquement narcissique crsquoest non seu-

lement risquer de mourir en se regardant dans le miroir en eacutetant happeacute par son image

speacuteculaire (et la maladie est le premier chemin vers le deacutenouement fatal) mais drsquoabord

renoncer agrave sa liberteacute car quand on est plein de soi-mecircme quand on est dans cette com-

paciteacute (que deacutenonccedilait aussi bien Ibsen que Freud) qui se cache sous le masque de la

pleacutenitude on est bien pregraves de srsquoeacutetouffer de ne plus ecirctre capable de vivre de faire des

choix de deacutevelopper un ordre ldquonormatifrdquo par rapport auquel drsquoautres peuvent se deacutefinir

Dans lrsquoamour au contraire si un individu srsquoaliegravene agrave lrsquoautre il se rend en mecircme temps

libre et il le rend libre Alieacutenation et liberteacute ne sont pas antinomiques Lrsquohomme libre

nrsquoest pas malade Crsquoest ce que veut dire fort justement Leacutevi-Strauss inspireacute par Lacan

auquel il se reacutefegravere lorsqursquoil eacutecrit (1950) ldquoCar crsquoest agrave proprement parler celui que nous

appelons sain drsquoesprit qui srsquoaliegravene puisqursquoil consent agrave exister dans un monde deacutefinis-

sable seulement par la relation de moi et drsquoautruirdquo Hegel srsquoen eacutetait deacutejagrave rendu compte

dans sa premiegravere dialectique eacutecrit du temps drsquoIeacutena - ldquoLa dialectique des amantsrdquo

Pour Hegel lrsquoamour est ce qui rend lrsquohomme speacutecifiquement humain puisqursquoil est lrsquoex-

pression du deacutesir drsquoun autre deacutesir crsquoest-agrave-dire de la reconnaissance En srsquoaimant les

amants se reconnaissent simultaneacutement et reconnaissent leur alteacuteriteacute irreacuteductible Lrsquoun

et lrsquoautre sont donc donneacutes ensemble plus exactement ils naissent ensemble Comme

ils sont deacutefinis par la mort lrsquoun comme lrsquoautre ils comprennent que crsquoest leur propre

finitude qui les rend libres et disponibles agrave cette aventure exceptionnelle Un sociologue

comme G Simmel (1921) eacutecrit ces phrases qui vont dans le mecircme sens ldquoSeul lrsquoecirctre qui

aime est un esprit reacuteellement libre car seul il affronte chaque pheacutenomegravene avec cette ca-

paciteacute ou cette propension agrave lrsquoaccueillir agrave lrsquoappreacutecier pour ce qursquoil est agrave en ressentir plei-

nement toutes les valeurshellip Le sceptique lrsquoesprit critique celui qui est deacutepourvu de preacute-

jugeacutes en theacuteorie se comporte diffeacuteremment Jrsquoai souvent noteacute que ces types drsquohomme

par peur de perdre leur liberteacute nrsquooffrent pas un accueil reacuteellement indeacutependant vis-agrave-vis

de tout le dehors accueil neacutecessitant toujours un certain abandon au pheacutenomegravenerdquo

Crsquoest ainsi quand la libido peut investir un nouvel objet radicalement diffeacuterent de soi

que lrsquoecirctre eacuteprouve sa liberteacute et sa capaciteacute agrave lutter pour la vie Ce ldquonarcissisme bien tem-

peacutereacuterdquo reacutefute le narcissisme de mort car il srsquoaccompagne du don de soi qui ne se joue pas

en une fois mais qui se reacutevegravele ecirctre une vraie creacuteation Comme lrsquoeacutecrit encore Simmel

196

ldquoLa conservation de lrsquoamour drsquoautrui est sa reconquecircte continue (Souligneacute par nous) et la

conservation de lrsquoamour qursquoon a en soi une recreacuteation tout aussi continue de celui-cirdquo

Quand lrsquohomme est incapable drsquoamour quand il nrsquoest preacuteoccupeacute que de soi il devient

ldquomaladerdquo car il se recroqueville sur lui-mecircme et lui-mecircme crsquoest vraiment peu Il va se

centrer sur son plaisir immeacutediat sur la reacutealisation de son fantasme de toute-puissance

(ecirctre aimeacute deacutesireacute sans rien donner en eacutechange) mais comme agrave chaque moment il veut

renouveler son plaisir il va finir par se trouver insatisfait Cette tendance agrave lrsquoeacutegoiumlsme est

renforceacutee par la socieacuteteacute libeacuterale dans laquelle nous vivons Au lieu de comprendre que

la vraie liberteacute srsquoeacuteprouve dans lrsquoeacutepreuve le libeacuteralisme (principalement eacuteconomique

mais crsquoest celui qui preacutedomine dans notre monde) ne va insister que sur le principe

de plaisir que sur la jouissance eacutegoiumlste que sur la multiplication des rencontres Or

on ne le sait que trop qursquoil srsquoagisse de Don Juan ou de Casanova ils sont condamneacutes

agrave lrsquoinsatisfaction car ce qursquoils obtiennent nrsquoest que comme le disait avec justesse Sade

ldquofort loin de ce qursquoils avaient ardemment envieacuterdquo Le deacutesir va donc rebondir drsquoobjet en

objet la quecircte sera infinie et toujours deacutecevante De plus et la figure de Sade ne se pro-

file pas pour rien la volonteacute de prolifeacuteration des affects signifie que lrsquohomme est entreacute

deacutefinitivement dans le monde de la production et de la consommation des ldquoustensilesrdquo

(Enriquez 1991) Il a cru ecirctre libre il est au contraire totalement devenu lrsquohomme

producteur consommateur Il lui faudra des plaisirs toujours renouveleacutes des nouveaux

partenaires de nouvelles maniegraveres de ldquofaire lrsquoamourrdquo (fort mauvaise expression dans ce

cas preacutecis) Il voudra ressentir des sensations originales ecirctre agiteacute drsquoeacutemotions inouiumles

ou agrave lrsquoinverse (mais ce nrsquoest que le revers de la mecircme piegravece) ecirctre lrsquoorganisateur et le

metteur en scegravene de ses volupteacutes mais sans ldquoecirctre toucheacute rsquo sans ldquoressentir la moindre

eacutemotionrdquo (Sade) Drsquoougrave la possibiliteacute comme le deacutecrit Sade dans son œuvre drsquoinstru-

mentaliser totalement lrsquoautre de le situer comme un objet temporaire de jouissance

jetable et tuable au besoin (comme dans ce film ougrave la femme trouve lrsquoacmeacute de sa satis-

faction en lardant son amant de coups de couteau) Lrsquoecirctre humain se conduit alors de

faccedilon totalement aberrante mortifegravere pathologique Srsquoil ne va pas jusque lagrave il trouvera

des compensations dans le drogues les plus diverses et les addictions les plus affirmeacutees

Il sera devenu alors vraiment malade et la socieacuteteacute avec lui quand elle ne lrsquoa pas preacuteceacutedeacute

dans cette voie Il ses sera transformeacute sans le savoir en un des personnages sadiens Le

monde du capitalisme libeacuteral est en train drsquoecirctre dans la reacutealiteacute le monde recircveacute (et simple-

ment recircveacute) par le marquis de Sade celui de la perversion polymorphe qui aura quitteacute le

stade de lrsquoenfance pour caracteacuteriser celui de lrsquounivers adulte

197Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

Lerocirclejoueacuteparlrsquoamourdanslaconstitutiondeslienssociaux

a) Le narcissisme des petites diffeacuterences

On se souvient que Freud deacutesigne ainsi un ldquonarcissisme groupalrdquo porteacute agrave lrsquoincandes-

cence Pour qursquoun tel narcissisme puisse se deacutevelopper il est neacutecessaire que la libido lie

les ecirctres humains profondeacutement les uns aux autres ainsi qursquoagrave leur chef quand ils ont

mis agrave la place de leur ideacuteal du moi lrsquoobjet incarneacute dans le chef

Comme Freud lrsquoa montreacute cet ldquoamourrdquo est neacutecessaire pour la creacuteation et la coheacutesion

du groupe Il srsquoagit rarement drsquoun attirance sexuelle directe elle sera plutocirct inhibeacutee

deacutesexualiseacutee sublimeacutee Elle sera plus de type homosexuel ou dans certains cas sans

reacutefeacuterence agrave la sexualiteacute chacun des membres du groupe eacutetant semblable les uns aux

autres uniformes conformes

Le groupe ira vers lrsquohomogeacuteneacuteisation parfaite vers la ldquomassificationrdquo Or que nous dit

notre socieacuteteacute de capitalisme libeacuteral sinon que si lrsquoindividu est libre il est libre drsquoecirctre

comme les autres Lrsquoindividualisation deacutebouche sur la massification Seule lrsquoindividua-

tion diffeacuterencie les ecirctres Au contraire pour ecirctre un individu ldquoindividualiseacuterdquo il est in-

dispensable de rechercher les mecircmes plaisirs que les autres ceci drsquoautant plus quand

il fait parti drsquoun groupe particuliegraverement coheacutesif et se moquant des autres Lrsquoidentiteacute

individuelle tend agrave se fondre dans une identiteacute collective Or comme nous preacutevient G

Devereux (1973) ldquoSi nous ne sommes rien que des Atheacuteniens ou des Spartiates des

capitalistes ou des proleacutetaires (et nous pouvons ajouter des Franccedilais ou des Allemands

des partisans du Hard Rock ou de la musique de Wagner) nous ne somme bien precircts de

nrsquoecirctre rien du tout et donc de ne pas ecirctre du tout (souligneacute par lrsquoauteur) et il ajoute ldquolrsquoacte

de formuler et drsquoassumer une identiteacute massive et dominanterdquo - et cela quelque soit cette

identiteacute ndash constitue le premier pas agrave la renonciation ldquodeacutefinitiverdquo agrave lrsquoidentiteacute ldquoreacuteellerdquo

Cet amour (qui en meacuteriteacute guegravere son nom qui est quand mecircme de lrsquoattachement at-

tachement alieacuteneacute srsquoil en est) est particuliegraverement deacuteveloppeacute dans nos socieacuteteacutes Nous

nrsquoavons qursquoagrave constater la prolifeacuteration des confreacuteries des sectes des groupes drsquoappar-

tenance de toutes sortes qui tendent tous agrave combler lrsquoinsatisfaction des individus peu

rassureacutes sur eux-mecircmes et qui puisent dans l lsquoamour mutuel et le rejet le meacutepris des

autres (qui servent de surfaces de projection agrave tout lrsquoignoble lrsquoabject la souillure qui

198

peuvent exister dans leur propre inteacuterioriteacute) un semblant de soliditeacute capable de dispa-

raicirctre lors de tout choc violent

Ainsi ce ldquofaux amourrdquo (cette connivence cette collusion cette alieacutenation) est-il particu-

liegraverement priseacute par la culture libeacuterale qui en faisant semblant drsquoencenser les individus

les transforme en une ldquomasse stagnanterdquo (Canetti 1960)

b) Le repli sur soi

Nous envisageons ici certaines conseacutequences du narcissisme agrave son apogeacutee Lorsque

lrsquoindividu nrsquoobtient pas ce qursquoil deacutesire ne peut assouvir ses besoins il rendra respon-

sable la socieacuteteacute de cette limitation Notre individu triomphant se transforme en victime

de la socieacuteteacute qui ne peut eacutemettre qursquoun son plaintif quand il nrsquoest pas pris de rage du

fait de cette situation et quand il ne demande pas agrave hauts cris des reacuteparations pour le

preacutejudice subi Certes notre culture libeacuterale engendre de veacuteritables victimes comme

nous lrsquoavons deacutejagrave noteacute Mais en nous faisant croire que lrsquoindividu peut ecirctre un roi et doit

pouvoir satisfaire lrsquoensemble de ses deacutesirs (alors que Freud nous avait fait bien com-

prendre que la civilisation se nourrissait du renoncement agrave la satisfaction immeacutediate

drsquoun tregraves grand nombre de deacutesirs) elle deacuteveloppe une tendance agrave la victimisation qui

offre parfois des cocircteacutes comiques (ainsi cet individu tombeacute dans lrsquoescalier de sa maison

et qui attaque lrsquoarchitecte et lrsquoentrepreneur afin drsquoobtenir reacuteparation pour un tel dom-

mage) Lrsquohomme qui nrsquoaime pas les autres se met agrave avoir peur drsquoautrui agrave craindre pour

sa vie son inteacutegriteacute et se preacutepare agrave se deacutefendre avant mecircme qursquoun danger le menace Il

est comme ces ameacutericains deacutenonceacutes par M Moore dans son film Bowling for Columbine

qui cheacuterissent leurs armes pour preacuteserver leur liberteacute et qui dans certains cas abattent

ceux qui pourraient les mettre en difficulteacute ou encore comme ces enfants eacutevoqueacutes

eacutegalement par M Moore qui tuent leurs camarades drsquoeacutecole pour des raisons difficiles agrave

deacutemecircler mais ougrave la peur la jalousie lrsquoenvie et la haine de soi entrent certainement en

ligne de compte

Le repli sur soi et sur ses plaisirs peut avoir aussi pour conseacutequence un deacutetachement

rapide des personnes auxquelles on eacutetait quand mecircme relativement attacheacute Ainsi un

mari perdant sa femme est pousseacute par son entourage non agrave entreprendre un travail de

deuil mais le plus rapidement possible agrave combler le vide eacuteprouveacute en trouvant une nou-

velle compagne qursquoil eacutepousera ou avec laquelle il aura une liaison temporaire (drsquoautres

199Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

viendront car comme le dit le langage populaire une de perdue dix de retrouveacutees)

Nous nous apercevons ainsi que les individus obseacutedeacutes par le deacutesir de pleacutenitude nrsquoar-

rivent plus agrave supporter le moindre manque agrave endurer la moindre fecirclure et ne pensent

qursquoagrave une chose oublier le plus vite ce qui pourrait les importuner ou leur faire subir

des blessures psychiques Ainsi lrsquoamour de soi peut aboutir agrave la plainte agrave la peur au

meurtre physique ou agrave lrsquooubli Il dissout dans toutes les circonstances progressive-

ment les liens sociaux

c) Lrsquoamour comme formation ldquodrsquoentiteacutes toujours plus grandesrdquo (Freud 1930)

Freud a insisteacute sur le rocircle drsquoEros pour creacuteer chaque jour des liaisons nouvelles avec des

ecirctres diffeacuterents et de plus en plus eacuteloigneacutes du cercle familial Eros oeuvrerait comme

la libido (avec laquelle il ne faut pas pourtant le confondre car la libido turbulente est

plus du cocircteacute de la deacuteliaison que de la liaison est plus une eacutenergie libre qursquoun eacutenergie

lieacutee) pour nous rapprocher des autres cette fois-ci sous le mode de lrsquoamour sublimeacute

donc de lrsquoamitieacute amoureuse de la fraterniteacute de la camaraderie de la convivialiteacute Ne pas

aimer est au contraire se mettre sous lrsquoeacutegide de Thanatos de la pulsion de mort dans

son aspect allo-destructif Or une socieacuteteacute drsquoindividus ougrave chacun est mis en concurrence

eacuteconomique ou en compeacutetition politique en eacutemulation constante pour les honneurs

non seulement nous eacuteloigne des autres mais nous les rend souvent insupportables Si

lrsquoindividu fidegravele agrave lrsquoinjonction de la socieacuteteacute libeacuterale veut faire partie des winners et non

des loosers il devra se transformer constamment en ce que nous avons nommeacute il y a

deacutejagrave quinze ans en ldquotueur coolrdquo Il en srsquoagit pas (et encore ) du tuer reacuteellement autrui

car il pourra dans drsquoautres circonstances ecirctre utile devenir un partenaire mais seule-

ment lrsquoeacuteliminer dans la course agrave la reacuteussite comme doit le faire tout bon sportif (on sait

bien agrave quel point la reacutefeacuterence au sport est devenue centrale dans nos socieacuteteacutes libeacuterales)

Aimer lrsquoautre (ou mecircme simplement entretenir avec lui des relations amicales tendres

chaleureuses) risquerait de nous mettre agrave sa merci alors que nous deacutesirons en eacutetant le

premier subjuguer autrui le dominer le prendre aux recircts de nos propres deacutesirs En re-

fusant la liaison lrsquohomme contribue sans en avoir une conscience nette au deacutelitement

du lien social Lrsquohomme nrsquoenvisagera plus lrsquoautre qursquoagrave lrsquointeacuterieur de ldquostrateacutegies relation-

nellesrdquo qursquoil aura mis au point On se rend compte alors que cet homme nrsquoest que le

200

serviteur de la culture strateacutegique seule culture pensable dans une socieacuteteacute libeacuterale qui

nrsquoenvisage lrsquoautre que comme objet agrave seacuteduire agrave manipuler ou agrave bannir

LerocirclecentraldelrsquoamourdanslaKulturarbeit

Le travail de la culture crsquoest-agrave-dire la possibiliteacute eacutevoqueacutee par Freud en particulier dans

Lrsquohomme Moiumlse et la religion monotheacuteiste (1939) que celle-ci permette de faire des ldquopro-

gregraves dans la spiritualiteacute rsquo drsquoapporter sa pierre agrave lrsquoeacutemancipation humaine et agrave la recon-

naissance mutuelle est directement deacutependant de lrsquoamour qui peut se nouer entre

les ecirctres Freud disait ldquotout ce qui renforce les liens affectifs eacuteloigne de la guerrerdquo

Effectivement les liens affectifs font reculer les deacutesirs de destruction et favorisent lrsquoeacutelan

creacuteateur œuvres litteacuteraires arts plastiques musique et surtout affinement des relations

des hommes entre eux qui deviennent plus affables plus courtois plus enclins agrave srsquoai-

der mutuellement Sans sentiment positif sans compreacutehension drsquoautrui sans inteacuterecirct

pour lrsquoautre la culture ne peut au contraire que peacutericliter et les pulsions retrouver leur

force archaiumlque et leurs tendances destructrices Certains psychanalystes en particulier

N Zaltzman (2002) dans son ouvrage La gueacuterison psychanalytique nous montre qursquoune

psychanalyse ldquoreacuteussierdquo ne signifie pas que lrsquohomme se sente plus agrave lrsquoaise dans sa peau

ou qursquoil soit plus en mesure de reacutesoudre ses problegravemes mais qursquoil prenne conscience

de son appartenance agrave ce que R Antelme appelait ldquoLrsquoespegravece humainerdquo Crsquoest lorsque

lrsquoindividu se conccediloit comme rattacheacute au monde ldquohomme parmi les hommesrdquo (Sartre)

comme pouvant entrer en dialogue avec toutes les ethnies toutes les religions toutes

les nations et pouvant partager la souffrance des autres (Tocqueville avait drsquoailleurs bien

mis en eacutevidence le rocircle central de la sympathie envers les autres pour fonder dura-

blement la deacutemocratie) qursquoil devient veacuteritablement un homme de la culture et qursquoil

contribue ainsi agrave son ldquotravailrdquo Dans une socieacuteteacute par contre du chacun pour soi du

chacun contre lrsquoautre lrsquohomme se deacute-culture il se deacute-civilise (comme le notait N Elias

1989) et il nrsquoest plus que le siegravege de ses passions eacutegoiumlstes Il nrsquoest pas neacutecessaire drsquoaller

plus avant Lrsquoamour en tant que la rencontre de deux ecirctres de plusieurs ecirctres drsquoune

multitude drsquoecirctres nouant des rapports de reacuteciprociteacute de longue dureacutee et marqueacutes par

la symeacutetrie est loin de caracteacuteriser notre culture libeacuterale Dans celle-ci comme lrsquoeacutecrit

N Luhmann (1982) lrsquoamour est devenu un problegraveme lrsquoincommunicabiliteacute devenue

la regravegle la performance (rester le plus jeune le plus beau le plus viril ou pour une

femme la plus attirante) obligatoire Comme le dit eacutegalement A Giddens (1992) ldquoon

ne reste ensemble que si cette relation donne satisfaction ldquoon ne srsquoengage que pour ce

201Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

qursquoon peut espeacuterer tirer de cet engagementrdquo ou encore comme lrsquoeacutecrit Z Bauman (2003)

ldquolrsquoamour est devenu liquiderdquo et il peut srsquoeacutecouler rapidement Il nrsquoa plus drsquointeacuterecirct que srsquoil

aide agrave la reacutealisation de soi Si au contraire il amegravene des doutes suscite des remises en

cause srsquoil occasionne des brucirclures il ne peut qursquoecirctre rejeteacute

Aussi les liaisons (que les individus soient marieacutes leacutegalement ou non) srsquoeffilochent rapi-

dement les divorces se multiplient les rencontres eacutepheacutemegraveres preacutedominent Il faut sa-

tisfaire tous ses deacutesirs et cela continuellement Il ne doit pas y avoir de repos de moments

difficiles de problegravemes agrave reacutesoudre ldquoJe trsquoaime moi non plusrdquo nrsquoest plus le titre drsquoune

chanson Elle constitue lrsquoaffirmation prototypique drsquoune socieacuteteacute ougrave la place de lrsquoautre

est celle drsquoun pourvoyeur de satisfactions immeacutediates et de satisfactions agrave long terme

Mais comme jouir constamment est de lrsquoordre de lrsquoimpossible comme lrsquoautre ne joue

pas forceacutement ce jeu lagrave car il a lui aussi son jeu agrave mener comme la maladie guette

lrsquohomme des socieacuteteacutes libeacuterales devient en reacutealiteacute un ecirctre de plus en plus insatisfait qui

ne comprend pas qursquoautrui ne se comporte pas comme un bon ordinateur qursquoil suffit

de pianoter pour obtenir la reacuteponse deacutesireacutee Alors le malaise srsquoinstalle

Nos socieacuteteacutes ne sont pas malades seulement parce qursquoelles nrsquoarrivent pas agrave reacutesoudre

le problegraveme du chocircmage parce qursquoelles sont de plus en plus ineacutegalitaires qursquoelles

laissent des pans entiers de population dans le deacutenuement le plus complet agrave tel point

que certaines personnes ne vivent plus mais survivent seulement elles sont malades

du manque drsquoamour

Notre culture libeacuterale a oublieacute que lrsquoamour lrsquoamitieacute le respect la deacutefeacuterence la consideacute-

ration pour lrsquoautre eacutetait le ciment indispensable agrave leur consistance et agrave leur permanence

Elle a cru qursquoen instaurant la ldquoguerre de tous contre tousrdquo elle permettrait agrave chacun de

se deacutepasser de se reacutealiser de jouir sans entrave

La conseacutequence de cet eacutetat de fait nous le constatons chaque jour ce nrsquoest pas la crise

(il est toujours possible de sortir drsquoune crise et de la crise ndash comme le terme lrsquoindique- a

souvent des aspects beacuteneacutefiques en tant qursquoelle ouvre des portes crsquoest le malaise diffus

constant eacutetouffant impalpable vrai ldquosmogrdquo psychologique qui environne chacun drsquoun

brouillard eacutepais Ce malaise que Freud avait repeacutereacute et que tout le monde avait espeacutereacute

temporaire persiste et devient de plus en plus dense Lrsquohomme moderne ne sait quoi

202

en faire Il peste contre la socieacuteteacute les autres lui-mecircme Il ne voit pas qursquoil en est partie

prenante et qursquoil lrsquoentretient chaque jour Ethellippourtant certains signes certes discrets

nous rappellent que le pire nrsquoest pas toujours sucircr Les hommes ne se reacutesignent pas tous

agrave ce monde sans amour sans passion reacuteciproque et non alieacutenante sans reconnaissance

mutuelle En effet beaucoup de personnes tiennent toujours agrave se marier et agrave avoir des

enfants (enfants qui comme le montrait Hegel constitue le deacutepassement drsquoune rela-

tion duelle qui pourrait devenir mortifegravere) les couples homosexuels veulent avoir des

enfants (gracircce agrave des megraveres porteuses) ou en adopter ils deacutesirent de plus en plus sou-

vent se marier ou entretenir des relations durables Les femmes ceacutelibataires deacutesirent

elles aussi se prolonger dans leurs enfants

Sur un tout autre plan lrsquoindividu atomiseacute commence agrave retrouver le goucirct du collectif

des groupes chaleureux (certes souvent il se trompe et adhegravere agrave des sectes qui lrsquoaliegravenent

Cependant malgreacute tout en choisissant cette voie ce qursquoil veut signifier crsquoest lrsquoimpos-

sibiliteacute de vivre seul coupeacute de ses semblables et ayant froid au cœur) des groupes

politiques qui se situent en dehors des partis politiques ou des syndicats traditionnels

Il retrouve aussi le goucirct de la politique crsquoest-agrave-dire lrsquointeacuterecirct pour la vie de la citeacute et donc

pour les humains qui la composent il srsquoinvestit dans des mouvements sociaux plus ou

moins novateurs et en tout eacutetat de cause non traditionnels (comme les mouvements

altermondialistes) Il srsquointeacuteresse agrave la construction europeacuteenne mecircme srsquoil combat les

formes actuelles de celle-ci

Eros nrsquoa dons pas dit son dernier mot Et vraisemblablement il ne le fera jamais car un

monde ougrave chacun est deacutefinitivement seacutepareacute des autres ne deviendrait qursquoune ldquoterre

deacutevasteacuteerdquo ougrave regravegnerait un eacuteternel hiver Ceci eacutetant Eros parle encore agrave voix basse et on

entend beaucoup mieux les clameurs de Thanatos Il nrsquoempecircche que lrsquoavenir est loin

drsquoecirctre joueacute Nous savons depuis longtemps que lorsque les socieacuteteacutes eacutevoluent dans un

certain sens des reacuteticences et des reacutesistances finissent par se faire jour Comme le

disait Houmllderlin ldquoquand croissent les peacuterils croicirct aussi ce qui sauverdquo Peut ecirctre agrave un

moment non preacutevisible un tregraves grand nombre drsquohommes pourront reacutepeacuteter agrave nouveau

les vers fameux de La Fontaine ldquoAmants heureux amants voulez-vous voyager que

ce soit aux rives prochaines soyez vous lrsquoun agrave lrsquoautre un monde toujours beau Tou-

jours divers toujours nouveau Une telle occurrence est peu probable Il ne srsquoagit pas

drsquoabandonner tout espoir de surprise car comme lrsquoeacutecrivait un autre poegravete Reneacute Char

ldquoA chaque effondrement des preuves le poegravete reacutepond par un salve drsquoavenirrdquo

203Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

Bibliographie

Bauman Z (2003) Lrsquoamour liquide Le Rouergue

Canetti E (1960) Masse et puissance Paris Gallimard

Devereux G (1973) Essais drsquoethnopsychiatrie geacuteneacuterale Paris Gallimard

Elias N (1989) The Germans Cambridge Polity Press

Enriquez E (1991) ldquoLe gardien des cleacutes systegraveme et volupteacute chez Saderdquo Em Les figures

du maicirctre Arcantegravere

Freud S (1930) Malaise dans la civilisation Paris PUF

Freud S (1939) Lrsquohomme Moiumlse et la religion monotheacuteiste Nouv

Giddens A (1992) La transformation de lrsquointimiteacute Le Rouergue

Le Chapelain A (1186) Comment maintenir lrsquoamour Rivages

Levi-Strauss C (1950) Introduction agrave lrsquoœuvre de M Mauss Sociologie et anthropologie

PUF

Luhman N (1982) Lrsquoamour comme passion Aubier

Simmel G (1921) La philosophie de lrsquoamour Rivages

Zaltzman N (2002) La gueacuterison psychologique Paris PUF

204

Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

LuizAugustoMonneratCeles

Freudeapoacutes-Freud

O movimento psicanaliacutetico como se sabe natildeo foi uniforme desde o iniacutecio e nem assim

permaneceu apesar dos esforccedilos de Freud e de certo grupo encabeccedilado por Ernest Jo-

nes para protegecirc-la de desvios de fundamento As consequecircncias mais imediatas (ainda

em vida de Freud) foram a ldquoexpulsatildeordquo e a dissidecircncia dos que se ldquodesviaramrdquo O caso de

Jung e Adler foram emblemaacuteticos Saacutendor Ferenczi sofreu reprimendas de Freud pelo

motivo de mudanccedilas introduzidas na teacutecnica de psicanaacutelise Escapou da dissidecircncia por

sua forte amizade pessoal com o mestre e por sua morte prematura De qualquer modo

suas contribuiccedilotildees soacute foram tardiamente incorporadas agrave psicanaacutelise

Apoacutes o periacuteodo de dissensotildees o movimento psicanaliacutetico passou por grande periacuteodo

de diferenciaccedilotildees de segmentaccedilotildees que muitas vezes terminaram por formar escolas

de psicanaacutelise A iniciar-se pelas divergecircncias entre os kleinianos e os freudianos na

205Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

Sociedade Britacircnica de Psicanaacutelise mediados em seguida por um terceiro grupo enca-

beccedilado por Winnicott A psicanaacutelise fez-se viver e prosperar com as diferenccedilas embora

as segmentaccedilotildees do movimentos natildeo conseguissem estabelecer fundamentos teoacutericos

e teacutecnicos comuns que pudessem eventualmente constituir sua siacutentese

Iniciadas em meados do seacuteculo XX as divergecircncias que natildeo foram expurgadas do mo-

vimento psicanaliacutetico introduziram mudanccedilas mais ou menos radicais em relaccedilatildeo agrave psi-

canaacutelise freudiana chamada padratildeo claacutessica ou tiacutepica Encontram-se presentes ainda

hoje conforme perspectivas adotadas para sua observaccedilatildeo malgrado os esforccedilos empre-

endido nos uacuteltimos 30 anos aproximadamente por parte de importantes psicanalistas

que buscam certa unidade de fundamentos

Antes poreacutem de discutir tais esforccedilos e suas direccedilotildees ou linhas de desenvolvimentos

que caracterizam a psicanaacutelise contemporacircnea exploraremos resumidamente segun-

do dois fundamentos a origem das divergecircncias que tanto fragmentaram a psicanaacutelise

levando ateacute mesmo ao limites de muitos de os segmentos natildeo reconhecerem outros

como de mesma iacutendole psicanaliacutetica Essa mesma fragmentaccedilatildeo constituiu o problema

para a psicanaacutelise contemporacircnea

IDivergecircnciasfundamentaisnointeriordapsicanaacutelise

Esquematicamente as divergecircncias na psicanaacutelise aconteceram de acordo com o privi-

leacutegio dado a um entre dois eixos atenccedilatildeo ao intrapsiacutequico ou atenccedilatildeo ao interpsiacutequico

(ou intersubjetivo) implicando entre as escolas que seguiram este ou aquele aspecto

diferenccedilas de fundamentos e variaccedilotildees teacutecnicas

1) Diferenccedilas de fundamentos

11) Caracterizaccedilatildeo esquemaacutetica das posiccedilotildees intrapsiacutequicas

Normalmente se identifica este fundamento com o freudiano o da psicanaacutelise padratildeo

Os fundamentos das perspectivas psicanaliacuteticas intrapsiacutequicas podem ser resumidos na

adoccedilatildeo prioritaacuteria de dois conceitos pulsatildeo e inconsciente

206

a) A adoccedilatildeo da pulsatildeo como uma caracteriacutestica congecircnita e permanente uma forccedila

quase selvagem que exige trabalho psiacutequico para a sua dominaccedilatildeo e eliminaccedilatildeo trouxe

ecircnfase agrave noccedilatildeo de conflitos Inicialmente o conflito que determina o psiquismo e sua

conformaccedilatildeo se estabelece entre a pulsatildeo sexual vs pulsatildeo de autoconservaccedilatildeo A pulsatildeo

sexual cuja definiccedilatildeo maacutexima se encontra no conceito de sexualidade infantil guia-se

pelo princiacutepio do prazer desprazer sem reconhecimento da realidade portanto sub-

metida a processos primaacuterios e precisa ser domesticada em favor da vida da autocon-

servaccedilatildeo A funccedilatildeo de autoconservaccedilatildeo eacute dada ao eu como uma instacircncia quase natural

num primeiro momento ndash a funccedilatildeo quase bioloacutegica de adaptaccedilatildeo agrave realidade desse ldquoor-

ganismo enlouquecidordquo pelas pulsotildees em busca de uma satisfaccedilatildeo condizente Prazer

sexual vs conservaccedilatildeo da vida sexualidade vs vida seria o entendimento mais basal do

conflito da psicanaacutelise votada ao intrapsiacutequico

Posteriormente os desenvolvimentos da psicanaacutelise os quais natildeo cabem aqui serem

esmiuccedilados25 conduziram a outras formas do entendimento do conflito pulsional sen-

do o mais caracteriacutestico a oposiccedilatildeo que se estabeleceu a partir de 1920 entre a pulsatildeo

de vida e a pulsatildeo de morte A pulsatildeo de vida conglomerou as funccedilotildees libidinais e da

autoconservaccedilatildeo embora se mantenha a ideia de que a pulsatildeo sexual seja guiada pelo

princiacutepio do esgotamento que a aproxima do princiacutepio da morte da ineacutercia do zero de

excitaccedilatildeo No entanto a pulsatildeo de vida privilegia o aspecto de ligamento da libido ou

seja Eros que aproxima e manteacutem unido os grupos Conduz tais grupos e agrupamen-

tos cada vez mais abrangentes em favor da vida e em certo sentido da vida prazerosa

dentro dos limites impostos pela realidade A pulsatildeo de vida ou Eros tambeacutem eacute uma

pulsatildeo culturada isto eacute submetida agraves exigecircncias e agraves perspectivas de satisfaccedilatildeo ofereci-

das pelo ambiente social e cultural Eros representa a integraccedilatildeo entre pulsatildeo e cultura

como o sugere Guimaratildees (2010 e 2011)

A pulsatildeo de morte ao contraacuterio parece natildeo manter afinidade com as formaccedilotildees cul-

turais exceto talvez que os grupamentos de humanos possam servir como ldquoobjetosrdquo

de sua satisfaccedilatildeo quando entatildeo ela passa a ser entendida como pulsatildeo de destrutivida-

de Destroacutei elos em busca da fragmentaccedilatildeo cada vez maior com vistas a cessaccedilatildeo da

25 A importacircncia e a radicalidade de transformaccedilatildeo da psicanaacutelise a partir desses desenvolvimentos pode ser muito apropriadamente acompanhada em Green (2005) e seu alcance e efeito de ruptura particularmente Parte II Cap 1 p 141-158

207Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

vida Ela se faz a responsaacutevel pelo mal-estar estruturalmente caracteriacutestico da condiccedilatildeo

humana em sua vida civilizada (lembrando que natildeo haacute outra certamente) A pulsatildeo

de morte tambeacutem nomeia um princiacutepio o princiacutepio pulsional por excelecircncia como o

observa Freud (19201976) O princiacutepio pulsional do zero da busca de esgotamento

de qualquer excitaccedilatildeo Como princiacutepio pulsional a pulsatildeo de morte natildeo eacute apreendida

por assim dizer como um ente mas como o que ldquoanimardquo toda pulsatildeo em busca de sua

satisfaccedilatildeo Um dos muitos paradoxos da psicanaacutelise princiacutepio de morte que anima Tal

princiacutepio do esgotamento eacute impedido em seu fim pela vida encadeando desta maneira

a satisfaccedilatildeo verdadeiramente eroacutetica (i eacute de Eros Eacute seu trabalho seu processo) As-

sim numa abordagem ligeira podemos delimitar duas perspectivas de entendimento

da pulsatildeo de morte e seu conflito com Eros Em sua compreensatildeo mais substantiva

distinguem-se duas pulsotildees que se confrontam e se esforccedilam em direccedilatildeo agraves suas satis-

faccedilotildees caracteriacutesticas a de morte como destrutividade e a de vida como buscas vinculan-

tes Elas se combinam e se apresentam na vida cotidiana nos meandros conflituosos de

satisfaccedilotildees e limites de satisfaccedilotildees a constituir a condiccedilatildeo estrutural do mal-estar Em

sua condiccedilatildeo de causa primaacuteria do trabalho psiacutequico em busca da satisfaccedilatildeo ela estaacute

aleacutem do princiacutepio do prazer e guia (a contragosto do psiquismo constituiacutedo) o processo

de satisfaccedilatildeo de toda pulsatildeo mesmo que para esse fim voltas rodeios desvios e repeti-

ccedilotildees intermedeiem seu esgotamento

O modelo pulsional eacute basicamente neuroacutetico em sua origem com ecircnfase nos processos

de recalcamento sobre a sexualidade infantil o que tem por consequecircncia uma visada

da psicanaacutelise sobre os aspectos infantis das neuroses Inclui-se posteriormente uma

perspectiva traumaacutetica das proacuteprias pulsotildees quando entatildeo o acento teoacuterico e cliacutenico

recai sobre a compulsatildeo agrave repeticcedilatildeo e seu aspecto destrutivo mas principalmente auto-

destrutivo

b) O segundo conceito que baliza e guia as abordagens intrapsiacutequicas eacute o inconsciente

A ideia eacute a de que o psiquismo se constitui primeiramente originariamente e predomi-

nantemente inconsciente Trata-se do inconsciente sistemaacutetico processual O incons-

ciente compreendido inicialmente como trabalho sendo o seu modelo o trabalho do so-

nho (como tambeacutem os trabalhos de formaccedilatildeo dos sintomas da inibiccedilatildeo e da anguacutestia)

O psiquismo eacute representacional composto por representaccedilotildees ideativas (representaccedilatildeo

de coisa representaccedilatildeo de palavra e representaccedilatildeo de objeto) e representaccedilatildeo do afeto mdash

de uma maneira particular a proacutepria pulsatildeo eacute uma representaccedilatildeo representaccedilatildeo da exi-

208

gecircncia de trabalho imposta ao psiquismo pelas excitaccedilotildees corporais As representaccedilotildees

de coisa caracterizam o inconsciente Submetido ao processo primaacuterio a distribuiccedilatildeo

da libido no inconsciente eacute por assim dizer livre Por isso paracircmetros como a racionali-

dade o tempo e a percepccedilatildeo da realidade natildeo estatildeo em consideraccedilatildeo no processamento

inconsciente que eacute ldquoassociativordquo (Roussillon 2012) Aliaacutes para ser preciso a associati-

vidade eacute caracteriacutestica de todo o psiquismo determinado que estaacute pelo inconsciente

Representaccedilotildees de palavra e representaccedilotildees de objeto completam a apreensatildeo do psi-

quismo As associaccedilotildees entre as representaccedilotildees de coisa e as representaccedilotildees de palavras

constituiratildeo secundariamente as representaccedilotildees de objeto O objeto eacute originariamente o

objeto da pulsatildeo apreendido secundariamente como objeto do desejo como os objetos

das interaccedilotildees dos viacutenculos de Eros e mesmo como objetos culturais (na sublimaccedilatildeo

por exemplo) Como objeto da pulsatildeo eacute em sua origem objeto auto-eroacutetico e parcial e o

trabalho em direccedilatildeo agrave apreensatildeo de um objeto total se faz necessaacuterio com o auxiacutelio do

complexo ediacutepico e da castraccedilatildeo e entrada por assim dizer no acircmbito dos processos

secundaacuterios que nunca seraacute completo e sinteticamente estruturado Portanto forma-

ccedilotildees inconscientes estaratildeo sempre presentes e a realidade se constitui como realidade

psiacutequica

Sugerimos entender o que Freud designa de realidade psiacutequica como proacuteximo ao pro-

cesso terciaacuterio proposto por Green (1979) Pois ela faz a mediaccedilatildeo entre o inconsciente

e o preacute-conscienteconsciente e entre o psiquismo com suas fantasias de desejo e a

realidade objetiva ou histoacuterica (como a ela se refere Freud) A vida eacute particularmente

entendida permitam-nos a liberdade de expressatildeo como em ldquosonhordquo Assim ao menos

eacute o que pode ser apreendido da vivecircncia neuroacutetica

O modelo neuroacutetico do conflito entre as fantasias de desejo e as forccedilas do recalque seraacute

ampliado para o modelo paranoico e melancoacutelico (Celes 2010) Cada um desses dois

se diferencia e tem por base os desenvolvimentos iniciados por Freud a partir de 1920

e seguido pelos freudianos apoacutes-Freud Entatildeo uma metapsicologia para as psicoses

inicia-se na psicanaacutelise de maneira mais sistemaacutetica tendo por centro as afecccedilotildees do

eu e com elas as consideraccedilotildees sobre a perda da realidade As noccedilotildees de cisotildees do eu

incluindo sua cisatildeo estruturante entre eu e supereu (e os ideais do eu) mas tambeacutem a

cisatildeo por consequecircncia das proacuteprias defesas do eu adiantam-se em relaccedilatildeo aos confli-

tos neuroacuteticos entre recalcado e recalque embora este uacuteltimo padratildeo natildeo seja defini-

tivamente abandonado Convivem modelos distintos que se sobrepotildeem por vezes se

209Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

substituem mas natildeo se excluem no pensamento psicanaliacutetico intrapsiacutequico e mesmo

no freudiano

As fantasias e desejos encontram-se em foco na cliacutenica Trata-se aqui do modelo do

sonho em oposiccedilatildeo ao privileacutegio do modelo matildee-bebecirc adotado pela psicanaacutelise inter-

subjetiva tal como Green (2003) sugere distinguir os modelos psicanaliacuteticos dominan-

tes na segunda metade do seacuteculo passado No entanto o modelo do sonho de que fala

Green natildeo se limite aos achados da Interpretaccedilatildeo dos sonhos (1900a) e adjacecircncias

questatildeo que ao fim retomaremos Isto eacute natildeo se restringe ao periacuteodo do desenvolvimen-

to psicanaliacutetico freudiano que Kristeva (1996) caracteriza como otimismo com a lingua-

gem Sabemos que a chamada psicanaacutelise tiacutepica ou padratildeo rapidamente encontrou seus

limites e que os freudianos natildeo ignoraram seus problemas Natildeo eacute difiacutecil entender que

a chamada feita por Green para o retorno ao modelo do sonho diga mais respeito a natildeo

nos esquecermos apressadamente da riqueza do que ali se estabeleceu e desenvolveu

lanccedilando-se muito aleacutem da interpretaccedilatildeo dos sonhos dos atos falhos e dos chistes

Na perspectiva da psicanaacutelise intrapsiacutequica os processos psiacutequicos mais significativa-

mente considerados satildeo o recalque (precisamente o mecanismo responsaacutevel pela sepa-

raccedilatildeo do psiquismo entre consciente e inconsciente) a projeccedilatildeo e a identificaccedilatildeo (cujo

caraacuteter original eacute histeacuterico dizendo apressadamente)

12) Caracterizaccedilatildeo esquemaacutetica das posiccedilotildees interpsiacutequicas ou intersubjetivas

Satildeo perspectivas assumidamente apoacutes-Freud e buscam ampliar complementar e mes-

mo suplantar a psicanaacutelise freudiana a padratildeo ou tiacutepica estabelecendo fundamentos

distintos dos intrapsiacutequicos e modificando consequentemente secundo entendem sua

teacutecnica Psicanaacutelise modifica foi o nome que lhe deu Winnicott As perspectivas psica-

naliacuteticas interpsiacutequicas ou intersubjetivas privilegiam a compreensatildeo da constituiccedilatildeo

do psiquismo e de suas dificuldades nas relaccedilotildees com o mundo externo nos conflitos

de ldquointeressesrdquo entre o sujeito e o objeto ou o deacuteficit entre as necessidades e respos-

tas agraves necessidades proporcionadas pelos objetos O externo pode ser tomado como o

ambiente como tal (Winnicott) ou como os objetos de que o sujeito depende em seu

periacuteodo inicial (desamparado e dependente) de vida Duas noccedilotildees guiam a psicanaacutelise

que a partir daiacute se desenvolveu e tambeacutem se dispersou relaccedilotildees de objeto e inconsciente

compartilhado (sugerimos como expressatildeo provisoacuteria)

210

a) A importacircncia das relaccedilotildees de objeto para o entendimento da constituiccedilatildeo do psiquis-

mo e de suas dificuldades e patologias bem como para a apreensatildeo do sofrimentos dos

sujeitos baseia-se numa diferenccedila de posiccedilatildeo entre o sujeito desamparado e dependen-

te e o objeto (adulto) que dele se ocupa Desde Ferenczi com a proposiccedilatildeo da diferenccedila

entre as liacutenguas de ternura e sexual que se estabelece necessariamente mdash antropologi-

camente poderiacuteamos afirmar mdash entre a crianccedila e o adulto passando pela impossibili-

dade do atendimento sempre adequado das necessidades do ego de Fairbairn pela falha

do essencial asseguramento (holding) de Winnicott ou da contenccedilatildeo (containing) de

Bion ateacute a condiccedilatildeo da matildee morta de Green a dificuldade se estabelece entre sujeito x

objeto eu x outro self x natildeo-eu etc No entanto essas dificuldades das relaccedilotildees e das sa-

tisfaccedilotildees de necessidades natildeo se constituem primariamente como conflitos mas como

falhas na constituiccedilatildeo dos processos psiacutequicos ou dos limites do psiquismo O conflito

no seu sentido mais originaacuterio somente apareceraacute de modo secundaacuterio de forma de-

fensiva para obstruir as falhas primitivas das relaccedilotildees de objeto Podemos pensar no

falso self nos aparatos libidinais para a proteccedilatildeo da esquizoidia estrutural do Fairbairn

nas evacuaccedilotildees dos objetos maus internalizadoshellip

Teoricamente a atenccedilatildeo se volta para as relaccedilotildees primitivas em busca das condiccedilotildees

de constituiccedilatildeo do eu (self sujeito subjetividade etc) mas tambeacutem do psiquismo em

seus processos baacutesicos Questotildees de tal ordem satildeo consideradas primitivas anteriores

agraves consideraccedilotildees pulsionais e necessaacuterias para sua instalaccedilatildeo Os conflitos ediacutepico e de

castraccedilatildeo satildeo tomados como formaccedilotildees segundas baseadas que estriam na condiccedilatildeo

de miacutenima totalizaccedilatildeo do psiquismo Seja no sentido de sua adequada diferenciaccedilatildeo do

objeto seja em sua constituiccedilatildeo simboacutelica Em geral parte-se do pressuposto de que o

psiquismo natildeo eacute originariamente representacional cuja constituiccedilatildeo dependeraacute de ade-

quada simbolizaccedilatildeo Falhas no processo da simbolizaccedilatildeo proporcionadas pelos objetos

acarretariam estados de sofrimento natildeo-neuroacuteticos que requerem apropriada interven-

ccedilatildeo terapecircutica distinta da proporcionada pela psicanaacutelise padratildeo

Deve-se considerar neste aspecto que a estrutura psiacutequica eacute fundamentalmente egoica

(Fairbairn) ou se trata da constituiccedilatildeo de um self (Winnicott) um envelope por assim

dizer um continente para o psiquismo O outro e o objeto estabelecem as condiccedilotildees

de constituiccedilatildeo do eu e do self Nessa perspectiva amplamente falando de uma base

egoica do psiquismo as instacircncias psiacutequicas se borram Alguns autores como Green

ou Roussillon que pretendem manter viacutenculos com a psicanaacutelise freudiana veem na

211Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

segunda toacutepica freudiana onde o ego eacute ele mesmo (segundo a leitura que se faccedila) in-

consciente certa inspiraccedilatildeo para a indiferenciaccedilatildeo das instacircncias psiacutequicas No entanto

tal indiferenciaccedilatildeo seria ela mesma uma condiccedilatildeo primitiva mantida mais ou menos

grave em consequecircncia da adequada ou inadequada responsividade dos objetos Ainda

na linha do psiquismo egoico Figueiredo (2009a) mostra como os fragmentos natildeo sin-

tetizados dos objetos se depositam na forma de um supra-eu arcaico que a seguir seratildeo

evacuados nos objetos

b) O borratildeo por assim dizer das instacircncias psiacutequicas conduz agrave consideraccedilatildeo da possibi-

lidade de alheamento de partes do psiquismo A ideia do inconsciente compartilhado eacute

de que ele se passa entre os sujeitos envolvidos seja entre o sujeito e o objeto primaacuterio

seja entre os sujeitos da anaacutelise a dupla analiacutetica (as trocas transferenciais mdash contra-

transferenciais o terceiro analiacutetico de Ogden 1996 etc) Sugere tambeacutem a compreen-

satildeo da possibilidade da exterioridade das funccedilotildees psiacutequicas impedidas de se realizarem

no sujeito De modo geral desaparece a ideia de um inconsciente sistemaacutetico separado

do eu

O inconsciente quando considerado eacute um inconsciente egoico ele mesmo partes do

ego cindidas do ego central e recalcadas (Fairbairn 19521999) Ou o inconsciente per-

de seu sentido como instacircncia (compreensatildeo que se pode apreender da obra de Winni-

cott) Ou suas funccedilotildees mais elementares satildeo exercidas pelo objeto (kleinianos tardios

Bion Ogden etc) Tambeacutem o analista assume uma funccedilatildeo de instacircncia psiacutequica na

anaacutelise como a do superego complacente de Fairbairn e como os de desenvolvimentos

mais recentes como o mostra Figueiredo (2009a) A base da ideia da instacircncia psiacutequica

dada ao outro ou compartilhado com o objeto tambeacutem eacute tomada de Freud (1921c1976)

quando sugere que nas formaccedilotildees grupais com forte lideranccedila entregamos nossos ide-

ais de ego ao liacuteder justamente Tal posiccedilatildeo em psicanaacutelise se justifica na especificidade

dos casos atendidos psicoacuteticos e principalmente borderlines (esse enorme campo li-

miacutetrofe do qual afinal sabe-se tatildeo pouco)

Os processos psiacutequicos mais significativamente considerados satildeo a cisatildeo (muito aleacutem

do recalque que distingue o psiquismo em suas partes se trata de um processo que

incide sobre o eu dividindo-o em partes boas e maacutes) a identificaccedilatildeo projetiva (meca-

nismo responsaacutevel pela evacuaccedilatildeo das partes maacutes e cindidas do eu) e a capacidade de

elaboraccedilatildeo do objeto primaacuterio sua habilidade fantasiacutestica (a matildee suficientemente boa

212

de Winnicott mas tambeacutem o objeto interpretativo de alguns kleinianos e o estado de

recircverie de Bion) Nessas perspectivas a capacidade de constacircncia de asseguramento e

de elaboraccedilatildeo dos objetos primaacuterios satildeo os responsaacuteveis pela constituiccedilatildeo dos sujeitos e

pela integridade de suas subjetividades de seus psiquismos

2) Variaccedilotildees teacutecnicas

21) Caracterizaccedilatildeo esquemaacutetica da psicanaacutelise voltada para o intrapsiacutequico

Aplica-se plenamente a regra fundamental da associaccedilatildeo livre Supotildee um aparelho psiacute-

quico associativo representacional e se busca alcanccedilar as fantasias e desejos recalcados

A interpretaccedilatildeo do sonho constitui seu modelo teacutecnico modelo do sonho Embora esse

modelo natildeo se esgote no sonho ou nas praacuteticas de interpretaccedilatildeo dos atos falhos ou dos

chistes A anaacutelise trata da recordaccedilatildeo da repeticcedilatildeo e da elaboraccedilatildeo Eacute a anaacutelise do in-

consciente o que se pratica tanto se busca sua investigaccedilatildeo como se atende ao objetivo

terapecircutico Nesta perspectiva tratam-se no trabalho psicanaacutelise da inibiccedilatildeo do sintoma

e da anguacutestia

Mas tambeacutem ainda que em tal base se busca a anaacutelise do ego suas relaccedilotildees com o

objeto e tem-se a redistribuiccedilatildeo da libido como meta

A interpretaccedilatildeo eacute o meacutetodo caracteriacutestico Tal interpretaccedilatildeo natildeo significa uma herme-

necircutica simplesmente Ela supotildee a mobilizaccedilatildeo da pulsatildeo e a possibilidade de seu des-

locamento de seu escoamento pela via da palavra Visa-se a adequada simbolizaccedilatildeo me-

lhor dizendo a adequada representaccedilatildeo das experiecircncias sexuais infantis organizadas

inconscientemente em cenas em fantasias Como o sugere Freud (1905e1972) sua

meta teoacuterica eacute tornar o inconsciente consciente

A oposiccedilatildeo dos sujeitos agrave recordaccedilatildeo do recalcado conduz agrave compreensatildeo da psica-

naacutelise como trabalho de vencer resistecircncias Tal trabalho define a posiccedilatildeo do analista

privilegiando-se sua escuta O analista tem posiccedilatildeo fundamental na forma da escuta li-

vremente flutuante Escuta sem que se hierarquize o discurso do analisando Como seu

discurso eacute predominantemente narrativo e raramente se realiza explicitamente como

213Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

associativo a funccedilatildeo da escuta do analista eacute a de ouvir a associaccedilatildeo implicada na narrati-

va do analisando (como o sugere Green 1988) A posiccedilatildeo do analista eacute basicamente a do

silecircncio (silecircncio vivo de trabalho) e o da paciecircncia em deixar vir o que eacute inconsciente

Posiccedilatildeo de silecircncio que deve ser entendida em seu sentido metafoacuterico Trata-se do silecircn-

cio que deixe vir a fala do analisando e para que se a receba

A interpretaccedilatildeo tem o sentido da confrontaccedilatildeo (Figueiredo 2012a) A de sugerir senti-

dos distintos dos que se manifestam no discurso do analisando Confrontaccedilatildeo que natildeo

pode ser entendida como jogo de esperteza entre analista e analisando A confrontaccedilatildeo

supotildee o tempo adequado o momento em que seja possiacutevel ao analisando ouvir ele tam-

beacutem o que sua fala diz pela boca do analista e que ele mesmo o analisando natildeo ouviu

enquanto dizia Trata-se de um trabalho de fazer falar e fazer ouvir (Celes 2005) Vale

lembrar a compreensatildeo lacaniana de que o inconsciente eacute aquilo que constantemente

nos fala mas agrave qual fala natildeo damos a menor bola A resistecircncia e o entendimento da

psicanaacutelise como trabalho de vencer resistecircncias ganham aiacute pleno sentido

A transferecircncia eacute o suporte teacutecnico (fator teacutecnico assim a entende Freud) para tornar

possiacutevel a fala em associaccedilatildeo e ouvir em atenccedilatildeo flutuante Ela carrega uma forccedila su-

gestiva a forccedila para que o analisando ouccedila o que lhe diz o analista Assim a atitude de

reserva (Figueiredo 2008) e da benevolente compreensatildeo (Freud) regem a posiccedilatildeo do

analista no trabalho psicanaacutelise de exploraccedilatildeo associativa do inconsciente A contra-

transferecircncia tem um lugar secundaacuterio Natildeo porque se a ignora e natildeo se a tome em

consideraccedilatildeo Mas porque ela natildeo eacute propriamente explorada como instrumento de anaacute-

lise Isso ganha sentido no fundamento intrapsiacutequico do conflito A transferecircncia ela

mesma eacute a condiccedilatildeo da anaacutelise define a situaccedilatildeo analiacutetica e se visa ao cabo sua ldquodisso-

luccedilatildeordquo fim aliaacutes nunca alcanccedilado mas horizonte de fazer passar o passado Por isso

busca-se interpretaacute-la isto eacute apontar seu sentido infantil e seu caraacuteter transferido (cujo

uso do conceito ldquotransferecircnciardquo pode mascarar que em sua interpretaccedilatildeo se objetive

revelar seu caraacuteter transferido) O diaacutelogo analiacutetico eacute regressivo em direccedilatildeo ao infantil

mesmo que ele se atualize no presente da anaacutelise Atualiza-se na forma da posteriorida-

de isto eacute da ressignificaccedilatildeo do recalcado

Ao fim e ao cabo com a introduccedilatildeo da pulsatildeo de morte ou da importacircncia da destruti-

vidade em anaacutelise deve-se considerar a capacidade de o analista suportar as investidas

transferenciais destrutivas para que a interpretaccedilatildeo seja possiacutevel Toda a compreensatildeo

214

da anaacutelise da interpretaccedilatildeo da sexualidade ao suporte e interpretaccedilatildeo da destrutividade

baseia-se do enquadre claacutessico divatilde (que eacute o berccedilo da psicanaacutelise) poltrona (lugar de

reserva e atenccedilatildeo flutuante do analista) e a fala como meio eficaz para se alcanccedilar o que

se deseja isto eacute o inconsciente recalcado

Como jaacute se disse o modelo fundamental eacute o sonho e a psicanaacutelise eacute da neurose Natildeo se

quer dizer com esta restriccedilatildeo neurose que o sofrimento a que se dedica a psicanaacutelise

seja menos relevante nem que a psicanaacutelise seja faacutecil e o recalque esteja agrave matildeo para ser

desfeito Jaacute se repetiu que a histeria natildeo tem cura o que quer dizer que sua estrutura

(estrutura baacutesica da neurose segundo Freud o inconsciente) natildeo se desfaz Eacute o que re-

presenta a conquista fundamental da psicanaacutelise qual seja a de que o inconsciente natildeo

se esgota (embora seja finito como o sugere pensar Leclair 1977)

22) Caracterizaccedilatildeo esquemaacutetica da psicanaacutelise voltada para o interpsiacutequico (intersubjetivo)

Natildeo se aplica com facilidade a regra fundamental da associaccedilatildeo livre (Ogden 1996)

Existe nestes casos a suposiccedilatildeo de que natildeo houve suficiente simbolizaccedilatildeo do psiquis-

mo ou suficiente siacutentese narciacutesica para que a palavra associativa seja o carro chefe da

revelaccedilatildeo do inconsciente Se busca com o diaacutelogo analiacutetico restabelecer as condiccedilotildees

primitivas de constituiccedilatildeo do psiquismo com a finalidade de sua reconstruccedilatildeo de sanar

falhas de seu processo de sua delimitaccedilatildeo e falhas de simbolizaccedilatildeo O movimento re-

gressivo eacute concreto diferenciando-se do movimento regressivo freudiano que eacute toacutepico

processual e temporal

A regressatildeo em anaacutelise em substituiccedilatildeo ao retraimento (Winnicott 1978) eacute meta e meio

de accedilatildeo do analista Pode-se entender que o analista age sua interpretaccedilatildeo eacute entendida

(como o sugere Winnicott) como ato de continecircncia de acolhimento de asseguramen-

to etc Neste sentido natildeo se espera a associaccedilatildeo do analisando mas sua accedilatildeo e ateacute mes-

mo sua passagem ao ato como se diz O ato natildeo eacute principalmente interpretado mas

contido embora se possa pensar o papel de contenccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo

O analista no caso eacute mais presente do que aquele do conflito intrapsiacutequico A con-

tratransferecircncia ganha sentido como instrumento da anaacutelise (Heimann 19491989)

Ela pode ser usada para fomentar a interpretaccedilatildeo que privilegiaraacute o ldquoaqui e agorardquo da

anaacutelise (como na posiccedilatildeo kleiniana pois os conflitos estatildeo presentificados e realizados

215Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

na relaccedilatildeo transferencialmdashcontratransferencial) ou ela seraacute meio de ldquodigestatildeordquo do que

o analista recebe do analisando na forma da identificaccedilatildeo projetiva (seja a ldquodigestatildeordquo

como a ldquomaternagemrdquo winnicottiana pois a regressatildeo eacute efetiva e se realiza no presente

da sessatildeo de anaacutelise seja a ldquodigestatildeordquo sonhada recircverie como as propostas por Bion

Ogden dentre outros)

Sustenta-se a suposiccedilatildeo de uma quase equivalecircncia do objeto externo e objeto interno

que faz entender a participaccedilatildeo efetiva do analista como instacircncia psiacutequica do anali-

sando E o analista como receptaacuteculo direto (ou quase) das evacuaccedilotildees do analisando

Assim o analista ocupa a funccedilatildeo superegoica complacente (Fairbairn op cit Figueire-

do 2009a) para o e do analisando com a finalidade de ingerir-se nas necessaacuterias elabo-

raccedilotildees de simbolizaccedilatildeo visando uma reconstituiccedilatildeo do psiquismo do analisante Ou o

analista eacute ele mesmo a instacircncia que elabora eacute simbolizante (Bion Ogden) fazendo-se

vez do objeto primitivo (egoico por evidente) e faz retornar ao paciente de modo cons-

titutivo o que sobre o analista foi evacuado Em qualquer das formulaccedilotildees admite-se a

natildeo completa diferenciaccedilatildeo entre analisando e analista como reproduccedilatildeo da situaccedilatildeo

primitiva de constituiccedilatildeo do psiquismo de indiferenciaccedilatildeo entre o bebecirc e a matildee o su-

jeito nascente e o objeto ou o meio

O enquadre como jaacute se pode supor varia segundo as necessidades do analisando Os

quadros natildeo-neuroacuteticos as psicoses e particularmente os chamados borderlines mdash

problemaacuteticas narciacutesico-identitaacuterias como o diz Roussillon (2012) mdash constituem-se a

clientela desta anaacutelise modificada Nessas situaccedilotildees nem sempre o divatilde e a abstinecircncia

do analista satildeo possiacuteveis de ser mantidos Tambeacutem outros fatores do enquadre padratildeo

satildeo ou podem ser modificados como o tempo das sessotildees a sua frequecircncia semanal e

a admissatildeo de uma atitude psicoteraacutepica de contenccedilatildeo e acolhimento

A reserva do analista se torna no caso ainda mais radicalmente necessaacuteria embora

e mesmo porque ele abandona a posiccedilatildeo da abstinecircncia (da neutralidade interessada

como o diria Green) Sua participaccedilatildeo na dinacircmica analiacutetica uma vez que ela natildeo estaacute

controlada pelas regras fundamentais da associaccedilatildeo livre e da escuta flutuante pela

abstinecircncia e nem mesmo pela posiccedilatildeo invisiacutevel entre analista e analisando como na

psicanaacutelise padratildeo corre mais iminentemente o risco de conduzir a anaacutelise como uma

relaccedilatildeo dual dispensando-se a mediaccedilatildeo necessaacuteria O que quer dizer a mediaccedilatildeo sim-

boacutelica e simbolizante sem a qual a relaccedilatildeo analiacutetica pode se transformar numa relaccedilatildeo

216

de quase exclusiva intimidade como se diz ou simplesmente uma relaccedilatildeo imaginaacuteria

(Lacan 1979 particularmente p 77-86)

Os riscos da seduccedilatildeo provocada pelo analista e do uso sugestivo da contratransferecircncia

ficam mais eminentes daiacute que se impotildee o cuidado redobrado do analista como natildeo o

cansou de expressar Winnicott reconhecendo o oacutedio na contratransferecircncia e adotando

o cuidado meticuloso de se manter invariante o enquadre uma vez ajustado adequada-

mente agrave singularidade do paciente

Natildeo se trata mais do modelo do sonho mas do modelo matildee-bebecirc (Green) no qual

predomina a situaccedilatildeo de desamparo e dependecircncia precoces Modelo que se atualiza

na cliacutenica Essa concepccedilatildeo da psicanaacutelise pode afastaacute-la profundamente de seu padratildeo

sendo reinventada a cada vez com o risco de muito se afastar da ldquosituaccedilatildeo analisanterdquo

(Donnet 2001)

II-Apsicanaacutelisecontemporacircnea

A concepccedilatildeo assim cindida da psicanaacutelise provocou sua segmentaccedilatildeo representada

em escolas mais ou menos dogmaacuteticas que trouxeram uma dispersatildeo criacutetica do movi-

mento psicanaliacutetico Importantes psicanalistas reagiram em busca de uma possiacutevel fun-

damentaccedilatildeo que atenda agraves exigecircncias das dificuldades intrapsiacutequicas e interpsiacutequicas

Natildeo dogmaacutetica em sua intenccedilatildeo a busca de uma unificaccedilatildeo teria que atender a diversas

das questotildees que a psicanaacutelise se pocircs embora se reconheccedila a caracteriacutestica sempre in-

completa da psicanaacutelise portanto sua resistecircncia a siacutenteses abrangentes e gerais Sugiro

pensar uma siacutentese possiacutevel metaforicamente como aquela proporcionada pela genita-

lidade em relaccedilatildeo agrave dispersatildeo e parcializaccedilatildeo da sexualidade infantil ou como a siacutentese

alcanccedilada pelo narcisismo primaacuterio em relaccedilatildeo agrave fragmentaccedilatildeo auto-eroacutetica

Na tarefa de se elaborar tais siacutenteses como atravessamento de paradigmas (Figueiredo)

portanto natildeo como aglutinaccedilatildeo ou convergecircncia da dispersatildeo das escolas a psicanaacutelise

contemporacircnea se projeta para o futuro (Green 2010) como reconhecimento de que

muito da segmentaccedilatildeo das escolas permanece vigente de modo sutil ou presentes em

dogmatismo disfarccedilado apesar dos esforccedilos ditos contemporacircneos

217Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

Na tentativa da reflexatildeo para o presente-futuro da psicanaacutelise antecipando por assim

dizer seus problemas e suas soluccedilotildees destacam-se a nosso ver duas tendecircncias que

resumem as reflexotildees psicanaliacuteticas contemporacircneas Elas se apoiam mais ou menos

ainda que natildeo sejam derivaccedilotildees diretas nas reflexotildees ldquoda psicanaacutelises modernardquo (o ter-

mo eacute de Green 1979204) que viemos de apresentar fazendo pesar ora a ideia da rela-

ccedilatildeo de objeto ora a da pulsatildeo embora busque responder a ambas as problemaacuteticas que

eacute o quecirc a rigor pode caracterizar uma psicanaacutelise contemporacircnea distinta das que se

expressam nas formas segmentadas que discutimos acima

No entanto deve-se alertar para o fato de que os esforccedilos de ldquosiacutentesesrdquo que se fazem

neste iniacutecio do seacutec XXI natildeo resolveram segundo nosso julgamento de modo defini-

tivo a unificaccedilatildeo dos fundamentos da psicanaacutelise sob paracircmetros amplamente e comu-

mente acolhidos A problematizaccedilatildeo dos fundamentos da psicanaacutelise e de sua cliacutenica

permanece atual e se atualiza inclusive porque a psicanaacutelise se adapta agraves mudanccedilas de

demandas de tratamento caracteriacutesticas de eacutepocas e situaccedilotildees distintas mdash isto eacute ela eacute

sensiacutevel agraves transformaccedilotildees soacutecio-culturais (Celes 2003)

De fato em duas grandes direccedilotildees parece-nos razoaacutevel circunscrever os desenvolvimen-

tos psicanaliacuteticos atuais nos seus propoacutesitos de atender a necessaacuteria articulaccedilatildeo entre

pulsatildeo e relaccedilotildees de objeto (resumidamente falando)

1) Psicanaacutelise dos cuidados gerais

Nesta perspectiva a direccedilatildeo para o desenvolvimento do entendimento da psicanaacutelise

atual se expressa segundo um julgamento muito raacutepido no que se convencionou cha-

mar de ldquoTeoria Geral do Cuidadordquo (Figueiredo 2009b) Ressalte-se que Figueiredo na

obra citada natildeo faz a extensatildeo de alcance que aqui proporemos Mas nossas ideias ali se

fomentaram

Nesta perspectiva de desenvolvimento se supotildee a psicanaacutelise sendo originaacuteria de uma

teoria (mas principalmente praacutetica ressalte-se) do cuidado na qual o sujeito na tota-

lidade de suas vivecircncias constitutivas seja tomado como objeto da teoria e da cliacutenica

psicanaliacutetica A extensatildeo agrave formulaccedilatildeo de Figueiredo que fazemos por nossa conta pode

ser resumida no tiacutetulo deste subitem psicanaacutelise dos cuidados gerais

218

Esta concepccedilatildeo da psicanaacutelise apoia-se mais ou eacute mais particularmente herdeira da psi-

canaacutelise das teorias das relaccedilotildees de objeto (Bollas 1987 Golse 2003 Ogden 2003 Zor-

nig 2008 etc) As questotildees das relaccedilotildees de objeto primitivas na constituiccedilatildeo psiacutequica

e estruturaccedilatildeo subjetiva satildeo privilegiadas na perspectiva metapsicoloacutegica sem deixar

de se considerar os fundamentos pulsionais embora permaneccedilam marginais Trata-

-se aqui como na perspectiva que abaixo descreveremos de uma questatildeo de peso nos

pratos da balanccedila na qual historicamente se constituiu a psicanaacutelise a partir de meados

do seacutec XX

A praacutetica dos cuidados aleacutem de abrir pelo menos teoricamente a possibilidade e le-

gitimidade para intervenccedilotildees multi- ou interdisciplinares adota no fazer do analista

procedimentos muito aleacutem dos determinados pelo enquadre psicanaliacutetico estrito senso

guiado pela associaccedilatildeo livre e pela atenccedilatildeo flutuante O cuidado geral com os sujeitos

da anaacutelise que tambeacutem nos parece presentes nas propostas cliacutenicas de Khan (1984)

embora natildeo nos mesmos termos conduz o analista a uma atenccedilatildeo com a vida geral dos

sujeitos mesmo quando a atitude do analista permanece limitada agrave sala de anaacutelise isto

eacute mesmo quando ele natildeo saia em campo em atividades francamente multidisciplinar

e extramuros (Laplanche) como em hospitais cliacutenicas gerais juizados de menores e

famiacutelia atividades preventivas de vaacuterias iacutendoles etc mdash neste caso assemelha-se a uma

psicanaacutelise aplicada como bem o lembrou Luciano Antunes Figueiredo de Souza (co-

municado pessoal)

O interesse pelas vivecircncias quotidianas dos sujeitos uma ecircnfase ainda que residual da

atenccedilatildeo ao aqui e agora da anaacutelise a adoccedilatildeo de uma funccedilatildeo superegoica benevolente

(heranccedila talvez das proposiccedilotildees de Fairbairn 19521999) marcam dentre outras ca-

racteriacutesticas uma dispersatildeo da psicanaacutelise em seus propoacutesitos uma certa criacutetica ao

caraacuteter analiacutetico da psicanaacutelise como meacutetodo bem como uma releitura (para usar um

termo em voga) da situaccedilatildeo de anaacutelise (do enquadre) Sua praacutetica sugere ainda que

natildeo explicitamente uma recuperaccedilatildeo ou reabilitaccedilatildeo da noccedilatildeo de sujeito implicada no

pressuposto praacutetico da constituiccedilatildeo de siacutenteses mais ou menos autocircnomas das falhas

narcisistas (ainda que tal conceito possa estar ele mesmo ausente) ou mais precisamen-

te de uma recuperaccedilatildeo egoica de seu sonhado assenhoramento de partes cindidas ou

inconscientes

219Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

Muito particularmente essa tendecircncia da psicanaacutelise contemporacircnea se aproxima do fa-

zer meacutedico e das questotildees psicopatoloacutegicas Melhor talvez seria dizer que a psicanaacutelise

se aproxima das disciplinas da sauacutede Segundo entendemos a psicanaacutelise assim perde

um tanto de sua iacutendole criacutetica inaugurada na Interpretaccedilatildeo dos sonhos com a descoberta

do inconsciente

2) Psicanaacutelise mais restrita como simbolizaccedilatildeo por meio da palavra

Na outra perspectiva tomando como exemplo e representante desta vertente a obra de

Andreacute Green (particularmente 2005) e a psicanaacutelise principalmente francesa mas

natildeo somente a revisatildeo de que falamos pretende manter-se fiel ao fundamento pulsional

freudiano Tambeacutem aqui representados pela reflexatildeo de outros psicanalistas abaixo

citados busca-se a unificaccedilatildeo das problemaacuteticas que acossaram a psicanaacutelise moder-

na qual seja a determinaccedilatildeo das relaccedilotildees de objeto na constituiccedilatildeo e estruturaccedilatildeo do

psiquismo mantendo agraves questotildees proacuteprias agrave pulsionalidade O peso recai sobre este

uacuteltimo aspecto estendendo-se agraves formulaccedilotildees sobre o narcisismo Diz-se entatildeo de pro-

blemaacuteticas narciacutesico-identitaacuterias (Roussillon 2012) isto eacute busca-se pela formaccedilatildeo da

siacutentese narciacutesica e natildeo das falhas constitutivas com o entendimento de que algo falta

ao ego e precisa ser reconstituiacutedo Ao narcisismo aderem-se as questotildees do conflito pul-

sional particularmente com o papel exercido pela pulsatildeo de morte mas tambeacutem pelas

cadeias formativas de Eros (Green 2000)

Isso natildeo eacute possiacutevel sem se adotar uma leitura criacutetica de Freud uma leitura em poste-

rioridade na qual se busca a justificativa para certa modificaccedilatildeo da praacutetica psicanaliacutetica

com base natildeo mais na diferenccedila de demandas determinadas pelos quadros psicopato-

loacutegicos (psicoses borderlines particularmente e organizaccedilotildees narcisistas de um modo

geral) Green (2005) sugere tomar a analisabilidade dos sujeitos como condiccedilatildeo para

mudanccedilas que se faccedilam necessaacuterias no enquadre Pois o enquadre permanece fundado

na associaccedilatildeo livre e atenccedilatildeo flutuante Mesmo nos casos em que o sofrimento natildeo seja

neuroacutetico o enquadre eacute posse do analista que o manteacutem nas situaccedilotildees em que o setting

fisicamente varia Adota-se uma conversa psicanaliacutetica ou um diaacutelogo em que o analista

permanece flutuantemente atendo aos traccedilos associativos das narrativas dos paciente

A analisabilidade significa a possibilidade ou as condiccedilotildees da submissatildeo dos sujeitos

ao enquadre psicanaliacutetico Percebe-se assim que para o autor ultimamente citado o

220

enquadre (principalmente definido pela associaccedilatildeo livre e atenccedilatildeo flutuante como ldquosi-

tuaccedilatildeo analisanterdquo Donnet 2001) eacute o vetor o fundamento da definiccedilatildeo do tratamento

psicanaliacutetico

Como haacute demandas que chegam agrave psicanaacutelise mas que natildeo se adequariam ao enqua-

dre a saiacuteda proposta por Green (e por outros embora natildeo necessariamente com a mes-

ma terminologia como Donnet 2001 Figueiredo 2012a Kernberg 1979 1995 Par-

sons 2002 2005 Roussillon 19992008 2005 2012 etc) seraacute a diferenciaccedilatildeo entre

psicanaacutelise e psicoterapia exercida por psicanalistas

O enquadre no caso continua dominante pois preconiza-se para a psicoterapia a pre-

senccedila do enquadre internalizado pelo analista efeito de sua formaccedilatildeo analiacutetica que no

caso sugere-se rigorosa dando ecircnfase agrave anaacutelise pessoal e agrave supervisatildeo

Natildeo cabe agora desenvolver todo o tema seus desdobramentos e suas consequecircncias

De qualquer modo e ainda que se entenda que o psicanalista nem sempre faz psica-

naacutelise a ideia da psicoterapia exercida por psicanalistas (condiccedilatildeo aliaacutes sugerida em

1945 por Winnicott 1978) natildeo deixa de introduzir questotildees sobre os fundamentos da

psicanaacutelise Particularmente pensamos no sentido metapsicoloacutegico de que sujeito psi-

quicamente constituiacutedo estamos falando na psicanaacutelise e na psicoterapia

Quanto agrave teoria da cliacutenica a diferenciaccedilatildeo acima rapidamente apresentada natildeo respon-

de de modo preciso pela proximidade e afastamento dos objetivos da psicanaacutelise e de

tais psicoterapia Recolocamos parece-nos diante de velhas questotildees como a similar-

mente formulada por Freud sobre o objetivo da anaacutelise jaacute em 1905 no caso Dora

Paraconcluir

A psicanaacutelise padratildeo claacutessica ou tiacutepica de que tanto se fala para diferenciaacute-la da que se

seguiu e propocircs mudanccedilas por vezes profundas na teacutecnica e na metapsicologia natildeo nos

parece ter no entanto uma delimitaccedilatildeo tatildeo estreita como se a sugere normalmente

e tenho aqui em mente como exemplo o que propotildee Roussillon (19992008) para o

seu entendimento Embora Roussillon possa ser considerado um psicanalista contem-

poracircneo herdeiro de Andreacute Green por assim dizer e assim o tomamos acima isto eacute

221Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

contemporacircneo no sentido conceitual que o situa numa outra perspectiva da psicanaacute-

lise em busca de uma unificaccedilatildeo de seus fundamentos ele talvez por forccedila didaacutetica

expressa a psicanaacutelise padratildeo freudiana muito estritamente Claro que o acompanham

muitos outros jaacute citados como psicanalistas intersubjetivos

A olhar de perto a psicanaacutelise padratildeo como a expotildee Roussillon trata o sujeito e a sub-

jetividade neuroacutetica num sentido muito amplo de neurose Proacuteximo da assertiva freu-

diana estabelecida na Interpretaccedilatildeo dos sonhos (1900) de que o inconsciente eacute comum

eacute universal e sendo ele inicialmente a caracteriacutestica da neurose em consequecircncia to-

dos somos neuroacuteticos (Celes 2010) O que quer dizer todos somos inconscientes De

qual afirmaccedilatildeo se pode concluir que a normalidade em Freud eacute neuroacutetica Os avanccedilos

freudianos apoacutes 1920 satildeo por Roussillon incluiacutedos numa psicanaacutelise por vir embora

ele encontre laacute em Freud alguma de suas acircncoras para reflexatildeo Por nosso lado com-

preendemos que as reflexotildees freudianas da paranoia da melancolia do narcisismo da

feminilidade inserem-se em problemaacuteticas identitaacuterias-narcisistas (se bem lido isto eacute

lido criticamente e em posterioridade as encontramos jaacute em Dora Celes 2007) que

natildeo justificam o estreitamento da concepccedilatildeo divulgada da chamada psicanaacutelise padratildeo

Na verdade a delimitaccedilatildeo tatildeo apertada que dela se faz parece-nos ter muito mais um

caraacuteter de poliacutetica psicanaliacutetica para a afirmaccedilatildeo de uma originalidade que natildeo eacute toda

assim nos parece

Embora tal atitude possa se justificar como estrateacutegia de exposiccedilatildeo e para tornar evi-

dente o que se diferencia na psicanaacutelise a partir de meados do seacuteculo passado ela nos

leva a encobrimentos significativos da diversidade do pensamento psicanaliacutetico mesmo

em sua versatildeo freudiana dita claacutessica ou padratildeo Mas tambeacutem aleacutem da versatildeo freudia-

na Excetuando-se o que se cindiu do movimento psicanaliacutetico e teve desenvolvimento

independente o que nele permaneceu foi de uma riqueza muito aleacutem do que se vem

chamando e definindo como psicanaacutelise padratildeo Mesmo se circunscrevermos a psi-

canaacutelise padratildeo em torno da neurose como indiretamente o sugere Green (2005) o

tratamento ldquopadratildeordquo da neurose transpocircs e ateacute mesmo em seu iniacutecio (Estudos sobre a

histeria 1895) os marcos da revelaccedilatildeo da fantasia de desejo secundariamente recalcada

e o conflito pulsatildeo versus defesa A sexualidade infantil somente para lembrar uma das

facetas tem caraacuteter originaacuterio e o narcisismo ele eacute primaacuterio e sexualmente determi-

nado Dito de outro modo o narcisismo eacute sexual desde sua origem Portanto questotildees

identitaacuterias-narcisistas mesmo que natildeo levassem este nome estatildeo presentes na psica-

222

naacutelise (teoacuterica e clinicamente) desde Freud Embora certamente ele natildeo tenha de uma

vez tudo abordado e levado em consideraccedilatildeo E mais ainda ele natildeo tenha levado tudo

que descobriu ou apontou ao seu desenvolvimento pleno Tambeacutem na teacutecnica eacute sabido

que Freud manteve-se muito mais fiel ao que se chama tiacutepico ou padratildeo do que em

teoria Esta uacuteltima parece avanccedilar mais do que sua teacutecnica Embora se deva observar

com firmeza que foi de sua experiecircncia cliacutenica psicanaliacutetica (natildeo necessariamente do

tratamento psicanaliacutetico mas muito dele) que Freud pode avanccedilar em sua teoria ou

metapsicologia Natildeo sendo esta o caso de puro exerciacutecio conceitual como se sabe (A

propoacutesito veja-se a retomada recente e profunda da reflexatildeo metodoloacutegica em psicanaacute-

lise em Figueiredo 2012b)

Sem negar as diferenccedilas que se fizeram entre os freudianos e muitos apoacutes-Freud natildeo

haacute ganho para a psicanaacutelise resumir tal diferenccedila reduzindo a chamada psicanaacutelise pa-

dratildeo ao estado onde

O narcisismo permanece suficientemente ldquobomrdquo e permite a organizaccedilatildeo de uma ilusatildeo que torna a transferecircncia sob o primado do princiacutepio do prazer possiacutevel e torna considerado possiacutevel um trabalho de luto ldquofragmento por fragmentordquo das realizaccedilotildees de desejos infantis evocadas pelo trabalho analiacutetico Em um tal esquema o processo analiacutetico ldquomelhorardquo o narcisismo e o funcionamento psiacutequico eacute beneficiado mesmo nos momentos de transferecircncia ldquonegativardquo pelo levantamento progressivo dos recalques (Roussillon 19992008 p 12 Traduccedilatildeo nossa)

Caracterizaccedilatildeo tatildeo restrita refere-se agrave interpretaccedilatildeo do sonho (natildeo necessariamente agrave

obra Interpretaccedilatildeo dos sonhos 1900 que avanccedila mais embora contenha a matriz de sua

praacutetica e da psicanaacutelise nela baseada) Natildeo se refere ao modelo do sonho como o sugere

Green (2005) no sentido conceitual que me parece mais amplo que esta descriccedilatildeo do

quadro que caracteriza a psicanaacutelise padratildeo Mas refere-se ao sonho da interpretaccedilatildeo dos

sonhos (1900) que se estende em Psicopatologia da vida cotidiana (1901b) e em Os chistes

de sua relaccedilatildeo com o inconsciente (1905c) Literalmente entendido trata-se de modelo que

se estende agrave vida cotidiana Eacute duvidoso que ele se tenha vingado como tal a ponto de se

tornar padratildeo Pelo menos natildeo em Freud ele alcanccedila esse estatuto

O modelo restrito imediatamente mostra seu limite Jaacute na articulaccedilatildeo metapsicoloacutegica

do sonho com a primeira teoria da sexualidade que como todos sabem apareceu em

1905 na forma de trecircs ensaios sendo acrescentado de novos modelos ao longo de suces-

223Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

sivas ediccedilotildees Clinicamente o modelo chamado padratildeo encontra seu limite em sua pri-

meira prova no caso Dora (Freud 1905e1972) Se Freud deu a essa prova um sentido

cientificista natildeo precisamos manter a intenccedilatildeo freudiana para verificar que o tal padratildeo

de anaacutelise natildeo serviu (como numa prova de roupa um terno natildeo serve natildeo cai bem

eacute curto apertado comprido ou largo e natildeo haacute remendo que o conserte) Aspectos da

transferecircncia ausentes no sonho na psicopatologia cotidiana e nos chistes atrapalha-

ram Mas principalmente aspectos identitaacuterios-narcisistas (para usar a expressatildeo hoje

corrente) natildeo permitiram que o modelo se sustentasse e desse conta da petite hysteacuterie

de Ida Brauer Tambeacutem se pode seguindo o espiacuterito de Green reler criticamente e a

posteriori o caso Dora e aiacute encontrar a problemaacutetica narciacutesico-identitaacuterias no desejo de

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227 Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

ChristianIngoLenzDunker

Introduccedilatildeo

Recentemente participei de uma espeacutecie de enquete feita pela Revista Veja Satildeo Paulo

acerca das principais fontes de sofrimento do paulistano E a conversa foi muito inte-

ressante porque sendo eu um dos uacuteltimos a serem entrevistados tive a oportunidade de

discutir as hipoacuteteses e consideraccedilotildees dos 17 outros psicoterapeutas majoritariamente

psicanalistas que me precederam Gostaria de manter este escopo na hipoacutetese que vou

apresentar a seguir sobre a cliacutenica em uma cidade como Satildeo Paulo no qual a densidade

discursiva e praacutetica da psicanaacutelise sua inserccedilatildeo em equipamentos de sauacutede mental e

geral sua circulaccedilatildeo e diversificaccedilatildeo de tendecircncias sua presenccedila acadecircmica e cultural

eacute excepcionalmente elevada Creio que a maior parte das alteraccedilotildees que percebi nestes

uacuteltimos vinte anos de cliacutenica seriam inaplicaacuteveis se tomaacutessemos em consideraccedilatildeo uma

cidade como Jundiaiacute ou Sorocaba ou o Brasil profundo como Rondonoacutepolis ou Boa

228

Vista lugares onde aliaacutes a psicanaacutelise e sua cliacutenica vem adquirindo uma funccedilatildeo social

ascendente que deveriacuteamos examinar com mais cuidado

Aintra-misturadiagnoacutestica

Crescentemente me encontro com pacientes de extensa trajetoacuteria diagnoacutestica Crian-

ccedilas que foram disleacutexicas autistas espectrais26 depois adolescentes hiperativos e agora

adultos bipolares que fazem uso de drogas legais e ilegais para aumentar o rendimen-

to laboral sexual e ocupacional Quando a cliacutenica psiquiaacutetrica de alta performance se

estabeleceu em fins dos anos 1980 temia-se que a velha hermenecircutica do mal-estar

desapareceria Penso que no balanccedilo geral deu-se o contraacuterio As medicaccedilotildees nunca

inserem-se fora de um discurso ausentes de narrativa ou de orientaccedilatildeo para a auto-

-observaccedilatildeo e a incitaccedilatildeo para nomear o mal-estar A nomeaccedilatildeo dos sintomas e seu

agrupamento em quadros feito pelo proacuteprio paciente substituiu a antiga dificuldade

composta pela antecipaccedilatildeo de sentido diante de um ato-falho ou as versotildees reificadas

em torno da superdeterminaccedilatildeo edipiana de uma dificuldade Pelo contraacuterio a superme-

dicalizaccedilatildeo e a automedicaccedilatildeo sancionaram nomearam e reconheceram uma quantida-

de nova e inusitada de formas de sofrimento

Eacute o que proponho chamar de intra-mistura diagnoacutestica tomando por referecircncia agrave ab-

sorccedilatildeo e cruzamento de diferentes racionalidades diagnoacutesticas que agora se incorpo-

ram apesar de sua heterogeneidade de origem ao modo de uma mesma unidade ao

discurso sobre o sofrimento e agraves estrateacutegias de inclusatildeo do mal estar na transferecircncia

O termo intra-mistura eacute retirado da conferecircncia de Lacan em Baltimore ocorrida em

1966 intitulada ldquoDa Estrutura como a Intra-mistura do Outro como preacute Requisito para

Qualquer Sujeitordquo (Lacan 19661998) Intra-mistura (inmixing) corresponde a opera-

ccedilatildeo pela qual o Outro eacute tomado como internalidade estrutural em relaccedilatildeo ao sujeito

sendo sua divisatildeo universal decorrecircncia da estrutura assim composta pela linguagem

26 Alusatildeo agrave expansatildeo do diagnoacutestico conhecido como ldquotranstorno no espectro autistardquo que encontra-se em franca expansatildeo apoacutes a compressatildeo da categorias diagnoacutesticas da infacircncia operada pelo DSM-IV publicado os anos 1980

229Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

assim como seus efeitos de singularidade decorrentes da articulaccedilatildeo entre fala liacutengua e

discurso A intra-mistura diagnoacutestica refere-se aos sistemas de preacute-nomeaccedilotildees do mal-

-estar incluindo o cruzamento de gramaacuteticas de reconhecimento dos sintomas e os

dispositivos de identificaccedilatildeo narrativa do sofrimento A intra-mistura diagnoacutestica inclui

tanto os dispositivos institucionais de individualizaccedilatildeo operados pelo Estado pela me-

dicina pelo sistema juriacutedico-psicoloacutegico ou escolar quanto narrativas morais religiosas

ou midiaacuteticas que regulam e legitimam a expressatildeo do sofrimento a certos esquemas

enunciativos Se o sintoma eacute a mensagem que o sujeito produz para o Outro o Outro jaacute

determina a articulaccedilatildeo significante na qual o sofrimento se expressa sobretudo entre

sua funccedilatildeo de Ideal e sua realizaccedilatildeo como sujeito (Lacan 1960) Se a psicanaacutelise eacute filha

da modernidade ela natildeo apenas trata e completa os sintomas sob transferecircncia mas

incita e eacute uma forccedila poliacutetica importante na determinaccedilatildeo de suas poliacuteticas de reconhe-

cimento (Parker 1997)

Ocorre que a psicanaacutelise como discurso culturalmente eficiente tambeacutem concorre para

a produccedilatildeo desta intro-mistura mas natildeo mais como ocorria nos anos 1960 Ou seja

alterou-se o que Jameson chamava de narrativa mestre (Jameson1979) que havia sido

majoritariamente estabelecida e administrada pela psicanaacutelise dos anos 1970 Ao con-

traacuterio haacute uma sensibilidade geralmente patente nas primeiras sessotildees para saber se

seu analista seraacute algueacutem interessado demais no seu passado e que por outro lado ficaraacute

silencioso ateacute obter uma hermenecircutica da histoacuteria de vida

Por sua parte assim como nos anos 1990 tentamos abandonar a importacircncia da me-

tapsicologia nos anos 2000 tentamos abandonar o terreno da diagnoacutestica A soberana

indiferenccedila psicanaliacutetica aos chamados diagnoacutesticos psiquiaacutetricos ou ainda no caso da

infacircncia aos diagnoacutesticos psicoloacutegico-educativos parece ter colaborado para uma taacutecita

distribuiccedilatildeo de funccedilotildees Aos primeiros os nomes e os medicamentos aos segundos os

conflitos e a soluccedilatildeo de problemas

Este movimento parece ter pacificado o antagonismo antes reinante o qual era preciso

fazer uma escolha Tal divisatildeo social do sofrimento aprofundou- por outro lado a di-

mensatildeo psicoterapecircutica da psicanaacutelise A cliacutenica comeccedila pelo sintoma Ateacute onde pude

advogar em meu uacuteltimo livro natildeo haacute cliacutenica sem algum tipo de razatildeo diagnoacutestica

230

Conveacutem lembrar que o que chamamos genericamente de ldquocliacutenicardquo inclui tanto o que

Freud considerava como meacutetodo de tratamento das neuroses quanto a disposiccedilatildeo eacutetica

para a cura e ainda as condiccedilotildees teacutecnicas para o uso terapecircutico da palavra

A autonomizaccedilatildeo da categoria psicanaliacutetica de sintoma seu desdobramento em sintho-

mas sua generalizaccedilatildeo confusa em modalidades de sofrimento bem como sua diluiccedilatildeo

na categoria de mal-estar satildeo subprodutos do recuo de nossas pretensotildees diagnoacutesticas

ou quiccedilaacute da ineacutepcia em produzir uma racionalidade diagnoacutestica agrave altura da praacutetica no

horizonte de nossa eacutepoca e com a criticidade que esta exige

Talvez estejamos agraves voltas com formas de diagnoacutestico que natildeo ousam dizer seu nome ou

que se contentam em grandes categorias estruturais para justificar uma espeacutecie de mo-

nismo procedimental No polo oposto temos uma situaccedilatildeo curiosa se examinamos uma

categoria flutuante como a de borderline ou ldquopaciente difiacutecilrdquo Para lacanianos tratam-se

de categorias inexistentes enquanto para os demais satildeo categorias super-existentes O

fato cliacutenico saliente eacute que os analisantes se reacostumaram com esta espeacutecie de confu-

satildeo de liacutenguas entre analistas e psiquiatras aprenderam rapidamente a relatividade dos

nomes e os limites de sua regulaccedilatildeo medicamentosa

E foi assim com um paciente de vinte e tantos anos que se apresenta ao tratamento com

um deliacuterio paranoico muito bem sistematizado em torno do uso pornograacutefico da inter-

net e de sistemas adjacentes que pareciam controlar seus pensamentos e saber de suas

intenccedilotildees como se ele fosse um criminoso procurado Mensagens e vigilacircncias envol-

vendo carros e retaliaccedilotildees Ele tinha iniciado o uso de medicaccedilatildeo neuroleacuteptica Ele vem

como uma espeacutecie de uacuteltimo recurso antes da internaccedilatildeo que tornava-se uma possibi-

lidade iminente Confidencia entatildeo um pequeno detalhe que ocultara ao meacutedico com

receio de que isso chegasse aos pais fazia uso ldquoocasionalrdquo de certa substacircncia relaxante

O tal uso recreativo envolvia cinco ou seis baseados por dia haacute seis anos Tenho entatildeo

que lhe explicar a situaccedilatildeo na qual ele se encontrava natildeo poupando detalhes do que po-

deria vir a acontecer caso ele ldquoocasionalmenterdquo entrasse ldquono sistemardquo fosse ldquofichadordquo e

afinal descoberto por um grande nuacutemero de pessoas que certamente se aproveitariam

disso ldquopara o malrdquo Desta forma ficou claro que havia uma uacutenica chance que passava

pela interrupccedilatildeo imediata e sumaacuteria do consumo da tal substacircncia para ldquover o que po-

dia acontecerrdquo E assim desapareceu um deliacuterio clinicamente muito bem definido que

poderia ter conduzido um sujeito a uma carreira psiquiaacutetrica longa e penosa

231Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

Contudo jamais teria feito uso de tal taacutetica ainda mais no iniacutecio de um tratamento 20

anos atraacutes por mais que Lacan tenha confessado sua filiaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo espiritual de

Ferenczi e sua teacutecnica ativa27

DeacuteficitNarrativo

Mas o caso poderia ter tido um desenrolar completamente outro se natildeo encontrasse

neste jovem paciente uma disposiccedilatildeo narrativa capaz de sugerir que havia algo estra-

nhamente ldquopreservadordquo na verdade ldquoexcessivamente organizadordquo em seu deliacuterio Este

ponto me leva a segunda novidade cliacutenica que tenho encontrado Trata de algo como um

deacuteficit narrativo generalizado Pessoas que natildeo conseguem contar uma histoacuteria apenas

descrevem estados de alma e situaccedilotildees de comportamento

Natildeo satildeo os casos psicossomaacuteticos repletos de sonhos evacuativos e empobrecimento

de simbolizaccedilatildeo descritos desde Pierre Marty a Joyce MacDougall Tambeacutem natildeo satildeo ca-

sos marcados por enactments expressivos como os apresentados por Julia Kristeva para

caracterizar as novas doenccedilas da alma Aacutes vezes eles se associam mas isto me parece

uma contingecircncia com as desarticulaccedilotildees da economia de gozo e da fantasia descritas

por Jean Pierre Lebrun (2008)

Trata-se mais de algo como Walter Benjamin (1933 1997) descreveu para os soldados

que voltavam da primeira guerra mundial sem uma histoacuteria para contar e que Chris-

topher Dejours (Lancman amp Sznelwar 2008) expandiu para um modo de estar no tra-

balho baseado na oposiccedilatildeo entre pressatildeo e depressatildeo ou ocupaccedilatildeo-vazio Em termos

lacanianos satildeo pacientes que estatildeo demasiados implantados em discursos que soacute fa-

zem laccedilo social sem narrativa sem diaacutelogo sem intimidade apenas funcionamento

inclusatildeo e exclusatildeo ligaccedilatildeo e desligamento

27 ldquoSachez que je fais toujours une grande part dans mon enseignement agrave la ligneacutee spirituelle de Ferenczi et que je vous reste sympathiquement lieacute avec mes meilleurs sentimentsrdquo Lettre de Jacques Lacan agrave Michael Balint publieacutee dans ldquoLa scission de 1953rdquo (Suppleacutement agrave Ornicar ) ndeg 7 1976 page 119

232

Alguns autores sensiacuteveis agraves ideias de Lacan tem isolado natildeo apenas novas formas de

sintomas mas novas maneiras de sofrer com antigos sintomas Por exemplo se para

Freud a sexualidade possuiacutea uma potecircncia traumaacutetica violenta e informulada para La-

can a sexualidade ela mesma pode ser uma defesa contra algo muito pior chamado

de Real E o Real se mostra como mal-estar como impossibilidade de dizer de narrar

e de nomear Eacute nesta direccedilatildeo que poderiacuteamos falar de uma forma de sofrimento que

generaliza a observaccedilatildeo de Walter Benjamin sobre o retorno dos soldados que lutaram

na primeira guerra mundial A brutalidade do choque o inominaacutevel da experiecircncia

silenciava os combatentes Eles saiacuteam narrativamente lesados do conflito Catherine

Malabou propotildee para esta situaccedilatildeo a noccedilatildeo de subjetividade poacutes-traumaacutetica cuja ex-

pressatildeo de sofrimento seria semelhante a lesotildees cerebrais como afasias e demecircncias

Seu paradigma literaacuterio satildeo os zumbis ou mortos-vivos seres funcionais que repetem

automaticamente uma accedilatildeo incapazes de reconstruir a histoacuteria da trageacutedia que sobre

eles se abateu Parecem seres perderam a alma e cujo sofrimento aparece em meio a

mutismos seletivos fenocircmenos psicossomaacuteticos e alexetimias (dificuldade de perceber

sentimentos e nomeaacute-los)

Satildeo pacientes para os quais desenvolvi uma abordagem combinada envolvendo extrema

importacircncia conferida aos sonhos suplementada por leituras e provocaccedilotildees fiacutelmicas

Para estes casos importei um diagnoacutestico filosoacutefico perda da experiecircncia Satildeo casos nos

quais nota-se uma dificuldade para articular os elementos que fazem da narrativa um

ato social-simboacutelico compartilhar coletivamente um mito de modo oral e reversiacutevel por

uma comunidade de sentido de destino ou de passado

Lacan extraiu de Levi-Strauss (1951) esta ideia muito simples e eficaz de que a neurose

corresponde a um mito individual Mas o que natildeo estava previsto pela hipoacutetese de Lacan

eacute que se poderia falar em subjetividades para os quais o mito natildeo possui aparentemen-

te funccedilatildeo decisiva Duas hipoacuteteses aqui

a Ou temos que pensar funccedilotildees miacuteticas organizadas fora das versotildees na verdade

natildeo exclusivamente organizados por versotildees de Totem e Tabu Eacutedipo e Narcisis-

mo como aliaacutes suponho se possa encontrar na miacutetica perspectiva ameriacutendia por

exemplo nos iacutendios Araweteacute tal qual descrita pelo antropoacutelogo Viveiros de Castro

(2002)

233Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

b Ou temos que pensar que natildeo eacute que o mito esteja indisponiacutevel mas que sua forma

individualizada eacute que o problema Neste caso temos que rever a teoria do reconhe-

cimento que define psicanaliticamente o que eacute uma individualizaccedilatildeo no caso da

expressatildeo ldquomito individualrdquo E quero crer que precisamos incluir natildeo apenas as

patologias da individualizaccedilatildeo mas as patologias e o sofrimento de ldquosoacute ser um

indiviacuteduordquo como definiu recentemente Vladimir Safatle (2012)

Ou seja natildeo precisamos psicotizar nossa sociedade ou imaginar uma suacutebita inflaccedilatildeo de

subjetividades perversas para pensar que nem sempre a identidade precisa ser o ponto

de partida para pensar laccedilos desejantes e conflitos respectivamente narrativizados por

histoacuterias de confronto com a lei e com a troca inter-grupos Natildeo acho muito bem esco-

lhido o termo mas haacute autores que falam em um sujeito poacutes-traumaacutetico (Zizek 2009)

cujo principal traccedilo cliacutenico eacute que a estrutura narrativa de seu sofrimento se assemelha a

um paciente cerebralmente lesado como algueacutem com Alzheimer Ou seja eacute a proacutepria

possibilidade de articular o sofrimento em uma histoacuteria na qual podemos reconhecer a

sua persistecircncia sua repetitividade sua permanecircncia diferencial em um traccedilo

Vejam que de certa forma este eacute um problema que inverte o pressuposto psicanaliacutetico

de que o sintoma estaacute imerso em um excesso de narrativas que suturam por sua vez

a supressatildeo e certos detalhes estrateacutegicos Pressuposto que tornava a psicanaacutelise uma

operaccedilatildeo e reduccedilatildeo simboacutelica desta narrativa a seus significantes fundamentais e agrave suas

posiccedilotildees fantasmaacuteticas invariantes

Portanto e esta eacute a inversatildeo que quero salientar se antes constituiacutea um traccedilo funda-

mental do perspectivismo lacaniano recusar a narrativa em prol do discurso recusar o

indiviacuteduo em prol do sujeito recusar o conteuacutedo imaginaacuterio em prol da forma simboacuteli-

ca hoje temos que explicar com as categorias como significante discurso sujeito e real

como eacute possiacutevel a individualizaccedilatildeo patoloacutegica do sujeito e a impossibilidade narrativa e

os perigos do ldquoexcesso da formardquo

Acliacutenicadasdecisotildees

Proponho a vocecircs entatildeo estas primeiras duas novas situaccedilotildees cliacutenicas os que se iden-

tificam a uma narrativa pret-a-porteacute (palavra meio fora de moda mas que tem o tal a

no meio) que chamei aqui de intro-mistura diagnoacutestica de um lado Do lado oposto

234

apresentam-se os que natildeo conseguem articular seu mal-estar ao modo de uma narrati-

va Sugiro agora um segundo par de situaccedilotildees da cliacutenica hoje

No polo oposto ao dos pacientes que natildeo conseguem narrativizar seu sintoma haacute ou-

tros analisantes que organizam a associaccedilatildeo livre em torno de sucessivas situaccedilotildees de

decisatildeo casar ou natildeo ter filhos agora ou depois internar os pais agora ou daqui a pou-

co mudar ou natildeo de paiacutes de cidade de emprego Isso natildeo eacute por si soacute uma novidade

mas o fato para o qual quero chamar a atenccedilatildeo eacute a existecircncia de um discurso que soacute

consegue se organizar em torno de decisotildees que trata a anaacutelise como uma sequencia

de ldquosolve-problem situationsrdquo como um viacutedeo game com fases vilotildees e desafios muito

organizados

O segundo tipo cliacutenico ascendente nas grandes metroacutepoles brasileiras responde bem ao

que um autor como Slavoj Zizek tem descrito para o caso daqueles que experimentam

uma forma de vida que eacute sentida como monstruosa animal e coisificada tal qual a an-

tropologia do inhumano proposta por Vladimir Safatle Ao contraacuterio dos que natildeo conse-

guem inscrever seu sofrimento em um discurso temos aqui aqueles que parecem viver

em estado permanente de fracasso sistemaacutetico em dar nome agrave causa de seu sofrimento

Procuram encontrar a razatildeo de seu mal-estar no mundo explorando para isso a forccedila

de estranhamento inadequaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo Sentem-se permanentemente fora de

lugar fora de tempo ou fora do corpo como as sexualidades estudadas por Judith Butler

(1990) Eacute o drama daqueles que satildeo habitados por experiecircncias de radical anomia e in-

determinaccedilatildeo cujo maior exemplo literaacuterio eacute Frankenstein Esta desregulaccedilatildeo sistecircmi-

ca do mundo teorizada por Lacan como separaccedilatildeo entre real simboacutelico e imaginaacuterio

exprime-se como sentimento permanente de perda de unidade Eacute por isso que seu sofri-

mento tematizado como exiacutelio e isolamento assemelhando-se com a reconstituiccedilatildeo da

experiecircncia tal como encontramos clinicamente no trabalho de luto Satildeo antes de tudo

errantes da linguagem depressivos do desejo e inadaptados do trabalho O espectro do

ressentimento e do teacutedio rondam sua forma de vida

Geralmente esta situaccedilatildeo vem acompanhada por uma relaccedilatildeo com a anaacutelise intermi-

tente e que precisa ser acolhida como tal Seja porque o sujeito estaacute no Brasil uma ou

duas semanas por mecircs seja porque ele soacute consegue se autorizar a vir agrave anaacutelise em um

sistema de ldquodrive throughrdquo sempre em emergecircncia sempre em situaccedilotildees de exaustatildeo

235Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

no qual o proacuteprio espaccedilo impoluiacutedo de silecircncio natildeo intromissatildeo e suspensatildeo do juiacutezo

constituem uma oportunidade rara

Mas haacute tambeacutem as decisotildees realmente difiacuteceis por exemplo as que cercam a reprodu-

ccedilatildeo assistida a descoberta de doenccedilas geneacuteticas as transformaccedilotildees irreversiacuteveis do cor-

po as redesignaccedilotildees sexuais Nestes assim como nos anteriores a recuperaccedilatildeo da loacutegi-

ca da escolha a recomposiccedilatildeo dos encontros e perspectivas torna-se de grande auxiacutelio

A emergecircncia cliacutenica dos decisionistas talvez sinalize um deslocamento nosso paradig-

ma eacutetico narrativamente considerado Antes um grande modelo do lado de caacute e do

lado de laacute do divatilde eram as Antiacutegonas Engajamentos desejantes radicais e confrontati-

vos que tencionam sua posiccedilatildeo na poacutelis e diante das leis Hoje estamos mais proacuteximos

de um personagem mencionado por Lacan ao final do Seminaacuterio sobre a Eacutetica da Psica-

naacutelise o protagonista da trageacutedia homocircnima de Euriacutepedes chamado Filoctetes Amigo

de Heacutercules e um dos pretendentes de Helena de Troacuteia Filoctetes foi picado por uma

serpente e sua perna natildeo cicatriza comeccedilando a exalar um odor feacutetido que gradualmen-

te insuportaacutevel para os outros Argonautas Ademais Filoctetes natildeo parava de se queixar

de sua condiccedilatildeo o que poderia se alastrar como uma peste para um descontentamento

generalizado entre os marinheiros Decide-se entatildeo que Filoctetes deve ser abandono

sozinho na ilha de Lemnos tambeacutem conhecida pelo sugestivo nome de ilha de Crise

Poreacutem no auge das batalhas contra Priacuteamo descobre-se que a uacutenica forma de derrotar

Troacuteia eacute usar o arco e flecha que pertencera a Heacutercules e o uacutenico que sabe o paradeiro da

referida arma natildeo eacute outro senatildeo Filoctetes Ulisses ordena entatildeo uma expediccedilatildeo para

resgatar o pobre poliqueixoso A surpresa eacute que laacute chegando nosso heroacutei que tivera sua

ferida curada pela solidatildeo os recebe de braccedilos abertos entrega o local do arco e flecha

luta com seus companheiros voltando para Iacutetaca como heroacutei Lacan afirma que Filocte-

tes eacute um heroacutei que estaacute a altura da eacutetica da psicanaacutelise e eu digo ainda mais da cliacutenica

de nossos tempos pois

a Eacute capaz de vencer o ressentimento

b Triunfa sobre a solidatildeo

c Suporta a maldiccedilatildeo que vai da dor ao sofrimento que natildeo se pode curar

236

d Sua vida estaacute sobredeterminada por sequencias de decisotildees cujos motivos e razotildees

se lhe escapam mas que ele as suporta e acolhe mesmo assim

Aprecariedadeposicionalumnovotipodeanguacutestiaflutuante

Um terceiro tipo ascendente de sofrimento foi antecipado pela feliz expressatildeo de Bau-

delaire heautontimorumenos ou seja aqueles que parecem experimentar prazer em se

atormentar Aqui podemos incluir as pesquisas de Ernesto Laclau e Alain Badiou em

torno de sujeitos que satildeo colhidos por um movimento social ou dos que se engajam

num percurso da verdade Por exemplo nas recentes pesquisas de Jesseacute de Souza sobre

a nova classe trabalhadora brasileira destacam-se vaacuterios predicados necessaacuterios para

ascenccedilatildeo social senso de planejamento espiacuterito de colaboraccedilatildeo disciplina e aperfeiccedilo-

amento Mas esta nova classe social tambeacutem traz consigo novas formas de sofrimento

principalmente baseadas na divisatildeo de fidelidades entre sua origem e famiacutelia e as exi-

gecircncias de sua nova condiccedilatildeo Eacute o caso dos que fracassam quando triunfam dos que

estatildeo agraves voltas com o peso de seus laccedilos de sangue e famiacutelia no interior de uma traje-

toacuteria de separaccedilatildeo e autonomia Tanto naquelas famiacutelias europeias nas quais haacute duas

ou trecircs geraccedilotildees a narrativa do trabalho se interrompeu quanto nas famiacutelias brasileiras

emergentes ou ainda no temor de empobrecimento que assombra as classes meacutedias

americanas haacute o sentimento profundo de que um pacto foi violado A incerteza quanto

agraves verdadeiras razotildees do sucesso ou do fracasso engendram uma forma de diacutevida difusa

e de ansiedade flutuante O sentimento eacute de que algo foi abolido sem deixar testemu-

nho ou histoacuteria e que cedo ou tarde um fantasma viraacute cobrar sua parte em vinganccedila

Uma novela como Avenida Brasil eacute um marco para tais processos de subjetivaccedilatildeo Lacan

afirmava que a verdade do sofrimento neuroacutetico eacute ter a verdade como causa Esta nova

forma de masoquismo eacute antes de tudo um tipo de paixatildeo pela verdade que no mais das

vezes aparece como desamparo e inseguranccedila

Assim como temos de um lado os que narram demais e de outro os que narram de me-

nos podemos agora opor tratamentos em torno de tomadas de decisatildeo ao tratamentos

nos quais saber qual seria uma decisatildeo a ser tomada torna-se quase impossiacutevel Aqui se

trata de uma boa situaccedilatildeo para evocar o conceito freudiano mesmo de mal-estar Mal-

-estar quer dizer Unbehagen ou seja ausecircncia de clareira (Hagen eacute a clareira na mata)

de descanso de lugar Tipicamente estes satildeo os casos nos quais se procura desesperada-

237Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

mente uma saiacuteda uma evasatildeo um suporte para o que chamo de precariedade posicio-

nal Natildeo estou em meu corpo natildeo estou em minha casa natildeo estou em minhas palavras

Mas natildeo se trata de um drama em torno da inautenticidade como as personalidades

narciacutesicas dos anos 1960 ou as neuroses de caraacuteter dos anos 1950

Satildeo pacientes que parecem gozar com a anguacutestia que se produzem Para algueacutem que

estaacute sempre agrave procura de uma saiacuteda que estaacute sempre procurando o ponto de dissoluccedilatildeo

montar uma verdadeira decisatildeo eacute um fato relativamente raro e difiacutecil No fundo as de-

cisotildees que surgem pervasimante no discurso destes sujeitos satildeo pseudo-decisotildees feitas

para jamais realmente produzirem consequecircncias

Poderia-se falar aqui de formas a-transferenciais de demanda

Talvez fosse exagero dizer que se trata aqui dos verdadeiros casos de inclusatildeo Natildeo soacute os

que jamais fariam parte de um clube que os admitisse como soacutecios pois na verdade a

proacutepria ideia de clube lhes parece insuportaacutevel Natildeo estatildeo em uma ilha como nem em

tracircnsito permanente nem constrangidos por diagnoacutesticos sedentaacuterios mas para eles

soacute haacute um imperativo categoacuterico ldquosairrdquo Nenhum lugar eacute habitaacutevel nenhuma posiccedilatildeo

lhes eacute suficientemente autecircntica nenhum espaccedilo lhe soa possiacutevel Satildeo os desafiantes

da topologia Os sem-lugar natildeo satildeo como vampiros paranoides ou como Frankenstein

esquizoides eles estatildeo mais para zumbis em busca da alam perdida

Sofrimentodeindeterminaccedilatildeo

O quarto tipo de sofrimento emergente pode ser descrito como uma nova forma de

paranoia Paranoia benigna associada ao que chamo de vida em forma de condomiacutenio

com seus muros siacutendicos e regulamentos Trata-se de um tipo de sofrimento basea-

do no medo permanente de um objeto intrusivo e anocircmalo capaz de perturbar a paz

administrada cujo preccedilo eacute uma vida asceacutetica e vigiada A paranoia sistecircmica floresce

abundante no mundo corporativo institucional e nos estados de exceccedilatildeo descritos por

Giorgio Agamben Ela cria e manteacutem o sofrimento derivado da segregaccedilatildeo (como o

bulling) da purificaccedilatildeo (como o higienismo do corpo belo ou saudaacutevel) e do controle

sobre o gozo do proacuteximo (como nas homofobias e demais formas de intoleracircncia) A

paranoia eacute um sintoma de excesso de identidade por isso ela interpreta o gozo do outro

como perturbador justificando a violecircncia persecutoacuteria Eacute assim por um processo de

238

auto-confirmaccedilatildeo que se criam o outro traidor do ciumento o outro impostor do ero-

tomaniacuteaco o outro invejoso do megalomaniacuteaco Curiosamente satildeo estas as formas de

vida mais propensas ao uso de substacircncias dopantes para aumentar a produtividade

para anestesiar a experiecircncia de si para substituir a hermenecircutica discursiva de si por

uma vivecircncia sensorial individualizada Por isso podemos associar este quarta forma

de sofrimento agraves narrativas de vampiros nas quais o tema da mistura e do domiacutenio da

seduccedilatildeo e do controle surge em primeiro plano

O que reuacutene estes quatro tipos cliacutenicos que representam formas inovativas de sofrer e

de articular este sofrimento em sintomas eacute o que reformulamos a partir do conceito

desenhado pelo filoacutesofo Axel Honneth (2007) de sofrimento de indeterminaccedilatildeo Tanto

a multiplicaccedilatildeo discursiva das modalidades de nomeaccedilatildeo e ciframento dos sintomas

quanto as situaccedilotildees de deacuteficit narrativo e ainda o grupo dos laccedilos decisionais ou das

subjetividades em erracircncia tem em comum o fato de que a dominante maior do sin-

toma natildeo eacute a reorganizaccedilatildeo das relaccedilotildees de determinaccedilatildeo desejantes sempre mais ou

menos articuladas pela inscriccedilatildeo do falo no campo do Outro e pelas perturbaccedilotildees deste

grande determinante da subjetividade que satildeo os Nomes-do-Pai

Ora o que caracteriza estas formas de vida natildeo eacute o excesso ou a falta de determinaccedilotildees

simboacutelicas mas a anomia como um fato positivo O sofrimento de indeterminaccedilatildeo re-

quer no fundo um tipo de orientaccedilatildeo de gozo ou de desejo natildeo orientado para a forma-

ccedilatildeo de unidades

Entendo que a psicanaacutelise tem duas tarefas teoacutericas e cliacutenicas diante deste quadro O

primeiro movimento implicaria em rever sua teoria do reconhecimento derivada e pre-

sente por exemplo em suas teses sobre o narcisismo em sua teoria do desejo em sua

concepccedilatildeo de sujeito dividido A principal revisatildeo aqui nos convidaria a introduzir a

natildeo-identidade como princiacutepio fundamental de sua teoria das relaccedilotildees Isso significa

por exemplo interpolar um conceito psicanaliacutetico de narrativa como funccedilatildeo intermedi-

aacuteria entre o discurso e a fala O conceito que em Lacan representa esta natildeo-identidade

eacute naturalmente o objeto a

a O objeto intrusivo (corpo)

b O objeto que resta do pacto formativo da lei do desejo (mito)

239Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

c O objeto que eacute a causa e razatildeo a desregulaccedilatildeo estrutural do espiacuterito

d O objeto que eacute a alma perdida

A segunda modificaccedilatildeo que considero importante nos envia agrave introduccedilatildeo de uma loacutegica

natildeo-toda no proacuteprio interior da cliacutenica A loacutegica do natildeo-todo natildeo equivale agrave loacutegica da cas-

traccedilatildeo Mas o sujeito em Lacan eacute o sujeito natildeo eacute o sujeito homem ou o sujeito mulher

Ora o natildeo-todo eacute um decircixico uma forma diferencial de incluir relaccedilotildees ao gozo confor-

me uma loacutegica de natildeo-relaccedilotildees Portanto teoria das relaccedilotildees em Lacan por exemplo

estruturas cliacutenicas teorias dos discursos nos convidam a repensar formas de inscriccedilatildeo

faacutelica do sentido e da significaccedilatildeo De outro lado teoria das natildeo-relaccedilotildees dos fracassos

produtivos da anomias criativas como parece ser o caso com a triacuteade real-simboacutelico-

-imaginaacuterio e mais ainda com a teoria da sexuaccedilatildeo

Conclusatildeo

Temos entatildeo dois grupos os Zumbis e os Frankensteins sofrem com a falta de experi-

ecircncias produtivas de indeterminaccedilatildeo pois para eles os processos de racionalizaccedilatildeo apare-

cem como vazio indiferente ou como uma experiecircncia caoacutetica de si e do mundo Jaacute os

Fantasmas e Vampiros ao contraacuterio sofrem com o excesso de experiecircncias improdutivas

de determinaccedilatildeo ou seja eacute como se acreditassem demasiadamente nos processos de

simbolizaccedilatildeo e subjetivaccedilatildeo que regulam os diferentes regimes de verdade Tudo se

passa como se para os primeiros o Real aparecesse como impossiacutevel e para os segundos

como contingecircncia Se os Fantasmas e Vampiros estatildeo questionando os fundamentos

totecircmicos da autoridade os Zumbis e Frankenstein estatildeo mais proacuteximos do que o antro-

poacutelogo brasileiro Viveiros de Castro chamou de perspectivismo ameriacutendio (ou seja uma

cultura na qual a identidade natildeo eacute tratada como um fato de origem e onde a experiecircncia

de reconhecimento estaacute sujeita a elevados niacuteveis de indeterminaccedilatildeo)

Tais tipos cliacutenicos sejam apenas identificaccedilotildees ou seja formas narrativas mais ou me-

nos coletivas pelas quais a experiecircncia de sofrimento pode se incluir em discursos cons-

tituiacutedos Questatildeo relevante porque a inclusatildeo discursiva de uma forma de sofrimento

eacute o que permite que ela seja reconhecida tratada e localizada em um registro moral ou

juriacutedico cliacutenico ou poliacutetico literaacuterio ou religioso Sofrimentos que natildeo se enquadram

240

nos discursos constituiacutedos satildeo frequentemente tornados invisiacuteveis derrogados de sua

verdade como uma palavra amordaccedilada

Se toda forma de sofrimento encerra a teoria de sua proacutepria causa podemos ver como a

narrativa da perda da alma eacute no fundo uma versatildeo atualizada do que Lacan pensou com

sua tese do sintoma como alienaccedilatildeo ao desejo do Outro mas agora uma alienaccedilatildeo Zum-

bi afeita a nossa forma mutante de produccedilatildeo e consumo A narrativa frankensteiniana

da desregulaccedilatildeo sistecircmica e da perda da unidade retoma a tese lacaniana de que o sinto-

ma eacute efeito (e tambeacutem causa) do desmembramento entre Real Simboacutelico e Imaginaacuterio

Tambeacutem a narrativa neo-masoquista da violaccedilatildeo do pacto simboacutelico de origem com seu

retorno fantasmaacutetico retoma as teses sobre a negaccedilatildeo em curso no interior do drama

ediacutepico e particularmente da castraccedilatildeo Finalmente a narrativa paranoica em torno da

existecircncia de objetos intrusivos que se infiltram por entre muros e regulamentos con-

firma que todo sintoma conteacutem uma satisfaccedilatildeo paradoxal que Lacan chamou de gozo

Quando a cliacutenica lacaniana chegou ao Brasil nos anos 1980 um de seus motes principais

era a substituiccedilatildeo das extensas narrativas realiacutesticas sobre a infacircncia e seus meandros

rememorativos pela agilidade simboacutelica dos significantes fundamentais Hoje parece

haver um movimento pelo qual os psicanalistas se perguntam como facultar que certos

pacientes se tornem novamente capazes de bem narrar suas experiecircncias de sofrimen-

to A psicopatologia lacaniana prometia inicialmente distinccedilotildees fortes e seguras entre

psicose neurose e perversatildeo Hoje se pensa como organizar diagnoacutesticos envolvendo

formas muacuteltiplas e combinadas entre tipos de sofrimento modalidades de sintomas e

formas de mal-estar Lacan trouxe a antropologia estrutural e a teoria dialeacutetica do reco-

nhecimento para o centro da experiecircncia psicanaliacutetica Hoje pensamos como lidar com

os tipos de mal-estar cuja nomeaccedilatildeo eacute precaacuteria incerta ou improvaacutevel e com os tipos

de sofrimento que escapam agrave loacutegica identitaacuteria do reconhecimento Se o sofrimento e o

amor satildeo os dois motivos de qualquer processo transformativo eacute fundamental reter que

no centro de qualquer experiecircncia de sofrimento haacute um gratildeo de Real e uma pitada de

verdade que aspira a uma nova forma de vida

241Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

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242

Corpo em psicanaacutelise e obesidade

ElianaRigottoLazzarini

CarolinaFranccedilaBatista

TerezinhadeCamargoViana

Os transtornos alimentares satildeo expressotildees de casos da demanda cliacutenica contemporacirc-

nea os quais conjugam a cultura nas manifestaccedilotildees do corpo e na imagem corporal

suas prerrogativas 28A experiecircncia com tais pacientes a reflexatildeo a respeito dos pilares

da praacutetica cliacutenica e de suas questotildees teoacutericas colocam em pauta o questionamento sobre

as especificidades destes casos e os casos claacutessicos da eacutepoca de Freud A semelhanccedila

entre eles reside na pertinecircncia da sexualidade como sustentaccedilatildeo da descoberta psica-

naliacutetica do inconsciente e ainda hoje o mal-estar destes sujeitos estaria relacionado agrave

alteridade trazida na experiecircncia psiacutequica do sexual e como o modo de lidar com ela

28 Este texto eacute um dos produtos da pesquisa Transtornos Alimentares psicopatologias narciacutesicas e obesidade que vem sendo desenvolvida no Laboratoacuterio de Psicanaacutelise e Subjetivaccedilaacuteo ndash Lapsus Universidade de Brasiacutelia Pesquisa apoiada pelo CNPq com bolsa de produtividade em pesquisa e bolsa de mestrado

243Corpo em psicanaacutelise e obesidade

vem refletindo ao longo dos anos uma mudanccedila da influecircncia dos processos terciaacuterios

na cultura Um destes traccedilos de mudanccedila que verificamos eacute o modo como o corpo tem

sido concebido culturalmente e os efeitos disto para o sujeito Teoacutericos contemporacircne-

os observam que a nossa cultura atual tem contribuiacutedo para aumentar a anguacutestia do

sujeito que tende a natildeo cultivar a interiorizaccedilatildeo e a reflexatildeo sobre si mesmo passando

a buscar formas para tentar sedar a anguacutestia que sente muitas vezes isto se traduzindo

em adoecimento psiacutequico

Delineandoaquestatildeo

A escuta do sofrimento dos indiviacuteduos que passam por alguma modalidade de trans-

torno alimentar convoca o olhar e a anaacutelise psicanaliacutetica pelo modo como o corpo eacute

concebido na atualidade A pertinecircncia da psicanaacutelise nestes casos reside em seu modo

de questionar o discurso ao qual este indiviacuteduo encontra-se adaptado e do qual queixa

sentir-se excluiacutedo

Eacute neste ponto que a psicanaacutelise apresenta o desafio da inquietaccedilatildeo a quem quer que a

pratique e com ela dialogue teoricamente aspecto que deve ser levado em considera-

ccedilatildeo na obesidade Tal inquietaccedilatildeo gera questionamentos quais seriam os fundamentos

encontrados na cultura para o alto iacutendice de casos de obesidade Em que criteacuterios se

fundamentam seu diagnoacutestico e qual a sua pertinecircncia para a escuta psicanaliacutetica do

sujeito Qual posiccedilatildeo este sujeito ocupa e qual sua influecircncia na produccedilatildeo do mal-estar

Permeando estas questotildees encontramos a importacircncia de uma anaacutelise da cultura e dos

discursos contemporacircneos como co-produtores de novas manifestaccedilotildees de sofrimento

A alta incidecircncia de casos de transtornos alimentares e o lugar que eles ocupam social-

mente eacute expressatildeo segundo Lazzarini (2006) de uma subjetividade afetada por um

mundo em constante mutaccedilatildeo do qual ela mesma tambeacutem eacute veiacuteculo e agente desta mu-

danccedila Tal particularidade remete agrave emergecircncia em esquadrinhar que fatores culturais

atuais satildeo contingecircncias determinantes agrave constituiccedilatildeo deste sujeito

Frente agraves caracteriacutesticas da subjetividade contemporacircnea dentre as quais pode ser sa-

lientada a exacerbaccedilatildeo narciacutesica torna-se necessaacuterio que tanto o sujeito contemporacircneo

como o pesquisador e o psicanalista imersos como estatildeo nesta cultura possam sair da

posiccedilatildeo de massificaccedilatildeo a qual tende a impedir a construccedilatildeo de um olhar a respeito

244

das condiccedilotildees atuais de subjetivaccedilatildeo e assim ter um olhar diferenciado que permita

ampliar a compreensatildeo destes novos modos de subjetivaccedilatildeo

Uma das contingecircncias do momento atual eacute a ocorrecircncia de um encurtamento dos tem-

pos histoacutericos pela rapidez com que os eventos se atualizam na cena contemporacircnea

Tal incidecircncia ocasiona uma maior exposiccedilatildeo dos sujeitos aos efeitos de acontecimentos

importantes ocorridos recentemente na histoacuteria humana Isto pode em consequecircncia

gerar o encurtamento do tempo subjetivo promovendo uma tendecircncia ao imediatismo

Este encurtamento eacute influenciado tambeacutem pelos avanccedilos tecnoloacutegicos decorrentes de

um progresso civilizatoacuterio o que tende a tornar os novos produtos rapidamente obsole-

tos e consequentemente descartaacuteveis

No entanto este descarte como se vecirc atualmente natildeo diz de uma experiecircncia de perda

justamente pela possibilidade de um objeto melhor vir a substituiacute-lo Este aspecto pro-

duz implicaccedilotildees na temporalidade psiacutequica que pela falta da vivecircncia de um processo

de perda e de seu consequente luto resulta cada vez mais na dificuldade de simbolizar

e elaborar os fatores culturais sociais e tambeacutem psiacutequicos Logo as transformaccedilotildees so-

ciais histoacutericas e culturais recentes mostram suas consequecircncias no modo de conduccedilatildeo

e compreensatildeo dos elementos constituintes da cliacutenica psicanaliacutetica ou seja nos efeitos

produzidos no tratamento destes sujeitos

Esta exposiccedilatildeo do sujeito contemporacircneo marca uma diferenccedila dos casos e da cultura na

eacutepoca de Freud onde o sofrimento do sujeito estava ligado agrave culpa pela transgressatildeo de

uma lei e de um limite O conflito se centrava na renuacutencia que o processo civilizatoacuterio

exigia das satisfaccedilotildees pulsionais demandando a repressatildeo destas pulsotildees Logo o sofri-

mento e a regulaccedilatildeo pulsional destes sujeitos seria regida pelo recalque Considerando

que a cliacutenica freudiana foi construiacuteda e estruturada tomando por fundamento a neu-

rose e a castraccedilatildeo como referecircncia questiona-se se haacute uma diferenccedila entre o sexual da

cliacutenica freudiana e a sexualidade tal qual temos acesso contemporaneamente e por tal

em que aspecto podemos distinguir os casos atuais dos antigos Eacute importante salientar

que a questatildeo da sexualidade remete agrave necessidade de delimitaccedilatildeo do que eacute essencial agrave

psicanaacutelise do que permaneceria em sua passagem por esta nova construccedilatildeo do social

245Corpo em psicanaacutelise e obesidade

AdescobertadeFreudeastransformaccedilotildeesdosexualnolaccedilosocial

De acordo com autores psicanaliacuteticos contemporacircneos a cliacutenica psicanaliacutetica da forma

como formulada por Freud tem sofrido mudanccedilas face as diferentes modalidades de

mal-estar apresentadas pelos sujeitos que procuram anaacutelise Esta diferenccedila estaacute intima-

mente ligada agrave mudanccedila de um contexto social e cultural que lhe era especiacutefico entre o

final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX periacuteodo da criaccedilatildeo dos fundamentos psicana-

liacuteticos As transformaccedilotildees histoacutericas e sociais sempre afetam o processo de questiona-

mento que permite a produccedilatildeo teoacuterica e a praacutetica psicanaliacutetica consequentemente as

novas perspectivas apresentadas agrave psicanaacutelise dizem de uma transformaccedilatildeo na cultura

no que concerne agrave sexualidade e aos modos de satisfaccedilatildeo

Importante salientar que a fundaccedilatildeo da psicanaacutelise se deu pela escuta da histeria fato

que coloca em cena a expressatildeo do mal-estar e do sofrimento corporal na neurose O

fundamento da vivecircncia do corpo pela histeacuterica expressiva em seus sintomas conver-

sivos remete agrave formulaccedilatildeo da noccedilatildeo de sexualidade infantil Eacute por meio da fala das

pacientes histeacutericas que Freud pocircde observar que estes sintomas diziam respeito a uma

divergecircncia entre a sexualidade em suas manifestaccedilotildees e a moral vigente

Lazzarini e Viana (2006) discutem que a elaboraccedilatildeo freudiana do inconsciente em seus

princiacutepios esteve relacionada agrave sexualidade pela via da noccedilatildeo de trauma concebido

neste periacuteodo como um acontecimento factual ocorrido na histoacuteria do sujeito Os sin-

tomas histeacutericos instauravam-se por um significado sexual que se encontrava recalcado

e por tal inconsciente Por natildeo poder encontrar expressatildeo pela via consciente esta

tendecircncia pulsional manifestar-se-ia por sintomas corporais

Deste modo o campo psicanaliacutetico foi instaurado pelo sentido subversivo da sexualida-

de que encontrava entraves agrave sua expressatildeo pelas tendecircncias repressivas do contexto

cultural no qual este discurso emergia Estes obstaacuteculos seriam expressatildeo da ameaccedila

que a sexualidade apresentava ao eu do indiviacuteduo O texto de Freud Moral sexual civi-

lizada e a doenccedila nervosa moderna de 1908 coloca o acento da origem da neurose na

caracteriacutestica repressiva autoritaacuteria e puritana da moral da civilizaccedilatildeo A capacidade

sublimatoacuteria seria assim dessexualizada e direcionada para a produccedilatildeo com fins ao

progresso civilizatoacuterio

246

Birman (2009) expotildee que a ecircnfase encontra-se na possibilidade de extirpaccedilatildeo da sexu-

alidade para uma finalidade terapecircutica e civilizatoacuteria que promoveria uma tentativa

de harmonizaccedilatildeo do sujeito e da sociedade A psicanaacutelise freudiana no texto de 1908

apostaria na possibilidade de encadeamento pela representaccedilatildeo das exigecircncias pulsio-

nais de modo a promover um completo abarcamento pelo simboacutelico do registro real e

pulsional Jaacute no texto Mal-estar na civilizaccedilatildeo de 1930 Freud expotildee o conflito civilizaccedilatildeo

versus pulsatildeo e na impossibilidade da cura do desamparo pela psicanaacutelise o resultado

seria um compromisso do sujeito com a sua gestatildeo para toda a vida

Birman (2009) observa que a criacutetica freudiana agrave modernidade e agrave evoluccedilatildeo cientiacutefica

localiza-se justamente na impossibilidade de resoluccedilatildeo da condiccedilatildeo de desamparo e

de fragilidade do sujeito pois a ciecircncia funda-se na razatildeo e ela nada poderia fazer para

impedir a morte Este eacute um conceito chave no redirecionamento de Freud sobre a cons-

tituiccedilatildeo do sujeito e sobre a questatildeo da sua origem

A elaboraccedilatildeo do conceito de desamparo permite uma mudanccedila da submissatildeo do sujeito

agraves exigecircncias de um progresso civilizatoacuterio para uma nova noccedilatildeo da relaccedilatildeo com o Ou-

tro via construccedilatildeo do laccedilo social Enquanto o discurso da primeira elaboraccedilatildeo freudiana

- identificado agrave ciecircncia que muitas vezes se presta ao progresso ndash era fundado em uma

tentativa de espiritualizaccedilatildeo de separaccedilatildeo entre o sujeito sua sexualidade e erotismo

logo de seu corpo no segundo momento haacute uma mudanccedila desta verticalizaccedilatildeo para a

horizontalizaccedilatildeo da sexualidade jaacute que somente pela sua construccedilatildeo intermediada por

um Outro eacute que o sujeito poderia se estruturar

Ocorponacontemporaneidadeeocorponapsicanaacutelise

O corpo aparece como uma das certezas que o indiviacuteduo tem ou seja seu pertenci-

mento ao mundo das coisas o torna locus privilegiado na cultura para se constituir um

porto seguro Sennett (2001) observa que no mundo contemporacircneo a aceleraccedilatildeo dos

acontecimentos e a voracidade do consumo faz com que o tempo seja insuficiente para

a formaccedilatildeo das subjetividades e o corpo torna-se passivo sofrendo diante de tantas

transformaccedilotildees Neste cenaacuterio o corpo fica cada vez mais voltado para suas proacuteprias

necessidades e prazeres fechado para a entrada do outro Tal modo de hipervalorizaccedilatildeo

do corpo na era atual transforma os homens em seus proacuteprios escravos e o que impera

eacute a forccedila da imagem Consequentemente a vida interior o outro e os laccedilos que podem

247Corpo em psicanaacutelise e obesidade

se estabelecer na troca de experiecircncias passam a ser valores pouco encontrados Isso

de certa forma parece ser um bom terreno para a anguacutestia e o adoecimento

Diante dos desencadeamentos contemporacircneos encontramos hoje indiviacuteduos marca-

dos pelo sofrimento em seus proacuteprios corpos e com dificuldades significativas para nar-

raacute-las McDougall (1983) faz notar que a forma como o sujeito vive seu corpo informa a

respeito da natureza de sua relaccedilatildeo com o mundo ou seja quando o corpo natildeo eacute capaz

de significar a diferenccedila entre o eu e o outro interior e exterior quando o sujeito tem di-

ficuldade em habitar seu corpo as relaccedilotildees com os outros correm o risco de se tornarem

confusas De acordo com a autora ldquoeacute a maneira como a pessoa pensa o proacuteprio corpo

assim como a posiccedilatildeo que ela assume em relaccedilatildeo a esse corpo o que naturalmente iraacute

influenciar de forma marcante a relaccedilatildeo eumundordquo (1983 p155)

O sujeito busca no corpo uma consciecircncia de si ou seja fazer com que o corpo exista

por si mesmo para que possa estimular sua reflexatildeo e reconquistar sua interioridade

O corpo natildeo eacute apenas um meio de locomoccedilatildeo mas um organismo vivo corpo sexuado

marcado pelas pulsotildees fonte de prazer (e tambeacutem de dor sensaccedilotildees) que necessita ser

cuidado por seu possuidor

O corpo marca sua presenccedila na psicanaacutelise contemporacircnea natildeo somente no que diz

respeito agraves doenccedilas psicossomaacuteticas e agrave hipocondria mas tambeacutem porque encontra

outras formas de se manifestar E uma dessas formas eacute a de um movimento narciacutesico

no qual o corpo vai ser lugar de investimento libidinal Se a eacutepoca de Freud foi mar-

cada pela repressatildeo sexual como salientado acima a era atual se caracteriza por um

movimento contraacuterio Natildeo eacute da repressatildeo que se fala mas da dificuldade de lidar com

os limites e os contornos de si A barreira quando colocada eacute feita de modo incisivo

muitas vezes mantendo o sujeito ilhado em um mundo fechado ao acesso do outro Haacute

portanto uma incapacidade no estabelecimento e manutenccedilatildeo de laccedilos mais amplos

o que coloca em evidecircncia o retorno ao momento psiacutequico primordial de instalaccedilatildeo do

eu a etapa narciacutesica

Lazzarini e Viana (2006) observam a necessidade de refletir sobre esta condiccedilatildeo pela

forma como o corpo eacute visto tradicionalmente pela psicanaacutelise ou seja em paralelo ao

discurso da linguagem Poreacutem como coloca Fernandes (2002) quando a psicanaacutelise

248

se vecirc enredada com o adoecer do corpo a tendecircncia eacute realizar uma ampliaccedilatildeo de seu

campo cliacutenico resultando necessariamente em uma ampliaccedilatildeo de seu campo teoacuterico

ldquoa inclusatildeo de novos conceitos ao arsenal do saber psicanaliacutetico permitiu uma fertilizaccedilatildeo da escuta do corpo na cliacutenica para aleacutem das somatizaccedilotildees abrindo campo para as aproximaccedilotildees e diferenccedilas entre determinados quadros cliacutenicos e as neuroses claacutessicas as toxicomanias os transtornos alimentares as perversotildees etcrdquo (p 53)

A concepccedilatildeo psicanaliacutetica do corpo tem sua particularidade por estar em uma posiccedilatildeo

de fronteira entre os diferentes registros da experiecircncia psiacutequica logo por poder ser

tomada pelo registro real simboacutelico e imaginaacuterio Conforme mencionado trata-se de

uma perspectiva inaugurada pela histeria que concede agrave ele um lugar radicalmente

diferente do concebido como objeto de estudo de outras ciecircncias

A leitura psicanaliacutetica do corpo permite o seu questionamento para aleacutem do lugar que

lhe eacute fixado numa suposta realidade social uma vez que traz no nascimento de seu

discurso a sexualidade como seu centro Trata-se de uma perspectiva que fundamenta o

trabalho da psicanaacutelise em sua dimensatildeo outra que eacute alheia agraves conformidades que um

saber de leis riacutegidas ou universais dispotildee

Lazzarini e Viana (2006) comentam que o corpo na psicanaacutelise em sua primeira for-

mulaccedilatildeo de corpo eroacutegeno eacute atravessado pela pulsatildeo estrutura-se em confronto ao

corpo da necessidade na medida em que a linguagem nele faz efeito inserindo-o na re-

presentaccedilatildeo significaccedilatildeo e lembranccedila O corpo seria entatildeo pela sexualidade articulado

agrave histoacuteria do sujeito situando-o no imaginaacuterio social pela representaccedilatildeo

A teoria freudiana portanto permite colocar em evidecircncia que o somaacutetico habita um

corpo que eacute tambeacutem lugar de realizaccedilatildeo de um desejo inconsciente Fernandes (2002)

pontua que o corpo psicanaliacutetico se apresenta ao mesmo tempo como o palco onde se

desenrola o jogo das relaccedilotildees entre o psiacutequico e o somaacutetico e como personagem inte-

grante da trama das relaccedilotildees De fato esse corpo eacute regido segundo uma dupla raciona-

lidade a do que eacute somaacutetico e do que eacute psiacutequico

Para Lacan (1949) a importacircncia do estaacutedio do espelho se daacute pelo que instaura o mo-

mento inaugural da constituiccedilatildeo do eu O infans pela visatildeo e percepccedilatildeo de sua proacutepria

imagem da imagem de seu corpo no espelho prefigura uma totalidade corporal que eacute

249Corpo em psicanaacutelise e obesidade

corroborada pelo outro que a reconhece como verdadeira Deste modo ou seja para a

crianccedila poder se apropriar de sua imagem eacute necessaacuterio a presenccedila de um outro que a

confirme para que ela possa assim interiorizaacute-la A crianccedila tem neste momento uma

vivecircncia de unidade que estabelece a passagem do corpo despedaccedilado e natildeo diferencia-

do do corpo de sua matildee para um corpo proacuteprio

Tal momento no qual o indiviacuteduo se identifica imaginariamente faz parte do seu pro-

cesso de constituiccedilatildeo que aos poucos pela incidecircncia do simboacutelico pode apartar-se das

identificaccedilotildees primaacuterias e construir sua verdade Este momento de captaccedilatildeo do imagi-

naacuterio funda-se pela funccedilatildeo de continecircncia da condiccedilatildeo de desamparo e de imaturidade

fiacutesica Trata-se de um momento na constituiccedilatildeo do infans em que o outro cuidador aco-

lhe o sujeito em sua prematuridade A constituiccedilatildeo do narcisismo do sujeito eacute resultado

portanto da presenccedila ativa de um outro realizada neste periacuteodo pelo qual a crianccedila

poderaacute apreender-se em seu corpo pela obtenccedilatildeo de um contorno niacutetido e definido

O corpo eacute portanto lugar da passagem do outro lugar de onde nasce o sujeito Sen-

do assim pode-se dizer que a grande inovaccedilatildeo da psicanaacutelise foi precisamente con-

siderar essa dupla racionalidade como articulada pelo desejo inconsciente mas cuja

leitura tambeacutem se daacute no corpo Birman (2009) complementa dizendo que o corpo em

psicanaacutelise pode ser definido como sendo um corpo sujeito marcado pelo outro pela

linguagem Esse corpo de acordo com o autor deixa de ser corpo como condiccedilatildeo de or-

ganismo e se assujeita isto eacute passa a ser habitado pelo outro implicando uma condiccedilatildeo

relacional ndash euoutro

Com esse percurso podemos asseverar que desde Freud o corpo encontra espaccedilo na

psicanaacutelise pois foi o proacuteprio Freud quem inaugurou esta escuta ao ouvir o corpo das

histeacutericas encontrando um caminho que possibilitou livraacute-las de seu sofrimento

Corpoeobesidade

No plano da cultura e sociedade atual momentos de indefiniccedilatildeo e mudanccedila com relaccedilatildeo

a valores e papeacuteis sociais sobrecarregam os indiviacuteduos expondo-os agrave anguacutestia e ao mal

estar Com isto o cuidado de si e de seu corpo fica prejudicado

250

Birman (2003) observa que no cotidiano as pessoas se apresentam cada vez mais com

queixas difusas localizadas no corpo que vatildeo desde dores diversas e inespeciacuteficas ateacute

sensaccedilotildees de completo esgotamento Queixam-se tambeacutem de stress constante e uma di-

ficuldade em limitar a carga fiacutesica ou emocional que podem suportar O autor enfatiza

a incapacidade crescente dos sujeitos de lidar de forma produtiva com seu corpo sendo

surpreendidos constantemente por manifestaccedilotildees corporais diversas das quais satildeo in-

capazes lidar e de subjetivar

Neste cenaacuterio o corpo tem adquirido mais destaque e sofre sob os efeitos da doenccedila da

fragilidade e do stress A partir desta perspectiva a concretude do corpo aparece como

uma das certezas para o sujeito e em contrapartida o registro metafoacuterico da linguagem

eacute cada vez mais pobre visto que o discurso fica esvaziado em sua dimensatildeo simboacutelica

(Lazzarini 2006) A psicanaacutelise por sua vez procura dar voz ao sujeito e a seu corpo

em sua singularidade para aleacutem das demandas corporais relacionadas agrave dor Trata de

lidar com um corpo diferente do corpo bioloacutegico e dar voz a um corpo que eacute atravessado

pela linguagem e marcado por vivecircncias do sujeito

A escuta da fala do paciente obeso em psicanaacutelise evidencia algo de um mal estar locali-

zado no corpo (dores e sensaccedilotildees corporais desagradaacuteveis paralisias amortecimentos)

mas que deve encontrar ressonacircncia psiacutequica Em sua fala vemos ser ressaltada uma

condiccedilatildeo de imobilidade de impedimento agrave accedilatildeo causada por sua proacutepria limitaccedilatildeo e

que caracteriza um estado de ineacutercia uma falta de vontade ou incapacidade para agir de

fazer a vida andar e de nela se sentir presente

Apesar de ser um dos temas centrais de seu discurso o corpo natildeo eacute nomeado em seu

discurso o que aparece eacute uma fala sobre suas dores e incocircmodos mais do que do corpo

como unidade e pertencimento Apesar de ser um corpo grande e expressivo ele natildeo

tem contorno delimitaccedilatildeo e fica referenciado a uma massa disforme Haacute uma oscilaccedilatildeo

entre se sentir cheio e se sentir vazio e esta eacute a referecircncia que apresentam

Natildeo podemos deixar de nos referenciarmos neste momento ao ldquoestaacutedio do espelhordquo de

Lacan Ou seja parece que estamos falando do processo de constituiccedilatildeo deste sujeito

o que nos remete agrave problemaacutetica dos limites e das fronteiras da vida psiacutequica (Cardoso

2004 Figueiredo 2003) a delimitaccedilatildeo entre o eu e o outro o dentro e o fora incluin-

251Corpo em psicanaacutelise e obesidade

do aiacute tambeacutem os limites da proacutepria simbolizaccedilatildeo que parece nestes casos ser sempre

precaacuteria

Nessa configuraccedilatildeo subjetiva o corpo eacute sentido como um peso e natildeo como unidade

e posse sendo entatildeo qualquer sensaccedilatildeo aiacute localizada um enigma a ser decifrado um

acontecimento para o qual natildeo estatildeo preparados para lidar Natildeo se observa um estado

de desintegraccedilatildeo corporal como visto na psicose mas um estado no qual a unificaccedilatildeo eacute

fraacutegil e provisoacuteria O que se constata eacute que o sujeito convive com uma imagem corporal

pouco delimitada marcada por equiliacutebrio precaacuterio prestes a desmontar Constata-se que

quando apresentam certo senso de corpo natildeo eacute nessa totalidade que se reconhecem e

o corpo eacute raramente reconhecido como proacuteprio Haacute tambeacutem um sentimento de estra-

nheza com relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees e percepccedilotildees e ateacute mesmo uma negaccedilatildeo da realidade

objetiva do corpo verificando-se a alteraccedilatildeo na capacidade de nomeaccedilatildeo das sensaccedilotildees

corporais

O obeso fica sem condiccedilatildeo de traccedilar uma imagem de si pois natildeo se fixa nela Seu olhar

poderia auxiliaacute-lo a formar uma imagem psiacutequica mais soacutelida e consistente mas eacute um

olhar que se desvia Com isto perde a possibilidade de se ver com seus contornos e seu

tamanho real passando a imaginaacute-los Em seu relato o paciente obeso traz uma sensa-

ccedilatildeo desagradaacutevel de se sentir devassado pelo olhar do outro uma sensaccedilatildeo de insegu-

ranccedila quando observa que natildeo passa despercebido

Estranhamentodaimagemnaobesidade

Freud (1914) vai ressaltar tambeacutem a importacircncia do olhar na constituiccedilatildeo do eu do

sujeito o que vai lhe propiciar para o resto da vida uma maior sensaccedilatildeo de unidade e

completude A teoria do narcisismo em Freud mostra que eacute pela idealizaccedilatildeo do proacuteprio

eu mediante o narcisismo dos pais o qual vai libidinizar o eu da crianccedila relegando-a agrave

alienaccedilatildeo das imagos parentais cujos defeitos e incompletudes foram apagados Eacute por

esta alienaccedilatildeo que se forma o eu consciente da crianccedila tal qual Freud (1923) o concebe

instacircncia corporal e superfiacutecie de projeccedilatildeo psiacutequica

Eacute importante refletir sobre as implicaccedilotildees da aderecircncia do indiviacuteduo ao discurso atual

e a proacutepria funccedilatildeo do narcisismo na economia psiacutequica do sujeito de modo a lanccedilar

252

questionamentos a respeito da particularidade desta forma de subjetivaccedilatildeo na qual se

inclui a obesidade

A imagem do gordo causa sem duacutevida um estranhamento Apesar do ideal da sauacutede

apresentar-se como moral para todos as pessoas identificadas como obesas satildeo espe-

cialmente vistas e criticadas por supostamente natildeo se submeterem a um regime res-

tritivo do prazer e de seus corpos Pois bem eacute frequente tambeacutem na fala de pacientes

obesos de que quando eram magros tampouco eram felizes E eacute neste momento que o

sujeito pode questionar-se a respeito de sua alienaccedilatildeo promovida no momento do estaacute-

dio do espelho tal qual o cunha Lacan (1949) nesta mudanccedila assumida pelo sujeito agrave

medida em que ele se identifica a uma imagem que eacute sua

Eacute no momento de questionamento que estes sujeitos tecircm a possibilidade de sair do lu-

gar de exclusatildeo justamente por compreender que sua posiccedilatildeo de sujeito eacute descentrada

longe dos aportes imaginaacuterios promovidos pela sua constituiccedilatildeo narciacutesica Frequente-

mente assim os obesos satildeo representantes no imaginaacuterio social de significados em

uma identificaccedilatildeo a um gozo num excesso posiccedilatildeo que assumem em muitos momen-

tos mas que lhes eacute alheia pois natildeo se trata de identificaccedilatildeo consciente Satildeo pessoas que

muitas vezes natildeo sabem da onde adveacutem tanta rejeiccedilatildeo e gordura

Este processo de questionamento pode ser realizado pelo confronto com os significan-

tes de sua histoacuteria abrindo a possibilidade de um espaccedilo de indeterminaccedilatildeo que permi-

ta a dialetizaccedilatildeo a escolha e a responsabilizaccedilatildeo pela posiccedilatildeo que ocupa em sua fantasia

Consideraccedilotildeesfinais

O sujeito que constitui sua subjetividade neste periacuteodo poacutes-moderno confronta-se e se

estrutura em um momento de exacerbaccedilatildeo das condiccedilotildees que favorecem o lanccedilamento

agrave sua condiccedilatildeo primitiva de desamparo a pluralidade de objetos ofertados Estes objetos

mascaram a esta condiccedilatildeo do sujeito caracteriacutestica de seu desenvolvimento primitivo

no qual se encontrava no estado de prematuraccedilatildeo fiacutesica impossibilitado de ter prazer

por si mesmo e de acalmar suas necessidades e demandas

Haacute neste ponto algumas bases para se pensar como na atualidade a constituiccedilatildeo da

imagem e corpo fixa-se numa demanda de identificaccedilatildeo a um objeto perfeito uacutenico e

253Corpo em psicanaacutelise e obesidade

completo por meio do qual capta sua imagem Trata-se de uma demanda que encontra

lugar no discurso capitalista contemporacircneo pela oferta de dispositivos aos quais o in-

diviacuteduo identifica-se no intuito de restabelecer uma suposta relaccedilatildeo dual perdida e pela

qual tenta resgatar uma parcela de seu narcisismo Este objeto serviria portanto para

obliterar a falta proacutepria ao seu processo de constituiccedilatildeo como sujeito Esta procura e

alienaccedilatildeo no objeto remetem agrave tentativa de adequaccedilatildeo ao seu Eu ideal momento de sua

constituiccedilatildeo em que era massivamente investimento pelo narcisismo parental

A gestatildeo do proacuteprio desamparo ocorre no encontro com a diferenccedila que promoveria

uma quebra da construccedilatildeo imaginaacuteria e fantasiacutestica do mundo conhecido ao eu onde

as crenccedilas do sujeito foram sedimentadas e contornadas pelo seu narcisismo (Birman

1999) A manutenccedilatildeo desta posiccedilatildeo ilusoacuteria e autocentrada aleacutem de exigir um alto

dispecircndio econocircmico torna-se uma soluccedilatildeo precaacuteria e autoritaacuteria na evitaccedilatildeo do de-

samparo

Nesse sentido o que se verifica na atualidade eacute uma profusatildeo de ofertas que se fundam

no saber de um discurso capitalista apresentando soluccedilotildees para o aplacamento da an-

guacutestia do mal-estar pela sedaccedilatildeo do sujeito Lacan (1958) coloca que o fundamento da

alienaccedilatildeo do sujeito agrave cadeia significante pelo qual a demanda confunde-se agrave satisfaccedilatildeo

das necessidades - o que na sociedade moderna encontra seu apoio nos dispositivos

como a comida as drogas objetos tecnoloacutegicos objetos prontos para o consumo - tem

seu fundamento na primeira relaccedilatildeo de amor do sujeito que o colocava no estado de

completude por ele vivenciado no qual seu Eu se bastava onipotentemente

Trata-se de um amor que mais se assemelha agrave paixatildeo pela sua modalidade de investi-

mento no qual se organiza principalmente pela zona eroacutegena oral relacionando-se com

o objeto amoroso mediante a voracidade que caracteriza a introjeccedilatildeo

Diante disto pode-se compreender que o caraacuteter epidecircmico da obesidade e de outras

modalidades de sofrimento como a toxicomania a anorexia a bulimia depressotildees en-

tre outros mostram sua relaccedilatildeo com a configuraccedilatildeo da cultura contemporacircnea pois

a instabilidade deste periacuteodo histoacuterico favoreceria a regressatildeo destes sujeitos agraves suas

constituiccedilotildees narciacutesicas o eu assumiria o lugar do objeto do proacuteprio investimento libidi-

nal que dele emana O eu torna-se idealizado agarrando-se agrave ilusatildeo de completude que

os objetos fornecem Lazzarini e Viana (2010) a este respeito comentam que haacute uma

254

tendecircncia dos sujeitos de regredirem aos seus narcisismos de modo a se sentirem per-

feitos e seguros gozando da fusatildeo com o objeto primitivo que se encontra localizado

dentro de si

Portanto pode-se conceber que a atualidade promove as condiccedilotildees para uma modali-

dade de sofrimento orientada pelo narcisismo que Freud chamou em alguns momen-

tos de neurose narciacutesica A delimitaccedilatildeo destes casos possibilita o estabelecimento de

relaccedilotildees entre as suas particularidades e as caracteriacutesticas da cultura e da sociedade

contemporacircnea Uma mudanccedila do periacuteodo cultural de Freud que pode ser caracteriza-

da por um aumento da toleracircncia aos excessos excesso do consumo mas tambeacutem da

violecircncia da intoleracircncia da inseguranccedila e do stress situaccedilotildees nas quais a tradiccedilatildeo natildeo

surte o seu efeito coercitivo e limitador como no periacuteodo freudiano

Considerando a delimitaccedilatildeo da neurose narciacutesica podemos articulaacute-la aos casos de

transtornos alimentares Inseridos neste contexto contemporacircneo a vivecircncia do excesso

pulsional encontra expressatildeo nestes casos

Os casos de queixa de obesidade trazem para primeiro plano a problematizaccedilatildeo da expe-

riecircncia psiacutequica do corpo O mal-estar destes sujeitos manisfesta-se pela sua corporei-

dade na dor fiacutesica ou por meio de atuaccedilotildees que implicam uma intervenccedilatildeo neles Logo

fazendo com que estes indiviacuteduos busquem terapias intervencionistas seja por uma

suposta cura do incocircmodo por habitar seu proacuteprio corpo seja pelo vazio que nele haacute e

frente ao qual natildeo parece haver outra possibilidade

Referecircncias

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Sennett R (2001) Autoridade Rio de Janeiro Editora Record

256

Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea

MaacuterciaCristinaMaesso

DanielaScheinkmanChatelard

AndreaHorteacutelioFernandes

Os modos de expressatildeo compreensatildeo e percepccedilatildeo da dor mudam em relaccedilatildeo agrave cons-

truccedilatildeo cultural e social O discurso meacutedico-cientiacutefico vigora na atualidade excluindo a

dimensatildeo do corpo em relaccedilatildeo agrave pulsatildeo desejo e gozo restringindo agrave leitura organicista

as manifestaccedilotildees de sofrimento e dor psiacutequicos oferecendo aliacutevio imediato atraveacutes das

substacircncias quiacutemicas A psicanaacutelise orientada pela eacutetica do desejo cria outro espaccedilo

para o corpo sofrimento e dor ao oferecer a escuta testemunhando a existecircncia do

inconsciente

A dor eacute uma das coisas mais importantes da minha vida

Marguerite Duras

A dor acompanha a humanidade em todas as eacutepocas entretanto os modos de expressatildeo

interpretaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dor se distinguem no decurso da histoacuteria As vias criadas

257Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea

pelo ser humano para formular sobre o sofrimento e a dor transitaram principalmente

entre o discurso religioso com a suposiccedilatildeo de causas miacutesticas e o discurso cientiacutefico

na busca insaciaacutevel da localizaccedilatildeo objetiva do agente causador da dor A criaccedilatildeo artiacutestica

pode ser outra via para contornar a dor contudo despreocupada quanto a conhececirc-la

para dominaacute-la Vale lembrar como constataccedilatildeo do irrepresentaacutevel posto na arte a de-

claraccedilatildeo escrita por Marguerite Duras (1986) sobre seu livro A Dor de onde destacamos

a frase posta na epiacutegrafe

Como pude escrever isto que ainda natildeo sei nomear e que me assombra quando releio Como pude abandonar esse texto durante anos naquela casa de campo constantemente inundada no inverno A Dor eacute uma das coisas mais importantes de minha vida A palavra ldquoescritordquo natildeo seria adequada Encontrei-me diante de paacuteginas metodicamente repletas de uma letra extraordinariamente regular e calma Encontrei-me diante de uma fenomenal desordem do pensamento e do sentimento que natildeo ousei tocar e comparada agrave qual a literatura me envergonha ( p 8)

A dor se manifesta lancinante no corpo mas tambeacutem eacute representada nas criaccedilotildees hu-

manas de diversos modos na Biacuteblia e na Mitologia Grega como puniccedilatildeo divina nas

Belas Artes conservando seu aspecto irrepresentaacutevel nas Ciecircncias Bioloacutegicas atraveacutes

das pesquisas semioloacutegicas e pela busca de tratamento a fim de apaziguaacute-la

Natildeo se contesta que a experiecircncia da dor seja subjetiva J Cambier (2012 p 399) pro-

fessor de cliacutenica neuroloacutegica declara que ldquoa dor natildeo eacute fisicamente mensuraacutevelrdquo pode-se

apenas identificar atraveacutes de estimulaccedilatildeo eleacutetrica o limite da dor que eacute variaacutevel tanto

de um indiviacuteduo para o outro quanto no proacuteprio indiviacuteduo dependendo da situaccedilatildeo Se

a dor varia dependendo das circunstacircncias no corpo de um mesmo indiviacuteduo natildeo eacute

improacuteprio considerar que haacute incidecircncia da construccedilatildeo cultural e social sobre a experi-

ecircncia subjetiva da dor

O estudo que aborda a histoacuteria da dor no ocidente demarca que os significados da dor

satildeo distintos em cada eacutepoca natildeo satildeo os mesmos em todas as civilizaccedilotildees mudam de

sentido de acordo com a cultura e a sociedade transformando a relaccedilatildeo do sujeito com

a dor

A mudanccedila de sentido que uma sociedade daacute agrave dor eacute menos importante do que as

consequecircncias desta transformaccedilatildeo sobre a experiecircncia individual da dor os diferen-

258

tes significados atribuiacutedos agrave dor ndash prova necessaacuteria mal que precede um bem maior

castigo fatalidade ndash modificam a percepccedilatildeo que o sujeito tem da dor aumentando ou

diminuindo sua capacidade de resistecircncia (Rey 2012 p 20)

Isso posto eacute preciso considerar que na contemporaneidade evidencia-se a potecircncia do

discurso meacutedico-cientiacutefico sustentado pela sofisticaccedilatildeo tecnoloacutegica das maacutequinas e pelo

avanccedilo das pesquisas na produccedilatildeo de faacutermacos que auxiliam no diagnoacutestico e tratamen-

to da dor seja ela fiacutesica ou psiacutequica

No coloacutequio sobre O lugar da psicanaacutelise na medicina Lacan (19662001) mencionou

que a definiccedilatildeo do homem moderno eacute determinada pelo mundo cientiacutefico em torno

dos ideais da sauacutede gerando na sociedade uma demanda especiacutefica de sauacutede e cura ao

mesmo tempo depositando nas matildeos do meacutedico - a quem todos vecircm requerer o ldquoticket

de benefiacuteciordquo com resultado imediato - o poder que adveacutem dos produtos tecnoloacutegicos e

quiacutemicos de uacuteltima geraccedilatildeo

A leitura de Birman (2001) acerca do mal-estar na contemporaneidade coaduna com

esse apontamento de Lacan ao considerar os fundamentos da cultura do narcisismo e

da sociedade do espetaacuteculo desenvolvidos respectivamente por Lasch e Debord29 como

intervenientes no direcionamento bioloacutegico das pesquisas psicopatoloacutegicas atuais lar-

gamente pautadas nos conhecimentos geneacuteticos bioquiacutemicos e psicofarmacoloacutegicos O

discurso psicopatoloacutegico atual na concepccedilatildeo de Birman estaacute submetido ao ideal social

de sanidade que preconiza o evitamento da dor e do sofrimento psiacutequico ao ser fomen-

tado pela cultura do narcisismo e pela sociedade do espetaacuteculo que propotildeem o gozo

imediato do tempo presente resultado da exaltaccedilatildeo do eu na cena social e da perda das

relaccedilotildees do sujeito com o tempo e a histoacuteria Birman (p 242) indica as consequecircncias

para o sujeito do que ele nomeia como ldquosubversatildeo da tradiccedilatildeo eacutetica do Ocidenterdquo pelo

ideal cientificista mencionando a mudanccedila significativa na subjetivaccedilatildeo das paixotildees

(pathos) a partir do uso eloquente das drogas (liacutecitas ou iliacutecitas) contra a anguacutestia e a de-

pressatildeo afirmando o aumento vertiginoso da medicalizaccedilatildeo psicofarmacoloacutegica sobre o

sofrimento psiacutequico em relaccedilatildeo agrave diminuiccedilatildeo do limiar suportaacutevel dos sofrimentos nos

indiviacuteduos que por sua vez passam a demandar as substacircncias miraculosas

29 O autor se refere agraves seguintes publicaccedilotildees Lasch C The culture of narcissism Nova York Warner Barnes Books 1979 e Debord G La socieacuteteacute du spectacle Paris Gallimard 1992

259Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea

Outro apontamento importante realizado por Birman (p 58) acerca do mal-estar na

contemporaneidade articulado agrave pregnacircncia do discurso meacutedico-cientiacutefico concerne agrave

ldquocolonizaccedilatildeo do corpo-organismo pela medicinardquo Com isso dividem-se as competecircncias

teoacuterico-cliacutenicas e o ser humano constituindo como domiacutenio do territoacuterio meacutedico o sa-

ber sobre o organismo que eacute separado do psiquismo esse uacuteltimo devendo ser tratado e

investigado no territoacuterio da psicologia e ou da psicanaacutelise Nessa correlaccedilatildeo o organismo

sem subjetividade pertence ao conjunto da cliacutenica meacutedica assim como o psiquismo

sem organismo pertence ao conjunto composto pela cliacutenica psicoloacutegica O resultado

dessa operaccedilatildeo eacute a subtraccedilatildeo ou exclusatildeo do corpo que foi concebido por Freud com

marcado pela pulsatildeo e pelo desejo

Lacan (19662001 p 32) situou os fenocircmenos corporais que satildeo considerados e nome-

ados pela medicina como psicossomaacuteticos a partir de uma falha ldquoepistemo-somaacuteticardquo

Ao criar esse termo ldquoepistemo-somaacuteticardquo e colocaacute-lo articulado a uma falha Lacan alude

ao fracasso do progresso cientiacutefico em relaccedilatildeo ao saber sobre o corpo na medida em

que exclui a dimensatildeo do gozo dessa relaccedilatildeo A falha epistemo-somaacutetica refere-se ao

alcance impossiacutevel do conhecimento absoluto almejado pelo ideal cientiacutefico acerca dos

enigmas apresentados pelo corpo Ideal de conhecimento cujo ponto de partida para

conquistaacute-lo se localiza na criaccedilatildeo de ldquouma liacutengua bem feitardquo que permita a realizaccedilatildeo

de uma ldquoleitura exaustiva sem obscuridade ou resiacuteduordquo na qual ldquotodas as manifestaccedilotildees

patoloacutegicas falariam uma linguagem clara e ordenadardquo capaz de transformar todos os

sintomas em signos (Foucault 1998 p107)

A psicanaacutelise natildeo nega nem exclui que o corpo goza e fala atraveacutes dos sintomas por

situar-se em referecircncia a um discurso que difere fundamentalmente da ordem do dis-

curso cientiacutefico em diversos aspectos dos quais se destaca o tratamento das questotildees do

corpo em relaccedilatildeo ao inconsciente Do corpo-organismo concebido pela ciecircncia meacutedica

exclui-se a dimensatildeo do gozo do que o corpo diz-fazendo-menccedilatildeo ao gozo suposto e

perdido por meio de fenocircmenos somaacuteticos como Lacan sinalizou Numa metaacutefora que

alude agrave primazia do organismo sobre o corpo proposto na ciecircncia atual podemos dizer

que o ato meacutedico que rapidamente diagnostica e medica funciona como um ato antro-

pofaacutegico que engole a dimensatildeo do corpo portanto do humano em nome da ciecircncia e

empanturra o organismo com as substacircncias quiacutemicas que a induacutestria oferece

260

Tomando esse panorama parcial acerca do mal-estar na contemporaneidade articulado

agrave pregnacircncia do discurso meacutedico-cientiacutefico colocado na funccedilatildeo de dominar o sofrimen-

to que aflige o ser humano concernente agraves paixotildees (pathos) na forma das inibiccedilotildees

sintomas e anguacutestia e estendendo a questatildeo agrave manifestaccedilatildeo da dor no corpo eacute possiacutevel

conceber que a consequecircncia da raacutepida resposta agrave demanda por medicamentos eacute pro-

porcional agrave diminuiccedilatildeo do limiar suportaacutevel da dor

No campo da psicanaacutelise a questatildeo que envolve corpo sofrimento e dor se apresenta

desde seus primoacuterdios quando Freud passou a investigar a demonstraccedilatildeo do sintoma

histeacuterico no corpo em relaccedilatildeo agrave sexualidade distinguindo-o da leitura proposta pela

neurologia na qual o sintoma tinha significado preconcebido em referecircncia agrave estrutura

e ao funcionamento orgacircnico A separaccedilatildeo de Freud da concepccedilatildeo meacutedica do sintoma

aumentou na medida em que avanccedilou em seu percurso propondo um novo meacutetodo de

investigaccedilatildeo orientado pelo material inconsciente em formaccedilatildeo na fala no sonho no

chiste no lapso no ato falho e tambeacutem no sintoma

Freud atribuiacutea a Charcot o meacuterito de ter livrado a histeria do descreacutedito dos meacutedicos que

a interpretavam como uma simulaccedilatildeo um teatro mas ele rompeu com seu mestre a

respeito da qualificaccedilatildeo de ldquolesatildeo funcionalrdquo dada ao sintoma histeacuterico e tambeacutem com a

consideraccedilatildeo do caraacuteter generalizado do trauma que passou a ser abordado por ele em

sua particularidade A lesatildeo funcional histeacuterica remete ao que natildeo pode ser capturado

ao niacutevel do olhar na necropsia consistindo em uma lesatildeo suposta mas essa qualifica-

ccedilatildeo garante que o meacutetodo de diagnoacutestico meacutedico que transforma o sintoma em signo

patognomocircnico subsista E ao fazer do sintoma um signo representativo da doenccedila

descarta-se sua dimensatildeo significante (Allouch 1995) Nesse ponto localiza-se a rup-

tura fundamental realizada por Freud com o campo meacutedico para constituir o campo

psicanaliacutetico referido ao saber inconsciente

A interpretaccedilatildeo freudiana da lesatildeo funcional como lesatildeo devida agrave ligaccedilatildeo da represen-

taccedilatildeo a uma outra representaccedilatildeo implica que a passagem ao sintoma da primeira estaacute

referida a esta proacutepria ligaccedilatildeo e natildeo a um processo de incubaccedilatildeo de extensatildeo da uacutenica

representaccedilatildeo que tem em conta a teoria do trauma de Charcot O acreacutescimo por Freud

dessa outra representaccedilatildeo traumaacutetica eacute decisivo pois ela escapa assim ao saber tanto

ao do meacutedico quanto ao da histeacuterica O saber do trauma elaborado por Freud daacute lugar

261Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea

agrave fala da histeacuterica pois ele espera desta fala em conformidade com a estrutura de seu

discurso a produccedilatildeo de um saber natildeo sabido (Allouch 1995 p 49)

Nessa formulaccedilatildeo Allouch aponta que Freud deslocou o sintoma da posiccedilatildeo de signo

tal qual era concebido colocando-o na posiccedilatildeo de significante no sentido lacaniano do

termo ao concebecirc-lo como representaccedilatildeo que alude ao irrepresentaacutevel O sintoma histeacute-

rico na psicanaacutelise eacute um significante que representa o sujeito para outro significante

o do trauma que por sua vez escapa agrave representaccedilatildeo absoluta e cristalizada Para isso

Freud tambeacutem teve de se deslocar da posiccedilatildeo do cientista em relaccedilatildeo ao saber passando

da referecircncia ao saber constituiacutedo na linguagem especializada agrave referecircncia ao saber in-

consciente constituiacutedo pela fala dos seus pacientes

A criaccedilatildeo de Freud do conceito de trieb traduzido por pulsatildeo cedeu devido lugar ao

corpo humano rompendo com a dicotomia entre corpo e alma Com a escolha do termo

trieb Freud (19152004) formulou sobre a forccedila constante que emana do corpo fonte

pulsional em direccedilatildeo agrave satisfaccedilatildeo que soacute pode ser parcial por apenas contornar o objeto

(que tampouco eacute definido e existente) para satisfazer a excitaccedilatildeo corporal

Hanns (2004) nos esclarece que o termo trieb no alematildeo e tambeacutem em Freud se refere

agraves determinaccedilotildees da natureza incluindo as determinaccedilotildees psiacutequicas enquanto instinkt

enfatiza a articulaccedilatildeo entre o bioloacutegico e o fisioloacutegico como determinantes

Mas eacute na posiccedilatildeo entre o psiacutequico e o somaacutetico na qual Freud (19152004) concebe o

conceito de pulsatildeo (trieb) como conceito-limite que ele situa o corpo num lugar propria-

mente humano dependente da relaccedilatildeo com o Outro e com linguagem

Se abordamos agora a vida psiacutequica do ponto de vista bioloacutegico a ldquopulsatildeordquo nos aparece-

raacute como um conceito-limite entre o psiacutequico e o somaacutetico como o representante psiacutequico

[itaacutelico nosso] dos estiacutemulos que provecircm do interior do corpo e alcanccedilam a psique

como uma medida da exigecircncia de trabalho imposta ao psiacutequico em consequecircncia de

sua relaccedilatildeo com o corpo ( p 148)

O destaque sobre ldquorepresentante psiacutequicordquo refere-se a sinalizar que Freud trata da proacute-

pria inscriccedilatildeo do corpo na linguagem ao definir desse modo o conceito de pulsatildeo Nas

notas sobre a traduccedilatildeo dos termos utilizados por Freud no artigo Pulsotildees e destinos das

pulsotildees Hanns atenta para o uso do termo representante em alematildeo repraumlsentant sig-

262

nificando ldquoestar no lugar derdquo ldquosubstitutordquo alertando que frequentemente chega a ser

confundido nos idiomas latinos por ldquorepresentaccedilatildeordquo ldquofiguraccedilatildeordquo ldquoapresentaccedilatildeordquo Para

ldquofiguraccedilatildeordquo ou ldquoapresentaccedilatildeordquo utiliza-se a palavra vorstellung em alematildeo

A pulsatildeo situada como representante entre o corpo e o psiacutequico como o que estaacute no

lugar de outra coisa ldquonatildeo habita lugar nenhumrdquo como Garcia-Roza considerou mas

sendo uma potecircncia indeterminada soacute pode ter alguma determinaccedilatildeo ao ser capturada

pelo aparelho psiacutequico formulado por Freud ou pela rede de significantes concebida

por Lacan Na leitura de Garcia-Roza (1995) entre pulsatildeo e linguagem se estabelece

uma relaccedilatildeo dialeacutetica

O aparato aniacutemico pode ser visto como um aparato de captura Sua funccedilatildeo eacute capturar as

intensidades pulsionais dispersas e organizaacute-las Mas este aparato de captura eacute tambeacutem

um aparato de linguagem Mesmo quando o concebemos como um aparato de me-

moacuteria essa memoacuteria eacute memoacuteria de uma escritura psiacutequica Eacute portanto a linguagem o

princiacutepio estruturante das pulsotildees No entanto se eacute a linguagem que confere agraves pulsotildees

uma organizaccedilatildeo satildeo as pulsotildees que conferem agrave escritura psiacutequica sua intensidade (p

73)

Com a criaccedilatildeo freudiana do conceito de pulsatildeo amplia-se o campo de investigaccedilatildeo sobre

o corpo o sofrimento e a dor incluindo a problemaacutetica questatildeo da sexualidade

Freud jaacute apontava para os conflitos que enfrentamos atualmente na eacutepoca em que

escreveu O mal estar na civilizaccedilatildeo (1929-19301990) formulando que o humano

diante do desamparo e do sofrimento que vecircm de nosso corpo do mundo externo e

da relaccedilatildeo com o semelhante construiu formas sofisticadas para amortecer e evitar as

preocupaccedilotildees Por meio de substacircncias quiacutemicas da ciecircncia e da religiatildeo a humani-

dade encontrou uma saiacuteda que por um lado esboccedila proteccedilatildeo e aliacutevio da dor mas por

outro produz alienaccedilatildeo Nesse texto Freud indica que o homem se tornou parecido a

um ldquoDeus de proacuteteserdquo nomeaccedilatildeo que ganha maior consistecircncia nos tempos atuais

em funccedilatildeo do avanccedilo da ciecircncia da tecnologia e da importacircncia dada a essas esferas

da criaccedilatildeo humana na resoluccedilatildeo de problemas

Freud (19081990) investigou por exigecircncia de seu trabalho cliacutenico a importacircncia do

contexto social na constituiccedilatildeo do sintoma de seus pacientes chegando a formular a

263Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea

problemaacutetica dicotomia entre sexualidade e civilizaccedilatildeo na formaccedilatildeo do sintoma neuroacute-

tico defendendo de forma otimista em seu texto Moral sexual civilizada e doenccedila nervosa

moderna que uma reforma na moral social poderia evitar a neurose dos sujeitos

Em funccedilatildeo da continuidade de sua investigaccedilatildeo imposta pela cliacutenica Freud constatou

que a responsabilidade pelo sintoma dos sujeitos natildeo era da civilizaccedilatildeo mas que os

proacuteprios sujeitos manifestavam repulsa agrave sexualidade e que a sexualidade era fonte

de perturbaccedilatildeo para o humano Sendo assim ele formulou em Totem e Tabu (Freud

1912-19131990) ao investigar sobre a origem da civilizaccedilatildeo que os homens criaram as

instituiccedilotildees sociais pautadas na moral e nos tabus organizadas em torno da culpa que

se aloja na realidade psiacutequica Essa culpa eacute decorrente de um ato miacutetico do assassinato

do pai

A ficccedilatildeo criada por Freud em Totem e Tabu trata da existecircncia de um pai uacutenico a gozar

de todas as mulheres do grupo que proibia aos outros membros pertencentes ao grupo

que eram seus filhos a possibilidade de ter acesso a essas mulheres e por esse moti-

vo o pai foi assassinado e devorado pelos proacuteprios filhos Com o pai morto os irmatildeos

tiveram de instaurar e se submeter agrave lei contra o incesto renunciando agraves mulheres

desejadas para natildeo se tornarem rivais destinados agrave destruiccedilatildeo muacutetua e para manter a

organizaccedilatildeo do grupo

Freud afirma que o ato que correspondeu ao assassinato do pai marcou o princiacutepio da

civilizaccedilatildeo pois consequentemente levou agrave instauraccedilatildeo da lei da interdiccedilatildeo do incesto e

agrave criaccedilatildeo da religiatildeo totecircmica que eacute tambeacutem um sistema social

O homem criou a civilizaccedilatildeo para encaminhar seus conflitos subjetivos relativos ao de-

samparo agraves instituiccedilotildees humanas se articulam a expressatildeo subjetiva dos indiviacuteduos A

formulaccedilatildeo de Fuks (2003) eacute precisa para exprimir essa articulaccedilatildeo

Freud designa como cultura a interioridade de uma situaccedilatildeo individual ndash manifesta nos

impulsos que vecircm desde dentro do sujeito ndash e a exterioridade de um coacutedigo universal

subjacente aos processos de subjetivaccedilatildeo e aos regulamentos das accedilotildees do sujeito com o

outro (p 10)

As construccedilotildees culturais e sociais trazem a marca do desamparo humano em relaccedilatildeo a um

gozo impossiacutevel de obter similar ao gozo do pai da horda da ficccedilatildeo freudiana a partir da

264

qual Freud demonstrou o quanto o ser humano estaacute envolvido na busca interminaacutevel

pela obtenccedilatildeo de uma satisfaccedilatildeo absoluta mas por ser essa satisfaccedilatildeo inalcanccedilaacutevel eacute

preciso inventar sua proibiccedilatildeo A produccedilatildeo e uso indiscriminado das substacircncias quiacute-

micas para aliviar o sofrimento e dor psiacutequicos revelam uma tentativa de restituiccedilatildeo

desse gozo entretanto essa tentativa natildeo eacute completamente bem sucedida em razatildeo de

um resto que concerne agrave pulsatildeo forccedila constante e indeterminada que emana do corpo

A partir desse resto a articulaccedilatildeo entre corpo sofrimento e dor eacute tratada na psicanaacutelise

diferentemente do corpo-organismo da medicina Desde os conceitos de trauma e de

trieb cunhados por Freud para considerar o desamparo e o sofrimento humano diante

da sexualidade ateacute as construccedilotildees de Lacan acerca do objeto a como causa do desejo

ou mais-de-gozar para formular sobre o desejo e o gozo a escritura lacaniana do noacute

borromeano demarcando a incidecircncia do real simboacutelico e imaginaacuterio articulados e

delimitando distintas modalidades de gozo satildeo ferramentas que permitem conceber

o corpo e o sofrimento que nele se manifesta a partir da eacutetica orientada pelo real que

escapa ao ideal do conhecimento cientiacutefico

Lacan (1959-19601997) retira a discussatildeo sobre a eacutetica que comumente incide sobre o

domiacutenio do ideal passando a orientar-se na relaccedilatildeo do homem ao real A eacutetica regula

a praacutexis da psicanaacutelise ressaltando a responsabilidade sobre o sintoma e o desejo prin-

cipalmente quanto agrave posiccedilatildeo ocupada pelo analista na relaccedilatildeo transferencial na qual

geralmente eacute alvo do endereccedilamento da demanda de felicidade almejada pelo encontro

ao Bem Supremo As construccedilotildees culturais e imperativos sociais de cada eacutepoca podem

funcionar como determinantes do ideal de felicidade Entretanto pela proacutepria posiccedilatildeo

do analista de escutar o que nessa demanda se articula o percurso da anaacutelise permite

o contato com a problemaacutetica do desejo que eacute singular e nisso consiste sua dimensatildeo

traacutegica

Lacan (1959-19601997) encontrou na trageacutedia de Soacutefocles Antiacutegona argumentos fe-

cundos para abordar a questatildeo do desejo e da eacutetica psicanaliacutetica

Representada pela primeira vez em 441 aC a trageacutedia se passa em Tebas e inicia-se

a partir da morte dos dois irmatildeos de Antiacutegona (filha da uniatildeo incestuosa de Eacutedipo e

Jocasta) em combate muacutetuo Eteoacutecles por defender a cidade foi enterrado com todas

as honras enquanto Polinices que foi tomado como traidor da cidade seria punido

265Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea

segundo a determinaccedilatildeo do rei Creonte deixado insepulto para ser devorado pelas aves

carniceiras Antiacutegona ciente do decreto do rei decide enterrar seu irmatildeo Polinices com

todos os rituais necessaacuterios para encaminhaacute-lo ao aleacutem mesmo sabendo da puniccedilatildeo (de

morte) prevista para quem desobedecesse ao edito do rei Flagrada nesse ato junto ao cadaacute-

ver do irmatildeo os guardas a levaram a Creonte que se viu obrigado a sentenciar sua morte

Hemon filho de Creonte e noivo de Antiacutegona admirado pela atitude da amada tenta

argumentar em vatildeo com o pai para de demovecirc-lo da sentenccedila de morte de Antiacutegona

Mas Creonte determina que Antiacutegona seja enterrada viva O oraacuteculo Tireacutesias que era

cego anteviu desgraccedilas para Creonte se ele mantivesse a condenaccedilatildeo de Antiacutegona de-

sagradando aos deuses Relutante quando Creonte volta atraacutes em sua decisatildeo de punir

Antiacutegona era tarde demais Enterrada viva natildeo pertencendo nem aos vivos nem aos

mortos ela se enforcou deixando Hemon seu futuro marido em desespero Respon-

sabilizando o pai pelo suiciacutedio da amada Hemon tenta mataacute-lo e como natildeo consegue

mata-se em seguida Euriacutedice matildee de Hemon e mulher de Creonte ao saber dos acon-

tecimentos tambeacutem se suicida Creonte lamenta a trageacutedia (Kury 2004)

Lacan (1959-19601997) destaca que a recusa de Antiacutegona a curvar-se ao edito do rei

aponta que a lei eacute ldquonatildeo todardquo que haacute leis natildeo escritas de modo que em relaccedilatildeo ao dese-

jo cabe a cada um de modo proacuteprio escrever A lei escrita por Creonte estaacute pautada em

ldquoquerer fazer o bem de todosrdquo para honrar aqueles que defenderam Tebas e preservaacute-

-la dos inimigos mas ele comete um erro de julgamento Ao impor sua visatildeo a partir

de um valor de consistecircncia moral fica cego para o desejo Antiacutegona segue na direccedilatildeo

contraacuteria a de Creonte ela ldquonatildeo cede de seu desejordquo mesmo que tenha que atravessar o

ldquotemor e a piedaderdquo para responsabilizar-se e pagar por ele

A eacutetica de Antiacutegona se aproxima do compromisso eacutetico do analista em relaccedilatildeo agrave falta-a-

-ser o traacutegico na psicanaacutelise relaciona-se agrave sua eacutetica que consiste na responsabilizaccedilatildeo

de cada um na direccedilatildeo de sustentar-se na trilha do desejo proacuteprio implicando em su-

portar o sofrimento que corresponde ao desamparo e agrave falta de um gozo absoluto

Atualmente a manifestaccedilatildeo de dores difusas no corpo sem lesatildeo correspondente ou

evidecircncias de um agente causador eacute nomeada como fibromialgia de acordo com o

diagnoacutestico meacutedico que eacute estritamente cliacutenico O tratamento recomendado pela Socie-

dade Brasileira de Reumatologia (Hermann et al 2010) associa recursos farmacoloacutegi-

cos destacando o uso de antidepressivos relaxantes musculares analgeacutesicos simples e

266

opiaacuteceos leves aos exerciacutecios fiacutesicos variados como os aeroacutebicos de alongamento e de

fortalecimento muscular e agraves terapias como fisioterapia terapia cognitivo-comporta-

mental e suporte psicoteraacutepico

Considerando que o tratamento da fibromialgia gira em torno de aliviar a dor que in-

siste apesar dele sendo por isso concebida como siacutendrome crocircnica formulamos uma

questatildeo A fibromialgia poderia ser tomada como um testemunho da falha epistemo-

-somaacutetica (Lacan 19662001) como uma declaraccedilatildeo do fracasso cientiacutefico ao excluir a

dimensatildeo do gozo e do corpo

Cabe agrave psicanaacutelise natildeo recuar diante dessa discussatildeo acerca do sofrimento e dor para

propor outra psicopatologia referida agrave eacutetica que inclui o corpo em relaccedilatildeo ao desejo e

gozo e outro tratamento oferecendo a escuta que remete agrave existecircncia do inconsciente

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268

Narcisismo e estados limites

MaacuterciaTeresaPorteladeCarvalho

ElianaRigottoLazzarini

TerezinhadeCamargoViana

Neste ensaio pretendemos estabelecer uma compreensatildeo sobre a relaccedilatildeo entre o nar-

cisismo tal qual formulado por Freud e os estados-limite30 Iniciamos nossa anaacutelise

priorizando o narcisismo como categoria conceitual freudiana e suas relaccedilotildees com a

estruturaccedilatildeo do Eu Tendo ainda esse conceito como foco de estudo buscamos compre-

ender a repercussatildeo e a crescente difusatildeo do que tem sido descrito e difundido como

um fenocircmeno no espaccedilo de vida contemporacircneo e sinal de patologia tiacutepica de nossa

30 Este texto eacute baseado em pesquisas que veumlm sendo desenvolvidas no Laboratoacuterio de Psicanaacutelise e Subjetivaccedilacirco ndash Lapsus da Universidade de Brasiacutelia sobre as temaacuteticas de psicopatologias narciacutesicas corporeidade e estados limites e que tecircm se consubstanciado em produccedilotildees relevantes dentre as quais Carvalho M T P (2011) A atualidade dos estados limite trauma e trabalho do negativo Tese de doutorado em Psicologia Cl[inica e Cultura Universidade de Brasiacutelia Pesquisa apoiada pela CAPES Orientadora Terezinha de Camargo Viana

269Narcisismo e estados limites

eacutepoca Em seguida passamos a formular uma aproximaccedilatildeo entre o fenocircmeno e a cliacutenica

psicanaliacutetica contemporacircnea tendo em vista os chamados casos-limite ou estados-limite

Tendo ainda esse conceito como foco de estudo buscamos compreender a repercussatildeo

e a crescente difusatildeo do que tem sido descrito e difundido como um fenocircmeno no

espaccedilo de vida contemporacircneo e sinal de patologia tiacutepica de nossa eacutepoca Em seguida

passamos a formular uma aproximaccedilatildeo entre o fenocircmeno e a cliacutenica psicanaliacutetica con-

temporacircnea tendo em vista os chamados casos-limite ou estados-limite

Onarcisismocomoconceituaccedilatildeofreudiana

Muito embora o narcisismo natildeo tenha sido formulado por Freud como uma teoria seus

estudos acerca desse tema satildeo tomados como ponto de partida para uma compreen-

satildeo aprofundada do psiquismo mais primitivo Eacute dado lugar essencial agrave sua elaboraccedilatildeo

para a compreensatildeo do processo de constituiccedilatildeo da separaccedilatildeoindividuaccedilatildeo da crianccedila

pequena em relaccedilatildeo ao adulto (Andreacute l996) O estudo de Freud sobre o narcisismo in-

troduz os conceitos de eu ideal e ideal do eu traz uma nova distinccedilatildeo entre libido do eu

e libido do objeto aleacutem de esclarecimentos sobre as relaccedilotildees de objeto Green (2001b)

explicita que a questatildeo do objeto foi apresentada por Freud quando de sua apresentaccedilatildeo

teoacuterica sobre o luto e suas relaccedilotildees com a melancolia No entanto observa ainda esse

autor Freud natildeo havia encontrado a maneira de falar adequadamente do objeto antes da

introduccedilatildeo do conceito de narcisismo em sua teoria

Em seu texto Agrave guisa de introduccedilatildeo ao narcisismo (1914) Freud apresenta o narcisismo

como um estaacutegio no desenvolvimento da libido entre o autoerotismo e o amor objetal

Com isto ele estabelece que o desenvolvimento humano acontece em decorrecircncia de de-

terminados processos sucessivos de identificaccedilotildees primaacuterias e secundaacuterias Freud nos

permite notar a importacircncia do narcisismo em seu texto ao especular que a noccedilatildeo de

narcisismo talvez abranja um campo bem mais vasto do que o das perversotildees podendo-

-se atribuir a ele um importante papel no desenvolvimento normal do humano

Se partirmos da formulaccedilatildeo freudiana de que o fortalecimento e desenvolvimento do Eu

se daacute em direccedilatildeo a uma emancipaccedilatildeo e afastamento da instacircncia autoeroacutetica e narciacutesica

primitiva podemos pressupor que a individuaccedilatildeo do sujeito se daria pelo afastamento

do objeto e pela instauraccedilatildeo da alteridade De acordo com Freud o narcisismo eacute con-

270

cebido como uma dimensatildeo estruturante do psiquismo Contudo Pontalis (2005) nos

apresenta uma reflexatildeo interessante sobre o narcisismo e sua relaccedilatildeo com o Eu O autor

ressalta que o narcisismo nem deve ser visto apenas como uma fase no desenvolvimen-

to do Eu nem como um modo especiacutefico de investimento O narcisismo deve ser en-

tendido como uma posiccedilatildeo um componente insuperaacutevel e permanente do sujeito hu-

mano Ressalta Pontalis (2005) que das funccedilotildees mais intelectuais como o pensamento

ou mais objetivas como a percepccedilatildeo do real e passando para os comportamentos mais

proacuteximos do instinto tais como comer todos trazem a marca do narcisismo

O narcisismo como categoria conceitual trata do processo de constituiccedilatildeo do Eu instacircn-

cia que em Freud natildeo existe desde o nascimento devendo-se constituir no momento

em que o Eu se identifica com a imagem de seu corpo imagem que assume como sua

e mais ainda como sendo ele proacuteprio Refere-se a um fenocircmeno segundo o qual um

indiviacuteduo elege a si proacuteprio como objeto de amor Nas palavras de Freud ldquoA libido re-

tirada do mundo exterior foi redirecionada ao eu dando origem a um comportamento

que podemos chamar de narcisismordquo (Freud 1914 p98)

Para Green (1988) o narcisismo permaneceu para Freud como uma aquisiccedilatildeo pertinen-

te e esclarecedora No entanto esse construto foi deixando de ter a importacircncia devida

nos escritos freudianos na medida em que o conceito de pulsatildeo de morte tomou a

cena aparecendo declaradamente em seu texto denominado Aleacutem do principio do prazer

(1920) Freud definiraacute como narciacutesica a libido retirada do mundo exterior e depositada

no Eu Mas isto natildeo se daacute de forma uniacutevoca como pode parecer agrave primeira vista De fato

o narcisismo eacute interpretado por Freud como um passo necessaacuterio do desenvolvimento

entre o autoerotismo e o amor objetal rumo agrave concepccedilatildeo de um Eu unificado

Laplanche e Pontalis (1983) afirmam que Freud vai propor a existecircncia de um estado

narciacutesico primitivo ao qual ele daacute o nome de narcisismo primaacuterio Este narcisismo

primaacuterio eacute caracterizado por uma ldquoausecircnciardquo de relaccedilotildees com o meio devido a uma

ldquoindiferenciaccedilatildeordquo entre o Eu e o objeto As aspas servem para apontar a impossibilida-

de de uma total indiferenciaccedilatildeo Eu-objeto e a presenccedila de relaccedilotildees com o meio mes-

mo que incipientes O narcisismo primaacuterio corresponderia desse modo a ldquouma fase

precoce ou momentos baacutesicos que se caracterizam pelo aparecimento simultacircneo de

um primeiro esboccedilo de ego e pelo seu investimento pela libidordquo (Laplanche e Pontalis

1983 p 370) Junto agrave ideia de um narcisismo primaacuterio haacute o denominado narcisismo

271Narcisismo e estados limites

secundaacuterio momento em que eacute possiacutevel a percepccedilatildeo de uma maior diferenciaccedilatildeo entre

o Eu e o objeto e momento em que o Eu consegue desinvestir o objeto redirecionando

o investimento para si proacuteprio

Podemos observar que Freud considera a questatildeo da descoberta da escolha narciacutesica de

objeto a razatildeo mais forte para aceitar a hipoacutetese do narcisismo Desta forma o Eu natildeo

seria mais um representante apenas dos interesses de conservaccedilatildeo do indiviacuteduo ele

tambeacutem seria permeado pelo erotismo Esta foi talvez a maior importacircncia teoacuterica do

conceito de narcisismo para a concepccedilatildeo psicanaliacutetica do Eu ou seja o fato de o Eu se

constituir como objeto libidinalmente investido e natildeo apenas um representante dos in-

teresses da autoconservaccedilatildeo como postulado na primeira teoria freudiana das pulsotildees

No artigo de 1914 Freud vai dizer ainda que o ser humano sente com certa facilidade

um fasciacutenio por si mesmo desde o iniacutecio da vida psiacutequica Enfatiza tambeacutem a concep-

ccedilatildeo do narcisismo dominada pela ideia de um fechamento em si mesmo Eacute atraveacutes da

formulaccedilatildeo da metaacutefora do protozoaacuterio ressaltada no texto de 1914 que Freud vai dizer

que na etapa narciacutesica haacute uma indiferenciaccedilatildeo entre o eu e a realidade exterior porque

nessas condiccedilotildees tudo eacute uma posse exclusiva de si mesmo

Aretiradadosinvestimentosdomundoexterior

Freud (1914) faz referecircncia agraves ldquoparafreniasrdquo modernamente concebidas como psicoses

que englobam a paranoia e a esquizofrenia para explicar o fenocircmeno do narcisismo

quando da retirada dos investimentos no mundo exterior Essas patologias evidenciam

o fenocircmeno da perda de interesse de tudo o que diz respeito ao mundo exterior Nesses

casos o que ocorre eacute um exagero e uma distorccedilatildeo no campo do patoloacutegico mas que

pode ser utilizado para compreendermos o fenocircmeno tambeacutem quando pensamos na

dimensatildeo neuroacutetica Teoricamente a perda de interesse no mundo exterior diz respei-

to a uma concentraccedilatildeo desse interesse sobre a proacutepria pessoa A retirada do interesse

dessas pessoas do mundo externo natildeo configura segundo Freud uma atitude perversa

mas uma defesa do Eu ligada agrave necessidade de sobrevivecircncia do indiviacuteduo em funccedilatildeo

da autoconservaccedilatildeo de tal forma havendo um reinvestimento no Eu da libido retirada

dos objetos

272

Na segunda parte do texto de 1914 Freud torna evidente alguns outros caminhos a ob-

servaccedilatildeo da doenccedila orgacircnica a hipocondria e a vida amorosa das pessoas Com respeito

agrave doenccedila orgacircnica Freud observa que para os termos proacuteprios da teoria da libido o

doente recolhe seus investimentos libidinais para o Eu e torna a enviaacute-los apoacutes a cura

Quanto agrave hipocondria esta se comporta como doenccedila orgacircnica Haveria desse modo

uma diferenccedila entre a hipocondria e a doenccedila orgacircnica pois nesta as sensaccedilotildees desa-

gradaacuteveis calcam-se sobre alteraccedilotildees comprovaacuteveis e naquela natildeo Freud explica que na

hipocondria estariacuteamos lidando com uma erogeneidade que emana de uma parte do

corpo e envia estiacutemulos sexuais em direccedilatildeo agrave vida psiacutequica em analogia agrave concepccedilatildeo de

localizaccedilatildeo de zonas eroacutegenas no corpo que substituem os oacutergatildeos genitais e se compor-

tam de maneira anaacuteloga a eles

Freud (1914) encontra na vida amorosa a terceira via de acesso ao narcisismo Eacute impor-

tante ressaltar a forma de Freud enfocar como a crianccedila vai fazendo suas escolhas obje-

tais Ele deixa claro que a crianccedila toma seus objetos sexuais a partir de suas primeiras

experiecircncias de satisfaccedilotildees sexuais autoeroacuteticas vividas em conexatildeo com funccedilotildees vitais

que servem ao propoacutesito de autoconservaccedilatildeo No texto podemos destacar que aqueles

que se envolvem nos primeiros cuidados com a crianccedila vatildeo se tornar seus primeiros

objetos sexuais e que as pulsotildees sexuais a princiacutepio vatildeo se apoiar nas pulsotildees do eu

apesar de distintas

Freud diz que de maneira geral a opccedilatildeo narciacutesica faz com que a pessoa ame segundo o

que ela eacute (a si mesma) o que ela foi o que ela gostaria de ser uma parte de si tomada

independente Do interesse que o indiviacuteduo tem de seu proacuteprio corpo diz ele orienta-se

para um objeto exterior semelhante a ele ou seja homossexual Esta etapa seraacute (ou natildeo)

superada pela escolha heterossexual segundo as condiccedilotildees da vida libidinal Eacute a busca

da diferenccedila que vai propiciar o alcance do objeto de tal forma que ele passe a pertencer

ao dinamismo sexual

Esse movimento para a eleiccedilatildeo objetal narciacutesica movimento da libido em direccedilatildeo agraves

relaccedilotildees objetais na qual o criteacuterio de escolha dos objetos segue o modelo do Eu da pes-

soa ou seja a busca no outro do que ela foi eacute ou gostaria de ser constitui-se num dos

caminhos apontados por Freud para o desenvolvimento do Eu

273Narcisismo e estados limites

Segundo Green (1988) o advento do narcisismo na teoria e no pensamento freudia-

no natildeo soacute foi um marco mas tambeacutem um parecircntese Antes dele foram as pulsotildees de

autoconservaccedilatildeo e depois dele as pulsotildees de morte Com a introduccedilatildeo do conceito de

narcisismo surge claramente no pensamento de Freud a libidinizaccedilatildeo das pulsotildees do

Eu ateacute entatildeo destinadas a autoconservaccedilatildeo Segundo Green foi um salto decisivo para

Freud levar a sexualidade ao seio do Eu quando este uacuteltimo parecia numa primeira

abordagem escapar agrave sua influecircncia O narcisismo eacute a inclusatildeo do Eu na teoria da libido

e no circuito do discurso da psicanaacutelise ou como coloca Birman (1999) ldquoa descoberta

do narcisismo implicou justamente a erotizaccedilatildeo do Eurdquo (p41)

O narcisismo eacute entatildeo para a teoria do Eu a passagem do que diz respeito agrave autoconser-

vaccedilatildeo ou necessidade baacutesica para o amor a libido Introduzir o narcisismo na teoria das

pulsotildees implica fazer com que as pulsotildees tomem o Eu como objeto de investimento

o que se daacute pela erotizaccedilatildeo do proacuteprio corpo Nesse novo esquema o Eu aparece como

uma das possiacuteveis localizaccedilotildees da libido O Eu passa a ser tambeacutem objeto da pulsatildeo se-

xual tanto quanto os demais objetos soacute que de maneira um tanto quanto diferenciada

a qual Freud daacute o nome de libido narciacutesica

A questatildeo que aqui se interpotildee eacute a seguinte como pode o indiviacuteduo a partir de um

eu unificado fechado em si mesmo seguir rumo agrave abertura rumo agrave escolha do outro

como objeto de amor Uma das prerrogativas dessa questatildeo eacute que o fechamento man-

teacutem o sujeito num verdadeiro ldquoamor de sirdquo agigantado onde os campos do outro e dos

objetos ficariam eclipsados por este grandiosismo do Eu senhor e centro do mundo

Por outro lado a percepccedilatildeo da realidade externa forccedilaria o Eu a dirigir aos objetos suas

cargas libidinosas sob pena de que poderaacute adoecer se natildeo o fizer isto eacute poderaacute romper

o viacutenculo com a realidade (Lazzarini 2006) No amor do outro o eu se desprenderia de

parte desse investimento alocando-o no campo do objeto

Andreacute (l996) nos esclarece que esta saiacuteda para o amor pelo outro eacute a proacutepria saiacuteda para

a alteridade ou seja o eu necessitaria mesmo de um confronto amoroso com o outro

para que se possa estabelecer esta saiacuteda Entretanto a tendecircncia do eu vai ser a de sem-

pre tirar proveito e benefiacutecio da situaccedilatildeo o amor por si tendendo a encobrir o amor pelo

outro e passando a ser a dinacircmica narciacutesica aquilo que trabalha para voltar a fechar as

brechas abertas pela irrupccedilatildeo da alteridade Ao permanecer fechado na vida adulta o eu

274

tenderaacute a se perceber como engrandecido eu centro do mundo o que poderaacute caracteri-

zar uma formaccedilatildeo patoloacutegica

Narcisismoepsicanaacutelisecontemporacircneareflexosnacultura

Tem havido uma crescente preocupaccedilatildeo por parte dos psicanalistas contemporacircneos

com a modificaccedilatildeo do perfil da demanda cliacutenica que remonta a fins do seacuteculo passado

O que vem sendo observado eacute um progressivo deslocamento dos quadros neuroacuteticos

para as patologias que envolvem de alguma forma as questotildees narciacutesicas fazendo-se

pertinente uma revisatildeo nos aspectos relacionados a essa demanda e agrave cliacutenica da atuali-

dade Depressatildeo drogadiccedilatildeo anorexia bulimia siacutendromes complexas de toda ordem

constituem reflexos de uma cultura que passa por momentos de indefiniccedilatildeo e mudanccedila

com relaccedilatildeo a valores sociais rompendo com aspectos que eram considerados primor-

diais nos tempos de Freud Como observa Lipovetsky (2005) a respeito da eclosatildeo de tais

fenocircmenos na contemporaneidade

ldquoA patologia mental obedece agrave lei da eacutepoca que tende agrave reduccedilatildeo da rigidez assim como a liquefaccedilatildeo das relevacircncias estaacuteveis a crispaccedilatildeo neuroacutetica foi substituiacuteda pela flutuaccedilatildeo narciacutesica Impossibilidade de sentir vazio emocional donde a dessubstancializaccedilatildeo chegou a seu fim explicitando a verdade do processo narcisista como estrateacutegia do vaziordquo (p55)

O que podemos dizer de uma sociedade como a nossa que se vecirc exaltada pelos avanccedilos

cientiacuteficos e tecnoloacutegicos e em descompasso muitas vezes com a possibilidade de o in-

diviacuteduo apreender esses mesmos avanccedilos O que dizer de uma sociedade competitiva

aquela que gera o empobrecimento da experiecircncia coletiva e valoriza os interesses e as

demandas iacutentimas Que bases essa mesma sociedade estaria oferecendo para a cons-

tituiccedilatildeo da individuaccedilatildeosubjetivaccedilatildeo O que dizer dos sujeitos caracterizados como

casos limites Eles natildeo estatildeo evidenciando uma sobrecarga de tarefas e natildeo estariam

prejudicados pelos padrotildees de eficiecircncia dessa sociedade altamente desenvolvida Satildeo

estas algumas das questotildees que se encontram no compasso dos estudos da conjugaccedilatildeo

entre cultura contemporacircnea e psicanaacutelise

As subjetividades contemporacircneas refletem esses descompassos e uma das consequecircn-

cias desse processo sobressai no sofrimento psiacutequico do sujeito que ganha na atualida-

275Narcisismo e estados limites

de novos contornos Estamos cientes de que apesar de ser uma problemaacutetica da cliacutenica

esse processo se encontra mediado tambeacutem pela cultura calcada na proacutepria crise da

subjetividade fundamentada na modernidade

A grande parte das queixas e perturbaccedilotildees se apresentam hoje sob a forma de um mal

estar difuso e invasor um sentimento de vazio interior uma incapacidade de sentir as

coisas e as pessoas ou dito de outra forma as configuraccedilotildees subjetivas contemporacircneas

tendem a apresentar uma ausecircncia de sofrimento devido a conflitos neuroacuteticos claacutessi-

cos regulados pela loacutegica da castraccedilatildeo e do desejo Fala-se que algo da ordem do desam-

paro primordial disposto por Freud em sua obra tem encontrado espaccedilo diferenciado

em nossos dias Os sintomas neuroacuteticos que correspondiam em grande parte a uma

sociedade mais repressiva tiracircnica autoritaacuteria e puritana deram lugar agraves desordens

narcisistas fruto de uma sociedade mais permissiva e tambeacutem mais ecleacutetica em suas

manifestaccedilotildees Os pacientes natildeo sofrem tanto mais de sintomas fixos e exuberantes na

sua forma mas sim de perturbaccedilotildees vagas e difusas com sentimentos de vazio inte-

rior e incapacidade de sentir as coisas e as pessoas

Dosestados limiteseafragilidadedasfronteirasdoEu

Sabemos o quanto a teoria psicanaliacutetica se atualiza em uma interaccedilatildeo direta e contiacutenua

com a praacutetica cliacutenica de psicanalistas Mesmo que a denominaccedilatildeo estados-limite seja poacutes-

-freudiana e diga respeito a um modo de organizaccedilatildeo do psiquismo que se tornou de

importacircncia na atualidade compreendemos que os casos-limite de todos os tempos satildeo

aqueles que desafiam os diversos profissionais a se deslocarem de seus usuais lugares

de atuaccedilatildeo e compreensatildeo Podemos dizer que todos os casos publicados por Freud ser-

viram para ele de (pre)texto para que sua teoria e praacutetica fossem (re)visadas

Do mesmo modo os denominados na literatura psicanaliacutetica atual de estados limite

casos-limite ou borderline tecircm exigido que psicanalistas ampliem suas escutas O meacutetodo

tradicional do trabalho com pacientes neuroacuteticos a anaacutelise das transferecircncias cede par-

te do espaccedilo para a escuta daquilo que Green (1988b) chama de ldquoa loucura pessoal do

pacienterdquo Se no trabalho analiacutetico com pacientes neuroacuteticos o predomiacutenio eacute a presenccedila

da ansiedade de castraccedilatildeo e uma busca da resoluccedilatildeo ediacutepica da neurose infantil o tra-

balho com os casos-limite revela uma dupla ansiedade a ansiedade de separaccedilatildeo e a de

276

intrusatildeo e um foco especial no luto do objeto primaacuterio vivenciado como excessivo (na

presenccedila ou na ausecircncia) Se na neurose eacute priorizada a teoria do recalque nos estados

limite a priorizaccedilatildeo estaacute focada nas cisotildees dissociaccedilotildees e evitaccedilotildees da constituiccedilatildeo dos

conflitos psiacutequicos

Green (1988b) propotildee a ideia de limite como conceito psicanaliacutetico para descrever a pre-

senccedila na cliacutenica desse sujeito fraacutegil na sustentaccedilatildeo de suas proacuteprias fronteiras psiacutequi-

cas fazendo emergir as questotildees relacionadas agrave constituiccedilatildeo do proacuteprio Eu e a retomada

teoacuterica acerca da vida preacute-genital Trata-se de dar foco ao arcaico e ao modo como este

funciona e se organiza em prol da constituiccedilatildeo e sustentaccedilatildeo do aparato psiacutequico o que

traz agrave cena a importacircncia do objeto primaacuterio para aleacutem das questotildees ediacutepicas

Essa fragilidade do eu tem interferido diretamente na constituiccedilatildeo do senso de realida-

de (noccedilotildees de dentrofora) e consequentemente interferido na capacidade de o sujeito

simbolizar suas proacuteprias experiecircncias de vida Mas podemos pensar tambeacutem que falhas

na constituiccedilatildeo das noccedilotildees de dentro e fora fragilizam o proacuteprio Eu Sem colocar em

questatildeo no momento o que pode ser primaacuterio e secundaacuterio atentamos para o fato de

que existe uma falha na capacidade de o sujeito construir realidades que possam ser

compartilhadas Segundo Green (2010) haacute um fracasso do trabalho do negativo geran-

do uma dependecircncia ou uma tentativa de exclusatildeo excessiva do objeto primaacuterio que

natildeo pode ser perdido para ser reencontrado

A importacircncia de um objeto ser perdido para ser reencontrado em relaccedilatildeo agrave constitui-

ccedilatildeo do senso de realidade foi discutida em Freud em seu texto denominado A Negativa

(1925) A negativa estaria diretamente ligada a uma das operaccedilotildees do Eu a de emitir juiacute-

zos responsaacutevel por permitir a expressatildeo do conteuacutedo intelectual do recalcado separado

de seu conteuacutedo afetivo O ldquonatildeordquo emitido como juiacutezo um ldquonatildeordquo simboacutelico permite ao

Eu deliberar sobre o que pode estar dentro ou fora dele mesmo ou seja deliberar sobre

se algo que foi percebido pode ser acolhido ou expelido

Mas para que se constitua um ldquonatildeordquo simboacutelico precisa acontecer uma operaccedilatildeo psiacute-

quica que diferencie a representaccedilatildeo da percepccedilatildeo Eacute essa diferenciaccedilatildeo que permitiraacute

ao sujeito reencontrar o mundo (o objeto) conforme surja a necessidade Isso eacute o que

Freud chama de teste de realidade que soacute ldquoentraraacute em cena quando e se os objetos que

outrora trouxeram satisfaccedilatildeo jaacute tiverem sido perdidosrdquo (Freud 19252007 p149) O

277Narcisismo e estados limites

objeto da satisfaccedilatildeo precisa ser perdido para ser reencontrado Em ambos os casos o

ldquonatildeordquo eacute considerado um importante vetor de constituiccedilatildeo e manutenccedilatildeo de fronteiras

de contato do sujeito com o mundo delimita espaccedilos internos e externos e constitui

tempos diferenciados

Assim se existir uma falha no trabalho psiacutequico para realizar a construccedilatildeo do ldquonatildeordquo

simboacutelico ou seja se o objeto natildeo puder ser perdido para ser reencontrado a constitui-

ccedilatildeo da imagem narciacutesica e a constituiccedilatildeo do pensamento estaratildeo prejudicadas Como

vimos anteriormente Freud (1914) afirma que o narcisismo eacute um estaacutedio do desenvol-

vimento da libido entre o auto-erotismo e o amor objetal Se as fronteiras internas e

externas do Eu estaratildeo fragilizadas o autoerotismo e as relaccedilotildees objetais se estabelecem

de modo precaacuterio

O autoerotismo tem como funccedilatildeo sustentar uma operaccedilatildeo de transitividade entre o

objeto primaacuterio e a crianccedila ateacute que o proacuteprio corpo (fiacutesico e mental) da crianccedila possa

substituir o mundo externo Ele surge com a perda do objeto de satisfaccedilatildeo momento

importante em que a crianccedila consegue descobrir seu proacuteprio corpo como fonte de sa-

tisfaccedilatildeo libidinal Green (1988b) salienta que o mais importante no autoerotismo eacute a

possibilidade de a crianccedila fazer as introjeccedilotildees ldquoAquilo de que deveriacuteamos dar conta eacute da

passagem do objeto de satisfaccedilatildeo lsquoforarsquo para a procura de uma satisfaccedilatildeo senatildeo lsquodentrorsquordquo

(Green 1988c p120) processo que natildeo acontece de uma soacute vez A perda do objeto vai

acontecendo na medida em que a crianccedila consegue ficar bem mesmo na ausecircncia do

objeto Mas se a diferenciaccedilatildeo internoexterno falha significa dizer que o objeto primaacute-

rio natildeo foi perdido e que tampouco poderaacute ser reencontrado

Nas palavras de Green (2010) haacute um fracasso no trabalho do negativo o que significa

dizer que o objeto primaacuterio falhou em sua funccedilatildeo de se fazer esquecer de se ausentar

Nesses casos o objeto primaacuterio fica como que entalado a crianccedila nem estaacute dele acompa-

nhada nem pode largaacute-lo Estaacute preso naquilo que o autor chama de analidade primaacuteria

Alguns sintomas descritos na cliacutenica dos casos-limite tais como dificuldade para elabo-

rar a experiecircncia vivida um estado de paralisia mental dificuldade para diferenciar eu

natildeo-eu podem ser compreendidos a partir desse construto teoacuterico

Esse conceito de Green (2010) nos permite pensar o estudo do autoerotismo em duas

fases diferenciadas mesmo porque satildeo responsaacuteveis por diferentes desenvolvimentos

278

A oralidade nos possibilita experimentar e cuspir mas no momento em que o objeto eacute

engolido ele soacute pode ser lanccedilado fora pelo vocircmito ou evacuado Para que haja evacua-

ccedilatildeo faz-se necessaacuterio um processo de reter o que eacute importante para o organismo e expe-

lir o resto que natildeo lhe serviu naquele momento Pensamos que as patologias narciacutesicas

abarcam de vaacuterias maneiras essas duas fases

Desse modo haacute patologias narciacutesicas relacionadas agrave proacutepria constituiccedilatildeo da imagem

corporal e existem as patologias focadas na dificuldade de o sujeito escolher e decidir o

que vai ser evacuado e o que vai ser retido do ldquobolordquo nutritivo e toacutexico ao mesmo tempo

das interrelaccedilotildees do sujeito limite com o meio ou com os objetos (Carvalho 2012) Em

todos esses casos natildeo se trata diretamente de um modo de relaccedilatildeo eroacutetica mas de um

modo de sustentaccedilatildeo narciacutesica

No primeiro caso podemos abarcar as anorexias as dismorfias corporais e as experiecircn-

cias de perda dos contornos do corpo Enfim consideramos as patologias relacionadas agrave

constituiccedilatildeo e reconhecimento da imagem corporal No segundo caso podemos abarcar

as patologias relacionadas especificamente agrave ordem pensamento transformado em um

ldquobem inalienaacutevelrdquo (expressatildeo de Green 19932010) ldquoEsses pacientes nem podem reter

e fazer seu nem expulsar e tornar alheio nem podem se apropriar de seus objetos

nem podem diferenciar-se delesrdquo (Figueiredo ampCintra 2004 p 38) Qualquer desses

movimentos potildee em risco a integridade do Eu Aqui estatildeo presentes os problemas ad-

vindos da esfera do julgamento e como consequecircncia do processamento da realidade

As questotildees relacionadas ao risco aos ldquoensaiosrdquo da vida natildeo podem ser vividos como

tentativas Ou eacute acerto ou eacute erro

Em todos os casos os sujeitos experimentam sentimentos de pavor para lidar com si-

tuaccedilotildees sociais lugares onde o controle soacute pode ser exercido de modo precaacuterio e tam-

beacutem com sua vida iacutentima Podem surgir tambeacutem ataques de violecircncia e raiva com

aqueles que lhes frustram Quase tudo para esse paciente se chama vulnerabilidade

mesmo que isso nem sempre esteja evidente menos sua tentativa de viver ilusoriamen-

te a proacutepria autossuficiecircncia psiacutequica

279Narcisismo e estados limites

Consideraccedilotildeesfinais

A cada eacutepoca sua proacutepria transiccedilatildeo A cada eacutepoca o intenso diaacutelogo entre os valores da

tradiccedilatildeo e o que se evidencia como novo Na atualidade vivemos a ideia de um tempo

que nos falta de uma necessidade de consumo de objetos que nos tornem mais pode-

rosos e inteiros Mas esses bens satildeo fraacutegeis em suas instalaccedilotildees e carentes do poder a

eles destinados Com isto as identificaccedilotildees ficam esvaziadas e os ideais necessaacuterios agrave

funccedilatildeo especular integradora inexistentes o que parece gerar uma falta de consistecircncia

na formaccedilatildeo da imagem do sujeito e de seus julgamentos de valor O mundo contem-

poracircneo constituiacutedo assim constituiacutedo coloca o sujeito numa posiccedilatildeo paralela e sem

condiccedilotildees de manejar seus projetos e sua inserccedilatildeo no cenaacuterio social ficando marcado

pela inseguranccedila Desta forma uma saiacuteda tentada eacute o investimento maciccedilo no proacuteprio

eu uma necessidade de autossuficiecircncia Quando o outro natildeo tem a possibilidade de

se constituir como uma referecircncia identificatoacuteria para o sujeito torna-se estranho e

ameaccedilador Nesse momento o Eu tenta se sustentar na proacutepria busca de sua imagem e

de pensamentos proacuteprios Satildeo os objetos e a proacutepria busca que se colocam como outro

Mas trata-se de uma alteridade vazia

Podemos pensar que um dos projetos eacuteticos da psicanaacutelise pode ser o de propiciar ao

sujeito uma vivecircncia mais direta da qualidade desse vazio retirando do mundo das coi-

sas e do tempo futuro as ilusotildees de garantia de preenchimento A cliacutenica psicanaliacutetica

continua seu trabalho de sustentaccedilatildeo das possiacuteveis transformaccedilotildees que aparecem nas

organizaccedilotildees singulares Se a mudanccedila dos coacutedigos e a reviravolta dos valores tradicio-

nais tendem a contribuir para provocar colapsos psiacutequicos que se apresentam na cliacuteni-

ca esta por sua vez deve ser capaz de acolher os reflexos de tais colapsos e sustentar os

contornos singulares que se evidenciam como limites possiacuteveis de tracircnsito

Na atualidade os estados limites que se gestam nos desencontros e nas separaccedilotildees es-

tariam fora do arsenal teoacuterico e teacutecnico da psicanaacutelise natildeo fossem os incessantes mo-

vimentos que a psicanaacutelise faz para conjugar praacutetica e atualizaccedilatildeo teoacuterica Novos tem-

pos novos saberes novas maneiras de compreender e lidar com o sofrimento psiacutequico

Velhos saberes que se apresentam novos e mostram a travessia no tempo Ao concluir

pensamos ser mister atribuir agrave psicanaacutelise contemporacircnea a manutenccedilatildeo da possibilida-

de de abertura e acolhimento agraves novas formas de subjetivaccedilatildeo

280

Referecircncias

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Lipovetski J (2005) A era do vazio Satildeo Paulo Editora Manole

Pontalis JB (2005) Entre o sonho e a dor Aparecida ndash SP Ideacuteias e Letras

281 O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

TainaacutePinto

TaniaRivera

Nesse ensaio parte-se da ideia de que o conto ldquoO Alephrdquo de Jorge Luis Borges e o sonho

possuem uma estruturaccedilatildeo comum em que a condensaccedilatildeo tem papel fundamental31

Essa estruturaccedilatildeo se daria em torno de diversos nuacutecleos condensados e sincrocircnicos que

se unem apoacutes de uma segunda condensaccedilatildeo compondo um todo heterogecircneo A partir

desse ponto comum o que se busca eacute apreender o que o Aleph objeto inimaginaacutevel

para onde tudo converge pode ensinar sobre o umbigo ponto insondaacutevel e obscuro do

sonho Chega-se a conclusatildeo de que em meio ao excesso disruptivo que tanto sonho

31 Este trabalho eacute baseado em Pinto T (2012) A condensaccedilatildeo entre poesia e trauma um percurso com Augusto de Campos e Jorge Luis Borges Dissertaccedilatildeo de mestrado Universidade de Brasiacutelia DF Brasil Pesquisa apoiada pela CAPES Orientadora Tania Rivera Pesquisa apoiada pela CAPESgt

282

como conto colocam em jogo haacute um ponto de captura do sujeito e que esse ponto que

o fisga parece dizer uma maneira radical algo do lugar que ele ocupa diante do outro

Borges estava ali sozinho no escuro poratildeo de Carlos Argentino Daneri deitado em

decuacutebito dorsal embaixo da escada e olhando fixamente para o deacutecimo nono degrau

Nessa situaccedilatildeo um tanto esquisita e constrangedora ele aguarda a prometida grande

revelaccedilatildeo de sua vida natildeo sem se perguntar se tudo isso natildeo seria uma cilada armada

por Daneri Os dois nunca foram amigos nunca se deram bem Daneri estaria ficando

louco Matar Borges faria parte dos seus planos insanos O conhaque que oferecera

logo antes de descerem para o poratildeo estaria envenenado Borges sente um confuso mal

estar e busca ficar calmo Talvez a sensaccedilatildeo indistinta fosse apenas uma consequecircncia

de sua tensa rigidez e natildeo efeito de algum narcoacutetico Ele fecha os olhos volta a abri-los

e entatildeo vecirc Vecirc o Aleph vecirc aquilo que seus olhos natildeo podem acreditar

O diacircmetro do Aleph seria de dois ou trecircs centiacutemetros mas o espaccedilo coacutesmico estava ali

sem diminuiccedilatildeo de tamanho Cada coisa (a lacircmina do espelho digamos) era infinitas

coisas porque eu a via claramente de todos os pontos do universo Vi o mar populoso vi

a alvorada e a tarde vi as multidotildees da Ameacuterica vi uma teia de aranha prateada no cen-

tro de uma negra piracircmide vi um labirinto truncado vi uma chaacutecara em Androgueacute

um exemplar da primeira versatildeo inglesa de Pliacutenio a de Philemon Holland vi ao mesmo

tempo cada letra de cada paacutegina vi a noite e o dia contemporacircneos vi tigres ecircmbolos

bisotildees marulhos e exeacutercitos vi todas as formigas que haacute na Terra vi a engrenagem do

amor e a transformaccedilatildeo da morte vi o Aleph de todos os pontos vi no Aleph a Terra e

na Terra outra vez o Aleph e no Aleph a Terra (BORGES 19492008 p149)

Esse eacute um trecho de ldquoO Alephrdquo conto de Jorge Luis Borges de 1949 A citaccedilatildeo eacute uma

seleccedilatildeo do vertiginoso paraacutegrafo em que Borges descreve o que foi o seu encontro com

esse objeto inimaginaacutevel Os que conhecem a breve narrativa sabem que esse encontro

fantaacutestico eacute uma das dimensotildees do conto sem duacutevida o seu aacutepice mas apenas uma

de suas facetas Aleacutem de Borges e do Aleph que tem status de personagem haacute ainda

Beatriz Viterbo a amada morta de Borges e Carlos Argentino Daneri primo-irmatildeo de

Beatriz e um mau escritor Daneri o detentor do Aleph haacute anos burila um poema inti-

tulado ldquoA Terrardquo que em sua iludida expectativa realiza uma descriccedilatildeo exata do planeta

inteiro Entediado com os trechos do estuacutepido poema que Daneri lhe mostra Borges

aproveita esses encontros para pelo menos estar mais proacuteximo do que restou de Bea-

283O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

triz ndash as fotografias espalhadas por toda casa Inesperadamente surge uma ameaccedila de

demoliccedilatildeo desta casa e com ela a consequente ameaccedila de que o precioso Aleph fosse

destruiacutedo Eacute nesse momento de desespero que Daneri telefona a Borges e fala sobre o

Aleph ndash o ponto do espaccedilo que conteacutem todos os outros pontos Imediatamente apoacutes

a ligaccedilatildeo Borges corre agrave casa pronto para atestar a loucura de Daneri ou ter a maior

revelaccedilatildeo de sua vida

Lia Luft numa breve anaacutelise do conto propotildee pensaacute-lo como um texto que acontece em

diferentes niacuteveis como se fosse organizado em camadas Tal estrutura eacute a bem dizer

tiacutepica de boa parte se natildeo de toda a obra borgeana Em um exemplo dentre muitos

outros ela se encontra em ldquoO Zahirrdquo (19492008) que guarda com ldquoO Alephrdquo muitas

outras semelhanccedilas ndash a temaacutetica fantaacutestica o amor por uma mulher morta a proximi-

dade da loucura Essa divisatildeo em niacuteveis narrativos como a autora ressalta serve para

fins de anaacutelise pois tais niacuteveis satildeo magistralmente bem encaixados no conto e quase

imperceptiacuteveis E esses encaixes acontecem por breves informaccedilotildees que parecem tri-

viais ou desnecessaacuterias agrave primeira vista (uma data precisa por exemplo) mas que logo

surpreendem ao se revelarem cruciais ao desenrolar de outro niacutevel da narrativa Tudo

na escrita de Borges parece extremamente calculado e pensado Natildeo eacute por menos que

Luft o chama de ldquoo bruxordquo ao argumentar que em seu texto natildeo haacute espaccedilo para o ldquoluxordquo

e para a ldquosimples cataacuteliserdquo (Luft 2001 p 332)

Tomaremos o conto de Borges como uma narrativa que se organiza em torno de trecircs

nuacutecleos sincrocircnicos que adaptamos dos quatro niacuteveis de narrativa que Luft propotildee em

sua anaacutelise o primeiro eacute o da histoacuteria fantaacutestica o encontro de Borges com esse incon-

cebiacutevel objeto o segundo nuacutecleo eacute o da histoacuteria de amor entre Beatriz e Borges um

amor idealizado e natildeo correspondido e o terceiro eacute o nuacutecleo da criacutetica literaacuteria que se

desenvolve em torno do poema descabido de Carlos Argentino Daneri Conceberemos

a relaccedilatildeo entre esses diversos nuacutecleos a partir de uma das noccedilotildees baacutesicas drsquo A Interpre-

taccedilatildeo dos Sonhos a ideia de que o sonho estrutura-se como uma reuniatildeo de nuacutecleos si-

multacircneos de pensamentos oniacutericos e portanto estrutura-se fundamentalmente graccedilas

agrave operaccedilatildeo de condensaccedilatildeo como detalharemos a seguir

284

Acondensaccedilatildeodacondensaccedilatildeo

As elaboraccedilotildees freudianas nos autorizam a pensar que o processo de formaccedilatildeo do so-

nho envolve duas condensaccedilotildees A primeira ocorre para a constituiccedilatildeo de cada nuacutecleo

de pensamentos oniacutericos cujo centro eacute o ponto nodal E a segunda acontece no momen-

to da reuniatildeo sincrocircnica desses nuacutecleos que resulta no sonho uma unidade atiacutepica e

nada uniforme Mais do que uma sucessatildeo de condensaccedilotildees independentes parece-nos

tratar de uma condensaccedilatildeo dentro da outra Melhor dizendo a segunda condensaccedilatildeo

viria potencializar a anterior como em uma operaccedilatildeo de potenciaccedilatildeo na matemaacutetica

Poderiacuteamos entatildeo grafar (condensaccedilatildeo)sup2

Devemos salientar que natildeo haacute unidade mais heteroacuteclita e divisiacutevel que o ponto nodal

Ele eacute um elemento do conteuacutedo manifesto do sonho que concentra em si as intensida-

des psiacutequicas de toda uma cadeia de pensamentos oniacutericos que o circundam Com cada

um dos pensamentos ele manteacutem ao menos uma ligaccedilatildeo Para uma exemplificaccedilatildeo

raacutepida pensemos na figura de Irma do famoso ldquosonho da injeccedilatildeo de Irmardquo o grande

modelo de interpretaccedilatildeo Freud em sua anaacutelise logo se daacute conta de que a figura de

Irma aleacutem de representar si mesma tambeacutem representa vaacuterias outras figuras femini-

nas Ele vai de Irma agrave amiga dela aquela que ldquoabriria a boca mais facilmenterdquo (Freud

19002012 p128) lembra-se de sua esposa pelas queixas de dores no abdocircmen da

governanta pela maneira como Irma resite em abrir a boca da proacutepria filha Mathilde

a partir de uma suspeita diagnoacutestica de difteria que surge no sonho de uma paciente

de mesmo nome que a filha (Mathilde) e de uma crianccedila do hospital em que trabalhou

e que fora examinada de forma muito similar agrave maneira como Irma eacute examinada no

sonho pelos colegas Otto e Leopold

Nesse sonho Irma eacute portanto um ponto nodal A anaacutelise do sonho revela que para

ela convergem associaccedilotildees relativas a vaacuterias outras figuras femininas A partir desse

exerciacutecio de decomposiccedilatildeo que o trabalho de anaacutelise possibilita tem-se uma noccedilatildeo do

volume de condensaccedilatildeo do sonho que eacute sempre indeterminaacutevel de acordo com Freud

(19002012 p 301) A indeterminaccedilatildeo da cota de condensaccedilatildeo eacute um fato que parece

relacionaacute-la diretamente com o umbigo do sonho ndash essa que provavelmente foi a maior

descoberta de Freud em A Interpretaccedilatildeo dos Sonhos

A noccedilatildeo de umbigo do sonho subverte a proacutepria de ideia de interpretaccedilatildeo jaacute que potildee em

jogo o que resta da anaacutelise aquilo que natildeo eacute interpretaacutevel a dimensatildeo do inconcluso e

285O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

da infinidade e indeterminaccedilatildeo uacuteltima do sentido Ele eacute o ponto ldquoinsondaacutevelrdquo do sonho

ldquoque o liga ao desconhecidordquo (ibid p132) De alguma forma para esse emaranhado

parecem convergir todos os pensamentos oniacutericos A proposta desse ensaio eacute buscar

apreender o que o Aleph ndash o ponto do espaccedilo para onde tudo converge ndash pode ensinar

acerca do umbigo ndash o ponto obscuro do sonho

Nuacutecleossincrocircnicos

A perfeita combinaccedilatildeo dos diferentes nuacutecleos que Borges realiza no conto nos leva a

considerar que em seu texto natildeo haacute espaccedilo para o aleatoacuterio Satildeo vaacuterias pequenas infor-

maccedilotildees que a princiacutepio podem soar desnecessaacuterias ndash como a data da morte de Beatriz

o nome da praccedila em que passou apoacutes seu enterro a data do seu aniversaacuterio o nome da

rua onde ela morava e outros Mas elas revelam-se fundamentais e eacute por elas que os

personagens vatildeo tomando consistecircncia a ponto de termos a sensaccedilatildeo de conhececirc-los

por toda uma vida Satildeo elas tambeacutem que nos situam no contexto da histoacuteria ndash Buenos

Aires entre as deacutecadas de 30 e 40

E natildeo eacute de se surpreender se em meio aos dados tatildeo precisos do conto nos deparar-

mos com um dado irreal como o falso nome da biblioteca ldquoJuan Crisoacutestomo Lafinurrdquo

Nossas pesquisas indicam que uma biblioteca com esse nome natildeo existe na cidade de

Buenos Aires e que esse era o nome do tio bisavocirc de Borges a quem ele dedica um po-

ema de mesmo tiacutetulo em seu livro ldquoA moeda de ferrordquo (Borges 1976) Da mesma forma

Aacutelvaro Meliaacuten Lafinur o homem de letras a quem Daneri deseja recorrer para conseguir

um bom prefaacutecio para o seu poema tambeacutem eacute o nome de um primo de Borges que

em vida dedicou-se ao estudo da literatura e chegou mesmo a escrever alguns prefaacutecios

Haacute ainda outro dado biograacutefico que vale a pena ser mencionado ndash a dedicatoacuteria final

Boa parte de seus contos Borges dedicou a amigos especialmente mulheres e ldquoO Ale-

phrdquo ele dedicou agrave escritora e tradutora argentina Estela Canto Estela teria sido a grande

paixatildeo de Borges na deacutecada de 40 e apoacutes a morte dele ela escreveu um livro Borges agrave

contraluz (Canto 1991) em que torna puacuteblico algumas correspondecircncias que ele envia-

va-lhe Alguns criacuteticos (Monegal 1980 e Bernucci 2001) tomam essa dedicatoacuteria como

ponto de partida para especulaccedilotildees sobre a relaccedilatildeo dos dois Estabelecem comparaccedilotildees

entre Estela Canto Beatriz Viterbo e a Beatriz de Dante (ldquoA Divina Comeacutediardquo) como se

286

uma refletisse a outra Tomam o conto como uma espeacutecie de espelho que desnuda a

vida pessoal de Borges Bernucci (2001) a partir dos relatos de Estela chega a dizer que

Beatriz Viterbo eacute uma ldquorepresentaccedilatildeo verossiacutemilrdquo da escritora argentina

Esse parece entretanto ser mais um jogo de Borges Como propotildee Nascimento (2008)

o uso dos dados biograacuteficos envia o texto ficcional para uma noccedilatildeo de relato de experi-

ecircncia A dedicatoacuteria parece tentar capturar o leitor num pacto dissimulado que encobre

e revela o jogo entre realidade e ficccedilatildeo Dessa forma vemos dados biograacuteficos sendo

utilizados de duas maneiras completamente opostas Na primeira situaccedilatildeo os nomes

reais (Lafinur) satildeo deslocados e parecem ldquoficcionalizarrdquo a realidade E em contrapartida

a dedicatoacuteria agrave Estela Canto parece tentar tornar mais real a ficccedilatildeo O jogo eacute tamanho

que Borges eacute capaz de promover uma inversatildeo referencial e nos fazer acreditar nas in-

formaccedilotildees falsas e duvidar das verdadeiras

Como Luft (2001) propotildee Borges lanccedila ao leitor dados reais e inventados Parece-nos

que nesse ato de lanccedilar dados ele brinca e assim realiza jogos cominatoacuterios complexos

em seus contos E pouco importa se satildeo dados reais fictiacutecios e ateacute biograacuteficos O que

ele busca eacute a combinaccedilatildeo Numa entrevista com Antonio Carrizo Borges diz que em

ldquoO Alephrdquo colocou elementos autobiograacuteficos como sempre tem que se por ldquopara que as

coisas soem convincentesrdquo (Borges 1983 p 236) Esperamos poder demonstrar alguns

desses jogos enquanto detalhamos cada nuacutecleo narrativo Apostamos ainda que essa

anaacutelise estrutural do conto possa nos ajudar a pensar a estruturaccedilatildeo do sonho em torno

de seu fulcro ndash o umbigo

Onuacutecleofantaacutestico

Esse eacute o nuacutecleo axial do conto para o qual os outros convergem Nele temos a histoacuteria do

encontro de Borges (que eacute autor narrador e personagem) com este inconcebiacutevel objeto

O momento da visatildeo do Aleph experiecircncia quase miacutestica eacute o cliacutemax do conto do qual

jaacute citamos acima o iniacutecio Nesse instante Borges nos lanccedila num paraacutegrafo de mais de

quarenta linhas sem um uacutenico ponto Paraacutegrafo descritivo intenso e vertiginosamente

poeacutetico em que busca recuperar numa metoniacutemia desvairada algo de sua experiecircncia

indescritiacutevel O Aleph eacute um ponto do espaccedilo que conteacutem todo o espaccedilo assim como a

eternidade seria um instante que conteacutem todo o tempo Dessa forma o Aleph seria para

o espaccedilo o que a eternidade eacute para o tempo (Borges 1983) ldquoNaquele instante gigantes-

287O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

co vi milhotildees de atos deleitaacuteveis ou atrozes nenhum me assombrou tanto como o fato

de todos ocuparem o mesmo ponto sem superposiccedilatildeo ou transparecircncia O que meus

olhos viram foi simultacircneordquo (Borges 19492008 p 148)

A imensidatildeo contida num ponto natildeo eacute o uacutenico paradoxo com qual Borges brinca Para

Harold Bloom (2010) o Aleph pode ser pensado como um labirinto ldquosiacutembolo do caosrdquo

que seria uma imagem central na obra de Borges Por sua vez Maurice Blanchot desig-

na o proacuteprio Borges como um homem labiriacutentico por sua surpreendente capacidade

de realizar uma ldquoinfinitizaccedilatildeordquo do espaccedilo (Blanchot 2005 p137) Borges transformaria

qualquer espaccedilo limitado (bibliotecas a pele de um jaguar livros) por menor que ele

seja em caoticamente ilimitado O autor francecircs explicita o paradoxo dizendo que o que

aprisiona natildeo eacute o espaccedilo finito e fechado posto que deste podemos sempre esperar sair

mas sim a vastidatildeo infinita da qual pode natildeo haver saiacuteda

Ainda em sua atordoante visatildeo Borges vecirc seu quarto sem ningueacutem vecirc todos os espe-

lhos do planeta e nenhum deles reflete sua imagem Eacute como se ele ocupasse inicial-

mente um ponto cego do espaccedilo jaacute que eacute de uma onipresenccedila absoluta (tudo vecirc) sem

estar em lugar algum Mas estranhamente ele parece ser visto ldquovi interminaacuteveis olhos

imediatos perscrutando-se em mim como num espelhordquo (Borges 19492008 p149)

Haacute olhos anocircnimos que o espreitam e o flagram vendo vendo isso que seus proacuteprios

olhos mal podem acreditar Olhos que o perscrutam como num espelho como se ele

Borges fosse o reflexo desses olhos perseguidores como se nesse momento se igua-

lasse a eles sendo nada aleacutem desses olhos Apenas olhos sem corpo olhos muacuteltiplos

interminaacuteveis e imediatos

E novamente ele encontra o espelho ldquovi num escritoacuterio de Alkmar um globo terrestre

entre dois espelhos multiplicado infindavelmenterdquo (ibid p149) Eacute um complexo jogo

especular que infinitiza a imagem do planeta Assim como as uacuteltimas palavras de sua

visatildeo ldquovi o Aleph de todos os pontos vi no Aleph a Terra e na Terra outra vez o Aleph

e no Aleph a Terrardquo (ibid p150) Impossiacutevel distinguir o que eacute mundo e o que eacute Aleph

Blanchot problematiza brevemente a questatildeo da coacutepia e do duplo afirmando borgia-

namente que quando a coacutepia eacute perfeita o original eacute apagado Se o duplo eacute idecircntico a

origem se perde e torna-se impossiacutevel a distinccedilatildeo entre o original e sua coacutepia Ele afirma

ainda que o mundo deixaria de ser o mundo diante de uma hipoteacutetica materializaccedilatildeo do

288

prodigioso e abominaacutevel Aleph Ele natildeo passaria do mundo ldquopervertido na soma infini-

ta dos possiacuteveisrdquo (Blanchot 2005 p 139)

Haacute um momento chave nesse nuacutecleo narrativo que pode a princiacutepio passar desperce-

bido mas que como veremos eacute crucial para a apreensatildeo da histoacuteria de amor (o nuacutecleo

seguinte) No meio de sua deslizante descriccedilatildeo sem ponto sem destaque simplesmen-

te como mais um elemento que viu encontramos ldquovi um astrolaacutebio persa vi numa

gaveta da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas incriacuteveis precisas que

Beatriz enviara a Carlos Argentino vi um adorado monumento na Chacaritardquo (Borges

19492008 p 150) E depois dessa silenciosa e dolorida revelaccedilatildeo eacute como se Borges

fosse retirado do ponto cego do ponto de observador externo desafetado E comeccedilasse

ele mesmo a estar implicado no que vecirc Intricado visceralmente agraves proacuteprias imagens do

Aleph ldquovi a reliacutequia atroz do que deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo vi a circu-

laccedilatildeo de meu sangue escuro vi a engrenagem do amor e a transformaccedilatildeo da morterdquo

(ibidem) E entatildeo conclui seu vertiginoso paraacutegrafo dizendo ldquovi meu rosto e minhas

viacutesceras vi teu rosto e senti vertigem e chorei porque meus olhos tinham visto aquele

objeto secreto e conjectural cujo nome os homens usurpam mas que nenhum homem

contemplou o inconcebiacutevel universordquo (ibidem)

Parece que a partir da evidecircncia das cartas de Beatriz para Carlos Borges eacute violenta-

mente afetado Tudo o que podiacuteamos saber dele antes era justamente onde natildeo estava

seu quarto estava vazio e sua imagem natildeo se refletiu em nenhum espelho A partir da

letra que o faz tremer Borges torna-se presente Eacute a caligrafia marca derradeira e incon-

fundiacutevel da mulher amada que o convoca E Borges surge despedaccedilado vecirc seu proacuteprio

rosto vecirc a circulaccedilatildeo de seu sangue escuro vecirc as proacuteprias viacutesceras sente vertigem e

chora E ao ser implacavelmente afetado na monstruosidade do que vecirc ele convoca

cruel tambeacutem o leitor ldquovi meu rosto e minhas viacutesceras vi teu rostordquo Tendo visto todos

os gratildeos de areia de todos os acircngulos que existem certamente ele viu tambeacutem cada ros-

to o meu e o seu E com essa frase ndash vi teu rosto ndash ele convoca cada um que lecirc

Antes da grande visatildeo ainda parecia possiacutevel alguma distinccedilatildeo entre as trecircs instacircncias

de Borges ndash autor narrador e personagem A partir do Aleph tudo se fusiona O que

ficaacutevamos sabendo dos personagens era pela visatildeo parcial do narrador e ele soacute sabia o

que os personagens o revelavam Apoacutes a visatildeo do Aleph natildeo haacute mais parcialidade Soacute a

absoluta onividecircncia Borges ndash autor narrador e personagem ndash tudo sabe pois tudo viu

289O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

Todo relato que vem depois dessa lancinante visatildeo parece ser decliacutenio e degradaccedilatildeo O

fim comeccedila com a brusca interrupccedilatildeo de Daneri que entra no poratildeo com suas usuais

desagradaacuteveis observaccedilotildees Borges concebe sua vinganccedila imediatamente finge nada ter

visto Aparentando benevolecircncia e piedade sugere a Daneri que aproveite a demoliccedilatildeo

da casa para ir morar no campo bem longe da loucura nociva das grandes metroacutepoles

Ao fim do conto o protagonista manifesta seu medo de nunca mais ter surpresas na

vida jaacute que nas ruas no metrocirc todos os rostos lhe pareciam familiares Entatildeo nos diz

que apoacutes algumas noites de insocircnia o esquecimento finalmente voltou a agir sobre ele

Num surpreendente poacutes-escrito datado de 1ordm de marccedilo de 1943 Borges fala da suspeita

de que o Aleph de Daneri fosse um falso Aleph Daacute justificativas apade aparecircncia douta

citando complicados nomes de livros pessoas e lugares Por fim constata que a memoacute-

ria eacute porosa reconhecendo falsear natildeo soacute a experiecircncia extraordinaacuteria que tinha vivido

mas tambeacutem os traccedilos de Beatriz

Onuacutecleodoromance

O conto comeccedila na cadente manhatilde de fevereiro de 1929 em que Beatriz Viterbo mor-

reu Em meio a uma imperiosa agonia ldquoque em nenhum instante se rebaixou ao sen-

timentalismo ou ao medordquo Borges percebe que cartazes satildeo trocados na praccedila Cons-

titucioacuten e se daacute conta de que o ldquovasto e incessante universordquo jaacute se afastava de Beatriz

(Borges 19492008 p 136) Poderia mudar o mundo mas natildeo ele e muito menos o

que sentia por ela pensou em sua melancoacutelica vaidade Em 30 de abril aniversaacuterio de

Beatriz considerou que seria um ato de cortesia irrepreensiacutevel fazer uma visita agrave casa

da Rua Garay para cumprimentar-lhe o pai e Carlos Daneri o primo-imatildeo Cada ano

na mesma data faria a mesma visita um pouco mais longa a cada ano ateacute incluir com

naturalidade o jantar

Essas situaccedilotildees forccediladas esses jantares ldquomelancoacutelicos e inutilmente eroacuteticosrdquo mais pa-

recem uma tentativa de Borges reter a amada morta esforccedilos para natildeo perdecirc-la Ele

aproveitava as visitas para analisar cada pormenor dos numerosos retratos de Beatriz

No conto satildeo essas fotografias que nos apresentam a personagem ldquoBeatriz de maacutescara

no Carnaval de 1921 a primeira comunhatildeo de Beatriz Beatriz no dia de seu casamento

com Roberto Alessandri Beatriz pouco depois do divoacutercio num almoccedilo no clube hiacutepi-

cordquo (Borges 19492008 p 137) Este era um haacutebito cultivado desde quando Beatriz

290

ainda era viva e o deixava esperando na salinha abarrotada Pelo menos agora que Be-

atriz estava morta ele natildeo se sentia obrigado a justificar sua presenccedila com acanhados

presentes de livros Livros que como nos conta aprendeu a entregar jaacute abertos para natildeo

constatar meses depois que ainda permaneciam intactos Beatriz sempre o desprezou

essa eacute a verdade Por isso como ele mesmo confessa agora era mais faacutecil amaacute-la De-

pois de morta ele poderia devotar-se a sua memoacuteria ldquosem esperanccedila mas tambeacutem sem

humilhaccedilatildeordquo (ibid p138)

Eacute essa admiraccedilatildeo por vezes ridiacutecula que torna a revelaccedilatildeo do Aleph tatildeo dolorida Bor-

ges eacute obrigado se dar conta do que ele era para essa mulher insignificante Brutalmente

ele eacute obrigado a perceber o lugar que ocupa nessa histoacuteria ndash ele eacute o tolo o cego (revela-

ccedilatildeo paradoxal justo quando conquista a absoluta onividecircncia oferecida pelo Aleph) O

nuacutecleo romacircntico do conto revela-se assim como um triacircngulo amoroso

Haacute um curioso e constante paralelismo entre os personagens de Borges e de seu rival

mais favorecido por Beatriz Daneri Borges brinca como se os dois fossem reflexos de

sua proacutepria imagem Sabe-se que o escritor trabalhou durante muitos anos numa pe-

quena biblioteca em Buenos Aires a mesma ocupaccedilatildeo de Carlos Argentino Daneri no

conto Aleacutem desse paralelo biograacutefico haacute outros relacionados agrave proacutepria trama do conto

Borges deseja exasperadamente Beatriz e eacute para Carlos que ela escreve as tais cartas

Borges eacute o escritor sem reconhecimento e eacute Carlos (o mau escritor) que no fim ganha

o precircmio nacional de literatura por seu poema pedante Mas nem sempre Carlos leva a

melhor mesmo sem saber seu maior triunfo ndash seu Aleph ndash seria um falso Aleph

Onuacutecleocriacutetico

Apesar de ser o nuacutecleo mais acessoacuterio da narrativa certamente esse eacute o mais longo

Vaacuterias paacuteginas satildeo preenchidas com as leituras dos trechos do poema de Daneri e seus

enfadonhos e presunccedilosos comentaacuterios recheados de autoelogio A cada duas estrofes

que Daneri lecirc de seu poema megalomaniacuteaco laacute se vatildeo alguns paraacutegrafos de comentaacute-

rios em que ele explicita toda sua culta referecircncia aos claacutessicos e fala da sua certeza de

que agradaraacute a todos os criacuteticos E ironicamente eacute essa obra empolada que recebe o

precircmio nacional de literatura depois de ser publicada pela Editora Procusto que natildeo se

deixou intimidar pela extensatildeo do poema e lanccedilou uma seleccedilatildeo de ldquotrechos argentinosrdquo

A Editora Procusto eacute outra bela ironia na referecircncia ao personagem da mitologia grega

291O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

que tanto esticava como amputava suas viacutetimas de acordo com o tamanho da cama

Desta forma Borges constroacutei nesse nuacutecleo da narrativa uma saacutetira cruel a certo estilo

literaacuterio assim como ao mercado de publicaccedilatildeo e premiaccedilatildeo em literatura

Daneri ostenta uma erudiccedilatildeo enorme Cita uma lista sem fim de claacutessicos com nenhu-

ma outra funccedilatildeo aleacutem da exibiccedilatildeo Por sua vez as referecircncias expliacutecitas de Borges para

a construccedilatildeo de seu conto estatildeo numa literatura muito mais marginal na teoria miacutestica

da cabala e em um conto de Wells escritor inglecircs de literatura fantaacutestica A primeira

surge no fim do conto quando Borges diz que o nome Aleph eacute a primeira letra do alfa-

beto da liacutengua sagrada e que para a cabala essa letra significa o En Soph ldquoa ilimitada e

pura divindaderdquo A segunda Welss eacute uma referecircncia que aparece no epiacutelogo do livro

na declaraccedilatildeo de Borges na qual afirma ver tanto em ldquoO Alephrdquo como em ldquoO Zahirrdquo

uma influecircncia de ldquoThe crystal eggrdquo de H G Wells (1899) Nesse conto o personagem

principal eacute fatalmente seduzido por um objeto fantaacutestico um ovo de cristal de brilho

inconfundiacutevel que abre visotildees para outro mundo ndash provavelmente o planeta Marte

A referecircncia ao claacutessico de Dante ldquoA divina comeacutediardquo (2010) natildeo eacute evidente Pode entre-

tanto ser inferida tanto no nome de Beatriz Viterbo quanto nas caracteriacutesticas da per-

sonagem que ecoam a Beatriz Portinari de Dante ndash sobretudo a frieza e a indiferenccedila

Da mesma maneira o nome de Carlos Argentino Daneri parece fazer jogo com o nome

Dante Alighieri Haacute ainda outras sutilizas que podem indicar o quanto Borges toma a

Comeacutedia como referecircncia para a concepccedilatildeo de seu conto Nas produccedilotildees de Borges de

cunho mais ensaiacutestico ele deixa muito clara a sua paixatildeo por essa obra de Dante Como

por exemplo em ldquoSete noitesrdquo (1980) e ldquoNove ensaios dantescosrdquo (1982) A Comeacutedia eacute

para Borges ldquoo aacutepice das literaturasrdquo (Borges 19801999 p 226) Entatildeo talvez natildeo seja

mera coincidecircncia o fato de Borges ser autor personagem e narrador de seu conto da

mesma maneira que Dante tambeacutem foi autor personagem e narrador de seu poema

A forma como Borges cifra o universo em seu conto parece ter algo a ver com a potecircn-

cia de cifraccedilatildeo de Dante Para Borges ldquoA Divina Comeacutediardquo eacute uma espeacutecie de ldquolacircmina

maacutegicardquo e ldquonatildeo haacute coisa na Terra que natildeo esteja aiacuterdquo (Borges 19821999 p 383) Agrave sua

maneira o Aleph tambeacutem eacute uma lacircmina maacutegica um microcosmo de acircmbito universal

E haacute ainda outro ponto comum que nos parece fundamental Para Borges Dante teria

edificado ldquoo melhor livro que a literatura alcanccedilourdquo soacute para interpor em seus escritos

alguns encontros com sua irrecuperaacutevel Beatriz que em vida supostamente teria des-

292

tratado e se escarnecido de Dante Borges argumenta ldquoDante morta Beatriz brincou

com a ficccedilatildeo de encontraacute-la para mitigar sua tristezardquo (Borges 19821999 p 417) O

escritor argentino aposta que Dante teria concebido a triacuteplice arquitetura de seu poema

ndash Inferno Purgatoacuterio e Ceacuteu ndash soacute para ter a chance de intercalar o encontro com Beatriz

E o mais significativo ldquoRecusado para sempre por Beatriz sonhou com Beatriz mas so-

nhou-a severiacutessima mas sonhou-a inacessiacutevelrdquo (ibidem) Nesse ponto Borges tem toda

razatildeo Os encontros de Dante e Beatriz no poema satildeo poucos breves e desagradaacuteveis

O primeiro que acontece no Canto XXX do Purgatoacuterio eacute extremante humilhante para

Dante Por isso para Borges Dante seria um infeliz que imagina a cada dia a felicidade

mas os encontros que concebe acabam sempre sendo lastimaacuteveis Uma ilusatildeo que deixa

entrever o horror que oculta ldquonightmares of delightrdquo ldquopesadelos de deleiterdquo eacute o oximoro

de Chesterton que Borges (19821999 p 419) toma para descrever essa busca por feli-

cidade que redunda sempre em mais dor e sofrimento Expressatildeo que nos parece exata

para descrever a ideia freudiana de compulsatildeo agrave repeticcedilatildeo em que o sujeito sem se dar

conta repete compulsivamente atos que lhe causam desprazer Em Borges encontra-

mos a mesma tentativa frustrada de reter a mulher amada que redunda em mais dor e

sofrimento Esse eacute todo o eixo do nuacutecleo romacircntico da narrativa

Oumbigoeopontodecapturadosujeito

A estruturaccedilatildeo do conto parece sugerir que na literatura assim como nos sonhos a

composiccedilatildeo narrativa em diferentes nuacutecleos simultacircneos que se reuacutenem compondo

uma unidade heterogecircnea eacute o resultado de jogos combinatoacuterios como se a meta fosse

encontrar a melhor combinaccedilatildeo possiacutevel entre os elementos que se encontram disponiacute-

veis no momento da formaccedilatildeo do conto ou do sonho Conto e sonho compotildeem laccedilam

dados num jogo combinatoacuterio e talvez seja indiferente a origem desses dados Tanto

faz se satildeo biograacuteficos ou fictiacutecios se vecircm de lembranccedilas infantis ou de restos diurnos

o importante eacute o jogo E muitas vezes o que se percebe eacute que um dado aparentemente

irrelevante para um nuacutecleo pode ser crucial para outro

Outro ponto interessante estaacute no encaixe dos diferentes nuacutecleos Os encaixes de Borges

satildeo magistrais e parecem eliminar o eventual e o fortuito Eacute possiacutevel apostar que o mes-

mo aconteccedila nos sonhos A diferenccedila entre sonho e conto talvez natildeo esteja exatamente

nos elementos utilizados para tais encaixes Provavelmente eles satildeo os mesmos e vecircm

293O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

do mesmo lugar ndash o inconsciente Natildeo se deve subestimar a determinaccedilatildeo inconsciente

Rivera (2012) aponta que na associaccedilatildeo livre (uacutenica regra do tratamento analiacutetico) em

vez de falatoacuterio sem nexo tem-se justamente associaccedilotildees que se revelam nada livres

Elas satildeo firmemente ligadas a um encadeamento inconsciente que a interpretaccedilatildeo ten-

ta reconstruir Provavelmente a diferenccedila entre sonho e conto estaacute no que Freud (1900)

chama de elaboraccedilatildeo secundaacuteria ndash a que empresta ao sonho certo ar de coerecircncia para

que ele possa passar um tanto mais despercebido pela censura psiacutequica O conto de

Borges eacute extremamente elaborado com trama muito sofisticada e histoacuterias bastante se-

quenciadas Jaacute os sonhos podem ser muito mais fragmentados apesar de muitas vezes

apresentarem uma sequecircncia narrativa bem elaborada Entretanto nos dois sonho e

conto ateacute os elementos mais triviais satildeo determinados O que proporciona jogos signi-

ficantes sempre precisos mesmo que nem sempre apreensiacuteveis

ldquoO Alephrdquo parece mostrar que a condensaccedilatildeo estaacute relacionada ao umbigo do sonho de

uma forma bastante particular Borges mostra o quanto condensar eacute uma sofisticada

operaccedilatildeo de ciframento que inclui um resto que resiste a qualquer ciframento E que

transmite assim um excesso perturbador Eacute como se a base da condensaccedilatildeo residisse

exatamente no ldquoincondensaacutevelrdquo Daiacute uma caracteriacutestica tatildeo curiosa todo sonho tem a

possibilidade de apontar para muacuteltiplos sentidos interpretativos mas ao mesmo tem-

po nenhum sonho pode ser interpretado em sua totalidade Satildeo duas faces da mesma

moeda ao mesmo tempo em que o umbigo e seu denso emaranhamento proporcionam

a possibilidade de que indeterminaacuteveis novos caminhos associativos possam surgir ele

tambeacutem aponta para o que resta desconhecido ndash o nuacutecleo duro que natildeo eacute passiacutevel de

interpretaccedilatildeo

Eacute possiacutevel sustentar em uma leitura atenta da teoria dos sonhos de Freud que cada

ponto nodal ou seja cada centro dos nuacutecleos de pensamentos oniacutericos eacute um umbigo

em potencial A formaccedilatildeo dos dois parece ser a mesma A diferenccedila estaria na quan-

tidade de pensamentos e de sobredeterminaccedilotildees Como se o umbigo fosse um ponto

nodal excessivamente condensado ou um ponto nodal em que a rede de pensamentos

se tornou tatildeo emaranhada a ponto do caminho inverso natildeo poder ser refeito Por isso o

umbigo consiste em um grande centro atrativo de associaccedilotildees Uma quantidade enor-

me de associaccedilotildees converge por exemplo para a boca aberta de Irma que em nossa

leitura tomamos como um umbigo do sonho Na verdade quase todas as associaccedilotildees

294

que Freud faz em sua interpretaccedilatildeo desse sonho parecem de alguma forma tocar esse

nuacutecleo condensador32

Tanto no umbigo do sonho quanto no Aleph encontramos de forma expressiva o des-

medido A sequecircncia natildeo se interrompe porque faltam elementos mas sim porque

paradoxalmente haacute elementos demais Trata-se de um excesso disruptivo paralisa(dor)

que parece vir em resposta a algo Eacute a letra que faz Borges tremer que parece ser o fulcro

de tudo no conto Ela eacute uma espeacutecie de ponto de captura do sujeito como vimos Por

essa letra Borges natildeo passa intacto ela o fisga e ele eacute entatildeo visceralmente implicado no

que vecirc Ele sai da ausecircncia desafetada para a presenccedila em corpo fragmentado E natildeo sa-

tisfeito nos inclui a noacutes leitores do conto nessa estranha presenccedila Como se buscasse

passar adiante transmitir aquilo que o tomou tatildeo violenta e repentinamente

No sonho da injeccedilatildeo de Irma haacute tambeacutem um similar ponto de captura do sujeito Laacute eacute a

aterrorizante imagem da boca aberta de Irma que parece apreender algo de Freud Por

essa boca como destaca Lacan (1954-19551985) em sua releitura desse sonho Freud

natildeo passa ileso as identificaccedilotildees imaginaacuterias se rompem e entram em cena as falas

incongruentes e insensatas Em meio a uma enxurrada de elementos associativos tanto

no Aleph como no sonho haacute algo (um umbigo na eloquente metaacutefora corporal empre-

gada por Freud) que fisga o sujeito Ele aponta para a verdade do lugar que o sujeito

ocupa diante do outro E talvez seja o impossiacutevel (ou o insuportaacutevel) saber desse lugar

que faccedila precipitar todo o desmedido Eacute a esse ponto cego que o excesso vem responder

A bela expressatildeo trazida por Borges para se referir agrave consumiccedilatildeo de Dante em sua

devoccedilatildeo amorosa ldquonightmares of delightrdquo ndash ldquopesadelos de deleiterdquo ndash aponta para o gozo

da repeticcedilatildeo nesse lugar de captura O ponto que diz algo da posiccedilatildeo objetalizada que

o sujeito ocupa diante do outro E a coincidecircncia (ou o encaixe preciso) dessa histoacuteria eacute

justamente que por meio do pesadelo Freud pode duas deacutecadas mais tarde em 1920

conceber a pulsatildeo de morte e pensar a compulsatildeo agrave repeticcedilatildeo Satildeo os sonhos repetitivos

de pessoas que sofriam de neuroses traumaacuteticas que permitem a Freud perceber que a

funccedilatildeo primaacuteria do sonho natildeo eacute a realizaccedilatildeo de desejo Eacute antes conjurar pela repeticcedilatildeo

os excessos pulsionais oriundos do trauma que subjulgam o sujeito Conforme aponta

Rivera em sua leitura do texto de 1900 o sonho repete sempre a mesma cena traumaacute-

32 Ver para mais detalhes o segundo capiacutetulo de Pinto 2012

295O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

tica na tentativa de fazer engatar uma posiccedilatildeo de sujeito desejante neste que era um

lugar de ldquomortiacutefero assujeitamentordquo (Rivera 2012 p 23) O sujeito repete a mesma

cena na tentativa de se fazer sujeito da cena de sofrer natildeo tatildeo passivamente aquilo que

lhe tomou violentamente de surpresa Esse parece ser o ponto que tanto Aleph quanto

sonho ao mesmo tempo em que encobrem tambeacutem revelam

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297 A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

DionedeMedeirosLulaZavaroni

TerezinhadeCamargoViana

MassimoAmmaniti

Introduccedilatildeo

Este trabalho apresenta parte da pesquisa de doutorado realizada dentro do acordo de

co-tutela celebrado entre o Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura

da Universidade de Brasiacutelia e o Dottorato di Ricerca in Psicologia Dinamica Clinica e dello

Sviluppo da Universitagrave degli Studi di Roma ldquoLa Sapienzardquo para o desenvolvimento da

298

tese de doutorado intitulada O transtorno alimentar poacutes-traumaacutetico na primeira infacircncia33

Optamos por fazer um recorte privilegiando a apresentaccedilatildeo e discussatildeo dos dados da

pesquisa referentes agrave interaccedilatildeo alimentar entre a crianccedila e a matildee visto que a literatu-

ra aponta como uma das principais caracteriacutesticas dos transtornos da alimentaccedilatildeo na

infacircncia a presenccedila de um elevado iacutendice de dificuldades na interaccedilatildeo alimentar matildee-

-bebecirc O recorte apresentado com os dados extraiacutedos a partir da utilizaccedilatildeo da SVIA na

avaliaccedilatildeo da interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc corroboram os estudos anteriormente reali-

zados que apontam dificuldades na interaccedilatildeo da crianccedila com transtorno alimentares e

seus cuidadores no momento da alimentaccedilatildeoOs objetivos gerais da tese O transtorno

alimentar poacutes-traumaacutetico na primeira infacircncia consistiram em desenvolver um estudo

empiacuterico que possibilitasse

a Identificar os fatores de risco presentes no Transtorno Alimentar Poacutes-

traumaacutetico (TAPT)

b Identificar caracteriacutesticas especiacuteficas do comportamento alimentar da crianccedila e dos

modelos de interaccedilatildeo matildee-bebecirc no TAPT

c Estabelecer criteacuterios diagnoacutesticos diferenciais entre o TAPT e a Anorexia Infantil

(AI)

d Evidenciar a pertinecircncia da observaccedilatildeo da interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc no proces-

so diagnoacutestico do TAPT

O estudo foi realizado com 60 crianccedilas (n=60) com idade meacutedia de 23 meses divididas

em trecircs grupos Grupo de crianccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-TraumaacuteticoTAPT

(n=20) Grupo de crianccedilas com Anorexia InfantilAI (n=20) e Grupo de Controle com-

posto por crianccedilas sem transtornos alimentares (n=20) Na presente pesquisa todas

as crianccedilas com diagnoacutestico de Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico passaram por

33 Tese de doutorado realizada dentro do acordo de co-tutela celebrado entre o Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura da Universidade de Brasiacutelia e o Dottorato di Ricerca in Psicologia Dinamica Clinica e dello Sviluppo da Universitagrave degli Studi di Roma La Sapienza Zavaroni D L M (2009) O transtorno alimentar poacutes-traumaacutetico na primeira infacircncia Tese de DoutoradoUniversidade de Brasilia Brasilia DF Brasil Universitagrave di Roma La Sapienza Roma Itaacutelia Orientadora Terezinha de Camargo Viana Co-orientadorMasimo Ammaniti

299A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

um procedimento ciruacutergico e todas foram observados aproximadamente seis meses

apoacutes a resoluccedilatildeo do problema meacutedico As crianccedilas foram selecionadas em um Hospital

Pediaacutetrico da cidade de Roma (Itaacutelia) dentre aquelas que depois de resolvida a proble-

maacutetica meacutedica na esfera da orofaringe continuavam a apresentar uma intensa recusa

do alimento acompanhada de comportamentos foacutebicos de evitaccedilatildeo e terror As crianccedilas

do Grupo Anorexia Infantil tambeacutem foram selecionadas em um Hospital Pediaacutetrico da

cidade Roma (Itaacutelia) apoacutes a avaliaccedilatildeo do transtorno alimentar tendo sido excluiacutedas as

crianccedilas que apresentavam alguma patologia meacutedica O Grupo de Controle eacute composto

de vinte crianccedilas (n=20) nos primeiros trecircs anos de vida que natildeo apresentam sintomas

de transtornos alimentares em suas anamneses e que apresentam um desenvolvimento

psicomotor regular Os dados do grupo de controle foram coletados graccedilas agrave colaboraccedilatildeo

com uma creche do Municiacutepio de Ciampino na Proviacutencia de Roma (Itaacutelia)

As crianccedilas e suas matildees foram observadas em sessotildees alimentares e a interaccedilatildeo alimen-

tar videorregistrada foi avaliada atraveacutes Feeding Resistance Scale (Chatoor et al 2001) e

da adaptaccedilatildeo italiana da Feeding Scale (Chatoor et al 1997) intitulada Scala di Valutazio-

ne dellrsquoInterazione Alimentare Madre-Bambino SVIA (Ammaniti et al 2006) O perfil

psicoloacutegico das matildees e das crianccedilas foi avaliado a partir do Psychiatric Symptom Checklist

(SCL-90-R) (Derogatis 1994) e do Child Behavior Checklist 1frac12-5 (CBCL 1―-5) (Achenbach

e Rescorla 2000 versatildeo italiana Frigerio 1998 Frigerio et al 2006) respectivamente

O diagnoacutestico de Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e de Anorexia Infantil foi reali-

zado com base nos criteacuterios do DSM-IV-TR (APA 2000) da Classificaccedilatildeo 0-3R (Zero-

-to-Three 2005) e da Classificaccedilatildeo Cliacutenica proposta por Irene Chatoor (2002 Cahatoor

et al 2001 Chatoor e Ammaniti 2007)

Para o presente trabalho optamos em fazer um recorte privilegiando a apresentaccedilatildeo

e discussatildeo dos dados da pesquisa referentes agrave interaccedilatildeo alimentar entre a crianccedila e a

matildee visto que a literatura aponta como uma das principais caracteriacutesticas dos trans-

tornos da alimentaccedilatildeo na infacircncia a presenccedila de um elevado iacutendice de dificuldades na

interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc

300

Avaliaccedilatildeodainteraccedilatildeoalimentarmatildee-bebecirc

A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc foi avaliada atraveacutes de procedimentos de observaccedilatildeo

direta As diacuteades matildee-bebecirc dos Grupos Cliacutenicos e de Controle foram observadas em

uma sessatildeo videorregistrada de 20 minutos efetuada durante uma das principais re-

feiccedilotildees da crianccedila Antes de comeccedilar a realizaccedilatildeo do viacutedeo as matildees foram orientadas a

comportar-se de modo habitual durante o momento da alimentaccedilatildeo da crianccedila Foi soli-

citado que as sessotildees de alimentaccedilatildeo fossem realizadas apenas com a presenccedila da matildee

e da crianccedila Nos viacutedeos feitos em casa a escolha do local onde seria realizada a refeiccedilatildeo

da crianccedila (sala cozinha quarto etc) foi feita pela matildee eou pela crianccedila tendo como

referecircncia os procedimentos mais usuais entre ambas A decisatildeo sobre o modo como

acomodar a crianccedila ficou a criteacuterio da matildee (cadeira da mesa de refeiccedilotildees cadeiratildeo colo

etc) Os viacutedeos foram feitos por psicoacutelogos com training na Feeding Scale

A observaccedilatildeo videorregistrada foi avaliada atraveacutes de dois checklist que permitem anali-

sar a qualidade das modalidades relacionais e o estado afetivo da diacuteade durante a refei-

ccedilatildeo

bull Feeding Resistance Scale (Chatoor et al 2001 adaptaccedilatildeo italiana Ammaniti et al

2008)

bull Feeding Scale (Chatoor et al 1998 na adaptaccedilatildeo italiana Scala di Valutazione

dellrsquoInterazione Alimentare Madre-Bambino SVIA Ammaniti Lucarelli Cimi-

no DrsquoOlimpio 2006)

A Feeding Resistance Scale (Chatoor et al 2001) foi criada para ser usada na observaccedilatildeo

direta da crianccedila e da matildee no momento da alimentaccedilatildeo quando a histoacuteria cliacutenica indica

a possiacutevel presenccedila de um Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico A escala se apresenta

sob a forma de um checklist que se aplica a observaccedilatildeo videorregistrada da diacuteade matildee-

-crianccedila durante uma sessatildeo alimentar de aleitamento ou de uma refeiccedilatildeo principal

O uso da Feeding Resistance Scale possui dois objetivos principais orientar o diagnoacutestico

do transtorno alimentar e orientar as intervenccedilotildees com base nas relaccedilotildees matildee-crianccedila

Como um instrumento cliacutenico e diagnoacutestico serve agrave identificaccedilatildeo de modelos disfun-

cionais emotivos e comportamentais da crianccedila durante a refeiccedilatildeo e das dinacircmicas re-

lacionais de risco avaliadas clinicamente nos procedimentos de avaliaccedilatildeo diagnoacutestica

dos transtornos alimentares infantis Os viacutedeos satildeo ainda utilizados nas intervenccedilotildees

301A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

cliacutenicas com os genitores com o objetivo de prevenir ou tratar transtornos emotivos e

problemas relacionais precoces

A Feeding Resistance Scale eacute composta por vinte itens que descrevem o comportamento

da crianccedila durante a refeiccedilatildeo com ecircnfase nas respostas da mesma agrave situaccedilatildeo alimentar

e agrave comida Cada item da escala deve ser medido de acordo com uma escala Likert com-

posta por quatro pontos (0 = nunca 1 = pouco 2 = algumas vezes 3 = muito) em corres-

pondecircncia agrave frequecircncia e agrave intensidade dos comportamentos descritos que a crianccedila re-

vela no curso da refeiccedilatildeo A avaliaccedilatildeo oferece um iacutendice global da resistecircncia alimentar

(feeding resistance) ou pontuaccedilotildees agrupadas em cada dimensatildeo observada pela escala

bull Resistecircncia Preacute-oral I avalia a ansiedade antecipatoacuteria e os comportamentos defen-

sivos da crianccedila antes que a comida chegue agrave boca (por ex ao ver os utensiacutelios da

alimentaccedilatildeo ou quando posicionada para comer) Eacute composta de cinco itens

bull Resistecircncia Preacute-oral II avalia a ansiedade antecipatoacuteria e a resistecircncia em aceitar a

comida quando lhe eacute oferecida Eacute composta por oito itens

bull Resistecircncia Intra-oral avalia a resistecircncia em ingerir e deglutir quando a comida eacute

colocada na boca da crianccedila Eacute composta por sete itens

Conjuntamente agrave Feeding Resistance Scale (Chatoor et al 2001) eacute possiacutevel aplicar uma

escala de observaccedilatildeo da interaccedilatildeo alimentar entre a matildee e a crianccedila A Feeding Scale

ndash Observational Scale for Mother-Infant Interaction during Feeding (Chatoor et al 1998

Ammaniti et al 2006) oferece uma avaliaccedilatildeo eficaz da interaccedilatildeo matildee-bebecirc duran-

te uma sessatildeo de alimentaccedilatildeo de 20 minutos A escala pode ser usada com crianccedilas

entre um mecircs e trecircs anos de idade A versatildeo original padronizada para a populaccedilatildeo

norte-americana consiste de 46 itens que descrevem os comportamentos da matildee e da

crianccedila no curso de uma refeiccedilatildeo e se aplica a observaccedilotildees videoregistradas da diacuteade

durante a interaccedilatildeo alimentar Os itens satildeo avaliados apoacutes a sessatildeo de alimentaccedilatildeo Na

presente pesquisa foi utilizada a versatildeo italiana da Feeding Scale (Scala di Valutazione

dellrsquoInterazione Alimentare Madre-Bambino Ammaniti et al 2006) que se apresenta

sob a forma de um checklist com quarenta e um itens que se aplicam agraves observaccedilotildees

videoregistradas da diacuteade matildee-bebecirc durante a interaccedilatildeo alimentar nos primeiros trecircs

anos de vida

302

A escala foi criada para ser utilizada como instrumento de pesquisa ou como instru-

mento cliacutenico e diagnoacutestico Como instrumento de pesquisa eacute um precioso meio para

o estudo do desenvolvimento da relaccedilatildeo matildee-bebecirc nos primeiros trecircs anos de vida e das

dinacircmicas relacionais de risco no contexto da alimentaccedilatildeo Como instrumento cliacutenico e

diagnoacutestico permite identificar e mostrar modelos disfuncionais de regulaccedilatildeo alimen-

tar da crianccedila e dinacircmicas relacionais de risco da diacuteade matildee-bebecirc que satildeo avaliadas

clinicamente para aprofundar a avaliaccedilatildeo diagnoacutestica dos transtornos alimentares in-

fantis O viacutedeo da interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc pode ser utilizado por especialistas na

intervenccedilatildeo psicoterapecircutica junto aos genitores com o objetivo de prevenir ou tratar

transtornos evolutivos e problemas relacionais precoces Na adaptaccedilatildeo italiana a escala

se subdivide em quatro subescalas Estado Afetivo da Matildee Conflito Interativo Compor-

tamento de Recusa Alimentar da Crianccedila Estado Afetivo da Diacuteade

Resultados

Feeding Scale

As diacuteades matildee-bebecirc dos Grupos Cliacutenicos e do Grupo de Controle foram observadas

durante uma das principais refeiccedilotildees da crianccedila em uma sessatildeo videoregistrada de

vinte minutos A observaccedilatildeo foi avaliada atraveacutes da Feeding Scale (Chatoor et al 1998

Ammaniti et al 2006) e da Feeding Resistance Scale (Chatoor et al 2001 Ammaniti et

al 2008)

A aplicaccedilatildeo da Feeding Scale evidenciou diferenccedilas significativas entre os dois Grupos

Cliacutenicos e o Grupo de Controle em relaccedilatildeo as quatro subescalas da escala Estado Afetivo

da Matildee Conflito Interativo Comportamento de Recusa Alimentar da Crianccedila Estado

Afetivo da Diacuteade Nas quatro subescalas da SVIA os resultados meacutedios mais elevados

foram encontrados no grupo cliacutenico Anorexia Infantil seguido do grupo cliacutenico Trans-

torno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico O Grupo de Controle obteve resultados significativa-

mente mais baixos em todas as subescalas

A diferenccedila mais relevante entre os Grupos Cliacutenicos e o Grupo de Controle foi obser-

vada na dimensatildeo Conflito Interativo onde as crianccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-

-Traumaacutetico e com Anorexia Infantil apresentaram um elevado resultado com relaccedilatildeo

303A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

ao Grupo de Controle No confronto entre os resultados dos dois grupos cliacutenicos na Fe-

eding Scale o Grupo Cliacutenico Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico teve resultados mais

baixos em todas as subescalas em relaccedilatildeo ao Grupo Cliacutenico de crianccedilas com Anorexia

Infantil (Graacutefico 1)

GRAacuteFICO 1 ndash Feeding Scale

SVIA

-

5

10

15

20

25

30

35

40

Estado Afetivo da Matildee Conflito Interativo Comportamento deRecusa Alimentar da

Crianccedila

Estado Afetivo daDiacuteade

TAPT

AI

Controle

O Grupo de Controle teve resultados significativamente mais baixos em todas as subes-

calas quando comparados aos Grupos Cliacutenicos Os resultados mais elevados no Grupo

Cliacutenico Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e no Grupo de Anorexia Infantil foram

obtidos na subescala Conflito Interativo seguida das subescalas Estado Afetivo da Matildee

Comportamento de Recusa Alimentar da Crianccedila e Estado Afetivo da Diacuteade O Grupo

Anorexia Infantil obteve pontuaccedilotildees mais elevadas em todas as subescalas quando com-

parado ao Grupo Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico (Graacutefico 2)

304

GRAacuteFICO 2 ndash RESULTADOS SVIA POR GRUPO

RESULTADOS SVIA

0

5

10

15

20

25

30

35

40

TAPT AI CONTROLE

Grupos

Resu

ltado

s

Estado Afetivo da Matildee Conflito Interativo

Comportamento de Recusa Alimentar da Crianccedila Estado Afetivo da Diacuteade

Feeding Resistance Scale

Na Feeding Resistance Scale (Resistecircncia Preacute-oral I ndash Ansiedade Antecipatoacuteria Resistecircncia

Preacute-oral II ndash Anguacutestia e Resistecircncia agrave Comida Resistecircncia Intra-oral ndash Resistecircncia agrave inges-

tatildeo de comidas) as crianccedilas do Grupo Cliacutenico Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico ob-

teve resultados meacutedios significativamente mais elevados em todas as subescalas quan-

do confrontado ao Grupo Cliacutenico Anorexia Infantil e ao Grupo de Controle

Em todas as dimensotildees os resultados das crianccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-Trau-

maacutetico foram significativamente mais elevados com relaccedilatildeo agraves crianccedilas do Grupo Ano-

rexia Infantil e ao Grupo de Controle A diferenccedila entre os grupos foi particularmente

marcante na demissatildeo Ansiedade Antecipatoacuteria (Resistecircncia Preacute-oral I) que se refere ao

estresse da crianccedila no momento dos preparativos para iniciar a refeiccedilatildeo antes de iniciar

a alimentaccedilatildeo propriamente dita e que se constitui um dos sintomas mais relevantes

do Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico Nesta dimensatildeo o grupo de crianccedilas com

Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico obteve resultados muito mais elevados que e o

grupo de crianccedilas com Anorexia Infantil e o Grupo de Controle e natildeo houve diferenccedila

significativa entre o Grupo Anorexia Infantil e o Grupo de Controle

305A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

GRAacuteFICO 3 ndash Feeding Resistance Scale

Feeding Resistance Scale

-

5

10

15

20

25

Ansiedade Antecipatoacuteria Ansiedade e Resistecircncia agraveComida

Resistecircncia agrave ingestatildeo daComida

TAPTAICONTROLE

Discussatildeo

O presente estudo dedicou-se agrave pesquisa das caracteriacutesticas do Transtorno Alimentar

Poacutes-Traumaacutetico na primeira infacircncia sobretudo na sua diferenciaccedilatildeo da Anorexia In-

fantil Segundo estudos anteriores (Benoit e Coolbear 1998 Chatoor et al 2001) o

principal criteacuterio diagnoacutestico do Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico eacute a existecircncia

de uma intensa e persistente recusa alimentar associada a um evento traumaacutetico pre-

cedente ligado agrave alimentaccedilatildeo ou ao sistema digestoacuterio Segundo Chatoor et al (2001)

este transtorno pode ser associado a episoacutedios reais desprazerosos ou aterrorizantes

ligados agrave esfera alimentar (sufocamento obstruccedilatildeo por comida vocircmito severo) ou a pro-

cedimentos meacutedicos que envolveram a orofaringe e o esocircfago (sonda nasogaacutestrica ou

intubaccedilatildeo) Aleacutem disso a literatura especializada reporta uma correlaccedilatildeo entre o Trans-

torno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e a presenccedila do Refluxo Gastroesofaacutegico Contudo

existem alguns estudos (Chatoor et al 2001) indicando que apenas um pequeno grupo

de crianccedilas com Refluxo Gastroesofaacutegico desenvolveu um Transtorno Alimentar Poacutes-

306

-Traumaacutetico Dellert et al (1993) afirmam que natildeo existe diferenccedila quando se considera

a patologia orgacircnica (refluxo gastroesofaacutegico ou esofagite) entre as crianccedilas que desen-

volveram o Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e aquelas que natildeo desenvolveram

Ao mesmo tempo a cliacutenica revela que natildeo existe uma relaccedilatildeo de causa e efeito direta

entre os procedimentos meacutedicos no acircmbito do sistema digestoacuterio e o Transtorno Ali-

mentar Poacutes-Traumaacutetico ou seja natildeo satildeo todas as crianccedilas que vivenciam experiecircncias

de naacuteusea sufocamento vocircmito ou manipulaccedilatildeo da orofaringe que desenvolvem um

Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico Chatoor et al (2001) sugerem que se deve estu-

dar de modo mais detalhado as caracteriacutesticas do temperamento a reatividade fisio-

loacutegica e a co-morbidade com transtornos de ansiedade para compreender melhor a

fenomenologia do Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico na infacircncia

Em consonacircncia com estudos precedentes (Chatoor et al 2001) as crianccedilas com Trans-

torno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico analisadas nesta pesquisa revelaram um acentuado

niacutevel de recusa alimentar A caracteriacutestica mais marcante da recusa alimentar das crian-

ccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e que diferencia estas crianccedilas daquelas

com diagnoacutestico de Anorexia Infantil aqui estudadas refere-se sobretudo ao elevado

niacutevel de sofrimento estresse e medo que essas crianccedilas revelam na fase preacute-oral da

alimentaccedilatildeo ou seja na fase em que a crianccedila e o ambiente se preparam para iniciar a

sessatildeo alimentar

Este dado tambeacutem aparece em outras pesquisas (Chatoor et al 2001) e eacute associado agrave

lembranccedila da experiecircncia traumaacutetica em torno da alimentaccedilatildeo que a crianccedila vivenciou

anteriormente e que lhe eacute trazida agrave memoacuteria quando a mesma se encontra na situaccedilatildeo

de alimentaccedilatildeo Aleacutem da Resistecircncia Preacute-oral as crianccedilas com Transtorno Alimentar

Poacutes-Traumaacutetico estudadas na presente pesquisa revelaram como caracteriacutestica impor-

tante uma acentuada resistecircncia em deglutir o alimento que lhe foi oferecido Portanto

a partir dos resultados obtidos se pode sustentar que a ansiedade antecipatoacuteria e os

comportamentos defensivos da crianccedila antes que a comida lhe seja oferecida a resis-

tecircncia em aceitar a comida que lhe eacute oferecida e a resistecircncia em ingerir e deglutir a

comida que lhe eacute colocada na boca se confirmam na presente pesquisa como as princi-

pais caracteriacutesticas do comportamento alimentar da crianccedila com Transtorno Alimentar

Poacutes-Traumaacutetico Eacute importante evidenciar que neste estudo a Feeding Resistance Scale

307A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

se confirma como um importante instrumento no processo diagnoacutestico do Transtorno

Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e na sua diferenciaccedilatildeo da Anorexia Infantil

Ao mesmo tempo a utilizaccedilatildeo da Feeding Scale ndash Observational Scale for Mother-Infant

Interaction during Feeding (Chatoor et al 1998 na adaptaccedilatildeo italiana Scala di Valuta-

zione dellrsquoInterazione Alimentare Madre-Bambino SVIA Ammaniti et al 2006) na

presente pesquisa ofereceu uma avaliaccedilatildeo eficaz da interaccedilatildeo matildee-bebecirc durante a ali-

mentaccedilatildeo

Como principal caracteriacutestica dos grupos cliacutenicos a Feeding Scale revelou a presenccedila de

um intenso Conflito Interativo no momento da alimentaccedilatildeo entre a crianccedila e a matildee

As crianccedilas com transtornos alimentares quando comparadas agraves crianccedilas do Grupo de

Controle tiveram resultados significativamente mais elevados em todas as subescalas

da Feeding Scale (Estado Afetivo da Matildee Conflito Interativo Comportamento de Recusa

Alimentar da Crianccedila Estado Afetivo da Diacuteade) Eacute interessante observar que embora na

Feeding Resitance Scale as crianccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico tenham

alcanccedilado pontuaccedilotildees muito mais elevadas que as crianccedilas com Anorexia Infantil na

avaliaccedilatildeo da resistecircncia agrave comida na Feeding Scale a avaliaccedilatildeo do comportamento de

recusa alimentar da crianccedila e o conflito interativo (que tambeacutem avalia alguns compor-

tamentos de recusa alimentar da crianccedila) tiveram resultados significativamente mais

elevados entre as crianccedilas com Anorexia Infantil Uma interpretaccedilatildeo possiacutevel para essa

inversatildeo na posiccedilatildeo dos grupos cliacutenicos em relaccedilatildeo a este item pode ser encontrada nas

proacuteprias caracteriacutesticas das escalas utilizadas Enquanto a Feeding Resistance Scale eacute um

instrumento com o objetivo de avaliar o comportamento de recusa alimentar a Feeding

Scale eacute um instrumento destinado agrave avaliaccedilatildeo da interaccedilatildeo matildee-bebecirc no momento da

alimentaccedilatildeo revelando principalmente elementos ligados agrave interaccedilatildeo Deste modo o

uso conjunto dos dois instrumentos na presente pesquisa se revelou complementar e

de grande importacircncia na ampliaccedilatildeo dos diversos aspectos avaliados

Os resultados revelados a partir da observaccedilatildeo da sessatildeo alimentar da matildee e da crianccedila

nos permitem afirmar que nos grupos estudados nesta pesquisa o elevado Conflito

Interativo revelado pelas crianccedilas com transtorno alimentar aparece em estreita relaccedilatildeo

com o Estado Afetivo da Matildee e com o Comportamento de Recusa Alimentar da Crianccedila

Estes dados conduzem agrave conclusatildeo de que estes aspectos interagem entre si contri-

buindo para o aumento ou a diminuiccedilatildeo de sua presenccedila na interaccedilatildeo alimentar matildee-

308

-bebecirc das crianccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e com Anorexia Infantil

O Estado Afetivo da Diacuteade tambeacutem aparece como um fator importante na interaccedilatildeo

alimentar destas crianccedilas mas dentre os fatores analisados foi o que revelou menor

interferecircncia nas dificuldades alimentares da crianccedila

Dentre os dados revelados na presente pesquisa merece destaque os elevados resulta-

dos na dimensatildeo Conflito Interativo nos grupos de crianccedilas com Transtorno Alimentar

Poacutes-Traumaacutetico e com Anorexia Infantil Estes resultados revelam a existecircncia de difi-

culdades na interaccedilatildeo ligadas a uma comunicaccedilatildeo conflituosa natildeo colaborativa e natildeo

empaacutetica entre a matildee e a crianccedila durante as refeiccedilotildees

No caso das crianccedilas com Anorexia Infantil a presenccedila marcante de conflitos interati-

vos entre a matildee e a crianccedila pode ser compreendida a partir da observaccedilatildeo de que este

transtorno alimentar frequentemente inicia-se no periacuteodo de transiccedilatildeo agrave alimentaccedilatildeo

autocircnoma quando a crianccedila mostra muito interesse nas atividades luacutedicas e na explora-

ccedilatildeo do ambiente em contrapartida a um escasso apetite Em consequecircncia eacute frequente

a luta pelo controle entre a crianccedila e o cuidador sobretudo no momento das refeiccedilotildees

quando a crianccedila demonstra mais interesse pelo brincar do que pela situaccedilatildeo alimentar

(Chatoor et al 2001)

Com relaccedilatildeo agraves crianccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico a intensa recusa

alimentar frequentemente provoca ansiedade e desconforto no cuidador Em consequ-

ecircncia observa-se um intenso conflito onde estatildeo presentes fatores referentes agrave crianccedila

e agrave matildee Do lado do cuidador a interaccedilatildeo torna-se difiacutecil em consequecircncia de compor-

tamentos maternos que dificultam a interaccedilatildeo alimentar com a crianccedila Segundo os cri-

teacuterios da Feeding Scale dentre tais comportamentos estatildeo presentes o comportamento

materno de conduzir a refeiccedilatildeo sem perceber os sinais da crianccedila interromper ou ter-

minar a alimentaccedilatildeo causando incocircmodo na crianccedila exprimir desaprovaccedilatildeo ou criacutetica

com relaccedilatildeo ao modo como a crianccedila se alimenta limitar os movimentos da crianccedila

fazer frequentes e insistentes diretivas eou solicitaccedilotildees agrave crianccedila manifestar incocircmodo

durante grande parte da sessatildeo alimentar regular a alternacircncia de pausas e dos turnos

com o filho no curso da refeiccedilatildeo de modo riacutegido ou pouco flexiacutevel Da parte da crianccedila

os elevados resultados referentes ao Conflito Interativo no momento das refeiccedilotildees es-

tatildeo relacionados agrave presenccedila de comportamentos persistentes de recusa alimentar e de

309A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

desconforto provavelmente em resposta ao controle agrave intrusividade agrave falta de sensibi-

lidade e de continecircncia materna

O alto iacutendice de Conflito Interativo nos grupos cliacutenicos estudados pode tambeacutem ser

interpretado a partir da proposta de Sander (1975) sobre os eventos da interaccedilatildeo matildee-

-bebecirc que satildeo considerados o ponto de partida das questotildees de adaptaccedilatildeo negociadas

interativamente entre a crianccedila e o seu cuidador segundo o periacuteodo no qual eacute mais fre-

quente que tais adaptaccedilotildees aconteccedilam Considerando que na presente pesquisa a faixa

de idade das crianccedilas se situa entre dezessete e trinta e seis meses se pode pensar que

as principais questotildees com as quais a diacuteade matildee-bebecirc se depara satildeo sobretudo a Auto-

-afirmaccedilatildeo (que se apresenta dos catorze aos vinte meses de idade) e o Reconhecimento

e a questatildeo da ldquocontinuidade ou constacircncia do Eurdquo (entre os dezoito e os trinta e seis

meses) (Sander 1975)

Deste modo se pode sustentar que o alto iacutendice de conflito interativo presente nos gru-

pos cliacutenicos evidencia provavelmente dificuldades nas demandas de negociaccedilatildeo entre

matildee-bebecirc presentes nesta faixa etaacuteria e que se referem por um lado ao incremento da

autonomia da crianccedila e por outro lado ao excesso de restriccedilotildees agrave vontade da crianccedila

colocadas pelos genitores A partir do perfil de interaccedilatildeo revelado neste estudo se su-

potildee que a coordenaccedilatildeo reciacuteproca nas diacuteades matildee-bebecirc das crianccedilas com transtornos

alimentares estudadas eacute problemaacutetica Em consequecircncia a ruptura do equiliacutebrio das

trocas com o cuidador revelada no momento da refeiccedilatildeo pode ser interpretada como

uma dificuldade de interaccedilatildeo da diacuteade que interfere nas condiccedilotildees emocionais da crian-

ccedila (Sander 1975)

Agraves dificuldades interacionais reveladas pela diacuteade matildee-bebecirc nos grupos cliacutenicos des-

ta pesquisa acrescentam-se ainda as condiccedilotildees de sauacutede das crianccedilas com Transtorno

Alimentar Poacutes-Traumaacutetico que foram submetidas a intervenccedilotildees meacutedicas em consequ-

ecircncia de graves problemas de sauacutede Aleacutem disso o elevado iacutendice de comportamento

agressivo revelado por essas crianccedilas34 impotildee uma maior exigecircncia de negociaccedilatildeo agrave

interaccedilatildeo matildee-bebecirc jaacute posta em condiccedilotildees especiais quanto ao requisito negociaccedilatildeo

em consequecircncia da faixa etaacuteria Segundo Sander (1975) na faixa etaacuteria estudada o

34 Dados apontados pelo Child Behavior Checklist 1―-5 (CBCL 1―-5) (Achenbach e Rescorla 2000 versatildeo italiana Frigerio 1998 Frigerio et al 2006)

310

comportamento agressivo e destrutivo eacute dotado de direcionalidade e de intencionalida-

de exigindo da matildee uma maior toleracircncia e capacidade de negociaccedilatildeo com a crianccedila Na

presenccedila de conflitos a restauraccedilatildeo sucessiva das condiccedilotildees de equiliacutebrio eacute necessaacuteria

para a vivecircncia de uma importante experiecircncia de superaccedilatildeo quanto agrave constacircncia do Ser

por parte da crianccedila

Por fim neste estudo foi corroborada a hipoacutetese jaacute comprovada em outros estudos

que a principal caracteriacutestica do comportamento alimentar da crianccedila com Transtorno

Alimentar Poacutes-Traumaacutetico eacute o acentuado medo da situaccedilatildeo alimentar e a ansiedade an-

tecipatoacuteria enquanto os modelos interativos matildee-bebecirc se caracterizam pela resistecircncia

agrave alimentaccedilatildeo e pelo conflito diaacutedico sobretudo quando os genitores tentam alimentar

a crianccedila

Como resultado significativo pode-se afirmar que o presente estudo contribuiu para a

diferenciaccedilatildeo entre o Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e a Anorexia Infantil quan-

do colocou em evidecircncia que o medo e a ansiedade antecipatoacuteria juntamente com o

comportamento agressivo satildeo as principais caracteriacutesticas das crianccedilas com Transtorno

Alimentar Poacutes-Traumaacutetico enquanto a ansiedade e depressatildeo infantil35 e a dificuldade

de interaccedilatildeo entre a matildee e a crianccedila revela-se como a principal caracteriacutestica do grupo

de crianccedilas com Anorexia Infantil

Diversas pesquisas demonstram que a observaccedilatildeo e a avaliaccedilatildeo da interaccedilatildeo alimen-

tar matildee-bebecirc satildeo fatores decisivos na compreensatildeo dos transtornos alimentares Desse

modo as pesquisas que se dedicam agrave investigaccedilatildeo dos transtornos alimentares natildeo

podem prescindir de problematizar e de utilizar instrumentos de observaccedilatildeo que pos-

sibilitem uma eficaz compreensatildeo da interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc no contexto desses

transtornos O recorte apresentado com os dados extraiacutedos a partir da utilizaccedilatildeo da

SVIA na avaliaccedilatildeo da interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc corroboram os estudos anterior-

mente realizados que apontam dificuldades na interaccedilatildeo da crianccedila com transtorno ali-

mentares e seus cuidadores no momento da alimentaccedilatildeo Estes dados apontam para

a importacircncia do desenvolvimento de pesquisas e das intervenccedilotildees voltadas agrave diacuteade no

tratamento das queixas relacionadas a tais transtornos

35 Dados apontados pelo Child Behavior Checklist 1―-5 (CBCL 1―-5) (Achenbach e Rescorla 2000 versatildeo italiana Frigerio 1998 Frigerio et al 2006)

311A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

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313 O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

MariaIzabelTafuri

GilbertoSafra

Na deacutecada de 1920 Melanie Klein recebera para tratamento uma crianccedila com o diag-

noacutestico de ldquoDemecircncia Precocerdquo Chamado por ela de Pequeno Dick com apenas trecircs

anos de idade falava algumas palavras sem contexto natildeo manifestava anguacutestia de

separaccedilatildeo natildeo fantasiava a realidade e natildeo estabelecia relaccedilatildeo afetiva com a analista

Segundo a autora ldquosenti-me obrigada a fazer minhas interpretaccedilotildees agrave base do meu

conhecimento geral sendo as representaccedilotildees do material de Dick relativamente vagasrdquo

(Klein193073) A psicanalista considerou agrave eacutepoca que o simbolismo poderia ser revela-

do pela crianccedila inibida por meio de alguns detalhes do comportamento permitindo ao

analista fazer interpretaccedilotildees para criar a relaccedilatildeo transferencial caracteriacutestica essencial

de um tratamento psicanaliacutetico E em oposiccedilatildeo agrave Anna Freud Klein enfatizara a prima-

zia do efeito da accedilatildeo interpretativa na relaccedilatildeo transferencial com Dick em detrimento

das accedilotildees pedagoacutegicas para adaptar o pequeno agrave escola Em suma o campo psicanaliacutetico

ficou marcado por um paradigma claacutessico o analista precisa ser inteacuterprete de gestos

314

pouco representativos das crianccedilas inibidas para criar a relaccedilatildeo transferencial condiccedilatildeo

essencial para a cliacutenica psicanaliacutetica

Agrave eacutepoca da publicaccedilatildeo do caso cliacutenico de M Klein (1930) o Autismo infantil precoce

ainda natildeo havia sido descrito Dick havia sido encaminhado com o diagnoacutestico de De-

mecircncia Precoce A psicanalista descartou a classificaccedilatildeo enfatizando a potencialidade

das capacidades cognitivas da crianccedila que estariam preservadas poreacutem pouco desen-

volvidas de acordo com a idade cronoloacutegica Segundo Klein Dick apresentava uma ini-

biccedilatildeo afetiva que o impedia de entrar no processo simboacutelico e de fantasiar a realidade

Devido agrave ausecircncia de fantasias associada ao isolamento afetivo Klein chegara a pensar

o quadro cliacutenico da crianccedila como uma primeira manifestaccedilatildeo da Esquizofrenia Infantil

(Potter1933) Com o tratamento psicanaliacutetico foi possiacutevel ver a franca evoluccedilatildeo da crian-

ccedila e a sua inserccedilatildeo na escola e na sociedade

Na deacutecada de 1940 Leacuteo Kanner psiquiatra de origem austriacuteaca radicado nos Estados

Unidos publicou o primeiro Manual de Psiquiatria Infantil que se tornou referecircncia

nesse campo E em 1943 apresentou ao mundo a descriccedilatildeo de uma doenccedila psicopatoloacute-

gica rara que afetaria as crianccedilas desde o iniacutecio da vida o Autismo infantil precoce Con-

tudo natildeo foi apenas mais uma classificaccedilatildeo nosoloacutegica ocorrera uma nova definiccedilatildeo de

autismo contraacuteria agravequela que jaacute existia no contexto psiquiaacutetrico a noccedilatildeo de pensamento

autiacutestico nas esquizofrenias (Bleuler 1911)

Bleuler influenciado pela obra de Freud sobre a interpretaccedilatildeo dos sonhos poreacutem com

restriccedilotildees ao determinismo da sexualidade infantil na etiologia das neuroses houve a

subtraccedilatildeo de Eros do conceito de auto-erotismo ou seja autismo seria o auto-erotismo sem

Eros Como se sabe Bleuler ao descrever o pensamento fantasioso do esquizofrecircnico

denominado por ele de pensamento autiacutestico propiciou uma verdadeira revoluccedilatildeo em

relaccedilatildeo ao pensamento psiquiaacutetrico kraepeliano distinguindo os estados de demecircncia

orgacircnica das doenccedilas mentais O pensamento autistico por exemplo foi definido por

Bleuler como o sintoma secundaacuterio mais importante da esquizofrenia e o mais signifi-

cativo natildeo estaria diretamente relacionado com o processo moacuterbido da afecccedilatildeo

Acompanhando o pensamento de Bleuler Klein (1930) natildeo considerou Dick uma crian-

ccedila com esquizofrenia justamente por causa da ausecircncia do pensamento autiacutestico da

crianccedila O garoto natildeo se refugiava em um mundo proacuteprio repleto de ideias fantasiosas

315O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

Portanto para Klein o mundo interno da crianccedila natildeo era povoado por fantasias e ex-

pressotildees verbais a serem interpretadas como Bleuler passara a fazer com os esquizo-

frecircnicos Tanto Bleuler quanto Klein enfatizaram o potencial das capacidades psiacutequicas

de pacientes tidos ateacute aquela eacutepoca como dementes e incuraacuteveis Kanner por sua vez

inverteu todo o processo iniciado por Klein e Bleuler de distinguir os estados deficitaacute-

rios das doenccedilas mentais ao descrever o isolamento do grupo das onze crianccedilas como

um distuacuterbio neuroloacutegico inato que incapacita todas as aacutereas do desenvolvimento da

crianccedila E o mais paradoxal nomeou esse deacuteficit de autismo Daiacute em diante o autismo

passou a ser sinal de doenccedila deficitaacuteria assim como a descriccedilatildeo psiquiaacutetrica das doen-

ccedilas mentais deficitaacuterias

Na deacutecada de 40 Kanner se mostrava otimista quanto agrave comprovaccedilatildeo orgacircnica da nova

siacutendrome agrave medida que os exames laboratoriais se tornassem mais especiacuteficos e mais

aprimorados Hoje mais de meio seacuteculo de pesquisas cientiacuteficas com todo o avanccedilo

tecnoloacutegico alcanccedilado a procura continua pela comprovaccedilatildeo de uma causa orgacircnica do

Autismo infantil precoce Entretanto natildeo se trata apenas de um otimismo em pesquisar

as causas passou a ocorrer por parte de muitos profissionais e Associaccedilotildees de Pais um

patrulhamento radical contraacuterio agrave visatildeo psicodinacircmica do Autismo infantil precoce

No Brasil por exemplo foi aberto pela Secretaria de Estado da Sauacutede do Estado de Satildeo

Paulo em setembro de 2012 um Edital de Convocaccedilatildeo para Credenciamento de Insti-

tuiccedilotildees Especializadas em Atendimento a Pacientes com Transtorno do Espectro Autista

(Tea) para Eventual Celebraccedilatildeo de Contrato de convecircnio com as instituiccedilotildees que tratam

as crianccedilas autistas Dentre os preacute-requisitos necessaacuterios agrave cliacutenica eou hospital a serem

credenciados haacute uma determinaccedilatildeo ao trabalho do psicoacutelogo que deve comprovar espe-

cializaccedilatildeo em terapia cognitivo comportamental E mais o Estado pretende determinar

a metodologia de trabalho nesse campo cliacutenico O responsaacutevel legal pela Instituiccedilatildeo

deveraacute declarar a utilizaccedilatildeo de meacutetodos cognitivos comportamentais validados na litera-

tura cientiacutefica tais como PECS (Picture Exchange Communication System) ndash Sistema

de Comunicaccedilatildeo por figuras) ABA (Applied Behavior Analysis) ndash Anaacutelise do Compor-

tamento Aplicada TEACCH (Treatment and Education of Autistic and Communication

Handiscapped Childrem) ndash Tratamento e Educaccedilatildeo de Crianccedilas Autistas com desvanta-

gem na Comunicaccedilatildeo

316

Na Franccedila por influecircncia das pesquisas americanas em torno dos meacutetodos cognitivo

comportamentais para o Autismo vem crescendo de forma avassaladora o rechaccedilo pe-

las intervenccedilotildees psicanaliacuteticas tanto por parte de uma grande parte dos profissionais

como pelas Associaccedilotildees de Pais e mais recentemente pelo Estado Ateacute mesmo as Uni-

versidades estatildeo sendo alvo de accedilotildees puacuteblicas contraacuterias agrave realizaccedilatildeo de cursos sobre au-

tismo e psicanaacutelise Como aponta Hochmann (2009) o Autismo suscita sempre uma

tendecircncia aos aportes excludentes que conduzem ao fechamento de um saber caracteri-

zado por uma certeza ilusoacuteria de ser o portador de uma verdade irrefutaacutevel

Compreende-se que tais clivagens trazem prejuiacutezo agraves poliacuteticas coerentes agrave sauacutede e agrave

educaccedilatildeo das crianccedilas autistas como tambeacutem para a pesquisa que realizada dessa for-

ma tende a ter vida curta Persistir sobre a procura das causas orgacircnicas da origem do

Autismo natildeo nos ajuda de forma grandiosa quanto ao tratamento Precisamos reconhe-

cer de forma modesta o modelo de reaccedilatildeo da crianccedila frente aos muacuteltiplos fatores ina-

tos ou adquiridos estruturais ou funcionais geneacuteticos ou relacionais provavelmente

intricados desde o primeiro ano de vida da crianccedila Seria interessante voltar o conheci-

mento para a promoccedilatildeo de redes de cuidados psicoteraacutepicos associados agrave educaccedilatildeo e agrave

pedagogia

No contexto psicanaliacutetico haacute uma forte tendecircncia entre os autores em considerar as

vaacuterias formas de manifestaccedilotildees autiacutesticas considerando-se o processo simboacutelico em

curso de cada crianccedila que apresenta traccedilos autiacutesticos Passou-se a pensar no plural Au-

tismos (Hochmann 2009 Lebovici 1990 Houzel ampHaag 1990 Barral et all 2010

Haag 19871988 2000 a 2000b Rocha 1997 Lafforg 1993 Lebovici 1990) levando-

-se em conta a singularidade de cada crianccedila que apresenta caracteriacutesticas autiacutesticas A

proposta atual das ciecircncias positivas eacute a de considerar o Autismo como um Espectro

onde se encontram agrupadas as crianccedilas que apresentam siacutendromes degenerativas

como a siacutendrome de Rett e a siacutendrome degenerativa da infacircncia siacutendromes geneacuteticas

como o X-Fraacutegil a siacutendrome de Asperger como tambeacutem o Autismo infantil e o Autis-

mo Atiacutepico cujos sintomas claacutessicos seriam ldquoa presenccedila de um desenvolvimento acen-

tuadamente anormal ou prejudicado na interaccedilatildeo social e comunicaccedilatildeo e um repertoacuterio

marcantemente restrito de atividades e interessesrdquo (DSM-IV) O que diferencia substan-

cialmente da noccedilatildeo difundida no meio psicanaliacutetico o Autismo no plural justamente

para priorizar a subjetividade de cada crianccedila que apresenta caracteriacutesticas autiacutesticas

317O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

Em relaccedilatildeo a essa seacuteria problemaacutetica a cliacutenica psicanaliacutetica com as crianccedilas ditas autis-

tas oferece dados substantivos para rejeitar a noccedilatildeo de Espectro Nesse trabalho preten-

de-se abordar o trabalho psicoteraacutepico desenvolvido haacute mais de vinte e cinco anos na

Cliacutenica Escola da Universidade de Brasiacutelia-CAEP A partir da dissertaccedilatildeo de Mestrado

defendida em 1990 intitulada Autismo infantil precoce e nome proacuteprio um estudo explo-

ratoacuterio teoacuterico-cliacutenico acerca do sistema de nominaccedilatildeo foi possiacutevel iniciar as atividades de

ensino e pesquisa em psicopatologia psicanaacutelise psicoterapia e linguagem com alunos

da graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo pesquisadores do Laboratoacuterio de Psicopatologia e Psica-

naacutelise do Instituto de Psicologia da UnB A Cliacutenica Escola da Universidade de Brasiacutelia

ndash CAEP passou a receber as crianccedilas autistas e o trabalho cliacutenico foi a principal fonte

das pesquisas realizadas sobre o autismo

Em 2002 com a defesa da Tese de Doutorado intitulada ldquoDos sons agrave palavra explora-

ccedilotildees sobre o tratamento psicanaliacutetico da crianccedila autistardquo foi possiacutevel apresentar um estudo

criacutetico sobre a cliacutenica psicanaliacutetica com a crianccedila autista a partir de um caso cliacutenico

paradigmaacutetico o caso de Maria A criaccedilatildeo da relaccedilatildeo transferencial com Maria uma

crianccedila autista de trecircs anos em um setting constituiacutedo sem as interpretaccedilotildees verbais

propiciou um estudo criacutetico sobre o determinismo psicanaliacutetico da teacutecnica claacutessica ao

longo da histoacuteria da psicanaacutelise com crianccedilas A partir desses dois referenciais a cliacutenica

com Maria e o estudo teoacuterico-cliacutenico sobre os fundamentos claacutessicos da psicanaacutelise com

crianccedilas foi proposto um outro lugar para o psicanalista na cliacutenica com uma crianccedila

autista ldquoo analista natildeo-inteacuterpreterdquo Aquele que natildeo confere agraves manifestaccedilotildees sensiacuteveis

de uma crianccedila autista uma significaccedilatildeo exterior por meio da decifraccedilatildeo decodificaccedilatildeo e

interpretaccedilatildeo Trata-se de um trabalho cliacutenico fundado por pelo menos trecircs princiacutepios

baacutesicos a capacidade de espera do analista por um material cliacutenico representativo a

convivecircncia do analista com o lsquonatildeo saberrsquo e em especial a experiecircncia paradoxal do

analista de se sentir soacute sem palavras na presenccedila de uma crianccedila ensimesmada em

sensaccedilotildees inominaacuteveis

Atualmente a partir de uma experiecircncia cliacutenica ampliada principalmente com a super-

visatildeo de psicoterapeutas jovens que trazem agrave flor da pele a anguacutestia do natildeo existir para

uma crianccedila que aparentemente os ignora e os rechaccedila Escutar a fala dos jovens tera-

peutas permite reviver sensaccedilotildees que ficaram marcadas no corpo ao longo de histoacuterias

cliacutenicas de uma forma menos aflitiva Ou seja a experiecircncia da supervisatildeo permite ao

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psicanalista reviver cenas cliacutenicas antigas adormecidas que vecircm agrave tona em um espaccedilo

mais propiacutecio agrave elaboraccedilatildeo metapsicoloacutegica

As questotildees mais aflitivas para os jovens psicoterapeutas eram as seguintes Como ser

encontrado por uma crianccedila ensimesmada que natildeo estabelece contato afetivo com o

analista Como estabelecer a relaccedilatildeo transferencial com a crianccedila autista sem a utili-

zaccedilatildeo das interpretaccedilotildees O que fazer para acessar a crianccedila que natildeo brinca e natildeo olha

para nenhum lugar Eu natildeo estou fazendo nada com a crianccedila parece que natildeo estou

aprendendo nada e o tratamento natildeo estaacute rendendo frutos

Essas perguntas e comentaacuterios sempre estiveram presentes nas supervisotildees dos casos

cliacutenicos e permitiram ao longo desse ano a elaboraccedilatildeo de mais uma proposiccedilatildeo com-

plementar agrave primeira a do ldquoanalista natildeo inteacuterpreterdquo O lugar do psicanalista com uma

crianccedila que natildeo fala e natildeo representa a realidade eacute o de ldquoestar laacute para ser encontradordquo

Essa proposiccedilatildeo surgiu a partir da supervisatildeo dos trabalhos de mestrado e doutorado

realizados de 2005 a 2012 pelos pesquisadores do Laboratoacuterio de Psicopatologia e Lin-

guagem (Fonseca 2005 Abreu 2007 Benjamim 2007 Coelho 2007 Arauacutejo 2008

Parra 2008 Januaacuterio 2008 2012)

Deixar de falar e natildeo promover estiacutemulos agrave procura de respostas da crianccedila eacute um dos

fundamentos mais sensiacuteveis para a condiccedilatildeo de ocupar o lugar de natildeo inteacuterprete e o de

estar laacute para ser encontrado Agrave medida que o psicanalista ocupa a mente com a neces-

sidade de encontrar as palavras justas para uma boa interpretaccedilatildeo ele se ausenta de um

possiacutevel encontro Ou quando se coloca a procurar estiacutemulos para chamar a atenccedilatildeo da

crianccedila o psicanalista inverte a cena Movido pela angustia do natildeo existir ele passa a

fazer accedilotildees na acircnsia de encontrar a crianccedila Entretanto a experiecircncia cliacutenica nos mostra

que a crianccedila autista pode encontrar o analista em um ambiente no qual ela natildeo eacute pro-

curada de forma ansiosa e repetitiva A experiecircncia de estar soacute na presenccedila da crianccedila

eacute de fundamental importacircncia para o estabelecimento da relaccedilatildeo transferencial com a

crianccedila Dentre uma gama avassaladora de comportamentos estereotipados a crianccedila

pode em uma fraccedilatildeo de segundos dirigir um olhar enviesado para o analista esboccedilar

um gesto fugaz de passar as costas das matildeos nos objetos do ambiente emitir um som

em um momento especiacutefico etc

319O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

Nesse sentido natildeo se trata de promover accedilotildees para se ldquoter acesso agrave crianccedilardquo ldquoentrar em

contatordquo ldquoestimular a crianccedilardquo ldquointerpretar comportamentos pouco representativosrdquo

O lugar do analista com uma crianccedila autista por mais enigmaacutetico que possa ser eacute o de

estar laacute para ser afetado pela experiecircncia do encontro por meio de parcelas sensiacuteveis de

um sujeito a advir

Para exemplificar o lugar do analista com uma crianccedila autista utilizaremos vinhetas de

dois casos cliacutenicos um mais antigo apresentado na Tese de Doutorado o de Maria e

outro mais atual o de Abel

VinhetasdecasoscliacutenicosMaria e Abel

Com Maria uma crianccedila autista de trecircs anos de idade o primeiro encontro foi marcado

pela forma como corria pela sala saltitante na ponta dos peacutes ao mesmo tempo balan-

ccedilava as matildeos e emita sons estridentes sem estabelecer contato afetivo Os movimentos

da pequena crianccedila chamaram a atenccedilatildeo pela plasticidade e ritmo que apresentavam

Entre uma corrida e outra sem motivo aparente Maria parava repentinamente na fren-

te de algum objeto Permanecia ali por alguns momentos pulando no mesmo lugar

batendo as matildeos no ar e olhando fixamente para o objeto Importante constatar que ela

natildeo tocava o objeto contemplado apenas o fitava com um olhar atento e vivo Nesses

momentos a psicanalista ficara encantada com os movimentos das matildeos dos peacutes e dos

olhos daquela crianccedila e veio agrave mente dela a imagem de um beija-flor

A partir de um estado de encantamento e contemplaccedilatildeo dos movimentos leves e raacutepidos

daquela pequena crianccedila a analista comeccedilou a imitar os sons produzidos por ela Maria

natildeo olhava a analista natildeo mantinha qualquer contato afetivo e seus gestos eram pouco

representativos Entretanto a cena plaacutestica apresentada pela crianccedila nos momentos em

que produzia sons meloacutedicos pulava e olhava fixamente um objeto afetou a psicana-

lista no sentido de presenciar a manifestaccedilatildeo criativa de uma crianccedila alheia a qualquer

tentativa de contato usual

A psicanalista passou a imitar Maria naqueles momentos em que parecia hipnotizada

por um objeto Uma accedilatildeo impensada que se mostrara anos depois uma ferramenta

possiacutevel para favorecer o surgimento da relaccedilatildeo transferencial com uma crianccedila au-

320

tista Os sons produzidos por Maria foram presenciados pela analista como formas

sensoriais de estar em contato com o meio externo (sinestesias sons temperaturas

cores cheiros e movimentos corporais) Nas palavras de Gilberto Safra (1999) formas

sensoriais que denotam uma presenccedila de ser Surgiu daiacute uma importante constataccedilatildeo os

sons eram somente de Maria por meio deles ela existia e se apresentava Tratava-se na

verdade de uma criatividade primaacuteria tal como preconizada por W D Winnicott (1971)

Segundo Winnicott a criatividade primaacuteria de um ser humano jamais eacute destruiacuteda nem

mesmo nos casos psicopatoloacutegicos mais graves como diz o autor

ldquoNa origem do self encontra-se a tendecircncia do indiviacuteduo geneticamente determinada de permanecer vivo e de se relacionar com objetos que aparecem no horizonte quando chega o momento de alcanccedilaacute-lo Nas condiccedilotildees adversas o indiviacuteduo reteacutem alguma coisa pessoal mesmo que em segredo nem que seja o respirarrdquo (apud Safra 1999 p29 grifo da autora)

O momento de alcanccedilar o objeto como descrito por Winnicott reflete uma das ques-

totildees mais sensiacuteveis dessa cliacutenica ndash a capacidade de espera do analista por um material

cliacutenico representativo a ser interpretado Entretanto nesse periacuteodo de espera a relaccedilatildeo

transferencial pode ser estabelecida a partir da presenccedila do ldquoanalista natildeo inteacuterpreterdquo

Em outras palavras como no caso de Maria o analista no momento em que eacute afetado

por uma manifestaccedilatildeo sensiacutevel da crianccedila pode se oferecer tambeacutem de forma sensiacutevel

no caso em questatildeo o ecoar os sons e imitar os gestos da crianccedila O analista precisar

estar laacute para aleacutem das palavras para que a crianccedila possa alcanccedilaacute-lo

Ao longo das primeiras semanas de tratamento foram percebidos trecircs tipos distintos de

ensimesmamento O primeiro denominado de ensimesmamento vazio tendo em vista que

Maria passava quase todas as sessotildees correndo na ponta dos peacutes de um lado para outro

sem motivo aparente Encostava as pontas dos dedos nos objetos e a expressatildeo de seu

rosto era sempre a mesma Havia um sorriso estaacutetico nos laacutebios e uns lsquogrunhidosrsquo sem-

pre estridentes atonais e arriacutetmicos Nesses momentos a analista se sentia desmotiva-

da e sonolenta torcendo para que Maria saiacutesse daquele comportamento aparentemente

estereotipado Tomando por base tais reaccedilotildees a analista teve a impressatildeo de estar diante

de um estado emocional vazio de expressotildees sensiacuteveis

O segundo estado de ensimesmamento caracterizado por reaccedilotildees auto-agressivas e de-

sesperadoras ocorriam sem motivo aparente Nesses momentos ela comeccedilava a se

321O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

morder a ponto de abrir feridas em seu braccedilo e a bater a cabeccedila na parede Os lsquogru-

nhidosrsquo se tornavam ensurdecedores Esse quadro levava a analista a um sentimento

de impotecircncia pois natildeo tinha como consolar a crianccedila denominado ensimesmamento

sofrido A psicanalista continha fisicamente a crianccedila para tentar impedir ferimentos

graves Eram momentos de grande sofrimento para a analista Natildeo havia maneira de

compreender como surgiam e natildeo era possiacutevel consolar a crianccedila

Havia ainda um terceiro tipo o ensimesmamento prazeroso demonstrado principalmen-

te no estado de excitaccedilatildeo exibido por ela quando ficava mais absorvida com as sensa-

ccedilotildees oriundas de seu corpo como por exemplo permanecer como que hipnotizada

por um objeto pulando no mesmo lugar e emitindo sons mais meloacutedicos e ritmados

Naqueles momentos havia uma expressatildeo de tranquilidade e felicidade no rosto da

pequena crianccedila

Quando Maria entrava nesse estado de ensimesmamento prazeroso seus movimentos

corporais obedeciam a um ritmo cadenciado completamente diferente daquele apre-

sentado nos estados de ltisolamento vaziogt ou de ltisolamento sofridogt A analista pas-

sava a escutar com interesse a sonoridade dos sons que ela emitia Nesses momentos

ela parecia se deixar embalar pelos sons e por seus movimentos cadenciados

Como se pode ver na evoluccedilatildeo do caso de Maria a analista pocircde criar uma descontinui-

dade ao imitar a crianccedila apenas no ensimesmamento prazeroso marcado pela capacidade

insipiente da crianccedila de demonstrar por gestos e olhares enviesados a capacidade de

esperar pelos sons da analista Maria passou tambeacutem a estranhar os sons diferentes

que a analista fazia Ela reagia afetivamente demonstrando decepccedilatildeo e raiva Atacava

a boca da analista como que procurando os sons conhecidos A partir dessas reaccedilotildees a

de esperar se iludir e se desiludir face agraves manifestaccedilotildees da analista Maria passou a de-

monstrar capacidade para brincar com os sons Ela fazia sons diferentes e esperava que

a analista os imitasse E o mais significativo Maria passou a brincar de faz de conta com

os sons ela abria a boca fingia que ia emitir um som olhava para a analista e sorria Na

primeira vez em que demonstrara essa brincadeira a analista tomada de emoccedilatildeo soltou

uma expressatildeo verbal ldquoahvocecirc me pegourdquo

Houve nessa fase uma grande evoluccedilatildeo Maria passou a balbuciar passou a brincar de

esconde-esconde Ela entrava debaixo da mesa fazia os sons e esperava que a analista

322

os imitasse Soacute depois de escutar os sons da analista eacute que saia do seu esconderijo As

brincadeiras foram ficando mais complexas os desenhos das primeiras garatujas pas-

saram a ocorrer e o olhar deixou de ser enviesado Ela passou a olhar de forma firme e

direcionada para a boca da analista e posteriormente para os olhos

A analista considerou que o seu lugar com aquela crianccedila natildeo era o da matildee que pode

sentir o corpo do bebecirc se amoldando ao seu aplacar suas necessidades olhar e se sentir

olhada imitar os vocalizes do bebecirc e criar a ilusatildeo que estaacute se comunicando com ele

Ou seja a analista natildeo podia ser inteacuterprete dos sons e do corpo de Maria da mesma for-

ma que uma matildee faz com o bebecirc Maria era um ser sonoro e natildeo um bebecirc sonoro uma

constataccedilatildeo que fez uma grande diferenccedila em relaccedilatildeo ao lugar ocupado pela analista na

cliacutenica com Maria

OprimeiroencontrocomAbel

Abel uma crianccedila de dois anos que natildeo fala e natildeo responde aos estiacutemulos sociais Os

pais procuraram atendimento a partir do diagnoacutestico de Autismo infantil conferido

por um neurologista Profundamente abalados e preocupados com o futuro do filho

solicitaram uma nova avaliaccedilatildeo

Ao entrarem na sala de consulta com o pequeno Abel houve uma recusa corporal e

sonora por parte da crianccedila que se debatia no colo do pai e gritava indicando que natildeo

queria entrar Ao fecharmos a porta o pequeno se mostrou desesperado gritava e se de-

batia a ponto de se machucar no colo do pai que disse ldquoDoutora noacutes estamos tristes e

desolados ele estaacute assim grita muito e noacutes natildeo conseguimos consolaacute-lo Natildeo responde

quando chamamos parece surdo natildeo brinca foge das outras crianccedilas evita ser abra-

ccedilado e natildeo se aconchega no nosso colo Ele natildeo era assim ficou dessa forma depois do

nascimento da irmatilderdquo

Repentinamente parou de gritar se voltando para os carrinhos expostos na estante Jo-

gou-os no chatildeo e comeccedilou a movimentaacute-los silenciosamente sem olhar para ningueacutem

A analista deitou-se no chatildeo acompanhando o movimento da crianccedila que deitada de

lado estendera o braccedilo sob a cabeccedila e com a outra matildeo fazia o carrinho ir e vir em uma

linha reta Ele acompanhava atentamente as rodas do carrinho como que enfeiticcedilado

323O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

pelo movimento delas Enquanto a analista fazia o mesmo ao lado da crianccedila os pais

comeccedilaram a contar a histoacuteria de vida deles com o filho

Passados os primeiros trinta minutos foi pedido aos pais para fazerem o mesmo que a

analista estava fazendo ou seja imitando o comportamento de Abel Eles se sentarem

no chatildeo junto agrave crianccedila e comeccedilaram a imitaacute-lo Ficaram todos em silecircncio movimen-

tando os carrinhos na mesma maneira que a crianccedila Nesse periacuteodo Abel permaneceu

colado aos objetos procurou pegar outros brinquedos sem expressar nenhum som e

sem olhar para nenhum dos adultos

Para tentar criar um ambiente mais familiar para Abel e os pais a psicanalista se levan-

tou sentando em outro canto da sala de tal sorte que pudesse observar a cena sem

participar diretamente dela Passado algum tempo os pais visivelmente decepcionados

com o isolamento da crianccedila passaram a fazer barulho com os brinquedos para chamar

atenccedilatildeo do filho De forma repentina e fugaz Abel tampa o rosto com as duas matildeos

levanta a cabeccedila e dirige um olhar alegre entre os dedos na direccedilatildeo da psicanalista

Ela se surpreende tampa o rosto com as matildeos e tambeacutem olha pra ele entre os dedos

expressando o som da palavra achou achou

Naquele momento os pais se alegraram e comeccedilaram a brincar com ele da mesma for-

ma poreacutem falando ldquopude e achourdquo Abel se voltou novamente para o jogo estereotipado

de olhar para as rodas dos carrinhos permanecendo assim pelo resto do tempo O que

deixou os pais desarvorados e tristes

Os pais voltaram a comentar o laudo da neurologista principalmente em relaccedilatildeo agraves

deficiecircncias da crianccedila pois o prognoacutestico havia sido dado no sentido de ser uma pa-

tologia grave e incuraacutevel Ela e o marido comeccedilaram a listar uma fonte de dados que

poderiam ter levado Abel a parar de falar troca da babaacute depois do primeiro ano de vida

nascimento da irmatilde morte da avoacute materna falta de tempo para o Abel como tinha antes

da irmatilde nascer etc Ansiosos e sofridos procuram encontrar as possiacuteveis causas para o

ensimesmamento do filho

A partir da surpresa advinda da brincadeira da crianccedila de esconde-esconde a psicanalis-

ta propocircs aos pais falarem do sentimento deles em relaccedilatildeo ao ocorrido Os pais se emo-

cionaram e puderam expressar o prazer sentido por eles naquela cena que apesar de ter

324

sido fugaz fora muito significativa Mas expressaram o medo de acreditar na capacidade

do filho por causa da falta de continuidade da brincadeira ldquoVeja doutora quando agen-

te quis brincar ele natildeo estava mais laacute jaacute tinha se voltado para o carrinhordquo disse a matildee

O grande desafio era o de confiar nas capacidades do filho que podem surgir inespe-

radamente e desaparecer da mesma maneira Ao perceber o surgimento da expressatildeo

criativa da crianccedila no ambiente mais familiar entre os pais sem o uso das palavras

a psicanalista percebera a existecircncia de uma organizaccedilatildeo egoacuteica jaacute em curso poreacutem

bastante inibida Dentre uma gama de comportamentos estereotipados Abel diferente-

mente de Maria pocircde trazer de pronto uma brincadeira dirigida ao analista Ele havia

dirigido o olhar na direccedilatildeo da analista de forma jocosa fugaz e sedutora Foi lembrado

aos pais que ao emitirem as palavras ldquoachou e sumiurdquo a brincadeira fora interrompida

por ele A entonaccedilatildeo da palavra ldquoachourdquo levou a crianccedila a repetir por mais de duas vezes

o mesmo gesto o que evidencia o surgimento de uma anguacutestia de perda

A cena produzida pela crianccedila era niacutetida expressatildeo de um mecanismo de defesa face agrave

angustia de perder o objeto de amor Ou seja havia ali a presenccedila de uma estrutura psiacute-

quica em funcionamento O que levou a psicanalista a colocar o diagnoacutestico de autismo

em suspense e solicitar uma avaliaccedilatildeo mais prolongada de pelo menos dois meses com

sessotildees duas vezes por semana

A brincadeira trazida de forma espontacircnea por parte da crianccedila tinha dois componentes

muito importantes ele havia iniciado a brincadeira demandando da analista um olhar

para ele acompanhada de uma emoccedilatildeo o sorriso sedutor Essa faceta jocosa e sedutora

de uma brincadeira mesmo que fugaz permite fazer uma diferenciaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao

caso de Maria No caso da pequena natildeo surgiu nenhum gesto espontacircneo em direccedilatildeo agrave

analista nos primeiros sete meses de tratamento

Ao longo do primeiro mecircs de atendimento sempre realizado com a crianccedila e os pais

Abel demonstrou um desenvolvimento surpreendente Jaacute na segunda sessatildeo chegou

com as matildeos no rosto se escondendo e sorrindo Entrou contente e agarrou os carri-

nhos brincando com eles de uma forma mais simboacutelica ou seja comeccedilou a colocar os

carrinhos em uma pista de corrida fazendo-os descer uma rampa e cair Passou a se in-

teressar por outros brinquedos e a fazer mais contato com a analista por meio do olhar

325O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

dos sons e dos maneirismos Segundo os pais Abel estava mais alegre e comunicativo

mesmo sem falar

No terceiro mecircs de tratamento Abel jaacute estava falando as primeiras palavras havia feito

todos os exames neuroloacutegicos solicitados pelo neurologista Na consulta de retorno o

neurologista havia recebido um relatoacuterio do tratamento psicoteraacutepico sobre a refutaccedilatildeo

do diagnoacutestico de Autismo Entretanto mesmo com a presenccedila de todas as evidecircncias

de um desenvolvimento mais normalizado o neurologista considerou a crianccedila dentro

do Espectro do Autismo pelo fato de ter apresentado de iniacutecio os comportamentos si-

nalizadores da siacutendrome de Kanner Os pais foram aconselhados a prestarem atenccedilatildeo

redobrada pois se tratava de um caso especial Mesmo assim a matildee disse ao psicana-

lista ldquomesmo que o meacutedico tivesse dito que ele era autista eu natildeo ia mais acreditar

pois depois desses trecircs meses percebo que meu filho estaacute como as outras crianccedilas ele

brinca da mesma maneira que as outras crianccedilas mesmo sem falar Eu natildeo tenho mais

duacutevidardquo

O relato da matildee de Abel foi muito emocionado e para a analista impressionante Ela

tinha reconquistado a esperanccedila o orgulho a alegria a espontaneidade de brincar com

o filho sem se preocupar com uma possiacutevel patologia Essa crianccedila ficou em tratamento

por mais 1 ano e estava totalmente integrada na escola Sua fala estava desenvolta e co-

municativa com um vocabulaacuterio proacuteprio agrave idade cronoloacutegica A escola natildeo foi alertada

em relaccedilatildeo ao atraso do desenvolvimento do pequeno e natildeo houve nenhuma queixa por

parte dos professores Para a escola Abel era uma crianccedila comum que natildeo chamava

atenccedilatildeo devido a comportamentos estranhos

Consideraccedilotildeesfinais

A cenas cliacutenicas relatadas nos colocam face agrave possibilidade de compreendermos o set-

ting analiacutetico de forma mais flexiacutevel do que aquele postulado pela psicanaacutelise claacutessica

Podemos visualizar por meio do brincar espontacircneo da crianccedila a possibilidade de agir

terapeuticamente por meio dos sons e dos gestos e natildeo necessariamente por meio

da palavra dando significaccedilatildeo ao sensiacutevel Por exemplo depois das primeiras quatro

sessotildees de Abel a analista permaneceu imitando os gestos da crianccedila principalmente o

de esconder o rosto com as matildeos A partir da quinta sessatildeo ocorreu uma sequencia de

326

gestos importantes que denotam a estruturaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo transferencial Antes de

iniciar a brincadeira do esconde-esconde Abel olhava para a analista para os pais esbo-

ccedilava um sorriso e soacute depois de comprovada a nossa reaccedilatildeo de estar laacute para ele eacute que ele

se escondia por entre os dedos das matildeozinhas Ou seja havia uma antecipaccedilatildeo de um

jogo por meio do apelo ao outro Nesse sentido a crianccedila constituiu na situaccedilatildeo cliacutenica

o terreno necessaacuterio agrave gestaccedilatildeo da transferecircncia

Trata-se de uma postura eacutetica de natildeo interpretar ou decodificar o mundo sensorial da

crianccedila antes que ela mesma a crianccedila possa trazer componentes significativos de um

nuacutecleo de eu ainda insipiente O lugar do analista eacute o de estar laacute para ser encontrado

quando a crianccedila demandar por gestos sons ou palavras Como no caso de Abel ao ser

encontrada a analista imitou a crianccedila acrescentando ao gesto um som lsquocomo se tives-

se faladorsquo achou As palavras natildeo foram ditas apesar de estarem na mente da analista

para preservar o sentido esteacutetico da tentativa da crianccedila de um encontro Assim como a

crianccedila trouxera o gesto e o sorriso na brincadeira a analista por sua vez devolvera-lhe

o gesto o sorriso e o som

Com Maria a analista natildeo tinha a mesma compreensatildeo dos gestos e sons como aqueles

apresentados por Abel Estava presente nas sessotildees um isolamento radical no sentido

de natildeo haver um compartilhamento na accedilatildeo de imitar Foi necessaacuterio por parte da ana-

lista uma capacidade de espera muito maior com mais angustia frustraccedilotildees e indaga-

ccedilotildees Mesmo assim a accedilatildeo de imitar foi mantida e repetida em todas as sessotildees ateacute o

seacutetimo mecircs de tratamento Com Abel diferentemente de Maria houve a apresentaccedilatildeo

no primeiro encontro de uma brincadeira sensiacutevel ligeira quase que imperceptiacutevel

que poderia ter sido vista como mais uma estereotipia Entretanto se pudermos visu-

alizar e acompanhar uma brincadeira dessa natureza poderemos ser encontrados pela

crianccedila O susto da analista e o entusiasmo imediato ocorrido no corpo a levaram a es-

conder seu proacuteprio rosto entre as matildeos de tal sorte que pudesse olhar para a crianccedila e

ser vista por ela Foi uma accedilatildeo impensada imediata automaacutetica natildeo intencional como

no caso de Maria a partir da imagem do beija-flor quando a analista passou a imitar os

sons e os gestos da crianccedila

Finalizamos esse trabalho sublinhando a necessidade de encontrarmos maneiras cada vez mais sensiacuteveis de criar ambientes terapecircuticos para que as crianccedilas aparentemente autistas possam demonstrar suas capacidades Como no caso de Abel

327O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

recebemos hoje no serviccedilo da Clinica Escola da Universidade um nuacutemero cada vez maior de crianccedilas com histoacuterias semelhantes agrave desse uacuteltimo caso Crianccedilas natildeo falantes inibidas para brincar comportamentos estereotipados mas que em uma fraccedilatildeo de segundos podem revelar uma expressatildeo sensiacutevel passiacutevel de ser compreendida pelo terapeuta em um ambiente no qual a crianccedila possa encontrar o terapeuta Trata-se de um encontro agraves avessas o psicanalista com a crianccedila dita autista necessita criar condiccedilotildees para que ele seja encontrado

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330

Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

ValeskaZanello

FranciscoMartins

Segundo Laplantine (2004) cada cultura apresenta modelos etioloacutegicos de compreen-

satildeo da doenccedila e do adoecer os quais privilegiam por conseguinte determinadas formas

de tratamento As culturas em cada momento histoacuterico apresentam paradigmas espe-

ciacuteficos (muitas vezes multifacetados) que fornecem um enquadre interpretativo que daacute

sentido agraves experiecircncias humanas dentre as quais o adoecer eacute uma delas

A psicoterapia enquanto modelo terapecircutico especiacutefico da sociedade ocidental eacute relati-

vamente recente com menos de um seacuteculo Ela deve ser compreendida como mais um

artefato cultural No Brasil tornou-se profissatildeo reconhecida com exigecircncias de forma-

ccedilatildeo especiacuteficas como preacute-requisito para praticaacute-la haacute apenas 50 anos

No entanto a psicoterapia enquanto praacutetica cultural terapecircutica remete a outras formas

simboacutelicas de intervenccedilatildeo e cura Segundo Kleinman (1988) ela seria apenas uma for-

331Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

ma indiacutegena de cura simboacutelica isto eacute uma terapia baseada em palavras mitos e o uso

ritual de siacutembolos

Apesar das exigecircncias de formaccedilatildeo acadecircmica (e de curso de especializaccedilatildeo em alguns

paiacuteses) haacute uma grande discussatildeo acerca da especificidade (ou natildeo) da eficaacutecia da psico-

terapia em relaccedilatildeo agraves demais alternativas terapecircuticas disponiacuteveis atualmente no mer-

cado

Sampson (2001) destaca que natildeo existe criteacuterio algum para dizer o que seria uma te-

rapia ldquocientiacuteficardquo Ele aponta ldquoA diversidade das etnoterapias tanto as da antiguidade

como as contemporacircneas na sociedade moderna e nas preacute-modernas atuais eacute inegaacutevelrdquo

(retirado da web) Para o autor a atitude ideal seria natildeo repudiar as demais terapias

como preacute-cientiacuteficas visto que o marco para sua definiccedilatildeo natildeo eacute claro mas antes seria

razoaacutevel estudaacute-las para tentarmos explicitar sua loacutegica interna Elas podem e devem

se tornar objeto mesmo de pesquisa cientiacutefica por parte da psicologia cliacutenica O autor

aponta assim uma lista de pelo menos 300 terapias que foram listadas ateacute 1980

Krause (2011) sugere ao menos trecircs transformaccedilotildees necessaacuterias no campo das psicote-

rapias em geral ampliar nosso ponto de vista sobre a psicoterapia ampliar nossa visatildeo

de como se pode adquirir melhor conhecimento cientiacutefico sobre a psicoterapia e por

uacuteltimo ampliar o ponto de vista sobre os contextos humanos nos quais ocorre a psi-

coterapia Ou seja terapias nas quais encontramos fatores similares aos atuantes nas

psicoterapias

Mas como eacute definida a psicoterapia Segundo Cordiolli e Giglio (2008) as psicoterapias

seriam

Meacutetodos de tratamento realizados por profissionais treinados com o objetivo de reduzir ou remover um problema uma queixa ou um transtorno de um paciente ou cliente utilizando para tal fim meios psicoloacutegicos Satildeo realizados em um contexto primariamente interpessoal a relaccedilatildeo terapecircutica e utilizam a comunicaccedilatildeo verbal como principal recurso (Cordiolli amp Giglio 2008 p42)

A definiccedilatildeo de psicoterapia deve ser dada no plural pois mesmo o campo psicoterapecircu-

tico permeado pelas exigecircncias de formaccedilatildeo acima explicitada eacute marcado pela multi-

plicidade de paradigmas teacutecnicas e pressupostos epistemoloacutegicos No entanto a pro-

332

liferaccedilatildeo de abordagens e teorias nem sempre foi acompanhada pela preocupaccedilatildeo em

avaliar sua eficaacutecia e efetividade (Cordiolli2008) Isso levou alguns teoacutericos tais como

Eysenck em 1950 a afirmar que as mudanccedilas ocorridas durante uma psicoterapia eram

devidas a proacutepria passagem do tempo e natildeo agraves teacutecnicas utilizadas Em outras palavras

foi colocada em xeque a eficaacutecia terapecircutica da mesma

Isso acabou por se tornar um grande estiacutemulo agraves pesquisas acerca da eficaacuteciaefetivi-

dade das psicoterapias A eficaacutecia das psicoterapias se refere agrave avaliaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo

causal entre o tratamento e a resposta (Peuker AC Habigzang LF Koller SH amp

Araujo LB 2009) Visa agrave validade interna exigindo o delineamento de pesquisa ex-

perimental com controle do setting e com intervenccedilotildees bem definidas baseadas em

manuais Jaacute a efetividade das psicoterapias eacute a avaliaccedilatildeo da resposta ao tratamento em

um setting semelhante ao real Visa agrave validade externa e o delineamento da pesquisa eacute

quase experimental O setting eacute menos controlado e mais proacuteximo do natural (Peuker

AC Habigzang LF Koller SH amp Araujo LB 2009)

Em 1960 foi realizado o projeto Menninger o qual se utilizou de metanaacutelise para com-

provar a eficaacutecia das psicoterapias (Cordiolli 2008) Os dados foram surpreendentes

Comparando a eficaacutecia sobretudo na supressatildeo dos sintomas entre pacientes submeti-

dos a processos psicoteraacutepicos e outros em lista de espera para atendimento chegou-se

a um nuacutemero confirmado por inuacutemeras pesquisas posteriores de melhora em torno

de 80 Isto eacute pacientes em processo de psicoterapia melhoravam 80 mais do que

aqueles que simplesmente melhoravam com o simples decorrer do tempo (Cordioli amp

Giglio 2008) Aleacutem disso os efeitos mantiveram-se por mais tempo que aqueles efetu-

ados sem uma psicoterapia

Tais pesquisas comprovaram na contramatildeo da acusaccedilatildeo de Eysenck a eficaacutecia da psi-

coterapia Mas outro problema surgia no horizonte das discussotildees quais seriam os

fatores relacionados agrave melhora do sujeito Os investigadores estudaram inicialmente os

resultados da psicoterapia para evidenciar sua eficaacutecia somente depois eacute que se buscou

compreender e estudar os fatores a ela relacionados (Sales 2009)

Houve concordacircncia de que boa parte dos efeitos se dava ao uso de teacutecnicas especiacuteficas

proacuteprias a cada modelo e por outro lado a fatores comuns ou inespeciacuteficos presentes

em todas as abordagens Os fatores especiacuteficos seriam aqueles tiacutepicos e exclusivos a

333Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

cada abordagem por exemplo o manejo da transferecircncia na psicanaacutelise e a dessensibi-

lizaccedilatildeo sistemaacutetica na abordagem comportamental Jaacute os inespeciacuteficos abarcariam uma

seacuterie de fatores que apresentaremos a seguir

Cordioli e Giglio (2008) classificam os fatores inespeciacuteficos em 4 grandes grupos os

de natureza cognitiva os fatores comportamentais (aprendizagem) os fatores inerentes

agrave relaccedilatildeo terapecircutica (experiecircncia afetiva) e por uacuteltimo os fatores sociais grupais ou

sistecircmicos

Os fatores de natureza cognitiva dizem respeito agrave psicoeducaccedilatildeo agrave reestruturaccedilatildeo cog-

nitiva e agrave ocorrecircncia de insight Os fatores comportamentais referem-se ao processo

de aprendizagem impliacutecita em toda e qualquer terapia levando a mudanccedilas compor-

tamentais Os fatores inerentes agrave relaccedilatildeo terapecircutica apontam para a importacircncia do

viacutenculo afetivo (sendo este um importante preditor do sucesso terapecircutico) da alianccedila

de trabalho da identificaccedilatildeo com o terapeuta do apoio e da catarse E por uacuteltimo os

fatores sociais tangem agraves psicoterapias que incluem mais de um sujeito no setting va-

lorizando o contexto grupal como fator de mudanccedila

Nestes uacuteltimos principalmente nas terapias de grupo satildeo apontados onze fatores tera-

pecircuticos (Vinogradov S Cox PD amp Yalom DI 2003) Instilaccedilatildeo de esperanccedila (acre-

ditar que eacute possiacutevel superar os problemas) a universalidade do problema (perceber que

natildeo se eacute o uacutenico a ter estes problemas) compartilhamento de informaccedilotildees altruiacutesmo

(sentir-se ajudando aos demais) socializaccedilatildeo comportamento imitativo (pela observa-

ccedilatildeo do comportamento dos outros) catarse (ventilaccedilatildeo das emoccedilotildees) recapitulaccedilatildeo cor-

retiva (possibilidade de reverrecapitular no grupo comportamentos que apresenta com

seus familiares) fatores existenciais coesatildeo grupal e aprendizagem interpessoal

Segundo Frank (1982) os elementos comuns (inespeciacuteficos) a todas as psicoterapias

seriam estabelecimento e manutenccedilatildeo de uma relaccedilatildeo significativa confianccedila e espe-

ranccedila de aliviar o sofrimento obtenccedilatildeo de novas informaccedilotildees ativaccedilatildeo emocional de

certos fatos aumento da sensaccedilatildeo de domiacutenio e autoeficaacutecia

Para Fernaacutendez PMS Mella MFR Chenevard C L Garciacutea AEE Caacuteceres DEI

e Vergara PAM (2008) a literatura que discute os fatores inespeciacuteficos em psicote-

rapia os classificam ao redor de trecircs grandes eixos o paciente o terapeuta e a relaccedilatildeo

334

entre ambos Os fatores do paciente seriam variaacuteveis demograacuteficas (como por exemplo

gecircnero idade e niacutevel socioeconocircmico) diagnoacutestico cliacutenico tais como caracteriacutesticas de

personalidade tipo de transtorno e complexidade do sintoma crenccedila e expectativa de

melhora e disposiccedilatildeo pessoal As variaacuteveis do terapeuta seriam a atitude (acolhimento

aceitaccedilatildeo autenticidade congruecircncia) habilidades personalidade niacutevel de experiecircncia

e bem estar emocional As variaacuteveis da relaccedilatildeo satildeo apontadas como o aspecto mais

importante responsaacutevel por 45 do processo de mudanccedila Uma relaccedilatildeo terapecircutica de-

sejaacutevel deveria ser marcada pela confianccedila acolhimento e empatia O mesmo tem sido

apontado por Kleinman (1988)

A relaccedilatildeo paciente-terapeuta coloca em evidecircncia a necessidade da feacute do paciente no

terapeuta e o efeito placebo daiacute decorrente Como aponta Sampson (2001)

La psicoterapia es una manera de maximizar respuestas placebo un efecto no especiacutefico del tratamiento entonces tanto mejor que sea aprovechado un mecanismo terapeacuteutico subutilizado en la medicina en general Si durante los tratamientos psicoterapeacuteuticos se generan efectos psicofisioloacutegicos debido a la activacioacuten del sistema nervioso autoacutenomo y de los sistemas psiconeuro-inmunoloacutegico y endocrinoloacutegico como efectivamente parece ser el caso esto no tiene nada de ignominioso (Sampson 2001 retirado da web)

A diferenccedila talvez numa praacutetica dita cientiacutefica eacute que podemos estudar a importacircncia

os fatores envolvidos e o impacto do efeito placebo nos processos de cura Tal intento foi

efetivado por Wolberg (1988) o qual apontou alguns fatores envolvidos na melhora dos

pacientes em um processo terapecircutico De iniacutecio a ldquomelhorardquo do quadro apresentado

pelo paciente se deve segundo Wolberg agrave influecircncia do placebo agrave catarse emocional

ao relacionamento idealizado com o terapeuta agrave sugestatildeo e aos fatores de dinacircmica

grupal Todos estes fatores podem ser englobados no conjunto de fatores comuns ou

inespeciacuteficos presentes tambeacutem em quase todas as terapias em geral

Sampson (2001) aponta em relaccedilatildeo agrave discussatildeo de qual das abordagens seria a mais

eficaz que

Antes de precipitarnos a condenar o a reir deberiacuteamos preguntarnos si existe una pauta de evaluacioacuten que permita distinguir entre la paja - es el caso de decirlo - y el grano Las estadiacutesticas permiten de acuerdo con el criterio de la satisfaccioacuten del usuario afirmar que el mismo porcentaje de eacutexitos y de

335Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

fracasos puede ser atribuido a todas las formas de terapia actualmente en el mercado (Sampson 2001 retirado da web)

Trata-se segundo Sales (2009) da aplicaccedilatildeo do veredicto do paacutessaro Dodocirc em Alice

no Paiacutes das Maravilhas ldquoTodos ganharam e todos devem receber precircmiosrdquo Segundo

este autor estes resultados levaram a questionar o modo de realizaccedilatildeo destas pesquisas

pois de um lado ou a metodologia estava errada (e levava a pensar em equivalecircncias

inexistentes) ou o resultado era reflexo de fatores comuns agraves mudanccedilas terapecircuticas

Isto eacute os fatores inespeciacuteficos A hipoacutetese do problema metodoloacutegico foi o mais aceito

e desenvolvido Foi tentando ldquoconsertarrdquo esta falha metodoloacutegica que surgiram os tra-

tamentos com suporte empiacuterico ou seja que utilizavam manuais que detalhavam os

procedimentos terapecircuticos a serem utilizados

O uso de manuais detalhando os procedimentos terapecircuticos a serem adotados para garantir uma padronizaccedilatildeo miacutenima levantou e tem levantado muita polecircmica Argumenta-se que se cria uma distacircncia cada vez maior entre a pesquisa que repete modelos experimentais da realidade cliacutenica em si complexa e multifatorial ldquoA principal objeccedilatildeo levantada refere-se ao excesso de confianccedila na significacircncia estatiacutestica em detrimento da significacircncia cliacutenicardquo (Eneacuteas 2008 retirado da web)

Sales (2009) aponta que a preocupaccedilatildeo em investigar a eficaacutecia dos efeitos da psicote-

rapia levou a uma adoccedilatildeo do paradigma loacutegico-matemaacutetico da ciecircncia moderna com

ecircnfase no controle experimental e em dados quantitativos Os estudos tornaram-se ana-

loacutegicos pois reproduziam artificialmente a realidade cliacutenica Neste sentido abordagens

mais proacuteximas de um paradigma positivista poderiam ser mais bem avaliadas por se

ajustarem mais agraves metodologias (mais positivistas) utilizadas para avaliar a eficaacutecia

Estas criacuteticas trouxeram de volta ao centro das reflexotildees os estudos de caso uacutenico E

tambeacutem trouxeram agrave baila a discussatildeo entre os defensores de observaccedilotildees mais objeti-

vas e outros guiados mais pela teoria

Outro problema na discussatildeo sobre a especificidade e inespecificidade teacutecnica versus

eficaacutecia psicoterapecircutica diz respeito agrave inevitabilidade da utilizaccedilatildeo de estrateacutegias ainda

que de forma natildeo intencional tiacutepicas de outra abordagem (Cordiolli 2008) Como

por exemplo um psicanalista ao falar ldquohum humrdquo depois de um sonho relatado pelo

paciente pode estar depois de muito tempo em silecircncio na sessatildeo reforccedilando positi-

vamente o comportamento de relatar sonhos por parte do paciente Apesar de natildeo ser

336

um uso intencional do reforccedilo ele pode ter ocorrido e obviamente ter participaccedilatildeo no

processo de mudanccedila terapecircutica

Krause (2011) sublinha a necessidade de aproximarmos neste sentido a ciecircncia e o

ofiacutecio da psicoterapia pois segundo ela persiste ainda no campo cliacutenico um profundo

divoacutercio entre a praacutetica e a investigaccedilatildeo Para ela a razatildeo para tamanho afastamento diz

respeito aos dados produzidos pela investigaccedilatildeo os quais natildeo satildeo capazes de nutrir a

praacutetica de forma sistemaacutetica o que acabaria por levar a um desinteresse por parte dos

cliacutenicos

Espada (2003) destaca que na atualidade as pesquisas tecircm se focado mais no processo

da psicoterapia na efetividade e na ocorrecircncia dos vaacuterios fatores especiacuteficosinespeciacutefi-

cos do que apenas nos resultados e na eficaacutecia

Levando em consideraccedilatildeo que os aspectos mais importantes na discussatildeo do campo

hoje satildeo de um lado a busca de evidecircncia cientiacutefica que ldquoesbarra nas limitaccedilotildees dos

delineamentos de pesquisa e nos modelos estatiacutesticos existentes que natildeo se prestam a

abranger a complexidade da interaccedilatildeo das variaacuteveis do campordquo (Eneacuteas 2007 retirado

da web) e de outro lado a necessidade de articulaccedilatildeo entre a pesquisa e a praacutetica cliacuteni-

ca o presente artigo tem como escopo apontar algumas contribuiccedilotildees que a teoria dos

atos de fala tem dado e poderia dar para a compreensatildeo do trabalho e da efetividade das

(psico)terapias em geral Trata-se de retornar natildeo aos pressupostos epistemoloacutegicos do

terapeuta mas de verificar o que realmente se passa numa sessatildeo no que tange ao uso

da linguagem e interpretar posteriormente estes usos agrave luz teoacuterica da abordagem do

terapeuta Ou seja a partir da contribuiccedilatildeo do estudo dos atos de fala promovidos pela

Filosofia da Linguagem Ordinaacuteria faz-se mister perguntar pelos seus usos isto eacute se os

tipos de atos de fala e suas incidecircncias satildeo semelhantes nas diversas abordagens e como

o uso se relaciona com a teacutecnica com os fatores (in)especiacuteficos e com a efetividade

Alinguagemquandodizereacutefazer

O uso da palavra como um pharmakon era conhecido desde os gregos tendo sido apon-

tada jaacute por Platatildeo (sd) em A Repuacuteblica Isto eacute Platatildeo percebia que a palavra promove

accedilotildees na alma do ouvinte podendo agir tanto como remeacutedio quanto como veneno O

337Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

filoacutesofo defendia a ideia de que a palavra deveria ser bem usada e que seu ldquobom usordquo

deveria levar em consideraccedilatildeo o conhecimento da alma do ouvinte e dos possiacuteveis efei-

tos sobre a mesma

Apesar da ideia platocircnica retomada na Retoacuterica de Aristoacuteteles de que podemos fazer

coisas com as palavras vingou no Ocidente a compreensatildeo representativa da lingua-

gem isto eacute a ideia de que a linguagem servia como espelho da natureza tendo como

funccedilatildeo representar o mundo (Rorty 1994) Esta compreensatildeo da linguagem eacute denomi-

nada de enfoque semacircntico e teve como aacutepice o Tractatus Logico-Philosophicus de Witt-

genstein (1994) Nesta obra o filoacutesofo apresentou a noccedilatildeo de figuraccedilatildeo da proposiccedilatildeo e

a afirmaccedilatildeo de seu sentido como sendo anterior aos valores de verdade e de falsidade O

proacuteprio filoacutesofo se deparou no entanto com os limites de sua busca de uma linguagem

formal quando lidou com o problema das cores (Wittgenstein 1995) Ocorreu aqui o

que em filosofia eacute comumente denominado de ldquolinguistic turnrdquo Wittgenstein escreveu

entatildeo as Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1991) obra cuja ecircnfase eacute denominada de pragmaacutetica

Uma das grandes contribuiccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1991) foi apontar que fa-

zemos vaacuterias coisas com a linguagem aleacutem de representar o mundo Para o filoacutesofo

saber como se joga um jogo de linguagem eacute ter interiorizado um conjunto de regras

ou seja falar uma liacutengua seria adotar uma forma de comportamento regida por regras

Para ele os jogos de linguagem seriam em nuacutemero infinito e natildeo haveria sentido fixo

relacionado agraves palavras pois a significaccedilatildeo de uma palavra seria seu uso na linguagem

(Wittgenstein 1991)

Austin (1990) seguidor das ideias de Wittgenstein propocircs a teoria dos atos de fala

justamente para nomear o uso da linguagem pelo qual realizamos coisas Segundo ele

os atos de fala satildeo constituiacutedos por 3 elementos o ato locucionaacuterio o ato ilocucionaacuterio

e o ato perlocucionaacuterio O ato locucionaacuterio seria composto pelo ato foneacutetico (produccedilatildeo

de ruiacutedos) ato faacutetico (proferimento de certos vocaacutebulos ou palavras numa determinada

entonaccedilatildeo) e ato reacutetico (ato de utilizar tais vocaacutebulos com certo sentido e referecircncia mais

ou menos definidos)

Jaacute o ilocucionaacuterio seria o proferimento da locuccedilatildeo que ao ser dita realiza um ato Por

exemplo o proferimento de ldquovocecircs estatildeo casadosrdquo feita por um padre e preenchidos os

preacute-requisitos para a felicidade desse ato (que os noivos natildeo sejam jaacute casados com ou-

338

tras pessoas que o padre natildeo seja um farsante simulando ser um padre dentre outros)

eacute a realizaccedilatildeo do proacuteprio ato de casar

Quanto aos perlocucionaacuterios Austin nos diz que poderiacuteamos traduzi-los ainda que natildeo

sem algum problema pela frase ldquopor dizer algo fez tal coisardquo Austin aponta como um

importante elemento diferenciador entre os atos ilocucionaacuterios e os perlocucionaacuterios

a convencionalidade Para ele ldquoos efeitos consequentes das perlocuccedilotildees satildeo realmente

resultados que natildeo incluem efeitos convencionaisrdquo (Austin 1991 p 90) ou seja ldquopro-

duzimos porque dizemos algordquo (Austin 1991 p95) Jaacute os atos ilocucionaacuterios ldquopodem

estar ligados a convenccedilotildeesrdquo (Austin 1991 p 93) Os atos ilocucionaacuterios possuem assim

certa forccedila convencional Esta distinccedilatildeo visa segundo o proacuteprio Austin separar bem a

accedilatildeo que fazemos (no caso uma ilocuccedilatildeo) de sua consequecircncia Neste sentido os atos

ilocucionaacuterios se ligariam a efeitos diferentemente da produccedilatildeo de efeitos efetuada

pelos perlocucionaacuterios Como tratado em outro artigo (Zanello 2010) os atos perlo-

cucionaacuterios satildeo extremamente importantes sobretudo para a configuraccedilatildeo da relaccedilatildeo

terapecircutica ou em um vieacutes psicanaliacutetico para a transferecircncia

Searle (1984) seguiu os passos de Wittgenstein e Austin para pensar o que fazemos

com a linguagem ao pronunciarmos certas proposiccedilotildees Para ele toda comunicaccedilatildeo

linguumliacutestica envolve atos linguumliacutesticos sendo sua unidade miacutenima natildeo a ocorrecircncia de

uma mensagem mas a produccedilatildeo ou emissatildeo de uma ocorrecircncia de frase sob certas

condiccedilotildees isto eacute os atos de fala (Searle 1984) Retomando Wittgenstein via Austin

(1991) Searle tentou sistematizar os tipos de jogos de linguagem que para ele natildeo se-

riam infinitos mas de cinco tipos Os atos de fala se classificariam em compromissi-

vos assertivos declarativos diretivos e expressivos Apresentamos abaixo uma tabela

com caracteriacutesticas de cada um deles

339Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

Tabela 1 - Os Atos de Fala de Searle (1995) e Suas Caracteriacutesticas

Atos de fala caracteriacutesticas Exemplos

Assertivostem o propoacutesito de comprometer o falante com o fato de algo ser verdadeiro com a verdade da

proposiccedilatildeo expressa pode ser verdadeiro ou falsoldquo(Afirmo que) vocecirc eacute capazrdquo

Diretivos tentativas (em graus variados) de levar o ouvinte a fazer algo

ldquoPor favor abaixe a temperatura do ar

condicionadordquo (diz um paciente ao

psicoterapeuta)

Compromissivostem o propoacutesito de comprometer

o falante a alguma linha de accedilatildeo futura

ldquoPrometo dizer tudo o que vier agrave minha cabeccedilardquo

Expressivos tem o propoacutesito de expressar um estado psicoloacutegico

ldquoSinto muito pelo atrasordquo

Declaraccedilotildees

o estado de coisas representado na proposiccedilatildeo eacute realizado ou feito

existir pelo dispositivo indicador de forccedila ilocucionaacuteria

ldquoA sessatildeo estaacute abertardquo diz um mediador de grupo terapecircutico

Searle (1995) natildeo descartou completamente uma semacircntica pois segundo ele o ato

de fala executado na enunciaccedilatildeo de uma frase seria a funccedilatildeo do significado da frase

em questatildeo Isto eacute natildeo haveria dois estudos semacircnticos distintos um que estudaria

as significaccedilotildees das frases e outro que estudaria as execuccedilotildees dos atos de fala mas an-

tes haveria um uacutenico domiacutenio que deveria estudar os atos de fala nestes dois aspectos

(Searle 1984) Neste sentido para Searle o que queremos dizer depende em parte do

que eacute dito havendo uma relaccedilatildeo profunda entre os aspectos intencionais do falante e

convencionais da liacutengua A Forccedila Ilocucionaacuteria (F) diz acerca do que o falante faz ao

pronunciar certa proposiccedilatildeo (p) Deste modo podemos fazer coisas diferentes com a

mesma proposiccedilatildeo dependendo da forccedila ilocucionaacuteria Por exemplo posso dizer ldquoVocecirc

estaacute aborrecidordquo (asserccedilatildeo pois eu afirmo que vocecirc estaacute aborrecido) ou ldquoVocecirc estaacute abor-

recidordquo (diretivo onde coloco o interlocutor em uma posiccedilatildeo de me responder) Trata-se

da mesma proposiccedilatildeo com forccedilas ilocucionaacuterias diferentes

340

Psicoterapiaseousodalinguagem

Como vimos o uso terapecircutico da palavra foi apontado como fator essencial natildeo apenas

das psicoterapias mas das terapecircuticas em geral (etnoterapias) Leacutevi-strauss (1970) ao

comparar o que se passa em um processo analiacutetico e as praacuteticas xamaniacutesticas destaca

a importacircncia do processo de simbolizaccedilatildeo efetuado pela palavra Trata-se da ldquoeficaacutecia

simboacutelicardquo

O xamatilde oferece agrave sua doente uma linguagem na qual se podem exprimir imediatamente estados natildeo formulados de outro modo informulaacuteveis E eacute a passagem a esta expressatildeo verbal (que permite ao mesmo tempo viver sob uma forma ordenada e inteligiacutevel uma experiecircncia real mas sem isto anaacuterquica e inefaacutevel) que provoca o desbloqueio do processo fisioloacutegico isto eacute a reorganizaccedilatildeo num sentido favoraacutevel da sequecircncia cujo desenvolvimento a doente sofreu (Leacutevi-Strauss 1970 p228)

O pai da psicanaacutelise foi no campo psi um dos primeiros a formular com clareza a

importacircncia da palavra como praacutetica curativa Segundo ele as palavras seriam o mais

importante meio pelo qual um homem buscaria influenciar outro sendo as palavras

um bom meacutetodo de produzir mudanccedilas mentais na pessoa a quem satildeo dirigidas (Freud

1905)

() as palavras satildeo o instrumento essencial do tratamento mental Um leigo sem duacutevida acharaacute difiacutecil compreender de que forma os distuacuterbios patoloacutegicos do corpo e da mente podem ser eliminados por lsquomerasrsquo palavras Ele acharaacute que lhe estatildeo pedindo que acredite em maacutegica E natildeo estaraacute muito errado pois as palavras que usamos em nossa fala diaacuteria natildeo satildeo senatildeo uma maacutegica atenuada Mas teremos que seguir um desvio para explicar de que forma a ciecircncia se propotildee restituir agraves palavras pelo menos uma parte de seu antigo poder maacutegico (Freud 1905 p 306)

A partir da compreensatildeo da fala enquanto um fazer acreditamos ser possiacutevel realizar

uma leitura interpretativa do que ocorre em um setting (psico)terapecircutico no desenrolar

de uma ou vaacuterias sessotildees Ou seja eacute desde dentro que se procede a esta leitura e natildeo a

partir do que o cliacutenico ou paciente pensam que acontece Pesquisas tecircm sido realizadas

(Martins amp Zanello 2001 Miranda amp Martins 2004 Aristegui 2000 Aristegui amp cols

2004 Aristegui amp cols 2009 Montin amp Zanello 2008 Alfonso amp Zanello 2009 Ho-

sel amp Zanello 2009 Santos amp Zanello 2009 Soares amp Zanello 2009 Zanello 2009)

e podem servir como exemplos esclarecedores do que este campo tem de promissor

341Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

Martins e Zanello (2001) realizaram um estudo acerca do papel dos atos de fala compro-

missivos no iniacutecio de um processo psicanaliacutetico Segundo estes autores para que seja

possiacutevel o processo analiacutetico eacute necessaacuterio o comprometimento (atos de fala compromis-

sivos) por parte do paciente em relaccedilatildeo agrave regra fundamental da associaccedilatildeo livre ldquoProme-

ta-me com a mais absoluta sinceridade que vai associar livrementerdquo Prometer neste

sentido significa entrar no trabalho seguindo a regra de dizer tudo o que vem agrave cabeccedila

Fazemos um pacto um com o outro O ego enfermo nos promete a mais absoluta sinceridade isto eacute promete colocar agrave nossa disposiccedilatildeo que a sua autopercepccedilatildeo lhe fornece garantimos ao paciente a mais estrita discriccedilatildeo e colocamos a seu serviccedilo a nossa experiecircncia em interpretar material influenciado pelo inconsciente () Esse pacto constitui a situaccedilatildeo analiacutetica (Freud 1940[1938] p200)

Fazer um contrato implica assim em estabelecer uma convenccedilatildeo um acordo entre as

partes com atos compromissivos simultacircneos Os autores destacam assim o quanto

Freud eacute expliacutecito ao enfatizar a necessidade da fala para a ocorrecircncia da anaacutelise mas

tambeacutem a insuficiecircncia desta caso natildeo seja acompanhada da associaccedilatildeo livre O ato

de fala compromissivo (expliacutecito ou impliacutecito) por parte do paciente eacute um marco fun-

damental do iniacutecio do trabalho de anaacutelise apontando a existecircncia e submissatildeo a um

contrato estabelecido entre o analista e o paciente para que o processo de anaacutelise seja

possiacutevel Os autores deixam abertas outras possibilidades acerca do uso da teoria dos

atos de fala para estudar a cliacutenica psicanaliacutetica

Tanto o dinamismo como o trabalho nos parecem presentes na concepccedilatildeo de que a fala na psicanaacutelise consistem em atos que podem ser melhor estudados atraveacutes de uma teoria que forneccedila criteacuterios de anaacutelise e entendimento do funcionamento da situaccedilatildeo psicanaliacutetica tal como descreveu Freud (Martins amp Zanello 2001 p83)

Miranda e Martins (2004) investigaram uma dessas possibilidades Os autores realiza-

ram uma anaacutelise dos atos de fala presentes nos casos cliacutenicos de Freud no desenrolar

dos anos Sua anaacutelise levou os autores a apontar uma mudanccedila sistemaacutetica da preva-

lecircncia dos tipos de atos de fala utilizados por ele no decorrer de sua praacutetica cliacutenica Tal

mudanccedila deve ser compreendida em relaccedilatildeo direta agraves modificaccedilotildees teoacutericas pelas quais

a psicanaacutelise passou e sobretudo agraves mudanccedilas em relaccedilatildeo agrave teacutecnica Miranda e Martins

(2004) destacam neste sentido uma passagem da prevalecircncia de atos de fala diretivos

para os assertivos Tal modificaccedilatildeo da frequecircncia dos tipos de atos de fala deve-se ao re-

342

conhecimento e agrave validaccedilatildeo da transferecircncia como pedra angular do proacuteprio tratamento

psicanaliacutetico Isto eacute se no iniacutecio Freud fazia perguntas ao paciente para fazer-lhe recor-

dar certas lembranccedilas ldquoesquecidasrdquo passou cada vez mais a ocupar o lugar onde era

colocado pela transferecircncia do paciente e a interpretar de forma assertiva os conteuacutedos

que aquele lhe trazia E mais ldquocriavardquo realidade a partir deste lugar usando atos de fala

assertivos como declarativos (Miranda e Martins 2004)

Aristegui e cols (2009) por sua vez utilizaram a teoria dos atos de fala para pesqui-

sar o processo de mudanccedila em psicoterapia baseado nos Indicadores de Mudanccedilas

Gerais comparando episoacutedios de mudanccedila com outros de estancamento A pergunta

dos autores eacute se havia algum padratildeo conversacional recorrente desde o ponto de vis-

ta da teoria dos atos de fala caracteriacutestico dos episoacutedios de mudanccedila e dos episoacutedios

de estancamento Foram escolhidos dois processos de psicoterapias completos um de

base psicodinacircmica (18 sessotildees) e outro mais breve de base cognitivo-comportamental

(6 sessotildees) Aleacutem da anaacutelise das transcriccedilotildees das sessotildees (e dos atos de fala) houve

observaccedilatildeo das mesmas com a presenccedila de pesquisadores experts e com larga expe-

riecircncia na cliacutenica As anaacutelises apontaram haver nos momentos de mudanccedila (signi-

ficativos) a adoccedilatildeo de uma estrutura linguumliacutestica performaacutetica e com auto-referecircncia

(auto-implicaccedilatildeo) por parte do paciente Isto eacute a presenccedila de trecircs passos importantes

1) uma fala do paciente 2) uma posiccedilatildeo de resposta do terapeuta 3) uma siacutentese do pa-

ciente como uma nova posiccedilatildeo do Eu ou uma resposta que voltava a recolocar a primeira

fala O episoacutedio de mudanccedila foi caracterizado como uma conversaccedilatildeo que leva ao uso

autorreferencial do discurso (autodialoacutegico) de maneira que o paciente se implica e se

repensa no que ele estaacute dizendo Trata-se de ldquopadrotildees linguiacutesticos ilocutivos orientados

numa direccedilatildeo performativa autorreferencial que articulam um diaacutelogo Eu-mim aqui

e agorardquo (retirado da web) Jaacute os episoacutedios de estancamento seriam marcados por um

discurso monoloacutegico sem levar a uma mudanccedila na relaccedilatildeo Eu-mim (do sujeito consigo

mesmo) As caracteriacutesticas dos episoacutedios de mudanccedila tambeacutem foram encontradas em

estudos anteriores na terapia gestaacuteltica (Aristegui 2000) e na terapia de base analiacutetica

(Aristegui e cols 2004)

Montin e Zanello (2008) fizeram um estudo longitudinal sobre atos de fala e terapia co-

munitaacuteria na escola o qual demonstrou haver mudanccedila na frequecircncia dos tipos de atos

de fala no decorrer do processo terapecircutico bem como da distribuiccedilatildeo percentual de

falas entre mediador e participantes Houve a diminuiccedilatildeo da participaccedilatildeo do mediador

343Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

(em nuacutemeros de atos de fala) e o crescimento da participaccedilatildeo dos integrantes do grupo

Aleacutem disso houve um aumento de atos de fala diretivos dentre os participantes o qual

era mais frequente no iniacutecio na fala do mediador Tal mudanccedila apontou para o funcio-

namento do grupo o qual nesta abordagem deve aprender a funcionar por si mesmo

incorporando certas habilidades que satildeo facilitadas no iniacutecio pelo mediador Grande

parte dos diretivos eram perguntas referidas a outro participantes no sentido de levaacute-lo

a explorar sua questatildeo a pensar alternativas ou a vecirc-la de outro ponto de vista e assim

trabalhar com seus proacuteprios recursos Esta mudanccedila parece apontar para a efetividade

do processo terapecircutico neste grupo

Alfonso amp Zanello (2009) Hosel amp Zanello (2009) Santos amp Zanello (2009) e Soares amp

Zanello (2009) realizaram um estudo sobre a frequecircnciatipos de atos de fala em qua-

tro grupos anocircnimos de auto-ajuda (Comedores Compulsivos Anocircnimos Narcoacuteticos

Anocircnimos Alcoacuteolicos Anocircnimos e Mulheres que Amam Demais Anocircnimas) em uma

capital brasileira Foram gravadas 4 reuniotildees de cada grupo e depois de transcritas

analisados todos os atos de fala que ocorreram (12250 no total) divididos entre atos

de fala do mediador e atos de fala dos participantes Ficou evidente o predomiacutenio dos

atos de fala assertivos tanto entre mediadores quanto entre participantes No entanto

o conteuacutedo proposicional mostrou-se bastante diferente entre mediadores tratava-se

sobretudo da afirmaccedilatildeo de certas regras sobre o funcionamento do grupo (por exemplo

o sigilo) enquanto entre participantes ocorreu a narraccedilatildeo da histoacuteria pessoal acerca do

problema-chave do grupo Tal dado apontou para a importacircncia da catarse como fator

terapecircutico inespeciacutefico fundamental no modo de funcionamento desses grupos bem

como da identificaccedilatildeo com a fala das outras pessoas (ao escutaacute-las narrando) confi-

gurando a denominada ldquoteacutecnica de espelhosrdquo Foram encontrados aleacutem disso outros

fatores inespeciacuteficos presentes tambeacutem nas psicoterapias grupais em geral a saber a

recapitulaccedilatildeo corretiva a instilaccedilatildeo de esperanccedila (ao ouvir a narrativa de outras pessoas

que superaram ou aprenderam a lidar com o problema) e a universalidade do problema

(ao perceber que natildeo se eacute o uacutenico a ter estas questotildees) Em suma a quantificaccedilatildeo dos

atos de fala forneceu indiacutecios do modo de funcionamento dos fatores inespeciacuteficos bem

como da teacutecnica adotada (Alfonso amp Zanello 2009 Hosel amp Zanello 2009 Santos amp

Zanello 2009 Soares amp Zanello 2009)

Apesar das pesquisas apresentadas partirem do mesmo cabedal teoacuterico (teoria dos atos

de fala) utilizaram-no em enfoques diferentes para refletir sobre o engajamento do

344

paciente com seu proacuteprio tratamento para evidenciar a mudanccedila da prevalecircncia da

frequecircncia dos tipos de atos de fala na histoacuteria de uma abordagem teoacuterica e a relaccedilatildeo

com a mudanccedila da teacutecnica adotada para levantar os tipos de atos de fala implicados em

momentos de mudanccedila e de estancamento na psicoterapia em diferentes abordagens

para pesquisar a mudanccedila longitudinal dos atos de fala mais frequentes e sua distribui-

ccedilatildeo no decorrer de um processo (psico)teraacutepico e sua relaccedilatildeo com a efetividade para

mapear a frequecircncia dos tipos de atos de fala em grupos terapecircuticos de auto-ajuda e a

relaccedilatildeo da forccedila ilocucionaacuteria com o conteuacutedo proposicional relacionando-a aos fatores

inespeciacuteficos e agrave teacutecnica

Apesar da diversidade de possibilidades a utilizaccedilatildeo da teoria dos atos de fala ainda

eacute incipiente e parece estar longe de ter realizado sua contribuiccedilatildeo para uma melhor

compreensatildeo do que se faz com a fala no processo de (psico)terapia e suas muacuteltiplas

relaccedilotildees possiacuteveis com a teacutecnica com os fatores (in)especiacuteficos e com a efetividade

Conclusatildeo

Parece-nos evidente que o campo de conversaccedilatildeo aberto entre a filosofia da linguagem

ordinaacuteria e as (psico)terapias eacute bastante promissor Trata-se talvez de mais um instru-

mento que pode nos auxiliar a esclarecer o que ocorre de tatildeo maacutegico no uso das palavras

e na sua promoccedilatildeo do processo de cura nas (psico)terapias e sua possiacutevel relaccedilatildeo com a

teacutecnica com os fatores inespeciacuteficos e com a efetividade

Talvez sua contribuiccedilatildeo permita pensar cientificamente o ofiacutecio do cliacutenico partindo

da proacutepria praacutetica e natildeo como muitas vezes ocorre dos pressupostos epistemoloacutegicos

e das teacutecnicas supostamente utilizadas Seria interessante neste sentido a realizaccedilatildeo

de pesquisas que levassem em consideraccedilatildeo a anaacutelise dos atos de fala de atendimen-

tos (psico)teraacutepicos em diversas abordagens em estudos longitudinais e sua respectiva

comparaccedilatildeo

Em suma se a praacutetica eacute epistemologia em ato trata-se de qualificar natildeo apenas o que o

cliacutenico acredita que faz mas o que ele efetivamente faz Pensamos que a anaacutelise da fala

e de seus modos de uso constituem-se como uma boa alternativa para enriquecer ainda

mais a discussatildeo sobre a avaliaccedilatildeo do campo das (psico)terapias em suas mais diversas

abordagens

345Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

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349 Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

LaiacutesMacecircdoVilasBoas

DeiseMatosdoAmparo

O estudo sobre a adolescecircncia ocupa cada vez mais espaccedilo nas pesquisas empreendidas

pelos psicanalistas contemporacircneos que configuram esse tempo como um momento

importante da organizaccedilatildeo da vida psiacutequica Eacute evidente que Freud natildeo se dedicou a

estudar a adolescecircncia como um conceito ou como uma especificidade da psicanaacutelise

como o fez em relaccedilatildeo ao infantil poreacutem em sua obra eacute possiacutevel encontrar algumas pa-

lavras que remetem a essa fase da vida como puberdade juventude e ateacute mesmo ado-

lescente Na maioria de seus escritos eacute o termo puberdade que seraacute utilizado quando se

procura delimitar o campo da adolescecircncia (Alberti 1996) Diante dessas imprecisotildees

como poderiacuteamos delimitar e conceituar a adolescecircncia na psicanaacutelise Como parte do

meacutetodo intriacutenseco a essa perspectiva teoacuterica o resgate da histoacuteria e da cliacutenica eacute fun-

350

damental desde que uma teorizaccedilatildeo possiacutevel da adolescecircncia coincide com o proacuteprio

evento da psicanaacutelise 36

AdolescecircnciaemFreud

No Projeto para uma Psicologia Cientiacutefica Freud (1895) se depara com o entendimento

da Psicologia e a partir de um paradigma cientiacutefico-naturalista busca explicitar os pro-

cessos psiacutequicos enquanto estados determinados quantitativamente Baseado em dois

postulados centrais a saber a quantidade e o neurocircnio que explicariam os processos

psiacutequicos normais e patoloacutegicos Uma ampla gama de conceitos freudianos eacute esque-

matizada no Projeto e receberam nos futuros trabalhos com o desenvolvimento da

teoria e da teacutecnica psicanaliacutetica diferentes abordagens Dentre eles estaacute a concepccedilatildeo de

puberdade que apesar de natildeo possuir um tratamento sistemaacutetico na obra freudiana

encontra um papel relevante na teoria principalmente no que se refere a sua relaccedilatildeo

com a concepccedilatildeo de genitalidade e ao desligamento da autoridade parental

Freud no Projeto aborda o tema puberdade a partir da cliacutenica quando estaacute explorando

o Caso Emma Mostra a formaccedilatildeo do trauma em dois tempos poreacutem entre eles haacute a

condiccedilatildeo da puberdade Trata-se de uma jovem que o procurara para tratamento por natildeo

conseguir entrar em lojas quando estava sozinha Neste caso duas cenas que se passam

em temporalidades diferentes satildeo importantes A Cena I refere-se a uma lembranccedila do

momento em que Emma com doze anos pouco depois da puberdade entrava em uma

loja para comprar algo e dois vendedores riam dela especificamente de suas roupas

Dentre eles recorda que um a havia agradado sexualmente A Cena I isoladamente

natildeo revela conexotildees plausiacuteveis que tragam sentido para o sintoma de Emma Afinal

natildeo havia relaccedilatildeo entre as roupas que usava e sua corrente dificuldade de ingressar em

lojas nem seu interesse pelo vendedor poderia ser impedido se tivesse acompanhada de

algueacutem Ao continuar com a investigaccedilatildeo surge nos relatos de Emma a Cena II Aconte-

ceu quando ela contara oito anos em uma confeitaria o proprietaacuterio agarrou por cima

da roupa suas partes genitais Durante esse ato ele ria Mesmo assim ela retornou agrave

confeitaria e se censurou bastante por isso

36 Trabalho resultante de Pesquisa com apoio CNPq

351Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

O que possibilita a associaccedilatildeo entre as duas cenas eacute a semelhanccedila de estar sozinha e do

riso A hipoacutetese freudiana eacute de que a Cena II despertou uma sexualidade que soacute pode

ser liberada apoacutes a entrada na puberdade quando ocorrera a Cena I mas que se trans-

formou em anguacutestia no sintoma de Emma O que permanece inconsciente em Emma

eacute o despertar de uma sexualidade (Cena II) que conseguiu ser liberada em um soacute depois

(Cena I) momento em que a paciente estava passando pela puberdade

Freud se depara com a explicaccedilatildeo da defesa histeacuterica na qual se recalca uma lembranccedila

que soacute ganha seu valor traumaacutetico atraveacutes de uma accedilatildeo retardada devido ao impacto da

sexualidade pubertaacuteria ldquoTemos aqui um caso em que uma lembranccedila desperta um afe-

to que natildeo pocircde suscitar quando ocorreu como experiecircncia porque nesse entretempo

as mudanccedilas [trazidas] pela puberdade tornaram possiacutevel uma compreensatildeo diferente

do que era lembradordquo (1895 p410) A cadeia associativa explorada atraveacutes da recordaccedilatildeo

mostra que haacute uma relaccedilatildeo entre a sexualidade pubertaacuteria e a infacircncia Uma lembranccedila

eacute recalcada e com o efeito do a posteriori sendo a puberdade uma condiccedilatildeo ela se torna

um trauma A irrupccedilatildeo da pulsatildeo na puberdade autoriza um modo diferente de com-

preender a lembranccedila da experiecircncia sexual ocorrida na infacircncia marcando um movi-

mento de ressignificaccedilatildeo Foi preciso a Cena II para que a Cena I ganhasse seu caraacuteter

traumaacutetico A investigaccedilatildeo das origens da neurose ndash histeacuterica no caso Emma - revela a

puberdade como seu momento de eclosatildeo a partir de uma visatildeo loacutegica e natildeo cronoloacute-

gica na relaccedilatildeo do sujeito com o sexo

A puberdade estaacute na etiologia das neuroses na medida em que a alteraccedilatildeo ocorrida

no segundo momento ndash pubertaacuterio - faz com que as experiecircncias vividas remontem agraves

marcas infantis de modo que eacute reprimida uma lembranccedila que soacute com efeito retardado

tornou-se trauma A maturaccedilatildeo orgacircnica eacute fundamental para que o segundo tempo

ocorra Esse remete agrave lembranccedila anterior delineando uma conjuntura que produz o ca-

raacuteter traumaacutetico do primeiro registro Este modelo natildeo eacute exclusivo dos casos conhecidos

como patoloacutegicos Freud sustenta no mesmo texto que ldquotoda pessoa adolescente possui

marcas mnecircmicas que soacute podem ser compreendidas com a emergecircncia de sensaccedilotildees

sexuais proacuteprias dir-se-ia entatildeo que todo adolescente porta em si o lsquogeacutermen da histeriarsquo

(p411) Desde o Projeto Freud jaacute pensava no funcionamento psiacutequico a partir de uma

dupla temporalidade atraveacutes da concepccedilatildeo de uma accedilatildeo retardada

352

Tal hipoacutetese sobre a etiologia da histeria e a concepccedilatildeo de puberdade igualada ao surgi-

mento da sexualidade no indiviacuteduo ainda se manteve por um tempo no pensamento

de freudiano Em 1896 no estudo sobre a Etiologia da histeria a infacircncia eacute denominada

como um periacuteodo preacute-sexual em que ocorreria o trauma a partir de uma experiecircncia de

irritaccedilatildeo real dos oacutergatildeos sexuais numa atividade semelhante agrave copulaccedilatildeo Eacute soacute em um

tempo posterior agrave puberdade e permitido pela eclosatildeo sexual pubertaacuteria que tais exci-

taccedilotildees impelem um retorno dos traccedilos mnecircmicos traumaacuteticos infantis Em uma busca

pela descarga afetiva que prepara o terreno para a histeria

No entanto em 1905 Freud nos Trecircs Ensaios sobre a Sexualidade a sexualidade infantil

ganha um novo e revolucionaacuterio estatuto para a teoria psicanaliacutetica Nesse texto Freud

decide ir contra a noccedilatildeo da eacutepoca e sua tambeacutem de textos anteriores de que a puber-

dade dava iniacutecio agrave sexualidade O desenvolvimento de uma neurose histeacuterica que ateacute

entatildeo ocorreria devido agrave aptidatildeo pubertaacuteria de imprimir o caraacuteter sexual em traccedilos

mnecircmicos ocorridos uma fase preacute-sexual (a infacircncia) encontra um novo desenrolar

Freud pretendia rever a tese do lugar da puberdade na constituiccedilatildeo psiacutequica e teoriza

que a puberdade leva a vida sexual infantil a sua conformaccedilatildeo definitiva a partir do pri-

mado das zonas genitais e da escolha objetal ambas prefiguradas no tempo do infantil

A puberdade eacute o incremento da pulsatildeo sexual com a primazia da zona genital Ela reor-

dena todas as zonas e permite que o sujeito realize escolhas objetais fora de seu proacuteprio

corpo saindo do autoerotismo

Entatildeo retira-se da puberdade a funccedilatildeo de apresentar ao ser humano aquilo que eacute da

ordem da sua sexualidade Mas por outro lado natildeo nega a novidade pulsional da pu-

berdade nem a sua caracteriacutestica de segundo tempo Na terceira seccedilatildeo desse texto inti-

tulada As transformaccedilotildees da puberdade dedica-se a sustentar que a puberdade possui um

alicerce bioloacutegico ao colocar um grande peso sobre os fatores constitucionais quando

trata das correspondecircncias orgacircnicas para eventos psiacutequicos da quiacutemica e das glacircndu-

las na deflagraccedilatildeo da puberdade Talvez em uma tentativa de garantir a universalidade

da teoria psicanaliacutetica da sexualidade (Matheus 2007)

Todas as pulsotildees parciais se prendem ao mesmo jugo ao primado das zonas genitais A

tensatildeo sexual faz a exigecircncia de um aumento de prazer e soacute a puberdade faz emergir o

aparato para um prazer finalndash diferente do preacute-prazer infantil ndash e novo Em outras pala-

353Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

vras a genitaacutelia mediante uma excitaccedilatildeo externa ou interna estaacute preparada para o ato

sexual Se a fisiologia parece tatildeo clara agrave Freud o processo de desenvolvimento da puber-

dade ainda carece de elucidaccedilatildeo afinal estas ldquotransiccedilotildees intermediaacuterias ainda nos satildeo

obscuras em muitos aspectosrdquo (Freud 1905 p197) Na exigecircncia de um prazer maior

a libido do ego comeccedila a ser investida psiquicamente em objetos sexuais e converte-se

em libido do objeto Na busca por um objeto para levar a cabo sua capacidade fisioloacutegica

de reproduccedilatildeo o indiviacuteduo depara-se com a diferenccedila sexual Aleacutem das transformaccedilotildees

fisioloacutegicas pubertaacuterias propiciarem o momento em que as caracteriacutesticas masculinas e

femininas demarcam uma niacutetida separaccedilatildeo

Os Trecircs Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905) proporciona uma virada no que se re-

fere agrave pulsatildeo sexual infantil poreacutem a puberdade natildeo perde seu valor de segundo tempo

na constituiccedilatildeo do trauma a partir da origem infantil Na teoria freudiana o trauma ain-

da aparece enquanto um efeito do a posteriori mediante as transformaccedilotildees pubertaacuterias

em um sujeito que jaacute vivenciou o Complexo de Eacutedipo e de castraccedilatildeo Elementos que se

passam em uma infacircncia que natildeo eacute mais desprovida de sexualidade

Posteriormente Freud (1923) em um trabalho chamado A organizaccedilatildeo genital infantil

faz uma anaacutelise sobre a genitalidade na infacircncia e na puberdade A insatisfaccedilatildeo freudia-

na com o postulado de que a vida sexual infantil natildeo efetuaria de modo completo ou

por vezes de modo algum a primazia dos oacutergatildeos sexuais levou-o a afirmar que ldquoMes-

mo natildeo se realizando uma combinaccedilatildeo adequada dos instintos parciais sob a primazia

dos oacutergatildeos genitais no auge do curso do desenvolvimento da sexualidade infantil o

interesse nos genitais e em sua atividade adquire uma significaccedilatildeo dominante que estaacute

pouco aqueacutem da alcanccedilada na maturidaderdquo (p158) Entatildeo a genitalidade natildeo eacute novidade

da puberdade mas entre esses dois tempos a infacircncia e a adolescecircncia existem uma

enorme diferenccedila Freud conclui que a organizaccedilatildeo genital infantil considera somente

o oacutergatildeo genital masculino haacute uma primazia do falo A aposta na genitalidade anterior

a puberdade se daacute pela constataccedilatildeo de uma curiosidade sexual o temor agrave castraccedilatildeo e a

primazia faacutelica Na infacircncia a antiacutetese ldquoeacute entre possuir um oacutergatildeo genital masculino e

ser castradordquo (p161) A oposiccedilatildeo entre masculino e feminino soacute eacute posta no momento

em que o indiviacuteduo vai escolher um objeto ou seja na puberdade ldquoA masculinidade

combina [os fatores de] sujeito atividade e posse do pecircnis a feminilidade encampa [os

de] objeto e passividaderdquo (p161)

354

Mesmo na sexualidade infantil feminina eacute o paradigma masculino que entra em consi-

deraccedilatildeo eacute o clitoacuteris que envolve a atividade faacutelica feminina Nesse sentido Freud (1923)

afirma que a sexualidade feminina na puberdade tem um complicador a mais eacute preciso

que ela troque de zona genital do clitoacuteris para a vagina O clitoacuteris seria o anaacutelogo ao

oacutergatildeo sexual masculino tendo em vista que a vagina na infacircncia potencialmente natildeo

existe Eacute na puberdade que esse oacutergatildeo comeccedila a produzir sensaccedilotildees que o caraacuteter femi-

nino a vagina entra em questatildeo Esse complicador do encontro com o feminino que

faz a certeza faacutelica bascular natildeo eacute soacute para as mulheres os homens tambeacutem tem que se

a ver com esse encontro

Ao retomarmos a busca do objeto para Freud relembramos que ele afirma que esta eacute

na verdade um reencontro Apesar de natildeo tratar explicitamente do Complexo de Eacutedipo

Freud aproxima-se desse tema ao trabalhar a dimensatildeo incestuosa do reencontro com a

imagem mnecircmica da matildee no rapaz na relaccedilatildeo entre os viacutenculos infantis e na eleiccedilatildeo de

objetos Eacute no campo das fantasias e das escolhas objetais que o sujeito atua seu desejo

de reencontro A eleiccedilatildeo de novos objetos eacute realizada a partir das marcas infantis

A escolha objetal acontece em dois tempos um antes e outro depois da latecircncia Sua

dupla temporalidade trabalhada desde o Projeto na obra de Freud eacute marcada pelos

rastros da preacute-genitalidade caracterizando a sexualidade humana e a constituiccedilatildeo do

aparelho psiacutequico Matheus (2007) afirma que Freud reserva esse lugar a puberdade eacute

o momento da segunda ativaccedilatildeo sexual jaacute anunciada em 1905 quando diz ldquoum prazer

novordquo decorrente de uma ldquodiferenccedila de naturezardquo e uma satisfaccedilatildeo de maior intensida-

de Haacute uma reordenaccedilatildeo direcionada pela funccedilatildeo sexual eacute na puberdade que a imagem

mnecircmica da matildee eacute perseguida em novos enlaces

A barreira do incesto eacute relacionada agrave impossibilidade fiacutesica da concretizaccedilatildeo incestuo-

sa ou seja ao retardo da maturaccedilatildeo sexual Matheus (2007) comenta que esse cotejo

denota que a interdiccedilatildeo infantil se sustenta numa incapacidade fiacutesica concreta mais do

que simboacutelica ou subjetiva Se a interdiccedilatildeo se baseia na desproporccedilatildeo maturacional a

puberdade representa uma forte ameaccedila pela possibilidade de concretizaccedilatildeo das fanta-

sias incestuosas

Sobre esse aspecto da escolha sexual do objeto Winnicott (1975) coloca que estaacute incluiacuteda

na imaturidade adolescente e na maturidade adulta Se a primeira possui sua marca

355Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

de tensatildeo na sexualidade adolescente a segunda estaacute caracterizada pela aceitaccedilatildeo da

ldquoescolha de objeto a constacircncia objetal a satisfaccedilatildeo sexual e o entrelaccedilamento sexualrdquo

(p200) Ao mesmo tempo em que a imaturidade eacute considerada por Winnicott a maior

vantagem da adolescecircncia pela sua ldquoliberdade de ter ideias e de agir segundo seu impul-

sordquo (p202) tambeacutem eacute processual e demanda tempo para a realizaccedilatildeo da escolha sexual

Outro fator essencial apontado por Freud jaacute em 1905 eacute o desligamento da autoridade

dos pais entendido como o evento mais significativo e doloroso da puberdade Este vem

a demarcar a diferenccedila de geraccedilotildees Sem duacutevida haacute uma forte ligaccedilatildeo entre a desistecircn-

cia de realizaccedilatildeo das fantasias incestuosas e o desligamento da autoridade parental

Sobre o distanciamento dos pais no texto Romances Familiares Freud (1908) toma a

puberdade como referecircncia Natildeo em seu aspecto da imposiccedilatildeo bioloacutegica de uma nova

escolha de objeto mas em relaccedilatildeo ao objetivo eroacutetico e ambicioso da fantasia no desliga-

mento com a autoridade A crianccedila pequena toma seus pais como fonte de todo o co-

nhecimento poreacutem em seu desenvolvimento conhece outras famiacutelias e comeccedila a ldquopocircr

em duacutevida as qualidades extraordinaacuterias e incomparaacuteveis que lhes atribuiacuteardquo (p219)

Esse processo se inicia em um periacuteodo logo anterior a puberdade podendo prolongar

ndashse para muito depois dela O indiviacuteduo elabora o seu romance familiar neuroacutetico que

pode incluir as mais variadas fantasias desde a substituiccedilatildeo por pais melhores ateacute a

infidelidade materna A atividade de fantasiar ambiciosamente busca certa autono-

mia frente aos progenitores tomando-os como modelo ndash parental inscrito na primeira

infacircncia ao mesmo tempo em que busca por outros exemplos a ser equacionado na

constituiccedilatildeo dos ideais (Matheus 2007)

Em Algumas Reflexotildees sobre a Psicologia Escolar Freud (1914) trabalha o desligamento

dos pais na juventude e as outras relaccedilotildees no mesmo periacuteodo da vida atravessado pelas

marcas do Complexo de Eacutedipo Jaacute no fim da infacircncia o menino manteacutem contato com

vaacuterias pessoas fora do nuacutecleo familiar e natildeo pode deixar de perceber o quatildeo elevado era

o seu primeiro ideal paterno Assim ele se apressa em desligar-se desse ideal infantil

e comeccedila a criticar e avaliar seus comportamentos Eacute nessa fase em que o jovem entra

em contato com outras figuras de autoridade poreacutem em seus relacionamentos o me-

nino natildeo eacute uma folha em branco ele traz seus traccedilos infantis e edipianos e investe nos

substitutos parentais as ambivalecircncias de sentimentos que experimenta em relaccedilatildeo aos

seus pais ldquoEssas figuras substitutivas podem classificar-se do ponto de vista da crianccedila

356

segundo provenham do que chamamos as lsquoimagosrsquo do pai da matildee dos irmatildeos e das ir-

matildes e assim por diante Seus relacionamentos posteriores satildeo assim obrigados a arcar

com uma espeacutecie de heranccedila emocional []rdquo (p 248-249)

Ao percorrer o caminho freudiano sobre a adolescecircncia percebe-se que em um pri-

meiro momento a puberdade eacute igualada ao iniacutecio da vida sexual Depois a sexualidade

infantil e as concepccedilotildees que permeiam o Complexo de Eacutedipo altera radicalmente esse

lugar dado agraves transformaccedilotildees pubertaacuterias Enquanto um segundo momento da sexu-

alidade a puberdade fica como pano de fundo mas manteacutem sua importacircncia para a

constituiccedilatildeo do aparelho o psiacutequico

O texto dos Trecircs Ensaios sobre a Sexualidade eacute um tratado privilegiado para analisar as

transformaccedilotildees pubertaacuteria pela sua associaccedilatildeo com as fantasias incestuosas com o des-

ligamento da autoridade parental e a configuraccedilatildeo definitiva da vida sexual (Matheus

2007) As transformaccedilotildees pubertaacuterias no entanto enquanto orgacircnicas natildeo podem ser

excluiacutedas do estudo de Freud poreacutem natildeo conseguem sustentar uma causalidade linear

da adolescecircncia Eacute preciso estar atento agraves vaacuterias formulaccedilotildees freudianas com relaccedilatildeo agrave

primazia da zona genital proporcionada pela puberdade Pois essa genitalidade refere-

-se ao encontro com a feminilidade e a saiacuteda da primazia da ordem faacutelica em que so-

mente o paradigma masculino estava em questatildeo

O lugar psiacutequico que a puberdade ocupa em Freud principalmente nos Trecircs ensaios

aparece principalmente quando ele se debruccedila sobre a questatildeo da excitaccedilatildeo psiacutequica e

do trabalho psiacutequico de diferenccedila geracional no desligamento dos pais Igualar adoles-

cecircncia e puberdade eacute contrariar o legado Freudiano pois eacute na contradiccedilatildeo das diferentes

geraccedilotildees que se centra o trabalho psiacutequico da adolescecircncia (Alberti 1996)

Enfim o que estaacute em jogo na adolescecircncia Haacute um movimento na teoria psicanaliacutetica

de buscar uma definiccedilatildeo para a adolescecircncia que natildeo seja o de puberdade Aleacutem disso

o proacuteprio conceito de puberdade na psicanaacutelise ganha conotaccedilotildees diferentes para aleacutem

das transformaccedilotildees corporais fisioloacutegicas Entatildeo qual o lugar da puberdade no tempo

adolescente e como esse aspecto eacute teorizado nas construccedilotildees psicanaliacuteticas posteriores

357Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

Guttonogolpepubertaacuterio

O impacto da puberdade na adolescecircncia toma uma dimensatildeo conceitual nos trabalhos

de Philippe Gutton As transformaccedilotildees corporais violentas do corpo puacutebere levam a

uma genitalizaccedilatildeo corporal e psiacutequica do adolescente (Gutton 1990) Freud jaacute afirmara

que a puberdade eacute o momento do primado das zonas genitais e de investir em objetos

externos Tal novidade impotildee a necessidade de uma reorganizaccedilatildeo da identidade do

corpo sexual e psicoloacutegica constituiacuteda na infacircncia Gutton formaliza o termo pubertaacute-

rio afirmando que se refere agrave vida psiacutequica enquanto puberdade trata de um processo

corporal Tempo explosivo que visa dar conta do real bioloacutegico da puberdade tendo em

vista a pressatildeo que faz agrave barreira do incesto estabelecida no Complexo de Eacutedipo A orga-

nizaccedilatildeo pubertaacuteria coloca agrave prova do supereu face agrave entrada no possiacutevel da cena ediacutepica

Gutton (2002) afirma que natildeo existe coisa alguma na infacircncia que a prepare para a

sexualidade pubertaacuteria Bordejado pela genitalidade o destino da crianccedila puacutebere eacute fazer

advir o sujeito de sua genitalidade O pubertaacuterio ainda natildeo pertence ao sujeito eacute im-

posto a ele como uma forccedila centriacutepeta vinda de fora como um evento incontornaacutevel

A pressatildeo da realidade interna a partir da temaacutetica edipiana reposiciona o sujeito da

infacircncia na medida em que o pubertaacuterio como considerado por Gutton eacute uma forccedila

violenta pulsional genital que abusa o corpo e a psique O caraacuteter violento do pulsional

adveacutem da genitalizaccedilatildeo do corpo invadido por excitaccedilotildees que o adolescente natildeo conse-

gue dominar Nessa invasatildeo interna da forccedila pulsional o pubertaacuterio eacute por essecircncia passi-

vo O sujeito constituiacutedo atraveacutes da loacutegica imaginaacuteria faacutelica encontra um real genital que

reafirma que nada pode ser como antes A experiecircncia sensual natildeo diz somente que o

corpo genital eacute de uma natureza diferente da infantil mas que ele anima uma parte do

corpo que natildeo eacute integrada ao eu-sujeito ele sente coisas desconhecidas o estrangeiro

do corpo e do psiquismo Por isso o pubertaacuterio por definiccedilatildeo abusa violenta A elabo-

raccedilatildeo adolescente deve reconhecer o debate subjetivo entre a histoacuteria infantil interna e

o evento pubertaacuterio

Jeammet e Corcos (2005) pensam junto com Gutton que a adolescecircncia eacute ldquouma mu-

danccedila induzida pelo processo da puberdaderdquo (2005 p38) As transformaccedilotildees corporais

escapam ao domiacutenio do Eu e mostram a impotecircncia do adolescente frente agraves mudanccedilas

pubertaacuterias O corpo ldquoeacute parte integrante da representaccedilatildeo de si mas percebido pela

psique como corpo estranho na medida em que escapa a seu controle e a [psique] mer-

358

gulha numa situaccedilatildeo de passividaderdquo (p 42) Indica a realidade da separaccedilatildeo dos pais

no mundo infantil e da dependecircncia

Os autores sustentam que existe uma crise na adolescecircncia pela sua exigecircncia de mu-

danccedila a partir da puberdade e suas consequecircncias psicossociais ou seja pressotildees inter-

nas e externas ao aparelho psiacutequico que acarretam um trabalho de remanejamento do

funcionamento do sujeito Assim a adolescecircncia faz uma exigecircncia de trabalho psiacutequi-

co que pode induzir comportamentos conturbados mostrando a vulnerabilidade desse

momento e natildeo uma patologia As condutas mais atiacutepicas poderiam ser vistas como o

ldquopreccedilo da crise assimilada a uma desorganizaccedilatildeo temporaacuteria no momento em que o

jovem adolescente abandona os amparos da infacircncia sem ter ainda encontrado os da

idade adultardquo (Jeammet e Corcos 2005 p30) Nesse sentido Marty (2010) defende

que a puberdade fragiliza o corpo e o Eu transformando-os pela forccedila das pulsotildees e dos

fantasmas incestuosos e parricidas A fragilidade eacute interna e externa o que pode levar a

adolescecircncia a ser vivida como um verdadeiro traumatismo

Lacanadolescecircnciacomooencontrocomorealdosexo

Lacan no Seminaacuterio IV (1956-57) trabalha a genitalidade fase central para o estudo da

adolescecircncia em Freud a partir do desencontro que a relaccedilatildeo sexual provoca Em um

primeiro momento relembra a posiccedilatildeo de Freud com relaccedilatildeo ao objeto em que o objeto

que liga as primeiras satisfaccedilotildees da crianccedila natildeo poderaacute ser reencontrado eacute sempre um

objeto perdido O que marca no homem eacute uma tendecircncia por buscaacute-lo Haacute um desen-

contro entre o objeto buscado e reencontrado que ldquomarca a redescoberta do signo de

uma repeticcedilatildeo impossiacutevel jaacute que precisamente este natildeo eacute o mesmo objeto natildeo poderia

secirc-lordquo (p13) Nesse sentido Lacan reenvia agrave posiccedilatildeo freudiana de que no encontro com o

objeto haveraacute sempre a marca da incompletude ldquopor sua natureza a repeticcedilatildeo se opotildee

agrave reminiscecircnciardquo (p14)

Ao partir da demarcaccedilatildeo realizada por Freud em que a genitalidade da adolescecircncia fala

do feminino e da certeza do desencontro com o objeto Lacan postula que a experiecircn-

cia entre um homem e uma mulher que eacute uma das questotildees da puberdade contradiz

a possibilidade de encontro com um objeto harmocircnico Haacute sempre uma hiacircncia algo

que natildeo funciona

359Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

Diferente da fase faacutelica que natildeo deixa de ter a marca da genitalidade o que estaacute em jogo

eacute o falo e o sujeito fica como um pecircndulo entre a ldquoimagem viril ou a castraccedilatildeordquo (p49)

Apesar do falo ser trabalhado no Seminaacuterio IV enquanto imaginaacuterio ele introduz no

niacutevel da genitalidade o dom simboacutelico O que estaacute em jogo eacute a presenccedila ou ausecircncia do

falo que imerge o sujeito numa dialeacutetica simboacutelica Se pensarmos com Freud trata-se

da fase faacutelica com o seu referencial masculino A genitalidade na adolescecircncia introduz

algo de outra ordem que escapa a ordem simboacutelica A fantasia do falo natildeo possui sua

correspondecircncia na relaccedilatildeo sexual A maturaccedilatildeo genital comportaria a ilusatildeo de uma

harmonia entre homens e mulheres natildeo entanto essa complexa relaccedilatildeo ldquonatildeo passa de

um perpeacutetuo fracassordquo (p384) A puberdade eacute marcada pelo encontro com a feminilida-

de que diferente do par de opostos do falo natildeo encontra na linguagem um lugar

Ouvry (2010) retoma proposiccedilotildees freudianas para dizer com Lacan que a novidade da

puberdade eacute o Feminino Apesar da concepccedilatildeo de genitalidade comportar uma mudan-

ccedila radical entre 1905 e 1923 desde os Trecircs Ensaios sobre a Teoria da sexualidade Freud jaacute

aponta para a natureza masculina da libido e a fixaccedilatildeo da menina no clitoacuteris enquanto

zona eroacutegena Elementos retomados na Organizaccedilatildeo Genital Infantil a partir da pers-

pectiva faacutelica e do feminino Se na infacircncia a referecircncia para os dois sexos eacute a mesma o

falo o oacutergatildeo genital feminino natildeo possui referecircncia na infacircncia A estrutura da lingua-

gem soacute comporta um sexo enquanto ausecircncia ou presenccedila mas o real pubertaacuterio vem

escancarar uma diferenccedila Eacute dado o nome de real por natildeo encontrar uma referecircncia na

linguagem

Lacan no Prefaacutecio a O Despertar da Primavera (1974) aborda a dificuldade encontrada

pelos jovens com o desejo e o ato de fazer amor com as moccedilas demarcando a impos-

sibilidade da relaccedilatildeo amorosa e a insuficiecircncia do gozo faacutelico ldquoJustamente de que o

puacutebis soacute faccedila passar ao puacuteblico onde se exibe como objeto de uma levantada de veacuteu

Que o veacuteu levantado natildeo mostre nada eis o princiacutepio da iniciaccedilatildeo (nas boas maneiras

da sociedade pelo menos)rdquo (p558)

Alberti (1996) comenta o prefaacutecio de Lacan afirmando que ldquoO despertar da primavera

eacute o despertar das fantasias que Freud dizia ficam adormecidas durante a latecircncia e

reaparecem na puberdaderdquo (p 57) Eacute somente a partir desse despertar que o ato sexual

pode ocorrer e o consequente choque com o real da natildeo existecircncia da relaccedilatildeo sexual

Levantou-se o veacuteu do gozo prometido e nada foi encontrado postergou-se para a morte

360

a possibilidade de gozo completo O conceito de adolescecircncia proposto por Melman

(1999) assenta sobre essa vacilaccedilatildeo do gozo Seria uma crise psiacutequica entendida como

um natildeo lugar no momento em que o sujeito natildeo sabe como se posicionar com relaccedilatildeo

ao seu gozo Como um mal-estar devido agrave constataccedilatildeo de que o gozo eacute sempre insatis-

fatoacuterio Este lugar estremece pelo adolescente estar olhando a partir de um lugar ideal

ainda natildeo castrado ndash mas sim privado em que a promessa edipiana ainda natildeo se cons-

tituiu como um logro

Para Lesourd (2004) a sexualidade genital puacutebere se lanccedila em um modelo sexual cons-

tituiacutedo a partir dos moldes do infantil faacutelico Para tratar desse tema o autor traz a con-

cepccedilatildeo freudiana de Das Ding remete a um tempo da carne que em funccedilatildeo da lingua-

gem foi irremediavelmente perdido pelo sujeito Das Ding ou a Coisa eacute o objeto-carne

fonte do gozo originaacuterio da excitaccedilatildeo satisfaccedilatildeo primaacuteria O pubertaacuterio faz retorno a

esse gozo para sempre perdido e afastado pelo significante O gozo genital prometido

e enquadrado na infacircncia pela promessa edipiana perde sua garantia Para a crianccedila a

completude possiacutevel estaacute no mundo adulto O adolescente se depara com o mal-estar da

castraccedilatildeo simboacutelica especialmente no encontro da inadequaccedilatildeo da carne com o corpo

no ato sexual A adolescecircncia eacute o encontro da posiccedilatildeo feminina para todo sujeito no

confronto com o natildeo todo com a descrenccedila faacutelica O feminino eacute entendido por Lesourd

como um dos nomes do real aquilo que resiste psiquicamente agrave sexualidade libidinal

faacutelica A conceituaccedilatildeo do Outro sexo independente do sexo bioloacutegico do sujeito eacute com

o feminino A concepccedilatildeo de adolescecircncia envolve o trabalho psiacutequico em segundo tem-

po que deve ser realizado frente agrave invasatildeo pubertaacuteria ou seja a descoberta da ilusatildeo do

veacuteu faacutelico e do significante da falta no Outro Esse trabalho envolve a reconstruccedilatildeo dos

veacuteus faacutelicos a partir dos elementos preestabelecidos na construccedilatildeo subjetiva infantil

O corpo puacutebere a partir do encontro com o outro sexo leva a busca de novos objetos ao

desligamento da autoridade parental revela o fracasso da promessa edipiana e faz com

que o olhar do outro sobre esse corpo mude

O corpo imposto pela puberdade fisioloacutegica perturba a imagem do corpo construiacuteda na

infacircncia e inevitavelmente faz sobressair agrave diferenccedila entre os sexos O sujeito percorre

o caminho do autoerotismo agrave escolha de objeto (Rassial 1999) Para Matheus (2007) a

puberdade do ponto de vista da sexualidade eacute o encontro com a faceta impossiacutevel da re-

laccedilatildeo amorosa e com a sua dimensatildeo enigmaacutetica O acesso agrave sexualidade puacutebere marca-

361Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

do pelo excesso do corpo vira inevitavelmente uma reivindicaccedilatildeo Afinal o adolescente

identifica em seu proacuteprio corpo os objetos parciais atribuiacutedos ao genitor do mesmo

sexo O que sustenta a interrogaccedilatildeo sobre a sua proacutepria posiccedilatildeo quanto agrave sexuaccedilatildeo

O engodo da reediccedilatildeo do Complexo de Eacutedipo eacute apontado por Freud em 1905 na ado-

lescecircncia existe uma maturaccedilatildeo fiacutesica que permite que aquilo que estava somente na

fantasia edipiana se torne possiacutevel Poreacutem natildeo eacute possiacutevel uma realizaccedilatildeo sexual nos

moldes da primeira infacircncia Quando o corpo infantil se iguala ao corpo adulto a pro-

messa do Eacutedipo se mostra enganadora (Rassial 1997a) Melman (1999) afirma que

a enganaccedilatildeo constatada na adolescecircncia estaacute no movimento de sair do registro da pri-

vaccedilatildeo para o da castraccedilatildeo A crianccedila aceita a promessa do Eacutedipo porque ela estaacute no

momento privada e natildeo castrada do instrumento necessaacuterio (o corpo crescido) para a

satisfaccedilatildeo sexual Mas quando seu corpo se desenvolver ela o teraacute Descobre-se que natildeo

basta um instrumento para que tudo se resolva

O acesso agrave sexualidade eacute mais complexo e natildeo traz a completude esperada A crianccedila

soacute aceita a renuacutencia que perpassa a metaacutefora paterna (interdiccedilatildeo de incesto e assassina-

to) ou seja do gozo do Outro ndash materno- e o limite imposto pelo Nome-do-pai por ela

conter uma promessa O acesso ao prazer final citado por Freud em 1905 eacute o juramento

de que a adolescecircncia permite o acesso a esse gozo quando crescer O sujeito descobre

que o gozo genital eacute tambeacutem parcial e natildeo garante nenhuma relaccedilatildeo sexual possiacutevel

com o outro nos moldes que poderia ter sido a relaccedilatildeo com a matildee Acontece o primeiro

encontro com a constataccedilatildeo de que qualquer promessa de um gozo outro promete so-

mente a morte (Rassial 1999 1997b) Todo gozo possiacutevel eacute parcial Portanto a questatildeo

do acesso a genitalidade puacutebere natildeo eacute soacute o seu excesso mas tambeacutem a inaptidatildeo para

relaccedilatildeo sexual No ato sexual aparece agrave incompetecircncia do significante faacutelico e portanto

da pulsatildeo genital para fundar uma relaccedilatildeo sexual

De acordo com Rassial (1999) a mudanccedila do estatuto do corpo ocorre porque a genita-

lidade passa a ocupar uma posiccedilatildeo dominante no sujeito A puberdade muda o valor do

corpo agora genitalmente maduro e coloca o olhar do semelhante -natildeo dos pais- em

jogo no desejo Nesse sentido Rassial sustenta que haacute uma centralidade das questotildees da

identidade na adolescecircncia e utiliza a perspectiva lacaniana do estaacutedio do espelho para

trabalhar esse tema

362

O estaacutedio do espelho elaborado por Lacan (1949) demonstra a formaccedilatildeo do primeiro

delineamento do eu por meio de uma imagem virtual O bebecirc ainda imaturo no cam-

po motor e imerso no autoerotismo eacute pego de surpresa pelo juacutebilo de uma imagem

refletida no espelho A vivecircncia de um corpo unificado e da imagem como totalidade eacute

confirmada pelo olhar do Outro Trata-se de uma ldquoidentificaccedilatildeo no sentido pleno que a

anaacutelise atribui a esse termo ou seja a transformaccedilatildeo produzida no sujeito quando ele

assume uma imagemrdquo (p97) O estaacutedio do espelho eacute responsaacutevel pela constituiccedilatildeo do

eu ao mesmo tempo em que eacute alienante O bebecirc parte de uma imagem despedaccedilada do

corpo para uma identidade alienante de uma totalidade corporal que natildeo condiz com

a realidade Nesse momento a vertente da imagem especular e do Outro se unem na

estruturaccedilatildeo do sujeito enquanto clivado pelo significante O Outro diraacute marcando a

identificaccedilatildeo ldquoEste eacute vocecircrdquo

Eacute sob esse olhar do outro que o sujeito adolescente em um soacute depois do estaacutedio do

espelho vai realizar o trabalho de se reapropriar de uma imagem do corpo transforma-

da Haacute uma repeticcedilatildeo das primeiras identificaccedilotildees em um segundo tempo mas natildeo

eacute somente uma realizaccedilatildeo (identificar-se com genitor do mesmo sexo) eacute tambeacutem uma

confrontaccedilatildeo com as fixaccedilotildees (buscar novas identificaccedilotildees) A autonomia alcanccedilada pela

crianccedila soacute ocorre agrave custa de um Outro a matildee primordial que agora se tornara imaginaacute-

ria e deixa atraacutes de si alguns restos Ora o corpo acabado produto do estaacutedio do espelho

natildeo passa de uma arrumaccedilatildeo imaginaacuteria A puberdade faz a imagem do corpo infantil

bascular exigindo uma reconstruccedilatildeo genitalizada (Rassial 1997b)

A vacilaccedilatildeo da imagem especular traz como consequecircncia o desmoronamento da con-

sistecircncia parental imaginaacuteria do Outro (Rassial 1999) Para embasar essa posiccedilatildeo o

autor utiliza outro conceito o de Nome do Pai Eacute preciso que a matildee tenha sustentado o

lugar imaginaacuterio do pai permitindo o funcionamento da metaacutefora paterna e a atribui-

ccedilatildeo de um saber e um poder ao pai Assim o sujeito se introduz na loacutegica edipiana e

possibilita que depois de um Nome do Pai fundador outros nomes-do-pai se inscrevam

simbolicamente na sua histoacuteria Rassial (1997a) escolhe usar os nomes do pai no plural

para sustentar a ideia de que na relaccedilatildeo com o semelhante do Outro sexo os signifi-

cantes possam deslizar para aleacutem da metaacutefora paterna Eacute um trabalho da adolescecircncia

o de realizar uma ldquooperaccedilatildeo inventiva em que o sujeito deveraacute autorizar-se a si mesmordquo

(p42)

363Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

Nesse sentido a adolescecircncia eacute um momento de um novo trabalho psiacutequico marcado

pela insuficiecircncia no Nome do Pai e das identificaccedilotildees Para se desligar da famiacutelia de

origem e realizar suas proacuteprias escolhas o adolescente se esforccedila para questionar a au-

toridade parental e fundar outro laccedilo social (deslocamentos do pai) Trata-se de inventar

um novo lugar fora da famiacutelia tendo em vista que o nome do pai sustentado ndashimagi-

nariamente- pela famiacutelia na infacircncia se mostra escasso na adolescecircncia Enfim Rassial

(1997b) propotildee conceituar a adolescecircncia atraveacutes do conceito de breakdown de pane

Como falamos anteriormente eacute a ldquopane na consistecircncia imaginaacuteria do Outrordquo que faz

com que os pais do adolescente despenquem de uma posiccedilatildeo ideal Eacute um momento de-

finitivo em que se renova no a posteriori as marcas da experiecircncia infantil em funccedilatildeo

de objetos que vatildeo ter um estatuto diferente na economia do sujeito (Melman 1999)

O trabalho adolescente se centra na produccedilatildeo de novos significantes reconhecendo a

filiaccedilatildeo mas desenlaccedilada da continuidade imaginaacuteria

Conclusatildeo

Ao abordar alguns autores com perspectiva teoacutericas diferentes sobre o tema da adoles-

cecircncia e psicanaacutelise constata-se que esta eacute compreendida como um trabalho psiacutequico

um movimento de elaboraccedilatildeo que natildeo trata dos efeitos da natureza e dos hormocircnios

mas da subjetividade A adolescecircncia eacute um tempo loacutegico um momento de re-signi-

ficaccedilatildeo e re-invenccedilatildeo da infacircncia marcada essencialmente pelas mudanccedilas corporais

pubertaacuterias e pelo desligamento das autoridades parentais Nesse encontro com o femi-

nino e com a incompletude da sexualidade o adolescente eacute intimado a buscar no mundo

novos investimentos libidinais e tomar uma posiccedilatildeo no sexual Ao ser convocado a ocu-

par esse novo lugar eacute feito ao adolescente uma exigecircncia de trabalho frente ao reencon-

tro (que jaacute fora encontrada mas adiada com a promessa edipiana) com a incompletude

Referecircncias

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366

Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional

MariaIzabelTafuri

DioneLulaZavaroni

MariadoRosaacuterioDiasVarela

MariaCiciliadeCarvalhoRibas

ClaudeSchauder

JanaiacutenaFranccedila

A paternidade tem uma longa histoacuteria mas quase nenhum historiador

J Demos (1986)

367Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional

Introduccedilatildeo

O presente trabalho eacute parte integrante dos estudos desenvolvidos no acircmbito da pesquisa

internacional ldquoPrevenccedilatildeo em Perinatalidaderdquo coordenaccedilatildeo internacional de Dr Claude

Schauder da Universidade de Strasbourg-Franccedila em cooperaccedilatildeo cientiacutefica com o Brasil

China Canadaacute e Ruacutessia

A equipe de Brasiacutelia eacute coordenada pelas Professoras Dras Maria Izabel Tafuri e Dione

Lula Zavaroni do Departamento de Psicologia Cliacutenica da Universidade de Brasiacutelia e

pela Prof Dra Maria do Rosaacuterio Dias Varella da Universidade Paulista (UNIP) Em Re-

cife a equipe estaacute sendo dirigia pelas Professoras Dras Maria Cicilia de Carvalho Ribas

e Paulina Rocha da Universidade Federal de Recife e do CPPL (Centro de Pesquisa em

Psicanaacutelise e Linguagem)

O objetivo aqui eacute o de expor de forma sinteacutetica as diretrizes da pesquisa e discutir os

dados parciais obtidos com os homens durante o primeiro trimestre de gestaccedilatildeo do

futuro filho

DiretrizesdaPesquisaInternacional

O objetivo geral eacute o de conhecer as expectativas e as demandas das mulheres e dos ho-

mens durante o periacuteodo perinatal ateacute o primeiro ano de vida da crianccedila Tanto as mulhe-

res quanto os homens passam por transformaccedilotildees diversas segundo os eventos objeti-

vos e subjetivos durante o tempo da gravidez e apoacutes o parto As histoacuterias pessoais as de

suas famiacutelias o contexto do nascimento marcam sobremaneira o processo do tornar-se

matildee e do tornar-se pai (Merg 2001 Theacutevenot 2003 2006a Lesourd 2003 Willerval-

-Chevaleacuterias 1999 Schauder 2007) Leva-se em conta a evoluccedilatildeo das representaccedilotildees

de identidade sexual e de identidade de gecircnero das uacuteltimas deacutecadas durante o periacuteodo

gestacional (Dufour et Lesourd 2007) E ainda as representaccedilotildees de novas formas de

organizaccedilotildees das famiacutelias (Hurstel 1996 2001 Schauder 2000 2006 Casper et al

2006 Theacutevenot 2005 2006a)

Os resultados esperados podem ser situados em dois niacuteveis o teoacuterico que visa aprofun-

dar os conhecimentos sobre o trabalho psiacutequico singular das mulheres e dos homens

durante o periacuteodo perinatal quanto agraves representaccedilotildees do ldquotornarem-se paisrdquo O outro

368

niacutevel o operacional objetiva melhorar as ferramentas de avaliaccedilatildeo das demandas en-

contradas pelos homens e mulheres durante este periacuteodo elaborar proposiccedilotildees de pre-

venccedilatildeo e promoccedilatildeo em sauacutede mental em perinatalidade e na primeira infacircncia

Em relaccedilatildeo agrave amostra durante o periacuteodo da gravidez as entrevistas semi dirigidas estatildeo

sendo realizadas em trecircs momentos antes da 12ordf semana entre 4ordm e 6ordm mecircs e no fim da

gravidez entre o 8ordm e o 9ordm mecircs Em seguida a quarta entrevista apoacutes o nascimento da

crianccedila e a uacuteltima no primeiro ano de vida da crianccedila para observarmos os efeitos da

parentalidade sobre o desenvolvimento da crianccedila e dos pais

Quanto agrave metodologia iremos analisar os dados por meio de anaacutelise de conteuacutedo em

dois eixos de pesquisa o diacrocircnico e o sincrocircnico O primeiro para analisar a dimen-

satildeo do tempo e de seus efeitos sobre o sujeito a dimensatildeo singular ligada agrave constituiccedilatildeo

subjetiva tanto da mulher quanto do homem O sincrocircnico objetiva aproximar a di-

mensatildeo coletiva das representaccedilotildees das mulheres e dos homens comparadas segundo

os aspectos culturais dos paiacuteses envolvidos no projeto (Franccedila Canadaacute Brasil China e

Ruacutessia) classes sociais e meios soacutecio-econocircmicos

Terminologiaalgumasconsideraccedilotildees

Segundo Maria Ceciacutelia Pereira da Silva tradutora de uma importante obra de Solis-Pon-

ton (2006) o termo parentalidade foi criado no Brasil assim como na Franccedila (parentali-

teacute) e nos Estados Unidos (parenthood) por se tratar de um neologismo fundamental para

o entendimento do complexo processo do tornar-se pai e tornar-se matildee O neologismo foi

descrito pela primeira vez em 1956 por Therese Benedek nos Estados Unidos e poste-

riormente por Paul-Claude Racamier (1961) na Franccedila Paralelamente agrave criaccedilatildeo do neo-

logismo parentalidade o de paternalidade tambeacutem comeccedilou a ser utilizado para evocar

especificamente o aspecto dinacircmico e processual da vivecircncia do homem em tornar-se

pai O processo da paternalidade caracteriza-se pelo confronto vivenciado pelo homem

diante das transformaccedilotildees profundas de identidade e da revivecircncia de conflitos arcaicos

caracterizando-se como uma nova fase evolutiva da personalidade (Benedek1959)

Vale considerar que na pesquisa em curso os termos tornar-se pai e tornar-se matildee seratildeo

utilizados em detrimento do neologismo criado parentalidade por denotarem de forma

369Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional

mais sensiacutevel e individualizada o complexo processo de transformaccedilotildees pessoais dos

homens e das mulheres no periacuteodo perinatal

Tornar-se pai umdesafioparaamodernidade

Estudos empiacutericos sobre a famiacutelia e o casamento na contemporaneidade revelam que

apesar da diversidade e flexibilidade de modelos conjugais e arranjos familiares propos-

tos na atualidade existe um descompasso entre velhos e novos modelos de conjugali-

dade de vida familiar e de exerciacutecio da parentalidade (Diniz 2009 Jablonski 2009)

Com um nuacutemero cada vez maior de mulheres ingressando no mercado de trabalho e

conquistando a independecircncia econocircmica ocorreram novos arranjos familiares com

significativa mudanccedila nas relaccedilotildees entre homens e mulheres como a separaccedilatildeo entre

papeacuteis conjugais e papeacuteis parentais (Moraes 2001) Se de um lado o homem ainda

guarda consigo a imagem do pai provedor de outro as famiacutelias buscam se organizar

formando casais de dupla renda ou de dupla carreira Emerge entatildeo uma nova figura

paterna natildeo ancorada apenas no poder econocircmico (Souza 1994)

Muraro (1996) realizou um importante estudo de campo com 1269 homens e mulhe-

res do Rio de Janeiro Satildeo Paulo e Pernambuco Considerou que haacute uma forte tendecircncia

da mulher para trabalhar fora Segundo a autora 50 das mulheres estatildeo no domiacutenio

puacuteblico e reivindicam o compartilhamento do trabalho domeacutestico A autora tambeacutem

considerou que essa eacute uma tendecircncia que leva a uma modificaccedilatildeo na estrutura psiacutequica

da crianccedila futuro adulto transforma as organizaccedilotildees familiares e em uacuteltima instacircncia

a organizaccedilatildeo social

Ramires (1997) realizou um estudo sobre o exerciacutecio da paternidade em famiacutelias de

classe meacutedia urbana nucleares e monoparentais no estado do Rio Grande do Sul Den-

tre os dados apresentados pela autora o que mais chamou a atenccedilatildeo foi a queixa dos

homens sobre o monopoacutelio da matildee com a crianccedila e o sentimento de exclusatildeo deles nos

cuidados com os filhos Para o autor ainda permanece na cultura dessas famiacutelias o pa-

pel predominante do exerciacutecio da maternagem na criaccedilatildeo das crianccedilas

Dib (1997) identificou uma necessidade premente dos pais em se diferenciarem dos

proacuteprios pais no sentido de natildeo repetirem erros do passado em especial o distancia-

370

mento afetivo dos filhos e o papel secundaacuterio na educaccedilatildeo Segundo Jablonski (1999)

os papeacuteis de pai e de matildee natildeo fugiram muito ao convencional o pai interage de uma

forma fiacutesica em relaccedilatildeo aos cuidados materiais E interage menos intimamente falan-

do como nos jogos nas brincadeiras e na diversatildeo Os assuntos relacionados agrave educa-

ccedilatildeo proteccedilatildeo e afetividade caberiam exclusivamente agrave matildee

Para Diehl (2002) os homens demonstraram vontade em participar mais diretamente

da educaccedilatildeo e dos cuidados com os filhos e consideraram as necessidades da mulher

em natildeo viver apenas em funccedilatildeo da guarda dos filhos Outro estudo realizado em Porto

Alegre por Piccinini e al (2004) sobre as crenccedilas e as expectativas do papel paterno

na criaccedilatildeo dos filhos em idade preacute-escolar revelou a importacircncia para os pais contem-

poracircneos em participarem de forma mais ativa na vida dos filhos e se mostrarem mais

satisfeitos com a paternidade

Em um importante estudo realizado por Bornholdt Wagner e Staedt (2007) sobre a vi-

vecircncia da gravidez do primeiro filho na perspectiva paterna populaccedilatildeo do Rio de Janei-

ro constatou-se que na representaccedilatildeo dos papeacuteis masculinos e femininos prevaleceram

os estereoacutetipos de gecircnero que reforccedilam a dicotomia entre casais Muitos pais tiveram

maior necessidade de serem os principais provedores financeiros no nuacutecleo familiar

principalmente com a chegada dos filhos e tenderam a trabalhar mais para dar seguran-

ccedila financeira agrave famiacutelia Segundo este estudo os pais desejaram uma maior proximidade

e participaccedilatildeo durante a gestaccedilatildeo e no desenvolvimento dos filhos Dar suporte agrave com-

panheira em relaccedilatildeo ao atendimento das necessidades delas colocando muitas vezes

em segundo plano as suas proacuteprias foi uma das formas mais usuais encontradas pelos

homens para se sentirem mais proacuteximos da gravidez e do futuro filho

Um dado importante no estudo de Bornholdt et al (2007 ) que vem reforccedilar os achados

de Ramires (1997) foi o sentimento de exclusatildeo expresso pelos homens no periacuteodo da

gravidez com distintas variaccedilotildees de intensidade Alguns pais justificaram o sentimento

de exclusatildeo a partir das diferenccedilas de gecircnero e atribuiram agraves mulheres uma maior faci-

lidade no cuidado dos filhos como uma espeacutecie de habilidade natural feminina

371Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional

Amostraeanaacutelisedosdados

Caracteriacutesticas da Amostra para o presente estudo foram considerados os sujeitos do

sexo masculino (n = 17) cujas companheiras estavam no primeiro trimestre de gravidez

Estes sujeitos representam 4359 da amostra total da pesquisa que considera homens

e mulheres graacutevidas Os participantes foram recrutados em consultoacuterios privados de

ginecologistas e obstetras da regiatildeo e em hospitais puacuteblicos da cidade de Brasiacutelia e en-

torno e satildeo oriundos das classes sociais A B C e D A maioria da amostra tem mais de

12 anos de escolaridade

Em relaccedilatildeo ao estado civil 7059 dos participantes satildeo casados enquanto 2941 vi-

vem em uniatildeo estaacutevel Relativamente ao planejamento da gravidez 8235 dos sujeitos

relata o pla nejamento da gravidez e 1765 natildeo fizeram planejamentos Verificou-se

que 7058 da amostra afirmam que desejaram a gravidez enquanto 2942 dos su-

jeitos afirmam que aceitaram a gravidez porque aconteceu ou Deus mandou

Anaacutelise Diacrocircnica verificou-se que 94 dos homens tecircm expectativas em relaccedilatildeo aos

profissionais da sauacutede quanto os cuidados agrave gestante agraves condiccedilotildees para o parto (hos-

pital equipe de enfermagem etc) e agrave sauacutede do receacutem-nascido Esperam ter confianccedila

nos profissionais da sauacutede e para isso consideram importante a competecircncia e o co-

nhecimento teacutecnico a afetividade do profissional a continuidade dos cuidados desde a

gestaccedilatildeo ateacute o parto a atenccedilatildeo e a disponibilidade irrestrita Tais expectativas podem ser

evidenciadas nas seguintes falas

ldquoem relaccedilatildeo aos profissionais que vatildeo cuidar dela () espero que tenha atenccedilatildeo que a gente tenha um trabalho contiacutenuo principalmente do bebecirc Eu natildeo sei ateacute quando quando se desvincula do pediatra realmente eu natildeo seirdquo (P1)

ldquoeu acho que o mais importante eacute o suporte cientiacutefico neacute assim tranquumlilizar a matildee algumas vezessatildeo os mesmos profissionais que nos acompanham a S jaacute conhece a meacutedica dela haacute uns quinze anosrdquo (P5)

ldquoeu acompanhei jaacute todas as ecografias eu achei a profissional muito de confianccedila achei ela muito simpaacutetica muito receptiva () minha esposa escolheu a meacutedica porque jaacute conhecia ela do hospital e ela queria parto normal e sabia que essa meacutedica fazia parto normal () ela jaacute sabe quem vai ser o pediatra do bebecirc tambeacutemrdquo (P7)

372

Em relaccedilatildeo agrave categoria ldquoExpectativas em relaccedilatildeo ao si mesmordquo mais da metade dos

homens se colocou como coadjuvante (58) um terccedilo deles se sente pai desde o iniacutecio da

gestaccedilatildeo (30) e uma pequena percentagem se diz pai provedor (12)

No papel de coadjuvante o homem se vecirc como aquele que necessita acompanhar com-

preender e satisfazer as necessidades e desejos da mulher graacutevida Surgiram sentimen-

tos tanto positivos quanto negativos em relaccedilatildeo agrave funccedilatildeo de coadjuvante desempenhada

pelo homem Ora ele se mostrou contente e feliz por estar acompanhando a mulher

nas consultas meacutedicas ajudando-a a desempenhar tarefas como tambeacutem indicou certo

mal estar por ter que compreender e satisfazer as necessidades da graacutevida Mostrou-se

tambeacutem confuso em discernir as verdadeiras necessidades de uma mulher graacutevida

Muitas vezes a mulher apresenta queixas excessivas e lsquogravidez natildeo eacute doenccedilarsquo como

disse um dos sujeitos entrevistados Para alguns homens as queixas de preguiccedila sono

e cansaccedilo da mulher natildeo satildeo necessariamente da gravidez como se pode verificar nas

falas apresentadas a seguir

ldquota muito difiacutecil natildeo sei se foi por causa da gravidez comeccedilou ficar mais chata a coisa tem que saber entender o lado dela Eu nunca tive filho mas me falaram que mulher quando ta nessa fase realmenteah a gente tem que saber entender Eu to entendendo ela devagarrdquo (P6)

ldquonatildeo eacute todo dia que a gente tem a mesma paciecircncia a gente tambeacutem fica estressado sai cedo de casa passa duas horas dentro do ocircnibus com monte de gente barulhos essas coisas toda chega em casa agraves vezes ela quer conversar e sempre o estresse da gente natildeo tem coragem de chegar para conversar Pocirc o fulano ta cansado aiacute do mesmo jeito eu me sinto () Depois dessa gravidez parece que a gente taacute se afastandordquo(P 17)

ldquoo comportamento dela assim todo mundo sabe que a mulher quando engravida muda o comportamento neacute () o que me incomoda eacute a falta de paciecircncia dela em natildeo aceitar os enjocircos gravidez natildeo eacute doenccedila () os profissionais tinham que aconselhar mais nissordquo(P17)

Entre os homens que se sentiram pai desde o iniacutecio da gestaccedilatildeo surgiram referecircncias

quanto agrave filiaccedilatildeo agraves lembranccedilas da infacircncia em torno da figura paterna e questotildees sobre

a maneira como foram criados A maioria destes homens apresentou uma identifica-

ccedilatildeo positiva com o seu proacuteprio pai mas natildeo quer repetir os erros do passado como no

exemplo

373Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional

ldquoeu vou ser pai natildeo eu jaacute sou pai eacute natildeo tinha esse eu vou ser natildeo eu jaacute sou pai entatildeo eu jaacute sou pai neacute porque ali dentro jaacute bate jaacute tem uma vida jaacute eacute meu filho eacute um sentimento assim mais aprofundado Na minha ausecircncia ele fica agitado na minha presenccedila ele se acalma entatildeo acho que eacute assim uma base de seguranccedila de tranquumlilidade acho que eacute algo assim algo que vai te amadurecendo e hoje eu sei que haacute diferenccedila de ser pai o peso de ser pairdquo (P11)

ldquoesse sentimento eacute uma emoccedilatildeo inexplicaacutevel assim como meu pai falava natildeo tem como eacute um filho eacute um filhonatildeo eacute um objeto que vocecirc ganhouOacute ganhei uma bicicleta natildeo eacute isso eacute algo muito maiseacute igual matemaacutetica eacute infinitonatildeo tem como explicar natildeo tem caacutelculo natildeo tem peso neacute (P11)

Cramer e Palaacutecio-Espasa (1993) entendem que as projeccedilotildees e as expectativas de pais e

matildees em relaccedilatildeo ao filho satildeo muito semelhantes apesar de as mulheres vivenciarem

mais intensamente as transformaccedilotildees fisioloacutegicas da gestaccedilatildeo Poder-se-ia pensar en-

tatildeo que o conceito tradicional de bebecirc imaginaacuterio (Souleacute 1987) inicialmente formu-

lado para explicar as expectativas e representaccedilotildees que a matildee constroacutei acerca do bebecirc

mesmo antes de seu nascimento e ateacute de sua concepccedilatildeo (Szejer amp Stewart 1997) esteja

tambeacutem presente no psiquismo do pai

Em relaccedilatildeo aos homens classificados como pais provedores apareceu a necessidade de

atender agraves demandas mais concretas como por exemplo o caacutelculo financeiro do custo

de um filho a reforma da casa os moacuteveis a serem comprados etc Como se pode veri-

ficar nas falas a seguir

ldquoTudo taacute sendo novo Natildeo passa pela minha cabeccedila natildeo caiu a ficha que ela ta graacutevida () De vez em quando eu fico revoltado porque eu to desempregado aiacute eu comeccedilo a pensar que daqui uns dias a crianccedila vem e vai ter que comprar algumas coisasrdquo (P6)

ldquoE o que vocecirc faz Vocecirc deixa em creche deixa com babaacute (hellip) mas (hellip) haacute e quanto custa o bebecirc por mecircs rdquo (P7)

ldquoEu tenho trabalhado muito e agraves vezes quando eu paro em casa e penso eacute que tenho a noccedilatildeo exata do que eacute assim ser pairdquo (P9)

Anaacutelise Sincrocircnica O dado mais significativo encontrado foi a ausecircncia de expectativas

dos homens em relaccedilatildeo a eles mesmos diante da equipe de sauacutede no periacuteodo perinatal Ou

seja as expectativas dos homens foram direcionadas para a sauacutede da mulher e do bebecirc

Eles natildeo se colocaram para a equipe de sauacutede como sujeitos queixosos inseguros em

374

busca de informaccedilatildeo e aprendizagem quanto ao processo do tornar-se pai Aleacutem disso

natildeo se mostraram desejosos em obter orientaccedilotildees quanto agraves futuras accedilotildees parentais

Para os homens os profissionais da sauacutede cuidam da gestante e do bebecirc eles apenas

observam acompanham e datildeo suporte agrave gestante Em suma os homens natildeo se viram

como sujeitos a serem escutados cuidados eou educados a tornar-se pai Por outro lado

demonstram interesse nas orientaccedilotildees que os profissionais da sauacutede possam dar para

as graacutevidas

Nos centros puacuteblicos de sauacutede onde satildeo realizados os exames preacute-natais como tam-

beacutem nos consultoacuterios dos ginecologistas haacute uma carecircncia de redes de escuta para os

homens corroborada pelos estudos de Bornholdt et al (2007) Seria necessaacuterio sensibi-

lizar os profissionais de sauacutede para ver o homem como sujeito a ser escutado tratado e

acompanhado em suas especificidades

No Brasil foi realizado um interessante estudo sobre as causas possiacuteveis dos homens

procurarem menos os serviccedilos de sauacutede do que as mulheres (Gomes e Resende 2004)

Os autores reforccedilaram estudos que apontam as diferenccedilas de papeacuteis segundo o gecircnero

presentes no imaginaacuterio social Os cuidados com a sauacutede estatildeo muito mais voltados

para a mulher O sentimento de invulnerabilidade foi visto como um dos eixos da cons-

truccedilatildeo da masculinidade Esse mesmo estudo apontou para a falta de rede de unidades

de sauacutede especiacuteficas para o acolhimento do homem Os serviccedilos de sauacutede foram con-

siderados pouco aptos em absorver a demanda apresentada por esse segmento e as

campanhas de sauacutede puacuteblica natildeo se voltam para o puacuteblico masculino Tem havido uma

preocupaccedilatildeo maior do Ministeacuterio da Sauacutede no sentido de sensibilizar o homem a pro-

curar os centros de sauacutede para fazerem exames de rotina receberem vacinas fazerem

controle de doenccedilas crocircnicas como as de pressatildeo alta diabetes etc

Outro dado evidenciado pela anaacutelise sincrocircnica eacute o mal estar do homem face agrave vivecircncia do

ser coadjuvante O homem pareceu estar exposto a um fator de risco psicossocial por natildeo

encontrar escuta agraves suas inquietaccedilotildees pessoais no periacuteodo gestacional Ele se mostrou

em alguns casos ansioso e estressado sem vontade de conversar irritado cansado e in-

compreendido durante o periacuteodo gestacional Reclamou de forma sutil da necessidade

em ser mais compreensivo calmo flexiacutevel e companheiro da sua mulher entretanto

quem o compreende

375Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional

Foi possiacutevel visualizar o esforccedilo do homem em desenvolver capacidades psiacutequicas espe-

ciacuteficas aquelas referentes agrave repressatildeo de suas proacuteprias necessidades e desejos em fun-

ccedilatildeo do bem estar do outro no caso a graacutevida e o bebecirc O homem pareceu natildeo encontrar

espaccedilo entre os profissionais de sauacutede e nem mesmo entre os amigos familiares para

se queixar desse mal estar Parece faltar ao homem uma rede de escuta tanto dos pro-

fissionais da sauacutede como tambeacutem da famiacutelia e do grupo social no qual estaacute incluiacutedo o

que tambeacutem foi evidenciado nos trabalhos cirtados de Ramires 1997 Dib 1997 e Bor-

nholdt et al 2007 Por outro lado assim como apontado por Bornholdt et al (1997) os

dados da presente pesquisa tambeacutem apontaram para o contentamento e satisfaccedilatildeo dos

homens em desempenhar as funccedilotildees de companheiros e provedores

Segundo Vasconcellos (2003) face agraves importantes transformaccedilotildees contemporacircneas dos

papeacuteis de gecircnero observa-se ainda uma demanda cultural de maior implicaccedilatildeo do pai

no cenaacuterio puerperal A submissatildeo dos homens a esta nova ordem cultural suscita an-

guacutestias especificas ligadas agrave identidade de gecircnero masculino Um paradoxo se instala-

ria ao se adequar agrave demanda de ser sensiacutevel agrave experiecircncia da mulher o homem deve

recalcar seu proacuteprio conflito a perda de autonomia e a imersatildeo numa identidade femi-

nina primaacuteria (Ferreira Leal amp Maroco 2010 Budur Mathews amp Mathews 2005 Go-

mes e Resende 2004 Piccinini et al 2004) E mais recentemente Martini Piccinini e

Gonccedilalves (1999) descrevem a inveja inconsciente dos homens em relaccedilatildeo ao poder de

procriaccedilatildeo das mulheres como uma forma de identificaccedilatildeo com a gravidez eou com

o papel materno Trabalhos esses que nos ajudam a pensar no mal estar do homem ao

cumprir o papel de coadjuvante

A ambivalecircncia em relaccedilatildeo ao tornar-se pai surgiu tambeacutem em relaccedilatildeo agraves demandas

sociais sobre a eles sobre a escolha do nome a forma como a famiacutelia iraacute se organizar

sobre o sexo do bebecirc quando o bebecirc iraacute nascer etc Alguns homens se mostraram as-

sustados e ansiosos face agraves exigecircncias sociais desde o momento em que datildeo a notiacutecia da

gravidez As queixas mais frequentes em torno dessa ansiedade foram ldquofoi tudo muito

raacutepidordquo ldquoa ficha ainda natildeo caiu que eu vou ter um filhordquo ldquoeu tenho medo de contar pras

pessoas da gravidez ainda ta tudo muito recenterdquo ldquoeu tou assustado fica todo mundo

perguntando e aiacutejaacute escolheu o nome como eacute que vai serrdquo

376

Consideraccedilotildeesfinais

As pesquisas sobre os possiacuteveis transtornos psicoloacutegicas passiacuteveis de ocorrerem nos

homens durante o periacuteodo perinatal e poacutes-nascimento do bebecirc satildeo ainda escassas se

comparadas aos estudos existentes sobre os quadros psicopatoloacutegicos jaacute descritos em

relaccedilatildeo agraves mulheres As representaccedilotildees psicossociais de pai ausente excluiacutedo e pouco par-

ticipativo presentes na nossa amostra precisam ser mais refletidas no contexto cultural

social e meacutedico psicoloacutegico da realidade atual brasileira Entretanto os dados aponta-

ram para uma demanda reprimida dos homens em relaccedilatildeo agrave funccedilatildeo paterna a de serem

mais participativos mais envolvidos na educaccedilatildeo dos filhos Em relaccedilatildeo aos profissio-

nais de sauacutede os homens demandaram uma atenccedilatildeo mais individualizada e um espaccedilo

cliacutenico para serem escutados e tratados

Em suma a criaccedilatildeo de programas de sauacutede em perinatalidade e primeira infacircncia pre-

cisa levar em conta as expectativas queixas e demandas dos homens em relaccedilatildeo aos

profissionais da sauacutede agraves famiacutelias agraves mulheres em fim ao contexto social nos dias

de hoje As referecircncias passadas tanto para os profissionais da sauacutede quanto para os

pais natildeo satildeo mais suficientes para dar conta das demandas do tornar-se pai nos dias de

hoje Refletir o complexo processo do ser pai e ser matildee assim como o de ser profissional

da sauacutede em perinatalidade eacute certamente um dos grandes desafios dos homens e das

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380

Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

IlenoIziacutediodaCosta

NeriacuteciaReginadeCarvalho

Introduccedilatildeo

Os serviccedilos de psiquiatria ateacute a deacutecada de 90 trabalhavam acreditando ser cliacutenica e eti-

camente correto retardar o tratamento em situaccedilotildees de crise psicoacutetica ateacute a definiccedilatildeo de

um diagnoacutestico a ser estabelecido (McGlashan amp Cols 2001) Contrariamente evidecircn-

cias que apontam a intervenccedilatildeo precoce como novo paradigma de tratamento em vez

de um simples paliativo vecircm questionando e alterando esse panorama (Amminger amp

Cols 2002) o que contribui para o aumento de estudos sobre o iniacutecio da manifestaccedilatildeo

da ldquopsicoserdquo criando-se divisotildees didaacuteticas natildeo necessariamente sindrocircmicas sobre seu

desenvolvimento como primeiro episoacutedio primeira crise e proacutedromos Todas aliaacutes

381Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

pontos centrais da discussatildeo que ora empreenderemos sobre intervenccedilatildeo precoce e iniacute-

cio do ldquoadoecimento mentalrdquo37

A psicose eacute em geral definida como uma perturbaccedilatildeo grave da realidade o que eacute evi-

denciado pela falta de discernimento na natureza patoloacutegica de alucinaccedilotildees ou deliacuterios

ou pela desorganizaccedilatildeo cognitiva e comportamental fazendo parte das siacutendromes de

transtornos psicoacuteticos como esquizofrenia e transtorno esquizoafetivo pondendo sur-

gir tambeacutem em outros transtornos psiquiaacutetricos em especial os transtornos afetivos

(APA 1994)

Ao se fazer uma revisatildeo histoacuterica do que se teoriza e se pesquisa sobre psicose e esqui-

zofrenia observa-se que esta aponta para dois subgupos principais os que apresentam

ldquocaracteriacutesticas preacute-moacuterbidas precoces e bem delineadas desde a mais tenra infacircnciardquo e

os que seguem ldquodesenvolvimento normal durante a infacircnciardquo e apenas posteriormente

apresentam as primeiras alteraccedilotildees no comportamento (Foller Torrey e cols 1994 Mur-

ray e cols 1992 Neumann e cols 1995 Rossi e cols 2000)

Estudos retrospectivos tecircm demonstrado que a maioria das pessoas com esquizofrenia

ou em crise psicoacutetica experienciaram uma fase prodrocircmica antes da primeira crise

(McGorry e cols 2001) independente do subgrupo ao qual pertenccedilam Os proacutedromos

satildeo portanto nesta perspectiva como veremos adiante ldquoos primeiros sinais e sintomas

que antecedem uma crise psicoacuteticardquo A maior parte dos transtornos psicoacuteticos manifes-

ta-se inicialmente na adolescecircncia eou idade adulta jovem e se relaciona diretamente agrave

vulnerabilidade para recaiacutedas e decliacutenio do funcionamento social (Lincoln amp McGorry

1995)

Para muitos autores a adolescecircncia e a idade adulta jovem constituem o intervalo do

ciclo de vida em que se manifestam mais frequumlentemente os primeiros indiacutecios de

transtornos psicoacuteticos e particularmente da esquizofrenia (Cooper amp Cols 1987 Mari

2001 Mueser amp McGurk 2004 OMS 2001 Kosky amp Hardy 1992) Aberastury (1991)

37 Trabalho resultante de financiamentos de pesquisa MCTCNPqMS (20082010) e CNPq (20102012)

382

dentro da perspectiva psicanaliacutetica descreveu-as como luto e Marcelli e Braconnier

(2007) como alteraccedilotildees intrapsiacutequicas na adolescecircncia evidenciando trecircs principais

dimensotildees que se operam nessa fase a corporal (o corpo infantil perdido) a imagem

idealizada dos pais (a questatildeo da identidade) e os recursos fantasmaacuteticos proacuteprios da

infacircncia (o equiliacutebrio entre o investimento narciacutesico e o investimento objetal)

Portanto nessa fase eacute comum se apresentar comportamentos e queixas semelhantes

agravequeles descritos como sendo de proacutedromos (Huber amp Cols 1980 Eiguer 1985) Nem

sempre eacute claro distinguir entre um ldquoquadro psicoacuteticordquo ou uma ldquocrise da adolescecircnciardquo

podendo um transtorno inicial dar lugar a um dinamismo psiacutequico saudaacutevel que foi

interrompido momentaneamente ou em outros contextos tais situaccedilotildees levam o ado-

lescente a mergulhar progressivamente numa inquietaccedilatildeo e anguacutestia desestruturantes

(Marcelli amp Braconnier 2007)

Desta feita se os proacutedromos natildeo satildeo apenas marcadores mas estaacutegios em que se per-

cebe retro ou prospectivamente antes de seu iniacutecio ser identificado o paradigma interna-

cional da intervenccedilatildeo precoce defende que mais precoce e eficaz deve ser a intervenccedilatildeo

Seguindo esse raciociacutenio Eaton e Cols (1995) argumentaram que se tais sinais e sinto-

mas fossem tomados indubitavelmente como preditores de um transtorno natildeo seriam

proacutedromos e sim a manifestaccedilatildeo precoce daquele transtorno especiacutefico e enquanto

possiacuteveis preditores com certo grau de confiabilidade

O presente trabalho tem como objetivo problematizar o conceito de proacutedromos enquan-

to preditor de crise psicoacutetica dentro deste paradigma e (re)apresentar esta problemati-

zaccedilatildeo a partir da discussatildeo do construto ou de uma possiacutevel fenomenologia da crise

psiacutequica grave pelo que argumentamos Uma vez que os proacutedromos constituem uma

ldquoporta de acessordquo ao comportamento eou agrave vivecircncia de pessoas em crise podemos

antecipar nossa posiccedilatildeo de que eles estatildeo em nossa experiecircncia na entrada ldquosala de

entradardquo da ldquopossiacutevel casa da doenccedila mentalrdquo de forma latente e volaacutetil quanto a possi-

bilidades de desenvolvimentos e desfechos Contudo a maior parte da literatura da aacuterea

aqui coligida restringe-se a seu aparecimento e tratamento com pouca ou nenhuma

atenccedilatildeo aos aspectos subjetivos relacionais e afirmamos fenomenologicamente de

sua manifestaccedilatildeo

383Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

Assim faz-se necessaacuterio problematizar natildeo soacute o uso das intervenccedilotildees ateacute entatildeo de-

senvolvidas mas tambeacutem dos termos e conceitos que as embasam assim como seus

diversos contextos de significaccedilatildeo uma vez que existe uma grande quantidade de es-

tudos com descriccedilotildees e classificaccedilotildees prodrocircmicas em sua maioria pautada somente

no teor psicopatoloacutegico nosograacutefico tradicional em detrimento dos aspectos subjeti-

vos relacionais sistecircmicos ou mesmo fenomenoloacutegicos dessa experiecircncia positivos e

carregado de dimensotildees e potencialidades saudaacuteveis Procuraremos entatildeo apresentar

uma primeira aproximaccedilatildeo sobre a experiecircncia do Grupo de Intervenccedilatildeo Precoce em

Primeiras Crises do Tipo Psicoacutetica (GIPSI) do Laboratoacuterio de Psicopatologia e Lingua-

gem do Departamento de Psicologia Cliacutenica do Instituto de Psicologia da Universidade

de Brasiacutelia (UnB) com os estudos e serviccedilos em intervenccedilatildeo precoce nas psicoses evi-

denciadas nos estudos da aacuterea para apontar um campo de reflexatildeo estudo e pesquisa

necessariamente fenomenoloacutegico conclamando ldquopor uma experiecircncia fenomenoloacutegica

genuiacutena da crise psiacutequica graverdquo mais que da ldquodoenccedila mental a priorirdquo Desde 2001 o

grupo vem desenvolvendo estrateacutegias nas modalidades de acolhimento e atendimento

individuais familiares e atualmente psicossociais38 em situaccedilotildees de primeiras crises

psiacutequicas graves como apresentamos a seguir

ProacutedromosoldquogritodealertardquodoSofrimentoPsiacutequicoGrave

Segundo a perspectiva da Intervenccedilatildeo Precoce internacional o conceito de proacutedromos

se refere ao periacuteodo de tempo que antecede uma crise psicoacutetica ou a uma esquizofre-

nia manifestada atraveacutes de sinais e sintomas Contudo os proacutedromos enquanto sinal

semioloacutegico39 tambeacutem podem ser observados em outros momentos do ciclo de vida

que natildeo necessariamente vatildeo levar sintomatologicamente agrave ldquodoenccedila mentalrdquo Por isso

faz-se urgente uma discussatildeo que retome os vaacuterios contextos em que o conceito e a

vivecircncia se encontram e as consideraccedilotildees aos mesmos Neste trabalho indicamos ini-

cialmente a anaacutelise de alguns elementos conceituais da psicopatologia e da psiquiatria

38 Como define a Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira e o campo da Sauacutede Mental atual no Brasil

39 Tomamos aqui a posiccedilatildeo semioloacutegica de que os sinais assim como os sintomas satildeo signos ou fenocircmenos com muacuteltiplas possibilidades de significaccedilatildeo Desta feita quando falamos em sinais semioloacutegicos estamos defendendo esta qualidade do signo anterior agrave da sintomatologia

384

objetivando do ponto de vida da filosofia e da psicologia cliacutenica ampliar sua definiccedilatildeo

e os elementos que soacute aparecem no discurso ou na praacutetica cliacutenica

O termo vem do grego prodromos (pro antes em frente de para adiante dromos accedilatildeo de

correr lugar de corrida curso) e quer dizer ldquoaquilo que antecede um eventordquo ou aquilo

que leva a ele (Fava amp Kellner 1991 Carvalho e Costa 2006) Eacute derivado da medicina

(Yung amp Stanley 1989) e se refere aos primeiros sinais e sintomas que antecedem as

manifestaccedilotildees caracteriacutesticas de um quadro agudo e bem delineado de uma doenccedila

(Yung amp McGorry 1996) Eacute um conceito em sua essecircncia retrospectivo isto eacute validado

quando do diagnoacutestico ou manifestaccedilatildeo - de sinais e sintomas inequiacutevocos - de uma

patologia (Yung e McGgorry 1996 Yung e Cols 2004 Neubeck 2008)

Nesta discussatildeo os proacutedromos definem dois momentos da psicose aquele que antece-

de a primeira crise propriamente dita e as situaccedilotildees anteriores a cada recidiva (McGorry

amp Edwards 2002 Carvalho e Costa 2006) Para Keith e Mathews (1991) seria um

grupo de comportamentos heterogecircneos relacionados com o iniacutecio da psicose Yung e

McGorry (1996) empreenderam a mais vasta revisatildeo de literatura ateacute o momento (73

artigos e trecircs manuais) sobre identificaccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo de proacutedromos defendendo

a tese corroborada pelos autores pesquisados Trata-se de um processo que envolve al-

teraccedilotildees da experiecircncia e do comportamento muito mais do que uma lista de sinais e

sintomas (Huber e Cols 1980 Hafner e Cols 1992 Hambrecht e Cols 1994)

CaracterizaccedilatildeoeCurso

Segundo Jackson (1994) a confiabilidade de alguns itens da fase prodromica depende

do instrumento a ser utilizado bem como do julgamento de quem observa Aleacutem disso

quando esses criteacuterios satildeo utilizados em populaccedilotildees de primeiro episoacutedio psicoacutetico eles

natildeo parecem ser especiacuteficos para esquizofrenia mas tambeacutem para outros transtornos

(Jackson 1995) Jackson e Cols (1995) propuseram que pacientes com diagnoacutestico de

esquizofrenia tecircm mais probabilidade de apresentar proacutedromos do que os pacientes

diagnosticados com outros transtornos ainda que esses sintomas natildeo fossem exclu-

sivos da esquizofrenia daiacute o fato de se reconhecer ldquoproacutedromos de psicoserdquo e natildeo de

esquizofrenia

385Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

Outro fator que torna o uso de criteacuterios bastante problemaacutetico eacute que sintomas atenua-

dos de psicose ou experiecircncias tidas como tal satildeo vivenciados pela populaccedilatildeo em geral

em taxas superiores agravequelas encontradas em pacientes e participantes de pesquisas (Pe-

ters e Cols 1999 Van Os e Cols 2000 2001 Peters 2001)

O iniacutecio da doenccedila seria quando o paciente vivencia pela primeira vez os proacutedromos e

o iniacutecio do episoacutedio quando dos primeiros sintomas psicoacuteticos (Keshavan amp Schooler

1992) A identificaccedilatildeo de um iniacutecio passa pela sobreposiccedilatildeo das informaccedilotildees do relato

do proacuteprio sujeito de seus familiares e amigos e do julgamento do profissional que os

atendeu sobre a crise Como satildeo em sua maioria tomados em retrospectiva se baseiam

na maneira como satildeo relembrados e relatados Assim aqueles aspectos que foram mais

marcantes tendem a ficar na memoacuteria de forma mais viacutevida indicando que os fatores

e fatos processuais correntes que natildeo da ordem da crise satildeo em geral negligenciados

ou parcamente abordados Essas condiccedilotildees tem implicaccedilatildeo direta no prognoacutestico sobre

a situaccedilatildeo Contudo eacute sempre um momento fecundo para se acessar o conteuacutedo afetivo

e existencial do indiviacuteduo

A tabela a seguir proposta por Yung e McGorry (1996) nos daacute uma ideia da quantidade

de sinais e sintomas que podem ser tomados enquanto proacutedromos E tem caraacuteter ilus-

trativo pois haacute uma grande quantidade de artigos cientiacuteficos atuais que trazem outras

listas e quadros demonstrativos de sinais e sintomas prodrocircmicos Esses mesmos arti-

gos apresentam outras delimitaccedilotildees de proacutedromos muitas mais do que seratildeo aborda-

das nesse trabalho contudo a ideia central permanece

386

Tabela 1 Resumo da Revisatildeo da Literatura (Yung e McGorry 1996)

Estudos de sinais e sintomas prodrocircmicos observada em ampla revisatildeo de literatura

Sintomas ldquoneuroacuteticosrdquo ansiedade intranquilidade raiva irritabilidade

Sintomas relacionados ao humor depressatildeo anedonia culpa ideias suicidas oscilaccedilotildees de humor

Mudanccedila na voliccedilatildeo apatia perda de desejo aborrecimento perda de interesse fadiga perda de energia

Mudanccedilas cognitivas distuacuterbios da atenccedilatildeo dificuldade para concentraccedilatildeo preocupaccedilatildeo devaneio bloqueio do pensamento abstraccedilatildeo reduzida

Sintomas fiacutesicos queixas somaacuteticas perda de peso perda do apetite distuacuterbios do sono

Outros sintomas manifestaccedilotildees obsessivo compulsivas manifestaccedilotildees dissociativas sensibilidade interpessoal aumentada mudanccedilas no sentido do eu dos outros ou do mundo mudanccedilas na mobilidade anormalidades da fala anormalidades perceptuais desconfianccedila mudanccedila no afeto

Mudanccedilas comportamentais deterioraccedilatildeo no funcionamento na escola no trabalho ou em outros papeacuteis isolamento social impulsividade comportamento estranho agressividade comportamento perturbador

Loebel e Cols (1992) consideram os proacutedromos como o intervalo de tempo que vai do

iniacutecio de qualquer conduta atiacutepica ateacute o iniacutecio de sintomas propriamente psicoacuteticos

Conduta atiacutepica enquanto qualquer alteraccedilatildeo percebida como diferente ou incomum

agravequele indiviacuteduo e sintomas positivos como as manifestaccedilotildees disfuncionais ou exces-

sivas que se percebe Essas duas concepccedilotildees apontam para outro grande desafio do

conceito sua delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal Todavia grande parte dos autores divide o

curso do transtorno psicoacutetico mormente a esquizofrenia em trecircs fases 1) periacuteodo preacute-

-moacuterbido 2) fase prodrocircmica e 3) psicose aguda (Haas amp Sweeney 1992 Keshavan amp

Schooler 1992 Loebel amp Cols 1992)

O periacuteodo preacute-moacuterbido eacute identificado como o funcionamento psicossocial individual

antes do iniacutecio da doenccedila Tal concepccedilatildeo eacute recente e baseada em estudos utilizando a

Escala de Ajustamento Preacute-moacuterbido (Premorbid Ajustment Scale - PAS Cannon-Spoor

amp Cols 1982) que avalia o funcionamento social sexual e instrumental durante os

387Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

diferentes periacuteodos de seu desenvolvimento Os uacuteltimos periacuteodos satildeo descritos por Abe-

rastury (1991) como tiacutepicos de manifestaccedilotildees prodrocircmicas pois apontam mudanccedilas no

ciclo de vida

O termo preacute-moacuterbido pode se referir a um estado normal ou natildeo patoloacutegico o que pode

dar margens a imprecisatildeo e enganos porque essa identificaccedilatildeo costuma se referir ao

que eacute observado no comportamento e na funcionalidade o que natildeo necessariamente

reflete a disposiccedilatildeo subjetiva do indiviacuteduo Um subtipo de ldquodeterioraccedilatildeo preacute-moacuterbidardquo

tem sido descrito como a primeira manifestaccedilatildeo da psicose em que caberia a utilizaccedilatildeo

dos termos preacute-iniacutecio ou preacute-proacutedromo (Larsen amp Cols 1996) Apontaremos aqui para

uma anterioridade aos primeiros episoacutedios que caminham no sentido do vislumbra-

mento da estruturaccedilatildeo do proacuteprio sofrimento psiacutequico que em sua exarcebaccedilatildeo como

defenderemos a seguir estruturam o sofrimento psiacutequico grave e sua subsequente ma-

nifestaccedilatildeo na forma de crise

Essa dificuldade de delimitaccedilatildeo eacute mais um aspecto a ser considerado na operacionaliza-

ccedilatildeo do conceito pois se pensarmos que os proacutedromos se referem a um periacuteodo anterior

agrave primeira crise psicoacutetica e tambeacutem a cada recidiva entatildeo o conceito comporta um teor

tanto de aumento da vulnerabilidade quanto um caraacuteter de preacute-psicose

Yung e McGorry (1996) identificam ainda dois outros padrotildees de caracterizaccedilatildeo prodrocirc-

mica como outpost syndromes e the hybridinteractive model O primeiro foi descrito por

Huber e cols (1980) e Koehler e Sauer (1984) e deu origem ao termo Sintomas Baacutesicos

ndash a ser abordado no proacuteximo capiacutetulo ndash primeiramente descrito por Docherty e cols

(1978) como um estado residual observado em pacientes esquizofrecircnicos crocircnicos com

teor predominante de queixas subjetivas O segundo como a proacutepria definiccedilatildeo jaacute deixa

antever seria uma variaccedilatildeo interativa entre os dois padrotildees jaacute descritos combinado com

sintomas baacutesicos resultando em um modelo hiacutebrido que nos daacute uma variaccedilatildeo dos

possiacuteveis desfechos para uma situaccedilatildeo de crise em que haacute proacutedromos e reforccedila ainda

mais o caraacuteter de abrangecircncia de aspectos a serem considerados em tais casos Uma

configuraccedilatildeo do curso dos prodroacutemos mais didaacutetica e linear que a anterior foi proposta

por Larsen e Cols (1996) Eacute adequada para visualizarmos uma linha do tempo sobre as

modificaccedilotildees na vivencia e no comportamento contudo obedece a um modelo sauacutede

doenccedila natildeo dialeacutetico

388

Figura 2 Curso precoce da esquizofrenia (Larsen e Cols 1996)

No entanto Yung e McGorry (1996) descreveram na linha do tempo quatro marcos

importantes geralmente percebidos no relato retrospectivo da crise 1) momento em

que o proacuteprio sujeito percebe alguma alteraccedilatildeo em si mesmo que ainda natildeo eacute sintoma

psicoacutetico 2) momento em que um familiar ou amigo percebe alguma alteraccedilatildeo tambeacutem

natildeo psicoacutetica 3) quando o proacuteprio sujeito percebe alguma alteraccedilatildeo que jaacute se considera

sintoma psicoacutetico 4) quando familiares ou amigos percebem alteraccedilatildeo consideradas jaacute

como sintomas psicoacuteticos

Keshavan e Schooler (1992) em sua revisatildeo de artigos publicados sobre primeiro episoacute-

dio psicoacutetico referem-se agrave psicose enquanto uma siacutendrome uma vez que seus sintomas

satildeo diversos e variam ao longo do tempo com iniacutecio de definiccedilatildeo incerta e diagnoacutestico

que requer subsequentes revisotildees O periacuteodo da siacutendrome abrangeria todos os sintomas

que a caracterizariam (sintomas positivos e negativos) incluindo todos os episoacutedios e

sua relativa duraccedilatildeo de sintomas (fase prodrocircmica e residual) As fases prodrocircmica e

residual satildeo definidas em relaccedilatildeo temporal do primeiro episoacutedio psicoacutetico prodrocircmica

eacute a que antecede o episoacutedio propriamente dito e a residual a que se segue natildeo sendo

esclarecido se num segundo episoacutedio a fase prodrocircmica pode coincidir ou natildeo com a

fase residual

Uma vez que nem toda fase prodrocircmica identificada culmina em crise psicoacutetica como

eacute a nossa posiccedilatildeo alguns autores utilizam a expressatildeo ldquoestado mental de riscordquo (at-risk

mental state) para identificar esse momento que merece atenccedilatildeo para a necessidade de

se intervir o que implica que essa variaacutevel cliacutenica natildeo vai necessariamente se tornar um

transtorno (McGorry amp Singh 1995)

Segundo Yung e McGorry (1996) apesar de os primeiros estudos sistematizados sobre

a duraccedilatildeo prodrocircmica investigar indistintamente pacientes em diferentes momentos

389Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

do adoecimento mental - o que implica amostras bastante heterogecircneas - um aspecto

se fez constante no histoacuterico desses sujeitos a duraccedilatildeo do periacuteodo prodrocircmico antes do

primeiro episoacutedio mostrou-se mais longa de meses a anos quando comparada com

o tempo das recidivas algumas semanas raramente ultrapassando um mecircs (Herz amp

Melville 1980 Birchwood amp Cols 1989 Tarrier amp Cols 1991)

Alguns outros autores enfatizaram que assim como sinais e sintomas podem ser des-

critos e padronizados em escalas de avaliaccedilatildeo indiviacuteduos em estado preacute-psicoacutetico fre-

quentemente jaacute tecircm - sob um ponto de vista fenomenoloacutegico - alteraccedilotildees nas experi-

ecircncias subjetivas natildeo descritas pela psicopatologia (Lidz 1973 Parnas amp Cols 1998

Moller amp Husby 2000) Esse estado de autorreferecircncia foi estudado por vaacuterios autores

e caracterizado tambeacutem por alteraccedilotildees de cogniccedilatildeo afeto consciecircncia e atos motores

(Berrios 1996)

Nesse artigo dividimos as principais frentes que discutem proacutedromos em dois eixos 1)

caracteriza a perspectiva que utiliza criteacuterios advindos dos manuais diagnoacutesticos DSM

e CID aleacutem de pesquisas e centros que buscam identificar populaccedilotildees vulneraacuteveis a

partir de marcadores geneacuteticos e ldquosinais e sintomasrdquo mais proacuteximos da classificaccedilatildeo in-

dicial e 2) utiliza a perspectiva advinda das experiecircncias subjetivas e sintomas baacutesicos

Eixo1EstadoMentaldeRisco

Alguns autores utilizam a expressatildeo ldquoestado mental de riscordquo para identificar pessoas ou

grupos vulneraacuteveis segundo criteacuterios dinacircmicos ou estruturais para intervir pois entre

as ressalvas agrave utilizaccedilatildeo do conceito de proacutedromos eacute que ele natildeo sustenta justamente

um caraacuteter interventivo (Cullberg 2006 Moller 2001 Neubeck 2007) Para contornar

essa questatildeo alguns centros de intervenccedilatildeo precoce em psicose criaram outros termos

tais como clinical high risk (CHR) ou schizophrenia like psychosis (SLP) mas que manteacutem

a mesma essecircncia e objetivo dos termos escolhidos

Os criteacuterios que definem os grupos de alto risco e os de altiacutessimo risco satildeo uma tenta-

tiva de oferecer paracircmetros alternativos de identificaccedilatildeo de populaccedilotildees que podem vir

a desenvolver psicose com o cuidado de natildeo tratar-se indistintamente aqueles que natildeo

precisariam de intervenccedilatildeo

390

Grupo de Alto-riscoModelo Geneacutetico Tradicional - High Risk GroupTradicional Genetic Model

Essa frente de trabalho se baseia em estudos tipo follow-up envolvendo pessoas com his-

toacuterico de doenccedila mental na famiacutelia em regra esquizofrenia de preferecircncia um parente

em primeiro grau - acompanhado desde o iniacutecio da adolescecircncia (Nagler 1985 Fish

amp Cols 1992 Johnstone amp Cols 2001) O meacutetodo propotildee um estudo etioloacutegico para

identificar preacute-morbidade direcionando-as para serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (Olin amp

Mednick 1996)

Pode-se caracterizar o HR (high risk) como grupo de sujeitos (em pesquisa) ou usuaacuterios

(de serviccedilos psicossociais) que apresentem fatores de risco tipo traccedilo (trait risk factors)

e fatores de risco tipo estado mental (state risk factors) ou seja sobrepotildeem aspectos

estruturais (personalidade soacutecio-econocircmicos meacutedicos etc) e dinacircmicos (aspectos fun-

cionais do sujeito no periacuteodo de tempo de investigaccedilatildeo) No primeiro caso verifica-se

histoacuterico de transtorno psicoacutetico na famiacutelia e traccedilos de personalidade esquizotiacutepica No

segundo presenccedila de sinais e sintomas psicopatoloacutegicos ou seja proacutedromos (Gottes-

man amp Shields 1982 Claridge 1987 Meehl 1989)

Um dos maiores desafios desse estudo satildeo os casos de identificaccedilatildeo de indiviacuteduos que

se preenchem os requisitos mas natildeo manifestam posteriormente crise psicoacutetica As-

sim eacute necessaacuterio considerar a possibilidade de se identificar casos falso-positivos ou fal-

sos falso-positivos que podem progredir para uma psicose por duas razotildees 1) as mudan-

ccedilas no estado mental representam vulnerabilidade mas para outra patologia subjacente

(ansiedade depressatildeo ou crise situacional) 2) reforccedilo nas situaccedilotildees de enfrentamento

aumento de apoio social e outras circunstacircncias podem prevenir retardar ou modificar

as alteraccedilotildees que indicam um estado mental de risco O fato de esses grupos natildeo se

distinguirem transversalmente tem implicaccedilotildees na mediccedilatildeo de seus marcadores (Yung

amp Cols 1996) Esse tipo de estudo tem se mostrado fraacutegil no que tange o alto niacutevel de

identificaccedilotildees de falso-positivos e pouco uacuteteis para a estrateacutegia da intervenccedilatildeo preco-

ce sendo mais adequado para identificaccedilatildeo psicopatoloacutegica de esquizofrenia e outros

transtornos psicoacuteticos

Grupo de Altiacutessimo Risco Estrateacutegias de Especificaccedilatildeo - Ultra High Risk Group (UHR)Close-in Strategies

391Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

Essa abordagem eacute clinicamente orientada na problemaacutetica dos jovens que estatildeo enfrentan-

do sinais e sintomas precursores de crise (Eaton amp Cols 1995) Essa terminologia segundo

seus precursores pretende causar menos impacto negativo comparado com o uso do termo

proacutedromo que eacute tradicionalmente aplicado em retrospecto e quando o transtorno em ques-

tatildeo emerge plenamente (Phillips amp Cols 2000) Uma vez que haacute pessoas que manifes-

tam quadros sindrocircmicos que se assemelham agravequeles da psicose mas que natildeo parecem

precisar de cuidados (Van Oslen amp Cols 2001) e outras que vatildeo desenvolver o trans-

torno e apresentam sintomas leves anguacutestia e decliacutenio do funcionamento eacute necessaacuterio

diferenciar esses dois grupos e oferecer tratamento a uns sem descartar os outros (Yung

amp McGorry 1996) Sob essa perspectiva um indiviacuteduo deve apresentar um nuacutemero de

condiccedilotildees para ser incluiacutedo nesse grupo que natildeo apenas fatores geneacuteticos

Essa frente de trabalho cliacutenico em sauacutede mental foi desenvolvida pela Avaliaccedilatildeo Pessoal

e Avaliaccedilatildeo de Crise (The Personal Assessment and Crisis Evaluation - PACE) que combina

fatores de risco para psicose com sinais e sintomas de fases prodrocircmicas de transtornos

psicoacutetico Os criteacuterios para URH (ultra high risk) abordam uma pessoa jovem entre 14

e 29 anos encaminhada a um serviccedilo cliacutenico e que se enquadre em um ou mais criteacute-

rios dos seguintes grupos

Grupo 1 - Sintomas Psicoacuteticos Atenuados (Attenuated Psychosis Group)

Jovens que apresentaram sintomas psicoacuteticos em intensidade e frequecircncia insuficiente para uma identificaccedilatildeo positiva e possiacutevel intervenccedilatildeo

Grupo 2 - Sintomas Psicoacuteticos Breves Limitados ou Intermitentes (Brief Limited Inter-

mittent Psychotic Symptoms - BLIPS Group)

Jovens em risco de psicose devido a um histoacuterico recente de sintomatologia franca com remissatildeo espontacircnea (sem uso de antipsicoacutetico) em uma semana

Grupo 3 - Vulnerabilidade (Vulnerability Group)

Jovens em risco de psicose devido a uma combinaccedilatildeo de fatores de risco e

deterioraccedilatildeo significativa funcional

A diferenccedila entre os dois grupos seriam um tecircnue limiar em que o HR identifica pes-

soas com risco para esquizofrenia com vieacutes mais geneacutetico enquanto que o UHR indiviacute-

duos com risco iminente de crise psicoacutetica (Yung amp McGorry 1996) Esses serviccedilos de

intervenccedilatildeo indicam que jovens usuaacuterios sob tais criteacuterios de admissatildeo tecircm ateacute 40 de

392

chance de apresentar episoacutedios psicoacuteticos nos 12 meses seguintes ao ingresso apesar

de terapia de apoio administraccedilatildeo da situaccedilatildeo e uso de medicamento antidepressivo se

necessaacuterio Essa porcentagem significativa de transiccedilatildeo para a psicose fornece suporte

para validar os criteacuterios de altiacutessimo risco como identificadores de populaccedilotildees em fase

prodrocircmica

Entrevista Estruturada para Siacutendromes Prodrocircmicas (Strutuctured Interview for Prodromal Syndromes - SIPS)

O grupo de pesquisa em proacutedromos da Universidade de Yale desenvolveu dois instrumen-

tos para avaliar e monitorar esses fenocircmenos transversalmente e ao longo do tempo a

Entrevista Estruturada para Siacutendromes Prodrocircmicas (Structured Interview for Prodromal

Syndromes - SIPS McGlashan amp Cols 2001 Miller amp Cols 2002 Rosen amp Cols 2002) e

a Escala de Sintomas Prodrocircmicos (Scale of Prodromal Symptoms - SOPS Miller amp Cols

1999 McGlasahn amp Cols 2001) Esses instrumentos tecircm por objetivo fornecer medi-

ccedilatildeo sistemaacutetica da presenccedilaausecircncia de estados prodrocircmicos avaliar a gravidade dos

sintomas prodrocircmicos transversal e longitudinalmente e definir o limite operacional da

psicose (Miller amp Cols 1999)

A SIPS inclui a SOPS um questionaacuterio de histoacuterico familiar (Andreasen amp Cols 1977)

a Escala Global de Avaliaccedilatildeo de Funcionamento - GAF (Hall 1995) e um checklist para

Transtorno de Personalidade Esquizotiacutepica (APA 1994) Inclui ainda definiccedilotildees ope-

racionais para trecircs siacutendromes prodrocircmicas - apresentadas na seccedilatildeo anterior Criteacuterios

de Siacutendromes Prodrocircmicas (Criteria of Prodromal Syndromes - COPS) e uma definiccedilatildeo

operacional para o iniacutecio da psicose Eacute um dos mais amplos instrumentos para pesquisa

de pacientes em crise atual que tiveram uma crise recente ou que estatildeo em risco de

entrar em crise ou seja o instrumento abrange um percurso de proacutedromos de crise

e de recidivas Consiste em um roteiro de entrevista semi-estruturada destinada a avaliar

prospectivamente os sintomas e sinais sugestivos de proacutedromos para psicose Uma vez

que houve identificaccedilatildeo de siacutendrome prodrocircmica utiliza-se a SOPS para avaliaacute-la ao longo

do tempo observando quanto tempo transcorreu desde a aplicaccedilatildeo e qual a evoluccedilatildeo dos

sintomas

A SOPS eacute utilizada quando atraveacutes da utilizaccedilatildeo da SIPS identifica-se uma situaccedilatildeo de crise

e eacute composta por cinco itens para sintomas positivos sintomas negativos sintomas de de-

393Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

sorganizaccedilatildeo e itens para sintomas gerais Avalia ainda intensidade e grau de desorganiza-

ccedilatildeo desses sintomas A grande contribuiccedilatildeo desse instrumento se deve ao fato de combinar

vaacuterios pequenos roteiros para ancorarem uma contextualizaccedilatildeo mais fidedigna da realidade

em que o sujeito estaacute inserido Apesar de se tratar de um instrumento de semiologia meacute-

dica a maneira como a utilizaccedilatildeo desses instrumentos eacute feita possibilita avaliar aspectos

subjetivos alteraccedilotildees da vivecircncia e outros aspectos de cunho fenomenoloacutegico

Vale enfatizar que as conceituaccedilotildees e instrumentos aqui apresentados se pautam em

intervenccedilotildees bem ao modelo psiquiaacutetrico tradicional baseado em iacutendices e tabelas em

que aspectos dinacircmicos do comportamento satildeo contemplados quando da manifestaccedilatildeo

inequiacutevoca de uma crise psicoacutetica Dessa feita da forma como esta discussatildeo tem sido

apresentada percebe-se que o conceito de proacutedromos tem seu universo de definiccedilatildeo

circunscrito agrave doenccedila mental ou aos serviccedilos de assistecircncia jaacute bem delimitados Nes-

se contexto os sintomas seriam as manifestaccedilotildees inespeciacuteficas e os sinais os iacutendices

que cumprem a funccedilatildeo classificatoacuteria com ecircnfase nas siacutendromes com o intuito de se

identificar indiviacuteduos com transtornos mentais Isso reforccedila o teor de causalidade do

conceito Ainda que se utilizem termos como estado mental de risco sintomas prodrocirc-

micos fase prodrocircmica essa diversidade natildeo reflete a abrangecircncia do fenocircmeno aleacutem

de provocar duacutevidas e ambiguidades de compreensatildeo

Igualmente a reduccedilatildeo do fenocircmeno em sintomas e criteacuterios reforccedila a ideia defendi-

da por aqueles que trabalham com o conceito num vieacutes psiquiaacutetrico tradicional se os

proacutedromos por definiccedilatildeo satildeo tomados em retrospectiva sendo sua concepccedilatildeo enquan-

to tal vinculada agrave manifestaccedilatildeo de uma crise sua funccedilatildeo de detecccedilatildeo eacute circunscrita a

um momento miacutenimo de intervenccedilatildeo Nessa perspectiva o atendimento psicoloacutegico

ou de psicoterapia se delineia dentro das accedilotildees acessoacuterias de minimizaccedilatildeo de danos e

funcionalidade privilegiando-se a psicoeducaccedilatildeo e a terapia cognitivo-comportamental

sendo a intervenccedilatildeo eacute primordialmente medicamentosa Alguns autores satildeo enfaacuteticos

em afirmar que essas estrateacutegias satildeo paliativas e apenas retardariam o curso da psicose

com o que concordamos

394

Eixo2ProacutedromoseFenomenologia

A abordagem dessa frente de estudos foi se delineando agrave medida que o estudo em

psicopatologia das entidades nosoloacutegicas enquanto iacutendices excluiu as discussotildees do ca-

raacuteter subjetivo das experiecircncias dos indiviacuteduos Contudo o aumento da quantidade de

estudos em intervenccedilatildeo precoce nas psicoses nas uacuteltimas quatro deacutecadas reabriu esse

debate Desde o iniacutecio da teorizaccedilatildeo sobre esquizofrenia a literatura refere alteraccedilotildees

na vivecircncia e no comportamento com teor subjetivo marcante Contudo estudos mais

recentes mostraram que tais caracteriacutesticas tambeacutem satildeo encontradas em outros trans-

tornos psicoacuteticos ou natildeo e em pessoas normais (sic) conforme Andreasen e Cols (1985)

e Harrow e Cols (1985) posiccedilatildeo predominante que adotaremos apoacutes a apresentaccedilatildeo de

nossos dados

A psicopatologia fenomenoloacutegica nessa perspectiva eacute tambeacutem chamada de Psicopato-

logia da Primeira e Segunda Pessoa (Monti e Stanghellini 1996 Parnas e Cols 1998

e Parnas e Zahavi 2002 Parnas e cols 1998 2000 Moller e Husby 2000 Moller e

Husby 2000 Klosterkotter e col 2001 Parnas e Handest 2003 Sass e Parnas 2003

Parnas e Handest 2003 2005) Da primeira pessoa uma vez que se trata da experi-

ecircncia preacute-reflexiva experiecircncia pura dos estados mentais e corporais Um sentimento

de imersatildeo no mundo circundante que Merleau-Ponty chamou de presenccedila objeto e

sujeito enquanto dois momentos abstratos de uma uacutenica estrutura Essa subjetividade eacute

corporificada (embodied) pois emerge da relaccedilatildeo de um tipo particular de organismo em

interaccedilatildeo com o meio em que vive - humano e fiacutesico - e nesse sentido eacute localizada em

um contexto (embeded) situada no mundo A totalidade a qual remete essa perspectiva eacute

a totalidade do corpo vivido (Lieb) animado subjetivo experienciado no ciclo accedilatildeoper-

cepccedilatildeo da exploraccedilatildeo do meio pelo organismo vivo que tambeacutem remete ao corpo como

objeto (koumlrper) corpo fiacutesico espacial (Parnas amp Handest 2003 Serpa Jr 2007) Eacute tam-

beacutem perspectiva de segunda pessoa porque se ficaacutessemos apenas na ideia da primeira

pessoa seria impossiacutevel a comunicaccedilatildeo o que colocaria em xeque sua aplicabilidade

Eacute por meio dela que tomamos conhecimento da experiecircncia por isso ela eacute reflexiva e

395Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

intersubjetiva Nessa perspectiva a corporeidade eacute apreendida numa zona de mediaccedilatildeo

entre o corpo vivido (ipseidade40) e o corpo objetivo (alteridade)

A aproximaccedilatildeo fenomenoloacutegica no presente trabalho dirige-se inevitavelmente agrave bus-

ca em Husserl (2006) da atitude esperada para compreender a experiecircncia do vivido

Husserl abandona a atitude natural e a tese da realidade dada imediatamente Esse

movimento obedece ao terceiro sentido do termo fenomenologia o primeiro seria da

psicopatologia descritiva e o segundo da psicopatologia descritiva dos estados de cons-

ciecircncia O salto qualitativo que opera no terceiro momento em relaccedilatildeo aos outros dois

eacute a intencionalidade da consciecircncia sendo sempre consciecircncia de alguma coisa natildeo haacute

consciecircncia no vazio da mesma forma que a consciecircncia se debruccedila sobre si mesmo

ou seja eacute sempre consciecircncia de si antes de ser de algo Essa possibilidade de mediaccedilatildeo

eacute feita pela intersubjetividade (Serpa Jr 2007)

ExperiecircnciasAnocircmalasSubjetivasTranstornodoEuedoSensoComum

Segundo Spitzer (1988) a maneira fundamental de se identificar proacutedromos para es-

quizofrenia seria atraveacutes do transtorno do Eu e do Senso comum Esses transtornos se

sobrepotildeem mais ou menos aos conceitos de despersonalizaccedilatildeo desrealizaccedilatildeo deliacuterio

de referecircncia entre outros categorizados por Bleuler como ldquoautismordquo Bleuler contudo

natildeo conseguiu fornecer uma descriccedilatildeo satisfatoacuteria da sintomatologia de autismo e por-

tanto classificou como um sintoma complexo fundamental Para a fenomenologia o

autismo natildeo eacute um sintoma no sentido do modelo meacutedico mas sim um fenocircmeno que eacute

reconhecido no espaccedilo intersubjetivo (Tatossian 2006) Tafuri (2003) reforccedila e amplia

esta discussatildeo ao demonstrar psicanaliacuteticamente que Bleuler ao criar o termo autismo

subtraiu do termo freudiano auto-erotismo o essencial da constituiccedilatildeo primordial da es-

trutura subjetiva do ser humano qual seja o erotismo constitutivo da psicossexualidade

do sujeito humano leia-se da afetividade e da subjetividade humana

40 A caracteriacutestica da ipseidade eacute que o homem se acha sempre separado do que eacute por toda espessura do ser que ele natildeo eacute O homem se anuncia a si do outro lado do mundo e volta a se interiorizar a partir do horizonte o homem eacute um lsquoser das lonjurasrsquo A ipseidade faz parte da filosofia eacutetica de Ricoeur (1990)

396

Essa questatildeo de autoevidecircncia do senso comum se relaciona diretamente agrave questatildeo

da intersubjetividade Uma vez que natildeo existe sujeito fora da linguagem e de uma co-

munidade o senso comum consiste em uma marca social possibilitando situaccedilotildees de

confianccedila e pertencimento dentro do grupo Tanto que quando algum fenocircmeno natildeo se

encaixa no esquema de senso comum natildeo se questiona o esquema e sim o fenocircmeno

O senso comum eacute a habilidade de ver as coisas numa perspectiva adequada distinguir

entre o que eacute relevante ou natildeo provaacutevel ou natildeo e principalmente distinguir entre o que

eacute verdadeiro ou falso A falha no senso comum pode se manifestar por meio de uma

falta de vitalidade (suchness) e sentimento do mundo do que eacute adequado e em falta de

sentido das ldquoregras do jogordquo no comportamento humano

Gadamer (2009) apresenta o conceito de senso comum sob as seguintes condiccedilotildees 1)

em sua relaccedilatildeo entre cogniccedilatildeo e praacutexis sendo a praacutexis em sentido lato natildeo em oposiccedilatildeo

agrave de cogniccedilatildeo mas como forma de lidar com o mundo na relaccedilatildeo entre mediaccedilatildeo e

imediaccedilatildeo 2) enquanto questionamento do que eacute oacutebvio e do que parece oacutebvio e 3) na

constituiccedilatildeo da intersubjetividade do mundo

Sass (2004 citado por Leal 2007) afirma que o senso comum ou evidecircncia natural tem

trecircs aspectos entrelaccedilados um senso de Eu preacute-reflexivo (ipseidade) uma imersatildeo preacute-

-reflexiva no mundo e uma ligaccedilatildeo com os outros de forma igualmente natildeo reflexiva

Esses fenocircmenos se datildeo na perspectiva da primeira pessoa daquilo que se revela como

nosso Quando a experiecircncia assim se apresenta consideramos como manifestaccedilatildeo do

proacuteprio eu

EscaladeAvaliaccedilatildeodeSintomasBaacutesicosdeBonn(TheBonnScalefortheAssessmentofBasicSymptoms-BSABS)

Estas pesquisas surgiram na deacutecada de 1960 na Alemanha e focalizaram-se nas expe-

riecircncias natildeo psicoacuteticas de alteraccedilatildeo afetiva cognitiva perceptiva e corporal enfatizando

que para a detecccedilatildeo precoce e intervenccedilatildeo na esquizofrenia trabalha com a observa-

ccedilatildeo de que alteraccedilotildees cognitivas afetivas e sociais ocorrem muitos anos antes de um

primeiro episoacutedio psicoacutetico e podem ser reconhecidos pela pessoa afetada nesta fase

inicial (Phillips amp Cols 2000) Essas alteraccedilotildees vivenciadas pelo sujeito satildeo denomina-

das ldquosintomas baacutesicosrdquo e descritos em grande detalhe por Gerd Huber e colaboradores

397Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

(Klosterkotter 1997 2001) com base em estudos em longo prazo de acompanhamento

o que influenciou significativamente os conceitos de esquizofrenia nos paiacuteses de liacutengua

alematilde

O BSABS representa medidas de distuacuterbios do pensamento linguagem percepccedilatildeo es-

tresse afeto energia concentraccedilatildeo memoacuteria reatividade emocional relaccedilotildees sociais e

expressotildees natildeo verbais Por meio da utilizaccedilatildeo da BSABS afirma-se que eacute possiacutevel na

ausecircncia de proacutedromos excluir um caso subsequente de esquizofrenia em 96 e na

sua presenccedila predizecirc-lo em 70 (Larsen amp Cols 2001) Alguns dos sintomas que su-

gerem proacutedromos para esquizofrenia satildeo incapacidade de dividir atenccedilatildeo interferecircncia

e bloqueio de pensamento distuacuterbios da fala receptiva distuacuterbio da fala expressiva

distuacuterbios do pensamento abstrato ideias de referecircncia instaacuteveis e captaccedilatildeo da atenccedilatildeo

por detalhes do campo visual (Klosterkoumltter amp Cols 1997)

Em outra pesquisa utilizando a BSABS para verificar a prevalecircncia de alteraccedilotildees da

experiecircncia subjetiva em pacientes com esquizofrenia residual e transtorno bipolar em

remissatildeo (DSM-IV) em ambos os grupos o transtorno de experiecircncia do Eu foram

os de maior significado (Parnas amp Handest 2003 Parnas amp Cols 1991) Essas e ou-

tras evidecircncias levam os pesquisadores dessa vertente a afirmar que transtornos do Eu

satildeo especiacuteficos do espectrum da esquizofrenia (Parnas e Bovet 2001 Parnas e Handest

2003 Stanghellini 2000) e acabam por sugerir que os sintomas baacutesicos se encaixam

na discussatildeo fenomenoloacutegica e de transtorno do senso comum

AvaliaccedilatildeodeExperienciasAnocircmalasSubjetivas(EASE-ExaminationofAnomalousSelf-Experience)

Trata-se de um roteiro de entrevista contendo uma lista de sintomas que abrange 57

itens com cinco dimensotildees principais (1) cogniccedilatildeo e fluxo de consciecircncia (2) consciecircn-

cia de eu e presenccedila (3) experiecircncias corporais (4) transitivismodemarcaccedilatildeo (5) reo-

rientaccedilatildeo existencial Uma parte significativa dos itens coincide com a BSABS Alguns

itens da EASE satildeo parecidos aos da SIPS

A EASE natildeo possui perguntas preacute-estipuladas para investigaccedilatildeo dos fenocircmenos ao

contraacuterio segue o mesmo princiacutepio da SIPS de descriccedilatildeo detalhada de cada sintoma

398

mediante exemplos ilustrativos operando uma pontuaccedilatildeo gradual de sintomas de acor-

do com a frequecircncia e severidade Esses itens refletem alteraccedilatildeo na experiecircncia de eu

caracterizada por distanciamento ou hiper-reflexividade em relaccedilatildeo aos proacuteprios pen-

samentos e experiecircncias corporais No entanto ao contraacuterio da SIPS a EASE tem um

foco exclusivo nas anomalias da experiecircncia de eu e conteacutem uma gama de fenocircmenos

que natildeo satildeo contemplados pelos instrumentos anteriores O objetivo do instrumento eacute

operacionalizar sintomas que estatildeo relacionados com o fenocircmeno da ipseidade

Goldenstein (2007) atenta para a grande dificuldade de se ter os sintomas subjetivos

descritos de forma espontacircnea na cliacutenica e aponta em princiacutepio um sentimento de

vergonha e desmoralizaccedilatildeo habitualmente relatado o que exige investigaccedilatildeo expliacutecita

Haveria tambeacutem segundo o autor uma limitaccedilatildeo semacircntica para expressar fenocircmenos

que do ponto de vista fenomenoloacutegico satildeo preacute-reflexivos Contudo quando tal tipo

de aproximaccedilatildeo se torna possiacutevel eles seriam facilmente verbalizados e reconhecidos

internamente (insight) salvo quando se tratar de sintomas psicoacuteticos Essa ressalva eacute

justamente o que pretendemos questionar neste trabalho

Davidsen (2009) semelhantemente afirma que por a EASE se tratar de um instru-

mento de avaliaccedilatildeo qualitativa a profundidade da investigaccedilatildeo depende da interaccedilatildeo

entre sujeito da vivecircncia e o cliacutenicopesquisador da capacidade de se ouvir e fazer os

questionamentos pertinentes dependendo tambeacutem da capacidade do sujeito e intros-

pecccedilatildeo para verbalizar suas experiecircncias principalmente se levarmos em conta que eacute

justamente essa capacidade que se encontra bloqueada Uma queixa aparentemente su-

perficial de fadiga dificuldade de concentraccedilatildeo humor deprimido por exemplo pode

na verdade ser um relato de sintomas subjetivos

Eacute importante frisar que um conflito entre o sujeito e a sociedade por si soacute natildeo eacute o bas-

tante para constituir um distuacuterbio mental Reconhecer que qualquer classificaccedilatildeo diz

respeito aos transtornos e natildeo aos indiviacuteduos que os manifestam implica em acreditar

que os indiviacuteduos que compartilham um mesmo transtorno se comportam de modo

idecircntico

399Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

OConstrutodeSofrimentoPsiacutequicoeaantecedecircnciadacrisepsiacutequicagrave

Sofrimento deriva etimologicamente do grego pherein e do latim suferro significa ldquore-

signaccedilatildeo toleracircnciardquo mas tambeacutem a accedilatildeo de ldquosuportar permitir por toleracircnciardquo A palavra

dor por sua vez designa ldquosofrimento fiacutesico ou moralrdquo e o verbo do qual deriva (dolore)

significa ldquosofrerrdquo (Marty 2004 citado por Costa 2010) permitindo-nos falar de crises in-

tensas com a mesma consideraccedilatildeo essencial de ser um fenocircmeno existencial humano

com peculiaridades e contextos proacuteprios que pode ser manifesto em indiviacuteduos ou nas

relaccedilotildees (Costa 2003 2007)

O sofrimento psiacutequico grave se reporta a toda manifestaccedilatildeo aguda da anguacutestia huma-

na (seja pela linguagem seja pelo comportamento) que natildeo eacute - ou natildeo tem sido - bem

compreendida Natildeo se trata de negar que exista esta diferenccedila radical mas antes tentar

resgatar pela criacutetica analiacutetica da linguagem e da fenomenologia o espaccedilo necessaacuterio

para que esta diferenccedila como tal se revele e permaneccedila passiacutevel de muacuteltiplas aborda-

gens (Costa 2010a) Assim entendemos o sofrimento psiacutequico como sendo a) algo

essencial e inerente a todo ser humano b) que se constroacutei e eacute expresso nas relaccedilotildees

(afetivas sociais e culturais) c) que demanda delimitaccedilatildeo em cada particularidade d) eacute

simbolizado de forma diferente em cada sujeito e e) que portanto no caso do sujeito

ldquotido como psicoacuteticordquo existe um particularidade a ser entendida estudada e respeitada

aleacutem de demandar o desenvolvimento de formas de dar continecircncia apoio e cuidado

Antes de se atender ao apelo aristoteacutelico ldquocategorizadordiagnosticanteclassificadorrdquo

da complexidade das manifestaccedilotildees afetivas humanas (Costa 2010b)

ExperiecircnciadeProacutedromosnoGIPSIdossintomasaossinaisdesofrimentopsiacutequico

O Grupo de Pesquisa e Intervenccedilatildeo Precoce nas Primeiras Crises do Tipo Psicoacutetica

(GIPSI) foi criado em 2001 no Centro de Atendimento e Estudos Psicoloacutegicos (CAEP)

do Instituto de Psicologia da UnB pelo autor principal deste trabalho objetivando es-

truturar um espaccedilo de atendimento de serviccedilos psicoloacutegicos especialmente psicotera-

pia para ldquoos pacientes psiquiaacutetricosrdquo ou ldquoos indiviacuteduos em crise psiacutequica agudardquo (Ma-

nual GIPSI 2010) Hoje o GIPSI eacute composto por uma equipe inter e multidisciplinar

em Psicologia Psiquiatria Serviccedilo Social Enfermagem Sauacutede Coletiva e Terapia Ocu-

400

pacional dentre outros que desenvolvem pesquisas e serviccedilos de avaliaccedilatildeo acompanha-

mento e intervenccedilatildeo junto a indiviacuteduos em primeiras crises do tipo psicoacuteticas por noacutes

denominada de ldquosofrimento psiacutequico graverdquo

O grupo atende indiviacuteduos em primeira crise psicoloacutegica grave seja como primeiro

episoacutedio (significando estaacutegio inicial) seja como primeira internaccedilatildeo (primeira inter-

venccedilatildeo) que revele manifestaccedilotildees psicoloacutegicas de profunda repercussatildeo (afetiva emo-

cional relacional) em si proacuteprio na famiacutelia ou no seu contexto relacional imediato que

procura a rede de sauacutede mental em BrasiacuteliaDF que se encaixem nas seguintes condi-

ccedilotildees idade entre 13-55 anos de idade com sintomas ou manifestaccedilotildees prodrocircmicas pela

primeira vez hospitalizados pela primeira vez ou seja sem histoacuteria de internaccedilatildeo ante-

rior ter famiacutelia disponiacutevel para acompanhar o cliente identificado e com compromisso

de comparecer aos atendimentos solicitados e crise natildeo ter causa orgacircnica detectada

(por abuso de drogas lesotildees traumatismo etc)

Apoacutes a fase de acolhimento na qual natildeo haacute um tempo preacute-estabelecido o viacutenculo tera-

pecircutico pode ser iniciado e as primeiras estrateacutegias de cuidado satildeo desenvolvidas Pas-

sa-se para a fase de acompanhamento objetivando a compreensatildeo da complexidade do

primeiro episoacutedio psicoacutetico Nesta fase satildeo utilizados quando necessaacuterio instrumentos

de avaliaccedilatildeo do quadro psiacutequico e psicopatoloacutegico relacional da dinacircmica familiar e o

mapeamento social para possibilitar a estruturaccedilatildeo de estrateacutegias de sauacutede para o cui-

dado acabando por se constituir num plano terapecircutico individualizado como demanda

a poliacutetica nacional brasileira

O GIPSI atua na precocidade em muacuteltiplas dimensotildees pois acredita que o circuito psi-

quiaacutetrico atual a carecircncia de rede de serviccedilo em sauacutede mental o paradigma biomeacutedico

satildeo prevalentes no cuidado dos profissionais de sauacutede mental em especial no Distri-

to Federal evidenciando aspectos em nosso entendimento fomentam complicadores

como a primeira crise psicoacutetica sendo atendida prioritariamente nas emergecircncias psi-

quiaacutetricas apenas com o recurso meacutedico e medicamentoso os sintomas psicoacuteticos das

primeiras crises sendo avaliados de forma estaacutetica desconsiderando a complexidade do

sofrimento psiacutequico o cuidado estar reduzido apenas no sujeito em si o uacutenico recurso

de cuidado na crise ser a internaccedilatildeo psiquiaacutetrica a produccedilatildeo de um mito social da crise

como perigoso produzindo distanciamento do sujeito em sofrimento com sua dinacircmi-

ca de vida social

401Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

SobreumacaracterizaccedilatildeoinicialdeproacutedromosecrisespsiacutequicasatendidasnoGIPSI

A seguir apresentamos resumidamente alguns dados de pesquisas recentes do grupo

A primeira resultou no relatoacuterio teacutecnico encaminhado ao CNPq (GIPSI 20082010)

analisadas as entrevistas de acolhimento os atendimentos (individual e familiar) e a

aplicaccedilatildeo de instrumentos citados acima que restou por traccedilar um perfil soacutecio-demo-

graacutefico e descrever aspectos relevantes sobre as crises vivenciadas Nossa clientela ateacute a

presente data se configura como sendo de jovens adultos (ateacute 30 anos no caso dos ho-

mens e acima deste no caso das mulheres) de cor branca ou parda com predominacircn-

cia de orientaccedilatildeo religiosa cristatilde em sua maioria nascidos no Distrito Federal (Brasiacutelia

e Cidades Sateacutelites) no caso dos homens e nas cidades do entorno do DF no caso das

mulheres solteiros a maioria residentes no Distrito Federal de escolaridade entre os

ensinos fundamental e meacutedio com uma certa prevalecircncia de estudantes com rendas

entre baixa e meacutedia

No que tange a caracterizaccedilatildeo da crise em si ela foi em geral referida com um tempo

maior que dois anos sendo na sua maioria referida como a primeira sem nenhuma

internaccedilatildeo psiquiaacutetrica natildeo sabendo as pessoas diretamente envolvidas (cliente e pa-

rentes) referir ou especificar suas causas com um maciccedilo apoio ou preocupaccedilatildeo fami-

liar e quando buscou tratamento em sua maciccedila maioria este foi do tipo psiquiaacutetrico

Na maioria dos proacutedromos referidos prevaleceram os distuacuterbios do sono anguacutestia rai-

vairritabilidade retraimento social desconfianccedila atenccedilatildeo e concentraccedilatildeo reduzidas e

humor depressivo Quanto aos sintomas prodromicos a maioria referiu deliacuterios mania

de perseguiccedilatildeo comportamento e discurso desorganizados alucinaccedilotildees (sintomas po-

sitivos) e isolamento social abulia embotamento afetivo e falta de interesse geral como

sintomas negativos Uma anaacutelise resumida de nossos dados evidencia que a despeito

dos sinais e sintomas prodrocircmicos tiacutepicos das crises do tipo psicoacutetica as condiccedilotildees

pessoais familiares e psicossociais se apresentam dentro da ldquonormalidade tiacutepicardquo das

demais pessoas Quanto ao exame psiacutequico observamos que as manifestaccedilotildees mais

tiacutepicas ou correntes se apresentam em consonacircncia ou em decorrecircncia com os prodro-

mos (sinais e sintomas) referidos e experenciados

Parte de nossos estatildeo em consonacircncia no que tange aos prodromos em geral com

aqueles encontrados na literatura internacional nos levando a pensar em um vieacutes miacuteni-

402

mo na comparaccedilatildeo do sofrimento psiacutequico grave no Brasil em relaccedilatildeo agravequele que nos

tem servido de referecircncia internacional ateacute o presente momento Poreacutem os contextos

familiares e psicossociais assim como suas formas de manejo relacionais apontam

para como ateacute certo ponto era esperado do ponto de vista cultural para uma especifici-

dade relacional de nossa clientela especiacutefica quando combinamos com dados os demo-

graacuteficos e efetivo-emocionais antes descritos

A segunda pesquisa se refere a uma dissertaccedilatildeo de mestrado (Costa 2011) que atraveacutes

do meacutetodo de Rorschach no Sistema Compreensivo avaliou os clientes do grupo que

haviam sido diagnosticados anteriormente como psicoacuteticos e que apresentavam qua-

dros caracteriacutesticos de primeiras crises do tipo psicoacutetica e apontaram para afetividade

adequada aos padrotildees esperados no Brasil (dados normativos do Rorschach) baixo iacuten-

dice de agressividade percepccedilotildees peculiares mas sem graves distorccedilotildees que possam

comprometer o funcionamento adequado - mais que isso oferecendo possibilidade de

desenvolvimento de seus potenciais criativos bom niacutevel de cooperaccedilatildeo ausecircncia de

traccedilos obsessivos ou hipervigilantes (paranoacuteia) baixo iacutendice de ideaccedilatildeo suicida (Costa

2011)

Apontaram ainda para heterogeneidade dos perfis analisados e ausecircncia de criteacuterios

suficientes para o estabelecimento de suspeita de traccedilos do tipo psicoacutetico significativos

na maioria dos sujeitos Foi observada a existecircncia de uma seacuterie de traccedilos indicativos

de sofrimento psiacutequico grave que poderiam ou natildeo evoluir para um quadro de maior

gravidade devido agrave falta de recursos internos que esses indiviacuteduos apresentam caso

os sujeitos natildeo recebam atendimento adequado Uma possibilidade para que esses

sujeitos tenham sido erroneamente diagnosticados como psicoacuteticos eacute que possa ter

ocorrido uma anaacutelise raacutepida da lista de sinais e sintomas que foram agrupados num

eixo diagnoacutestico por similaridade

Diante de tais dados mesmo que preliminares e a serem aprofundados com a experiecircn-

cia acumulada e o aumento do quantitativo de clientes atendidos pelo grupo apontam

para questionamentos conceituais de acolhimento da crise ou do sofrimento psiacutequico

e mesmo de apontamento para a construccedilatildeo de um modelo possiacutevel de abordagem pe-

culiar da crise ou do sofrimento psiacutequico grave

403Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

Porumafenomenologiadacrisepsiacutequicagravecuidadodiferenccedilaresponsabilidadeealteridade(maisque-ouantes-daldquopreacute-psicoserdquoldquoprimeiroepisoacutediordquooudaldquodoenccedilamentalrdquo)

A partir das ideias de Husserl (2006) Heidegger (1977 ldquoo cuidado com o simplesrdquo)

Levinas (2009a) e filoacutesofos da diferenccedila41 como Foucault (2010) e Derrida (2011) po-

demos apontar para a necessidade de se problematizar a forma e a concepccedilatildeo da ldquocrise

psiacutequica graverdquo como um fenocircmeno a ser mais bem esclarecido e estudado retirando-a

da escuridatildeo dos conceitos e praacuteticas imprecisas ou do domiacutenio das violaccedilotildees dos direi-

tos humanos mais essenciais quais sejam a de ser tratada dentro da sua humanidade

inerente e efetivamente como uma praacutetica de cuidado e natildeo de violaccedilotildees Neste sentido

tem ajudado as reflexotildees do grupo as posturas destes autores no que tange agraves eacuteticas da

diferenccedila da responsabilidade da alteridade e do cuidado

Ao considerar o cuidado como um lsquomodo de fazer na vida cotidianarsquo que se caracteriza

pela lsquoatenccedilatildeorsquo responsabilidadersquo lsquozelorsquo e lsquodesvelorsquo lsquocom pessoas e coisasrsquo em lugares e tempos

distintos de sua realizaccedilatildeo a importacircncia da vida cotidiana na produccedilatildeo do lsquocuidadorsquo

estaacute na oferta de muacuteltiplas questotildees especiacuteficas que circulam no espaccedilo da vida social

e nos conteuacutedos histoacutericos que carregam (Pinheiro 2005) O cotidiano eacute produzido

social e historicamente sob dois acircngulos primeiro porque se trata - como noccedilatildeo geral e

dimensatildeo do conhecimento - do lsquovividorsquo quer dizer do repetitivo-singular do conjuntu-

ral-estrutural no cotidiano lsquoas coisas acontecem semprersquo Segundo porque essa noccedilatildeo

se constroacutei e se identifica com o dia-apoacutes-dia em que tudo eacute igual e tudo muda ou seja

analisar um dia apoacutes o outro

lsquoCuidado em sauacutedersquo continua Pinheiro (2005) eacute o tratar o respeitar o acolher o atender

o ser humano em seu sofrimento mas com qualidade e resolutividade de seus problemas Eacute

uma accedilatildeo integral fruto do lsquoentre-relaccedilotildeesrsquo de pessoas ou seja accedilatildeo integral como efeitos

e repercussotildees de interaccedilotildees positivas entre usuaacuterios profissionais e instituiccedilotildees que

41 Os filoacutesofos da Diferenccedila como Foucault Deleuze Guattari e Derrida entre outros fazem parte de uma linha filosoacutefica que tem como expoentes Espinosa Bergson e Nietzsche uma filosofia que se interessa pela diversidade pluralidade e singularidade ao inveacutes de uma filosofia baseada numa ideia universal e numa totalidade que conteacutem partes singulares Ou seja a filosofia da Diferenccedila se interessa menos pelas semelhanccedilas e identidades e muito mais pela singularidade e particularidade

404

satildeo traduzidas em atitudes tais como tratamento digno e respeitoso com qualidade

acolhimento e viacutenculo

Por outro lado em geral ouvimos as pessoas utilizarem o termo ldquodiferenccedilardquo como se ela

fosse apenas respeito pelas opiniotildees contraacuterias ou pelas ideias contraditoacuterias A Filoso-

fia da Diferenccedila no entanto enquadra-se no pensamento complexo que entende que

pensamento (ou consciecircncia) linguagem verdade razatildeo sujeito objeto satildeo inseparaacute-

veis e natildeo partes separadas que possuem uma existecircncia em si Elas satildeo partes que se

inter-relacionam e se confrontam para poder existir Dessa forma a linguagem mistu-

ra-se com o pensamento e com o conceito de sujeito e passa a ser encarada como uma

rede de significaccedilotildees e atribuiccedilotildees e natildeo apenas uma representaccedilatildeo do real Como bem

afirmam os filoacutesofos da linguagem natildeo existe mundo ou seres fora da linguagem

Neste sentido conforme Jonas (1995) a responsabilidade para com o outro na qualidade

de ser humano guarda na sua existecircncia uma exigecircncia radical de respeito pois deteacutem

um mandato de vida que por si soacute fala eloquumlentemente da necessidade de manutenccedilatildeo

de sua integridade A responsabilidade eacute portanto na eacutetica a articulaccedilatildeo entre as reali-

dades subjetiva e objetiva Eacute forjada por essa fusatildeo entre o sujeito e a accedilatildeo Ao mesmo

tempo haacute tambeacutem um aspecto de descoberta que se revela na accedilatildeo propriamente dita

e suas consequecircncias A ordem eacutetica estaacute presente para Jonas natildeo como realidade visiacute-

vel mas como um apelo previdente que pede calma prudecircncia e equiliacutebrio Agrave esta nova

ordem ela daacute o nome de Princiacutepio da Responsabilidade

Por fim cabe falar da alteridade (ou outridade) eacute a concepccedilatildeo que parte do pressupos-

to baacutesico de que todo o homem social interage e interdepende do outro Assim como

muitos antropoacutelogos e cientistas sociais afirmam a existecircncia do ldquoeu-individualrdquo soacute eacute

permitida mediante um contato com o outro (que em uma visatildeo expandida se torna o

Outro - a proacutepria sociedade diferente do indiviacuteduo) Levinas (1997 2007 2009 a b)

por certo eacute um profiacutecuo autor filosoacutefico pouco explorado no nosso paiacutes e na aacuterea que

pode nos guiar na compreensatildeo da alteridade como aspecto fundamental da eacutetica que

diferentemente de Heidegger (cuidado do ser-no-mundo) eacute preacute-ontoloacutegica levando-

-nos a considerar qualquer ser humano sua condiccedilatildeo ou seu sofrimento (psiacutequico

pex) como uma condiccedilatildeo a priori a ser respeitada e soacute depois de nos responsabilizar-

mos por este outro eacute que podemos de fato consideramos a possibilidade de cuidar com

405Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

a inerecircncia e propriedade de cada ser em sofrimento Mas esta discussatildeo seraacute objeto de

outras publicaccedilotildees

Assim se pudeacutessemos concluir - ou se possiacutevel fosse - esta complexa discussatildeo em ape-

nas uma frase a partir da consideraccedilatildeo da crise psiacutequica grave podemos afirmar que

precisamos considerar a diferenccedila dos seres neste tipo de crise responsabilizarmo-nos

por uma outra abordagem de cuidado que respeite a alteridade ou seja o sofrimento

psiacutequico do outro como o a priori a ser considerado antes mesmo de sua encarnaccedilatildeo

numa manifestaccedilatildeo tida psiacutequica grave ou doentia

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Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores 42

JuacuteliaSursisNobreFerroBucher-Maluschke

CamiladeAquinoMorais

DeiseMatosdoAmparo

MariaAparecidaPenso

KarlChristophKaumlppler

Introduccedilatildeo

A adolescecircncia como passagem obrigatoacuteria entre a infacircncia e a idade adulta abre um le-

que de situaccedilotildees novas e desconhecidas Trata-se de uma travessia incerta onde o jovem

procura uma afirmaccedilatildeo de si mesmo vivencia transformaccedilotildees do seu corpo descobre a

sexualidade procura sua autonomia afetiva e relacional e sua renuacutencia da infacircncia tam-

42 Projeto de Pesquisa realizado com Apoio CNPq e FAP-DF A versatildeo suiacuteccedila do Projeto Access to Mental Health Care to Children ndash (AMHC) foi financiada pela Swiss National Science Foundation

415Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

beacutem provocaraacute um gradual distanciamento dos pais e uma maior aproximaccedilatildeo de seus

pares que vivem situaccedilotildees semelhantes Portanto a adolescecircncia de um filho traz sem-

pre profundas modificaccedilotildees na forma como a famiacutelia se organiza no que diz respeito agraves

regras comunicaccedilatildeo papeacuteis crenccedilas e valores Mesmo numa perspectiva psicanalista

Erikson (1976) em sua obra claacutessica sobre a construccedilatildeo da identidade coloca que a co-

nhecida ldquocrise da adolescecircnciardquo precisa ser compreendida em seu aspecto psicossocial

pois a identidade nunca eacute estabelecida na forma de uma armadura de personalidade

estaacutetica e imutaacutevel Ao contraacuterio eacute um processo contiacutenuo de busca que se inicia no ldquoen-

contrordquo da matildee com o bebecirc e soacute termina quando dissipa o poder de afirmaccedilatildeo muacutetua

do homem O autor ressalta que esse processo tem sua crise normativa na adolescecircncia

sendo que tal crise eacute determinada de muacuteltiplas maneiras pelo que ocorreu antes e de-

termina grande parte do que ocorreraacute depois Assim quando o adolescente for confron-

tado com a crise de identidade reagiraacute de acordo com a maneira pela qual na infacircncia

integrou os diferentes elementos da identidade

Portanto para Erikson (1976) a identidade precisa ser considerada como um proces-

so complexo simultaneamente individual e cultural sendo necessaacuterio compreender o

meio no qual o sujeito vive para compreender a sua identidade A esse respeito o autor

coloca ldquo() pois estamos tratando de um processo localizado no acircmago do indiviacuteduo

e entretanto tambeacutem no nuacutecleo central da sua cultura coletiva um processo que es-

tabelece de fato a identidade destas duas identidadesrdquo (p 21) Sendo essa fase da vida

marcada por inuacutemeras transformaccedilotildees seraacute tambeacutem um momento de crise entendido

aqui como possibilidades de mudanccedilas de reorganizaccedilatildeo das relaccedilotildees e natildeo de estag-

naccedilatildeo Marcelli amp Braconnier (19841989) preferem o termo ldquorupturardquo para denominar

tais momentos de crise que segundo os autores satildeo configurados em fases de instabi-

lidade e conflitos que avanccedilam para novos estados de estabilidade Outros autores tam-

beacutem afirmam que eacute na adolescecircncia que ocorrem as maiores modificaccedilotildees no processo

vital aleacutem de uma intensa experimentaccedilatildeo de papeacuteis e situaccedilotildees sociais (Coslin 1999

Tiba 1985) Como afirma Vieytes-Shmitt (1991) ldquoIdade de paixotildees por excelecircncia de

sofrimento e ecircxtase de criatividade de explosatildeo de energia e de consciecircncia da morterdquo

(p 122)

Na perspectiva da teoria sistecircmica das relaccedilotildees familiares a adolescecircncia dos filhos

envolveraacute toda a famiacutelia e a crise de identidade seraacute tambeacutem familiar e natildeo apenas do

adolescente envolvendo questotildees de pertencimento e de separaccedilatildeo em um movimento

416

dialeacutetico (Bowen 19791991 Fishman 19881996 Minuchin 19801982 Minuchin

amp Fishman 1990) Trata-se nesta perspectiva de uma dimensatildeo interrelacional na qual

todos deveratildeo buscar um novo equiliacutebrio (Colle 19962001 De Vos Isebaert Vanaer-

de amp Van Der Auwera 1984) Isto significa que para poder se diferenciar e separar-se da

famiacutelia eacute preciso saber pertencer e eacute nesse processo que muitas vezes o adolescente

e sua famiacutelia se confundem Segundo Labaki (1997) ldquoA famiacutelia esquece que o adoles-

cente deveraacute partir e se diferenciar Mas natildeo eacute jamais pela janela que ele deveraacute sairrdquo (p

325) Nesse sentido eacute portanto na famiacutelia que o adolescente estrutura a sua persona-

lidade dentro da individuaccedilatildeo progressiva das suas diferenccedilas e da elaboraccedilatildeo da sua

identidade (Segond 1992)

Sendo a adolescecircncia uma fase crucial no processo de socializaccedilatildeo e de construccedilatildeo iden-

titaacuteria (Miermont e cols 19871994) a famiacutelia iraacute desempenhar um papel primordial

jaacute que ela eacute responsaacutevel pela transmissatildeo de regras valores e modelos de agir pensar e

sentir (Coslin 1999 Sobre o processo de ldquoadolescerrdquo familiar Outeiral (1994) escreve

O surgimento de algueacutem cronologicamente adolescente no grupo familiar faz com que todo o grupo ldquoadolesccedilardquo os pais tecircm seus aspectos adolescentes despertados e os irmatildeos mais moccedilos tambeacutem Todos identificados com o adolescente comeccedilaratildeo a apresentar ndash em maior ou menor grau ndash sentimentos e condutas adolescente (p 73)

A adolescecircncia enquanto fase da crise de identidade colocaraacute toda a famiacutelia frente aos

questionamentos sobre a sua forma de funcionamento em razatildeo da expansatildeo das rela-

ccedilotildees do adolescente gerando uma crise na famiacutelia que afeta e gera mudanccedilas em todos

os seus membros (Ausloos 1982a 1983 Colle 19962001 Cuendet 1991 Fishman

19881996 Miermont e cols 19871994 Vieytes ndash Schmitt 1991) Como fase do Ci-

clo de Vida Familiar a adolescecircncia possui algumas tarefas especiacuteficas que envolvem

todos os membros da famiacutelia pois o crescimento dos filhos pressupotildee a evoluccedilatildeo dos

pais frente a essa nova realidade Os pais satildeo confrontados com uma seacuterie de tarefas

devendo passar progressivamente de uma relaccedilatildeo filho-pais para uma relaccedilatildeo adulto-

-adulto mas que permanece marcada por um laccedilo de filiaccedilatildeo (Marcelli amp Braconnier

19841989)

Para Preto (19891995) a flexibilidade eacute que vai definir o sucesso nesse estaacutegio De

acordo com a referida autora a condiccedilatildeo para maior independecircncia e desenvolvimento

dos adolescentes nesta fase eacute o aumento da flexibilidade das fronteiras familiares e uma

417Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

nova modulaccedilatildeo da autoridade paterna Nessa mesma linha de pensamento Carter amp

McGoldrick (19891995) colocam que as famiacutelias com filhos adolescentes devem es-

tabelecer fronteiras (compreendidas aqui como o conjunto de regras que organizam

o sistema familiar) mais permeaacuteveis que as famiacutelias com filhos mais jovens e que os

pais natildeo podem mais impor uma autoridade completa Minuchin amp Fishman (1990)

enfatizam a mudanccedila na forma de negociaccedilatildeo como o fator mais relevante nesta fase

Mas lidar com essa perspectiva soacute eacute possiacutevel quando a possibilidade de diferenciaccedilatildeo

pressupotildee a existecircncia da coesatildeo e da manutenccedilatildeo da unidade do grupo familiar Caso

contraacuterio a fantasia da destruiccedilatildeo familiar iraacute dificultar a possibilidade de individuaccedilatildeo

de seus membros (Andolfi Angelo Mengh amp Corigliano 19831984) Isto significa que

a possibilidade de separaccedilatildeo precisa estar ancorada na seguranccedila da manutenccedilatildeo dos

viacutenculos familiares na famiacutelia atual

Segundo Marcelli amp Braconnier (19841989) algumas famiacutelias satildeo fraacutegeis natildeo supor-

tando os esforccedilos de separaccedilatildeo do adolescente porque estatildeo organizadas em torno de

ldquocrenccedilas fundamentaisrdquo que fazem dela um grupo unido e defensivo e dilui os limites

interindividuais e intergeracionais Nessas famiacutelias os desejos de vida autocircnoma os

questionamentos e as escolhas do adolescente satildeo percebidos como um perigo e uma

ameaccedila ao grupo familiar cujos membros reagiratildeo de forma defensiva tornando con-

fusa a individualidade e em consequumlecircncia a identidade de cada um

Por outro lado a adolescecircncia dos filhos quase sempre coincide com a meia idade

dos pais Esse fato traz agrave cena dois processos paralelos e difiacuteceis de serem enfrentados

pela famiacutelia de um lado estaacute a adolescecircncia dos filhos com todos os seus conflitos e

do outro a crise dos pais que confrontados com um decliacutenio de suas vidas precisam

assumir a natildeo realizaccedilatildeo de certos desejos amorosos e sentimentais e as limitaccedilotildees de

suas possibilidades psiacutequicas e intelectuais (Colle 19962001 Marcelli amp Braconnier

19841989 Vieytes-Schmitt 1991)

A transformaccedilatildeo que ocorre com o adolescente e as novas necessidades que despontam

nele provocaraacute tambeacutem uma transformaccedilatildeo nos papeis parentais que devem abandonar

a forma de lidar com os filhos crianccedilas para lidar com o filho que sai da infacircncia para

uma nova fase do ciclo vital que o prepararaacute para a vida adulta Muitas satildeo as famiacutelias

que natildeo conseguem assumir essas transformaccedilotildees necessaacuterias o que pode acarretar

418

inuacutemeras dificuldades nas interaccedilotildees pais e filhos e que a sociedade o Estado tem que

ir ao auxiacutelio da micro instituiccedilatildeo que eacute a famiacutelia

Egrave nesse contexto que podem surgir muitos problemas afetando a sauacutede dos adolescen-

tes entre eles apontamos para as disfunccedilotildees nos comportamentos alimentares obesi-

dade suiciacutedio e tentativas de suiciacutedio consumo de drogas consumo de tabaco proble-

mas na aacuterea sexual violecircncia e outros

Diante deste contexto foi realizada uma pesquisa com adolescentes todos frequumlentando

a escola no ensino meacutedio e seus paiscuidadores sobre a sauacutede mental dos adolescentes

e os serviccedilos de sauacutede e neste artigo apresentaremos as variaacuteveis voltadas a percepccedilatildeo

do que eacute necessaacuterio e do papel da famiacutelia para promover a sauacutede mental do adolescente

tanto na perspectiva dele quanto na perspectiva dos paiscuidadores

Meacutetodo

Participantes

Participaram dessa etapa da pesquisa 147 jovens estudantes do Ensino Meacutedio de uma

escola particular do Distrito Federal suas matildees (n = 51) e seus pais (n = 30) Para a

anaacutelise dos dados as matildees e os pais foram organizados em uma categoria denominada

cuidadores

Em relaccedilatildeo aos jovens havia 48 (327) no primeiro ano 48 (327) no segundo ano e

45 (306) no terceiro ano sendo que 6 (34) jovens natildeo informaram sua escolarida-

de Em relaccedilatildeo ao sexo 76 (517) afirmaram ser do sexo feminino 67 (456) do sexo

masculino e 4 (27) natildeo responderam A idade dos jovens variou de 14 a 18 anos um

jovem tinha 14 anos 24 (18) tinham 15 anos 49 (368) tinham 16 anos e 52 (39)

tinham mais de 16 anos e 5 (53) jovens natildeo informaram a idade Em relaccedilatildeo agrave raccedila 85

(578) afirmaram serem brancos 48 (327) serem pardos 6 (41) serem negros 2

(14) de outra cor e 6 (41) natildeo responderam Da configuraccedilatildeo familiar 95 (646)

tem pais casados ou que vivem juntos 40 jovens (272) tecircm pais separados ou divor-

ciados apenas 3 (2) tecircm pais que nunca viveram juntos e 3 (2) satildeo oacuterfatildeos de um dos

pais A questatildeo natildeo foi respondida por 6 (41) jovens

419Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

Em relaccedilatildeo aos cuidadores a amostra foi composta por 51 matildees e 30 pais que represen-

ta a participaccedilatildeo de 551 dos pais dos jovens pesquisados Em relaccedilatildeo agrave escolaridade

deles verificou-se que 58 (716) tinham niacutevel superior completo 11 (136) mestrado

ou doutorado 5 (62) niacutevel superior incompleto e 6 (74) escolaridade igual ou in-

ferior ao Ensino Meacutedio Apenas um cuidador natildeo informou a escolaridade Referente agrave

cor 60 (741) consideravam-se brancos 18 (222) pardos apenas um (12) negro e

dois (25) natildeo responderam A maioria dos cuidadores afirmou possuir renda familiar

acima de cinco mil reais 64 (79) 15 (185) afirmaram possuir renda familiar entre

quatrocentos e cinco mil reais e apenas dois cuidadores natildeo informaram a renda de sua

famiacutelia

Instrumentos

Foram utilizados dois modelos de questionaacuterios sobre sauacutede doenccedila mental e serviccedilos

de sauacutede que investigavam a visatildeo dos adolescentes e seus respectivos cuidadores Os

questionaacuterios aplicados no Brasil foram adaptados do estudo realizado anteriormente

na Suiacuteccedila por Kaumlppler Moumlhler-Kuo Gonccedilalves Gianella Peng Zehnder e Anastasi Fo-

ram elaborados a partir de um estudo qualitativo suiacuteccedilo com grupos focais de familia-

res e profissionais relacionados ao cuidado infanto-juvenil como pediatra educador

e recreacionista Os questionaacuterios aplicados no Distrito Federal e nos demais estados

que compotildee a pesquisa nacional foram traduzidos a partir de uma versatildeo lusitana do

instrumento passando por uma validaccedilatildeo semacircntica atraveacutes de estudo piloto para uma

melhor adaptaccedilatildeo da linguagem e da cultura

Os questionaacuterios contecircm questotildees qualitativas e quantitativas Estatildeo divididos em qua-

tro partes 1- investiga a visatildeo de sauacutede e doenccedila mental e de onde advecircm as ideacuteias de

sauacutede e doenccedila 2- refere-se agrave famiacutelia e investiga a dinacircmica familiar para a manutenccedilatildeo

da sauacutede mental de seus membros e como o adolescente se sente na proacutepria famiacutelia

3- aborda o bem-estar do adolescente atraveacutes de uma auto-avaliaccedilatildeo global da sauacutede 4-

avalia as condiccedilotildees de vida como sexo idade seacuterie escolar trabalho e condiccedilotildees fiacutesicas

de onde reside No questionaacuterio dos cuidadores todos os itens solicitam que estes se

refiram ao seu (sua) filho (a) que estava participando do mesmo estudo

Satildeo apresentados com o auxilio do programa SPSS18 dados das estatiacutesticas descritivas

dos itens ldquoIrdquo dos questionaacuterios dos jovens e itens ldquoI Jrdquo dos cuidadores Posterior satildeo

420

categorizadas as respostas da questatildeo 126 adolescentes e questatildeo 141 cuidadores com

o auxilio do programa estatiacutestico Alceste

Resultados e Discussatildeo

Os resultados seratildeo apresentados considerando a perspectiva de jovens e cuidadores sobre sauacutede mental buscando responder algumas perguntas O que eacute preciso para que o jovem se mantenha saudaacutevel mentalmente na famiacutelia O que o cuidador faz

para manter a sauacutede mental do jovem Como na famiacutelia do jovem se manteacutem a sauacutede

mentalemocional

Tabela 1 Manter-se saudaacutevel mentalmente na famiacutelia

Para manter-se saudaacutevel mental-mentefrasl emocio-nalmente na sua famiacutelia eacute preciso

Natildeo Em parte Bastante Totalmente

Adol

esce

nte

Cuid

ador

Adol

esce

nte

Cuid

ador

Adol

esce

nte

Cuid

ador

Adol

esce

nte

Cuid

ador

poder confiar uns nos outros

- - 3 (2) 1 (12) 28 (19) 14(173) 111(755) 66(815)

sentir-se aceito amado como se eacute

2 (14) - 7 (48) 2 (25) 32(218) 16(198) 102(694) 61(753)

ter pais que orientamensinam

- - 9 (61) 2 (25) 38(259) 15(185) 95(646) 63(778)

haver comuni caccedilatildeo agradaacutevel entre

os membros- - 6 (41) 2 (25) 40(272) 20(247) 96(656) 59(728)

ter compreensatildeo muacutetua - - 24(163) 2 (25) 39(265) 22(272) 78(531) 57(704)saber ouvir e falar entre

si estar disponiacutevel para o diaacutelogo

2 (14) 2 (25) 10(68) 1 (12) 49(333) 23(284) 82 (558) 55(679)

poder partilhar experiecircncias carregar

problemas em conjunto10 (68) 1 (12) 28 (19) 6 (74) 41(279) 23(284) 64(435) 51 (63)

421Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

Para manter-se saudaacutevel mental-mentefrasl emocio-nalmente na sua famiacutelia eacute preciso

Natildeo Em parte Bastante Totalmente

Adol

esce

nte

Cuid

ador

Adol

esce

nte

Cuid

ador

Adol

esce

nte

Cuid

ador

Adol

esce

nte

Cuid

ador

estar satisfeito e satisfazer os outros

na famiacutelia5 (34) 2 (25) 19(129) 19(235) 44(299) 35(432) 74(503) 24(296)

haver consenso acordo entre os pais

2 (14) - 13(88) 8 (99) 58(395) 27(333) 70(476) 46(568)

ter tempo livre lazer em comum

2 (14) - 21(143) 8 (99) 65(442) 30 (37) 54(367) 43(531)

ter relaccedilotildees proacuteximas com os outros

membros da famiacutelia5 (34) - 22 (15) 12(148) 64(435) 32(395) 51(347) 37(457)

chamar a atenccedilatildeo dos outros para o

lado bom das coisas3 (2) - 28 (19) 18(222) 65(442) 31(383) 46(313) 32(395)

ter as refeiccedilotildees em conjunto na famiacutelia

13 (88) 1 (12) 50(34) 14(173) 43(293) 30 (37) 37(252) 35(432)

ter uma orientaccedilatildeo religiosa

6(313) 5 (62) 41(279) 15(185) 35(238) 30 (37) 21(143) 31(383)

equiliacutebrio entre a vida profissional e privada (famiacutelia e trabalho)

- - - 3 (37) - 29(358) - 49(605)

Tabela 1 Manter-se saudaacutevel mentalmente na famiacutelia (Continuaccedilatildeo)

A tabela 1 apresenta inicialmente o que os jovens pensam sobre o que eacute necessaacuterio

para que uma pessoa possa manter-se saudaacutevel mentalmente emocionalmente na sua

famiacutelia Os resultados obtidos para a grande maioria dos jovens (973) que na famiacutelia

poder confiar uns nos outros contribui bastante ou totalmente para a sauacutede mental Em

seguida a outra condiccedilatildeo indicada para 945 dos jovens eacute a de ter uma comunicaccedilatildeo

agradaacutevel na famiacutelia e para 912 sentir-se aceito pela famiacutelia completa os fatores que

contribuem bastante ou totalmente para a sauacutede mental dos jovens

422

Esses resultados indicam que os jovens consideram a famiacutelia como uma referecircncia im-

portante para sua sauacutede mental quando ela transmite confianccedila eacute capaz de manter uma

boa comunicaccedilatildeo entre os seus membros e transmite seguranccedila ao aceitar o jovem A

literatura tem apontado que a famiacutelia eacute um esteio importante para o desenvolvimento

dos filhos quando ela assume seu papel de protetora Entre esses fatores de proteccedilatildeo

que a famiacutelia deve assumir estatildeo agrave boa qualidade dos viacutenculos familiares e a manuten-

ccedilatildeo de uma relaccedilatildeo afetiva entre pais e filhos (Minuchin 1982 Fishman19881996

Ambert 1997)

A tabela 1 apresenta tambeacutem as respostas dos paiscuidadores quando se perguntou

qual a importacircncia do significado das frases abaixo para manutenccedilatildeo da sauacutede mental

emocional na famiacutelia Os pais concordaram bastante ou totalmente com todos os itens

Estar satisfeito e satisfazer os outros na famiacutelia (728) sentir-se aceitoamado como se

eacute (951) haver comunicaccedilatildeo agradaacutevel entre os membros da famiacutelia (975) chamar a

atenccedilatildeo dos outros para o lado bom das coisas (778) saber ouvir e falar entre si estar

disponiacutevel para o diaacutelogo (963) haver consensoacordo entre os pais (901) ter pais

que orientamensinam (963) ter compreensatildeo muacutetua (976) poder partilhar na

famiacutelia experiecircncias e carregar problemas em conjunto (914) poder confiar uns nos

outros (988) terem as refeiccedilotildees em conjunto na famiacutelia (802) ter relaccedilotildees proacutexi-

mas com os outros membros da famiacutelia (852) ter uma orientaccedilatildeo religiosa (753)

ter tempo livrelazer em comum (901) ter um equiliacutebrio entre a vida profissional e a

vida privada entre famiacutelia e trabalho (955)

As respostas dos paiscuidadores indo no mesmo sentido das obtidas dos filhos adoles-

centes satildeo indicadores de que pais e filhos tecircm uma concepccedilatildeo ideal de famiacutelia e que

esta concepccedilatildeo eacute promotora de sauacutede mental e emocional Os paiscuidadores consi-

deram importante ter um tempo livre e lazer com os filhos ter refeiccedilotildees em conjunto

sendo dois aspectos indicados o que nos indica que estes aspectos satildeo considerados

importantes e que valem a pena ser investigados em que medida os paiscuidadores

dispotildees de tempo para se dedicar aos filhos Embora se constate que em Brasiacutelia muitas

famiacutelias almocem juntas a vida moderna estaacute cada vez mais transformando esta praacutetica

em funccedilatildeo da distancia do trabalho para casa e do transito cada vez mais difiacutecil levando

muito mais tempo no deslocamento

423Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

As respostas voltadas para a comunicaccedilatildeo entre paiscuidadores e adolescentes tam-

beacutem bastante enfatizada como muito importante sugerindo uma percepccedilatildeo do papel da

comunicaccedilatildeo como fator de proteccedilatildeo para os jovens A literatura tem apontado para a

relaccedilatildeo entre a maacute comunicaccedilatildeo seja ela verbal ou natildeo verbal com o surgimento de con-

flitos que podem degenerar ao ponto de se transformar numa briga explicita podendo

ateacute romper a relaccedilatildeo entre pais e filhos Uma boa comunicaccedilatildeo entre os membros da fa-

miacutelia permite a expressatildeo dos sentimentos de compartilhar as alegrias as tristezas e os

medos que assolam os adolescentes nessa fase de tantas incertezas e tantos desafios A

falta de diaacutelogo com os pais leva os adolescentes a procurar colegas que tambeacutem vivem

suas incertezas para desabafar pedir conselhos e nem sempre satildeo as pessoas adequa-

das podendo levar a situaccedilotildees inesperadas e desastrosas Neste contexto a comunicaccedilatildeo

tem um papel importante na prevenccedilatildeo dos riscos que o adolescente tem em sua vida

Nesta pesquisa adolescente e paiscuidadores reconhecem a importacircncia da comunica-

ccedilatildeo o que implica tambeacutem na importacircncia da relaccedilatildeo entre eles

Tabela 2 O que o cuidador faz para manter a sauacutede mental do jovem

O que faz para manter a sauacute-de mental do jovem

Natildeoconcordo

Concordoem parte

Concordobastante

Concordo to-talmente

dar aos meus filhos amor e seguranccedila ______ ______ 12 (148) 68 (84)

aceitar cada filho como ele eacute e natildeo preferir um em especial 1 (12) 5 (62) 8 (99) 64 (79)

conhecer os amigos dos meus filhos e incentivaacute-los a boas companhias

______ _______ 18 (222) 62 (765)

ensinar os meus filhos a ver a vida de forma positiva ______ 3 (37) 21 (259) 55 (679)

tentar perceber os meus filhos com as suas necessidades ______ 1 (12) 23 (284) 55 (679)

estar sempre disponiacutevel para ouvir e manter um diaacutelogo aberto com os meus filhos

______ 1 (12) 25 (309) 53 (654)

transmitir aos meus filhos calma e paz ______ 4 (49) 25 (309) 50 (617)

mostrar total confianccedila 1 (12) 9 (111) 21 (259) 49 (605)transmitir valorestradiccedilotildees religiosas 2 (25) 9 (111) 21 (259) 48 (593)

incentivar algumas atividades que melhor se adaptem aos seus talentos (ler jogar)

______ 6 (74) 27 (333) 47 (58)

424

O que faz para manter a sauacute-de mental do jovem

Natildeoconcordo

Concordoem parte

Concordobastante

Concordo to-talmente

incentivar a vida familiar por exemplo o estar junto ou passeios aos fins de semana

______ 3 (37) 34 (42) 42 (519)

estar feliz e alegre e tentar fazer os meus filhos felizes 1 (12) 6 (74) 33 (407) 40 (494)

motivar os meus filhos para o esporte 1 (12) 12 (148) 27 (333) 38 (469)

estar disponiacutevel para ajudar os outros ______ 9 (111) 35 (432) 36 (444)

A Tabela 2 expotildee os resultados do que os paiscuidadores fazem para manter a sauacutede mental emocional dos jovens Estes responderam concordar bastante e totalmente com todos os itens Ao detalharmos obtivemos os seguintes resultados estar feliz e ale-gre e tentar fazer os meus filhos felizes (901) aceitar cada filho como ele eacute e natildeo preferir um em especial (889) motivar os meus filhos para o esporte (802) transmitir aos

meus filhos calma e paz (926) incentivar a vida familiar por exemplo estar junto

ou passeios aos fins de semana (939) ensinar os meus filhos a ver a vida de forma

positiva (938) estar sempre disponiacutevel para ouvir e manter um diaacutelogo aberto com

os meus filhos (963) dar aos meus filhos amor e seguranccedila (988) estar disponiacute-

vel para ajudar os outros (876) mostrar total confianccedila (864) tentar perceber os

meus filhos com as suas necessidades (963) conhecer os amigos dos meus filhos e

incentivaacute-los a boas companhias (987) incentivar algumas atividades que melhor se

adaptem aos seus talentos como por exemplo tocar um instrumento ler fazer teatro

(913) transmitir valorestradiccedilotildees religiosas (852)

Observa-se nestas respostas que haacute uma compreensatildeo de que atitudes e comportamen-

tos satildeo necessaacuterios para o bom desenvolvimento da sauacutede mental e emocional dos seus

filhos adolescentes Pelas respostas dadas sobre a transmissatildeo de valores religiosos

(825 ) sugerem que os paiscuidadores tecircm uma vinculaccedilatildeo religiosa e que este pode

ser um aspecto importante de valorizaccedilatildeo da famiacutelia e do seu papel junto para o desen-

volvimento dos filhos

A anaacutelise de conteuacutedo das respostas dos adolescentes e pais cuidadores referente agrave

pergunta ldquoescreva uma frase ou palavra que represente como na sua famiacutelia se manteacutem

a sauacutede mentalemocionalrdquo mostrou diferenccedila entre esses dois grupos estatildeo os adoles-

centes representados em quadrantes opostos aos dos cuidadores

425Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

A Tabela 3 apresenta classe de resposta dos adolescentes que foram subcategorizadas

em duas e a dos paiscuidadores em trecircs

Tabela 3 Categorizaccedilatildeo das respostas que representam a manutenccedilatildeo da sauacutede na famiacutelia

Categorias - Descriccedilatildeo Adolescentes Cuidadores

Classe 1

INTERACcedilAtildeO DIALOacuteGICA COM BEM ESTAR

Interaccedilatildeo que caracterize diaacutelogo colaboraccedilatildeo e sentimento de felicidade alegria e bem estar

Rir - Confianccedila - Se amar Dialogo - HarmoniaResponsabilidade Estar presente no dia-a-dia

Diversatildeo ndash Carinho - Elogiando Acompanhando momentos de alegria e dificuldade

Colaborando uns com os outros Buscando ser melhor a cada dia

Atenccedilatildeo as necessidades do outro Nos corrigindoPaz nas refeiccedilotildees - Forca Minimizar desigualdades

Mostrar o certo e o errado Orientando sobre diversos temas

Resolver problemas e conflitos Respeito muacutetuoAconselham -Me fazem felizes Amor ndash Afeto - CarinhoAjudam - Almoccedilos em famiacutelia Consenso - Apoio muacutetuo

Uniatildeo - Solidariedade Estudar para depois conseguir o que gosta

Dialogo - CompreensatildeoAjudando a cada membroSer amigo uns dos outros

Ser autocircnomaSer amigo de si mesmo

Manter e incentivar o bem-estarHarmonia ndash Respeito - Amor

Classe 2

INTERACcedilAtildeO COMPREENSIVA E INTEGRATIVA

Interaccedilatildeo que caracterize aceitaccedilatildeo compreensatildeo

e respeito muacutetuo

Praticar atividades juntos Amizade ndash Humor ndash Harmonia - Incentivo

Conversar - Compreender Comunicaccedilatildeo constante

Igreja ndash Uniatildeo - Ajudar Ver diferenccedila entre o essencial e ocasional

Aceitar diferenccedilas respeito muacutetuoQueremos o bem de todos Visatildeo positiva da vida

Sentir aceito - Sentir amado InteresseManter dialogo - Somos

uma equipe Buscar a felicidade

Sempre juntos natildeo importa o que ocorra Paciecircncia

Almoccedilos juntos - Saber ouvirMostrar preocupaccedilatildeo com o outro

426

Categorias - Descriccedilatildeo Adolescentes Cuidadores

Classe 3

INTERACcedilAtildeO DE CONFIANCcedilA ORIENTACcedilAtildeO E HARMONIA

Interaccedilatildeo caracterizada pela orientaccedilatildeo confianccedila harmonia

e apoio muacutetuo e lazer

Orientaccedilatildeo - comunicaccedilatildeoUniatildeo- Amor- Harmonia-

SinceridadeConfianccedila ndash Conversar

- Lazer juntosFinais de semana juntosTomar decisotildees juntosEnfrentar dificuldades

juntosTirar feacuterias juntos

Forca Confiar em Deus

Importar uns com os outros

Os dados obtidos na questatildeo abertas para os dois grupos corroboraram o que indicaram

nas questotildees apresentadas na tabela 1 e na tabela 2 Ou seja ambos os grupos indicam

o que pode ser importante para o desenvolvimento da sauacutede mental dos adolescentes

Ambos os grupos apontam para alguns aspectos que consideram importante para a

sauacutede mental A maior parte dos aspectos enfatizados tem relaccedilatildeo com as categorias de

integraccedilatildeo confianccedila manutenccedilatildeo do diaacutelogo e do bem estar no contexto familiar Os

aspectos enfatizados revelam tambeacutem o enfoque na necessidade de realizarem tarefas

juntos de lazer e de finais de semana o que sugere uma percepccedilatildeo da necessidade de

momentos de aproximaccedilatildeo Outro aspecto que consideramos relevante e que confir-

mam os dados indicados nas tabelas anteriores eacute a ecircnfase dada agrave necessidade e a impor-

tacircncia de considerar o outro e ao se sentir aceito pelo outro sugerindo uma percepccedilatildeo

da importacircncia dos aspectos relacionais base para uma comunicaccedilatildeo saudaacutevel como jaacute

mencionamos anteriormente

Podemos concluir que tanto os adolescentes quanto os paiscuidadores tecircm uma niacutetida

percepccedilatildeo dos fatores importantes para serem realizados nas famiacutelias para o desenvol-

vimento de uma boa sauacutede mental

427Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

Consideraccedilotildeesfinais

Os resultados apresentados neste artigo sugerem que haacute muita clareza na percepccedilatildeo

tanto dos jovens quanto de seus paiscuidadores dos fatores que contribuem para a

sauacutede mental desses jovens Podemos considerar que indicaram fatores de proteccedilatildeo agrave

vulnerabilidade proacutepria da etapa de vida do jovem

Diante desta percepccedilatildeo bem ideal esperada da famiacutelia vemos a necessidade de estudar-

mos a famiacutelia real ou aquela em que esses fatores conhecidos por ambos os grupos satildeo

ou natildeo vivenciados na famiacutelia e a partir daiacute conhecermos o que estaacute ocorrendo de fato

na preservaccedilatildeo da sauacutede mental dos adolescentes

Sabe-se que nem sempre o conhecimento as atitudes e os comportamentos ou praacuteticas

andam de matildeos dadas e esta eacute a nossa proacutexima tarefa que permitiraacute dar um melhor

suporte agraves poliacuteticas publicas tanto no campo da sauacutede mental quanto dos cuidados em

sauacutede mental para as famiacutelias e os adolescentes

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429Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

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430

Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

GlaacuteuciaDiniz

TerezinhaFeacuteres-Carneiro

Relaccedilotildees interpessoais constituem uma das questotildees fundamentais para os psicoacutelogos

Dentre as vaacuterias formas de relacionamento o casamento tem sido uma aacuterea que des-

perta o interesse de pesquisadores teoacutericos e cliacutenicos O comportamento e a interaccedilatildeo

entre os esposos quando vistos como um sistema satildeo influenciados por dois eixos

fundamentais O primeiro diz respeito agraves caracteriacutesticas de cada parceiro e agrave dinacircmica

interacional que existe entre eles O segundo estaacute relacionado ao impacto que fatores do

ambiente exercem sobre o relacionamento Inclui-se aqui a presenccedila ou natildeo de filhos a

influecircncia da famiacutelia de origem de ambos na conjugalidade o tipo de inserccedilatildeo no mun-

do do trabalho a rede de apoio social a filiaccedilatildeo religiosa como alguns de muitos ele-

mentos que podem afetar a relaccedilatildeo Esta definiccedilatildeo do comportamento de um casal leva

em consideraccedilatildeo portanto a influecircncia de variaacuteveis pessoais interacionais e sociais

431Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

A experiecircncia conjugal e familiar ocorre em um contexto multisistecircmico A interaccedilatildeo

entre estes vaacuterios niacuteveis eacute importante e afeta todas as diacuteades independentemente do

modelo de conjugalidade e de vida familiar escolhido Feacuteres-Carneiro (1998) sintetiza

bem um dos dilemas cruciais da experiecircncia conjugal

ldquoCostumo dizer que todo fasciacutenio e toda dificuldade de ser casal reside no fato de o casal encerrar ao mesmo tempo na sua dinacircmica duas individualidades e uma conjugalidade ou seja de o casal conter dois sujeitos dois desejos duas inserccedilotildees no mundo duas percepccedilotildees do mundo duas histoacuterias de vida dois projetos de vida duas identidades individuais que na relaccedilatildeo amorosa convivem com uma conjugalidade um desejo conjunto uma histoacuteria de vida conjugal um projeto de vida de casal uma identidade conjugal Como ser dois sendo um Com ser um sendo doisrdquo (p 379)

Questotildees em torno da definiccedilatildeo do que eacute uma famiacutelia do que eacute um casamento e de

quais satildeo os papeacuteis do homem e da mulher tanto no acircmbito familiar quanto social

marcam a cena social e acadecircmica a partir da segunda metade do seacuteculo XX O fato

eacute que passamos de uma visatildeo estaacutetica da vida familiar para uma ideacuteia da famiacutelia em

processo de desenvolvimento e movimento ao longo de um ciclo vital Saiacutemos de uma

definiccedilatildeo riacutegida de papeacuteis para o homem e a mulher para um contexto onde estes pa-

peacuteis estatildeo sendo questionados e ampliados O determinismo bioloacutegico que impregnava

esta divisatildeo de papeacuteis foi sendo substituiacutedo por uma noccedilatildeo da influecircncia dos fatores

histoacutericos sociais econocircmicos e culturais sobre o desenvolvimento individual e conse-

quumlentemente sobre as expectativas em relaccedilatildeo ao desempenho de homens e mulheres

nos vaacuterios contextos e de modo especial no casamento e na famiacutelia

A ideacuteia de crise associada agrave identidade da famiacutelia e agrave identidade de seus membros e aos

papeacuteis que eles devem desempenhar ganhou popularidade Fala-se muitas vezes com

saudosismo de certo tempo em que a vida os papeacuteis familiares e os valores associados

agraves funccedilotildees de ambos os esposos eram claros e bem definidos A ideacuteia da existecircncia de

uma crise eacute ancorada por um pressuposto raramente desvelado a mitificaccedilatildeo de um

modelo de relacionamento Este modelo ao ser associado a adjetivos como normal me-

lhor natural passou a ser visto como aquele que atende agrave natureza do homem e da mu-

lher e agraves necessidades de procriaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da ordem social Ganhou portanto

um status atemporal

432

Grupos sociais que idealizam a chamada ldquofamiacutelia tradicionalrdquo muitas vezes esquecem

que ela tambeacutem foi produto de um momento histoacuterico e social especiacutefico e que as

contingecircncias que produziram este arranjo familiar que durante muito tempo foi visto

como a norma e o modelo ideal jaacute natildeo existem mais O intrincado conjunto de fatores

e circunstacircncias que compotildeem o momento histoacuterico atual estaacute exigindo novas reorga-

nizaccedilotildees conjugais e familiares Ousaremos propor entatildeo que a ideacuteia de crise como

falecircncia social seja substituiacuteda pela ideacuteia de crise como momento de transiccedilatildeo no con-

texto social

Transiccedilatildeo eacute sinocircnimo de oportunidade Carter e McGoldrick (1995) ao trabalharem

com famiacutelias numa perspectiva sistecircmica e do ciclo de vida familiar chamam a atenccedilatildeo

para a complexidade presente nos momentos de transiccedilatildeo que satildeo etapas de passagem

de um estaacutegio para outro do processo de desenvolvimento familiar Nesses momentos

a famiacutelia pode se apegar agrave sua forma de funcionar e enrijecer ou pode se flexibilizar

para incorporar novas estrateacutegias de funcionamento e assim crescer Da mesma for-

ma que a famiacutelia a sociedade precisa se reorganizar para que seus membros possam

prosseguir em seu desenvolvimento levando em conta novos processos que afetam a

dinacircmica social

Compreender os fenocircmenos que estatildeo provocando esta reorganizaccedilatildeo dos casamentos

e das famiacutelias constitui um desafio importante Jablonski (19911998) ao longo da deacute-

cada de 1990 explorou vaacuterias mudanccedilas sociais que estavam produzindo impactos nas

relaccedilotildees interpessoais sobretudo no casamento e na vida familiar Por entendermos

que mudanccedilas sociais satildeo processos que demoram a se sedimentar e por acreditarmos

que a anaacutelise continua relevante apresentamos brevemente as questotildees levantadas pelo

autor

1 A passagem da obediecircncia cega aos valores religiosos para uma situaccedilatildeo de reli-

giosidade e cultivo da espiritualidade promove uma resignificaccedilatildeo do juramento

de amor eterno uma vez que nesse contexto ganham preponderacircncia os valores

pessoais

2 A transformaccedilatildeo social gerada pela modernizaccedilatildeo e pela urbanizaccedilatildeo produziu um

isolamento relacional da famiacutelia que se torna a fam-ilha afastada de suas origens

e apegada agrave sua intimidade e privacidade Este isolamento gera ocircnus para os mem-

433Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

bros da diacuteade conjugal que passa a ter a funccedilatildeo de suprir a maior parte das neces-

sidades emocionais um do outro O peso dessa tarefa gera demandas e conflitos agraves

vezes identificados como insuperaacuteveis pelos cocircnjuges

3 A ecircnfase no amor-paixatildeo como condiccedilatildeo sine qua non para a manutenccedilatildeo e equi-

liacutebrio do relacionamento e a dificuldade que os casais encontram de lidar com a

transformaccedilatildeo desse amor em um sentimento mais maduro que possa resistir aos

desafios do dia a dia tem sido uma alegaccedilatildeo constante para a dissoluccedilatildeo da vida a

dois

4 O aumento na taxa de longevidade estaacute tornando o ateacute que a morte nos separe em um

momento distante demais Homens e mulheres ao viverem mais tecircm espaccedilo para

questionarem e reavaliarem suas necessidades ao longo do ciclo vital se permitin-

do eventualmente a escolha de uma outroa parceiroa

5 Os meios de comunicaccedilatildeo de massa ganharam um papel preponderante na vida

contemporacircnea Passaram a atuar como questionadores divulgadores e ateacute for-

madores de valores Em um momento de transiccedilatildeo social como este eacute importante

estarmos atentos ao papel que esses meios tecircm sobre as pessoas ao retratarem e

questionarem as relaccedilotildees homem e mulher o casamento e a famiacutelia

6 O movimento feminista constitui outro fator apontado tanto Jablonski (19911998)

quanto por outros autores (Castells 1999 Diniz 1999b Giddens 2004 Narvaz e

Koller 2006 2007) como accedilatildeo poliacutetica e social que teve um papel fundamental na

mudanccedila das relaccedilotildees entre homens e mulheres

Os feminismos em suas diversas vertentes ao questionarem os direitos tantos pes-

soais quanto sociais da mulher abriram espaccedilo para novas ideacuteias e novos padrotildees de

comportamento Um exemplo marcante do reflexo dessas ideacuteias eacute a liberaccedilatildeo sexual

A concepccedilatildeo de igualdade entre homens e mulheres associada ao surgimento de meacute-

todos contraceptivos eficazes redimensionou a vivecircncia da sexualidade para as mulhe-

res A consequumlente valorizaccedilatildeo da sexualidade e do erotismo ao se contrapor a valores

herdados de uma visatildeo do casamento como monogacircmico e duradouro gera conflitos e

dilemas para os parceiros atuais

434

A emancipaccedilatildeo feminina foi outro subproduto importante dos feminismos Este fe-

nocircmeno da emancipaccedilatildeo contribuiu para o aumento da necessidade de mulheres de

desenvolverem uma identidade proacutepria e as impulsionou a ampliar sua participaccedilatildeo

social especialmente no mercado de trabalho Vale ressaltar que mulheres principal-

mente as de classes menos favorecidas sempre participaram da forccedila de trabalho atra-

veacutes da histoacuteria Um exemplo foi a revoluccedilatildeo industrial que contou com a matildeo de obra

de mulheres solteiras e crianccedilas Durante o seacuteculo XX um contingente de mulheres

das classes meacutedias casadas e com filhos ingressou no mundo do trabalho Esta entrada

maciccedila de mulheres casadas na forccedila de trabalho eacute considerada o fator que mudou fun-

damentalmente as relaccedilotildees familiares ao longo do seacuteculo passado (Perlin e Diniz 2005

Diniz 2004 1999 1996 Hare-Mustin 1988)

A participaccedilatildeo da mulher casada no mercado de trabalho provoca alteraccedilotildees no arranjo

previamente estabelecido no seio da famiacutelia tradicional e promove um questionamento

dos papeacuteis e estereoacutetipos de gecircnero que o justificaram (Diniz 2004 Narvaz e Koller

2006) Gecircnero diz respeito ao coacutedigo de conduta que rege a organizaccedilatildeo social das rela-

ccedilotildees entre homens e mulheres O conceito de gecircnero passou a ser engendrado a partir

daquilo que se convencionou denominar de ldquosegunda ondardquo do movimento feminista

que ocorreu durante a deacutecada de 1960 O movimento feminista americano usou o ter-

mo gecircnero para distinguir a condiccedilatildeo bioloacutegica de ser homem e ser mulher da heran-

ccedila soacutecio-cultural que se agrega agrave noccedilatildeo de masculino e feminino (Diniz 1999 2003

2004 Narvaz e Koller 2007)

As discussotildees em torno do conceito evidenciaram a construccedilatildeo relacional e a organiza-

ccedilatildeo social das diferenccedilas entre os sexos colocando em questatildeo o determinismo bioloacute-

gico e econocircmico e as muacuteltiplas relaccedilotildees de poder que perpassam o ser homem e o ser

mulher no mundo Nesse contexto fica claro o caraacuteter social da vivecircncia da masculini-

dade e da feminilidade O fato eacute que toda cultura em cada momento histoacuterico propotildee

paracircmetros que organizam as relaccedilotildees entre os sexos (Scott 1995 Meyer1999 Diniz

1999 2003 Narvaz e Koller 2007)

A interaccedilatildeo entre gecircnero e as vaacuterias dimensotildees da experiecircncia de homens e mulheres

precisa ser levada em conta Narvaz e Koller (2007) ressaltam a importacircncia de identifi-

carmos ldquoproduccedilotildees discursivas que legitimam desigualdades de gecircnero e normatizam

papeacuteis e lugares de gecircnero nas relaccedilotildees afetivas sexuais e familiaresrdquo (p216)

435Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

O arranjo relacional tradicional estava baseado em uma divisatildeo clara de papeacuteis entre

homens e mulheres O investimento no trabalho e no mundo externo ou seja a in-

serccedilatildeo profissional com o intuito de garantir a sobrevivecircncia e a manutenccedilatildeo da famiacutelia

constituiacutea a funccedilatildeo primordial dos homens Cabia agraves mulheres lidar com o mundo in-

terno ou seja cuidar da administraccedilatildeo da casa da educaccedilatildeo dos filhos e da vida social

e emocional da famiacutelia garantindo dessa forma o seu bem-estar

No contexto atual mulheres estatildeo lidando com demandas que limitam sua participaccedilatildeo

na famiacutelia ao passo que os homens estatildeo desenvolvendo outras prioridades aleacutem do

trabalho e estatildeo ampliando seu envolvimento com a vida familiar (Diniz 2004) Essa

mudanccedila exige que homens e mulheres tenham flexibilidade para ampliar os padrotildees

de comportamento aprendidos na infacircncia incorporando ao seu repertoacuterio qualidades

e competecircncias atribuiacutedas anteriormente ao outro sexo Feacuteres-Carneiro Ponciano e

Magalhatildees (2007) chamam atenccedilatildeo para os desafios gerados por essa flexibilizaccedilatildeo de

papeacuteis As autoras apontam que essa nova forma de funcionar como casal e como famiacute-

lia estaacute pautada em uma ideologia individualista mas que ao mesmo tempo preconiza

a igualdade entre os membros da famiacutelia

O fato eacute que o casamento tradicional deixou de ser a norma social Prevalece hoje uma

multiplicidade de modelos e arranjos conjugais e familiares Feacuteres-Carneiro Ponciano e

Magalhatildees (2007) propotildeem que a transiccedilatildeo da famiacutelia tradicional hieraacuterquica e patriar-

cal para a famiacutelia moderna pautada na renegociaccedilatildeo dos papeacuteis e na democratizaccedilatildeo

das relaccedilotildees familiares seja analisada a partir de dois paracircmetros ndash a retraccedilatildeo e a inti-

midade A retraccedilatildeo diz respeito agrave diminuiccedilatildeo do tamanho da famiacutelia o que implica em

uma saturaccedilatildeo emocional e no aumento da responsabilidade dos pais como modelos

para os filhos A intimidade gera desafios para a negociaccedilatildeo das identidades pessoais

uma vez que paralelo ao oferecimento de paracircmetros de conduta eacute funccedilatildeo dos pais

propiciarem um espaccedilo para a liberdade de escolhas de modo a criar pessoas livres e

autocircnomas

O objetivo desse texto eacute promover uma reflexatildeo sobre mudanccedilas que estatildeo ocorrendo

nas relaccedilotildees interpessoais em especial no casamento e na famiacutelia no Brasil a partir de

resultados do Censo 2010 (IBGE 2012) Tomamos como ponto de partida uma breve

contextualizaccedilatildeo histoacuterica das muacuteltiplas configuraccedilotildees das famiacutelias brasileiras Em se-

guida apresentamos e problematizamos dados do Censo 2010 agrave luz de resultados de

436

pesquisas Concluiacutemos com reflexotildees sobre os desafios gerados pela tensatildeo entre ve-

lhos e novos modelos de conjugalidade e de famiacutelia

BreveContextualizaccedilatildeoHistoacutericadasConfiguraccedilotildeesdasFamiacuteliasBrasileiras

A histoacuteria do Brasil da colonizaccedilatildeo aos dias atuais nos fornece os paracircmetros para en-

tendermos a diversidade de arranjos conjugais e as muacuteltiplas configuraccedilotildees das famiacutelias

brasileiras Diniz e Coelho (2005) ressaltam que essa contextualizaccedilatildeo histoacuterica social

e cultural eacute fundamental para compreendermos a intricada teia que une o passado e o

presente

ldquo a compreensatildeo da vida conjugal e familiar de hoje pressupotildee uma visatildeo criacutetica acerca dos modelos naturalizantes de famiacutelia que surgiram ao longo do tempo Tal postura criacutetica eacute fundamental para o reconhecimento da riqueza e diversidade da vida familiar brasileirardquo (p 139)

A colonizaccedilatildeo europeacuteia deixou marcas em nossa sociedade A sociedade brasileira foi e

eacute no entanto produto da interaccedilatildeo entre diversos grupos eacutetnicos e sociais com formas

de organizaccedilatildeo proacuteprias Os processos de miscigenaccedilatildeo de raccedilas costumes e valores es-

tatildeo presentes e datildeo caracteriacutesticas proacuteprias agrave nossa sociedade ateacute os dias de hoje (Diniz

e Coelho 2005)

O modelo de famiacutelia extensa do tipo patriarcal predominou durante muito tempo em al-

gumas regiotildees do Brasil Nesse modelo de famiacutelia havia uma expectativa clara em torno

do papel da mulher - ela devia ser doce passiva e obediente para com os pais irmatildeos e

maridos Neder (1994) ressalta no entanto que mesmo dentro das famiacutelias patriarcais

de origem ibeacuterica e tradicional havia diferenccedilas A autora aponta que a famiacutelia patriarcal

dos engenhos nordestinos era diferente das famiacutelias patriarcais do sudeste do Brasil

Essas famiacutelias tinham em comum o caraacuteter repressivo conservador disciplinador e

controlador Entretanto o papel da mulher divergia nos dois contextos nos engenhos

elas tinham suas vidas circunscritas agrave casa grande e marcadas por atitudes de subalter-

nidade e subserviecircncia no sudeste elas tinham uma vida mais ativa pois cabia a elas

administrar as fazendas durante os periacuteodos de ausecircncia dos homens em funccedilatildeo dos

processos de colonizaccedilatildeo das ldquoentradas e bandeirasrdquo

437Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

As famiacutelias de indiacutegenas e negros tambeacutem eram caracterizadas pela mesma diversidade

presente nas famiacutelias brancas Pessoas de culturas diferentes e de diversas regiotildees do

continente africano foram trazidas para o Brasil e vivenciaram processos de acultura-

ccedilatildeo distintos em funccedilatildeo da regiatildeo do paiacutes em que foram alocadas De forma similar as

tribos indiacutegenas possuiacuteam costumes diversificados e passaram por processos de acul-

turaccedilatildeo diversos Esses grupos familiares compartilhavam entretanto a precariedade

das condiccedilotildees de vida marcadas pela presenccedila constante de depreciaccedilatildeo descaso pre-

conceito e exclusatildeo social mesmo apoacutes a independecircncia e o fim da escravidatildeo (Diniz e

Coelho 2005 Neder 1994 Bruschini 1981)

Levar em conta toda essa diversidade cultural implica em refletir tambeacutem sobre o lu-

gar do casamento para esses grupos sociais O casamento legal era uma prerrogativa

da parcela da populaccedilatildeo de raccedila branca e economicamente privilegiada Entre negros

e migrantes das demais classes sociais predominavam as uniotildees consensuais apesar

das ameaccedilas de puniccedilatildeo da Igreja Esse processo demarcava a existecircncia de contradiccedilatildeo

entre a moral vigente e as praacuteticas sociais O casamento formal era importante para as

camadas abastadas que tinham preocupaccedilatildeo com a legitimidade da prole e com a heran-

ccedila (Diniz e Coelho 2005 Samara 1987)

Mulheres de raccedila negra raramente contraiam o matrimonio oficialmente Falci (2001)

aponta que tal comportamento natildeo pode ser confundido com falta de compromisso com

a vida conjugal e familiar Da mesma forma que elas podiam ter companheiros tempo-

raacuterios tambeacutem podiam ter relacionamentos estaacuteveis e duradouros Essas diferenccedilas em

torno da vivecircncia da conjugalidade satildeo vaacutelidas para mulheres de descendecircncia indiacutegena

e de outras origens eacutetnicas Essas famiacutelias das classes populares construiacutedas com base

na informalidade eram caracterizadas por forte dependecircncia da rede de parentesco

para garantir o cuidado dos filhos assim como o suprimento de necessidades econocirc-

micas Elas eram e ainda costumam ser olhadas e avaliadas de forma preconceituosa

(Diniz e Coelho 2005 Praciano 2011)

Essa breve reflexatildeo histoacuterica eacute importante por dar sentido e colocar em perspectiva re-

sultados do Censo 2010 (IBGE 2012) Os resultados divulgados estabelecem uma com-

paraccedilatildeo entre a realidade brasileira do ano 2000 ou seja no iniacutecio da deacutecada com a

realidade do ano de 2010 final da primeira deacutecada do seacuteculo Esses dados precisam e

devem ser objeto de anaacutelise e reflexatildeo

438

As Mudanccedilas nos Casamentos e nas Famiacutelias Brasileiras

A vida conjugal e familiar no Brasil sofreu mudanccedilas profundas nas duas uacuteltimas deacute-

cadas Dados do Censo 2010 divulgados recentemente pelo Instituto Brasileiro de Ge-

ografia e Estatiacutestica (IBGE 2012) mostram tendecircncias que estatildeo reconfigurando casa-

mentos e famiacutelias de todas as classes sociais e em todas as regiotildees do paiacutes Os resultados

apontam que mudanccedilas nas formas de viver e de se relacionar satildeo afetadas por fatores

econocircmicos ambientais culturais

Os dados do Censo 2010 evidenciam que o nuacutemero de pessoas unidas por casamen-

tos civis e religiosos diminuiu ao longo da deacutecada 2000-2010 passou de 49 4 para

429 A adesatildeo a uma crenccedila religiosa apareceu com um fator relevante para a forma-

lizaccedilatildeo da uniatildeo que acontece com maior frequumlecircncia entre pessoas que se declararam

catoacutelicas ndash 375 ou evangeacutelicas ndash 265 Acompanhando tendecircncia similar o nuacutemero

de pessoas casadas caiu de 370 para 348 Homens tendem a se casar em torno dos

259 anos e as mulheres em torno dos 23 anos Na regiatildeo Sudeste homens e mulheres

tendem a se casar mais tarde do que nas demais regiotildees

Uma constataccedilatildeo importante eacute que 693 das pessoas no Brasil escolhem parceiras

os da mesma corraccedila Esse comportamento eacute mais marcante entre brancos (745)

pardos (685) e indiacutegenas (65) Entre osas respondentes de raccedila negra os homens

tenderam a escolher mulheres negras em menor percentual (399) do que as mulhe-

res negras (503) escolhem homens do mesmo grupo

A escolaridade eacute outra dimensatildeo importante ligada agrave escolha de parceirosas Em 2010

682 das pessoas estavam unidas a parceirosas do mesmo niacutevel de instruccedilatildeo enquan-

to que em 2000 eram 63 O niacutevel educacional parece ser mais relevante para mulhe-

res ndash 512 das mulheres com niacutevel superior completo tecircm como parceiro homens do

mesmo niacutevel educacional Entre os homens essa proporccedilatildeo eacute de 47 Feacuteres-Carneiro

(1997) referindo-se ao estudo de Kenrich Sadala Groth e Trost (1990) ressalta dados

importantes para entendermos essa diferenciaccedilatildeo entre homens e mulheres Segundo

a autora

ldquomulheres satildeo mais criteriosas ao escolherem parceiros para qualquer niacutevel de envolvimento enquanto os homens o satildeo apenas quando escolhem parceiras para fins de casamento Atributos como compreensatildeo gentileza e inteligecircncia satildeo avaliados pelos homens como pouco importantes na parceria

439Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

potencial quando se trata de um envolvimento para fins sexuais o mesmo natildeo ocorrendo com as mulheres em relaccedilatildeo agraves suas escolhasrdquo (p 352)

Os dados do censo mostraram que o niacutevel educacional tem relaccedilatildeo direta com a taxa de

fecundidade Mulheres sem instruccedilatildeo e com ensino fundamental incompleto chegam a

ter trecircs (3) filhos ao passo que mulheres com niacutevel de ensino superior completo tendem

a ter uma taxa de fecundidade de um (1) filho

Chama atenccedilatildeo o fato de que a taxa de fecundidade definida como o nuacutemero meacutedio de

filhos que uma mulher teria ao final de seu periacuteodo feacutertil vem caindo no paiacutes nos uacutelti-

mos setenta anos ndash passou de 616 em 1940 para 190 em 2010 O IBGE (2012) aponta

que a taxa atual estaacute abaixo do niacutevel de reposiccedilatildeo que eacute de 2 filhos por mulher Apenas

a regiatildeo norte do paiacutes ainda manteacutem uma taxa de reposiccedilatildeo acima desse niacutevel desejado

Importante ressaltar tambeacutem a relaccedilatildeo entre renda e fecundidade ndash a taxa de fecundida-

de de mulheres com rendimento domiciliar per capita acima de um (1) salaacuterio miacutenimo

tambeacutem fica abaixo do niacutevel de reposiccedilatildeo (IBGE 2012)

Mudanccedilas na taxa de fecundidade vecircm alterando a estrutura das famiacutelias hoje 202

das famiacutelias satildeo formadas por casais sem filhos esse percentual era de 149 no iniacutecio

da deacutecada Famiacutelias compostas por casais com filhos residem predominantemente nas

aacutereas rurais local onde historicamente as taxas de fecundidade satildeo mais elevadas e o

apego a valores tradicionais eacute maior Processos de migraccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo vecircm afetando

a configuraccedilatildeo das famiacutelias brasileiras

Os dados do IBGE (2012) revelaram que no grupo formado por pessoas entre 20 a 29

anos de idade 536 dos homens e 385 das mulheres nunca viveram e nem viviam

em uniatildeo quando responderam ao censo Jablonski fez uma pesquisa longitudinal nos

anos 1988 1993 2003 e 2009 sobre as expectativas de jovens solteiros em relaccedilatildeo ao

casamento O objetivo da pesquisa foi identificar como pessoas jovens de ambos os se-

xos lidam com os dilemas provocados pela presenccedila de velhos e novos modelos de con-

jugalidade A uacuteltima pesquisa contou com 436 participantes (200 do sexo masculino e

236 do sexo feminino) com idade entre 18 e 25 Todos eram estudantes em faculdades

puacuteblicas e particulares da cidade do Rio de Janeiro e de outras localidades do estado

Dados das coletas realizadas mostraram que a maioria dos jovens - 91 86 86 e

82 respectivamente - afirmou ter a intenccedilatildeo de casar Eacute fato que houve uma diminui-

440

ccedilatildeo dos iacutendices ao longo do periacuteodo mas o percentual encontrado mostra que a ideacuteia de

casamento natildeo encontra rejeiccedilatildeo entre jovens (Jablonski 2011)

A intenccedilatildeo de casar natildeo implica necessariamente em contrair uma uniatildeo formal A

vida a dois pode assumir diversos formatos tais como a coabitaccedilatildeo definida como vi-

ver junto sem papel assinado Outro modelo de vida a dois possiacutevel eacute o ldquoviver junto de

forma separadardquo ou seja as pessoas se definem como casal mas vivem em residecircncias

distintas preservando assim um espaccedilo para suas individualidades

Outra pergunta formulada aos jovens foi se eles acreditam que passaratildeo ldquoo resto da vida

com uma soacute pessoardquo Paradoxalmente os iacutendices de resposta encontrados ndash 49 66

756 e 714 satildeo elevados e mostram um aumento seguido de um pequeno recuo

Apesar das dificuldades para manter um relacionamento o autor entende que esse dado

reflete o fato de que as pessoas desejam que suas relaccedilotildees sejam bem sucedidas inde-

pendentemente da realidade que os cerca ndash aumento das taxas de divoacutercio e separaccedilatildeo

Jablonski (2011)

Houve um aumento nas uniotildees consensuais na sociedade brasileira ndash essas uniotildees su-

biram de 286 para 364 entre 2000 e 2010 Elas continuam mais frequumlentes entre

pessoas com rendimentos menores e com idade inferior a 39 anos A distribuiccedilatildeo tam-

beacutem eacute marcada pela categoria raccedilacor ndash 466 de pretos e 426 de pardos disseram

viver nesse tipo de uniatildeo

As diferenccedilas regionais tambeacutem permanecem evidentes ndash enquanto o Amapaacute apre-

sentou o maior percentual de uniotildees consensuais (635) Minas Gerais apresentou o

menor (259) (IBGE 2012) Esse dado revela a permanecircncia de dimensotildees histoacutericas

Apesar da melhoria da condiccedilatildeo econocircmica de grande parte da populaccedilatildeo em funccedilatildeo do

desenvolvimento de poliacuteticas sociais ainda prevalece uma grande discrepacircncia econocirc-

mica e de acesso a bens e serviccedilos entre as diversas camadas da sociedade e as regiotildees

brasileiras De acordo com anaacutelise do IBGE (2012) a experiecircncia de uniatildeo estaacutevel eacute

maior entre pessoas que tecircm rendimento de ateacute ― salaacuterio miacutenimo que vivem portanto

em condiccedilotildees socioeconocircmicas precaacuterias

O nuacutemero de pessoas divorciadas praticamente dobrou ndash foi de 17 em 2000 para

31 em 2010 O Distrito Federal apresentou o maior iacutendice de pessoas divorciadas

441Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

(42) seguido dos estados do Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul ambos com 41 O

Maranhatildeo foi o estado brasileiro com menor percentual de pessoas divorciadas ndash 12

O percentual de pessoas separadas tambeacutem aumentou ndash foi de 119 em 2000 para

146 em 2010 O Rio de Janeiro foi o estado brasileiro que apresentou o maior percen-

tual de separaccedilotildees ndash 175

Mais pessoas estatildeo vivendo sozinhas no paiacutes De acordo com o IBGE (2012) as denomi-

nadas unidades domeacutesticas unipessoais ou seja domiciacutelios com apenas um moradora

passaram de 92 em 2000 para 121 em 2010 Fatores como a centralidade do

trabalho o estresse a falta de tempo a presenccedila de maior sentimento de liberdade a

necessidade de experimentar muacuteltiplos relacionamentos podem explicar o crescimento

desse tipo experiecircncia ldquofamiliarrdquo

A constataccedilatildeo do aumento da chefia feminina foi outro resultado marcante do Censo de

2010 (IBGE 2012) A proporccedilatildeo de famiacutelias sob a responsabilidade de mulheres passou

de 222 no ano 2000 para 373 em 2010 Um dado interessante eacute que mesmo em

lares que contam com a presenccedila de cocircnjuge a chefia feminina cresceu de 195 para

464 nessa deacutecada O IBGE (2012) aponta que processos como o ingresso maciccedilo de

mulheres no mercado de trabalho o aumento da escolaridade superior entre o con-

tingente feminino da populaccedilatildeo e a mudanccedila de postura em relaccedilatildeo ao papel social de

mulheres estatildeo relacionados com essa mudanccedila

Famiacutelias reconstituiacutedas formadas em funccedilatildeo de separaccedilatildeo ou morte dos cocircnjuges re-

presentam hoje 163 entre os casais Wagner e Feacuteres-Carneiro (2000) chamam aten-

ccedilatildeo para a importacircncia de se conhecer as caracteriacutesticas e dinacircmicas das famiacutelias re-

constituiacutedas O luto pela perda da famiacutelia intacta precisa ser feito As autoras apontam

que o movimento de saiacuteda e de entrada dc novos membros no grupo familiar afeta a

dinacircmica de funcionamento da famiacutelia Ocorre alteraccedilatildeo nas figuras e nos padrotildees de

autoridade no uso de estrateacutegias educativas no exerciacutecio de papeacuteis nos processos de

comunicaccedilatildeo e de trocas afetivas

As relaccedilotildees homoafetivas constituem uma nova configuraccedilatildeo conjugal e familiar A pro-

porccedilatildeo de uniotildees entre pessoas do mesmo sexo tambeacutem foi objeto de anaacutelise Os dados

mostraram que mais da metade de casais do mesmo sexo - 526 residem na regiatildeo

Sudeste Algumas caracteriacutesticas das pessoas envolvidas nesse modelo de relaccedilatildeo cha-

442

maram atenccedilatildeo 258 possuem niacutevel educacional superior completo 816 declara-

ram como estado civil ldquosolteiroardquo

A informalidade marca tambeacutem as uniotildees homoafetivas - 996 declararam que vivem

em uniatildeo consensual Tal fato pode parecer paradoxal se for levado em conta outro

dado relativo agrave filiaccedilatildeo religiosa 474 dosas respondentes se disseram catoacutelicos en-

quanto 204 afirmaram natildeo ter religiatildeo Essa situaccedilatildeo revela o lugar de exclusatildeo e

preconceito com que essas uniotildees ainda satildeo vistas e a falta de legislaccedilatildeo pertinente por

parte do estado brasileiro

Os dados do Censo 20010 (IBGE 2012) revelam as transformaccedilotildees e as tendecircncias

que estatildeo produzindo novas configuraccedilotildees de famiacutelia e de vivecircncia da conjugalidade

Deixam antever tambeacutem os fatores histoacutericos e sociais que estatildeo levando a essas trans-

formaccedilotildees Feacuteres-Carneiro (1998) aponta a importacircncia desse tipo de dado ser objeto de

estudos aprofundados

ldquoAs transformaccedilotildees sociais que vecircm afetando a vivecircncia da conjugalidade tanto em casais heterossexuais como em casais homossexuais tecircm relevante influecircncia na formulaccedilatildeo das teorias psicoloacutegicas e consequumlentemente na praacutetica cliacutenica Eacute importante portanto verificar a extensatildeo e a natureza das diferenccedilas que se estabelecem nos diversos tipos de conjugalidade para a partir daiacute podermos construir modelos mais adequados de atendimento ao casal seja ele heterossexual gay ou de leacutesbicasrdquo (p 393)

Eacute nosso entendimento que a diversidade de modelos de vida conjugal e familiar aponta-

dos pelo Censo 2010 (IBGE 2012) revela a forccedila dos processos de transformaccedilatildeo social

e de seus impactos sobre as relaccedilotildees interpessoais A complexidade desses processos

e suas implicaccedilotildees na vida pessoal conjugal familiar e social merecem atenccedilatildeo e pes-

quisa

Reflexotildees

Fala-se em crise nas relaccedilotildees homem- mulher na famiacutelia e no casamento Como identi-

ficar essa crise Pela alardeada perda de valores Pelo aumento do nuacutemero de divoacutercios

ou pelo aumento da diversidade de formas de ser casal e famiacutelia como apontam os

dados do Censo 2010 O fato eacute que a estrutura das famiacutelias brasileiras mudou Hoje eacute

443Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

grande o nuacutemero de casais sem filhos de famiacutelias monoparentais e de famiacutelias recons-

tituiacutedas As uniotildees estatildeo acontecendo mais tarde e o nuacutemero de filhos estaacute diminuindo

A aceitaccedilatildeo do divoacutercio e do recasamento tem gerado novas experiecircncias de vivecircncia da

afetividade e do parentesco A uniatildeo entre pessoas do mesmo sexo eacute um tema tratado

cada vez mais com naturalidade (Diniz 2009)

Vimos que fatores econocircmicos sociais e culturais contribuiacuteram para essas mudanccedilas

Bernardo Jablonski (19911998) jaacute ao longo da uacuteltima deacutecada do seacuteculo XX chamava

atenccedilatildeo com suas pesquisas para os impactos de distintos processos sobre o casamento

e a famiacutelia O autor destacou o papel dos movimentos sociais em especial os feminis-

mos assim como das consequumlecircncias de processos como a modernizaccedilatildeo a urbaniza-

ccedilatildeo a influecircncia dos meios de comunicaccedilatildeo de massa as mudanccedilas em relaccedilatildeo agrave reli-

giosidade o acirramento do individualismo e a diminuiccedilatildeo dos viacutenculos com a famiacutelia

extensa na produccedilatildeo de uma demanda por novos modelos familiares

Carter e Peters (1996) chamaram atenccedilatildeo ao final da mesma deacutecada para outro fator

igualmente relevante - a velocidade das transformaccedilotildees na funccedilatildeo do casamento Na

primeira metade do seacuteculo a funccedilatildeo do casar era para ter filhos e constituir famiacutelia

Para a mulher o casamento significava a uacutenica forma de ter sexo No rol das expectati-

vas contemporacircneas para o casamento as pessoas querem aleacutem de ter filhos encontrar

felicidade realizaccedilatildeo pessoal amor o exerciacutecio de uma sexualidade satisfatoacuteria e com-

panheirismo

O movimento feminista trouxe para a mulher a possibilidade de questionar a materni-

dade como a uacutenica ou a principal fonte de realizaccedilatildeo ou o casamento como o local de

exerciacutecio de sua sexualidade Hoje uma mulher pode optar por viver plenamente sua

sexualidade dentro ou fora de um relacionamento estaacutevel Pode ter ou natildeo ter filhos E

pode tambeacutem optar por investir em sua proacutepria carreira e natildeo em ser uma potencializa-

dora da carreira e do sucesso do marido Nesse contexto homens estatildeo sendo convida-

dos a rever seu papel no casamento na famiacutelia no trabalho e na sociedade

Fica evidente que homens e mulheres seja em relacionamentos hetero ou homoafeti-

vos estatildeo sendo desafiados a lidar com vaacuterios dilemas Questotildees de gecircnero como a divi-

satildeo de poder a reorganizaccedilatildeo dos papeacuteis e funccedilotildees na famiacutelia demandam flexibilidade e

negociaccedilatildeo Casais precisam encontrar espaccedilo para a individualidade e a conjugalidade

444

As demandas decorrentes da vida familiar e da inserccedilatildeo no mundo do trabalho tornam

o tempo um bem precioso A interaccedilatildeo famiacutelia-trabalho acaba por gerar conflitos em

torno de questotildees como a divisatildeo do trabalho domeacutestico o ter ou natildeo ter filhos e quem

assume responsabilidade pelo cuidado dos filhos Todos esses fatores carregam o poten-

cial de produzir estresse e de afetar a qualidade das relaccedilotildees O desgaste pode resultar

em conflitos que venham a por em risco a duraccedilatildeo do casamento

A efemeridade cada vez maior dos relacionamentos - namoros casamentos - eacute uma

caracteriacutestica da sociedade de hoje Pesquisa de Feacuteres-Carneiro Ziviani e Magalhatildees

(2011) aponta para o desafio que eacute compreender a diversidade de arranjos conjugais vi-

gentes na sociedade atual A satisfaccedilatildeo conjugal resulta da combinaccedilatildeo complexa entre

fatores internos e externos e essa interaccedilatildeo cria muitas possibilidades de relaccedilatildeo Cliacute-

nicos e pesquisadores enfrentam portanto o desafio de compreender dimensotildees que

afetam a vida conjugal e familiar no mundo contemporacircneo

Vivemos um momento de re-significaccedilatildeo dos viacutenculos afetivos e sociais Em tempos de

transiccedilatildeo indiviacuteduos famiacutelia e sociedade enfrentam desafios Em texto de 1994 Brus-

chini e Ridenti jaacute apontavam que um desafio fundamental estaacute relacionado agrave capacidade

de questionarmos a existecircncia de um uacutenico modelo adequado de casamento e de famiacutelia

para que possamos considerar as novas formas de relaccedilotildees interpessoais e de estruturas

familiares que estatildeo surgindo como modelos possiacuteveis O importante eacute ficar claro que

toda sociedade em diferentes momentos histoacutericos eacute confrontada com novas constru-

ccedilotildees identitaacuterias e relacionais

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448

Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

SheilaGiardiniMurta

ZildaAPDelPrette

AlmirDelPrette

ValeskaZanello

Introduccedilatildeo43

A concepccedilatildeo socialmente construiacuteda de que mulheres satildeo inferiores aos homens ou

sexismo e de que indiviacuteduos natildeo heterossexuais satildeo inferiores aos heterossexuais ou

heterossexismo tecircm se mostrado frequentemente associada agrave violaccedilotildees de direitos hu-

manos (Mattar 2008 Mott 2006) A violecircncia contra a mulher (Heise 1994 Bandei-

43 Este trabalho foi desenvolvido durante Poacutes-Doutorado da primeira autora (Bolsa CNPq Processo 1500912009-5) junto ao grupo de pesquisa do segundo e terceiro autores na Universidade Federal de Satildeo Carlos (httpwwwrihsufscarbr)

449Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

ra 2009) e a homofobia entendida como a aversatildeo a hostilidade e violecircncia dirigida

a homossexuais (Borges amp Meyer 2008 Borrilo 2009 Mott 2006) estatildeo entre as

consequecircncias mais diretas do sexismo e do heterossexismo respectivamente A discri-

minaccedilatildeo44 contra estes grupos natildeo se baseia apenas das diferenccedilas de gecircnero e de orien-

taccedilatildeo sexual mas tambeacutem em outros marcadores sociais como raccedila e classe Assim

mulheres e homossexuais pobres negros e de baixa instruccedilatildeo no Brasil tendem a ser

ainda mais estigmatizados do que mulheres e homossexuais brancos ricos e mais ins-

truiacutedos (Carrara amp Vianna 2006) A valoraccedilatildeo da sexualidade a partir do modelo hete-

ronormativo estaacute entre os determinantes do sexismo e heterossexismo Neste modelo

os papeacuteis de gecircnero e as orientaccedilotildees sexuais satildeo atrelados agraves categorias macho e fecircmea

vistas como distintas e complementares O exerciacutecio da sexualidade para outros fins

que natildeo a reproduccedilatildeo a sexualidade vivenciada por pessoas do mesmo sexo e os papeacuteis

de gecircnero que fogem do binocircmio masculino-feminino representam nesta oacutetica uma

anormalidade Seguindo o modelo heteronormativo as praacuteticas culturais promovem

um processo de ldquovigilacircncia de gecircnerordquo que estigmatiza e impede o acesso aos direitos

de todos os que se desviam da orientaccedilatildeo sexual normativa (heterossexual) do modelo

familiar (homem e mulher como nuacutecleo inicial) e dos papeacuteis de gecircnero considerados

ldquocertosrdquo ou seja masculino e feminino com diferenccedilas rigidamente demarcadas (Bor-

rilo 2009) Os resultados nocivos do modelo heteronormativo recaem portanto sobre

todos desviantes ou natildeo

Este capiacutetulo tem por objetivo abordar o impacto do sexismo e heterossexismo sobre a

sauacutede e as possibilidades de prevenccedilatildeo a tais fatores de risco para a sauacutede mental O tex-

to estaacute organizado em quatro partes Na primeira parte discute-se a construccedilatildeo cultural

de gecircnero Na segunda satildeo tratadas as relaccedilotildees entre sexismo heterossexismo e sauacutede

Na terceira satildeo abordadas propostas de accedilotildees preventivas normativassociais e educa-

cionaispessoais segundo as poliacuteticas puacuteblicas atuais brasileiras e a literatura nacional

e de outros paiacuteses especializada em prevenccedilatildeo em sauacutede mental gecircnero e sauacutede Na

quarta satildeo considerados os desafios para a pesquisa e a formaccedilatildeo profissional na aacuterea

44 No mecircs de novembro de 2010 ocorreram em Satildeo Paulo lastimaacuteveis manifestaccedilotildees homofoacutebicas com assassinatos de vaacuterias pessoas Os fatos envolvendo a participaccedilatildeo de esquadrotildees policiais foram amplamente noticiados pela miacutedia

450

GecircnerocomoConstruccedilatildeoCultural

O termo ldquosexismordquo pode ser definido como a discriminaccedilatildeo e a desqualificaccedilatildeo de um

sujeito em funccedilatildeo do seu sexo (Houaiss amp Villar 2001) No entanto para entender o

sexismo eacute necessaacuterio retornar agrave histoacuteria da sociedade ocidental no que tange agraves rela-

ccedilotildees de gecircnero Gecircnero natildeo eacute apenas uma representaccedilatildeo social da diferenccedila sexual

mas antes eacute uma construccedilatildeo cultural que valora de maneira desigual hieraacuterquica a

proacutepria diferenccedila sexual que ela produz (Butler 2003) Butler afirma que ldquoos limites da

anaacutelise discursiva do gecircnero pressupotildeem e definem por antecipaccedilatildeo as possibilidades

das configuraccedilotildees imaginaacuteveis e realizaacuteveis do gecircnero na culturardquo (Butler 2003 p 29)

Com esta afirmaccedilatildeo a autora enfatiza a ideacuteia de que eacute impossiacutevel o acesso agrave diferenccedila

ldquonaturalrdquo sexual pois o que daacute acesso jaacute sempre de forma interpretada eacute a proacutepria

linguagem Segundo Butler natildeo eacute o sexo que cria o gecircnero mas antes o gecircnero quem

cria o sexo Nossa cultura eacute marcada por um discurso hegemocircnico binaacuterio o qual nos

faz ver o mundo em uma dicotomia (Derrida 1999a Derrida 1999b) Este binarismo

se reflete tambeacutem na categorizaccedilatildeo de toda a diversidade humana sob a chancela de

ldquohomemrdquo e ldquomulherrdquo (Butler 2003)

Para Butler (2003) a base da concepccedilatildeo binaacuteria de gecircnero tem como background a

crenccedila numa metafiacutesica do sujeito a qual pressupotildee uma noccedilatildeo de identidade substan-

tivada Ou seja seria da proacutepria noccedilatildeo metafiacutesica de ldquosubstacircnciardquo marca da histoacuteria do

pensamento ocidental que deriva a noccedilatildeo de identidade como algo permanente

Nicholson (2000) aponta que a noccedilatildeo de identidade sexual se firma no seacuteculo XVIII

no bojo de uma novidade interpretativa em relaccedilatildeo ao conhecimento do corpo Se ateacute

o seacuteculo XVII a diversidade de corpos era compreendida de modo unitaacuterio (o corpo da

mulher como um corpo masculino em falta menos desenvolvido) a partir de entatildeo

firma-se o binarismo isto eacute a ideacuteia de que corpos femininos e masculinos satildeo essencial-

mente diferentes Tais diferenccedilas levariam a expressotildees de comportamentos e sentimen-

tos diferenciados Ou seja natildeo eacute que diferenccedilas corporais natildeo fossem percebidas antes

do seacuteculo XVII mas houve uma crescente compreensatildeo da natureza dos seres huma-

nos em termos das configuraccedilotildees especiacuteficas da mateacuteria ldquoAssim os aspectos fiacutesicos ou

materiais do corpo cada vez mais assumiram o papel de testemunhas da natureza do

eu que esse corpo abrigavardquo (Nicholson 2000 p 7) A metafiacutesica materialista caracte-

riacutestica da eacutepoca natildeo significou a construccedilatildeo de novas distinccedilotildees sociais ex-nihilo mas

a elaboraccedilatildeo das distinccedilotildees previamente existentes por novos meios O sexo deixou de

451Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

ser categoria socioloacutegica para ser uma categoria ontoloacutegica (Casares 2008) O sentido

das caracteriacutesticas fiacutesicas antes compreendidas como marca sinal passam a ser com-

preendidas como o que daacute origem Trata-se de um determinismo bioloacutegico noccedilatildeo esta

face agrave qual o feminismo reagiu seacuteculos depois

Segundo Nicholson (2000) o conceito de gecircnero surge no seacuteculo XX como uma con-

testaccedilatildeo agrave determinaccedilatildeo social a partir das marcas e diferenccedilas corporais Em um pri-

meiro momento a reaccedilatildeo se deu atraveacutes de uma discordacircncia e de uma concordacircncia

parciais com o determinismo bioloacutegico A discordacircncia diz respeito agrave compreensatildeo da

influecircncia dos fatores sociais no comportamento humano E a concordacircncia diz acerca

da existecircncia de um corpo bioloacutegico a priori Isto eacute neste momento o gecircnero foi com-

preendido como uma modelaccedilatildeo social a partir de diferenccedilas corporais existentes em si

mesmas Gecircnero neste sentido eacute tomado como noccedilatildeo oposta agrave ideacuteia de sexo Deacutecadas

mais tarde sobretudo com a contribuiccedilatildeo de Butler a proacutepria ideacuteia de uma diferenccedila

corporal a priori foi questionada O que se colocou em evidecircncia foi a impossibilidade

de se ter acesso ao corpo fora de uma cultura que jaacute de antematildeo natildeo o interpretasse e

categorizasse Neste vieacutes compreende-se que eacute o gecircnero quem constroacutei o modelo binaacute-

rio sexual- corporal mas tambeacutem social

Aleacutem disto Butler (2003) aponta ldquocomo fenocircmeno inconstante e contextual o gecircnero

natildeo denota um ser substantivo mas um ponto relativo de convergecircncia entre conjuntos

especiacuteficos de relaccedilotildees cultural e historicamente convergentesrdquo (Butler 2003 p 29)

Isto eacute a noccedilatildeo de gecircnero natildeo deve ser entendida como unidade e identidade pressupos-

tamente estaacutevel Eacute justamente neste pressuposto (de estabilidade e unidade) que repou-

sa a ldquoexigecircnciardquo a naturalizaccedilatildeo da existecircncia de um desejo pelo sexo oposto Ou seja a

heterossexualidade compulsoacuteria O sexo procriador eacute o modelo cuja suposta naturalida-

de daacute forccedila a este pensamento Corpos ldquonaturaisrdquo sexo ldquonaturalrdquo diferenccedilas ldquoincontes-

taacuteveisrdquo (fiacutesicas) desejos naturais e ldquosaudaacuteveisrdquo Como se qualquer coisa relacionada ao

ser humano pudesse ser compreendida de forma a-simboacutelica simplesmente ldquonaturalrdquo

Com Butler (2003) trata-se de apontar que natildeo eacute a diferenccedila fiacutesica que sustenta a de-

sigualdade social mas antes eacute a desigualdade construiacuteda soacutecio e historicamente que

classifica os corpos a partir de uma diferenccedila criada valorada e hierarquizada As re-

laccedilotildees de gecircnero satildeo portanto antes de mais nada relaccedilotildees de poder No ocidente

caracterizou-se por uma desvalorizaccedilatildeo das mulheres e uma afirmaccedilatildeo de uma heteros-

452

sexualidade naturalizada que foi potencializada ainda mais na afirmaccedilatildeo do casamento

como um ideal lugar onde o sexo e suas forccedilas subjacentes poderiam ser controlados

Principalmente a afirmaccedilatildeo da monogamia para as mulheres (Del Priore 2005) Se-

gundo Casares (2008) com a assunccedilatildeo da burguesia tratava-se sobretudo de garantir

que os herdeiros fossem mesmo filhos do marido Eacute esta matriz binaacuteria heterossexual

com posiccedilotildees assimeacutetricas de poder e direitos para homens e mulheres que se cons-

tituiu como paracircmetro a partir do qual outras formas de sexualidade passaram a ser

compreendidas interpretadas e desqualificadas

Nela a mulher tomou o lugar relacionado agrave passividade agrave emotividade agrave fraqueza O

homem foi associado agrave virilidade sexual e laborativa (Nicholson 2000 Zanello amp Go-

mes 2010) E mais o feminino foi qualificado como inferior assim como tudo aquilo

que dele se aproxima Algumas das formas de ser humanas julgadas a partir destes

ideais passaram a ser perseguidas e excluiacutedas tanto de forma clara e aberta (assassina-

tos julgamentos banimentos) como de forma mais invisiacutevel atraveacutes do controle social

(como o xingamento a piada a exclusatildeo) caracterizando o que Foucault denomina de

microfiacutesica do poder Enquanto valor apregoado na cultura fez-se presente natildeo mais

apenas fora dos sujeitos mas constituindo-os Isto eacute passou-se de um poder repressivo

para o que Focault (1977) denomina de poder constitutivo

Isto se evidencia sobretudo na afirmaccedilatildeo da masculinidade Badinter (1992) aponta

o quanto ser homem eacute uma construccedilatildeo que se daacute no imperativo mais do que no indi-

cativo Para ela a frase ldquoseja homemrdquo repetida frequentemente aos meninos aponta

que a virilidade natildeo seria algo ldquonaturalrdquo Ser ldquohomemrdquo implica um trabalho que parece

natildeo ser exigido das mulheres pois ningueacutem diz a elas ldquoseja mulherrdquo A virilidade deve

ser provada construiacuteda ldquofabricadardquo Welzer-Lang (2004) destaca que o drama desta

virilidade eacute ser posta agrave prova a todo o momento devendo ser ldquonegativardquo construiacuteda

reativamente como um ldquonatildeo ser mulherrdquo Nas palavras de Joan Scott (1990 p 15) ldquoA

ideacuteia de masculinidade repousa sobre a repressatildeo necessaacuteria de aspectos femininos -

do potencial bissexual do sujeito - e introduz o conflito na oposiccedilatildeo do masculino e do

femininordquo Isto eacute a homofobia teria em seu fulcro uma misoginia Esta estaacute portanto

presente tanto no sexismo quanto no heterossexismo

453Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

SexismoHeterossexismoeSauacutede

As praacuteticas excludentes e opressoras derivadas do sexismo e do heterossexismo tecircm

impedido ou dificultado o pleno desenvolvimento das potencialidades das mulheres e

das pessoas LGBT (leacutesbicas gays bissexuais travestis transexuais e transgecircneros) por

meio da restriccedilatildeo de oportunidades educacionais e de trabalho com repercussatildeo ne-

gativa na sociedade e na economia em diferentes lugares do mundo (Bandeira 2009

Heise 1994 Mattews amp Adams 2009 Roberts 1998 Schwartz amp Lindley 2009) Do

ponto de vista social o impacto pode ser visto em suiciacutedios e assassinatos (Borrillo

2009 Carrara amp Vianna 2006 Mott 2006 Sieben amp Wallowitz 2009) violecircncia pelo

parceiro iacutentimo (Anacona 2008 Cordeiro Heilborn Cabral amp Moraes 2009 Hernan-

dez amp Mendoza 2009 Schraiber DrsquoOliveira amp Franccedila Jr 2005) e transmissatildeo da vio-

lecircncia entre geraccedilotildees (Williams Maldonado amp Padovani 2008)

No caso das pessoas LGBT a homofobia se revela na forma de piadas aparentemen-

te inocentes injuacuterias depreciaccedilatildeo compaixatildeo negaccedilatildeo de direitos e rotulaccedilatildeo da ho-

mossexualidade como doentia e anormal Esta discriminaccedilatildeo disfarccedilada ou manifes-

ta contribui para a autoestigmatizaccedilatildeo ou violecircncia interiorizada (Mathews amp Adams

2009) Os sentimentos de inadequaccedilatildeo pessoal culpa ansiedade e vergonha aleacutem de

transtornos como depressatildeo e abuso de substacircncias psicoativas satildeo alguns dos efeitos

perversos do heterossexismo (Borges amp Meyer 2008 Borrilo 2009) Em se tratando

das mulheres um dos custos do sexismo eacute a maior incidecircncia de transtornos mentais

na mulher do que nos homens especialmente os de ansiedade e depressatildeo conforme

estudos com amostra brasileira (Andrade Viana amp Silveira 2006) e estrangeira (Le

Munoz Ippen amp Stoddard 2003) Entre os determinantes destes transtornos encon-

tram-se a dificuldade em controlar a proacutepria vida e a exposiccedilatildeo a condiccedilotildees coercitivas

de vida caracteriacutesticas das interaccedilotildees marcadas pelo sexismo no acircmbito da famiacutelia do

casamento e do trabalho (Albee 1981)

Estudos sobre a depressatildeo no ciclo de vida da mulher consideram as mulheres ado-

lescentes gestantes e fumantes como particularmente vulneraacuteveis (Le e cols 2003)

Segundo estes estudos a depressatildeo pode ser acompanhada por estrateacutegias de enfrenta-

mento nocivas agrave sauacutede como o uso de aacutelcool e tabaco o abuso de drogas e o sexo sem

proteccedilatildeo Em resposta a isto a gravidez na adolescecircncia o suiciacutedio ou as tentativas de

suiciacutedio com suas sequumlelas e a depressatildeo poacutes-parto constituem alguns dos principais

454

problemas de sauacutede enfrentados pelas mulheres aleacutem da reduccedilatildeo de sua capacidade

produtiva ou mesmo sua incapacitaccedilatildeo (Andrade e cols 2006)

Como resultado do sexismo mulheres e homens tornam-se mutilados por esse tipo de

praacutetica cultural (Lima Bucheli amp Cliacutemico 2008) A mutilaccedilatildeo natildeo eacute apenas metafoacuteri-

ca mas tambeacutem literal nos paiacuteses que praticam a extirpaccedilatildeo de partes da genitaacutelia da

mulher (clitoacuteris pequenos laacutebios e grandes laacutebios) ou quando a violecircncia fiacutesica deixa

sequumlelas Enquanto para as mulheres em tantos grupos sociais ou culturais eacute estabele-

cido um amplo controle sobre seus corpos e sexualidade (Louro 2007) para os homens

a ldquovigilacircncia de gecircnerordquo cerceia a expressatildeo de emoccedilotildees e de qualquer comportamento

aparentado com o que eacute culturalmente considerado feminino (Borrilo 2009)

Os custos desta mutilaccedilatildeo se fazem presentes tanto sobre a sauacutede da mulher quanto do

homem como evidenciado pela anaacutelise das causas de morbidade e mortalidade entre

mulheres e homens As mulheres utilizam com mais frequumlecircncia os serviccedilos de sauacutede

do que os homens e estes de acordo com dados de Laurenti Jorge e Gotlieb (2005)

morrem mais cedo do que as mulheres possivelmente por serem elas culturalmente

ldquoautorizadasrdquo a sentir dor e eles natildeo Assim o homem ignora sinais precoces da doenccedila

(seja ela qual for) e se envolve em comportamentos de risco agrave sauacutede tais como demons-

trar poder por meio da violecircncia e beber abusivo o que dificulta ainda mais o trata-

mento levando-o a estaacutegios avanccedilados e aumentando o risco da morte precoce (Lima e

cols 2008) No Brasil conforme dados do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) apresentados

por Laurenti e cols (2005) as principais causas de morte para o homem satildeo causas

externas (exemplo homiciacutedios e acidentes de tracircnsito) transtornos mentais e compor-

tamentais (exemplo psicose alcooacutelica) doenccedilas do aparelho digestivo (exemplo cirrose

hepaacutetica associada ou natildeo ao uso do aacutelcool) e neoplasias (como cacircncer de pulmatildeo

proacutestata e estocircmago) Eacute evidente tambeacutem a contribuiccedilatildeo de fatores comportamentais

associados ao gecircnero masculino para estas causas de morte como o uso da violecircncia

para resolver conflitos desencadeando mortes precoces e o consumo excessivo do aacutelcool

levando agrave cirrose hepaacutetica e psicose alcooacutelica

Dada a gravidade deste cenaacuterio natildeo eacute de se estranhar que os grupos de pesquisa em

gecircnero e sauacutede no Brasil tenham na violecircncia de gecircnero um de seus principais temas

de investigaccedilatildeo conforme levantamento feito por Aquino (2006) junto a 51 grupos de

pesquisa nacionais Ao lado de outros temas como reproduccedilatildeo e contracepccedilatildeo sexu-

455Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

alidade e sauacutede trabalho e sauacutede a violecircncia de gecircnero aparece como um dos temas

mais frequumlentemente tratados em teses dissertaccedilotildees e artigos publicados em revistas

especializadas em sauacutede puacuteblica no Brasil

Dentre as formas de violecircncia de gecircnero destacam-se as cometidas pelo parceiro iacutenti-

mo em relaccedilotildees homo ou heterossexuais Um estudo de Schraiber e cols (2005) com

5040 participantes de ambos os sexos provenientes de contextos urbanos brasileiros

mostrou que existe uma maior prevalecircncia de violecircncia por parceiro iacutentimo entre mu-

lheres do que entre homens entre homobissexuais do que entre heterossexuais entre

pessoas negras do que outras e entre os de menor escolaridade e menor renda Outro

estudo (DrsquoOliveira e cols 2009) com 940 mulheres de Satildeo Paulo e 1188 de Pernam-

buco confirmou a associaccedilatildeo entre violecircncia por parceiro iacutentimo e baixa escolaridade

e identificou alguns outros fatores correlacionados como ter testemunhado violecircncia

entre os pais ter sido viacutetima de violecircncia na infacircncia ter muitas gestaccedilotildees (cinco ou

mais) e uso abusivo de aacutelcool Estes autores ao analisarem a literatura da aacuterea tambeacutem

mencionam a subserviecircncia pessoal e a aceitaccedilatildeo da violecircncia como comportamentos

presentes nesta populaccedilatildeo

Estes uacuteltimos aspectos remetem agraves dificuldades de relacionamento em geral associa-

do a um repertoacuterio deficitaacuterio de habilidades sociais necessaacuterias na negociaccedilatildeo com o

parceiro defesa de direitos expressatildeo de desagrado e pedido de mudanccedila de comporta-

mento denominadas habilidades sociais assertivas (Del Prette amp Del Prette 2001 sobre

a negociaccedilatildeo como classe de habilidades sociais no relacionamento ver por exemplo

Kelly Fincham amp Beach 2003) De fato diferentes autores tecircm salientado que a cons-

truccedilatildeo social dos papeacuteis de gecircnero afeta as habilidades de negociaccedilatildeo com o parceiro o

que por sua vez resulta em comportamentos de risco agrave sauacutede sexual e reprodutiva em

especial da mulher

O campo teoacuterico praacutetico das habilidades sociais jaacute possui uma tradiccedilatildeo de estudos com

a populaccedilatildeo feminina enfocando em geral as dificuldades sociais culturais impostas

agrave mulher como um dos fatores que podem comprometer seu repertoacuterio de habilidades

sociais (ver entre outros Jakubowski-Spector 1973 Osborn amp Harris 1975 MacDonald

1982) Em outras palavras a cultura ocidental ainda premia a submissatildeo da mulher

mais do que a ousadia Por exemplo a dificuldade em assertividade na negociaccedilatildeo com

parceiros tem sido apontada (ainda que com outras denominaccedilotildees) como um dos fa-

456

tores de risco para se contaminar pelo HIV e outras doenccedilas sexualmente transmissiacute-

veis (Asinelli-Luz amp Fernandes Jr 2008) engravidar precocemente (Nogueira e cols

2008 Aquino e cols 2003) e fazer sexo sob coerccedilatildeo (Cordeiro e cols 2009 DrsquoOliveira

e cols 2009)

A violecircncia de gecircnero como um problema de sauacutede puacuteblica embora presente em to-

dos os continentes natildeo se aplica a todas as culturas Segundo Heise (1994) culturas

que adotam papeacuteis de gecircnero mais flexiacuteveis e leis que condenam veementemente a

violecircncia de gecircnero apresentam menor incidecircncia deste fenocircmeno Na mesma linha a

ocorrecircncia de praacuteticas homofoacutebicas pode estar diretamente relacionada a crenccedilas sobre

homossexualidade como antinatural e agrave natildeo concessatildeo de direitos sociais baacutesicos a pes-

soas LGBT como o direito ao casamento agrave adoccedilatildeo agrave reproduccedilatildeo assistida e agrave igualdade

patrimonial entre casais (Borrilo 2009 Mott 2006)

Assim como enfatizado jaacute haacute algumas deacutecadas por Albee (1981) um dos pioneiros

da psicologia preventiva o sexismo eacute aprendido A violecircncia de gecircnero e a homofobia

como demonstraccedilotildees sexistas e heterossexistas resultam da interrelaccedilatildeo entre fatores

pessoais familiares econocircmicos sociais religiosos e culturais Testemunhar violecircncia

entre os pais ser exposto a modelos sexistas e heterossexistas na famiacutelia na escola e

nos meios de comunicaccedilatildeo baixa instruccedilatildeo dependecircncia econocircmica crenccedilas religiosas

de que a submissatildeo feminina eacute desejaacutevel de que a homossexualidade eacute antinatural e a

toleracircncia legal frente agrave homofobia e agrave violecircncia contra a mulher satildeo alguns dos fatores

de risco para a violecircncia de gecircnero (Carvalho-Barreto Bucher-Maluschke Almeida amp

DeSouza 2009) e para a hostilidade contra homossexuais (Borrilo 2009) Se a origem

do sexismo e do heterossexismo eacute multideterminada abordagens ecoloacutegicas satildeo neces-

saacuterias para a compreensatildeo deste problema bem como para sua prevenccedilatildeo e reduccedilatildeo

AccedilotildeesdePrevenccedilatildeoaoSexismoeaoHeterossexismo

Uma implicaccedilatildeo direta da multicausalidade destes fenocircmenos para o campo da sauacutede

mental e para os programas de prevenccedilatildeo ao sexismo e ao heterossexismo eacute a possibi-

lidade de estrateacutegias de intervenccedilatildeo preventivas de menor ou maior abrangecircncia desde

os contextos microssociais ateacute os macrossociais (Schwartz amp Lindley 2009 Mathews

amp Adams 2009) Os programas de prevenccedilatildeo ao sexismo e heterossexismo podem ser

classificados em dois grupos os sociaisnormativos e os educacionaispessoais

457Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

Os programas sociaisnormativos compreendem estrateacutegias relativas a poliacuteticas puacutebli-

cas e legislaccedilatildeo No Brasil exemplos recentes satildeo a Lei Maria da Penha que visa o

combate agrave violecircncia contra a mulher o II Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres

que propotildee diferentes accedilotildees visando agrave promoccedilatildeo da equidade de gecircnero (Secretaria Es-

pecial de Poliacuteticas para as Mulheres 2008) e o Programa Brasil sem Homofobia que

busca reduzir praacuteticas de violecircncia e hostilidade contra pessoas GLBT (Ministeacuterio da

Sauacutede 2004) Deve ser salientado ainda um investimento recente em pesquisas nas

temaacuteticas de gecircnero gecircnero e ciecircncia sauacutede da mulher e sauacutede do homem com editais

especiacuteficos de apoio agrave pesquisa concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento

Cientiacutefico e Tecnoloacutegico (Narvaz amp Koller 2007) As Tabelas 1 e 2 apresentam uma siacuten-

tese de diferentes estrateacutegias de prevenccedilatildeo ao sexismo e heterossexismo

Os programas educacionaispessoais almejam transformar por meio de intervenccedilotildees

educacionais crenccedilas e comportamentos de um grupo menor de pessoas que contudo

podem se tornar multiplicadoras e tambeacutem influenciar mudanccedilas culturais Ainda que

os programas sociaisnormativos e educacionaispessoais sejam diferentes eles natildeo

satildeo excludentes e poderiam ser utilizados simultacircnea e complementarmente em alguns

casos Natildeo raro os programas educacionaispessoais constituem as vias pelas quais as

poliacuteticas puacuteblicas satildeo executadas Os programas educacionaispessoais descritos na lite-

ratura tecircm sido conduzidos principalmente em escolas e universidades e satildeo dirigidos

ou a problemas especiacuteficos como AIDS e violecircncia no namoro ou agrave educaccedilatildeo afetivo-

-sexual e conscientizaccedilatildeo sobre os direitos sexuais e reprodutivos juntamente com a

e a promoccedilatildeo de competecircncias especiacuteficas para exercitar e disseminar esses direitos

Alguns dos estudos identificados focalizaram a promoccedilatildeo dos direitos sexuais e repro-

dutivos e a equidade de gecircnero em adolescentes (Andrade e cols 2009 Murta e cols

2012) e homens adultos (Verma e cols 2006) bem como o desenvolvimento afetivo-

-sexual em adolescentes e seus pais (Fernaacutendez Fernaacutendez amp Castro 2007 Fernaacutendez

Fernaacutendez Mangana amp Castro 2006) Outros focalizaram a prevenccedilatildeo da violecircncia no

namoro em universitaacuterios (Schwartz Magee Griffin amp Dupuis 2004) e em adolescen-

tes (Matos Machado Caridade amp Silva 2006 Murta e cols 2011) da AIDS em ado-

lescentes (Antunes e cols 2002) e da homofobia entre professores (Borges amp Meyer

2008 Sieben amp Wallowitz 2009) Alguns destes temas tecircm sido mais pesquisados e

apresentam uma maior produccedilatildeo cientiacutefica como os programas de prevenccedilatildeo agrave AIDS

enquanto outros tecircm produccedilatildeo escassa como programas de prevenccedilatildeo agrave homofobia

458

Tabela 1 Estrateacutegias de enfrentamento e prevenccedilatildeo ao sexismo

Estrateacutegias sociaisnormativas Estrateacutegias educacionaispessoais

Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres (Secretaria Especial de Poliacuteticas para as Mulheres 2005)

Programas de prevenccedilatildeo ao abuso sexual e agrave coerccedilatildeo sexual fundamentados

na perspectiva de gecircnero

Apoio de agecircncias de fomento agrave pesquisa com abertura de editais de incentivo agraves pesquisas nos temas de gecircnero saudade

da mulher e sauacutede do homem

Programas de prevenccedilatildeo agrave AIDS e gravidez precoce fundamentados na perspectiva de gecircnero

Lei Maria da Penha Programas de educaccedilatildeo sexual na escola fundamentados na perspectiva de gecircnero

Contenccedilatildeo de conteuacutedos divulgados pela miacutedia que faccedilam apologia ao

abuso dos direitos da mulher

Programas de prevenccedilatildeo agrave violecircncia no namoro no ensino meacutedio e universitaacuterio

Remoccedilatildeo por parte dos oacutergatildeos gestores de conteuacutedos sexistas e inclusatildeo da

temaacutetica de gecircnero em livros didaacuteticos distribuiacutedos em escolas puacuteblicas

Programas de promoccedilatildeo de equidade de gecircnero para trabalhadores

Programas de promoccedilatildeo de sauacutede da mulher nas unidades de atenccedilatildeo baacutesica em sauacutede

Ensino de disciplinas relacionadas a gecircnero em cursos de graduaccedilatildeo em especial para profissionais de sauacutede educaccedilatildeo e direito

Simpoacutesios acerca de gecircnero e produccedilatildeo cientiacutefica para redirecionamento das

poliacuteticas de fomento agrave pesquisa

Campanhas educativas na miacutedia que mostrem que a violecircncia e a discriminaccedilatildeo

contra a mulher satildeo inaceitaacuteveis

Programas de habilidades de vida e promoccedilatildeo de direitos sexuais e reprodutivos

para adolescentes e adultos

Programas de habilidades sociais promoccedilatildeo de direitos interpessoais e prevenccedilatildeo agrave violecircncia de

gecircnero para crianccedilas adolescentes e adultos

No Brasil a literatura em Psicologia mostra que programas preventivos em geral e

particularmente os de prevenccedilatildeo ao sexismo e ao heterossexismo focados na pessoa

satildeo relativamente pouco pesquisados (Abreu 2012 Lacerda Jr amp Guzzo 2005 Murta

2007) Os escassos estudos brasileiros tecircm sido conduzidos em sua maioria em con-

texto escolar (Antunes e cols 2002 Borges amp Meyer 2008 Andrade e cols 2009)

Quanto agrave educaccedilatildeo sexual nas escolas diversos autores (Borges amp Meyer 2008 Diniz amp

459Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

Asinelli-Luz 2007 Louro 2007 Nogueira Saavedra amp Costa 2008 Rosistolato 2009)

tecircm apontado os desafios de se conduzir accedilotildees educativas com este foco Estes desafios

giram em torno da ldquoclandestinidaderdquo do tema da sexualidade e dos direitos sexuais e

reprodutivos (Aquino 2006 Borges amp Meyer 2008) Eacute como se falar de sexualidade e

de direitos sexuais fosse proibido em especial quando se questiona o poder socialmente

atribuiacutedo ao homem e ao heterossexual

Tabela 2 Estrateacutegias de enfrentamento e prevenccedilatildeo ao heterossexismo

Estrateacutegias sociaisnormativas Estrateacutegias educacionaispessoais

Regulamentaccedilatildeo da atuaccedilatildeo profissional anti-heterosexista por conselhos

profissionais tais como a Resoluccedilatildeo 00199 do Conselho Federal de Psicologia

Palestras proferidas por pessoas LGBT acerca da proacutepria experiecircncia para grupos de

alunos universitaacuterios e para jovens LGBT

Programa Brasil Sem Homofobia programa de combate agrave violecircncia agrave discriminaccedilatildeo

contra GLBT e de promoccedilatildeo de cidadania homossexual (Brasil 2004)

Foacuteruns de discussatildeo na comunidade com participaccedilatildeo de profissionais de sauacutede mental

Contenccedilatildeo de conteuacutedos divulgados pela miacutedia que faccedilam apologia ao abuso

dos direitos das pessoas LGBT

Capacitaccedilatildeo para professores focada em gecircnero e diversidade sexual (Borges amp Meyer 2008)

Editais de apoio agrave pesquisa nas temaacuteticas de sauacutede da mulher gecircnero e sauacutede do homem

Fortalecimento da rede de apoio social e senso de pertencimento por meio da

inserccedilatildeo em comunidades LGBT

Leis que permitam a adoccedilatildeo e o casamento entre parceiros do mesmo sexo

Informaccedilatildeo para familiares de adolescentes LGBT e pais em geral na escola

Leis que impeccedilam a discriminaccedilatildeo por preconceito por orientaccedilatildeo sexual

Encaminhamentos de pessoas LGBT para orientaccedilatildeo especializada sempre que necessaacuterio

Remoccedilatildeo por parte dos oacutergatildeos gestores de conteuacutedos heterossexistas e inclusatildeo da temaacutetica

da diversidade sexual em livros didaacuteticos e dicionaacuterios distribuiacutedos em escolas puacuteblicas

Programas de valores direitos humanos multiculturalismo e

respeito agrave diversidade na escola

Campanhas educativas na miacutedia que mostrem que a violecircncia e a discriminaccedilatildeo

contra homossexuais satildeo inaceitaacuteveis

Ensino de disciplinas relacionadas a gecircnero em cursos de graduaccedilatildeo em especial para profissionais de sauacutede educaccedilatildeo e direito

460

Estrateacutegias sociaisnormativas Estrateacutegias educacionaispessoais

Programas de promoccedilatildeo de habilidades sociais empaacuteticas e prevenccedilatildeo agrave homofobia

na escola para crianccedilas e adolescentes

Programas de habilidades de vida e promoccedilatildeo de direitos sexuais e reprodutivos

para adolescentes e adultos

Uma das evidecircncias destes obstaacuteculos culturais eacute a ausecircncia desses conteuacutedos dos livros

didaacuteticos distribuiacutedos em escolas puacuteblicas brasileiras acerca do tema da diversidade se-

xual Uma anaacutelise de livros didaacuteticos e dicionaacuterios distribuiacutedos em escolas puacuteblicas no

Brasil nos anos de 2007 e 2008 feita por Lionccedilo e Diniz (2009) mostrou que os livros

didaacuteticos natildeo contecircm conteuacutedos homofoacutebicos mas tambeacutem natildeo apresentam famiacutelias e

relaccedilotildees afetivas homossexuais Aleacutem disto tratam a sexualidade unicamente na pers-

pectiva bioloacutegica e de prevenccedilatildeo de doenccedilas omitindo suas dimensotildees social e afetiva

Constataram ainda que os dicionaacuterios analisados conceituam praacuteticas sexuais e afetivas

natildeo-heterossexuais como patoloacutegicas e antinaturais Na mesma linha eacute pertinente su-

por que a escassez de estudos sobre programas preventivos da homofobia eacute um sinal

adicional destes mesmos obstaacuteculos culturais (Borges amp Meyer 2008)

Exatamente pelo desafio impliacutecito na construccedilatildeo de programas preventivos ao sexis-

mo e ao heterossexismo em escolas brasileiras uma das tarefas do pesquisador nesta

aacuterea eacute a definiccedilatildeo do conteuacutedo e do formato de programas que contemplem os ingre-

dientes criacuteticos para se promover a mudanccedila sem gerar rejeiccedilatildeo e hostilidade ao pro-

grama Uma experiecircncia bem sucedida foi apresentada por Fernaacutendez e cols (2007)

que descrevem um programa de educaccedilatildeo afetivo-sexual para adolescentes e pais de

uma escola de ensino meacutedio na Espanha com o seguinte conteuacutedo identidade corporal

(mudanccedilas fiacutesicas e psicoloacutegicas da puberdade pressatildeo dos meios de comunicaccedilatildeo para

com a beleza) identidade de gecircnero (atitudes sexistas e respeito agrave diversidade sexual)

identidade e autoestima (autoconceito condicionantes sociais da autoimagem corpo-

ral e gecircnero) emoccedilotildees (desenvolvimento da empatia e da assertividade na expressatildeo

das emoccedilotildees) relaccedilotildees socioafetivas (respeito e toleracircncia nas relaccedilotildees interpessoais e

amizade na adolescecircncia) comportamento sexual (crenccedilas errocircneas sobre sexualidade

e desenvolvimento de uma visatildeo positiva sobre a sexualidade) e sauacutede sexual (meacutetodos

anticonceptivos)

461Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

Os resultados do programa conduzido por Fernandez e cols (2007) apontaram um

incremento em informaccedilatildeo sobre o comportamento sexual satisfaccedilatildeo corporal auto-

conceito autoestima e atitudes favoraacuteveis agrave equidade de gecircnero entre os adolescentes

Foi constatado ainda que os participantes adolescentes e pais demonstraram satisfaccedilatildeo

para com o programa Uma anaacutelise do conteuacutedo deste e de outros programas preven-

tivos voltados para temas correlatos como AIDS violecircncia no namoro e equidade de

gecircnero mostra que eacute comum nestes programas a inclusatildeo de habilidades sociais asser-

tivas de negociaccedilatildeo com o parceiro de manejo de emoccedilotildees e habilidades interpessoais

em geral De fato as habilidades sociais possuem uma estreita relaccedilatildeo com a temaacutetica

dos direitos humanos (Braz 2010) e com a toleracircncia agrave diversidade (Del Prette amp Del

Prette 2008) podendo consistir em um importante objeto de pesquisa preventiva nesta

aacuterea

O conjunto das propostas de accedilotildees de intervenccedilatildeo sugere um caminho a ser construiacutedo

que requer o envolvimento de gestores puacuteblicos e da sociedade em geral mas tambeacutem

a formaccedilatildeo de recursos humanos para a prevenccedilatildeo e o aperfeiccediloamento de propostas e

programas para isso Esses temas constituem desafios a serem progressivamente assu-

midos pelas ciecircncias da sauacutede em geral e pela Psicologia em particular

DesafiosdaPesquisaedaFormaccedilatildeoProfissional

Enquanto campo de investigaccedilatildeo o desenvolvimento efetivo de accedilotildees preventivas ao

sexismo e ao heterossexismo premite mapear uma agenda de pesquisa extensa natildeo

apenas na produccedilatildeo cientiacutefica no Paiacutes mas tambeacutem na busca de cooperaccedilatildeo com pes-

quisadores do exterior Dentre as tarefas de investigaccedilatildeo podem ser destacadas a cons-

truccedilatildeo de programas com conteuacutedo e formato viaacuteveis para diferentes populaccedilotildees (ex

crianccedilas adolescentes e universitaacuterios) e contextos (ex escola universidade e empre-

sas) o desenvolvimento de instrumentos de medida quantitativos e qualitativos para

avaliaccedilatildeo dos efeitos desses programas a conduccedilatildeo de pesquisas de avaliaccedilatildeo de pro-

gramas preventivos para verificaccedilatildeo da efetividade destas intervenccedilotildees com amostra e

delineamentos adequados e sobretudo o enfrentamento aos obstaacuteculos culturais para

discussatildeo dos direitos sexuais e reprodutivos nos vaacuterios espaccedilos sociais

462

Associado agrave pesquisa em geral no Brasil conduzida em contexto universitaacuterio entende-

-se que o investimento em prevenccedilatildeo requer de um lado programas preventivos edu-

cacionaispessoais com universitaacuterios e de outro um maior investimento no ensino

de prevenccedilatildeo em cursos de graduaccedilatildeo particularmente os de sauacutede e Psicologia A

ecircnfase na remediaccedilatildeo e a negligecircncia ao ensino de prevenccedilatildeo na graduaccedilatildeo em Psicolo-

gia (Conyne Newmeyer Kenny Romano amp Matthews 2008) tanto no Brasil como em

paiacuteses da Ameacuterica do Norte se revela por meio da ausecircncia de disciplinas focadas em

prevenccedilatildeo disciplinas que incluem o tema apenas de modo perifeacuterico disciplinas que

tratam de prevenccedilatildeo poreacutem satildeo ministradas em poucos creacuteditos e disciplinas optativas

(ao inveacutes de obrigatoacuterias) sobre o tema Conforme proposto por Britner e OrsquoNeil (2008)

o ensino de prevenccedilatildeo deve ser feito a partir dos eixos teoacuterico-conceituais praacutetico e

eacutetico Isto suscita a discussatildeo sobre o que deve ser ensinado e como deve ser ensinado

O ensino de prevenccedilatildeo ao sexismo ao heterossexismo e a outros toacutepicos que remetem a

exclusotildees e discriminaccedilotildees historicamente assimiladas eacute uma tarefa complexa (Russel

Soysa Wagoner amp Dawson 2008) que deve ir aleacutem da discussatildeo de teorias e conceitos

Isto requer disciplinas e estrateacutegias de ensino que extrapolem o desenvolvimento das

capacidades analiacutetica e instrumental e incluam tambeacutem o desenvolvimento da com-

petecircncia social (Del Prette amp Del Prette 2003) Promover competecircncia social supotildee

dentre outros objetivos ensinar habilidades para a adoccedilatildeo da perspectiva do outro o

respeito ao diferente a defesa dos proacuteprios direitos e o reconhecimento do direito do

outro Isto eacute crucial na formaccedilatildeo de profissionais sensiacuteveis e preparados para atuar pre-

ventivamente nas temaacuteticas da equidade de gecircnero e da diversidade sexual

ConsideraccedilotildeesFinais

Pelo exposto pode-se concluir que a prevenccedilatildeo ao sexismo e ao heterossexismo eacute uma

tarefa urgente necessaacuteria e desafiadora A promoccedilatildeo da equidade de gecircnero e o fortale-

cimento de uma cultura inclusiva do ponto de vista (tambeacutem) da diversidade de gecircnero

e sexual podem favorecer a reduccedilatildeo da incidecircncia de diferentes problemas em sauacutede

mental e de sauacutede fiacutesica com impacto final na longevidade e na qualidade de vida das

pessoas inclusive independentemente da identidade sexual e de gecircnero

O desenvolvimento de accedilotildees preventivas sejam elas sociaisnormativas ou educacio-

naispessoais esbarra em obstaacuteculos culturais que representam possivelmente o seu

463Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

maior desafio Contudo a criaccedilatildeo na uacuteltima deacutecada em nosso paiacutes de poliacuteticas puacuteblicas

que prevecircem a coibiccedilatildeo e prevenccedilatildeo da violecircncia de gecircnero (Secretaria Especial de Po-

liacuteticas para as Mulheres 2008) e da homofobia (Ministeacuterio da Sauacutede 2004) anuncia

novas perspectivas na aacuterea

A consecuccedilatildeo e consolidaccedilatildeo dos objetivos destas poliacuteticas iraacute certamente requerer em

meacutedio e longo prazo novos e diferentes esforccedilos poliacuteticos e tambeacutem o investimento

na produccedilatildeo de novos conhecimentos Uma das tarefas mais relevantes seja para in-

tegrantes de movimentos sociais gestores puacuteblicos e pesquisadores eacute a avaliaccedilatildeo da

implementaccedilatildeo dos programas derivados de tais poliacuteticas puacuteblicas e de seus resultados

e impactos Como afirmado por Junqueira (2009 p 161) ldquonatildeo eacute qualquer modelo edu-

cacional que se presta ao desenvolvimento social e () tampouco a elevaccedilatildeo da escola-

ridade se faz acompanhar do aprimoramento eacutetico dos indiviacuteduosrdquo Logo eacute pertinente

defender uma avaliaccedilatildeo das accedilotildees preventivas normativassociais e educacionaispes-

soais aqui apresentadas em termos do seu impacto sobre o desenvolvimento social e

eacutetico das pessoas a elas expostas no que tange ao respeito aos direitos de mulheres e

pessoas LGBT Eacute eacute certamente importante reconhecer e avaliar avanccedilos e tensotildees ecircxitos

e insucessos benefiacutecios e custos na implementaccedilatildeo dessas accedilotildees sociais normativas e

educacionais promotoras da diversidade de gecircnero e sexual no Brasil Responder a estas

questotildees seraacute vital para a tomada de decisatildeo por parte de gestores puacuteblicos movimen-

tos sociais e pesquisadores para o planejamento dos proacuteximos passos e estrateacutegias para

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470

O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

MarceloTavares

BlancaSusanaGuevaraWerlang

Este trabalho pretende apresentar uma visatildeo psicodinacircmica da crise A relevacircncia da

Intervenccedilatildeo em Crise (IC) foi amplamente reconhecida a partir dos trabalhos de Linde-

mann (1944) cuja concepccedilatildeo surge historicamente atrelada agrave ocorrecircncia de um trau-

ma ou cataacutestrofe Esta concepccedilatildeo toma um fator externo de relativa magnitude como

determinante do estado de crise ou seja trata a crise como uma resposta induzida pela

emergecircncia de situaccedilotildees externas Um desastre ou cataacutestrofe como um incecircndio pode

ser vivido por muitas pessoas Uma situaccedilatildeo de violecircncia urbana como um sequestro

pode ter grande impacto em uma uacutenica pessoa Independente da natureza pessoal ou

social do trauma esta visatildeo reconhece que alguns eventos de vida satildeo suficientemente

impactantes para afetarem via de regra a vida da maioria das pessoas Desde entatildeo

a IC como resposta a situaccedilotildees de emergecircncia tem se consolidado progressivamente

(Roberts 2005)

Esta tradiccedilatildeo assim como a maioria das concepccedilotildees de crise enfatiza o periacuteodo de rup-

tura com reaccedilotildees afetivas dolorosas diminuiccedilatildeo da capacidade cognitiva e funcional

471O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

comportamento desadaptativo e a emergecircncia de sintomas (Aguiar 1998 Saacute Werlang

Paranhos 2008) A visatildeo psiquiaacutetrica tradicional utiliza a mesma concepccedilatildeo poreacutem

coloca o foco na disfunccedilatildeo e no sintoma Tende a diminuir a relevacircncia de fatores his-

toacutericos e contextuais a tratar a disfunccedilatildeo ou emergecircncia de sintomas como um evento

ldquoendoacutegenordquo e utilizar a medicalizaccedilatildeo como forma prioritaacuteria de tratamento (Sadock amp

Sadock 2007)

Outro uso dessa concepccedilatildeo de crise prosperou na deacutecada de 1980 e 90 com o amadu-

recimento das propostas de psicoterapia breve Esta modalidade terapecircutica se aplica a

pessoas com relativa estabilidade e qualidade de funcionamento preacute-moacuterbido que entra-

ram em crise precipitada por questotildees subjetivas ou por eventos de vida (Sifneos 1993)

Portanto presume-se a capacidade para o enfrentamento das situaccedilotildees cotidianas da

vida e a ausecircncia de traccedilos moacuterbidos de personalidade Nesta modalidade o foco tera-

pecircutico ainda privilegia o sintoma como algo que emerge a partir da situaccedilatildeo atual sem

negar mas prescindindo-se assim de uma visatildeo evolutiva e processual da crise

Este texto parte das concepccedilotildees de Caplan (1980) e Erikson (1976 1987 1998) com o

objetivo de expor e discutir um conceito de crise coerente com uma compreensatildeo da ex-

periecircncia da crise necessaacuteria para o trabalho de IC com pessoas com comprometimen-

to estrutural significativo em estado de sofrimento psiacutequico grave e em situaccedilotildees de

risco Estes autores reconheciam o impacto dos eventos traumaacuteticos mas enfatizaram

os aspectos evolutivos processuais e psicossociais que predispotildeem as pessoas agrave crise

Caplan (1980) definiu fases do processo de iniacutecio exacerbaccedilatildeo e resoluccedilatildeo de uma crise

Erikson (1987) colocou a crise no centro do processo evolutivo de formaccedilatildeo da persona-

lidade e consolidaccedilatildeo da identidade a partir do nascimento e excedendo-se ateacute os anos

de maturidade e envelhecimento A crise passa a ser vista como normativa e necessaacuteria

numa concepccedilatildeo psicossocial do desenvolvimento e se vincula agraves tarefas impostas pelo

processo de amadurecimento e agraves competecircncias adquiridas pela experiecircncia

Este conceito aqui explorado apresenta uma visatildeo ampliada de processo incluindo

aspectos psicodinacircmicos de desenvolvimento que contribuem para a constituiccedilatildeo de

vulnerabilidades na estrutura da personalidade que levam aos transtornos de personali-

dade (McWilliams 2011 Stolorow amp Lachmann 1983) Este conceito eacute tambeacutem influen-

ciado por uma visatildeo psicossocial e sistecircmica (Bowen 1981 Framo 1970 1981 Pittman

DeYoung Flomenhaft Kaplan amp Langsley 1981) Essa visatildeo integrada eacute fundamental

472

no acolhimento na avaliaccedilatildeo e no planejamento de uma intervenccedilatildeo com pessoas com

vulnerabilidades estruturais e sofrimento psiacutequico grave tanto para compreensatildeo do

processo que leva a esta disposiccedilatildeo agrave crise e aos comportamentos de risco quanto para

a superaccedilatildeo destes

CrisepsicoloacutegicamdashUmadefiniccedilatildeo

A crise psicoloacutegica eacute um processo subjetivo determinado pelo contexto e pela histoacuteria

de vida de vivecircncia ou experimentaccedilatildeo de situaccedilotildees nas quais condiccedilotildees da realidade

interna e externa mobilizam uma pessoa e demandam novas respostas para as quais ela

perdeu ou ainda natildeo acessou natildeo adquiriu natildeo desenvolveu ou natildeo domina a capaci-

dade o repertoacuterio ou os recursos necessaacuterios para dar soluccedilatildeo agrave complexidade da tarefa

em questatildeo

Essa definiccedilatildeo tem oito caracteriacutesticas fundamentais Estas satildeo demanda (mobilizado-

ra) condiccedilotildees da realidade interna e externa resposta recursos complexidade (histoacute-

rica e contextualmente determinada) processo subjetividade e soluccedilatildeo Agora vamos

examinar cada uma delas

Demanda

O primeiro elemento crucial nessa definiccedilatildeo refere-se agrave demanda condiccedilatildeo necessaacuteria

ao desenvolvimento de um processo de crise Se natildeo haacute uma exigecircncia necessidade ou

desejo que se imponha ao sujeito ele permanece em seu estado de adaptaccedilatildeo inalterado

estado em que as condiccedilotildees agraves quais estaacute submetido lhe parecem satisfatoacuterias Portanto

se natildeo haacute demanda natildeo haacute crise Uma das caracteriacutesticas da demanda eacute o potencial que

tem para exercer uma pressatildeo e criar um estado de tensatildeo transtorno ou perturbaccedilatildeo

que manteacutem o sujeito mobilizado Posto de outro modo a demanda eacute revelada pela si-

tuaccedilatildeo ou contexto mobilizador Paradoxalmente uma aparente desmobilizaccedilatildeo frente a

uma situaccedilatildeo criacutetica que demanda uma reaccedilatildeo ou resposta pode ser uma defesa contra a

anguacutestia de uma determinada situaccedilatildeo de crise podendo ateacute mesmo fazer parecer que

natildeo haacute um estado de crise Por este motivo seria limitado definir crise como um estado

de desorganizaccedilatildeo e sofrimento aparente

473O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

Condiccedilotildeesinternaseexternas

Forccedilas internas e externas atuam sobre um organismo continuamente Na medida em

que este consegue organizar suas forccedilas para manter ou restabelecer um determinado

estado de adaptaccedilatildeo seu funcionamento continua em niacuteveis oacutetimos ou adequados A

accedilatildeo de condiccedilotildees de realidade interna e externa eacute a segunda caracteriacutestica a ser desta-

cada na configuraccedilatildeo da demanda que instaura a crise Ou seja a demanda eacute resultante

de determinantes de um interjogo constante de fatores internos e externos Distinguir

matizes internos e externos das crises psicoloacutegicas aleacutem de favorecer a compreensatildeo

de seus fatores determinantes permite a definiccedilatildeo de estrateacutegias de intervenccedilatildeo e pre-

venccedilatildeo diferenciadas de modo que estas possam ser dirigidas ao sujeito e ao ambiente

Ainda que algumas crises possam ser referidas a fatores bioloacutegicos natildeo podemos pen-

saacute-las fora do trinocircmio biopsicossocial pois mesmo nas situaccedilotildees em que fatores bioloacute-

gicos satildeo comprovados a vivecircncia de crise eacute crivada de sentidos subjetivos e comparti-

lhados (pela famiacutelia e rede social) e pode ser alterada a partir de intervenccedilotildees de sentido

(interpretaccedilatildeo modificaccedilotildees ambientais) que interagem com estes aspectos subjetivos

e compartilhados (portanto psicossociais)

Nos fatores externos da demanda incluiacutemos os aspectos relacionais e sistecircmicos e todos

os tipos de interaccedilotildees do sujeito com seu meio Natildeo soacute as demandas relacionam-se com

o meio mas tambeacutem as respostas que seratildeo empregadas pelo sujeito O meio tambeacutem

natildeo eacute inerte e iraacute reagir e interagir com o sujeito criando dificuldades apoiando facili-

tando ou bloqueando acesso a recursos do ambiente Mesmo numa crise que possa ser

pensada como resultante de determinantes bioloacutegicos de uma etapa de desenvolvimen-

to como aprender a andar coexiste nela a interaccedilatildeo de outros fatores internos aleacutem de

externos Internamente o aparelho psicomotor estaacute progressivamente se fortalecendo

e adquirindo maior domiacutenio de suas funccedilotildees mas a crianccedila tambeacutem se vecirc confrontada

subjetivamente pelos desejos e temores que esta nova e maior autonomia lhe apresenta

Por outro lado o mundo externo tambeacutem apresenta exigecircncias nessa fase pode promo-

ver (dando apoio e sustentaccedilatildeo) ou dificultar (exigindo autonomia precoce antes que o

aparelho psiacutequico esteja capaz de responder agrave demanda ou coibindo a iniciativa) pode

estabelecer condiccedilotildees ou restringir a possibilidade de realizaccedilatildeo de desejos e de exerciacute-

cio de novas habilidades

474

Frequentemente muacuteltiplos fatores estatildeo em contraposiccedilatildeo criando um arranjo com-

plexo de tensotildees e conflitos internos e externos A participaccedilatildeo de fatores internos e

externos em uma perspectiva biopsicossocial integrada fica mais clara e dramaacutetica na

puberdade e adolescecircncia e sua complexidade aumenta progressivamente ao longo dos

anos de maturidade Assim aspectos internos e externos participam continuamente da

configuraccedilatildeo da crise que se instala bem como delimitam as possibilidades de resposta

ou resoluccedilatildeo da situaccedilatildeo

Reaccedilatildeoouresposta

Outra caracteriacutestica da crise decorre da demanda Uma vez que uma demanda estaacute pos-

ta ela deixaraacute o sujeito mobilizado e iraacute exigir o envolvimento dele na forma de uma

reaccedilatildeo ou resposta Uma resoluccedilatildeo dificilmente poderaacute ser encontrada apenas com a

modificaccedilatildeo de fatores do meio O sujeito deveraacute envolver-se para atender agrave demanda e

dar destino a seu estado de mobilizaccedilatildeo Se uma reaccedilatildeo ou resposta do sujeito natildeo for

necessaacuteria natildeo haveraacute um processo de crise Reaccedilatildeo eacute um termo mais abrangente que

se aplica a todo o organismo ou ao self tomando este conceito como representaccedilatildeo total

do sujeito Por exemplo assim entendemos as reaccedilotildees afetivas somaacuteticas e sintomaacute-

ticas Resposta eacute um termo mais restrito referindo-se a uma accedilatildeo dirigida (ainda que

natildeo consciente) mas formada a partir do ego portanto dirigida a fins estruturantes

ou adaptativos como satildeo os mecanismos de defesas por exemplo mesmo quando as

reaccedilotildees e respostas sinalizam um estado de desorganizaccedilatildeo do ego O mais importante

eacute que a situaccedilatildeo mobiliza o sujeito criando tensotildees que o afetam e por isso modificam

seu estado subjetivo e influenciam o comportamento concorrendo para uma situaccedilatildeo

favoraacutevel de resoluccedilatildeo da crise ou dando sinais de fracasso na soluccedilatildeo das dificuldades

Uma das estrateacutegias da Intervenccedilatildeo em Crise (IC) eacute a modificaccedilatildeo ou remoccedilatildeo de fa-

tores externos associados agrave demanda por manipulaccedilatildeo do meio ambiente como tirar

uma licenccedila de trabalho evitar contato com certas pessoas ou mudar de residecircncia

Tais remoccedilotildees de estressores ambientais podem afetar favoravelmente a necessidade

de dar uma resposta imediata agrave situaccedilatildeo dando ao sujeito tempo para elaborar suas

dificuldades e encontrar alternativas A transformaccedilatildeo do significado subjetivamente

associado agrave demanda (um fator interno) tambeacutem pode exercer o mesmo efeito Poreacutem

eacute impossiacutevel natildeo responder a uma demanda colocada Em alguns casos a resposta pode

475O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

ser uma omissatildeo ou uma recusa Por exemplo natildeo reconhecer a necessidade de autono-

mia eacute uma soluccedilatildeo que conduz a um estilo de personalidade dependente recusar uma

proposta de promoccedilatildeo pode para algumas pessoas resolver ou abortar uma situaccedilatildeo de

crise Apesar do risco de estagnaccedilatildeo o estilo dependente e a recusa satildeo respostas que

ldquoresolvemrdquo a crise por estancar a anguacutestia que a mobilizou

Entre a demanda e a resposta haacute a mobilizaccedilatildeo do sujeito A desmobilizaccedilatildeo negaccedilatildeo

evitaccedilatildeo o isolamento do afeto como outras respostas defensivas frente agrave crise impe-

dem a elaboraccedilatildeo na consciecircncia dos fatores relacionados agrave anguacutestia que mobiliza a

crise Subjetivamente (e defensivamente) contribuem para uma sensaccedilatildeo de aliacutevio que

se traduz pelo natildeo envolvimento com a situaccedilatildeo Ainda que o uso desses mecanismos

possa contribuir para conter o impacto da crise seu uso sistemaacutetico resulta em soluccedilotildees

parciais ou de compromisso e podem natildeo atender satisfatoriamente quesitos importan-

tes da demanda Esta condiccedilatildeo pode ser precaacuteria e dependeraacute do sujeito ser capaz de

manter estas demandas e anguacutestias fora de sua vida consciente continuamente Por-

tanto ainda que ele mantenha a sensaccedilatildeo de ajuste ele estaraacute afetado por ter limitado

sua capacidade de funcionamento com possiacuteveis restriccedilotildees de autonomia e liberdade

Eacute a essa troca ndash o preccedilo que se paga por este arranjo de receber um aparente benefiacutecio

a um custo ndash que chamamos de soluccedilatildeo de compromisso Soluccedilotildees parciais ou de com-

promisso podem induzir a uma situaccedilatildeo crocircnica (e recursiva) de vulnerabilidade que

pode ser testada por experiecircncias de vida futura na medida em que a situaccedilatildeo evocar

aquilo que foi evitado No entanto se a resposta atende agrave demanda ou natildeo parcial ou

plenamente natildeo altera o fato de que um processo de crise instalado mobiliza e requer

atenccedilatildeo

Tomemos o seguinte exemplo D Ceacutelia era considerada uma professora excelente e

tinha a admiraccedilatildeo dos alunos o respeito dos colegas e a apreciaccedilatildeo dos pais Quando a

diretora de sua escola aposentou-se todos tinham a certeza de que ela seria a sucessora

natural para a funccedilatildeo o que ela aceitou Era matildee de famiacutelia reputava ter um bom ca-

samento e considerava nunca ter tido dificuldades psicoloacutegicas Suas dificuldades em

assumir o cargo ficaram aparentes logo de iniacutecio e poucos meses apoacutes ela jaacute estava

em profunda crise depressiva A sua solicitaccedilatildeo para ser substituiacuteda no cargo provocou

uma melhora notaacutevel na maioria de seus sintomas embora natildeo de modo suficiente

para a remissatildeo do quadro de Transtorno Depressivo Maior O que a colocou em crise

foi precisamente a mesma dificuldade que a fez se sentir obrigada a aceitar o cargo a

476

sua dificuldade de dizer ldquonatildeordquo No processo de IC que se seguiu ela veio a reconhecer

uma dinacircmica predominante que tivera desde cedo a necessidade de agradar e ob-

ter a aprovaccedilatildeo de todos Sentir-se amada era mais importante do que ser eficiente ou

promover-se na carreira Como diretora de repente viu-se obrigada a administrar con-

flitos tomar decisotildees e colocar limites que desagradavam pessoas o que a colocava em

confronto com pessoas ou grupos de quem antes ela tinha admiraccedilatildeo respeito estima

enfim Nestes confrontos uma decisatildeo a favor de algueacutem era simultaneamente uma

decisatildeo contra outra Com a falta de recursos para lidar com sentimentos agressivos dos

outros e a dificuldade para estabelecer limites eficazes nestas relaccedilotildees este contexto a

colocou diante de um conflito que nunca fora capaz de elaborar satisfatoriamente A

exacerbaccedilatildeo desse conflito lhe trouxe de uma vez intensos sentimentos e propiciaram

uma crise depressiva grave medo da perda de amor do outro sensaccedilatildeo de rejeiccedilatildeo e

abandono sentimentos de culpa e menosprezo paralelos a uma raiva inconsciente e

inaceitaacutevel nunca antes reconhecida muito menos elaborada

Naturezaequalidadedarepostafrenteasituaccedilotildeesdecrise

Evitamos propositalmente na definiccedilatildeo o condicionamento da qualidade da resposta

do sujeito agrave situaccedilatildeo de crise ndash a demanda exige do sujeito respostas novas ou diferen-

ciadas e iraacute cobrar dele a competecircncia ou capacidade para buscar e emitir estas respos-

tas independente das que ele efetivamente eacute capaz de dar Por este motivo natildeo nos refe-

rimos na definiccedilatildeo nem agrave resposta subjetiva de fracasso diante de situaccedilotildees relevantes

nem agrave superaccedilatildeo das mesmas ou seja natildeo nos baseamos na qualidade da resposta para

definir se haacute ou natildeo uma crise em processo

Deste modo a existecircncia da crise independe da natureza ou da qualidade da resposta

que o sujeito procura dar agrave demanda Consequentemente consideramos que tanto o

investimento e a experimentaccedilatildeo quanto a omissatildeo a inaccedilatildeo e a permanecircncia em es-

tado de paralisia ou impasse satildeo formas de resposta agrave crise Eacute comum que o sujeito em

crise inicialmente intensifique as respostas que tem utilizado anteriormente ateacute que

estas entrem em falecircncia segundo sua concepccedilatildeo subjetiva Por esse motivo uma pes-

soa agressiva que recorre a meacutetodos de aliacutevio de tensatildeo e ansiedade na bebida estaacute em

risco de tornar-se violenta ou alcooacutelatra a menos que perceba a escalada desses com-

portamentos como respostas inadequadas agrave situaccedilatildeo ou como respostas contraacuterias a

477O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

sua identidade ou a seus valores Neste caso tenderaacute a procurar respostas mais adequa-

das ou satisfatoacuterias Uma estrateacutegia para facilitar a mudanccedila satildeo intervenccedilotildees propiacutecias

para transformar aquilo que eacute egosintocircnico em egodistocircnico No entanto na dificuldade

de encontrar uma resposta adequada para a situaccedilatildeo frente a uma demanda inevitaacutevel

o sujeito daraacute a resposta que for possiacutevel mesmo que indesejada ou inadequada Natildeo

adianta querer que uma pessoa decirc uma resposta eficaz mesmo quando esta parece

faacutecil ou oacutebvia sem que ela tenha as condiccedilotildees subjetivas e suportes adequados do meio

para fazecirc-lo Sem a compreensatildeo das relaccedilotildees complexas entre a demanda o quadro

subjetivo e as condiccedilotildees de suportes do meio uma sugestatildeo aparentemente viaacutevel seria

ineficaz

Recursos

Natildeo eacute qualquer demanda que iraacute instaurar uma crise Eacute necessaacuterio que o sujeito a quem

essa demanda se aplica natildeo tenha adquirido natildeo tenha desenvolvido natildeo domine natildeo

tenha condiccedilotildees de acessar ou tenha perdido capacidade repertoacuterio ou recursos ne-

cessaacuterios para enfrentaacute-la Entendemos recursos de modo bem abrangente incluindo

tanto as habilidades capacidades e competecircncias de uma pessoa quanto o acesso a bens

e meios pessoais interpessoais familiares e sociais de alcanccedilar seus fins Neste sentido

acesso a pessoas e a redes sociais como forma de alcance a suportes pessoalmente signi-

ficativos constitui um dos mais importantes recursos que contribuem para a qualidade

de vida e adaptaccedilatildeo da pessoa Portanto a necessidade de desenvolver ou recuperar

meios de acessar recursos internos e externos eacute a quarta caracteriacutestica da crise se o

sujeito possui os recursos necessaacuterios frente agrave situaccedilatildeo natildeo haveraacute crise ou em outras

palavras ela jaacute teraacute sido resolvida

Uma pessoa pode ateacute estar vivendo uma situaccedilatildeo criacutetica externa como um conflito na

famiacutelia ou na relaccedilatildeo de trabalho mas ela pode estar em plenas condiccedilotildees de lidar com

a situaccedilatildeo por mais desagradaacutevel que seja Neste caso haveraacute uma crise no contexto

familiar ou de trabalho mas poderiacuteamos supor que natildeo seraacute uma crise psicoloacutegica pelo

menos para esta pessoa Portanto a crise psicoloacutegica em geral refere-se a uma nova

experiecircncia na vida do sujeito acompanhada de uma necessidade ou exigecircncia do con-

texto como um fato interno (como a emergecircncia de uma consciecircncia) ou externo (como

o rompimento de uma relaccedilatildeo ou um evento traumaacutetico) Tambeacutem pode se referir a

478

uma experiecircncia antiga quando o sujeito perde a condiccedilatildeo ou capacidade para lidar com

a situaccedilatildeo como acontece com o avanccedilar da idade na medida em que o curso natural

da vida resulta em perdas evolutivas Eacute tambeacutem comum nos casos cliacutenicos de IC que as

pessoas dizem que ldquonatildeo aguentam maisrdquo referindo-se a ter ultrapassado seus limites

pessoais no trato com as anguacutestias relacionadas a algum tipo de experiecircncia como ocor-

re nos casos de estresse ou burnout

Criseecomplexidade

O quinto aspecto a ser destacado em nosso conceito refere-se agrave complexidade da tare-

fa e jaacute vem sendo indicado na discussatildeo acima Um exame adequado e detalhado do

contexto (subjetivo interpessoal e ambiental) eacute fundamental para a compreensatildeo da

complexidade dos elementos que sustentam uma crise

Vejamos o caso da professora D Ceacutelia anteriormente citado Consideramos que o

desenvolvimento da capacidade dessa professora de dizer ldquonatildeordquo era necessaacuterio para o

exerciacutecio do cargo de diretora Consideramos tambeacutem que foi adequada a sua recusa

posterior de continuar no cargo pois originalmente ela natildeo o desejava o aceitara ape-

nas como resposta afetiva para atender agraves inuacutemeras solicitaccedilotildees de terceiros e ela natildeo

tinha os recursos pessoais requeridos para o seu exerciacutecio Poreacutem entendemos que ela

natildeo deveria ter-se deixado colocar nessa posiccedilatildeo ndash a de sentir-se obrigada a atender a

todos em um contexto de impossibilidade de fazecirc-lo ndash sem que estivesse motivada e em

condiccedilotildees de confrontar-se com situaccedilotildees que exigiriam dela desenvolver a habilidade

de enfrentamento necessaacuteria para o exerciacutecio da funccedilatildeo

Em nossa avaliaccedilatildeo aceitamos a sua recusa do cargo como o primeiro passo em sua

recuperaccedilatildeo uma estrateacutegia de IC era esperado um impacto positivo do afastamento

desse estressor na crise depressiva que havia-se instalado Contudo apesar do aliacutevio

imediato esse afastamento natildeo solucionou a crise natildeo totalmente Tal experiecircncia dei-

xa resquiacutecios e sequelas importantes torna consciente uma falha que provoca uma rup-

tura na identidade e no modo de funcionamento aceitaacuteveis ou ateacute mesmo ideais em sua

organizaccedilatildeo anterior a seus olhos e aos das pessoas proacuteximas a ela A recusa tambeacutem

significa natildeo ter atendido agrave expectativa das pessoas e por isso suscita o temor de natildeo

ser mais amada ndash fica comprometida sua estima social sua autoestima projetada nos

479O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

olhos dos outros Dinamicamente o esforccedilo de D Ceacutelia por fazer-se querida por todos

era uma estrateacutegia defensiva funcional que mantinha toleraacutevel sua anguacutestia de ter que

lidar com impulsos agressivos nas relaccedilotildees e correr o risco de perder o amor do outro

Essa dinacircmica esconde o seu problema de autoestima que antecedia a crise e foi um de

seus fatores determinantes

Passada a fase criacutetica da depressatildeo permaneceram abaladas sua identidade autoi-

magem e autoestima Com o receio de enfrentamento de novas situaccedilotildees e pessoas

tambeacutem ficou afetada a sua capacidade de interaccedilatildeo e relacionamento Daiacute resulta seu

pedido precoce de aposentadoria e seu afastamento de sua rede social de apoio ndash o

isolamento que eacute um dos sintomas da depressatildeo Se qualificarmos como crise apenas

a manifestaccedilatildeo sintomaacutetica ndash a depressatildeo neste caso ndash falharemos em perceber que a

psicodinacircmica envolvida em seu funcionamento anterior que comeccedilara em sua tenra

idade eacute a mesma que produz a crise em seus anos de maturidade Havia portanto uma

vulnerabilidade que natildeo fora testada ateacute aquele momento Ou seja havia desde cedo

um processo subjetivo cuja dinacircmica vivida em intensidade intoleraacutevel e sem a possibi-

lidade de utilizar os mesmos recursos anteriormente disponiacuteveis provoca uma mudan-

ccedila qualitativa de funcionamento no qual a presenccedila exacerbada de reaccedilotildees sintomaacuteticas

e respostas desadaptativas tornam evidentes uma situaccedilatildeo de ruptura na capacidade de

funcionamento

Ainda que medicada meses depois sintomas depressivos importantes permaneciam

Este desfecho traz um quadro crocircnico que indica um novo niacutevel ou patamar de funcio-

namento uma resoluccedilatildeo precaacuteria com restriccedilatildeo significativa de autonomia e liberdade

Portanto uma crise relativamente objetiva (dominar a funccedilatildeo profissional) reativa uma

crise antiga (a necessidade de se sentir amada versus de colocar limites a terceiros) e re-

sulta em outra que se instala (crise depressiva com impacto na autoestima e identidade

e com a reclusatildeo e retraimento progressivos) Poreacutem eacute mais adequado dizer que se trata

de um uacutenico processo no qual participam muacuteltiplos elementos em interaccedilatildeo complexa

A participaccedilatildeo de fatores relacionais sistecircmicos e sociais neste exemplo estaacute clara evi-

denciando que uma crise natildeo pode ser adequadamente avaliada sem a consideraccedilatildeo da

complexidade que inclui elementos do contexto associados aos subjetivos

Aleacutem da participaccedilatildeo de elementos do contexto fica evidente aqui que esta complexida-

de eacute histoacuterica- e dinamicamente determinada as crises satildeo epigeneticamente definidas

480

Aspectos da histoacuteria de vida vulnerabilidades importantes que foram se constituindo

ao longo do desenvolvimento outros aspectos do contexto e das relaccedilotildees atuais crises

passadas e suas formas de enfrentamento entre outros elementos acham-se associa-

dos a situaccedilotildees de ruptura que observamos na fase criacutetica da crise Portanto o exame

adequado de uma crise instalada exige consideraccedilotildees acerca de sua complexidade Por

outro lado este exame nos leva a concluir algo sobre a natureza dessa complexidade as

crises apresentam demandas que satildeo muacuteltiplas sobrepostas sucessivas circulares e re-

cursivas elas interagem entre si e se potencializam A possibilidade de emergecircncia de

situaccedilotildees de crise eacute contiacutenua de modo que podemos com frequecircncia identificar muacutelti-

plas demandas que se sobrepotildeem e se sucedem Demandas distintas podem estar em

conflito de modo que o sujeito pode ver-se obrigado a uma renuacutencia para poder atender

a outra demanda que se faz presente Dizemos tambeacutem que as crises satildeo circulares

pois as condiccedilotildees de resoluccedilatildeo de uma contribuem com fatores (de proteccedilatildeo e de risco)

que afetam crises sucessivas Elas tambeacutem satildeo recursivas porque situaccedilotildees de vida futu-

ra podem reeditar crises passadas quando a resoluccedilatildeo anterior natildeo foi adequadamente

satisfatoacuteria quando a situaccedilatildeo se reapresenta de forma exacerbada ou quando haacute uma

perda de condiccedilatildeo de enfrentamento de uma situaccedilatildeo

As crises tambeacutem comportam elementos transgeracionais e sistecircmicos Vejamos o

exemplo da famiacutelia cujo filho entra em crise O pai eacute um homem de negoacutecios bem suce-

dido e a matildee eacute domeacutestica Quando se casaram com a primeira gravidez o pai desenvol-

veu a seguinte teoria sua matildee nunca havia lhe colocado limites sempre fora respeitosa

e acolhedora das iniciativas dos filhos a matildee de sua esposa era severa e controladora o

que segundo sua interpretaccedilatildeo teria sido a causa do fracasso dos irmatildeos de sua esposa

Como sua esposa tinha dificuldades de autoestima uma certa tendecircncia agrave dependecircncia

e submissatildeo aleacutem de dificuldades natildeo resolvidas com sua proacutepria matildee controladora

aceitou a diretiva do marido a qual ela implementou Sentia-se culpada quando se via

obrigada a colocar algum limite a seu filho Dinamicamente ela se sentia proibida de

fazecirc-lo mesmo quando achava que deveria mas derivava disso um certo aliacutevio de sen-

timentos de culpa e inadequaccedilatildeo enquanto matildee pois estava seguindo as decisotildees do

marido baseados em um modelo por ele idealizado

Dezessete anos mais tarde em pleno surto maniacuteaco o filho mais velho tem acesso agrave

senha bancaacuteria do pai e faz verdadeira orgia financeira abalando a economia domeacutestica

Fez inuacutemeras despesas quebrando os limites de vaacuterios cartotildees de creacutedito com compras

481O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

pela internet Como os pais estavam acostumados a ldquorespeitar e acolherrdquo as decisotildees de

reclusatildeo e isolamento do filho o quadro cliacutenico e o dano financeiro foram percebidos

apenas dias depois Neste exemplo podemos ver os efeitos no filho da dificuldade dos

pais de desenvolverem um modo parental eficaz a partir de uma elaboraccedilatildeo de experi-

ecircncias de vida em suas famiacutelias de origem Apenas repetiram as dinacircmicas das famiacutelias

de origem o pai era severo e controlador (como seu pai e tambeacutem como sua sogra) e a

matildee continuava dependente e submissa Deixaram este filho crescer sem limites que

proveem suporte no trato com a realidade com prejuiacutezos na capacidade de julgamento

toleracircncia agrave frustraccedilatildeo controle de impulsos capacidade de relacionamento e intimida-

de desenvolvimento da autoestima de uma identidade palpaacutevel que pudesse alicerccedilar

um projeto de vida sustentaacutevel Parte do choque dos pais e da dificuldade deles em acei-

tar o problema e as recomendaccedilotildees terapecircuticas era que as estrateacutegias propostas contra-

diziam as concepccedilotildees originais de suas dinacircmicas pessoais relacionais e sistecircmicas O

pai natildeo podia ceder a seus meios e a matildee natildeo podia colocar limites nem ao esposo nem

a seu filho Disso resulta apoacutes longa seacuterie de eventos uma crise maniacuteaca aguda em um

jovem que a esta altura jaacute acumulava seacuterios prejuiacutezos de desenvolvimento

Para contemplar outros exemplos da complexidade das crises e a diversidade dos as-

pectos nelas envolvidos devemos considerar nas histoacuterias cliacutenicas os desafios e as difi-

culdades ao longo do desenvolvimento da autonomia progressiva da infacircncia e adoles-

cecircncia passando pela consolidaccedilatildeo da identidade no adulto jovem ateacute as tribulaccedilotildees da

maturidade (Erikson 1987 Carter amp McGoldrick 1988) Na maioria dos casos cliacutenicos

de IC observa-se uma sucessatildeo de crises mal resolvidas e impactadas por eventos de

vida adversos que criam vulnerabilidades significativas e levam o sujeito a muacuteltiplas

rupturas (fase criacutetica da crise) ao longo da vida

Crisecomoprocesso

A sexta caracteriacutestica da crise que enfatizamos eacute fundamental embora seja frequente-

mente negligenciada tanto clinicamente quanto na cultura trata-se de destacar que a

crise eacute um processo Ao enfatizar a qualidade processual das crises estamos indicando

que ela tem uma dinacircmica (com antecedentes precursores e vulnerabilidades adquiri-

das) que tem iniacutecio e se desenvolve e se transforma pela experimentaccedilatildeo e que tem um

482

desfecho que anuncia e interage com situaccedilotildees futuras deixando novas vulnerabilida-

des ou promovendo a capacidade de enfrentamento

Enquanto processo a crise envolve elaboraccedilatildeo experimentaccedilatildeo transformaccedilatildeo e reso-

luccedilatildeo (para melhor ou para pior) ou seja ela tem histoacuteria e entre seus elementos mais

importantes os fatores de risco e de proteccedilatildeo que iratildeo dificultar ou favorecer a supera-

ccedilatildeo Apesar de algum desconforto ansiedade ou anguacutestia a crise tende agrave superaccedilatildeo na

medida em que alternativas de se lidar com a situaccedilatildeo vatildeo emergindo que recursos do

ambiente ou da rede vatildeo sendo acessados e que os recursos capacidades e o repertoacuterio

do sujeito vatildeo se expandindo Mas a crise tambeacutem pode ter desfechos menos desejaacuteveis

e pode ser acompanhada de dor psiacutequica (Shneidman 1996) de formaccedilatildeo de sintomas

de atuaccedilotildees patoloacutegicas e de cronificaccedilatildeo de padrotildees desadaptativos na estrutura de per-

sonalidade Como resultado o desfecho da crise pode favorecer a estruturaccedilatildeo de novos

fatores de proteccedilatildeo ou acumular dificuldades que provocam sofrimento operam como

fatores de risco e aumentam a predisposiccedilatildeo a dificuldades de superaccedilatildeo novos desa-

fios A superaccedilatildeo de uma crise natildeo implica em maior desenvolvimento ou autonomia

necessariamente muitas vezes implica em aceitaccedilatildeo de limites pessoais ou significa

adaptaccedilatildeo a perdas evolutivas e restriccedilotildees progressivas como por exemplo as impostas

pela idade

Frequentemente deixa-se de considerar a crise como um processo para dirigir o foco da

atenccedilatildeo para o que eacute apenas uma de suas etapas a fase criacutetica da crise ou seja o periacuteodo

de sofrimento psiacutequico grave e formaccedilatildeo de sintomas agudos ou atuaccedilotildees inadequadas

que opera como uma ruptura na qualidade e capacidade de funcionamento usuais do

sujeito Esta eacute a visatildeo comum do conceito de crise que reduz a concepccedilatildeo do processo

entendendo-o apenas como produccedilatildeo ou exacerbaccedilatildeo de sintomas psiquiaacutetricos agudos

Tal limitaccedilatildeo tem consequecircncias graves inscritas na cultura Ao natildeo se valorizar a dinacirc-

mica que leva ao risco de ruptura deixa-se de perceber elementos que podem nos for-

necer alternativas de prevenccedilatildeo pela atuaccedilatildeo precoce no desenvolvimento da capacidade

de enfrentamento Deixa-se tambeacutem de perceber os elementos que podem nos fornecer

alternativas de intervenccedilatildeo em crise ndash pontos de intervenccedilatildeo terapecircutica que guardam

o potencial de modificar a experiecircncia do sujeito da crise e mudar o curso e desfecho da

situaccedilatildeo (Tavares 2004)

483O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

Caracteriacutesticas de nossa cultura alinham-se a concepccedilotildees parciais ou reducionistas da

crise expliacutecitas e impliacutecitas sem a devida ecircnfase em seus aspectos processuais ou em

sua complexidade atendo-se apenas aos aspectos mais concretos da fase criacutetica ou de

ruptura Tal atitude contribui para uma concepccedilatildeo preconceituosa que eacute mantida em

relaccedilatildeo agraves pessoas ldquoem criserdquo e em relaccedilatildeo agrave experiecircncia na fase aguda da crise tanto

nos meios profissionais na aacuterea de sauacutede em geral quanto nas instituiccedilotildees e na cultura

Este preconceito opera como uma forma de exclusatildeo e violecircncia concreta e simboacutelica

que ainda natildeo recebeu a atenccedilatildeo que merece Por exemplo um jovem em crise na

escola sofre a crise e sofre os maus tratos das pessoas que o percebem em crise como

se fosse culpa ou desejo dele estar em crise Os aspectos sistecircmicos transgeracionais

contextuais e histoacutericos de sua experiecircncia satildeo negligenciados e ele eacute identificado como

ator diretor e produtor de seu sofrimento (uma projeccedilatildeo) Professores e profissionais de

sauacutede frequentemente acreditam que as provocando ou seja aumentando o sofrimento

subjetivo dessas pessoas estaratildeo criando condiccedilotildees de motivaccedilatildeo para a mudanccedila Na

verdade atuam sua aversatildeo e oacutedio pelo que a crise representa neles mesmos mas que

natildeo pode ser concebido na consciecircncia Acabam com isso atuando sua aversatildeo e oacutedio

contra a pessoa que sofre a crise (Maltsberger amp Buie 1996 Winnicott 1978)

Enfatizar crise como um processo complexo eacute tomaacute-la como fenocircmeno que se inicia

muito antes e tem repercussotildees muito depois de sua fase criacutetica ateacute mesmo depois do

que se pode entender como seu desfecho como as influecircncias que ultrapassam bar-

reiras pessoais e geracionais Um processo de crise se entrelaccedila com crises passadas e

pode fazer seus efeitos presentes em crises que ainda estatildeo por vir Por exemplo uma

crianccedila que teve dificuldades de desenvolver seu senso de autonomia na infacircncia pode

parecer crescer sem muitos problemas e mais tarde ter dificuldades seacuterias para enfren-

tar separaccedilotildees na vida adulta Elementos histoacutericos das crises que vivemos que supe-

ramos bem ou mal acabam se relacionando de forma que um sucesso anterior poderaacute

apoiar a superaccedilatildeo de situaccedilotildees posteriores e uma dificuldade anterior poderaacute aumentar

a carga de dificuldade em situaccedilotildees futuras

Subjetividadeecrise

A crise psicoloacutegica eacute um processo experiencial ndash logo subjetivo ndash de uma pessoa a par-

tir do uso de funccedilotildees psicoloacutegicas e da interaccedilatildeo com seu meio para atualizaccedilatildeo de suas

necessidades em seu contexto pessoal relacional familiar social histoacuterico e cultural

484

A subjetividade inerente ao processo eacute o seacutetimo aspecto que desejamos destacar nes-

sa concepccedilatildeo de crise psicoloacutegica Caso natildeo fosse subjetiva teriacuteamos que consideraacute-la

como crise relacional (conjugal familiar etc) crise social ou econocircmica Por exemplo

a violecircncia domeacutestica e o desemprego permitem anaacutelises por vaacuterias oacuteticas subjetiva

relacional social e econocircmica Tais crises de outras ordens podem estar e frequente-

mente estatildeo relacionadas agraves crises de natureza subjetiva ou psicoloacutegica Fatores sociais

ou ambientais como o desemprego ou uma aposentadoria compulsoacuteria podem estar

e muitas vezes estatildeo associadas a crises subjetivamente experimentadas pelas pessoas

Fatores concretos como a vida em situaccedilatildeo de pobreza contribuem como fatores de ris-

co determinantes que podem iniciar ou agravar um processo de crise Tais fatores que

podem ser objetivamente observados satildeo considerados na literatura como estressores

fatores de risco fatores desencadeantes (triggers) mudanccedilas eventos de vida eventos

adversos ou eventos traumaacuteticos (Montenegro amp Tavares 2005 Paykel 2003) O papel

destes fatores na crise estaacute no fato deles favorecerem ou induzirem um processo de

crise ou ateacute mesmo atuar como fator determinante de uma ruptura No entanto a in-

teraccedilatildeo desses elementos externos ou objetivos com a crise psicoloacutegica natildeo retira dela o

seu caraacuteter subjetivo uma pessoa diante de sua realidade

ResoluccedilatildeoouestabilidadedesoluccedilatildeomdashAfunccedilatildeodacrise

Segundo Erikson (1987) a tarefa da crise eacute possibilitar a aquisiccedilatildeo de competecircncias O

desenvolvimento de meios para a resoluccedilatildeo satisfatoacuteria da mesma amplia o repertoacuterio

pessoal Assim a vivecircncia da crise estaacute ou deveria estar associada agraves modificaccedilotildees do

repertoacuterio de respostas e das competecircncias do sujeito processo que leva ao que chama-

mos capacidade ou forccedila de ego para lidar com a realidade Estas mudanccedilas significam

tambeacutem a capacidade de fazer ajustes nos anos de maturidade e na velhice Lidar com

mudanccedilas no contexto e com perdas evolutivas representa capacidade de ajustamento a

aspectos inevitaacuteveis da realidade Essa progressatildeo adaptativa ajustada agrave realidade pesso-

al e situacional de cada nova fase eacute a funccedilatildeo ideal da crise ao longo da vida Poreacutem toda

crise chega a um desfecho que representa um periacuteodo de acomodaccedilatildeo mesmo quando

as respostas do sujeito satildeo inadequadas ou desadaptativas Portanto eacute necessaacuterio for-

mular a funccedilatildeo da crise em termos mais amplos e generalizaacuteveis Segundo essa visatildeo a

funccedilatildeo da crise eacute a de promover o desenvolvimento de um novo contexto de estabilidade

485O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

ou equiliacutebrio dinacircmico independente da qualidade da resoluccedilatildeo alcanccedilada Esta eacute a oi-

tava e uacuteltima caracteriacutestica da crise que indicamos no conceito apresentado

O equiliacutebrio proacuteprio dos seres vivos eacute o equiliacutebrio dinacircmico autocircnomo pois eles estatildeo

em constante transformaccedilatildeo em busca de adaptaccedilatildeo agraves circunstacircncias e a suas proacuteprias

necessidades Na crise a manutenccedilatildeo desse equiliacutebrio dinacircmico iraacute exigir uma mudan-

ccedila de estado ou seja seraacute necessaacuterio investimento de nova energia e modificaccedilatildeo das

condiccedilotildees anteriores de sustentaccedilatildeo e autonomia A funccedilatildeo da crise de promover um

novo contexto de equiliacutebrio dinacircmico tem desdobramentos importantes pois a crise eacute

uma experiecircncia subjetiva de um estado alterado de difiacutecil sustentaccedilatildeo por vezes into-

leraacutevel que exige alto dispecircndio de energia e constante investimento Uma pessoa que

passa por uma situaccedilatildeo de crise seraacute modificada por ela Uma demanda num processo

de crise desestabiliza o sujeito e exige a constituiccedilatildeo de um novo contexto de equiliacutebrio

Distinguimos trecircs possibilidades ou tipos de resoluccedilatildeo de uma situaccedilatildeo de crise supe-

raccedilatildeo estagnaccedilatildeo ou interrupccedilatildeo Cada uma se refere a um tipo desfecho ou resoluccedilatildeo

da crise a condiccedilotildees qualitativamente distintas de equiliacutebrio alcanccedilado Os trecircs se re-

ferem ao processo de acomodaccedilatildeo apoacutes a experiecircncia de crise Superaccedilatildeo e estagnaccedilatildeo

podem ser estados alcanccedilados com ou sem a emergecircncia de uma fase criacutetica da crise

Interrupccedilatildeo refere-se ao periacuteodo de acomodaccedilatildeo que sucede agrave fase criacutetica da crise e en-

volve geralmente a cronificaccedilatildeo de sintomas ou dificuldades Quando crises evolutivas

com desfecho problemaacutetico acontecem muito precocemente na vida de uma crianccedila

dificuldades podem ser configuradas na estrutura da personalidade da crianccedila muitas

vezes sem serem percebidas pelos pais ou cuidadores Estas situaccedilotildees conhecidas como

paradas de desenvolvimento (developmental arrest Stolorow amp Lachmann 1983) repre-

sentam vulnerabilidades que aumentam o risco de crise futura e estatildeo com frequecircncia

associados a estados de estagnaccedilatildeo ou interrupccedilatildeo no adulto Agora comentaremos

cada um desses trecircs tipos de desfecho

Superaccedilatildeo A situaccedilatildeo de crise pode ser considerada um desafio uma experiecircncia que

apresenta riscos e oportunidades Na superaccedilatildeo a crise tende a ser tomada como opor-

tunidade na qual a necessidade de superaccedilatildeo aponta a direccedilatildeo ou sentido do desenvol-

vimento da aquisiccedilatildeo de competecircncias da expansatildeo do repertoacuterio pessoal do aumento

da autoestima da consolidaccedilatildeo da identidade da maior inserccedilatildeo social da ampliaccedilatildeo

da autonomia da responsabilidade da liberdade e da maturidade A postura geral do

486

sujeito tende a ser de aceitaccedilatildeo do desafio de toleracircncia flexibilidade curiosidade in-

vestimento experimentaccedilatildeo e enfrentamento Esta postura eacute mantida mesmo e apesar

da vivecircncia de algum sofrimento ansiedade medo e outras reaccedilotildees afetivas ou com-

portamentos inadequados transitoacuterios que venham a ser superados Portanto algueacutem

pode estar ansioso ou deprimido e ainda assim ter investimento suficiente para a supe-

raccedilatildeo Outros podem vencer resistecircncias importantes com apoio de um psicoterapeuta

eficiente Procurar ajuda profissional eacute um importante indicador de investimento de

busca de motivaccedilatildeo para a superaccedilatildeo Uma das funccedilotildees importantes da IC eacute avaliar e

favorecer a dissoluccedilatildeo de resistecircncias iniciais ao processo e fortalecer a alianccedila terapecircu-

tica para a mudanccedila

Estagnaccedilatildeo A crise tambeacutem nos apresenta o risco de fracassarmos de nos sentirmos

incapazes de corresponder de recorrermos a meios de organizaccedilatildeo e relacionamento

menos eficazes adaptativos ou satisfatoacuterios gerando sequelas para a autoestima au-

toimagem graus de liberdade e participaccedilatildeo social Distinguimos este fracasso qua-

litativamente em estagnaccedilatildeo ou interrupccedilatildeo conforme o arranjo adaptativo resultan-

te A estagnaccedilatildeo eacute um estado de acomodaccedilatildeo em um contexto de equiliacutebrio dinacircmico

funcional mas qualitativamente inferior do que o niacutevel adaptativo anterior ou daquele

que poderia ter sido alcanccedilado caso fosse possiacutevel mobilizar recursos do sujeito e do

ambiente (como buscar uma psicoterapia por exemplo) Na estagnaccedilatildeo o sujeito busca

ajustar-se agrave situaccedilatildeo por meio de mecanismos de evitaccedilatildeo o que o deixa vulneraacutevel

ao risco de ruptura em situaccedilotildees propiacutecias Por exemplo diante da anguacutestia gerada

pela autonomia uma pessoa pode ajustar-se mantendo viacutenculos de dependecircncia uma

pessoa com dificuldade de enfrentamento de situaccedilotildees sociais pode retrair-se progres-

sivamente uma pessoa com receio de decepcionar-se em relaccedilotildees amorosas estaacuteveis

pode evitar envolver-se afetivamente ou pode firmar relacionamentos seguros poreacutem

pouco satisfatoacuterios uma pessoa com medo de errar e assumir responsabilidades pode

evitar tarefas que poderiam avanccedilar sua carreira Haacute diferenccedila entre uma pessoa que se

aposenta como gerente de loja satisfeito com seu percurso daquele que se aposenta na

mesma condiccedilatildeo amargurado por natildeo ter feito outras opccedilotildees Neste uacuteltimo caso parece

haver um estado de estagnaccedilatildeo onde a pessoa deixou de investir em outros sonhos ou

possibilidades

Interrupccedilatildeo Chamamos de interrupccedilatildeo o periacuteodo de acomodaccedilatildeo que sucede uma rup-

tura Ruptura refere-se agrave situaccedilatildeo de sofrimento psiacutequico grave concomitante agrave vivecircncia

487O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

da fase criacutetica da crise e coincide com o periacuteodo de produccedilatildeo de sintomas agudos ou

de exacerbaccedilatildeo aguda de sintomas crocircnicos com comprometimento da capacidade de

adaptaccedilatildeo e restriccedilatildeo significativa da autonomia e da liberdade A interrupccedilatildeo constitui

um tipo especial de resoluccedilatildeo da crise pela assimilaccedilatildeo de modos de estruturaccedilatildeo am-

plamente ineficazes ou pouco adaptativos Mecanismos de defesa regredidos ou primi-

tivos tendem a ser usados em demasia levando agrave cristalizaccedilatildeo de dificuldades e vulne-

rabilidades na estrutura Isso implica em cronificaccedilatildeo progressiva de alguns sintomas

e comportamentos inadequados e aumenta consideravelmente o risco de novas crises

frente a situaccedilotildees futuras

Temos um exemplo de interrupccedilatildeo no caso da professora que se torna diretora e se vecirc

obrigada a se afastar de sua profissatildeo apoacutes afastar-se do cargo ela acaba tambeacutem se iso-

lando por natildeo conseguir mais encarar as pessoas Sintomas depressivos residuais per-

maneceram apoacutes a ruptura ou fase criacutetica da crise Uma vez que se tornou consciente

de sua dificuldade de enfrentamento que nunca tinha sido posta em cheque de forma

tatildeo decisiva ela busca no retraimento e no isolamento a soluccedilatildeo para esta dificuldade

Neste caso ela adotou uma postura que resolveu a tensatildeo imediata do confronto mas a

esquiva manteve ou prolongou a sensaccedilatildeo de inseguranccedila que passou a acompanhaacute-la

interferindo negativamente na superaccedilatildeo de dificuldades que estariam por vir e resul-

tou numa aposentadoria precoce e em dificuldades de lidar com os relacionamentos

em situaccedilotildees sociais que passaram a ser vividos como demandas difiacuteceis de serem

toleradas

A condiccedilatildeo de ruptura que se trata de uma manifestaccedilatildeo sintomaacutetica aguda e transitoacute-

ria precisa ser distinguida da condiccedilatildeo de interrupccedilatildeo que eacute um tipo de resoluccedilatildeo de

crise que alcanccedila uma estabilidade caracterizada por uma situaccedilatildeo crocircnica que inclui

sintomas A crise se resolve quando se recupera ou se atinge um contexto de equiliacutebrio

dinacircmico ou seja quando se encontra uma condiccedilatildeo de gerenciamento estaacutevel e sus-

tentaacutevel dos niacuteveis de tensatildeo (mesmo que seja desadaptativo ou inclua sintomas) Na

situaccedilatildeo cliacutenica encontramos com frequecircncia a fase criacutetica da crise ndash momentos de

ruptura acompanhados de sintomas agudos onde os modos de resposta do sujeito clara-

mente natildeo atendem agraves demandas da situaccedilatildeo Contudo o sujeito ainda pode demons-

trar condiccedilotildees de superaccedilatildeo suficientes especialmente quando haacute suporte terapecircutico

eficiente Jaacute na interrupccedilatildeo periacuteodo de acomodaccedilatildeo que sucede agrave fase criacutetica e aguda da

crise haacute estabilidade de respostas regredidas ou inadequadas apesar da existecircncia de

488

sintomas residuais de dor ou sofrimento elevado ou de perda importante da liberdade

da autonomia e da capacidade de enfrentamento das situaccedilotildees cotidianas Estes casos

incluem pessoas com transtornos de personalidade grave e pessoas com niacutevel de funcio-

namento psicoacutetico crocircnico entre outros quadros psicopatoloacutegicos crocircnicos

Muitas pessoas chegam agrave interrupccedilatildeo ou passam por um longo periacuteodo de estagnaccedilatildeo

antes de decidirem buscar ajuda profissional e investir na superaccedilatildeo Eacute preciso reconhe-

cer e trabalhar para superar as dificuldades de aceitaccedilatildeo da crise impostas pela cultura

pelas famiacutelias e pelas proacuteprias pessoas que estatildeo passando por periacuteodos de dificuldade

e sofrimento Em geral a fase criacutetica da crise exige a intervenccedilatildeo de terceiros por trecircs

motivos que envolvem a necessidade de cuidado Primeiro porque o sujeito pode se

encontrar em situaccedilatildeo de risco suficiente para mobilizar as pessoas a intercederem para

sua proteccedilatildeo Segundo porque a crise pode colocar outras pessoas em situaccedilatildeo de risco

(como nos casos que envolvem violecircncia ou a seguranccedila financeira da famiacutelia) Terceiro

porque a conduta do sujeito cria dificuldades na interaccedilatildeo com pessoas na famiacutelia na

escola ou no trabalho (mobilizaccedilatildeo de sentimentos de culpa irritaccedilatildeo necessidade de

assumir certas responsabilidades do e pelo sujeito) Poreacutem a situaccedilatildeo aguda na fase criacute-

tica da crise eacute insustentaacutevel por um longo periacuteodo e uma nova fase de estabilidade pode

ser prevista algum tempo apoacutes o iniacutecio da fase criacutetica da crise mesmo quando haacute sin-

tomas e psicopatologias graves Neste caso os indicadores psicodinacircmicos de crise satildeo

assimilados na estrutura e os sintomas tendem a se cronificar Natildeo eacute somente porque

uma pessoa daacute respostas claramente desadaptativas que ele estaacute na fase aguda da crise

aquilo pode representar o seu modo usual de ser ou o seu melhor niacutevel de adaptaccedilatildeo

possiacutevel Em consequecircncia o sintoma natildeo eacute a melhor maneira de caracterizar a crise

Tratamento humanitaacuterio e respeito satildeo necessaacuterios para com essas pessoas conside-

rando que seu comportamento natildeo resulta de uma maacute vontade ou ato conscientemente

voluntaacuterio e que para a maioria delas haacute prejuiacutezo de julgamento podendo incluir dano

cognitivo ou orgacircnico

CriseseudesfechoeopapeldaIntervenccedilatildeoemCrise

A fase de estabilidade posterior agrave fase criacutetica ou aguda da crise pode ser um patamar su-

perior semelhante inferior ou muito inferior ao niacutevel de funcionamento do sujeito an-

tes da fase criacutetica da crise (linha de base) Para os propoacutesitos da avaliaccedilatildeo na Intervenccedilatildeo

489O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

em Crise (IC) consideramos a qualidade de ajustamento adaptaccedilatildeo ou funcionamento

durante o ano anterior ao iniacutecio da fase criacutetica da crise ou seja procuramos avaliar a

qualidade de funcionamento em periacuteodo de estabilidade O objetivo da intervenccedilatildeo eacute

ajudar a pessoa a retornar a este niacutevel anterior de funcionamento e idealmente ajudar

a pessoa a se mobilizar para investir em um processo mais longo de transformaccedilatildeo das

condiccedilotildees que o tornaram predisposto agravequela crise preferencialmente em uma psico-

terapia que se sucederia agrave IC Em outras palavras a IC tem por meta a superaccedilatildeo da

fase criacutetica da crise enquanto a psicoterapia eacute dirigida agrave transformaccedilatildeo das condiccedilotildees de

vulnerabilidade que favoreceram a emergecircncia da fase criacutetica da crise

A Figura 1 mostra diferentes possibilidades de desfecho da crise ndash pela superaccedilatildeo estag-

naccedilatildeo ou interrupccedilatildeo Para efeito de exemplo os trecircs casos representados na figura se

iniciam com uma fase de adaptaccedilatildeo estaacutevel e retornam a um patamar de ajustamento

(a linha de base representada pela linha horizontal em torno da qual o niacutevel de ajusta-

mento tem variaccedilotildees naturais) O contexto de estabilidade inicial e o final delimitam o

periacuteodo de duraccedilatildeo de uma crise As trecircs alternativas representadas mostram desfechos

qualitativamente diferentes Das trecircs a crise mais severa termina com a interrupccedilatildeo

marcada pela cronicidade sofrimento e perdas significativas Contudo a severidade da

crise natildeo determina necessariamente a condiccedilatildeo posterior de estagnaccedilatildeo ou interrup-

ccedilatildeo Existem situaccedilotildees nas quais muitas pequenas crises deixam marcas duradouras e

outras nas quais crises seacuterias levam a investimentos que produzem superaccedilotildees surpre-

endentes Outra alternativa representada na figura mostra a estagnaccedilatildeo cujo desfecho

eacute marcado por uma fase de estabilidade adaptativa posterior mas com algum prejuiacutezo

relativo agrave qualidade do funcionamento anterior agrave crise

490

Figura 1 O processo de crise

A IC eacute uma estrateacutegia terapecircutica breve que almeja retirar o sujeito da fase criacutetica da

crise o mais raacutepido possiacutevel para evitar o iniacutecio ou o agravamento do processo de acomo-

daccedilatildeo e cronificaccedilatildeo de respostas desadaptativas e para criar condiccedilotildees favoraacuteveis para

uma psicoterapia subsequente Uma pessoa em crise aguda sem apoio para superaacute-la

estaacute em grave risco de assimilar alguma dificuldade em sua estrutura Para evitar este

processo de cronificaccedilatildeo progressiva o objetivo da IC como intervenccedilatildeo breve eacute o re-

torno ao niacutevel de funcionamento anterior agrave crise Esperamos ganhos para o sujeito na

IC em relaccedilatildeo ao reconhecimento dos precursores da crise e agrave formaccedilatildeo de um viacutenculo

terapecircutico Este viacutenculo no caso dos serviccedilos de Sauacutede Mental deve fortalecer a relaccedilatildeo

do sujeito com a equipe e a instituiccedilatildeo projetando uma imagem de um ldquoobjeto insti-

tucional bomrdquo visto que as modalidades terapecircuticas institucionais podem requerer

o contato com outros profissionais num processo de longo prazo em que se projeta o

trabalho de elaboraccedilatildeo para superaccedilatildeo da vulnerabilidade que favoreceu a emergecircncia

da crise Esta superaccedilatildeo eacute a terceira alternativa representada na Figura 1 Portanto a

Intervenccedilatildeo em Crise eacute a estrateacutegia terapecircutica de ldquotracircnsitordquo destinada a levar o sujeito

da fase aguda da crise em direccedilatildeo ao processo de assimilaccedilatildeo estrutural que lhe permita

superaccedilatildeo qualitativa das vulnerabilidades do seu funcionamento anterior pela elabora-

ccedilatildeo no processo psicoterapecircutico

491O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

Conclusatildeo

Apresentamos uma definiccedilatildeo de crise e discutimos suas caracteriacutesticas ndash demanda (mo-

bilizadora) condiccedilotildees da realidade interna e externa resposta recursos complexidade

(histoacuterica e contextualmente determinada) processo subjetividade e soluccedilatildeo Discu-

timos e exemplificamos o conceito de crise como um conceito dinacircmico contextual e

sistecircmico A vivecircncia de uma crise atual estaacute atrelada ao desenvolvimento e a eventos

na histoacuteria de vida e nela tem um sentido e uma funccedilatildeo Depende simultaneamente

da realidade subjetiva e externa vinculada ao contexto em que se insere Ela se rela-

ciona de modo complexo com os mais diversos elementos dessa realidade interna e

externa articulando histoacuteria pessoal medos desejos e necessidades dando sentido agraves

mais diversas manifestaccedilotildees sintomaacuteticas O sintoma natildeo eacute uma manifestaccedilatildeo pontual

Comunica processos e tecircm neles sua funccedilatildeo Nos exemplos discutidos pretendemos

registrar a importacircncia dessa concepccedilatildeo na formulaccedilatildeo dinacircmica do caso e sua relaccedilatildeo

ao desenvolvimento de uma estrateacutegia terapecircutica no trabalho de Intervenccedilatildeo em Crise

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494

Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

MauricioSNeubern

Neste trabalho a hipnose eacute pensada como dispositivo metodoloacutegico em contextos cliacuteni-

cos onde as pessoas apresentam temaacuteticas de cunho espiritual Trata-se de uma reflexatildeo

criacutetica quanto agraves perspectivas unilaterais de produccedilatildeo de conhecimento nas quais os

pesquisadores se referem aos outros sem que nada os constranja em suas considera-

ccedilotildees teorias e meacutetodos (daiacute a ideacuteia segundo a qual ldquopodemos afirmar poucas coisas

sobre os outrosrdquo) que tambeacutem efetiva uma proposta ainda bastante incipiente de inves-

tigaccedilatildeo amplamente inspirada pela etnopsiquiatria (Nathan 2001 2007) uma proposta

que busca resgatar a aventura moderna de produccedilatildeo de ciecircncia (Stengers 2001) a partir

da relaccedilatildeo e da reflexividade conjuntas sobre o contexto cliacutenico (ldquomas podemos falar

com eles e fazermos um noacutesrdquo) O trabalho destaca ainda a partir de algumas situaccedilotildees

495Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

cliacutenicas45 certas especificidades das culturas brasileiras nas quais a hipnose ganha sen-

tido enquanto dispositivo compartilhado por experts locais e acadecircmicos

PodemosAfirmarPoucasCoisasSobreosOutros

Naquela sessatildeo Dona Amanda 55 anos espiacuterita e dona de casa vivia uma experiecircn-

cia de transe bastante tranquumlila Sua presenccedila na terapia se dava em funccedilatildeo de dores

terriacuteveis referentes a um luacutepus e a um preocupante estado de depressatildeo Na induccedilatildeo

que desenvolvi com ela cada parte do corpo era uma parte de seu jardim na qual ela

caminhava e plantava suas flores de preferecircncia Relatou posteriormente que a despei-

to do que eu dissesse via as peacutetalas de flores se aproximarem e tamparem verdadeiros

buracos que havia em seu corpo trazendo-lhe uma sensaccedilatildeo de frescor e muito aliacutevio

No entanto quando Dona Amanda comeccedilou a focar seu rosto entrou numa forte crise

relatando ver naquele momento as cenas de maus-tratos que sofreu de seu pai ainda

na infacircncia com agressotildees fiacutesicas e xingamentos racistas Disse-lhe entatildeo que essas

cenas talvez aparecessem por algum motivo mas que ela poderia aprender a se afastar

dali e observaacute-las de mais longe Em seguida disse-lhe que ela poderia perceber quem

estava para entrar em nossa sala de modo a ajudaacute-la naquele momento Amanda rela-

tou sua experiecircncia naquele momento deste modo

ldquoVejo um homem vestido de branco Eacute um enfermeiro Ele anda ateacute aqui e paacutera atraacutes de mim Ele taacute colocando uma coisa parece uma esponja branca dentro da minha cabeccedila eacute refrescante estranho taacute sugando uma coisa viscosa e preta Nossa Minha cabeccedila estaacute aliviando taacute bem mais leve estou me sentindo bem melhor rdquo

Esse tipo de vivecircncia remete a um processo terapecircutico largamente perpassado por ex-

periecircncias de transe hipnoacutetico que durou pouco mais de um ano Ao final do processo

tanto seu preocupante estado de depressatildeo quanto seu diagnoacutestico de luacutepus haviam

desaparecido e Amanda relatava estar muito melhor como se ldquoas reacutedeas de sua vida

45 As pessoas aqui citadas como pacientes foram participantes da pesquisa institucional ldquoHipnose dores crocircnicas e subjetividade construindo o contexto terapecircuticordquo por mim conduzida no Centro de Atendimento e Estudos Psicoloacutegicos (CAEP) do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de Brasiacutelia (UnB) Tal pesquisa foi aprovada pelo Comitecirc de Eacutetica da UnB e todos os participantes assinaram o termo de consentimento livro e esclarecido (TCLE)

496

houvessem voltado para suas matildeosrdquo Embora natildeo seja prudente considerar que a hipno-

se a tenha curado do luacutepus sob a pena de me tornar leviano experiecircncias desse tipo tra-

zem agrave tona um problema que acompanhou intensamente a histoacuteria da hipnose como

razatildeo importante na busca de cientificidade o problema da eficaacutecia (Stengers 2002)

Nomes como Puyseacutegur Eisdalle e Delboeuf no passado e Milton Erickson Chertok e

Franccedilois Roustang mais recentemente oferecem inuacutemeras evidecircncias do poderio das

teacutecnicas hipnoacuteticas de maneira que criacuteticas como as levantadas por Freud (1905) sobre

a superficialidade da sugestatildeo caem por terra quando se analisa o problema da eficaacutecia

da proacutepria psicanaacutelise no cruel dilema de associar ciecircncia e cura (Chertok amp Stengers

1989) ou quando se atesta na atualidade a eficaacutecia da hipnose em diferentes campos

de aplicaccedilatildeo (Jensen 2009 Yapko 2001) Desse modo face a tatildeo rica quantidade de

estudos e exemplos cliacutenicos natildeo seria em nada prudente para um pesquisador negar o

impacto de transformaccedilatildeo que as teacutecnicas hipnoacuteticas possuem embora natildeo seja possiacute-

vel explicar com clareza as maneiras pelas quais atuam

Entretanto o problema da eficaacutecia torna-se por demais traiccediloeiro caso se queira colocaacute-

-lo como apanaacutegio de cientificidade ou como aquilo que pode decidir sobre o que eacute ou

natildeo de domiacutenio da ciecircncia Grande parte das pesquisas sobre eficaacutecia terapecircutica des-

tronam a pretensatildeo de antigas propostas de psicoterapia agrave medida que asseveram que

natildeo existe um modelo teoacuterico superior ao outro e que segundo os proacuteprios usuaacuterios

e terapeutas a eficaacutecia parece estar muito mais associada a problemas como o engaja-

mento e a motivaccedilatildeo do usuaacuterio e a qualidade da relaccedilatildeo terapecircutica (Seligman 1995)

O problema se torna ainda mais encarniccedilado quando alguns estudos apontam para a

eficaacutecia contundente de outras praacuteticas como a oraccedilatildeo (Tosta 2004) e certos rituais de

cura (Csordas 2009 Nathan 2007) que em suas origens e propostas teacutecnicas natildeo

possuem qualquer parentesco com os contextos teoacutericos e de pesquisa que tanto ins-

piraram e ainda fazem sonhar certos cliacutenicos com o desenvolvimento de um modelo

teoacuterico e psicoteraacutepico capaz de suplantar os outros por ser mais cientiacutefico

Ora se diferentes abordagens terapecircuticas natildeo apresentam resultados significativamen-

te distintos em termos de ciecircncia como ficaria o ideal moderno de ciecircncia segundo o

qual a melhor explicaccedilatildeo faz calar as demais (Stengers 1995) Se natildeo satildeo diferentes em

seus resultados o que faz de suas explicaccedilotildees propostas dignas ou natildeo de confianccedila

Mais ainda se benzeduras oraccedilotildees exorcismos e rituais de desfazimento de trabalho

possuem tambeacutem uma eficaacutecia constataacutevel em que as explicaccedilotildees teoacutericas dos psico-

497Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

terapeutas pode ser superior a elas em termos modernos A viagem por semelhante

caminho pode desembocar num confuso labirinto cujas falsas saiacutedas leva os espiacuteritos

desbravadores a desenvolver praacuteticas mais proacuteximas a golpes de forccedila nos quais as afir-

maccedilotildees remetem a uma relaccedilatildeo de poder ao inveacutes de um meacutetier de legiacutetima inspiraccedilatildeo

cientiacutefica (Stengers 2002) Nesse sentido o instrumentalismo como o apelo gratuito

e vazio agrave autoridade de quem fala comuns em muitas propostas de pesquisa em psi-

cologia natildeo satildeo capazes de esconder as inconsistecircncias em que assentam de modo a

trabalharem mais pelo distanciamento do que pela coerecircncia quanto ao ideal cientiacutefico

que buscam trazer a esta disciplina

No entanto a singularidade de uma experiecircncia como a de Amanda pode se constituir

como um caminho promissor em termos da aventura cientiacutefica Quando se lanccedila um

olhar mais atento a obras de autores como Chertok (1998) Roustang (1991) e prin-

cipalmente Milton Erickson (1958) torna-se possiacutevel conceber que suas dificuldades

e mesmo recusas em construir uma teoria consistem num apelo radical para que o

terapeuta aprenda a estabelecer uma relaccedilatildeo com a singularidade do acontecimento

vivido pelo sujeito em transe Ao inveacutes de buscar enquadrar a pessoa em uma estrutura

geral que mais tende a se referir superficialmente ao sujeito do que a interagir com ele

o terapeuta se sente e se percebe na relaccedilatildeo de maneira a se fixar sobre os diferentes

dispositivos dos quais pode lanccedilar matildeo para produzir com seu interlocutor aquilo que

denomina transe Amanda natildeo eacute portanto ldquoa negrardquo ldquoa mulherrdquo ldquoa viacutetima de abuso

intra-familiarrdquo ou ldquoa paciente auto-imunerdquo mas uma pessoa que integra em sua sub-

jetividade diferentes dimensotildees de experiecircncias individuais e coletivas que ningueacutem eacute

capaz de conhecer de antematildeo Natildeo se pode portanto falar quem ela seja ou em que

consistem suas vivecircncias mas apenas se dispor a uma abertura relacional em que o

conhecimento do outro se torne possiacutevel em algum niacutevel o que implica numa conse-

quumlecircncia fundamental em termos de pesquisa cliacutenica

Agrave princiacutepio o terapeuta passa a se deparar a cada instante com novas facetas de um

conjunto de articulaccedilotildees de consideraacutevel complexidade que ganham visibilidade a par-

tir do transe Embora o terapeuta possua um conjunto de sugestotildees e metaacuteforas das

quais lanccedila matildeo para promover o transe eacute a pessoa quem reconstroacutei a experiecircncia em

sua subjetividade por meio de um universo de processos que possuem um caraacuteter de

novidade novidade quanto ao que emerge no transe novidade quanto aos sentidos

que produz novidade quanto aos processos que ali se articulam compondo complexas

498

configuraccedilotildees novidade em suma quanto a personagens praacuteticas e pertencimentos

que remetem a seu proacuteprio ethos A experiecircncia de Amanda aqui relatada eacute bastante

ilustrativa nesse sentido uma vez que minha intenccedilatildeo era a de promover um contexto

de re-conexatildeo com seu proacuteprio nicho cultural mas natildeo tinha a menor ideacuteia do que po-

deria surgir a partir de semelhante mergulho Assim enquanto eu lhe relatava cenaacuterios

que a ela pareciam ser bastante familiares algo cuidadosamente coletado de nossas

entrevistas era seu mundo quem produzia as peacutetalas que remendavam buracos em seu

corpo algo prazeroso e refrescante Segundo ela aconteceu algo muito importante nes-

te momento que lhe trouxe uma profunda alegria De igual modo ao me referir a seu

rosto como parte do jardim natildeo imaginava que brotariam dali as cenas de maus-tratos

e suas dolorosas crises nem que a figura de um ldquoenfermeiro espiritualrdquo seria o ser que

apareceria para lhe prestar uma ajuda altamente inusitada para mim e para ela (enfian-

do esponjas em seu ceacuterebro e sugando uma substacircncia escura e viscosa) O caraacuteter ativo

desse tipo de experiecircncia por vezes indoacutecil espontacircneo e inesperado consiste numa

condiccedilatildeo importante de pesquisa cliacutenica uma vez que eacute por meio desta condiccedilatildeo que o

terapeuta pode sair do mesmo para avanccedilar na direccedilatildeo do novo

Eacute a partir de quando a experiecircncia se mostra jamais antes dela que o terapeuta pode

proceder a um trabalho artesanal de articulaccedilotildees entre os processos que dali emergem

um trabalho que privilegie a produccedilatildeo de sentidos subjetivos proacuteprios das pessoas e

natildeo se subordine a qualquer tendecircncia universalista comum das teorias modernas Daiacute

o porquecirc de ideacuteias como configuraccedilotildees (Gonzalez Rey 2011 Merleau-Ponty 2005) ou

narrativas (White 2007) ou seja categorias a bem dizer quase vazias que remetem a

propostas nas quais o escopo eacute a construccedilatildeo de sentidos proacuteprios dos sujeitos Logo a

partir dessa atitude cuidadosa e qualitativa na qual o terapeuta tece com paciecircncia a ar-

ticulaccedilatildeo complexa do tecido subjetivo tem-se uma primeira etapa da pesquisa cliacutenica

a construccedilatildeo de um conhecer que eacute orgacircnico quanto ao contexto relacional que natildeo eacute

absoluto no sentido moderno do termo e se constitui apenas como uma perspectiva le-

giacutetima e possiacutevel de compreensatildeo do que se passa com o outro Como uma boa pesquisa

necessita do vazio daquilo que natildeo foi mostrado e conhecido daiacute seu caraacuteter aberto e

aventureiro o terapeuta desliza num passo a passo integrando as diferentes expressotildees

que emergem da troca relacional em seu processo de interpretar de modo a produzir

articulaccedilotildees possiacuteveis (e natildeo exclusivas) de um conjunto de sistemas presentes nesse

contexto

499Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

Tendo como base uma oacutetica cliacutenica e qualitativa (Neubern 2010) seria possiacutevel con-

siderar no exemplo de Amanda que as cenas do jardim significavam para ela uma

reconciliaccedilatildeo com algo que lhe era familiar seu ethos o que coincidia com importantes

mudanccedilas de vida daquele momento que as peacutetalas das flores consistiam num modo

de reconstruir sua imagem corporal nesse processo muito comprometida pelos maus-

-tratos (ali simbolizados pelos buracos) que a imagem das agressotildees de seu pai que

emergiu a partir da fixaccedilatildeo no rosto tambeacutem significava um comprometimento de sua

identidade e que a abertura de espaccedilo para que emergisse um personagem espiritual

capaz de dar outro rumo agrave situaccedilatildeo significando o acionamento de recursos culturais

como modo de proteger e facilitar esse processo de reconciliaccedilatildeo Sem duacutevidas aqui a te-

oria desempenha um papel importante na medida em que favorece caminhos flexiacuteveis

para a articulaccedilatildeo de diferentes dimensotildees (Morin 1990) O terapeuta poderia nesse

sentido conceber o corpo como espaccedilo privilegiado de sua existecircncia (Merleau-Ponty

2008) capaz de organizar configuracionalmente (Gonzalez Rey 2007) dimensotildees de

gecircnero eacutetnicas econocircmicas familiares espirituais micro-sociais e culturais As ima-

gens das agressotildees do pai por exemplo a bem dizer ancoradas em seu rosto podem ser

concebidas em termos de configuraccedilotildees negativas a respeito de sua identidade uma vez

que esta parte do corpo se mostra como um dos principais representantes vividos dessa

produccedilatildeo subjetiva Nessas configuraccedilotildees podem ser concebidas dimensotildees de segre-

dos familiares (ldquonatildeo sei porque ele me trata tatildeo mal se eacute uma pessoa tatildeo boa na cidaderdquo) de

racismo (ldquovocecirc natildeo presta pra nada negardquo) de gecircnero (ldquoseu destino eacute ser uma putardquo) e de

espiritualidade (como a substancia escura em seu ceacuterebro) Em suma numa soacute parte do

corpo num dado momento do processo terapecircutico a complexidade se faz presente in-

tegrando dimensotildees diversas e produzindo processo subjetivos de consideraacutevel riqueza

que exigem paciecircncia e refino teoacuterico do terapeuta para concebecirc-los como integrantes

dessa experiecircncia

No entanto caso a pesquisa pare por aqui ela fica irremediavelmente capenga De

fato ela permite uma traduccedilatildeo que faccedila inteligiacutevel ao pesquisador a riqueza dos proces-

sos vividos pelo sujeito uma inteligibilidade que permita e necessite da discussatildeo com

seus colegas com aqueles de sua comunidade que natildeo devem perseguir o consenso a

qualquer custo mas satildeo reconhecidos como competentes para problematizar tais in-

terpretaccedilotildees De fato eacute tambeacutem uma forma de se referir o miacutenimo possiacutevel aos outros

buscando-se evitar de alguma forma os riscos do universalismo Todavia eacute tambeacutem

um modo de se referir aos outros sem que nada do mundo deles possa questionar

500

aquilo que o pesquisador afirma o que abre a perspectiva de que nessa forma de pes-

quisa o poder possa facilmente sobrepor-se ao saber Ateacute que ponto poderiacuteamos noacutes

pesquisadores referirmo-nos ao mundo de experiecircncia dessas pessoas nos termos que

utilizamos como configuraccedilotildees subjetividade ou narrativas Essas categorias e suas

respectivas leituras teoacutericas fazem frente agrave riqueza de processos do mundo do outro

quando num transe hipnoacutetico ou religioso por exemplo Natildeo seria esta leitura um

processo unidirecional que contraria o proacuteprio caraacuteter de matildeo dupla da influecircncia hip-

noacutetica uma vez que apenas falamos sobre eles sem que nada nos questione ou como

diria Isabelle Stengers (2001) coloque nossas proposiccedilotildees em risco Natildeo correriacuteamos

o seacuterio risco de repetir as armadilhas associadas ao universalismo como os arroubos

etnocecircntricos e a pretensa superioridade de nossos saberes ldquobrancosrdquo46

Essa noccedilatildeo de aventura da pesquisa escapa portanto agrave construccedilatildeo de categorias que

noacutes representantes do saber dos brancos isto eacute do saber cientiacutefico ocidental julgamos

ser as mais adequadas aos outros Natildeo eacute sem razotildees que termos como ldquoeficaacutecia simboacuteli-

cardquo ldquoimaginaccedilatildeordquo ldquoestruturardquo ou mesmo ldquoconfiguraccedilotildeesrdquo e ldquonarrativasrdquo natildeo deixam de

inspirar certo universalismo porque satildeo qualificados apenas no mundo desencantado

dos pesquisadores Dentro das devidas proporccedilotildees natildeo seria exagero afirmar que tais

propostas correm em uacuteltima anaacutelise um risco similar de colonizaccedilatildeo47 de noccedilotildees como

o Eacutedipo psicanaliacutetico ou os tatildeo criticados diagnoacutesticos psiquiaacutetricos cuja legitimidade

eacute atestada mais pela autoridade acadecircmica do que por uma praacutetica laboratorial onde

algo constranja o pesquisador a pensar melhor sobre o que afirma a reformular suas

concepccedilotildees por oposiccedilatildeo da experiecircncia Assim considero que a questatildeo natildeo deve se

restringir agrave adoccedilatildeo de categorias abertas mas sobretudo a uma nova forma de qualifi-

car a relaccedilatildeo como produtora de conhecimento

46 Branco aqui refere-se ao conhecimento moderno cientiacutefico e ocidental formado no primeiro mundo que se coloca numa condiccedilatildeo superior coloniza e desqualifica as demais formas de saber Considero que a adesatildeo integral de um sujeito a ldquotornar-se brancordquo consiste em um grande problema principalmente em paiacuteses como o Brasil tanto pela insuficiecircncia desse saber para as necessidades humanas como no tocante a diversidade de saberes existentes no mundo

47 Agrave medida que natildeo reconhecem particularidades culturais do mundo das pessoas como os seres espirituais e as regras de relaccedilatildeo com eles rituais iniciaccedilotildees objetos sagrados e experts tais perspectivas tambeacutem acabam exercendo um papel colonialista Isto porque noccedilotildees como narrativas configuraccedilotildees ou ateacute imaginaccedilatildeo deixam de fora importantes processos do ethos das pessoas reduzindo suas leituras em termos de sentidos significados e imagens

501Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

Mas Podemos Falar Com Eles e Formarmos um ldquoNoacutesrdquo

Em certa ocasiatildeo procedia a um trabalho de transe com D Maria Clara 57 anos bioacute-

loga de formaccedilatildeo que jaacute estava habituada a manifestar seres espirituais durante seus

transes hipnoacuteticos Aleacutem de vir de uma separaccedilatildeo traumaacutetica que lhe ocasionou seacuterios

riscos de desorganizaccedilatildeo psiacutequica Maria Clara apresentava muitas dores em funccedilatildeo de

uma artrite reumatoacuteide que se expressavam sobretudo nos joelhos tornozelos e pul-

sos Sua histoacuteria de vida era perpassada por intensa violecircncia familiar (inclusive com

episoacutedios de abuso sexual) e por uma adoccedilatildeo mal explicada que a tirou de sua famiacutelia de

origem quando ainda contava com dois anos de idade Durante aquela sessatildeo sempre

me utilizava de sugestotildees que pudessem lhe trazer uma experiecircncia protegida e segura

apelando para os aspectos saacutebios do inconsciente dentro de uma linguagem metafoacuterica

especiacutefica (Erickson 1983) Sua sessatildeo ocorria sempre em conjunto com nosso grupo

de pesquisa Quando seu mestre espiritual apareceu um monge chinecircs de uma ordem

budista anterior agrave era cristatilde ele nos trouxe a seguinte comunicaccedilatildeo expressa sempre

sobre forte sotaque

ldquoQuando vocecircs estiverem nesse evento procurem mentalizar bem Isto porque haveraacute uma pessoa eacute uma professora ela vai se sentar na 2a fila cabelos loiros ateacute os ombros meia idade vocecirc (para mim) vai reconhecer faacutecil Ficaraacute quase na sua frente Ela iraacute ateacute laacute pra perturbar a energia Eacute instrumento das sombras eacute algueacutem que desagrega Energia ruim Tentaraacute inclusive fazer alguma parceria com vocecirc natildeo aceite Os outros precisam mentalizar bem para que o ambiente tenha uma energia de proteccedilatildeordquo

Sem duacutevida um acontecimento dessa ordem eacute de grande importacircncia natildeo soacute pela sua

surpreendente capacidade de predizer (tudo foi confirmado com muita precisatildeo) mas

pelo que pode levar a pensar no tocante ao problema da aventura de conhecimento aqui

destacado em termos da construccedilatildeo de um verdadeiro laboratoacuterio etnopsy48 (Nathan

2001 2007 Stengers 2001) O que seraacute destacado aqui satildeo alguns caminhos possiacuteveis

para se pensar essa proposta nos contextos de pesquisa com os quais me deparo con-

textos tipicamente brasileiros perpassados por diferentes saberes que natildeo se rendem ao

48 Utilizei o termo etnopsy para natildeo restringi-lo a uma disciplina como pode sugerir o termo original ethopsychiatrie (Nathan 2001) Trata-se de uma proposta de cliacutenica que considera a cultura natildeo como algo que noacutes ldquobrancosrdquo designamos sobre os outros mas como algo que convida esses outros mundos a um diaacutelogo profundo de produtivo

502

saber acadecircmico que trazem questotildees significativas em termos de atualidade (Csordas

2009)

A primeira questatildeo de pesquisa cliacutenica a ser discutida eacute a questatildeo da relaccedilatildeo hipnoacutetica

enquanto dispositivo de produccedilatildeo de saber um dispositivo cuja caracteriacutestica principal eacute

a de se constituir como um processo de influecircncia (Erickson amp Rossi 1979 Roustang

1991) Na perspectiva aqui adotada a influecircncia eacute uma forma de transmissatildeo da teoria

do terapeuta um veiacuteculo que transmite suas questotildees ontoloacutegicas e mobiliza os inte-

resses do paciente convidando-o a pertencer a um mundo preacutevio onde haacute o reconhe-

cimento cientiacutefico uma visatildeo de mundo as histoacuterias heroacuteicas relativas a seus protago-

nistas e eventualmente missotildees coletivas para esse pensamento Assim malgrado os

problemas conceituais tiacutepicos da hipnose (Stengers 2002) existe nela uma perspectiva

pragmaacutetica marcante que faz apelo agraves possibilidades de superaccedilatildeo e transformaccedilatildeo a

partir de uma sabedoria inconsciente (Erickson 1983) O inconsciente enquanto fonte

explicativa da cosmovisatildeo teoacuterica do terapeuta afigura-se aqui como algo embora natildeo

totalmente conhecido e muito aleacutem de capacidade racional de apreensatildeo com o qual

terapeuta e paciente devem entrar num processo de negociaccedilatildeo para que a partir dele

a cura possa acontecer

Eacute a partir desse ponto que se torna possiacutevel aproximar a noccedilatildeo de inconsciente de Eri-

ckson (Erickson amp Rossi 1979) de um dos princiacutepios mais importantes da aventura

moderna de conhecimento em termos etnopsy uma aventura capaz de romper com

o problema da complacecircncia e oferecer testemunhos confiaacuteveis enquanto prova (Na-

than 2001 2007) a noccedilatildeo de coisa Isso porque embora natildeo possua objetos materiais

que o encarnem no mundo fiacutesico concretizando a teoria do terapeuta (como amuletos

das terapias de outras culturas ou medicamentos da farmaacutecia meacutedica) o inconsciente

hipnoacutetico nasce de um contexto relacional especiacutefico no qual um expert o terapeuta

utiliza-se de teacutecnicas particulares junto ao paciente por meio do qual ele mostra seus

efeitos Natildeo consiste num produto individual mas numa fabricaccedilatildeo coletiva que remete

a uma tradiccedilatildeo no caso remetendo aos proacuteprios magnetizadores dos seacuteculos XVIII e

XIX (Neubern 2009) e se apresenta como algo que em larga medida possui uma accedilatildeo

aleacutem das intenccedilotildees deliberadas dos humanos algo que pode explicar a origem dos pro-

blemas e com o qual se pode negociar com o intuito de se conseguir uma cura Eacute assim

que o terapeuta se endereccedila a ele por meio de teacutecnicas sugestivas especiacuteficas como as

metaacuteforas jogos de linguagem movimentos corporais e alteraccedilotildees de voz particulares e

503Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

mesmo a construccedilatildeo de certos papeacuteis (Geary amp Zeig 2000) que permitem a formaccedilatildeo

de um par junto com o paciente que proporciona a emergecircncia do inconsciente com o

qual buscam uma nova forma de relaccedilatildeo

Contudo tal perspectiva apresenta problemas no sentido de situar a hipnose em ter-

mos de sua proximidade com a noccedilatildeo de psique sem alma dos modernos (Neubern

2004) ao mesmo tempo em que situa a relaccedilatildeo entre sujeitos individuais como o foco

de produccedilatildeo de conhecimento Nesse sentido seja por meio de uma anaacutelise contra-

-transferencial (Devereux 1980) seja por meio de uma reflexividade da comunicaccedilatildeo e

do contexto (Gonzalez Rey 2011 Neubern 2010) natildeo haacute como transpor por exemplo

a diferenccedila entre ldquoquantitativosrdquo e ldquoqualitativosrdquo em termos de se buscar a proposta

dessa aventura moderna Se a anaacutelise da contra-transferecircncia natildeo proporciona um dado

confiaacutevel uma vez que o inconsciente do cliacutenico natildeo eacute estaacutevel como pretendia Devereux

(1980) as propostas interpretativas e hermenecircuticas apresentam a virtude de buscarem

uma fidelidade ao campo de estudos mas tambeacutem natildeo apresentam uma alternativa

convincente de que suas reflexotildees e seus argumentos sejam colocados agrave prova subme-

tidos ao jogo de forccedilas que constrange o pensamento ao risco por aqueles a quem se

referem Daiacute porque um psicanalista um antropoacutelogo um socioacutelogo ou um psicoacutelogo

podem se referir ao outro e decidir sobre suas vidas (por meio de um relatoacuterio levado

ao juiz por exemplo) sem que isso implique num questionamento mais profundo em

termos de saber e natildeo apenas de poder sobre aquilo que afirmam Haveria aqui tama-

nho teor de verdade sobre o que afirmam de modo a natildeo se questionar sobre como um

conhecimento pretensamente vaacutelido se refere a eles Em suma ateacute que ponto eacute liacutecito a

noacutes acadecircmicos fazermos referecircncias sobre os outros sobre quem eles satildeo e como satildeo

sem que nossos dispositivos sejam colocados agrave prova de alguma forma

No entanto o que as pesquisas tem me apresentado permite-me situar o problema de

outra forma (Neubern no prelo) O contexto relacional proporcionado pela hipnose nas

situaccedilotildees aqui discutidas favorecem de alguma forma a emergecircncia do mundo espi-

ritual de pessoas como D Maria Clara um mundo que eacute individual mas que tambeacutem

a situa como representante de uma coletividade Esse mundo seria a verdadeira coisa

neste processo algo anterior e superior ao proacuteprio inconsciente Tal processo eacute fun-

damental para a caracterizaccedilatildeo da coisa isto eacute como algo que situe o sujeito enquanto

recalcitrante capaz de trazer desorganizaccedilatildeo a meu pensamento e minhas afirmaccedilotildees

sobre sua experiecircncia Dito de outro modo natildeo eacute a pessoa individual de Maria Clara

504

quem se torna questionadora de meu pensar (uma vez que ela eacute uma parceira do pro-

cesso natildeo uma recalcitrante) mas sua inserccedilatildeo num mundo proacuteprio com suas regras

seres e experts e sobre o qual nada posso afirmar um mundo que remete a um saber

distinto do meu e que pode cooperar contradizer recusar em suma estabelecer um

verdadeiro comeacutercio com o saber acadecircmico que represento enquanto pesquisador e

cliacutenico O contexto terapecircutico se transforma como diria Bruno Latour (1991) num ver-

dadeiro parlamento no qual natildeo haacute hierarquia de saberes mas um espaccedilo possiacutevel para

que diferentes saberes e deuses tomem assento na negociaccedilatildeo daquilo que faz sentido

pode ser terapecircutico para aquela pessoa em particular (Nathan 2007)

Tal consideraccedilatildeo traz agrave tona uma questatildeo da mais alta importacircncia que eacute o problema

dos dispositivos que possuem o poder de convocar determinadas dimensotildees de estudo

para um campo de negociaccedilatildeo com o pesquisador de maneira a poderem responder a

suas questotildees e instigaacute-lo agrave problematizaccedilatildeo A proposta etnopsy natildeo eacute a de estabelecer

um paralelo linear e simplista entre os dispositivos da ciecircncia moderna e a consequumlente

fabricaccedilatildeo de seres e o de outras formas de saber como os de teor espiritual Isto porque

os seres e coisas da ciecircncia pertencem a um outro mundo que resistiu ao materialismo

e ao ceticismo a despeito da verdadeira histoacuteria de guerra envolvendo as experiecircncias

metapsiacutequicas e o nascimento da parapsicologia (Meacuteheust 1999 2011) A questatildeo que

se coloca eacute muito mais a relaccedilatildeo indissociaacutevel que existe entre o fenocircmeno enquanto

acontecimento (e daiacute a importacircncia central do singular jaacute destacado) e os dispositivos

que o evocam de maneira a tornar inconcebiacutevel a ideacuteia de um dado bruto que exista por

si mesmo e seja independente de qualquer processo que o anteceda tal como supotildeem

as perspectivas instrumentalistas ainda hoje dominantes na psicologia (Gonzalez Rey

2007)

No que concerne contudo a este trabalho e especificamente ao caso aqui discutido

deve-se destacar que a hipnose enquanto dispositivo remete a uma relaccedilatildeo de parentes-

co a bem dizer sanguumliacuteneo entre a psicologia e algumas religiotildees espiritualistas do Brasil

que se utilizam do transe como o espiritismo a umbanda e alguns grupos esoteacutericos

(Carvalho 1994) Tal proximidade possui enraizamentos histoacutericos de longa data en-

contrando na antiga proposta do magnetismo animal de Mesmer e Puyseacutegur as raiacutezes

comuns da metapsiacutequica do espiritismo da hipnose e da psicologia numa eacutepoca em

505Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

que o tracircnsito de estudos entre ciecircncia e religiatildeo era bastante comum49 (Bergeacute 1995

Blum 2006 Meacuteheust 1999 2011 Monroe 2008 Neubern 2009 Sharp 2006 Trei-

tel 2004) Todavia o que os acontecimentos da pesquisa parecem me mostrar de for-

mas por vezes surpreendentes eacute que tal parentesco natildeo permaneceu restrito aos livros

de histoacuteria uma vez que a hipnose ocupa hoje um lugar importante no mundo espiri-

tual das pessoas e seres espirituais que participam de nossos encontros cliacutenicos Natildeo soacute

afirmam como os mestres de Maria Clara que a hipnose eacute uma teacutecnica amplamente

utilizada no mundo espiritual como em mais de uma ocasiatildeo demonstraram possuir

grandes habilidades de induccedilatildeo hipnoacutetica com seus pupilos ou mesmo com as pessoas

de nossa equipe de pesquisa Tem-se aqui portanto um problema de pesquisa da mais

alta relevacircncia na medida em que o mesmo dispositivo pode ser compartilhado pelo

pesquisador que representa o saber acadecircmico e a pessoa ou ainda seus protetores

espirituais que representam ali o saber espiritual A essa altura seria possiacutevel questio-

nar se um tal dispositivo nebuloso e traiccediloeiro natildeo poderia engajar o pesquisador e o

participante num ciclo viciante e vicioso de informaccedilotildees de legitimidade suspeita por

natildeo proporcionar o jogo de forccedilas que caracteriza as ciecircncias modernas (Stengers 1995)

ou ainda se as informaccedilotildees produzidas num tal contexto natildeo seriam mais que uma es-

peacutecie de ldquovale-tudordquo teoacuterico uma proposta descompromissada com qualquer senso de

responsabilidade e rigor de meacutetodo

Sou da opiniatildeo nesse sentido de que o compartilhamento do mesmo dispositivo natildeo

consiste por si mesmo num caminho fadado ao fracasso e natildeo apenas pelo uso muito

distinto que pesquisador e participantes atribuem agrave hipnose Na perspectiva que defen-

do (Neubern no prelo) esse compartilhamento proporciona duas condiccedilotildees fundamen-

tais para a emergecircncia da coisa no contexto terapecircutico a) a inserccedilatildeo do sujeito numa

coletividade b) a condiccedilatildeo ativa e portanto recalcitrante desse saber com respeito ao

pensamento do pesquisador No primeiro ponto a condiccedilatildeo de Maria Clara eacute bastan-

te ilustrativa pois quando sua terapia teve iniacutecio ainda sem qualquer manifestaccedilatildeo

temaacutetica ou interesse de cunho espiritual ela se descrevia como algueacutem que natildeo se

sentia bem no corpo de mulher nem com a liacutengua portuguesa que o Brasil natildeo pa-

recia ser paiacutes nem sua famiacutelia o seu verdadeiro grupo de origem ldquoSou um peixe fora

49 Nesse sentido natildeo eacute por acaso que as obras de grandes metapsiquistas como Cesare Lombroso Charles Richet William Crookes Alexandre Aksakof tornaram-se conhecidos do puacuteblico brasileiro graccedilas agraves traduccedilotildees realizadas pela Federaccedilatildeo Espiacuterita Brasileira (FEB)

506

drsquoaacuteguardquo dizia ela Foi apenas a partir dos transes hipnoacuteticos (ou seja dos dispositivos

que funcionaram para ela como forma de convocar os espiacuteritos) em que manifestava se-

res masculinos de outra liacutengua tempo e cultura e que diziam ser sua verdadeira famiacutelia

espiritual que tais queixas deram lugar a uma sensaccedilatildeo de leveza tranquumlilidade e bem

estar consigo mesma ou em suas proacuteprias palavras ldquocomo se sua vida passasse a fazer

sentidordquo Ela se tornou portanto algueacutem que re-encontrou seu nicho de pertencimento

espiritual algueacutem que deveria desempenhar um papel importante na missatildeo de divul-

gar conhecimentos espirituais para serem discutidos e pesquisados pela ciecircncia terrena

algueacutem que falava a pesquisadores e estudantes preocupando-se ativamente com sua

capacidade de problematizar as situaccedilotildees de pesquisa50

No entanto as accedilotildees levadas a cabo pelos mestres natildeo se restringiram apenas a uma

questatildeo cliacutenica em termos de um plano terapecircutico para sua protegida mas voltaram-

-se sobretudo para um aspecto de missatildeo coletiva o que introduz tambeacutem o segundo

item acima levantado Ela se tornava ali uma representante do mundo espiritual al-

gueacutem encarregado de transmitir sua sabedoria ao mundo ldquoEra necessaacuteriordquo diziam eles

ldquoque as experiecircncias de Maria Clara fossem divulgadas na academiardquo com o intuito de

promover o encontro entre ciecircncia e espiritualidade por meio da hipnose Era dentro

das devidas proporccedilotildees de tempo e cultura a mesma proposta europeacuteia do seacuteculo XIX

como acima ressaltado que animou as diferentes tentativas de diaacutelogo entre ciecircncia e

religiatildeo Tal proposta trazia muitos sentidos e possibilidades para sua vida tanto por lhe

proporcionar um papel de educadora que foi interrompido em sua trajetoacuteria como por

promover uma perspectiva positiva de futuro o que antes estava completamente blo-

queado por um paralisante e intenso sofrimento Desse modo agrave medida que sua terapia

se esgotava em termos de demandas pessoais o aspecto coletivo de sua missatildeo tomava

uma posiccedilatildeo central em seu mundo de maneira que natildeo tardou o momento em que

ela mesma se assumisse como parte integrante de um projeto maior da espiritualidade

superior51

50 Haacute tambeacutem repercussotildees importantes no que diz respeito a sua famiacutelia de origem que natildeo cabem nos limites deste trabalho mas podem ser apreciadas em outra referecircncia (Neubern no prelo)

51 Vale destacar que quando voltava agrave vigiacutelia Maria Clara em nada se lembrava do que ocorria em seus transes

507Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

Entretanto foi exatamente a partir desse ponto que se tornou possiacutevel conceber o caraacute-

ter ativo dos mestres espirituais que trouxeram o aspecto missionaacuterio de sua proposta

e trabalharam atentamente para que isso se constituiacutesse Nesse sentido eacute possiacutevel des-

tacar alguns momentos importantes dessa accedilatildeo que natildeo apenas mostrou autonomia

consideraacutevel quanto a meu pensamento mas tambeacutem impocircs importantes perturbaccedilotildees

sobre ele de maneira a implicar modificaccedilotildees significativas nos rumos da pesquisa e

em minha atitude como pesquisador

1 Caraacuteter de surpresa ndash A emergecircncia da manifestaccedilatildeo dos mestres com todo esse

teor de espiritualidade foi algo inesperado tanto para mim como para Maria Clara

A forma de negociaccedilatildeo as atitudes e medidas que tomaram como o rumo que im-

pingiram ao processo (uma grandiosa missatildeo espiritual da paciente) foi algo que

natildeo constava em minhas expectativas e remeteram a uma capacidade de autono-

mia consideraacutevel de outros seres sobre os quais ela parecia natildeo ter controle algum

2 Escolha ndash Questionei-me muitas vezes porque tais acontecimentos natildeo ocorriam

em algum grupo religioso onde talvez pudessem ser melhor acolhidos do que

ali numa situaccedilatildeo de psicoterapia e pesquisa As respostas trazidas pelos mestres

sempre coincidiam que era necessaacuterio que tais conhecimentos fossem discutidos

por teoacutericos e pesquisadores e natildeo se restringissem a uma reorganizaccedilatildeo da vida

daquela pessoa Na medida em que as negociaccedilotildees ocorriam percebi ser impor-

tante que as escolhas deles pudessem ser estendidas a outros momentos da orga-

nizaccedilatildeo daquele contexto tal como ilustrado na citaccedilatildeo do iniacutecio desta parte Quem

deveria integrar o grupo o incenso que ascendiam em cada sessatildeo as oraccedilotildees dos

quais participaacutevamos as teacutecnicas de proteccedilatildeo espiritual para o equiliacutebrio do grupo

e seus palpites no planejamento dos diferentes niacuteveis da pesquisa que dissessem

respeito agravequele caso Certamente havia espaccedilo para negociaccedilotildees e nem sempre

acataacutevamos o que era ali colocado uma vez que era ponto comum a necessidade

de que permanecesse como pesquisador No entanto consideramos que a partici-

paccedilatildeo efetiva deles deveria ser condiccedilatildeo fundamental para que o contexto fosse de

fato democraacutetico (Nathan amp Zajde 2012)

3 Expertise ndash Em mais de uma ocasiatildeo demonstraram consideraacutevel expertise na con-

duccedilatildeo de dilemas e situaccedilotildees de crise Houve mesmo momentos em que sua sabe-

doria pocircde acolher e cuidar com muita discriccedilatildeo e bom-senso de alguns membros

508

de nossa equipe em funccedilatildeo de demandas particulares Havia toda uma transmis-

satildeo de conhecimento (uma verdadeira cosmovisatildeo que se estendia de questotildees de

sauacutede a temaacuteticas globais e espirituais) que encontravam uma aplicaccedilatildeo praacutetica

muito niacutetida e eficaz e incentivava o interesse dos pesquisadores Tratava-se de

uma forma de saber que em diferentes momentos servia de paracircmetro para o

questionamento do saber acadecircmico sobretudo psicoloacutegico apontando suas li-

mitaccedilotildees contradiccedilotildees e virtudes Essa autonomia de saber fazia com que eu me

colocasse nas sessotildees de um modo muito distinto do habitual a partir do mo-

mento em que se manifestavam eram os mestres quem conduziam o processo de

transe e assumiam a funccedilatildeo de determinar o que deveria ser trabalhado Naquele

momento tambeacutem me tornava disciacutepulo sem abrir matildeo de minha condiccedilatildeo de

pesquisador e coordenador do grupo jaacute que nada era imposto da parte deles Meu

papel de conduccedilatildeo se dava apenas antes e apoacutes suas manifestaccedilotildees uma vez que

Maria Clara afirmava que possuiacutea confianccedila apenas em minha conduccedilatildeo para que

natildeo houvesse problemas na saiacuteda e entrada dos transes Formaacutevamos ali um par

muito semelhante ao magnetizador e o sonacircmbulo da eacutepoca de Puyseacutegur52

4 Poder ndash Natildeo raro os mestres demonstravam habilidades psiacutequicas muito impres-

sionantes fosse pela telepatia fosse por premoniccedilotildees como destacado na citaccedilatildeo

inicial A questatildeo para nossa equipe natildeo era a de explicar os mecanismos de tais

processos como numa perspectiva parapsicoloacutegica (Meacuteheust 2011) mas apenas

conceber como se tornavam elementos importantes na pauta de negociaccedilatildeo do

pequeno grupo Em nosso entender era uma forma que encontraram para que

fossem levados a seacuterio de modo a compreendermos que estaacutevamos ali diante de

alguma coisa que apresentava capacidades aleacutem das condiccedilotildees humanas comuns

poderes que nos impactavam com muito respeito eacute certo mas que poderiam faacutecil

e literalmente nos colocar em risco sob o olhar criacutetico de um outro saber53 De fato

em mais de uma ocasiatildeo os membros da equipe relataram a incocircmoda e estranha

52 Essa forma de relaccedilatildeo encontra grande proximidade com os transes sonambuacutelicos dos pacientes do Marques de Puyseacutegur (Meacuteheust 1999 Neubern 2009)

53 Questiono se natildeo seria essa a sensaccedilatildeo que muitos pacientes relatam diante de noacutes a de serem lidos por algueacutem que possui uma autoridade e um pensamento que pode saber o que realmente ocorre com eles (Grandsard 2006)

509Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

sensaccedilatildeo de terem seus pensamentos perscrutados conhecidos e adivinhados pe-

los mestres

Esse conjunto de acontecimentos mobilizados pelo mundo espiritual do qual os mes-

tres e a paciente eram representantes traz de antematildeo o problema da explicaccedilatildeo sobre

a experiecircncia dos outros Caso tivesse insistido em me restringir a uma leitura confi-

guracional ou narrativa sobre tais perspectivas jamais teria adentrado este mundo e

estabelecido uma relaccedilatildeo tatildeo estreita com ele De certo modo entendo ter sido nesse

sentido a advertecircncia de Maria Clara logo ao iniacutecio de nosso processo ldquonatildeo me julguerdquo e

o agradecimento dos mestres por eu haver parado para escutar o que queriam dizer A

questatildeo natildeo foi portanto restrita a conceber a singularidade de seus sentidos subjetivos

(Gonzalez Rey 2011) pois era eu quem determinava o que era sentido e como se posiciona-

va num corpo de pensamento numa rede de conceitos e numa forma de ver o mundo em

suma numa ontologia da subjetividade54 Caso seguisse essa linha talvez pudesse apelar

para consideraacute-la como algueacutem que sofria as dores de muitos maus-tratos e do vazio

quanto a sua famiacutelia de origem que ldquoalegavardquo estar em contato com seres imaginaacuterios

para suprir essas necessidades subjetivas ou seja um recurso soacutecio-cultural Nada de

mestres nada de compromissos caacutermicos nada de missotildees espirituais Logo o que eu

denominava sentido nada tinha a ver com o que de fato parecia fazer sentido para ela

Para que meu laboratoacuterio ficasse completo ou seja com melhores condiccedilotildees de atender

as exigecircncias de tais acontecimentos era necessaacuterio que os elementos de seu mundo es-

piritual fossem tomados como ela os apresentava e natildeo como ldquoalegaccedilotildeesrdquo ou ldquoprocessos

imaginaacuteriosrdquo E daiacute por natildeo consistirem em abstraccedilotildees (creio que as proacuteprias demons-

traccedilotildees de poderes psiacutequicos foi uma estrateacutegia para que dissipaacutessemos essa ideacuteia) mas

em seres e processos que vinham ateacute nossa equipe apresentando-se concretamente a

ela mostravam um saber proacuteprio e profundo poderes impactantes expertises diversas

de maneira a se tornar possiacutevel para mim compreender melhor o que queriam dizer

por missatildeo espiritual que natildeo se restringia a um processo configurado em sua subjeti-

vidade mas abrangia um tecido complexo dos diferentes elementos de seu mundo espiritual

com uma cosmovisatildeo ontologia e visatildeo de homem proacuteprias Assim ao inveacutes de pensar

54 Isso natildeo significa o abandono das preocupaccedilotildees teoacutericas em termos de noccedilotildees como subjetividade e configuraccedilotildees (Gonzalez Rey 2011) Em outro trabalho (Neubern no prelo) desenvolvi algumas possibilidades de articulaccedilatildeo entre a proposta etnopsy e as reflexotildees sobre a subjetividade

510

sua vida por meio do que minha influecircncia cliacutenica poderia supor ldquoseu sofrimento se

organizando a partir da adoccedilatildeo e da violecircncia familiarrdquo Maria Clara compreendeu sua

proacutepria trajetoacuteria de vida na famiacutelia adotiva em funccedilatildeo do que o mundo espiritual lhe

havia ensinado ndash tamanho sofrimento remetia a parte de sua missatildeo na Terra na qual

deveria buscar sensibilizar espiacuteritos endurecidos de sua famiacutelia adotiva A accedilatildeo dos

mestres portanto em toda sua riqueza e exuberacircncia ofereciam uma oacutetima ilustraccedilatildeo

de recalcitracircncia com respeito a meu saber inicialmente distante e empobrecido dian-

te de tamanha complexidade e grandeza Assim ao inveacutes de uma explicaccedilatildeo sobre os

outros que comumente eacute utilizada pelo psicoacutelogo como forma de se isolar proteger e

distanciar das contradiccedilotildees desse encontro tornou-se possiacutevel a mim uma forma de

explicaccedilatildeo fundamentada na singularidade da relaccedilatildeo numa atitude que qualificasse o

acontecimento levando-o a seacuterio naquilo que o proacuteprio acontecimento pudesse mostrar

a meus olhos e numa reflexatildeo mais apurada sobre os dispositivos que permitissem sua

emergecircncia Em uma palavra para que eu pudesse explicar algo sobre eles deveria

primeiramente ouvir a fundo como suas explicaccedilotildees e demonstraccedilotildees sobre tudo aquilo

impactavam minha forma de pensar em seus procedimentos teoacutericos e metodoloacutegicos

Tais processos trouxeram ainda outro problema central de pesquisa o sujeito Natildeo no

sentido de um sujeito estabilizado em seu inconsciente como diria Devereux (1980)

mas no sentido de um sujeito que eacute levado a se perguntar sobre seu pertencimento

quanto ao meacutetier de pesquisador que vez por outra entra em conflito com suas proacuteprias

raiacutezes em funccedilatildeo de suas heranccedilas culturais Eacute como se para se tornar um pesquisador

algueacutem reconhecido no mundo da ciecircncia ele devesse se tornar branco esquecendo-se

de que na verdade eacute mesticcedilo Ele entatildeo se pergunta ateacute que ponto possui condiccedilotildees de

promover um contexto democraacutetico na cliacutenica sem considerar a opressatildeo que ele mes-

mo vive ou viveu para se construir como pesquisador Isto porque um pesquisador que

se implica a fundo em experiecircncias como as aqui relatadas natildeo tem como permanecer

indiferente nem mesmo buscar refuacutegio no jaleco jaacute amarelado e roto da neutralidade

Entatildeo ele passa a fazer perguntas que precisa fazer por serem inevitaacuteveis para sua inte-

gridade como pessoa pois remetem a seu pertencimento e por serem necessaacuterias para

a coerecircncia de sua pesquisa ateacute que ponto poderia o Brasil ser considerado um paiacutes

ocidental jaacute que o prozac a novalgina e o viagra convivem tatildeo de perto com as benze-

duras as sessotildees de descarrego e as curas espirituais Como pode um brasileiro querer

se tornar branco identificando-se com o sujeito transcendental e a-cultural da ciecircncia

moderna ao mesmo tempo em que se esquece de suas proacuteprias raiacutezes Como pode ele

511Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

querer se identificar com os saberes produzidos no primeiro mundo e ignorar o que

viveram e contaram seus pais avoacutes tios e parentes sobre orixaacutes mestres pretos-velhos

curupiras espiacuteritos e deuses Como pode ele acreditar que a reconciliaccedilatildeo do sujeito com

seu proacuteprio ethos eacute uma condiccedilatildeo cliacutenica importante para seus pacientes se isso lhe eacute

por vezes proibido em sua trajetoacuteria de formaccedilatildeo acadecircmica Resta saber porque tais

reflexotildees inquietantes e centrais raramente satildeo desenvolvidas a fundo pelos psicoacutelo-

gos Talvez um dia possamos considerar melhor que a linha que nos divide quanto aos

outros que faz a divisatildeo ilusoacuteria entre os brancos e os outros eacute muito mais tecircnue do

que costumamos imaginar

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514

Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

MeirilaneNaves

MarceloTavares

AlexandreDomanico

AnnaElisadeVillemor-Amaral

A proposta deste trabalho eacute caracterizar as funccedilotildees e os benefiacutecios do uso do registro

para a praacutetica cliacutenica Para alcanccedilarmos esse objetivo discutiremos sobre o papel do

registro nessa praacutetica e apresentaremos um novo olhar sobre esse procedimento o qual

seraacute caracterizado e definido enquanto uma accedilatildeo cliacutenica Depois delimitaremos nossa

compreensatildeo sobre o registro apresentando suas vicissitudes Tambeacutem seratildeo apresen-

tados o posicionamento e a regulamentaccedilatildeo do Conselho Federal de Psicologia acerca

da documentaccedilatildeo das informaccedilotildees cliacutenicas Por uacuteltimo teceremos nossas considera-

ccedilotildees a respeito dessa temaacutetica

Opapeldoregistrocliacuteniconapraacuteticacliacutenica

Estar numa relaccedilatildeo como a que caracteriza o trabalho do psicoacutelogo cliacutenico suscita e gera

um conjunto de informaccedilotildees e dados que constituem o material cliacutenico que deveraacute ser

recolhido analisado e armazenado podendo ser transmitido e comunicado No entan-

515Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

to para poder trabalhar esse material o cliacutenico deve fixaacute-lo utilizando-se de vaacuterias teacutecni-

cas Nesse sentido poderaacute por exemplo gravar uma sessatildeo para depois transformar o

material acuacutestico em transcriccedilatildeo escrita ou fazer um registro escrito da sessatildeo ocorrida

Por sua vez esse registro constituiacutedo pelo procedimento de fixaccedilatildeo por meio da escrita

conduz a uma materializaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo do material cliacutenico (Plaza 2004) ou agrave escrita

da cliacutenica (Mezan 1998)

Freud jaacute se preocupava com a questatildeo do registro cliacutenico escrito e com as questotildees liga-

das agrave eacutetica profissional principalmente no que tange agrave publicaccedilatildeo de uma histoacuteria cliacute-

nica e agrave preservaccedilatildeo da identidade de um paciente Todos sabem do haacutebito freudiano de

destruir todas as anotaccedilotildees utilizadas na compreensatildeo de um caso apoacutes sua publicaccedilatildeo

Entretanto o material utilizado para a escrita de O Homem dos ratos foi preservado Nes-

se caso Freud fazia anotaccedilotildees apoacutes cada sessatildeo agrave medida que o processo se desenvolvia

(Freud 1980a [1909]) Sua publicaccedilatildeo foi efetuada com a autorizaccedilatildeo do paciente

Em Recomendaccedilotildees aos meacutedicos que exercem a psicanaacutelise Freud (1980b [1912]) apresenta

as regras teacutecnicas para o exerciacutecio dessa praacutetica cliacutenica No item a aponta as dificulda-

des que o analista possa vir a ter em relaccedilatildeo agrave proacutepria memoacuteria frente agrave abundacircncia de

material cliacutenico obtido na anaacutelise simultacircnea de vaacuterios pacientes Nos itens b e c aborda a

questatildeo referente agraves anotaccedilotildees cliacutenicas recomendando que a tomada de notas integrais

ou a manutenccedilatildeo de um registro estenograacutefico natildeo seja realizada durante as sessotildees

analiacuteticas podendo ser prejudiciais ao processo Esclarece que faz suas anotaccedilotildees de

memoacuteria agrave noite apoacutes encerrar seu trabalho de atendimento

Nas Notas preliminares do fragmento de anaacutelise de um caso de histeria (Freud 1980c [1905])

tambeacutem aborda o tema das anotaccedilotildees esclarecendo que os enunciados do paciente fo-

ram registrados de memoacuteria apoacutes o teacutermino das sessotildees Em relaccedilatildeo agrave escrita da histoacute-

ria cliacutenica evidencia que a escreveu tambeacutem de memoacuteria apoacutes o encerramento do caso

ressaltando que embora esse registro natildeo seja fonograficamente fiel possui alto grau

de fidedignidade por natildeo conter alteraccedilotildees no que lhe eacute essencial Nesse momento sua

preocupaccedilatildeo era alertar sobre os possiacuteveis efeitos que o ato de escrever e a necessidade

de comunicaccedilatildeo com a sociedade cientiacutefica pudessem ter sobre o curso do tratamento

O foco estava na reflexatildeo sobre o melhor momento para se registrar sendo indiscutiacutevel

a necessidade de fazecirc-lo

516

Por outro lado em Notas sobre o bloco maacutegico Freud faz uma analogia entre o funciona-

mento mental e o bloco maacutegico (no Brasil conhecido como ldquolousa maacutegicardquo) enfatizando

a questatildeo da memoacuteria A esse respeito anuncia que ldquoquando natildeo confio em minha me-

moacuteria [] posso suplementar e garantir seu funcionamento tomando nota por escrito

Nesse caso a superfiacutecie sobre a qual essa nota eacute preservada a caderneta ou folha de

papel eacute como se fosse uma parte materializada de meu aparelho mnecircmico que sob ou-

tros aspectos levo invisiacutevel dentro de mimrdquo (Freud 1980d [1925] sp) Acrescenta que

a memoacuteria assim materializada permanece inalterada escapando agraves possiacuteveis deforma-

ccedilotildees proacuteprias da nossa memoacuteria gerando um traccedilo permanente Em outras palavras a

materializaccedilatildeo da memoacuteria pela escrita torna-a permanente protegida dos processos de

esquecimentos reelaboraccedilotildees e deformaccedilotildees

Nessa perspectiva a fixaccedilatildeo do material cliacutenico em forma de um registro escrito torna-o

um traccedilo permanente de memoacuteria diminuindo as deformaccedilotildees proacuteprias ao processo

mnecircmico humano O registro escrito possibilita-nos revisitar o material cliacutenico mini-

mizando os prejuiacutezos que a passagem do tempo naturalmente traz sem o recurso da

memoacuteria objetivada ou materializada Certamente essa memoacuteria materializada esse

registro cliacutenico escrito natildeo corresponde agrave transcriccedilatildeo idecircntica dos acontecimentos ou

agrave visatildeo integral da realidade referida mas sim se fundamenta no ponto de vista do

cliacutenico circunscrito pelos limites da capacidade de apreensatildeo Natildeo significa a descriccedilatildeo

objetiva e concreta da experiecircncia de um encontro mas a tentativa de relatar aquilo que

foi vivido e assimilado Significa uma construccedilatildeo um recorte (Nogueira 2004) No re-

gistro escrito sobre um momento da relaccedilatildeo entre pessoas intervecircm a formaccedilatildeo a per-

sonalidade e os pontos cegos do cliacutenico o seu procedimento de elaboraccedilatildeo e o contexto e

lugar institucional do registro (Giami e Plaza 2004) Assim esse recorte que eacute o regis-

tro representa uma interpretaccedilatildeo do cliacutenico sobre o momento referenciado representa

a sua significaccedilatildeo sobre as questotildees ou temas selecionados na sua escuta do paciente

Costuma-se destacar a relaccedilatildeo privilegiada do cliacutenico com o procedimento de registro

escrito no contexto de pesquisa e de psicodiagnoacutestico em contraste com sua relaccedilatildeo

com o registro no contexto de psicoterapia no qual tradicionalmente eacute a atividade

psiacutequica da memoacuteria que prevalece (Plaza 2004) Parece haver um desconforto por

parte do cliacutenico no que tange ao uso desse registro em se tratando do processo psico-

terapecircutico Desconforto talvez referenciado pelo sentido atribuiacutedo agraves recomendaccedilotildees

freudianas sobre o exerciacutecio da psicanaacutelise (Freud 1980a 1980b 1980c 1980d) e agrave

517Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

constituiccedilatildeo de uma cultura de que a anaacutelise deve ser feita apenas a partir da memoacuteria

e natildeo de registros escritos Este texto propotildee que essa cultura deve ser questionada e

transformada Com efeito a concepccedilatildeo de que a anaacutelise ou a psicoterapia fundamenta-

-se essencialmente sobre a memoacuteria pode interromper o trabalho de registro escrito e

gerar duas consequecircncias graves 1) pode interromper ou dificultar o desenvolvimento

de pesquisas sobre o processo psicoterapecircutico visto que o trabalho de pesquisa eacute de-

pendente do trabalho de registro e 2) pode interferir de modo indesejado na praacutetica

cliacutenica quando informaccedilotildees relevantes a respeito do paciente que precisariam ser consi-

deradas possam ser ignoradas ou perdidas Esse fato ainda torna-se mais niacutetido e grave

no contexto da sauacutede mental e intervenccedilatildeo em crise e nas situaccedilotildees em que o paciente

entra em contato com muacuteltiplos provedores de serviccedilos de sauacutede se pensarmos na

necessidade de conhecer o histoacuterico dos acompanhamentos anteriores do paciente nas

situaccedilotildees de risco de encaminhamento de substituiccedilatildeo de profissionais durante o pro-

cesso ou de retorno de um paciente a esse processo tempos depois com o mesmo ou

com um novo psicoterapeuta

A esse respeito Plaza (2004) corrobora esses questionamentos ao evidenciar que ldquotodo

avanccedilo teoacuterico praacutetico e cientiacutefico necessita de uma tomada de distacircncia de um proce-

dimento reflexivo as situaccedilotildees subjetivas o quadro relacional terapeuta-indiviacuteduo as

intervenccedilotildees do terapeuta devem portanto ser objeto de uma fixaccedilatildeo para que possam

ser transmitidas compartilhadasrdquo (p 55 grifo nosso) Com efeito a autora evidencia

a necessidade de uma fixaccedilatildeo de um registro dos acontecimentos e fenocircmenos que

acontecem em situaccedilotildees e contextos diversos (teoacuterico praacutetico e cientiacutefico) incluindo a

relaccedilatildeo entre pessoas para que o exerciacutecio de reflexatildeo possa ser realizado com maior

eficiecircncia Sem duacutevida o quadro relacional o conteuacutedo subjetivo relatado e as inter-

venccedilotildees cliacutenicas que caracterizam o contexto de um processo cliacutenico eacute o material a ser

fixado O registro das situaccedilotildees inerentes a esse contexto favorece o engajamento em

um processo reflexivo que possibilita melhor compreensatildeo transmissatildeo e compartilha-

mento dessas situaccedilotildees e informaccedilotildees

Em consonacircncia a sistematizaccedilatildeo de uma praacutetica de registros escritos responde a essa

necessidade favorecendo tanto a tomada de distacircncia para o procedimento reflexivo

quanto sua transmissatildeo e compartilhamento de informaccedilotildees pelo terapeuta pela equi-

pe ou no processo de supervisatildeo o que possibilita a melhor compreensatildeo do processo

bem como o norteamento das estrateacutegias e intervenccedilotildees a serem tomadas Em outras

518

palavras o registro sistematizado de informaccedilotildees decorrentes do processo psicotera-

pecircutico fornece informaccedilotildees especiacuteficas sobre este processo orienta o terapeuta no seu

acompanhamento e evidencia alguns aspectos que possam ter contribuiacutedo para as mu-

danccedilas ocorridas na vida do paciente Alguns trabalhos (Naves e Tavares 2007 Doma-

nico e Tavares 2005 Giami e Plaza 2004 e Tanner 2003) sugerem que a sistematiza-

ccedilatildeo de uma praacutetica de registros escritos possibilita uma melhor organizaccedilatildeo do material

cliacutenico o que contribui para a maior eficiecircncia da praacutetica de supervisatildeo de casos bem

como da psicoterapia em si O trabalho de Tanner (2003) evidencia que a organizaccedilatildeo

do material cliacutenico contribui para uma reduccedilatildeo significativa no tempo de trabalho em-

preendido para a elaboraccedilatildeo do psicodiagnoacutestico e o planejamento da psicoterapia Essa

reduccedilatildeo ocorre pois o material organizado oferece uma clara orientaccedilatildeo sobre quais

informaccedilotildees satildeo necessaacuterias para a realizaccedilatildeo do procedimento mais adequado

Numa outra perspectiva a sistematizaccedilatildeo de uma praacutetica de registros cliacutenicos escritos

torna-se fundamentalmente importante por oferecer proteccedilatildeo e seguranccedila ao cliacutenico

no exerciacutecio de sua profissatildeo Eacute de conhecimento geral que todo profissional de sauacutede

possui responsabilidades eacuteticas e legais em relaccedilatildeo agraves pessoas que atende acompanha

ou realiza algum tipo de tratamento Essa responsabilidade tambeacutem inclui proteger a

vida humana da autodestruiccedilatildeo (suiciacutedio) ou da destruiccedilatildeo de outrem (homiciacutedio) Uma

pesquisa realizada pela American Psychological Association (APA) no periacuteodo de 1976 a

1986 (Fremouw Perczel e Ellis 1990) aponta que as causas mais comuns de processos

legais contra psicoterapeutas satildeo asseacutedio sexual tratamento incorreto e morte por cau-

sa de uma avaliaccedilatildeo incorreta A morte de clientes representa 105 dos processos To-

dos esses processos podem ser incluiacutedos na categoria de ldquomau exerciacutecio da profissatildeordquo A

responsabilidade pela informaccedilatildeo formaccedilatildeo capacitaccedilatildeo apreensatildeo de conhecimento

teacutecnico e o registro adequado dos julgamentos cliacutenicos dos procedimentos adotados e

das sessotildees ocorridas constituem algumas das recomendaccedilotildees feitas para o cliacutenico re-

duzir o risco de acusaccedilotildees de mau exerciacutecio de sua profissatildeo (Fremouw Perczel e Ellis

1990) Aleacutem dessas recomendaccedilotildees com o intuito de aumentar a proteccedilatildeo e seguranccedila

no exerciacutecio da cliacutenica haacute a recomendaccedilatildeo de que tambeacutem sejam registradas as supervi-

sotildees ocorridas e todas as ocorrecircncias ou contatos que aconteceram entre o terapeuta e o

cliente (contatos telefocircnicos por exemplo) e outras pessoas que possam estar envolvidas

no processo (profissionais familiares e amigos por exemplo)

519Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

Nesse sentido eacute papel do registro escrito oferecer benefiacutecios ao profissional no exerciacutecio

de sua praacutetica cliacutenica e ao processo psicoterapecircutico por meio das funccedilotildees que o carac-

terizam e o constituem Assim satildeo funccedilotildees cliacutenicas do registro (Naves amp Tavares 2007

e Domanico amp Tavares 2005)

bull Criar um traccedilo permanente de memoacuteria objetivada uma fixaccedilatildeo escrita que docu-

menta recortes de situaccedilotildees e acontecimentos do processo psicoterapecircutico

bull Minimizar as deformaccedilotildees e esquecimentos inerentes agrave memoacuteria subjetiva no

transcorrer do tempo

bull Manter e possibilitar o acesso e retomada da memoacuteria objetivada

bull Facilitar a organizaccedilatildeo e siacutentese do material cliacutenico de forma otimizada

bull Promover maior efetividade da reflexatildeo cliacutenica

bull Favorecer uma melhor compreensatildeo dos aspectos relacionais do processo (transfe-

recircncia e contratransferecircncia identificaccedilotildees etc)

bull Permitir melhor compreensatildeo do indiviacuteduo (diagnoacutestico estrutural dinacircmico e

psicopatoloacutegico)

bull Proporcionar melhor norteamento para a conduccedilatildeo do caso (planejamento do tra-

tamento e condutas terapecircuticas)

bull Possibilitar melhor transmissatildeo e compartilhamento das situaccedilotildees e informaccedilotildees

cliacutenicas nos contextos da psicoterapia do trabalho de equipes da supervisatildeo da

pesquisa e da comunicaccedilatildeo cientiacutefica

bull Oferecer proteccedilatildeo e seguranccedila ao profissional considerando-se as responsabilida-

des eacuteticas e legais implicadas no exerciacutecio dessa cliacutenica

bull Promover a sauacutede mental do psicoacutelogo ao proporcionar a reflexatildeo cliacutenica e suporte

para a anguacutestia e ansiedades presentes na conduccedilatildeo do processo

bull Auxiliar na formaccedilatildeo cliacutenica do terapeuta e

bull Contribuir para o sucesso da psicoterapia

Em siacutentese a organizaccedilatildeo otimizada do material cliacutenico promove maior efetividade da

reflexatildeo e assim possibilita melhor compreensatildeo do processo e do cliente aleacutem me-

lhor conduccedilatildeo da psicoterapia e das supervisotildees cliacutenicas A elaboraccedilatildeo do registro cliacute-

520

nico tambeacutem oferece proteccedilatildeo e seguranccedila ao profissional promove sua sauacutede mental

e contribui para a formaccedilatildeo cliacutenica Essas funccedilotildees permitem ao terapeuta desenvolver

competecircncias e habilidades que iratildeo repercutir diretamente no setting terapecircutico pro-

porcionando maior efetividade e eficaacutecia nas intervenccedilotildees e contribuindo para o sucesso

da psicoterapia

No entanto para se chegar a esses benefiacutecios para uma efetiva transformaccedilatildeo na con-

duta dos profissionais eacute necessaacuteria uma mudanccedila de postura no que se refere agrave im-

portacircncia do registro e agrave sua compreensatildeo e caracterizaccedilatildeo natildeo mais como uma mera

atividade burocraacutetica mas enquanto um procedimento cliacutenico legiacutetimo e indispensaacutevel

para a praacutetica cliacutenica Eacute sobre esse novo olhar ndash o registro enquanto um procedimento

cliacutenico ndash que discorreremos a seguir

ORegistroCliacutenicoenquantoumprocedimentocliacutenicoumnovoolhar

Na literatura especializada sobre o procedimento cliacutenico encontramos a sua qualificaccedilatildeo

descriccedilatildeo caracterizaccedilatildeo e importacircncia mas natildeo a operacionalizaccedilatildeo do seu conceito

Com efeito os autores que exploram o termo descrevem-no qualificam-no mas natildeo o

definem (Giami e Plaza 2004 Revault-DrsquoAllonnes 2004 Giami 2004 Plaza 2004 e

Giami e Samalin-Amboise 2004) A definiccedilatildeo de um conceito eacute necessaacuteria para poder-

mos exploraacute-lo qualificaacute-lo compreendecirc-lo aplicaacute-lo em diferentes contextos e verificar

sua relaccedilatildeo com outros fatores e conceitos Frente a essa questatildeo haacute a necessidade de se

desenvolver um conceito de procedimento cliacutenico para a elaboraccedilatildeo do presente traba-

lho Essa necessidade se evidenciou no ensino de um modelo padronizado de registro

cliacutenico baseado na Teoria das Relaccedilotildees Objetais As reflexotildees direcionaram-se entatildeo

para esse objetivo gerando uma definiccedilatildeo preliminar

Na praacutetica profissional do psicoacutelogo cliacutenico muitos procedimentos podem se fazer ne-

cessaacuterios e natildeo serem considerados propriamente cliacutenicos como por exemplo os tracirc-

mites administrativos necessaacuterios para o atendimento Procedimento cliacutenico eacute o conjunto

de accedilotildees direcionado para a praacutetica cliacutenica pautado num referencial teoacuterico envolvendo

recursos teacutecnicas e meacutetodos com os objetivos cliacutenicos de promover manter ou recupe-

rar a sauacutede mental de prevenir o sofrimento psiacutequico ou ainda de desenvolver o conhe-

cimento teoacuterico e as praacuteticas em Psicologia Cliacutenica (Naves e Tavares 2007)

521Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

A praacutetica cliacutenica compreende intervenccedilotildees que transcendem os contextos tradicionais

da psicoterapia Nesse sentido este conceito de procedimento cliacutenico aplica-se agraves ativi-

dades de prevenccedilatildeo e de intervenccedilatildeo natildeo se limitando agrave psicoterapia Desse modo a en-

trevista por exemplo eacute um procedimento cliacutenico que pode ser realizado para atividades

de prevenccedilatildeo de intervenccedilatildeo de psicoterapia e de pesquisa As diferenccedilas em termos de

objetivos ou forma de realizaccedilatildeo do procedimento seratildeo marcadas pelo tipo de demanda

exigida pela situaccedilatildeo do procedimento cliacutenico Tambeacutem podem ser considerados proce-

dimentos cliacutenicos as atitudes ou atividades mentais do psicoterapeuta que resultem em

accedilotildees cliacutenicas tangiacuteveis como por exemplo processo de elaboraccedilatildeo ou de reflexatildeo das

reaccedilotildees contratransferenciais

O procedimento cliacutenico deve ser pautado em um referencial teoacuterico e este precisa man-

ter uma relaccedilatildeo de intercacircmbio com outros referenciais Sem um referencial teoacuterico

definido natildeo temos como justificar o procedimento como diferente de outras praacuteticas

do senso comum O procedimento cliacutenico tambeacutem natildeo pode abster-se de uma praacutetica

pautada pela eacutetica ele tem um compromisso com o bem-estar e visa uma efetividade

em relaccedilatildeo ao sofrimento humano O procedimento cliacutenico justifica-se por este com-

promisso O referencial teoacuterico eacute o modo pelo qual a profissatildeo articula esta justificativa

de suas accedilotildees

Assim feitas as devidas consideraccedilotildees sobre o papel do registro na praacutetica cliacutenica sobre

suas funccedilotildees e benefiacutecios para o exerciacutecio profissional e para os consumidores ou usu-

aacuterios de serviccedilos psicoloacutegicos e sobre a sua compreensatildeo enquanto um procedimento

cliacutenico legiacutetimo eacute necessaacuterio definir e caracterizar o procedimento cliacutenico de registro

Caracterizaccedilatildeoedefiniccedilatildeodoprocedimentocliacutenicoderegistro

O termo documento deriva do latim documentu e tambeacutem de docere (ensinar mostrar) e

significa ldquoqualquer base de conhecimento fixada materialmente e disposta de maneira

que se possa utilizar para consulta estudo prova etcrdquo (Aureacutelio 2004) Nesse senti-

do serve para se consultar instruir e provar Significa tambeacutem ldquoescritura destinada a

comprovar um fato declaraccedilatildeo escrita revestida de forma padronizada sobre fato(s) ou

acontecimento(s) de natureza juriacutedicardquo (ibid 2004) Nessa concepccedilatildeo tambeacutem encon-

tramos o sentido de provar e de instruir aleacutem do sentido de declaraccedilatildeo de depoimento

522

e de comunicaccedilatildeo Por sua vez o termo registro (do latim registru) eacute o ldquoconjunto organi-

zado de um ou mais dados relacionados entre si e tratado como uma uacutenica unidaderdquo

(Aureacutelio 2004) Nessa perspectiva o documento ou o registro relaciona-se com instru-

ccedilatildeo ensino prova organizaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo Relaciona-se com registro organizado

com informaccedilatildeo materialmente fixada com padronizaccedilatildeo e memoacuteria Relaciona-se com

o armazenamento de informaccedilotildees diferenciadas como a fala do indiviacuteduo a inferecircncia

do cliacutenico ou sua descriccedilatildeo do processo (Tavares 2000) mas que estatildeo presentes ao

mesmo tempo num determinado contexto Estaacute portanto ldquoligado ao registro e agrave me-

moacuteria agrave escuta e ao olhar agrave transmissatildeo e agrave comunicaccedilatildeordquo ao mesmo tempo ldquonatildeo eacute

um objeto material mas constitui o produto de uma relaccedilatildeo entre materiais e um certo

tipo de leitura e de interpretaccedilatildeordquo (Plaza 2004 p53) Em outras palavras o documento

de registro eacute uma construccedilatildeo dinacircmica e viva na qual estatildeo implicados diversos fatores

relacionados ao profissional (sua formaccedilatildeo sua histoacuteria de vida seu referencial teoacuterico

sua personalidade e aptidotildees por exemplo) e agrave situaccedilatildeo social na qual este profissional

e a atividade realizada se inserem (restriccedilotildees institucionais de demanda atividades

praacuteticas ou de pesquisa entre outros)

De acordo com Plaza (2004) o problema do documento coloca-se justamente pelo fato

de o cliacutenico ter de inscrever de registrar alguma coisa referente agrave realidade na qual ele

confrontou-se com pessoas elaborou as questotildees a serem tratadas objetivos e meacutedoto

e construiu uma situaccedilatildeo para poder colocaacute-la em perspectiva e a comunicar Enfim o

problema do registro estaacute em ter de lidar com o material cliacutenico obtido atraveacutes desses

confrontos e fixaacute-los pela escrita Isso porque o registro de uma situaccedilatildeo a inscriccedilatildeo

dessa realidade fundamenta-se no ponto de vista daquele que registra representa aque-

la realidade que foi possiacutevel ser apreendida naquele momento pelo seu olhar e pela

sua escuta Representa um recorte (Nogueira 2004) pois nenhum registro consegue

cobrir ou esgotar o conjunto de todas as dimensotildees e paracircmetros de uma situaccedilatildeo Sig-

nifica que sempre subsistiratildeo dimensotildees e paracircmetros desconhecidos entre a experiecircn-

cia vivida e o registro realizado Significa tambeacutem que esses paracircmetros e dimensotildees

remanescentes devem ser tomados em consideraccedilatildeo podem e devem ser tratados por

outros olhares de outros leitores O registro entatildeo implica o cliacutenico e o pesquisador na

realizaccedilatildeo dos procedimentos cliacutenicos envolvidos no seu trabalho Implica-os tambeacutem

na proacutepria realizaccedilatildeo do procedimento cliacutenico de registro O registro evoca a reflexatildeo

cliacutenica sobre essa implicaccedilatildeo sobre suas suposiccedilotildees preacutevias e seus ldquopontos cegosrdquo ou

523Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

desconhecimentos acerca da situaccedilatildeo Essa implicaccedilatildeo pode estar no centro da dificul-

dade frequentemente experimentada na realizaccedilatildeo de registros

Na definiccedilatildeo proposta o registro como procedimento cliacutenico eacute um documento que

apresenta um conjunto de informaccedilotildees relacionadas entre si sobre determinados fenocirc-

menos ocorridos numa relaccedilatildeo cliacutenica organizadas elaboradas e registradas de acordo

com a percepccedilatildeo e interpretaccedilatildeo a partir do recorte do registrador O registro cliacutenico

portanto trata de um documento assim constituiacutedo e caracterizado enquanto um pro-

cedimento cliacutenico utilizado nas pesquisas e praacuteticas em Psicologia Cliacutenica (Naves e

Tavares 2007)

Com efeito esta compreensatildeo do registro enquanto um documento elaborado a partir

das percepccedilotildees interpretaccedilotildees e organizaccedilotildees de um registrador acerca de um fenocirc-

meno observado numa situaccedilatildeo de relacionamento evidencia a condiccedilatildeo de ser um

ldquoponto de vistardquo um recorte bem como sua condiccedilatildeo de dinamicidade Por um lado

ao evidenciar um ldquoponto de vistardquo ou seja a percepccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do registrador

o registro acaba denunciando as preferecircncias os desconhecimentos os ldquopontos cegosrdquo

daquele que o elabora Ao mesmo tempo possibilita novas percepccedilotildees interpretaccedilotildees e

elaboraccedilotildees novos olhares ou pontos de vista para aleacutem do registro da escuta ou visatildeo

do registrador Indagaccedilotildees e novas interpretaccedilotildees podem vir daqueles que acessam ou

consultam esse registro E eacute justamente essa possibilidade de novas elaboraccedilotildees e in-

terpretaccedilotildees por outro lado que traz a condiccedilatildeo de dinamicidade pois evidencia que o

registro eacute um documento constituiacutedo por material ldquovivordquo que poderaacute ser reinterpretado

e reelaborado a partir de cada nova consulta ou acesso a este documento Nessa perspec-

tiva o registro pode ser considerado enquanto um documento de construccedilatildeo dinacircmica

podendo ser ressignificado na medida em que representa um objeto vivo de construccedilatildeo

de conhecimento acerca de uma situaccedilatildeo ou fenocircmeno pois haacute que se considerar que

o proacuteprio olhar do registrador natildeo eacute mais o mesmo num momento posterior de leitura

Como elemento vivo a escritura dessas informaccedilotildees nos permite localizaacute-las do decor-

rer do tempo identificar fases no processo evidenciar repeticcedilotildees mapear a evoluccedilatildeo de

fenocircmenos (por exemplo a transferecircncia) identificar eventos precipitadores e clarificar

a incidecircncia dos processos psiacutequicos passo a passo ou melhor sessatildeo por sessatildeo

524

Delimitaccedilatildeoevicissitudesdoregistrocliacutenico

O cliacutenico deve inscrever deve registrar suas percepccedilotildees interpretaccedilotildees e elaboraccedilotildees

dos fenocircmenos ocorridos na situaccedilatildeo ou realidade na qual ele se confrontou com pesso-

as definiu objetivos e procedimentos a serem utilizados Deve construir uma situaccedilatildeo

colocaacute-la em perspectiva e a comunicar Deve registrar o material cliacutenico obtido nesses

confrontos Por sua vez o registro desse material pode ocorrer atraveacutes de diferentes

modos de inscriccedilatildeo por filmagem por fotografia por gravaccedilatildeo de aacuteudio e por escrita

O foco cliacutenico usualmente recai sobre o registro escrito que pode ser livre ou ter um

modelo padronizado cuja elaboraccedilatildeo eacute feita em geral apoacutes o procedimento cliacutenico

A delimitaccedilatildeo do procedimento de registro cliacutenico escrito evoca algumas vicissitudes

que podem ser explicitadas recorrendo a uma alusatildeo feita por Assouly-Piquet (2004)

Com efeito a autora enuncia que o procedimento cliacutenico registrado eacute semelhante agrave

estoacuteria do homem que viu o homem que viu o urso O homem que viu o urso ldquo() teraacute

colhido traccedilos trabalhado sobre esses traccedilos brincado com traccedilos e deixado traccedilos para

esse homem que lhe vem perguntarrdquo (p189) Assim o homem que viu o urso torna-se

o mediador e o transmissor das informaccedilotildees acerca do urso e o outro homem mesmo

natildeo tendo visto o urso sempre saberaacute alguma coisa a seu respeito graccedilas aos traccedilos dei-

xados pelo homem que o viu Nesse sentido a funccedilatildeo do traccedilo seria justamente permitir

a mediaccedilatildeo e a transmissatildeo dessas informaccedilotildees no caso da estoacuteria obtidas pelo contato

com o urso

Fazendo alusatildeo a essa estoacuteria apontada podemos pensar no psicoterapeuta enquanto o

homem que viu o urso Ele colhe material cliacutenico e os utiliza para o desenvolvimento da

psicoterapia Colhe trabalha sobre traccedilos e tambeacutem deixa traccedilos O psicoterapeuta tem

contato com o ldquoursordquo mas soacute pode transmitir traccedilos desse contato E o outro a quem

esses traccedilos podem se destinar (outros terapeutas e profissionais supervisor enfim

ldquoleitoresrdquo do registro) soacute teraacute contato com o ldquoursordquo na situaccedilatildeo cliacutenica por via dos traccedilos

do psicoterapeuta por via de sua mediaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo Desse modo o registro cliacute-

nico escrito torna-se o veiacuteculo de mediaccedilatildeo e transmissatildeo desses traccedilos percebidos pelo

psicoterapeuta

Feitas as devidas consideraccedilotildees sobre a praacutetica do registro cliacutenico escrito torna-se ne-

cessaacuterio evidenciar o posicionamento e regulamentaccedilotildees sobre a realizaccedilatildeo do registro

525Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

escrito de informaccedilotildees cliacutenicas aprovados pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP)

oacutergatildeo que rege e regulamenta a praacutetica do psicoacutelogo brasileiro

PosicionamentoeregulamentaccedilotildeesdoConselhoFederaldePsicologiaarespeitodoregistrodasinformaccedilotildeescliacutenicas

Diversas mudanccedilas ocorridas na sociedade acarretaram em novas e diferentes deman-

das junto aos profissionais de psicologia cliacutenicos e pesquisadores e aos usuaacuterios dos

serviccedilos psicoloacutegicos Respondendo aos anseios da sociedade civil profissional e acadecirc-

mica o Conselho Federal de Psicologia publicou em 30 de marccedilo de 2009 a Resoluccedilatildeo

CFP Nordm 0012009 que tornou obrigatoacuterio o registro documental decorrente da presta-

ccedilatildeo de serviccedilos psicoloacutegicos Sabe-se que a falta de registros cliacutenicos que comprovem e

caracterizem os atendimentos realizados representa o maior problema nos processos

eacuteticos nos Conselhos Regionais (CFP 2007) Com efeito a atual Resoluccedilatildeo surge em

consideraccedilatildeo agraves urgecircncias impostas a) pelo exerciacutecio profissional do psicoacutelogo b) pelo

reconhecimento dos consumidores usuaacuterios dos serviccedilos psicoloacutegicos acerca de seus

direitos levando-os agraves reivindicaccedilotildees eacuteticas junto aos Conselhos c) pela necessidade

dos Conselhos de orientar e fiscalizar os serviccedilos prestados e a responsabilidade teacutecnica

adotada d) pelos anseios das comunidades acadecircmicas no que se refere agrave importacircncia

do registro para as pesquisas e e) pela possibilidade do registro se constituir enquanto

prova nos processos disciplinares e nas defesas legais dos psicoacutelogos

A Resoluccedilatildeo CFP Nordm 0012009 traz dois capiacutetulos que orientam a elaboraccedilatildeo dos re-

gistros Este trabalho natildeo tem por objetivo discutir a Resoluccedilatildeo apontando duacutevidas que

porventura possam surgir da sua interpretaccedilatildeo lacunas em relaccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo para

elaboraccedilatildeo dos registros entre outras especificidades Para o momento eacute importante

descrever sinteticamente os dois capiacutetulos que estruturam a Resoluccedilatildeo O Capiacutetulo I

Dos Registros Documentais trata da obrigatoriedade desses registros dos serviccedilos psico-

loacutegicos prestados que natildeo puderem ser mantidos prioritariamente em prontuaacuterios psi-

coloacutegicos Tambeacutem satildeo oferecidas orientaccedilotildees sobre quais informaccedilotildees devem constar

nesses registros que seratildeo compartilhados por outros profissionais e pelos usuaacuterios

consumidores O Capiacutetulo II Dos Prontuaacuterios traz orientaccedilotildees especiacuteficas sobre o re-

gistro documental na forma de prontuaacuterios cujas informaccedilotildees poderatildeo ser compartilha-

das com os usuaacuterios e outros profissionais garantindo o direito do usuaacuterio ao acesso

526

integral agraves informaccedilotildees contidas nesses documentos Tambeacutem orienta sobre o registro

dos atendimentos em grupo sobre a guarda desses documentos e sobre o registro em

serviccedilos multiprofissionais

Anteriormente agrave Resoluccedilatildeo CFP Nordm 0012009 o Conselho Federal de Psicologia publi-

cou outras Resoluccedilotildees (2005b 2003 2000) que determinam a realizaccedilatildeo do registro de

informaccedilotildees cliacutenicas a Resoluccedilatildeo CFP Nordm 0102005 publicada em 21 de julho de 2005

que aprova o Coacutedigo de Eacutetica Profissional do Psicoacutelogo a Resoluccedilatildeo CFP Nordm 0072003

publicada em 14 de junho de 2003 que institui o manual de elaboraccedilatildeo de documentos

escritos produzidos pelo psicoacutelogo decorrentes de avaliaccedilatildeo psicoloacutegica e a Resoluccedilatildeo

CFP Nordm 0102000 publicada em 20 de dezembro de 2000 que especifica e qualifica a

psicoterapia como praacutetica do psicoacutelogo

O Coacutedigo de Eacutetica Profissional natildeo traz uma referecircncia especiacutefica de que o psicoacutelogo

cliacutenico deva registrar as informaccedilotildees obtidas na praacutetica entretanto aponta accedilotildees que

pressupotildeem que os registros sejam realizados (Domanico e Tavares 2005) Com efeito

a versatildeo do Coacutedigo publicada em agosto de 2005 referencia mais accedilotildees que implicam

em registros que os Coacutedigos anteriores e apresenta recomendaccedilotildees de cuidado com

relaccedilatildeo a essa praacutetica e compartilhamento das informaccedilotildees registradas

A anaacutelise do Coacutedigo de 2005 nos permite elencar quatro recomendaccedilotildees que corrobo-

ram o posicionamento expresso neste texto O Art 1ordm (CFP 2005 p8) que trata dos

deveres fundamentais dos psicoacutelogos apresenta duas recomendaccedilotildees sobre os regis-

tros ldquoInformar a quem de direito os resultados decorrentes da prestaccedilatildeo de serviccedilos

psicoloacutegicos transmitindo somente o que for necessaacuterio para a tomada de decisotildees

que afetem o usuaacuterio ou beneficiaacuteriordquo (Aliacutenea ldquogrdquo) e ldquoOrientar a quem de direito sobre

os encaminhamentos apropriados a partir da prestaccedilatildeo de serviccedilos psicoloacutegicos e for-

necer sempre que solicitado os documentos pertinentes ao bom termo do trabalhordquo

(Aliacutenea ldquohrdquo) Encontramos a terceira recomendaccedilatildeo no Art 12 ldquoNos documentos que

embasam as atividades em equipe multiprofissional o psicoacutelogo registraraacute apenas as

informaccedilotildees necessaacuterias para o cumprimento dos objetivos do trabalhordquo (CFP 2005

p13) Finalmente a quarta recomendaccedilatildeo encontra-se no Art 14 ldquoA utilizaccedilatildeo de quais-

quer meios de registro e observaccedilatildeo da praacutetica psicoloacutegica obedeceraacute agraves normas deste

Coacutedigo e a legislaccedilatildeo profissional vigente devendo o usuaacuterio ou beneficiaacuterio desde o

iniacutecio ser informadordquo (CFP 2005 p13)

527Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

Sem duacutevida se nos atentarmos agraves quatro recomendaccedilotildees apontadas verificamos que

estas sugerem accedilotildees de registros da praacutetica cliacutenica bem como o cuidado com as infor-

maccedilotildees referentes aos beneficiaacuterios da prestaccedilatildeo de serviccedilos psicoloacutegicos Assim nas

aliacuteneas ldquogrdquo e ldquohrdquo do Art 1ordm do Coacutedigo satildeo feitas referecircncias agrave informaccedilatildeo e transmissatildeo

de resultados e fornecimento de documentos o que implica na accedilatildeo de realizar algum

tipo de registro No Art 12 novamente eacute feita referecircncia agrave elaboraccedilatildeo de documentos

com recomendaccedilotildees sobre quais informaccedilotildees devem ser registradas e compartilhadas

Por fim o Art 14 trata diretamente da regulamentaccedilatildeo da elaboraccedilatildeo e utilizaccedilatildeo desses

registros

A Resoluccedilatildeo CFP Nordm 0072003 trata especificamente do registro das informaccedilotildees ge-

radas pela avaliaccedilatildeo psicoloacutegica apresentando definiccedilotildees acerca dos tipos possiacuteveis de

documentos e os quesitos necessaacuterios para a elaboraccedilatildeo destes Por sua vez a Resoluccedilatildeo

CFP Nordm 01000 que especifica e qualifica a praacutetica da psicoterapia apresenta uma orien-

taccedilatildeo mais especiacutefica e pontual sobre a realizaccedilatildeo dos registros de informaccedilotildees cliacutenicas

advindas do processo psicoterapecircutico Essa Resoluccedilatildeo determina que os atendimentos

realizados devem ser registrados Por certo o item II disposto no Art 2ordm que trata dos

princiacutepios e procedimentos que qualificam a praacutetica da psicoterapia aponta que o psicoacute-

logo deveraacute ldquopautar-se em avaliaccedilatildeo diagnoacutestica fundamentada devendo ainda manter

registro referente ao atendimento realizado indicando o meio utilizado para diagnoacutesti-

co ou motivo inicial atualizaccedilatildeo registro de interrupccedilatildeo e altardquo

Seguindo essa perspectiva verificamos que tanto o Coacutedigo de Eacutetica quanto a Resolu-

ccedilatildeo CFP Nordm 0102000 indicam a importacircncia e necessidade da praacutetica do registro a

determinam e a regulamentam No entanto natildeo especificam nem orientam como esse

registro deve ser feito isto eacute natildeo apontam um modelo nem paracircmetros para a sua

elaboraccedilatildeo como por exemplo os conteuacutedos a serem registrados (Domanico e Tavares

2005) Quanto a essa questatildeo considera-se adequado o posicionamento do Conselho

por um lado dada a complexidade da tarefa na medida em que a Psicologia Cliacutenica

apresenta uma diversidade de praacuteticas que impossibilita o delineamento de um modelo

uacutenico a ser adotado pelos profissionais de um modo geral Esse posicionamento do

Conselho tambeacutem respeita e subsidia a demanda advinda do contexto dessa profissatildeo

que se sustenta numa diversidade de praacuteticas ndash a demanda de liberdade para escolher

e construir um modelo em consonacircncia com a praacutetica pautada por um referencial te-

oacuterico especiacutefico que cada profissional adota e assume enquanto cliacutenico Sem duacutevida

528

ambos ndash o posicionamento do Conselho e a demanda do contexto profissional ndash possi-

bilitam o desenvolvimento de pesquisas Em conformidade com essas reflexotildees Doma-

nico e Tavares (2005) realizaram uma pesquisa sobre o desenvolvimento de um modelo

padronizado de registro cliacutenico escrito fundamentado na Teoria das Relaccedilotildees Objetais

e direcionado para a psicoterapia psicodinacircmica individual Dando prosseguimento a

essa pesquisa Naves e Tavares (2007) testaram esse modelo ressaltando a importacircncia

de sua construccedilatildeo por responder agraves necessidades da cliacutenica aleacutem da determinaccedilatildeo do

Conselho Federal de Psicologia Eacute importante continuar desenvolvendo modelos desse

tipo aperfeiccediloando-os com as reflexotildees suscitadas pela pesquisa pela sua utilizaccedilatildeo na

praacutetica cliacutenica e pelas interlocuccedilotildees teoacutericas

Em siacutentese essas quatro Resoluccedilotildees do Conselho Federal de Psicologia formam um

marco decisivo no reconhecimento da necessidade da realizaccedilatildeo do registro escrito dos

serviccedilos prestados pelos psicoacutelogos A publicaccedilatildeo dessas Resoluccedilotildees aponta para a pre-

ocupaccedilatildeo do Conselho Federal em oferecer medidas e orientaccedilotildees aos cliacutenicos para o

exerciacutecio eacutetico responsaacutevel e efetivo da Psicologia Cliacutenica Cabe ao psicoacutelogo a respon-

sabilidade de se capacitar e de seguir tais recomendaccedilotildees incorporando agrave sua praacutexis o

haacutebito de registrar as informaccedilotildees cliacutenicas geradas nas suas intervenccedilotildees e de utilizar o

registro enquanto um procedimento cliacutenico para potencializar o efeito de suas proacuteprias

intervenccedilotildees para benefiacutecios de seus pacientes seja em seu atendimento direto a eles

ou por intermeacutedio de sua equipe ou de outros profissionais

ConsideraccedilotildeesFinais

As novas transformaccedilotildees da sociedade e o reconhecimento dos usuaacuterios consumidores

acerca de seus direitos estatildeo modificando a forma e a frequecircncia de reivindicaccedilotildees eacuteticas

junto aos Conselhos Este cenaacuterio atual exige atualizaccedilotildees e reformulaccedilotildees de condutas

do profissional referentes ao registro e ao seu entendimento natildeo mais como uma mera

atividade burocraacutetica mas como um procedimento cliacutenico legiacutetimo Esse profissional

deve tambeacutem refletir sobre os efeitos beneacuteficos do registro Por outro lado deve estar

consciente dos riscos e consequecircncias de natildeo fazer o registro

As responsabilidades eacuteticas e legais que o profissional de sauacutede possui em relaccedilatildeo agraves

pessoas que atende acompanha ou realiza algum tipo de tratamento por exemplo de

529Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

proteger (em risco de suiciacutedio) ou de proteger a terceiros envolvidos (em risco de homi-

ciacutedio) pode resultar em um chamamento para que ele se explique junto ao Conselho

e agrave sociedade nos casos de desfechos traacutegicos com seus pacientes O registro bem ela-

borado configura-se como uma proteccedilatildeo ao profissional contra possiacuteveis processos que

possam ser caracterizados como mau exerciacutecio da profissatildeo O Conselho natildeo considera

legiacutetimos registros realizados apoacutes tais eventos na defesa do profissional

Por outro lado a compreensatildeo do registro enquanto um procedimento cliacutenico leva-

-nos a perceber que este se direciona agraves pesquisas e agraves praacuteticas cliacutenicas por se tratar

de um documento que organiza e fixa informaccedilotildees a serem elaboradas transmitidas e

compartilhadas Ao mesmo tempo o registro se apresenta enquanto um documento no

qual convergem as treze funccedilotildees cliacutenicas ou atributos fundamentais agrave praacutexis cliacutenica e

ao desenvolvimento dessa aacuterea do conhecimento como discutido anteriormente Essas

funccedilotildees cliacutenicas do registro trazem benefiacutecios para a psicoterapia e acompanhamen-

to do paciente Assim apontam para a importacircncia e a necessidade de construccedilatildeo de

uma cultura de sistematizaccedilatildeo e uso do registro cliacutenico escrito e dos estudos sobre esse

tema Tambeacutem permitem ao terapeuta desenvolver competecircncias e habilidades que iratildeo

repercutir diretamente no setting terapecircutico favorecendo o processo de elaboraccedilatildeo cliacute-

nica do psicoacutelogo e proporcionando maior eficaacutecia e efetividade em suas intervenccedilotildees

psicoterapecircuticas

Referecircncias

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psicoloacutegica Brasiacutelia Autor

530

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532

Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

RoqueGui

VeraLuciaDecnopCoelho

O Tempo do Sonho eacute um termo usado para descrever o periacuteodo

anterior agrave memoacuteria viva quando os Espiacuteritos emergiram do interior

da terra e a partir do ceacuteu para criar as formas e todas as coisas

vivas As histoacuterias do Tempo do Sonho inspiram as leis para a ordem

moral e social e estabelecem os padrotildees e costumes culturais55

55 httpwwwaboriginalartstorescomau

533Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

Todo mundo sonha Estamos diante de um fenocircmeno humano universal Desde tempos

imemoriais os sonhos tecircm sido objeto de interesse dos seres humanos preocupados

em classificaacute-los narraacute-los e interpretaacute-los No entanto apesar de familiares os sonhos

sempre parecem estar um tanto aleacutem da nossa capacidade de compreendecirc-los O misteacute-

rio deste processo psiacutequico ndash o sonhar ndash e a estranheza de seu produto ndash o sonho ndash nos

desconcerta ldquoSonhordquo e ldquosonharrdquo satildeo duas palavras que usamos rotineiramente e para

as quais atribuiacutemos diferentes significados aleacutem daquela mais imediata que se refere

ao fenocircmeno que habita nosso sono noturno56

Temos uma atitude ambivalente em relaccedilatildeo ao sonhar e aos sonhos talvez porque essa

atividade neuroloacutegica insoacutelita que ocorre ao ceacuterebro adormecido reveste-se de aspectos

estranhos muitas vezes bizarros incompreensiacuteveis ldquoSonharrdquo quando natildeo se refere

especificamente agrave atividade notiacutevaga adquire em nosso linguajar cotidiano o sentido de

fantasia imaginaccedilatildeo evasiva agrave realidade desejos utoacutepicos e natildeo realizaacuteveis Frequente-

mente eacute desqualificado como algo ilusoacuterio sem consequecircncias praacuteticas para o dia a dia

reduzindo-se agrave proacutepria estranheza

Em muitas culturas poreacutem os sonhos satildeo considerados importantes fontes de in-

formaccedilotildees sobre o futuro sobre o mundo espiritual ou sobre a pessoa Estudos antro-

poloacutegicos tecircm demonstrado que os sonhos conectam-se com o sistema cosmoloacutegico

teoloacutegico meacutedico esteacutetico e filosoacutefico das culturas nos quais eles ocorrem aleacutem de

referirem-se agraves concepccedilotildees sobre individualidade e linguagem agraves praacuteticas individuais

terapecircuticas e ritualiacutesticas (Shamdasani 2005) Certas culturas atribuem tal importacircn-

cia aos sonhos a ponto de serem chamadas de ldquoculturas oniacutericasrdquo designaccedilatildeo dada por

Alfred Kroeber [1876-1960] antropoacutelogo cultural estadunidense da Universidade de

Berkeley (Kracke sd)

56 Este texto eacute baseado em Gui R T (2010) Matriz do sonhar social um dispositivo de intervenccedilatildeo em psicologia cliacutenica Tese de Doutorado em Psicologia Cliacutenica e Cultura Universidade de Brasiacutelia Orientadora Vera Luacutecia Decnop Coelho

534

O sonho ocorre em um espaccedilo subjetivo diferente do espaccedilo da vida viacutegil O relacio-

namento entre esses espaccedilos tecircm sido problemaacutetica as relaccedilotildees entre o imaginaacuterio e o

real Em certas culturas ambos os espaccedilos satildeo considerados reais embora possam ou

natildeo se sobrepor A partir da obra pioneira de Sigmund Freud (1859-1939) ldquoA Interpre-

taccedilatildeo dos Sonhosrdquo o sonho tem sido abordado na cultura das sociedades industria-

lizadas segundo a perspectiva cientiacutefica do conhecimento psicoloacutegico A ecircnfase nos

aspectos da dinacircmica intra-subjetiva tem colocado em segundo plano aspectos da vida

social refletidos nos sonhos e que agem sobre a subjetividade individual aspectos que

estudos recentes buscam resgatar para o acircmbito das intervenccedilotildees psicossociais (Gui

2010 Lawrence 1998 2003 2005 2007 Neri 2003) O presente texto discute as re-

laccedilotildees muitas vezes difiacuteceis entre a psicologia antropologia e sociologia apontando a

necessidade de um trabalho interdisciplinar sobre o sonho e o sonhar

UmOlharEstrangeirosobreoSonhoeoSonhar

Nos anos 1960 Roger Bastide (1898ndash1974) socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs pergunta-

va-se se a psicanaacutelise poderia vir a ldquoinstitucionalizarrdquo o sonho o que para ele significava

atribuir um lugar e papel social ao sonhar Com a secularizaccedilatildeo da cultura e a crescente

importacircncia atribuiacuteda agrave produccedilatildeo agrave praacutexis ao trabalho e agrave organizaccedilatildeo estratificada de

classes centros sociais de comunicaccedilatildeo dos sonhos deixaram de existir As socieda-

des ocidentais contemporacircneas que valorizam a accedilatildeo a produtividade e os resultados

identificam-se com o fazer e desqualificam o sonhar deixando-o entregue agrave pura subje-

tividade ou agrave natureza O sonho perdeu entatildeo uma existecircncia objetiva institucionali-

zada e deixando de ser miacutetico passou a ocupar um espaccedilo imaginaacuterio Natildeo sendo mais

considerado sagrado pela maioria das pessoas o sonho se tornou estranho a ponto de

nos inspirar temor (Bastide 2001)

O autor conclui entatildeo que tanto entre noacutes como nas sociedades tradicionais o sonho se

inscreve nos quadros sociais com a diferenccedila de que no caso dos chamados ldquoprimiti-

vosrdquo o etnoacutelogo pode ler diretamente os sonhos graccedilas agraves suas observaccedilotildees do mundo de vigiacutelia

posto que dormindo ou acordado o homem eacute sempre o mesmo e nunca se afasta de

um mesmo mundo assentado no mito Nas sociedades contemporacircneas eacute exigido que

o socioacutelogo pratique uma leitura invertida porque a estrutura socioloacutegica inscrita nas

imagens oniacutericas o faz de certa maneira na forma de figura em espelho exigindo um

535Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

esforccedilo para decifrar as estruturas sociais Por outro lado essa mesma sociedade per-

meaacutevel agrave loacutegica cientiacutefica nos traz por meio dos estudos da psicologia profunda noccedilotildees

cientiacuteficas sobre o sonhar ldquoInterpretar sonhosrdquo passa a ser uma tarefa especializada

reservada a profissionais bem treinados os psicanalistas e seus afins (Edgar 1994)

A abordagem cientiacutefica dos sonhos ela tambeacutem explicita sua sintonia com os valores

produtivistas da sociedade capitalista industrial Bastide (2001) considera que a concep-

ccedilatildeo freudiana dos sonhos natildeo escapa a essa perspectiva ou seja o sonho eacute visto como

um dispositivo de seguranccedila para o eu que protege o sono possibilitando a descarga

das emoccedilotildees reprimidas e zelando por fim pela continuidade funcional do eu O mes-

mo se aplicaria agrave visatildeo de Adler ainda segundo Bastide pois nela o sonho eacute visto como

um instrumento de reconstruccedilatildeo da personalidade servindo ao processo adaptativo do

indiviacuteduo ao ambiente social Para o socioacutelogo os primitivos tambeacutem concebem o so-

nho como produtor Poreacutem produtor de novas caracteriacutesticas culturais e natildeo de um ser

humano melhor adaptado E o criador dos sonhos natildeo eacute o homem que sonha mas os

Antepassados ou os Demiurgos Saiacutemos assim da civilizaccedilatildeo da produtividade para a

civilizaccedilatildeo da criaccedilatildeo contiacutenua Talvez as consideraccedilotildees de Carl Gustav Jung (1875-1961)

estivessem mais ao gosto do socioacutelogo francecircs embora natildeo o saibamos porque natildeo haacute

referecircncias a respeito

Jung observou que certos povos ancestrais distinguem ldquograndes sonhosrdquo e ldquopequenos

sonhosrdquo Em linguagem contemporacircnea falar-se-ia de sonhos ldquosignificativosrdquo e sonhos

ldquobanaisrdquo (Jung 19281981 p 298) Os ldquopequenos sonhosrdquo satildeo aqueles que se referem

ao acircmbito subjetivo pessoal e seu significado situa-se na esfera da vida pessoal do so-

nhador Promovem ajustes no equiliacutebrio psiacutequico quase sempre passam desapercebi-

dos e satildeo esquecidos com facilidade

Ao longo de anos de anaacutelise de milhares de sonhos Jung constatou o aparecimento

de sonhos que continham motivos mitoloacutegicos ou seja uma combinaccedilatildeo peculiar de

ideias e imagens encontradas igualmente em mitologias de diferentes povos Cogitava

que esses sonhos detinham um caraacuteter coletivo indicando um sentido comum (incons-

cientemente compartilhado portanto) a toda a humanidade (Jung 19341993 p 148)

Em seu contato com povos da Aacutefrica Oriental Jung constatou que os chamados ldquogran-

des sonhosrdquo soacute podiam ser sonhados por pessoas notaacuteveis como por exemplo feiticei-

536

ros e chefes Para os elgonyi que vivem nas florestas do Elgon por exemplo os peque-

nos sonhos natildeo tecircm importacircncia alguma Poreacutem quando algueacutem sonha um ldquogrande

sonhordquo convoca a tribo para contaacute-los (Jung 19281981 p 168)

E como saber se o sonho eacute ldquogranderdquo ou ldquopequenordquo Um sentimento intuitivo de sua im-

portacircncia significativa convence o indiviacuteduo que natildeo deve guardaacute-lo para si Sente que

precisa contaacute-lo supondo de um modo psicologicamente correto que o sonho eacute im-

portante para todos ldquoOs processos do inconsciente coletivo natildeo dizem respeito apenas

agraves relaccedilotildees mais ou menos pessoais do indiviacuteduo com sua famiacutelia ou com um grupo

social dizem respeito agrave comunidade humana em geralrdquo (Jung 19281981 p 168)

A existecircncia desses ldquograndes sonhosrdquo natildeo representa a negaccedilatildeo de que as pessoas so-

nham a partir de si mesmas A originalidade individual dos seres humanos repousa so-

bre uma base de semelhanccedila universal ldquoUm sonho com sentido coletivo vale em primeiro

lugar para o sonhador mas exprime tambeacutem que seu problema momentacircneo pode ser o de

outrosrdquo (Jung 19341993 p 148 destaques dos autores) Jung via nessa particularidade

a importacircncia praacutetica para inuacutemeras pessoas que se sentem isoladas das demais acre-

ditando que os outros natildeo tecircm os problemas que elas tecircm Reconhecia ainda que os

problemas individuais relacionam-se com o problema da eacutepoca de modo que questotildees

subjetivas podem ser vistas sob a perspectiva das questotildees gerais da humanidade Jung

fazia a ressalva de que isso eacute vaacutelido apenas quando o sonho apresenta inequiacutevoco sim-

bolismo mitoloacutegico (Jung 19341993 p 148)

Retornemos agraves representaccedilotildees cotidianas do sonhar O homem e a mulher comuns

que natildeo estatildeo engajados nesse tipo particular de investigaccedilatildeo subjetiva em que con-

siste a praacutetica psicoterapecircutica ou analiacutetica olham para seus sonhos com um misto de

admiraccedilatildeo e desdeacutem Agraves vezes preocupam-se quando as imagens oniacutericas sugerem

algo de premonitoacuterio uma espeacutecie de alerta sobre eventos futuros Mas excetuando-se

tais situaccedilotildees os sonhos se vatildeo da mesma maneira como surgiram quase sem serem

percebidos

Pensemos por um momento nas ocasiotildees em que narramos nossos sonhos Contar

sonhos natildeo eacute uma comunicaccedilatildeo ordinaacuteria em nossa sociedade Enfrentamos entatildeo a

dificuldade de escolhermos uma audiecircncia e contexto adequados para fazecirc-lo Talvez o

faccedilamos entre amigos sempre que o sonho em questatildeo apresente algo de curioso e natildeo

537Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

pareccedila comprometer nossa autoimagem Afinal agraves vezes nossos sonhos nos colocam

em situaccedilotildees embaraccedilosas Um enquadre mais formal eacute representado pela hora de

50 minutos da sessatildeo analiacutetica ou psicoterapecircutica Nesta situaccedilatildeo constatamos rapi-

damente que o compartilhamento do sonho natildeo eacute uma tarefa tatildeo simples assim O

sonho ldquomanifestordquo deveraacute passar pelo processo de associaccedilatildeo livre a fim de que sejam

expostos os pensamentos latentes que foram transformados pelos processos primaacuterios

de trabalho do sonho - condensaccedilatildeo deslocamento simbolismo e revisatildeo secundaacuteria ndash

conforme nos lembra Freud (19001999)

Compartilhar sonhos em uma sessatildeo psicanaliacutetica ou numa reuniatildeo social seja em

nossa sociedade industrial contemporacircnea seja no conselho de uma comunidade tribal

pode assumir significados completamente diferentes O contexto no qual um sonho eacute

compartilhado pode ele mesmo agregar algo a seu significado o qual pode ser conscien-

te e intencional (pensemos num homem que conta a uma mulher que ele sonhou com

ela conferindo a essa narrativa certo caraacuteter de seduccedilatildeohellip) ou pode ser inconsciente

(como eacute o caso da mensagem transferencial de um sonho ao ser contado na sessatildeo ana-

liacutetica) Em algumas culturas os sonhos fornecem importantes argumentos poliacuteticos por

exemplo entre os Sambia da Nova Guineacute o modo como um sonho eacute contado em um

contexto puacuteblico pode ser muito diferente daquele como eacute contado em privado e pode

ter um significado diferente apontando para questotildees sociais ou poliacuteticas (Herdt 1987)

As culturas tambeacutem diferem no grau de responsabilidade atribuiacutedo aos sonhadores por

suas atividades durante o sonho Um sonho eroacutetico entre os Arapesh pode ser conside-

rado um ato aduacuteltero os Sambia somente consideram o sonhador imputaacutevel se o sonho

for contado publicamente Sonhos em algumas culturas contribuem para a identidade

da pessoa por exemplo nas culturas dos Iacutendios das Planiacutecies ndash povos indiacutegenas das

planiacutecies norte-americanas ndash algueacutem pode ser visitado em sonho ou numa visatildeo por

um espiacuterito guardiatildeo e receber informaccedilotildees sobre um caminho de vida a ser trilhado

(Kracke sd)

Haacute um contexto no qual o compartilhamento do ldquosonhordquo ndash natildeo propriamente o sonho

que sonhamos dormindo ndash se torna amplamente desejaacutevel Trata-se do sonho em sua

forma mais estilizada e digeriacutevel para os haacutebitos de nossa sociedade industrial o sonho

como ldquovisatildeo de futurordquo Grandes liacutederes empresariais notabilizam-se pela sua capaci-

dade de ldquoanteverrdquo o futuro construindo imagens inspiradoras para seus subordinados

538

e suas organizaccedilotildees Satildeo os ldquovidentesrdquo da era tecnoloacutegica os executivos de ldquovisatildeo estra-

teacutegicardquo os construtores de impeacuterios empresariais Aqueles que ousaram enxergar aleacutem

e deram certo Nas sociedades industrializadas contemporacircneas enquanto o sonho

noturno reduz-se a ser ldquoapenas um sonhordquo uma ldquovisatildeordquo traz a promessa de realizaccedilatildeo

de um futuro almejado

A poesia a educaccedilatildeo e a poliacutetica tambeacutem se apropriam do linguajar dos sonhos ldquoUm

sonho que se sonha soacute eacute apenas um sonho mas um sonho que se sonha junto eacute reali-

daderdquo canta Raul Seixas ldquoI have a dreamrdquo diz Martin Luther King em seu ceacutelebre dis-

curso para expressar suas esperanccedilas de transformaccedilatildeo poliacutetica na Ameacuterica dos anos

1960 Aqui temos o sonho na sua positividade nos seus anseios libertaacuterios embora natildeo

se trate do sonho noturno Este em nossa sociedade permanece aguilhoado no reduto

da subjetividade individual Mas nem sempre foi assim

Nas civilizaccedilotildees ancestrais e em muitas culturas tribais os sonhos assim como os mi-

tos eram costumeiramente narrados e discutidos em encontros coletivos organizados

para esse fim Nessas sociedades o compartilhamento de numerosos elementos sim-

boacutelicos e linguiacutesticos tornava os membros do grupo aptos a ldquolerrdquo os significados dos

sonhos ou de uma narrativa miacutetica tradicional Frequentemente entravam em cena

ldquoespecialistasrdquo ndash mas que eram sobretudo especialistas em rituais ndash que agiam no

sentido de ldquoacentuar clarificar completar e elaborar a narrativa dos sonhos por meio da

ressonacircncia poeacutetica em vez de lsquodesencantarrsquo essa narrativa por meio de interpretaccedilotildees

e profeciasrdquo (Neri 2003 p 26)57

Nas sociedades urbanas do Mediterracircneo claacutessico ndash Mesopotacircmia Egito Israel Greacutecia

ndash o trabalho com os sonhos orientou-se progressivamente para outros objetivos Os so-

nhos tornaram-se mensagens imageacuteticas A linguagem oniacuterica que antes era percebida

como transparente e capaz de influenciar a vida comunitaacuteria tornou-se mais obscura

O sonho passa a ser portador de uma comunicaccedilatildeo rica em significados e para ser com-

preendido necessita de interpretaccedilatildeo ldquoOs sonhos natildeo satildeo mais um instrumento de har-

monizaccedilatildeo inconsciente no interior de um grupo mas sobretudo lanccedilam luz sobre o

57 No original ldquo emphasizing clarifying integrating and elaborating on the dreams by means of poetic resonance rather than lsquodis-enchantingrsquo the story by offering interpretations and propheciesrdquo (Neri 2003 p 26)

539Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

destino de um sonhador determinadordquo (Neri 2003 p 27)58 O sonho estaacute a caminho de

se tornar uma operaccedilatildeo psiacutequica proacutepria do sonhador como nos diraacute Freud (19011977)

Assim os sonhos que se referiam agrave vida social e que se revestiam de importacircncia para a

sobrevivecircncia do grupo nas sociedades caccediladoras e nocircmades passaram a ter um caraacuteter

individual vinculando-se a significados biograacuteficos do sonhador A modernidade por

meio de um de seus arautos culturais ndash a psicanaacutelise ndash finalizaraacute o projeto de individu-

alizaccedilatildeo do sonho Os sonhos a partir de entatildeo natildeo se deixaratildeo conhecer em primeira

matildeo pois seratildeo vistos como produtos de um ardiloso processo de disfarce ndash o chamado

ldquotrabalho do sonhordquo ndash requerendo a intervenccedilatildeo de um especialista-inteacuterprete Quando

longe dos consultoacuterios analiacuteticos os sonhos prescindiratildeo de uma atenccedilatildeo mais cuida-

dosa

Como vimos mais acima o projeto hegemocircnico de interpretaccedilatildeo cientiacutefica dos sonhos

sofreu questionamento a partir de um campo do saber ndash a Antropologia Cultural ndash que

a despeito do entusiasmo inicial com a possibilidade de aplicaccedilatildeo universal dos acha-

dos psicanaliacuteticos problematizou as teorias psicoloacutegicas sobre o sonhar Bastide (2001)

criticou o caraacuteter etnocecircntrico das chamadas abordagens cientiacuteficas dos sonhos caraacuteter

este decorrente da tendecircncia a julgar ou interpretar outras culturas com base nos criteacute-

rios da proacutepria cultura do pesquisador Tais abordagens seriam portanto parciais Com

a criacutetica surgiu tambeacutem a necessidade de uma investigaccedilatildeo a partir da antropologia

cultural que por meio do meacutetodo comparativo tem procurado abarcar as diversas expli-

caccedilotildees que os homens atribuem ao seu mundo oniacuterico Um novo olhar sobre os sonhos

foi entatildeo lanccedilado pela Antropologia Cultural uma espeacutecie de ldquoolhar estrangeirordquo que

tem ajudado a descentrar a perspectiva psicoloacutegica e tecnocientiacutefica sobre o sonhar

OVeacuterticeAntropoloacutegicoBreveincursatildeonaAntropologiadoSonhar Em tempo que podemos chamar de preacute-cientiacuteficos os homens natildeo se embaraccedilavam para explicar o sonho Quando se lembravam dele ao acordar tomavam-no por uma informaccedilatildeo benevolente ou hostil de poderes

58 No original ldquoDreams are no longer a tool for unconscious harmonization within the group rather they shed some light on the fate of the dreamerrdquo (Neri 2003 p 27)

540

superiores deuses e democircnios Com a eclosatildeo do modo de pensar cientiacutefico toda essa mitologia rica em muacuteltiplos sentidos transpocircs-se para a psicologia e atualmente entre as pessoas cultas resta apenas uma iacutenfima minoria que duvida que o sonho seja uma operaccedilatildeo psiacutequica proacutepria do sonhadorrdquo

(Freud em Sobre os sonhos 1901 ESB V 671-751)

O tiacutetulo da seccedilatildeo anterior alude ao interesse por um ldquoolhar de forardquo Algo como um

deslocamento de perspectiva ndash um outro veacutertice ndash que gere certo estranhamento em

relaccedilatildeo agraves ldquoverdadesrdquo de nossa cultura psicoloacutegica Usamos ldquoveacuterticerdquo na acepccedilatildeo utili-

zada por Bion com o sentido de ldquovariaccedilotildees da configuraccedilatildeo perceptiva de um mesmo

fenocircmeno ou de uma mesma pessoa a partir do veacutertice de observaccedilatildeo que o indiviacuteduo

adotardquo (Zimerman 2004 p 246) O ldquoveacuterticerdquo eacute um ponto a partir do qual concebemos

o fenocircmeno E como nos diz Maroni (2008) ldquoAo usar os diferentes veacutertices frustramo-

-nos pois que tentamos apreender atraveacutes deles o objeto total sendo isso impossiacutevel

uma vez que por meio dos veacutertices natildeo fazemos senatildeo parcializaacute-lordquo (p 87)

Agrave luz dessa advertecircncia o veacutertice antropoloacutegico natildeo visa substituir a validade do veacuterti-

ce psicoloacutegico muito menos esgotar a amplitude dos estudos antropoloacutegicos sobre os

sonhos mas sobretudo apresentar um acircngulo de apreensatildeo (e aqui tambeacutem a noccedilatildeo

de ldquoveacuterticerdquo enquanto abertura faz sentido) acircngulo que delimita um acircmbito de fenocirc-

menos culturais que nos ajudam a relativizar a perspectiva psicoloacutegica dos sonhos tatildeo

usual entre noacutes psicoacutelogos

O trabalho de Freud no iniacutecio do seacuteculo XX estimulou a primeira fase da investigaccedilatildeo

antropoloacutegica dos sonhos (Edgar 1994) Alguns antropoacutelogos procuravam testar a hipoacute-

tese freudiana de que os significados latentes dos sonhos satildeo universais nas culturas Os

trabalhadores das colocircnias eram convidados a relatar materiais oniacutericos oriundos dos

nativos e que eram analisados com o intuito de descobrir os assim chamados ldquosonhos-

-tiposrdquo (Seligman citado por Edgar 1994) A anaacutelise fundamentada nos pressupostos

psicanaliacuteticos era conduzida sem levar em consideraccedilatildeo o contexto cultural e comuni-

cativo Stewart Lincoln antropoacutelogo estadunidense autor da obra claacutessica The Dream in

Primitive Culture (1935) tentou aplicar os conceitos psicanaliacuteticos em seu estudo sobre

os iacutendios norte-americanos desenvolveu uma distinccedilatildeo entre os sonhos ldquoindividuaisrdquo

desprovidos de importacircncia e os ldquosonhos com padratildeo culturalrdquo (culture pattern dreams)

541Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

os quais eram significativos para o grupo e por isso altamente valorizados (Shamdasani

2005) Lincoln natildeo concordava com a utilizaccedilatildeo que Jung fazia do conceito de incons-

ciente coletivo para explicar a distinccedilatildeo entre sonhos individuais e os ldquograndes sonhosrdquo

Segundo Shamdasani (2005) ldquoo fato de que essas visotildees desapareciam quando uma

cultura se desintegrava demonstrava que sua existecircncia dependia de tradiccedilotildees cultu-

rais e natildeo de uma memoacuteria racialrdquo (p 178) Embora seja dado a Lincoln o creacutedito pelo

desenvolvimento de uma tipologia do sonhar baseada na pesquisa etnograacutefica os seus

resultados tecircm sido agora considerados etnocecircntricos (Tedlock 1987a)

Nos anos 1940 e 1950 a teoria de anaacutelise de conteuacutedo dos sonhos tornou-se muito di-

fundida O grande volume de simbolismo oniacuterico descrito pelos antropoacutelogos permitiu

uma abundante compilaccedilatildeo de relatos de sonhos manifestos e sua anaacutelise transcultural

com variaacuteveis culturais e de personalidade Embora essa abordagem valorizasse o so-

nho positivamente como significativo do ponto de vista psicodinacircmico e cultural ela

eacute como nos aponta Edgar (1994) uma abordagem que descontextualiza os sonhos A

importacircncia da narrativa o discurso do sonho e a teoria autoacutectone do sonho ou seja

aquela concebida pela cultura em questatildeo foi quase que inteiramente ignorada Segun-

do o autor o etnocentrismo da escola de anaacutelise de conteuacutedo eacute baseado em uma episte-

mologia que reduz a linguagem agrave sua funccedilatildeo meramente referencial

O desenvolvimento da etnopsiquiatria nos anos 1950 pelo antropoacutelogo e psicanalista

huacutengaro Georges Devereux (1908-1985) eacute outro marco antropoloacutegico na anaacutelise do so-

nhar Devereux em seu trabalho com os iacutendios norte-americanos procurou integrar a

abordagem freudiana no campo antropoloacutegico Ele aplicou os conceitos freudianos de

transferecircncia e teste de realidade para relatos de sonhos fazendo uma anaacutelise criacutetica do

conceito de sonho patogecircnico Em um estudo de um iacutendio Crow Devereux foi capaz de

utilizar as crenccedilas culturais do paciente de que o acontecimento no mundo do sonho

antecipava o comportamento bem sucedido do ldquopacienterdquo na realidade viacutegil ele mos-

trou como o iacutendio Crow o aceitou como terapeuta na identidade de um Espiacuterito Crow

Embora tenha facilitado a orientaccedilatildeo do paciente agrave realidade atraveacutes do uso terapecircutico

do sonhar culturalmente sancionado Devereux enfatizou que a manipulaccedilatildeo dos siacutem-

bolos eacutetnicos (siacutembolos pessoais) pode oferecer ajustamento mas natildeo autoconsciecircncia

introspectiva ou insight curativo com base no pressuposto de que ldquoverdadeiro insightrdquo

pode ocorrer somente na sessatildeo analiacutetica nos moldes preconizados pela psicanaacutelise

Natildeo obstante Obeyesekere (1990) argumentou que cada cultura possui sua proacutepria

542

reflexividade o insight que emerge na psicanaacutelise eacute apenas uma das formas possiacuteveis

abrindo espaccedilo para outros modos culturais de produccedilatildeo de subjetividade

Com a perda de espaccedilo da Escola de Cultura e Personalidade que florescera na Ameacuterica

durante os anos 1950 e a despeito do fato de que os sonhos continuassem a ser objeto

de estudo dos psicoacutelogos o sonhar foi marginalizado no acircmbito da antropologia (Tedlo-

ck 1987a) Somente nos anos 1970 criou-se um clima intelectual mais aberto possibi-

litando que os sonhos pudessem ser considerados como tema no acircmbito dos estudos

antropoloacutegicos A partir de entatildeo os sonhos passaram a ser estudados no contexto dos

sistemas culturais dos quais eles faziam parte (Edgar 1994 Tedlock 1987a 1991)

De laacute para caacute os antropoacutelogos continuam a desenvolver o conceito de relato de sonhos

como um ato comunicativo Tedlock (1987a) sugere que o conceito de ldquoconteuacutedo mani-

festordquo do sonho deveria ser ampliado para incluir mais do que o mero relato Deveria

incluir a teoria do sonho ou as teorias e modos de compartilhamento os enquadres

discursivos relevantes e o coacutedigo cultural para a interpretaccedilatildeo dos sonhos A autora des-

creve essa perspectiva como uma ldquoteoria comunicativa do sonharrdquo Esta teoria considera

a narrativa do sonho como um evento comunicativo que envolve trecircs aspectos superpos-

tos o ato e criaccedilatildeo da narrativa a psicodinacircmica da narrativa e o enquadre interpretativo

ldquoemicrdquo Lembremos que ldquoemicrdquo refere-se ao paradigma metodoloacutegico que trata de re-

produzir os conteuacutedos culturais tal como parecem agraves pessoas ou agrave cultura de referecircncia

em contraste com ldquoeticrdquo que trata de reproduzir ou fixar coordenadas desses conteuacutedos

culturais a partir de fatores que natildeo satildeo percebidos como internos pelos membros dessa

cultura (Diccionario Filosoacutefico httpwwwfilosofiaorgfilomatdf237htm) A anaacutelise do

sonho eacute considerada assim como mais do que um texto hermenecircutico Ela eacute tambeacutem

um processo social e cultural ou uma atividade com resultados expressivos e instru-

mentais Quando isso acontece podemos compreender a proposiccedilatildeo de Herdt (1987) de

que a cultura pode alterar a experiecircncia dos sonhos ou que a produccedilatildeo do sonho pode

ser absorvida e transformada em cultura

A teoria comunicativa do sonhar alerta-nos para a importacircncia da psicodinacircmica do

contexto social e do quadro de referecircncia interpretativo dos participantes Este quadro

estrutura necessariamente tanto a narrativa quanto a interpretaccedilatildeo do sonho Nessa

perspectiva os antropoacutelogos natildeo fazem mais relatoacuterios sobre sonhos como se eles fos-

sem objetos etnograacuteficos que deveriam ser arranjados manipulados e quantificados

543Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

como itens pertencentes agrave cultura material Mais do que fazer comparaccedilotildees tipoloacutegi-

cas ou estatiacutesticas entre os sonhos das assim chamadas sociedades ldquoocidentaisrdquo e ldquonatildeo

ocidentaisrdquo os antropoacutelogos culturais tecircm dirigido sua atenccedilatildeo para estudar as teorias

dos sonhos e os sistemas de interpretaccedilatildeo como complexos eventos psicodinacircmicos

comunicativos Estudando o compartilhamento dos sonhos e a transmissatildeo das teorias

sobre sonhos no contexto total das sociedades onde eles ocorrem os antropoacutelogos tecircm

constatado que ambos o pesquisador e o sujeito de pesquisa criam uma realidade so-

cial que os conecta de maneiras importantes (Tedlock 1991)

OEncontrodosVeacutertices

Mas ainda que noacutes antropoacutelogos tenhamos subscrito o meacutetodo da observaccedilatildeo partici-

pante choca-nos quando descobrimos o quatildeo importante eacute nossa participaccedilatildeo na cria-

ccedilatildeo daquilo que estamos estudando (Tedlock 1987a p 23)59

Em extensatildeo ao conceito bioniano de ldquoveacuterticerdquo evocamos a ideia de Bion sobre ldquovisatildeo

binocularrdquo uacutetil para a compreensatildeo da articulaccedilatildeo dos veacutertices antropoloacutegico e psicoloacute-

gico sobre o sonhar Bion nos explica que na experiecircncia psicanaliacutetica paciente e analista

assumem cada qual o veacutertice que lhe eacute proacuteprio Estes veacutertices precisam manter certa

distacircncia uacutetil e adequada ou seja que natildeo sejam nem tatildeo distantes a ponto de impe-

direm a correlaccedilatildeo entre os respectivos veacutertices nem tatildeo proacuteximos que impeccedilam uma

diferenciaccedilatildeo e causem uma consequente estagnaccedilatildeo na investigaccedilatildeo do objeto psicana-

liacutetico Eacute somente a partir de uma distacircncia adequada que seraacute possiacutevel que ambos faccedilam

correlaccedilotildees e confrontaccedilotildees entre os reciacuteprocos veacutertices assim atingindo o que Bion

chama de lsquovisatildeo binocularrsquo (Zimerman 2004 p 246)

A possibilidade de estabelecer correlaccedilotildees binoculares entre veacutertices distintos de per-

cepccedilatildeo natildeo se restringe a duas pessoas tal como eacute o caso da relaccedilatildeo analiacutetica mas

59 No original ldquoBut even though we antropologists have long subscribed to the method of participant observation it still comes as a shock to us when we discover how important our participation is in helping to create what we are studyingrdquo (Tedlock 1987a p 23)

544

aplica-se igualmente a uma mesma pessoa ldquona qual conforme a distacircncia dos veacutertices

intrapessoais tanto pode gerar nela um estado confusional como uma eficaz visatildeo bino-

cularrdquo (Zimerman 2004 p 247) Aplica-se tambeacutem e de modo bastante oportuno agraves

diferentes perspectivas sobre o sonhar como se pretende neste estudo

Bastide (2001) ao apontar a necessidade de se desenvolver uma sociologia dos sonhos

critica seu proacuteprio campo de estudo dizendo que ldquoa sociologia somente se interessa

pelo homem desperto como se o homem adormecido fosse um cadaacuteverrdquo60 Para ele haacute

motivos para se crer que uma forte influecircncia das condiccedilotildees sociais atua sobre o incons-

ciente e sobre a vida afetiva Em um estudo intitulado ldquoMateriais para uma Sociologia

do Sonhordquo publicado originalmente em 1932 lembrava que para Freud a influecircncia da

sociedade sobre os sonhos assumiria um duplo caraacuteter Por um lado a sociedade teria

uma influecircncia negativa impondo uma seleccedilatildeo das imagens que surgem do incons-

ciente de modo que somente passariam aquelas aceitas pela moral coletiva ou seja

tratar-se-ia-se da censura social Em outro sentido a sociedade atuaria de modo positivo

como fabricante de siacutembolos A libido conseguiria burlar a censura travestindo-se de

siacutembolos Esses siacutembolos seriam tributaacuterios da coletividade de velhas praacuteticas maacutegicas

de antigas mitologias e cultos Aleacutem disso na versatildeo junguiana haveria um inconscien-

te coletivo e o sonho seria uma exploraccedilatildeo dessas profundezas que se acumulam em

nossa psique atraveacutes dos milecircnios

Confirmadas essas concepccedilotildees poder-se-ia criar uma verdadeira ldquosociologia dos so-

nhosrdquo jaacute que os sonhos suporiam a expressatildeo ativa de materiais coletivos constituiacutedos

por siacutembolos de antigas culturas Haveria contudo uma dificuldade como conceber

a persistecircncia de formas de pensamentos desaparecidas e o modo como as herdariacute-

amos questatildeo discutida sobretudo nos estudos de C G Jung (Bastide 2001 Jung

19362000)

Embora adotando a distinccedilatildeo freudiana entre ldquoconteuacutedo manifestordquo e ldquoconteuacutedo laten-

terdquo Bastide acreditava que a influecircncia social seria encontrada sobretudo nas tendecircncias

inconscientes que regulam a estrutura iacutentima das imagens oniacutericas Estabelecer-se-ia

entatildeo uma tipologia decorrente de sua funccedilatildeo social que seria diferente daquela uti-

60 Traduccedilatildeo livre do autor No original ldquola sociologiacutea solo se interessa en el hombre despierto como se el hombre dormido fuese un cadaacuteverrdquo (Bastide 2001)

545Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

lizada pela Psicanaacutelise Para ele trecircs circunstacircncias deveriam ser consideradas para a

sociologia do sonho Em primeiro lugar o papel do sonho seria funccedilatildeo da vida social

Para esse argumento Bastide citando Leacutevy-Bruhl utiliza as observaccedilotildees de que entre

povos tradicionais natildeo existe uma separaccedilatildeo estanque entre o estado de sonho e o es-

tado de lucidez Ao contraacuterio as fantasias noturnas se inserem na trama da existecircncia

diurna e se entrecruzam com as percepccedilotildees do mundo exterior Nessa perspectiva o

sonho permitiria ao membro dessa sociedade uma melhor adaptaccedilatildeo Em nossos dias

existe uma ruptura entre o estado de sonho e o estado de vigiacutelia Nosso estado de vigiacutelia

eacute povoado de pequenos e muacuteltiplos problemas em nuacutemero tanto maior quanto perten-

cemos a inuacutemeros grupos sociais restando ao sonho o papel de reduto de afastamento

desses estiacutemulos O sonho se constitui entatildeo em um instrumento de evasatildeo sua fun-

ccedilatildeo transforma-se de acordo com a transformaccedilatildeo geral da cultura (Bastide 2001)

Em segundo lugar o tipo do sonho eacute funccedilatildeo da densidade social A pressatildeo social eacute

tanto mais forte quanto mais reduzido o meio social Consequentemente eacute mais forte

em uma aldeia do que em uma grande cidade Assim nos pequenos agrupamentos as

tendecircncias individuais seriam reprimidas com maior severidade pela opiniatildeo puacuteblica

As asserccedilotildees de Freud seriam mais acertadas quando aplicadas a pessoas pertencentes

a meios de baixa densidade social O tipo de sonhos que poderiacuteamos denominar ldquotipo

freudianordquo eacute um produto de ordem socioloacutegica (Bastide 2001)

Em terceiro lugar o conteuacutedo do sonho parece depender em certa medida do grau

de integraccedilatildeo alcanccedilado pelo indiviacuteduo na sociedade As imagens do sonho ainda que

providas pela memoacuteria individual satildeo preferentemente escolhidas entre aquelas que

interessam ao meio social que mais nos importa Tambeacutem eacute possiacutevel que isto deixe de

ser certo em tempo de crise os sonhos dos desempregados por exemplo poderiam

trazer conteuacutedos relacionados com as circunstacircncias criacuteticas do desemprego (Bastide

2001) Aqui os estudos de Bastide conferem com as anaacutelises de Beradt (19662002) a

respeito dos sonhos de pessoas sob o domiacutenio do III Reich na Alemanha Nazista e as

formulaccedilotildees de Lawrence e colaboradores (Lawrence 1998 2003 2005 2007) a res-

peito do sonhar social (social dreaming matrix) Conferem igualmente com achados

de pesquisa baseada no constructo do sonhar social por noacutes empreendida no contexto

brasileiro (Gui 2010)

546

Para o socioacutelogo francecircs os estados crepusculares oniacutericos prolongam o social da mes-

ma forma como o social se nutre dos nossos sonhos Eacute o que possibilita e exige uma

sociologia do sonho que estuda o assunto sob duas perspectivas a funccedilatildeo do sonho na

sociedade e os marcos sociais do pensamento oniacuterico

A necessidade de uma sociologia dos sonhos defendida por Bastide conduz a uma

exigecircncia de articulaccedilatildeo entre os campos da antropologia e da psicologia De fato psi-

coacutelogos e antropoacutelogos tecircm se dado conta do caraacuteter complementar de seus estudos no

que se refere aos sonhos Os psicoacutelogos jaacute natildeo podem ignorar que seus estudos sobre a

experiecircncia do sonhar dependem parcialmente da comunicaccedilatildeo de tais experiecircncias por

meios determinados culturalmente os antropoacutelogos por sua vez jaacute natildeo podem ignorar

o fato de que a comunicaccedilatildeo dos sonhos em determinada cultura depende parcialmente

das teorias nativas sobre a experiecircncia oniacuterica (Tedlock 1987a)

Um seminaacuterio ndash Dreams in Cross-Cultural Perspective ndash organizado por Baacuterbara Tedlock

e realizado em 15 de novembro de 1982 na School of American Research (SAR) Santa Feacute

Novo Meacutexico inaugurou novo momento nas relaccedilotildees entre a psicologia e a antropolo-

gia dos sonhos Somente outra conferecircncia realizada em 1964 tivera uma consistente

participaccedilatildeo de antropoacutelogos na discussatildeo sobre o sonhar por meio de George Deve-

reux Dorothy Eggan e A I Hallowell todos da Escola de Cultura e Personalidade (Te-

dlock 1987a) A pesquisadora decidiu que sua conferecircncia deveria ampliar o leque das

abordagens teoacutericas que tinham sido apresentadas naquela conferecircncia dos anos 1960

incluindo pontos de vista sociais psicoloacutegicos e culturais oriundos da semioacutetica herme-

necircutica sociolinguiacutestica estruturalismo anaacutelise cognitiva performativa e simboacutelica

Os participantes do seminaacuterio eram pesquisadores com forte repertoacuterio psicanaliacutetico

mas que tinham tambeacutem conduzido trabalhos etnograacuteficos de campo Aleacutem disso Te-

dlock procurou incluir antropoacutelogos linguistas que estavam interessados em discutir

questotildees psicodinacircmicas Dos trabalhos expostos nesse seminaacuterio Tedlock (1987a) or-

ganizou um livro - Dreaming Anthropological and psychological interpretations ndash que se

tornou referecircncia sobre a articulaccedilatildeo dos dois veacutertices de estudo sobre os sonhos

Nessa obra a autora enfatiza que natildeo eacute suficiente conhecer a respeito do que as pessoas

sonham eacute necessaacuterio saber como e que partes de suas experiecircncias oniacutericas elas co-

municam aos outros bem como o sentido desse processo de compartilhamento Como

vimos em nossa cultura ndash chamada ldquoindustrialrdquo ou ldquoocidentalrdquo ndash os espaccedilos de com-

547Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

partilhamento de sonhos ficaram quase que exclusivamente sob custoacutedia da instituiccedilatildeo

da psicoterapia Pouco ou quase nada se constata do ponto de vista de processos de

compartilhamento e significaccedilatildeo social dos sonhos

A autora nos informa ainda que os antropoacutelogos abandonaram as tradicionais cate-

gorizaccedilotildees dos sonhos de pessoas ldquopreacute-literaacuteriasrdquo ldquotribaisrdquo ldquotradicionaisrdquo ou ldquocampo-

nesasrdquo em contraste com os sonhos de pessoas ldquoliteratasrdquo ldquourbanasrdquo ldquomodernasrdquo ou

ldquoindustriaisrdquo Hoje compreende-se que essa maneira tipoloacutegica de classificar sonhos

desqualifica a experiecircncia de pessoas de outras culturas que vivem na mesma contem-

poraneidade dos pesquisadores O uso do tempo tipoloacutegico que ficcionalmente coloca

algumas pessoas em um quadro temporal anterior ao nosso funciona como um ins-

trumento de distanciamento tal como se faz por exemplo quando se diz que existem

sociedades que praticam uma economia da idade meacutedia Os antropoacutelogos culturais hoje

estatildeo interessados no tempo intersubjetivo no qual todos os participantes envolvidos

satildeo coetacircneos ou seja compartilham o mesmo tempo O foco corrente nos proces-

sos comunicativos na antropologia cultural demanda que a coetaneidade seja criada e

mantida natildeo somente no campo mas tambeacutem no processo de escrita do relatoacuterio de

pesquisa Assim por exemplo o antropoacutelogo Robert Dentan (citado por Tedlock 1991)

ao discutir o ldquoprinciacutepio dos contraacuteriosrdquo segundo o qual os sonhos indicam o oposto do

que eles aparentam notou que os praticantes deste tipo de interpretaccedilatildeo dos sonhos in-

cluiacuteam pessoas tatildeo distantes quanto aquelas pertencentes agraves comunidades dos Ashanti

Malays Maori Buffalo (do Estado de New York) dos polacos-americanos de moccedilas de

escolas paroquiais de psicanalistas dos Semai e Zulu O autor conclui entatildeo que pelo

menos alguns americanos compartilham um mesmo princiacutepio de interpretaccedilatildeo dos

sonhos com pessoas que vivem em locais distantes e exoacuteticos

Em muitos sistemas interpretativos de sonhos acredita-se que a experiecircncia do sonhar

tenha uma conexatildeo iacutentima ateacute mesmo causal com a vida futura do sonhador Contudo

eacute importante lembrar que tais interpretaccedilotildees satildeo frequentemente provisoacuterias que nem

todas as pessoas em uma dada sociedade colocam seu destino em tais interpretaccedilotildees

e que em algumas sociedades somente certos indiviacuteduos satildeo credenciados para a ex-

periecircncia profeacutetica ou sonhos preacute-cognitivos Deve-se observar que sistemas de inter-

pretaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos natildeo satildeo uma caracteriacutestica de sociedades ldquotribaisrdquo ldquonatildeo

ocidentaisrdquo ou ldquonatildeo industriaisrdquo Antropoacutelogos culturais que tecircm estudado a sociedade

americana encontraram em sonhadores da classe meacutedia a crenccedila de que tiveram so-

548

nhos profeacuteticos ou preacute-cognitivos obtendo informaccedilatildeo sobre eventos futuros o que

demonstra que essa forma de interpretar sonhos natildeo eacute rara nas sociedades ocidentais

(Tedlock 1991)

A mudanccedila na estrateacutegia de pesquisa no sentido de dirigir a atenccedilatildeo agrave problemaacutetica da

representaccedilatildeo comunicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dos sonhos assim chamados ldquonatildeo ociden-

taisrdquo ocorreu na antropologia por diversas razotildees Em primeiro lugar os antropoacutelogos

culturais tecircm criticado as pesquisas realizadas por meio de questionaacuterios nas quais os

dados satildeo obtidos com o propoacutesito de testar teorias ocidentais concernentes a universais

na psicologia humana Perde-se de vista por exemplo o fato de que amostras de ques-

tionaacuterios agregam respondentes que satildeo profundamente desconfiados do pesquisador

com aqueles que natildeo o satildeo como se a suspeita natildeo fizesse diferenccedila alguma na validade

de suas respostas (Tedlock 1991) Aleacutem disso o propoacutesito de comparar conteuacutedos extra-

iacutedos de um relato oniacuterico deixa de considerar importantes fenocircmenos tais como ritmo

tons de voz gestos e respostas da audiecircncia que acompanham as narrativas oniacutericas

Rotular certas experiecircncias oniacutericas de ldquoprofeacuteticasrdquo ou ldquopreacute-cognitivasrdquo por exemplo

natildeo explica como essas e outras experiecircncias oniacutericas satildeo usadas individualmente e

culturalmente numa sociedade

Dentan (citado por Tedlock 1991) indica ainda uma outra razatildeo para o abandono das

anaacutelises de conteuacutedo pelos antropoacutelogos o treinamento formal em linguiacutestica os enco-

raja a rejeitar o suposto baacutesico da pesquisa estatiacutestica ou seja que o significado reside

mais nas palavras do que nos contextos A criacutetica repousa no axioma baacutesico da semacircnti-

ca conhecido como a ldquopremissa da natildeo-identidaderdquo que declara que a palavra natildeo eacute um

objeto Narrativas de sonhos natildeo satildeo sonhos assim narrar ou dramatizar sonhos natildeo

significam recuperar experiecircncias oniacutericas Aleacutem disso siacutembolos oniacutericos tomados iso-

ladamente podem ser desorientadores se o pesquisador natildeo despender certo tempo de

observaccedilatildeo e interaccedilatildeo dentro da cultura a fim de obter suficientes detalhes contextuais

tomar peacute do conhecimento local e produzir uma descriccedilatildeo precisa daquela cultura for-

mulando significados que sejam dependentes do contexto Experiecircncias com o sonhar

social (social dreaming) consideram para o processo de significaccedilatildeo dos sonhos e de

suas associaccedilotildees o contexto e circunstacircncias nas quais os participantes estatildeo inseridos

(conforme Gui 2010 Lawrence 1998 2003 2005 2007 Neri 2003)

549Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

Em face do exposto antropoacutelogos natildeo tratam relatos de sonhos apenas como objetos

etnograacuteficos a serem usados como dados brutos para hipoacuteteses comparativas Eles vatildeo

a campo por longos periacuteodos de tempo e com amplos interesses de pesquisa por exem-

plo interessam-lhes a religiatildeo e a visatildeo de mundo de uma dada sociedade a performance

de cura ou a construccedilatildeo do eu e da personalidade Vivendo na comunidade os antro-

poacutelogos aprendem natildeo apenas a linguagem mas tambeacutem como interagir apropriada-

mente e talvez mais importante do que tudo acabam por participar de vaacuterios dramas

sociais formais e informais Eventualmente encontram-se compartilhando o cotidiano

de uma famiacutelia ou se deparam com um xamatilde ou algum outro inteacuterprete de sonhos

Caso um evento ou drama social desperte a atenccedilatildeo do antropoacutelogo ele seraacute registrado

em cadernos de campo poderaacute eventualmente ser registrado em aacuteudio ou em viacutedeo

Uma vez transcritos tais registros o pesquisador poderaacute questionar o narrador de so-

nhos que pode ou natildeo ser o proacuteprio sonhador sobre o significado a significacircncia e o

uso do sonho contado (Tedlock 1991)

Pode-se observar entatildeo que essa mudanccedila na estrateacutegia de pesquisa ou seja deixar de

considerar os sonhos como objetos fixos e passar a estudar naturalmente as situaccedilotildees

que os envolvem - compartilhamento representaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo de sonhos - eacute parte

de um amplo movimento dentro da antropologia no qual tem havido um raacutepido cresci-

mento de interesse em anaacutelises centradas na praacutetica interaccedilatildeo diaacutelogo experiecircncia e

performance em parceria com os agentes individuais de todas essas atividades

Tedlock (1987a 1087b 1991) conclui que estudando o compartilhamento dos sonhos

e a transmissatildeo das teorias sobre o sonhar em seu contexto social pleno como eventos

comunicativos incluindo as interaccedilotildees dialoacutegicas naturais que ocorrem nesses eventos

pesquisador e pesquisados engajam-se na criaccedilatildeo de uma realidade social que os impli-

ca igualmente

Outro desenvolvimento da deacutecada de 1990 foi o uso de sonhos de pesquisadores e in-

formantes para propoacutesitos de pesquisas etnograacuteficas Os sonhos passaram a ser vistos

como informaccedilotildees sobre a orientaccedilatildeo subjetiva e a posiccedilatildeo cultural do antropoacutelogo as-

sim como sobre o encontro subjetivo entre antropoacutelogo e informante Os pesquisadores

de campo aleacutem de participarem dos contextos nativos aprendem natildeo somente sobre

o uso cultural local das experiecircncias oniacutericas mas tambeacutem prestam atenccedilatildeo em seus

proacuteprios sonhos Esta praacutetica mais recente os tem ajudado a tornarem-se conscientes

550

de suas respostas inconscientes agraves pessoas e agrave cultura que eles estatildeo tentando com-

preender e descrever (Tedlock 1991) Diriacuteamos em linguagem psicanaliacutetica que os

antropoacutelogos estatildeo aprendendo a fazer uso da contratransferecircncia como instrumento

de compreensatildeo do fenocircmeno estudado De fato Devereux publicou em 1967 um im-

portante livro sobre os aspectos contratransferenciais implicados na pesquisa social A

obra intitulada ldquoFrom anxiety to method in the behavioural sciencesrdquo trouxe agrave luz o reco-

nhecimento da importacircncia dos interesses de classe e da nacionalidade do pesquisador

que incidem nas dimensotildees inconscientes do trabalho de construccedilatildeo do conhecimento

(Giami 2001)

Muitos antropoacutelogos tecircm se apercebido da importacircncia de sua subjetividade na criaccedilatildeo

da realidade que estatildeo estudando Por exemplo Waud Kracke antropoacutelogo americano

durante seu trabalho de campo no Brasil durante os anos de 1967-1968 com os iacutendios

Kagwahiv manteve um diaacuterio contendo suas reaccedilotildees pessoais sonhos e associaccedilotildees

Depois analisou sua transferecircncia pessoal de seus relacionamentos familiares para cer-

tos indiviacuteduos Kagwahiv Outros antropoacutelogos natildeo somente registram seus sonhos e

associaccedilotildees mas tecircm contado tambeacutem seus sonhos para membros da sociedade na qual

eles estatildeo trabalhando com o propoacutesito de que os interpretem segundo seus referenciais

culturais (Tedlock 1991)

Quando os antropoacutelogos prestam atenccedilatildeo para seus proacuteprios sonhos durante seu traba-

lho de campo eles se deparam com experiecircncias oniacutericas que os ajudam a integrar seus

inconscientes com o senso consciente de continuidade pessoal em uma situaccedilatildeo total-

mente nova e ateacute mesmo ameaccediladora Laura Nadar antropoacuteloga americana (citada por

Tedlock 1991) reportou que durante sua pesquisa entre os iacutendios Zapotec no Meacutexico o

volume de seus sonhos e sua habilidade de lembraacute-los aumentaram significativamente

Aleacutem disso seus sonhos referiam-se quase que exclusivamente agraves suas experiecircncias

como crianccedila e jovem adulta de volta aos EEUU A pesquisadora observou ainda que

seu estado emocional geral parecia estar mais relacionado agraves experiecircncias anteriores ao

seu campo com os Zapotec Nadar interpretou seus sonhos como se eles lhe estivessem

lembrando para natildeo perder a sua individualidade completamente e natildeo ser possuiacuteda

pela alteridade Zapotec Seus sonhos lhe resseguravam que ela ainda era a mesma pes-

soa que quando crianccedila

551Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

Outro exemplo citado ainda por Tedlock (1991) refere-se a Malinowski ldquopai da obser-

vaccedilatildeo participanterdquo metodologia chave da antropologia cultural contemporacircnea e am-

plamente utilizada em estudos psicoloacutegicos Em seus diaacuterios de campo do periacuteodo de

1914 a 1915 e 1917 a 1918 ele menciona cerca de 20 sonhos O conjunto desses sonhos

situa-se usualmente na Polocircnia e as pessoas que aparecem mais frequentemente satildeo

sua matildee e seus amigos de infacircncia incluindo uma namorada sobre a qual expressou

culpa por tecirc-la abandonado Nenhum dos sonhos referia-se agrave cultura Trobiandesa na

qual trabalhou durante esses periacuteodos Aparentemente segundo a autora Malinowski

natildeo estabeleceu com sucesso uma ldquosegunda identidaderdquo no campo

Em contraste Roger Bastide ilustra perfeitamente a implicaccedilatildeo do pesquisador com

seu campo de estudo O autor nos daacute um depoimento sobre suas vivecircncias oniacutericas

ocorridas entre Brasil e Franccedila uma circunstacircncia externa a distacircncia de sua paacutetria

ocasionada pela guerra faz com que em seus sonhos surja a ldquoFranccedila noturnardquo carac-

terizada por lembranccedilas da infacircncia da famiacutelia das amizades de conviacutevio e formaccedilatildeo

No retorno agrave paacutetria o inverso se daacute o surgimento de imagens dos deuses dos cultos

afro-brasileiros deixados para traacutes (deixados mesmo) No Brasil o socioacutelogo natildeo podia

esquecer-se de suas origens a trama de sua proacutepria constituiccedilatildeo enquanto sujeito mas

na Franccedila tambeacutem jaacute natildeo poderia esquecer-se das profundas influecircncias emocionais

oriundas do seu conviacutevio com os participantes de sua pesquisa no Brasil Influecircncias

essas que frutificariam em suas ideias e trabalhos posteriores

Conclusatildeo

Os trabalhos da antropologia social nos comunicam a necessidade de que nosso conhe-

cimento psicoloacutegico a respeito dos sonhos seja complementado por uma ldquosociologia dos

sonhosrdquo fazendo-nos lembrar de algo que frequentemente esquecemos ou que natildeo te-

mos na devida conta que os seres humanos ao serem afetados por suas circunstacircncias

histoacuterico-sociais produzem figuraccedilotildees oniacutericas ndash imagens e enredos simboacutelicos ndash que

falam natildeo somente dos dramas biograacuteficos individuais mas tambeacutem das tramas sociais

e culturais das quais esses indiviacuteduos participam A perspectiva de que os sonhos par-

tem de nossa subjetividade individual mas que apontam para aspectos das contingecircn-

cias sociais em que estamos imersos pode ser enriquecida por meio de estudos que bus-

quem capturar esse pano de fundo de nossas vivecircncias pessoais tal como fazem outras

552

sociedades natildeo aderentes ao paradigma teacutecnico-cientiacutefico de nossa cultura ocidental

ao enfatizar o caraacuteter social e cultural das produccedilotildees oniacutericas Estudos empreendidos

a partir da deacutecada de 1980 com o constructo do ldquosonhar socialrdquo apontam nessa direccedilatildeo

(por ex Gui 2010 Lawrence 1998 2003 2005 2007 Neri 2003)

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Alegre Artmed

555

556

Coleccedilatildeo Psicologia Cliacutenica e Cultura UnB

Organizadoras

Terezinha de Camargo VianaGlaacuteucia Starling DinizLiana Fortunato Costa

Valeska Zanello

Psicologia Cliacutenica eCultura Contemporacircnea

Volum

e I C

oleccedilatildeo Psicologia C

liacutenica e C

ultu

ra Un

BP

sicologia Cliacuten

ica e Cultura C

ontem

poracircnea

wwwpsiccunbbr

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo emPsicologia Cliacutenica e Cultura

Instituto de Psicologia

Volume I

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  • Sobre os autores
  • Apresentaccedilatildeo
  • Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida
    • Teresa Cristina O Carreteiro
      • Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual
        • Bruno Nogueira
        • Liana Fortunato Costa
          • A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil
            • Maria Inecircs Gandolfo
            • Raquel Cairus
              • Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica
                • Elvia Taracena
                  • Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo
                    • Teresa Cristina O C Carreteiro
                    • Alan Teixeira Lima
                    • Bianca Cauper Bohnert
                    • Claacuteudia Valente Lopes
                    • Daniela Serrina de Lima Rodrigues
                    • Leticia de Luna Freire
                    • Luciana Ribeiro Barbosa
                    • Marcos Ceacutesar da Rocha Salema
                      • De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento
                        • Luiz Felipe Castelo Branco da Silva
                        • Maria Faacutetima Olivier Sudbrack
                          • Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila
                            • Adriana Barbosa Soacutecrates
                            • Maria Faacutetima Olivier Sudbrack
                              • Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees
                                • Eugene Enriquez
                                  • Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea
                                    • Luiz Augusto Monnerat Celes
                                      • Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010
                                        • Christian Ingo Lenz Dunker
                                          • Corpo em psicanaacutelise e obesidade
                                            • Eliana Rigotto Lazzarini
                                            • Carolina Franccedila Batista
                                            • Terezinha de Camargo Viana
                                              • Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea
                                                • Maacutercia Cristina Maesso
                                                • Daniela Scheinkman Chatelard
                                                • Andrea Horteacutelio Fernandes
                                                  • Narcisismo e estados limites
                                                    • Maacutercia Teresa Portela de Carvalho
                                                    • Eliana Rigotto Lazzarini
                                                    • Terezinha de Camargo Viana
                                                      • O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho
                                                        • Tainaacute Pinto
                                                        • Tania Rivera
                                                          • A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo
                                                            • Dione de Medeiros Lula Zavaroni
                                                            • Terezinha de Camargo Viana
                                                            • Massimo Ammaniti
                                                              • O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado
                                                                • Maria Izabel Tafuri
                                                                • Gilberto Safra
                                                                  • Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias
                                                                    • Valeska Zanello
                                                                    • Francisco Martins
                                                                      • Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais
                                                                        • Laiacutes Macecircdo Vilas Boas
                                                                        • Deise Matos do Amparo
                                                                          • Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional
                                                                            • Maria Izabel Tafuri
                                                                            • Dione Lula Zavaroni
                                                                            • Maria do Rosaacuterio Dias Varela
                                                                            • Maria Cicilia de Carvalho Ribas
                                                                            • Claude Schauder
                                                                            • Janaiacutena Franccedila
                                                                              • Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves
                                                                                • Ileno Iziacutedio da Costa
                                                                                • Neriacutecia Regina de Carvalho
                                                                                  • Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores
                                                                                    • Juacutelia Sursis Nobre Ferro Bucher-Maluschke
                                                                                    • Camila de Aquino Morais
                                                                                    • Deise Matos do Amparo
                                                                                    • Maria Aparecida Penso
                                                                                    • Karl Christoph Kaumlppler
                                                                                      • Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea
                                                                                        • Glaacuteucia Diniz
                                                                                        • Terezinha Feacuteres-Carneiro
                                                                                          • Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo
                                                                                            • Sheila Giardini Murta
                                                                                            • Zilda A P Del Prette
                                                                                            • Almir Del Prette
                                                                                            • Valeska Zanello
                                                                                              • O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise
                                                                                                • Marcelo Tavares
                                                                                                • Blanca Susana Guevara Werlang
                                                                                                  • Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica
                                                                                                    • Mauricio S Neubern
                                                                                                      • Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios
                                                                                                        • Meirilane Naves
                                                                                                        • Marcelo Tavares
                                                                                                        • Alexandre Domanico
                                                                                                        • Anna Elisa de Villemor-Amaral
                                                                                                          • Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia
                                                                                                            • Roque Gui
                                                                                                            • Vera Lucia Decnop Coelho
Page 2: Autorização concedida ao Repositório da Universidade de ......nizadoras) -- Brasília: Liber Livros, 2012. 555p. (Coleção Psicologia Clínica e Cultura UnB 1) ISBN: 978-85-7963-114-6

Coleccedilatildeo Psicologia Cliacutenica e Cultura UnB

Organizadoras

Terezinha de Camargo VianaGlaacuteucia Starling DinizLiana Fortunato Costa

Valeska Zanello

Psicologia Cliacutenica eCultura Contemporacircnea

Volum

e I C

oleccedilatildeo Psicologia C

liacutenica e C

ultu

ra Un

BP

sicologia Cliacuten

ica e Cultura C

ontem

poracircnea

wwwpsiccunbbr

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo emPsicologia Cliacutenica e Cultura

Instituto de Psicologia

Volume I

P974 Psicologia cliacutenica e cultura contemporacircnea Terezinha de Camargo Viana et all (orga-nizadoras) -- Brasiacutelia Liber Livros 2012555p (Coleccedilatildeo Psicologia Cliacutenica e Cultura UnB 1)ISBN 978-85-7963-114-61 Psicologia cliacutenica 2 Psicanaacutelise 3 Psicoterapia e Tratamento 4 Saude Mental 5 Trans-tornos alimentares 7 Drogadiccedilatildeo Adolescecircncia 9 Gecircnero e violecircncia Avaliaccedilatildeo Psicoloacutegica ITerezinha de Camargo Viana IIGlaacuteucia Starling Diniz III Liana Fortunato Costa IV Valeska ZanelloV TiacutetuloCDU ndash 1599364658=1331=1343

Iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico

1 Psicologia Psicoterapia Problemas sociais 15993646582 Problemas sociais Psicologia 3646581599

REITOR

Ivan Marques de Toledo Camargo

DECANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO

Jaime Martins de Santana

DIRETOR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA

Hartmut Gunther

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CLIacuteNICA

Balsem Pinelli Junior

COORDENADORA DO PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA E CULTURA

Terezinha de Camargo Viana

FUNDACcedilAtildeO UNIVERSIDADE DE BRASIacuteLIA

CONSELHO EDITORIAL

Bernadete A Gatti

Iria Brzezinski

Maria Ceacutelia de Abreu

Osmar Favero

Pedro Demo

Rogeacuterio de Andrade Coacuterdova

Sofia Lerche Vieira

PROJETO GRAacuteFICO CAPA E DIAGRAMACcedilAtildeO

Leandro Celes ltleandrocelesgmailcomgt

EDITORA

Liber Livro Editora Ltda

wwwliberlivrocombr

Organizaccedilatildeo

Terezinha de Camargo Viana

Glaacuteucia Starling Diniz

Liana Fortunato Costa

Valeska Zanello

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura

Universidade de Brasiacutelia

2012

Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea

Coleccedilatildeo Psicologia Cliacutenica e Cultura UnB - Volume I

Sumaacuterio

Sobre os autores 10

Apresentaccedilatildeo 26

Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida 32

Teresa Cristina O Carreteiro

Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual 47

Bruno NogueiraLiana Fortunato Costa

A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil 67

Maria Inecircs GandolfoRaquel Cairus

Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica 87

Elvia Taracena

Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo 141

Teresa Cristina O C CarreteiroAlan Teixeira LimaBianca Cauper BohnertClaacuteudia Valente Lopes Daniela Serrina de Lima RodriguesLeticia de Luna FreireLuciana Ribeiro BarbosaMarcos Ceacutesar da Rocha Salema

De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento 155

Luiz Felipe Castelo Branco da Silva Maria Faacutetima Olivier Sudbrack

Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila 171

Adriana Barbosa Soacutecrates Maria Faacutetima Olivier Sudbrack

Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees 193

Eugene Enriquez

Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea 204

Luiz Augusto Monnerat Celes

Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010 227

Christian Ingo Lenz Dunker

Corpo em psicanaacutelise e obesidade 242

Eliana Rigotto Lazzarini Carolina Franccedila Batista Terezinha de Camargo Viana

Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea 256

Maacutercia Cristina MaessoDaniela Scheinkman ChatelardAndrea Horteacutelio Fernandes

Narcisismo e estados limites 268

Maacutercia Teresa Portela de CarvalhoEliana Rigotto Lazzarini Terezinha de Camargo Viana

O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho 281

Tainaacute Pinto Tania Rivera

A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo 297

Dione de Medeiros Lula ZavaroniTerezinha de Camargo VianaMassimo Ammaniti

O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado 313

Maria Izabel TafuriGilberto Safra

Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias 330

Valeska ZanelloFrancisco Martins

Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais 349

Laiacutes Macecircdo Vilas BoasDeise Matos do Amparo

Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional 366

Maria Izabel TafuriDione Lula ZavaroniMaria do Rosaacuterio Dias VarelaMaria Cicilia de Carvalho RibasClaude Schauder Janaiacutena Franccedila

Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves 380

Ileno Iziacutedio da CostaNeriacutecia Regina de Carvalho

Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores 414

Juacutelia Sursis Nobre Ferro Bucher-MaluschkeCamila de Aquino MoraisDeise Matos do AmparoMaria Aparecida PensoKarl Christoph Kaumlppler

8

Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea 430

Glaacuteucia DinizTerezinha Feacuteres-Carneiro

Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo 448

Sheila Giardini MurtaZilda A P Del Prette Almir Del Prette Valeska Zanello

O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise 470

Marcelo TavaresBlanca Susana Guevara Werlang

Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica 494

Mauricio S Neubern

Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios 514

Meirilane NavesMarcelo TavaresAlexandre DomanicoAnna Elisa de Villemor-Amaral

Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia 532

Roque GuiVera Lucia Decnop Coelho

9

10

Sobre os autoresAdrianaBarbosaSoacutecrates

Universidade de Brasiacutelia

Doutoranda em Psicologia Cliacutenica e Cultura - PPG PsiCCPCLIPUnB Mestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura PPGPsiCCPCLIPUnB Especialista em Teoria Psicanaliacutetica absocratesgmailcom

AlanTeixeiraLimaUniversidade Federal Fluminense - UFF

Atua como psicoacutelogo cliacutenico nos seguintes contextos chefe da Seccedilatildeo Psicossocial na UFF membro da Equipe de Referecircncia Infanto-juvenil para accedilotildees de atenccedilatildeo ao uso de Aacutelcool e outras Drogas (ERIJAD) e membro do Nuacutecleo de Apoio agrave Estrateacutegia Sauacutede da Famiacutelia (NASF) Realiza pesquisas sobre as seguintes temaacuteticas atenccedilatildeo psicssocial trabalho drogas juventude violecircncia cidadania gestatildeo e poliacuteticas puacuteblicas

AlexandreDomanicoFaculdade de Ciecircncias Sociais e Tecnoloacutegicas ndash FACITEC

Escola Nacional de Administraccedilatildeo Puacuteblica ndash ENAP

Professor na graduaccedilatildeo em Administraccedilatildeo e na poacutes-graduaccedilatildeo em Gestatildeo de Pessoas FACITEC Professor na poacutes-graduaccedilatildeo em Gestatildeo de Pessoas ENAP Especialista em Administraccedilatildeo Estrateacutegica de Sistemas de Informaccedilotildees FGV Mestre em Psicologia Cliacutenica UnB Consultor organizacional desde 1996 Psicoacutelogo Atuaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica com abordagem psicodinacircmica (2000-2010) domanicoymailcom

11Sobre os autores

AlmirDelPretteUniversidade Federal de Satildeo Carlos

Professor Titular Orientador nos Programas de Educaccedilatildeo Especial e Psicologia Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Experiecircncia na aacuterea de Psicologia com ecircnfase em Processos Grupais e de Comunicaccedilatildeo Temas de pesquisa habilidades sociais competecircncia social assertividade intervenccedilatildeo em grupo e desenvolvimento interpessoal adpretteufscarbr

AndreaHorteacutelioFernandesUniversidade Federal da Bahia

Professora adjunta do Instituto de Psicologia da UFBA onde atua na graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo Poacutes-doutora em Psicologia Cliacutenica e Cultura PPGPsiCCPCLIPUnB Mestre em Psicanaacutelise Universiteacute de Paris VIII Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanaacutelise Universiteacute de Paris VI Psicanalista ahfernandes03gmailcom

AnnaElisadeVillemor-AmaralUniversidade Satildeo Francisco - Faculdade de Psicologia da PUCSatildeo Paulo

Professora Associada Doutora do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia da Universidade Satildeo Francisco Professora da Faculdade de Psicologia da PUCSatildeo Paulo Graduaccedilatildeo em psicologia PUCSP Mestrado e doutorado em Ciecircncias UNIFESPEPM Poacutes-doutorado Universidade de Savoia Franccedila (2003) Liacuteder do grupo de pesquisa Avaliaccedilatildeo Psicoloacutegica em Sauacutede Mental Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq Coordenadora do GT de Meacutetodos Projetivos da ANPEPP (2008 a 2012) Desenvolve pesquisas na aacuterea de psicologia da sauacutede e psicopatologia com Meacutetodos Projetivos annavillemorusfedubr

BiancaCauperBohnertUniversidade Federal Fluminense - UFF

Aluna de Graduaccedilatildeo do Curso de Psicologia UFF bolsista da UFF Estagiaacuteria da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro

12

BlancaSusanaGuevaraWerlangPontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Diretora (2005 a 2009) e Professora Titular da Faculdade de Psicologia da PUCRGS Psicoloacuteloga Especializaccedilatildeo em Diagnoacutestico Psicoloacutegico Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade PUCRGS Doutorado em Ciecircncias MeacutedicasSauacutede Mental Universidade Estadual de Campinas Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq Membro do Grupo de Trabalho instituiacutedo para implantar a Estrateacutegia Nacional de Prevenccedilatildeo ao Suiciacutedio do Ministeacuterio da Sauacutede Brasil (2005- 2006) Membro da Comissatildeo Consultiva em Avaliaccedilatildeo Psicoloacutegica do Conselho Federal de Psicologia bwerlangpucrsbr

BrunoNogueiradaSilvaCostaUniversidade de Brasiacutelia

Mestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura - PPG PsiCCPCLIPUnB Psicoacutelogo do Centro de Atenccedilatildeo e Estudos Psicoloacutegicos (CAEP) do Instituto de Psicologia da UnB psico_brunocostayahoocombr

CamiladeAquinoMoraisUniversidade de Brasiacutelia

Doutoranda em Psicologia Cliacutenica e Cultura - PPG PsiCCPCLIPUnB Bolsista do CNPqPsicoacuteloga Mestre em Psicologia do Desenvolvimento UFRGS camilasmoraisgmailcom

CarolinaFranccedilaBatistaUniversidade de Brasiacutelia

Mestranda do Programa Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura - Bolsista do CNPq Especializaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica UnB Psicoacuteloga Cliacutenica carolinapsifbgmailcom

13Sobre os autores

ChristianIngoLenzDunkerUniversidade de Satildeo Paulo

Professor Associado do Departamento de Psicologia Cliacutenica do Instituto de Psicologia da USP Poacutes-doutorado - Manchester Metropolitam University Livre Docecircncia - Instituto de Psicologia da USP Psicanalista Analista Membro da Escola de Psicanaacutelise do Forum do Campo Lacaniano Autor de Estrutura e constituiccedilatildeo da cliacutenica psicanalitica - Precircmio Jabuti 2012 ndash Melhor Livro de 2012 em Psicologia e Psicanaacutelise

ClaudeSchauderUniversidade de Strasbourg-Franccedila

Professor Associado da Faculdade de Psicologia da Universidade de Strasbourg-Franccedila Orientador de Mestrado e de Doutorado Psicoacutelogo Presidente da Associaccedilatildeo ldquoLire Dolto aujourdrsquohuirdquo-Paris-Franccedila Coordenador da Pesquisa Internacional sobre ldquoPrevenccedilatildeo em Parentalidade estudo comparativo inter-culturalrdquo e do Plano de Perinatalidade na Franccedila-2005-2007) ncschauderhotmailcom

ClaacuteudiaValenteLopesUniversidade Federal Fluminense - UFF

Psicoacuteloga

DanielaScheinkmanChatelardUniversidade de Brasiacutelia

Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Graduaccedilatildeo em Psicologia Universidade Santa Uacutersula Mestrado em Psicanalise Universite de Paris VIII Doutorado em Filosofia Universite de Paris VIII Autora do livro O Conceito de Objeto na Psicanaacutelise do fenocircmeno agrave escrita Ed Universidade de Brasiacutelia 2005 Membro fundador da Abebecirc - Associaccedilatildeo Brasileira de Estudos sobre o Bebecirc Temas de pesquisa transferecircncia constituiccedilatildeo subjetiva objeto sujeito gozo e desejo Analista membro da Escola dos Foacuteruns do Campo Lacaniano-IF dchatelardgmailcom

14

DanielaSerrinadeLimaRodriguesUniversidade Federal Fluminense - UFF

Psicoacuteloga

DeiseMatosdoAmparoUniversidade de Brasiacutelia

Professora do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Doutora em Psicologia - UnB Poacutes-Doutorado - Laboratoacuterio de Psicopatologia Cliacutenica da Universidade Paris Descartes - Franccedila Bolsista de Produtividade do CNPq e pesquisadora da FAPDF Temas de pesquisa psicopatologia meacutetodo de Rorschach psicodiagnoacutestico risco psicossocial violecircncia adolescecircncia Presidente da Associaccedilatildeo Brasileira de Rorschach e Meacutetodos Projetivos - ASBRO (20112014) deiseamparomatosgmailcom

DioneLulaZavaroniUniversidade de Brasiacutelia

Psicoacuteloga Doutora em Psicologia Cliacutenica e Cultura-UnB Pesquisadora do Laboratoacuterio de Psicanaacutelise e Subjetivaccedilatildeo e do PPGPsiCC Coordenadora do Grupo de Atendimento a Crianccedilas com Dificuldades e Transtornos da AlimentaccedilatildeoVice-coordenadora do Centro de Atendimento e Estudos Psicoloacutegicos CAEPIPUnB zavaroniunbbr

ElianaRigottoLazzariniUniversidade de Brasiacutelia

Professora Adjunto do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Doutorado em Psicologia e Mestrado em Psicologia Cliacutenica UnB Psicoacuteloga cliacutenica Especialista em Teoria Psicanaliacutetica - UnB e Psicodrama Terapecircutico - Federaccedilatildeo Brasileira de Psicodrama Temas de Pesquisa psicanaacutelise narcisismo e cultura contemporacircnea distuacuterbio alimentar (anorexia bulimia obesidade) e intervenccedilatildeo terapecircutica elianarlterracombr

15Sobre os autores

ElviaTaracenaUniversidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico

Profesora Investigadora de la Facultad de Estudios Superiores-Iztacala de la Universidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico etaracenaryahoocom

EugeneEnriquezUniversiteacute Paris VII ndash Denis Diderot

Professor emeacuterito do Laboratoire de Changement Social Redator chefe da ldquoNouvelle Revue de Psychosociologierdquo Fundador do CIRFIP ndash Centre International de Recherche Formation et Intervention Psychosociologiques

FranciscoMartinsUniversidade Catoacutelica de Brasiacutelia - Universidade de Brasiacutelia

Professor na Graduaccedilatildeo e na Poacutes-graduaccedilatildeo da Universidade Catoacutelica de Brasiacutelia Professor Titular aposentado da Universidade de Brasiacutelia e Pesquisador Colobaorador Senior doDepartamento de Psicologia Clinica e do PPG PsiCC Mestrado em Psicologia pela UnB (1982) Mestrado (1984) e Doutorado em Psicologia Universidade de Louvain (1986) Poacutes-doutorado na Universidade de Louvain (1998) e Kent University (Inglaterra) Temas de pesquisa psicopatologia psicoterapia sauacutede mental linguagem atos de fala metaacutefora placebo e processos de cura fmartinsunbbr

GilbertoSafraUniversidade de Satildeo Paulo

Professor Titular do Instituto de Psicologia (USP) Professor assistente doutor da PUCSP Graduaccedilatildeo em Psicologia (1976) mestrado em Psicologia Cliacutenica pela Universidade de Satildeo Paulo (1984) e doutorado em Psicologia Cliacutenica pela Universidade de Satildeo Paulo (1990) Coordenador do LET- Laboratoacuterio de Estudos da Transicionalidade e do Instituto Sobornost Temas de pesquisa psicanalise psicanalise-clinica-winnicott psicologia psicanalise-winnicott e pesquisa- poacutesgraduaccedilatildeo

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GlaacuteuciaRibeiroStarlingDinizUniversidade de Brasiacutelia - UnB

Professora do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Graduaccedilatildeo em Psicologia UFMG Especializaccedilatildeo em Sauacutede Coletiva pela Escola de Sauacutede de Minas GeraisUFMGFIOCRUZ Mestrado e Doutorado no Marriage And Family Therapy Program - United States International UniversityAlliant International University EUA Temas de pesquisa famiacutelia casamento contemporacircneo interaccedilatildeo gecircnero casamento e trabalho gecircnero e violecircncia gecircnero e sauacutede mental gdinizunbbr

IlenoIziacutediodaCostaUniversidade de Brasiacutelia - UnB

Professor Adjunto do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Coordenador do Grupo Personna - Estudos e Pesquisas sobre perversatildeo psicotia e criminalidade e do Grupo de Intervenccedilatildeo Precoce nas Psicoses - GIPSI Presidente da Associaccedilatildeo de Sauacutede Mental do Cerrado (ASCER) Temas de pesquisa psicoses esquizofrenia psicopatologia sauacutede mental psicoterapias psicanaacutelise famiacutelia casal teoria sistecircmica filosofia da mente e da linguagem intervenccedilatildeo precoce nas psicoses poliacuteticas puacuteblicas em sauacutede mental aacutelcool e outras drogas luta antimanicomial e reforma psiquiaacutetrica ilenounbbr

JanaiacutenaFranccedilaUniversidade de Brasiacutelia - UnB

Doutoranda do Programa de Psicologia Cliacutenica e Cultura PCLIPUnB Pesquisadora do Laboratoacuterio de Psicopatologia e Psicanaacutelise Membro da equipe da pesquisa ldquoPrevenccedilatildeo em Parentalidade estudo comparativo interculturalrdquo Psicoacuteloga janainaffcyahoocomb

17Sobre os autores

JuacuteliaSursisNobreFerroBucher-MaluschkeUniversidade Catoacutelica de Brasiacutelia

Doutora em Psicologia e Sexologia pela Universidade Catoacutelica de Louvain Beacutelgica Fullbright Scholar na St Johnrsquos University New York EEUU Poacutes-doutorado na Universidade de Tuumlbigen Alemanha Professora Emeacuterita da Universidade de Brasiacutelia UNB Professora da Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia - UCB Docente colaboradora do PPGPsiCC Coordenadora do GT Famiacutelia Processos de Desenvolvimento e Promoccedilatildeo da Sauacutede da Associaccedilatildeo Nacional de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia ( ANPEPP) psibuchergmailcom

KarlChristophKaumlpplerTechnische Universitaumlt Dortmund

Psicoacutelogo Albert-Ludwigs-Universitaumlt Freiburg (1987) Mestrado Childrens Rights - Universite de Fribourg (2004) Mestrado Psicologia (1990) e Doutorado em Psicologia - Albert-Ludwigs-Universitaumlt Freiburg (1994) Diretor do Conruhr Ameacuterica-Latina - Universitaumltsallianz Metropole Ruhr Professor - Technische Universitaumlt Dortmund

LaiacutesMacecircdoVilasBoasUniversidade de Brasiacutelia

Mestranda do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura Bolsista de Mestrado - CNPq Psicoacuteloga

LeticiadeLunaFreireUniversidade Federal Fluminense - UFF

Psicoacuteloga Pesquisadora da UFF Doutorado em Antropologia UFF Mestrado em Psicologia Social UERJ

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LianaFortunatoCostaUniversidade de Brasiacutelia

Professora do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura - PPGPsiCCPCLIPUnB Psicoacuteloga Terapeuta Conjugal e Familiar Psicodramatista Doutora em Psicologia Cliacutenica pela USP Poacutes-doutorado em Psicossociologia ndash Histoacuteria de Vida UFF Temas de pesquisa relaccedilotildees interpessoais famiacutelia abuso sexual comunidade adolescecircncia exclusatildeo social e violecircncia sexual lianafterracombr

LucianaRibeiroBarbosaUniversidade Federal Fluminense - UFF

Psicoacuteloga Curso de Especializaccedilatildeo em Sauacutede da Famiacutelia pela ENSP - Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica Seacutergio Arouca FIOCRUZ Trabalha no NASF-Nuacutecleo de Apoio agrave Sauacutede da Famiacutelia (Janauacuteba-MG)

LuizAugustoMonneratCeles Universidade de Brasiacutelia

Pesquisador Colaborador Senior Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura (IP-UnB) Professor Titular aposentado do Departamento de Psicologia Cliacutenica da UnB tendo atuado na graduaccedilatildeo poacutes-graduaccedilatildeo estrito senso e lato senso Doutor em Psicologia Cliacutenica - PUC-Rio Poacutes-doutorados - UCL Beacutelgica 1996 PUC-SP 2003 PUC-Rio 2010 Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Temas de pesquisa cliacutenica psicanaliacutetica temporalidade sexualidade pulsatildeo Freud e processos de subjetivaccedilatildeo lamcelesgmailcom

LuizFelipeCasteloBrancodaSilvaCentro de Atenccedilatildeo Psicossocial em Aacutelcool e outras Drogas - Sobradinho II DF

Mestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura (PPGPsiCCPCLIPUnB Terapeuta Familiar e de Casais (PUCGO) Especialista em Teoria e Praacutetica Junguiana (UVA-RJ) Gerente do CAPSad-Sobradinho II Distrito Federal Docente do Centro Regional de Referecircncia - Universidade de Brasiacutelia

19Sobre os autores

MarceloTavaresUniversidade de Brasiacutelia

Professor Adjunto do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPG PsiCC PCLIPUnB Graduaccedilatildeo em psicologia - UFMG Mestre e Doutor em Psicologia Cliacutenica - United States International University Especialista em Psicanaacutelise - Teorias das Relaccedilotildees Objetais Washington School of Psychiatry Coordenador do Nuacutecleo de Intervenccedilatildeo em Crise e Prevenccedilatildeo do Suiciacutedio desde 1995 Membro do Grupo de Trabalho para implantar a Estrateacutegia Nacional de Prevenccedilatildeo ao Suiciacutedio do Ministeacuterio da Sauacutede Brasil (2005- 2006) Membro da Comissatildeo Consultiva em Avaliaccedilatildeo Psicoloacutegica do Conselho Federal de Psicologia Temas de pesquisa psicoterapia intervenccedilatildeo em crise e seus temas correlatos - a psicopatologia o psicodiagnoacutestico cliacutenico as teacutecnicas de intervenccedilatildeo e a prevenccedilatildeo em Sauacutede Mental marsatavaresgmailcom

MaacuterciaCristinaMaessoUniversidade de Satildeo Paulo

Doutora em Psicologia Cliacutenica pelo Instituto de Psicologia da USP Psicanalista Poacutes-doutoranda do Programa de Psicologia Cliacutenica e Cultura IP UnB maessomterracombr

MaacuterciaTeresaPorteladeCarvalhoUniversidade de Brasiacutelia

Pesquisadora Colaboradora Plena do Laboratoacuterio de Subjetivaccedilatildeo e Psicanaacutelise Professora Substituta do Departamento de Psicologia Cliacutenica Doutora em Psicologia Cliacutenica e Cultura (UnB) Especialista em Teoria Psicanaliacutetica e Gestalt Terapia cptmarciabrturbocombr

MarcosCeacutesardaRochaSalemaUniversidade Federal Fluminense - UFF

Psicoacutelogo

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MariaAparecidaPensoUniversidade Catoacutelica de Brasiacutelia

Professora do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia UCB Psicoacuteloga Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasiacutelia Poacutes-doutorado no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Universidade Federal Fluminense Assessora Teacutecnica do Nuacutecleo de Sauacutede do Adolescente da Secretaria de Sauacutede do Distrito Federal pensoucbbr

MariaCiciliadeCarvalhoRibasUniversidade Federal de Pernambuco

Professora Adjunta de Psicologia do CAV-UFPEDoutora em Psicologia Clinica Universite Paris 5 Pesquisadora colaboradora do projeto de pesquisa ldquoPrevenccedilatildeo em Parentalidade estudo comparativo interculturalrdquo ciciribahotmailcom

MariadoRosaacuterioDiasVarelaUniversidade Paulista ndash Campus Brasiacutelia

Professora titular e coordenadora do Curso de PsicologiaUnipBrasiacutelia Psicoacuteloga e psicanalista Doutora em Psicologia Cliacutenica e Cultura Pesquisadora do Projeto ldquoPrevenccedilatildeo em Parentalidade estudo comparativo interculturalrdquo conjuntamente com o Laboratoacuterio de Psicopatologia do IPUnB mrvarellahotmailcom

MariaFaacutetimaOlivierSudbrackUniversidade de Brasiacutelia

Professora Titular do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCC PCLIPUnB Coordenadora do Programa de Estudos e Atenccedilatildeo agraves Dependecircncias Quiacutemicas ndash PRODEQUI Doutora- Psicologia Universiteacute de Paris XIII Poacutes-Doutora em Psicossociologia Universiteacute Paris VII Especialista - Terapia Familiar e Psicologia Juriacutedica CEFA- Centre drsquoEtudes de la FamilleParis) Coordenadora - Comitecirc Gestor do Programa de Proteccedilatildeo de Adolescentes Ameaccedilados de MortePPCAAM DF mfosudbrackgmailcom

21Sobre os autores

MariaInecircsGandolfoConceiccedilatildeoUniversidade de Brasiacutelia

Professora do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Psicoacuteloga Especialista em Psicologia Hospitalar Psicodramatista Doutora em Psicologia UnB Poacutes-doutorado UFF Bolsista de Estaacutegio Secircnior da CAPES-University of Toronto Coordenadora do Laboratoacuterio de Famiacutelia Grupos e Comunidades Pesquisadora do Programa de Estudo e Atenccedilatildeo agraves Dependecircncias Quiacutemicas Temas de pesquisa drogadiccedilatildeo adolescentes em conflito com a lei violecircncia meacutetodos qualitativos em pesquisa inclusatildeo social psicodrama e sociodrama fatores de risco sauacutede e reabilitaccedilatildeo inesgandolfogmailcom

MariaIzabelTafuriUniversidade de Brasiacutelia

Professora Adjunto - Departamento de Psicologia CliacutenicaIPUnB Doutora em Psicologia USP Psicoacuteloga e Psicanalista Coordenadora no Brasil da Pesquisa internacional ldquoPrevenccedilatildeo em Parentalidade estudo comparativo interculturalrdquo Pesquisadora do Laboratoacuterio de Psicopatologia e Psicanaacutelise IPUnB Membro Fundador da ABEBE - Associaccedilatildeo Brasileira de Estudos sobre o Bebecirc Membro Fundador da ABRAFIPP Presidente da ABENEPPIDF izabeltafurigmailcom

MassimoAmmanitiUniversidade de Roma La Sapienza

Professor de Psicopatologia do Desenvolvimento Membro do Board of Directors della World Association of Infant Mental Health (WAIMH) Presidente da Associazione Italiana per la Salute Mentale Infantile Psicanalista da International Psychoanalytical Association maammanitinit

MauricioSNeubern

Universidade de Brasiacutelia

Professor Adjunto do Departameto de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Doutor em Psicologia pela UnB com estaacutegio sanduiacuteche no Laboratoire de Changement Social Universiteacute Paris VII Temas de pesquisa

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ldquoComplexidade das Relaccedilotildees Terapecircuticasrdquo hipnose dores crocircnicas epistemologia da cliacutenica psicoterapia religiatildeo sistemas culturais de cura e cuidado corpo subjetividade e cultura Vice-presidente da Associaccedilatildeo Brasileira de Hipnose Fundador do Instituto Milton Erickson de Brasiacutelia mneubernunbbr

MeirilaneNavesUniversidade de Brasiacutelia

Doutoranda em Psicologia Cliacutenica e Cultura Mestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura Membro do Nuacutecleo de Intervenccedilatildeo em Crise e Prevenccedilatildeo do Suiciacutedio Graduaccedilatildeo em psicologia UFU Integrante do Programa de Promoccedilatildeo da Sauacutede Integral da UnB Coordenadoria de Intervenccedilatildeo em Crise (desde 2003) ndash funccedilotildees Coordenadora Executiva (2003ndash2009) Coordenadora Cliacutenica (2010ndash2011) e Supervisora Institucional (2011-2012) Bolsista do Projeto REUNI (2009ndash2010) navesmeirilanegmailcom

NeriacuteciaReginadeCarvalho SilvaUniversidade Federal do Maranhatildeo

Psicoacuteloga Cliacutenica da UFMA Especialista em Bioeacutetica (UnB) Mestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura PPGPsiCCPCLIPUnB Ex-integrante do GIPSI - Grupo de Intervenccedilatildeo Precoce nas Psicoses

RaquelCairusSecretaria de Estado do Desenvolvimento Social - GDF

Psicoacuteloga da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social do Governo do Distrito Federal Mestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura raquelcairushotmailcom

RoqueTadeuGuiDoutor em Psicologia Cliacutenica e Cultura PPGPsiCCPCLIPUnB Mestre em Psicologia pela Universidade de Brasiacutelia (UnB) Psicoacutelogo e psicoterapeuta junguiano roquetadeugmailcom

23Sobre os autores

SheilaGiardiniMurtaUniversidade de Brasiacutelia

Professora Adjunta e Orientadora no PPGPsiCCPCLIPUnB Doutora em Psicologia Social e do Trabalho UnB Estaacutegio de doutoramento na Queensland University of Technology - Brisbane Austraacutelia Poacutes-Doutorado UFSCar Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Temas de pesquisa desenvolvimento e avaliaccedilatildeo de programas de prevenccedilatildeo primaacuteria a riscos para transtornos mentais e promoccedilatildeo de competecircncias associadas agrave sauacutede mental giardiniunbbr

TainaacutePintoMestre em Psicologia Cliacutenica e Cultura PPGPsiCCPCLIPUnB Psicoacuteloga tainahopgmailcom

TaniaRiveraUniversidade Federal Fluminense ndash Universidade de Brasilia

Professora da UFF e Professora Colaboradora do PPGPsiCCPCLIPUnB Graduaccedilatildeo em Psicologia pela UnB Mestrado e Doutorado em Psicologia pela Universiteacute Catholique de Louvain Beacutelgica Poacutes-Doutorado em Artes Visuais na escola de Belas-Artes UFRJ (2006) Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Psicanalista Atua nas aacutereas de teoria e cliacutenica psicanaliacuteticas e fundamentos e criacutetica das taniariverauolcombr

TeresaCristinaOthenioCordeiroCarreteiroUniversidade Federal Fluminense - UFF

Professora titular do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Graduada em Psicologia PUCRJ Doutorado em Psicologia Social Cliacutenica - Universite de Paris VII Poacutes-doutorado em Sociologia Clinica Universiteacute de Paris VII Coordenadora do Laboratoacuterio NUPESV-UFF Associada ao Laboratoire de Changement Social e ao Institut Internacional de Sociologie Clinique Franccedila tecar2uolcombr

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TerezinhadeCamargoVianaUniversidade de Brasiacutelia

Professora Associada do Departamento de Psicologia Cliacutenica e Coordenadora do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Coordenadora do Curso de Especializaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Psicoacuteloga Cliacutenica Doutorado (USP) Poacutes-doutorados Antropologia (UNICAMP) e Psicologia Cliacutenica - Instituto Superior de Psicologia Aplicada ISPA-Lisboa Temas de Pesquisa psicanaacutelise subjetivaccedilatildeo teoria psicanaliacutetica transtornos alimentares feminilidade cultura esteacutetica literatura arte e psicoterapia tcvianaunbbr

TerezinhaFeacuteres-CarneiroPontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro

Professora Titular Graduaccedilatildeo em Psicologia PUCRJ Especializaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica - Intervenccedilatildeo Familiar PUCRJ Mestrado em Psicologia Cliacutenica pela PUCRJ Doutorado em Psicologia Cliacutenica pela PUCSP Poacutes-doutorado pela Universidade de Paris V-Sorbonne Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Tem experiecircncia na aacuterea de Psicologia com ecircnfase em Tratamento e Prevenccedilatildeo Psicoloacutegica Temas de pesquisa avaliaccedilatildeo familiar entrevista familiar pesquisa em psicologia tefercapuc-riobr

ValeskaZanelloUniversidade de Brasiacutelia

Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Graduaccedilatildeo em Psicologia (1997) graduaccedilatildeo em Filosofia (2005) e doutorado em Psicologia pela UnB (2005) com periacuteodo de doutorado-sanduiacuteche no Instituto Superior de Filosofia Universithe Catholique de LouvainBeacutelgica (2004) Especializaccedilatildeo em Psicopedagogia pela UFRJ (1999) e em Filosofia e Existecircncia pela UCB (2007) Temas de pesquisa Sauacutede mental Psicopatologia Gecircnero Psicanaacutelise e Filosofia da Linguagem valeskazanellouolcombr

25Sobre os autores

VeraLuciaDecnopCoelhoUniversidade de Brasiacutelia

Professora aposentada e Pesquisadora Colaboradora Plena do Departamento de Psicologia Cliacutenica e do PPGPsiCCPCLIPUnB Graduaccedilatildeo em Psicologia pela UFF Mestrado em Psicologia FGVRJ Mestrado e Doutorado em Psicologia - Case Western Reserve University Temas de pesquisa envelhecimento com ecircnfase em questotildees psiacutequicas e soacutecio-culturais da maturidade e da velhice estrateacutegias de prevenccedilatildeo promoccedilatildeo e tratamento em sauacutede mental de idosos e seus familiares no contexto do Sistema Puacuteblico de Sauacutede modalidades de intervenccedilatildeo grupal de caraacuteter multiinterdisciplinar veradecnopgmailcom

ZildaAPDelPretteUniversidade Federal de Satildeo Carlos

Professora Titular Orientadora nos Programas de Educaccedilatildeo Especial e Psicologia Departamento de Psicologia Graduaccedilatildeo em Psicologia UEL Mestrado em Psicologia Social UFPB Doutorado em Psicologia Experimental USP Poacutes-Doutorado em Psicologia das Habilidades Sociais Universidade da Califoacuternia Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Temas de pesquisa relaccedilotildees Interpessoais habilidades sociais competecircncia social assertividade praacutetica pedagoacutegica e desenvolvimento interpessoal zdpretteufscarbr

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Apresentaccedilatildeo

O seacuteculo XXI se inicia sob o signo de intensas mudanccedilas sociais e tecnoloacutegicas Giddens

em Mundo em descontrole o que a globalizaccedilatildeo estaacute fazendo de noacutes afirma que vivemos

em ldquoum mundo em descontrolerdquo e que tal descontrole eacute produto de dinacircmicas ligadas

agrave globalizaccedilatildeo e aos processos econocircmicos e sociais que lhe datildeo sustentaccedilatildeo Tais movi-

mentos influenciam profundamente a vida cotidiana mudam a vida social e as formas

de inserccedilatildeo no mundo do trabalho e transformam tambeacutem a vida privada e os proces-

sos afetivo-relacionais

A preocupaccedilatildeo com esse embate entre velhos e novos modelos e seu impacto sobre a

condiccedilatildeo humana e social marca a produccedilatildeo cientiacutefica em aacutereas como a psicologia a

sociologia a histoacuteria a literatura dentre outras Atravessa continentes e busca desnu-

dar a complexidade de fatores que afetam a vida contemporacircnea Reflexotildees de Giddens

(2005) e de Jablonski (19911998) ndash um inglecircs o outro brasileiro um escrevendo na

metade da primeira deacutecada do seacuteculo XXI e o outro problematizando processos que jaacute

anunciavam mudanccedilas e rupturas em nossa forma de viver ao longo da uacuteltima deacutecada

do seacuteculo XX constituem exemplos desse comprometimento Ambos os autores cha-

mam atenccedilatildeo para o fato que vivemos em um mundo que privilegia o instante a rup-

tura o descartaacutevel as novidades ou seja tudo que revele desapego e que se oponha a

qualquer ideia de permanecircncia O fato eacute que o acesso a formas de comunicaccedilatildeo raacutepidas

estaacute a alterar o modo de funcionar das pessoas e suas expectativas pessoais relacionais

e sociais (Diniz 2012)

27Apresentaccedilatildeo

Vivemos portanto em um novo tempo pautado pela secularizaccedilatildeo da vida pela minimi-

zaccedilatildeo dos preceitos e da moral religiosa pelo aumento da longevidade pelo surgimento

de novas tecnologias de fertilizaccedilatildeo e de controle da natalidade Tudo isso associado

agraves mudanccedilas nos eixos estruturantes das relaccedilotildees ou seja ao valor dado ao afeto e ao

amor agrave sexualidade agrave individualidade ao sucesso pessoal profissional e financeiro agrave

satisfaccedilatildeo obtida na relaccedilatildeo e no trabalho tem produzido impactos profundos em todas

as aacutereas da vida (Diniz 2012 Jablonski 19911998)

Ao revisitar e refletir sobre trabalhos que pautaram a construccedilatildeo de uma suposta identi-

dade cultural brasileira Rago (2006) aponta que esses tinham em comum a busca por

pontos fixos por uma ldquoldquo essenciardquo oculta nas profundezas da terra e da psiquerdquo (pg 4)

No entanto a autora eacute contundente ao afirmar que

ldquo() as constantes desterritorializaccedilotildees a que somos expostos cotidianamente tecircm abalado tatildeo profundamente o sentimento de pertencimento a um grupo fixo como a Naccedilatildeo que necessitamos de outros operadores conceituais para a compreensatildeo do presente para nos situarmos no mundo e tambeacutem para reorganizarmos nosso espaccedilo interno delimitando a constituiccedilatildeo de novas subjetividades fugazes e mutantes antes impensaacuteveis (pg 4)rdquo

Tais mudanccedilas colocam vaacuterios desafios para noacutes psicoacutelogos Koocher (2007) aponta

que um deles eacute (re) pensar o papel social da psicologia e sua missatildeo de contribuir para

a sauacutede e o bem estar das pessoas Outro desafio segundo o autor eacute considerar como

as novas tecnologias vatildeo afetar a forma de prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave distacircncia e por meios

eletrocircnicos E uma vez que esses dois processos nos colocam desafios eacuteticos o autor nos

convida a (re) ver nossas responsabilidades enquanto pessoas e profissionais

O Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura ao eleger o debate entre a

Cliacutenica e as vaacuterias dimensotildees da Cultura como o eixo articulador de sua estrutura de

ensino e pesquisa assume o compromisso claro de contribuir com essa reflexatildeo O

livro que ora apresentamos Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea tem a pretensatildeo

de lanccedilar luz sobre a multiplicidade de possibilidades de se pensar e fazer a psicologia

cliacutenica na atualidade

Falemos brevemente como estruturamos Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea

Como linhas a entrelaccedilar os discursos estatildeo os produtos do conhecimento gerado por

projetos de pesquisa abrigados nas quatro linhas de pesquisa do PPGPsiCC ndash 1 Pro-

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cessos Interacionais no Contexto do Casal da Famiacutelia do Grupo e da Comunidade 2

Psicanaacutelise Subjetivaccedilatildeo e Cultura 3 Psicopatologia Psicoterapia e Linguagem 4 Sauacute-

de Mental e Cultura Contudo tal disposiccedilatildeo primeira de organizaccedilatildeo natildeo se pretende

restrita ao nosso programa de poacutes-graduaccedilatildeo Temos que dizer que nossa produccedilatildeo eacute

construiacuteda num contexto de permanente de interlocuccedilatildeo e de estabelecimento de redes

e parcerias com colegas de outras universidades do paiacutes e do exterior ndash buscamos evi-

denciar esta faceta em diferentes trabalhos Dessa forma podemos dizer que o conjunto

dos trabalhos apresentados permite um debate significativo e ampliado e no cenaacuterio da

psicologia cliacutenica

As pesquisas psicocliacutenicas sobre a realidade brasileira contemporacircnea exigem atenccedilatildeo

especial Os dados censitaacuterios e dados referentes agraves poliacuteticas puacuteblicas e agraves diretrizes ju-

riacutedicas oferecem um paracircmetro importante de anaacutelise de mudanccedilas que vecircm ocorrendo

em diversas aacutereas da vida Resultados do Censo Brasileiro do ano de 2010 foram articu-

lados com resultados de outras pesquisas para apresentar desafios e dilemas que mar-

cam a conjugalidade contemporacircnea A situaccedilatildeo de crianccedilas e adolescentes eacute analisada

do ponto de vista de um aparato juriacutedico de acolhimento e prevenccedilatildeo de exclusatildeo social

Refletir sobre dispositivos poliacuteticos e examinar as proposiccedilotildees c diretrizes presentes

nas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para a proteccedilatildeo integral de crianccedilas de adolescentes da

mulher e das famiacutelias eacute uma tarefa presente em vaacuterios momentos de Psicologia Cliacutenica

e Cultura Contemporacircnea Aleacutem de problematizar aspectos das Poliacuteticas Nacionais vol-

tadas para esses grupos osas autoresas discutem as possibilidades de inserccedilatildeo e os

limites que essas poliacuteticas colocam para a atuaccedilatildeo de psicoacutelogos

Ainda com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo de crianccedilas de adolescentes e de jovens configuram-se

importantes aacutereas de estudos os distuacuterbios alimentares presentes na primeira infacircncia

desafios do autismo infantil pesquisa internacional que explora a constituiccedilatildeo da pa-

rentalidade no mundo atual constituem algumas das temaacuteticas endereccediladas No texto

que abre Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea dados de pesquisa sobre a histoacuteria

laboral de jovens deixam claras as implicaccedilotildees de viver em um cenaacuterio de competiccedilatildeo

de dificuldade de acesso ao trabalho de instabilidade e precariedade que podem gerar o

medo constante do desemprego A vida nas ruas muacuteltiplas formas de trabalho infantil

assim como outras vaacuterias circunstacircncias que levam ao uso e ao traacutefico de drogas foram

temas objeto de pesquisas-intervenccedilotildees

29Apresentaccedilatildeo

As violecircncias dentre elas o abuso sexual ocupa um espaccedilo importante tanto na miacutedia

quanto na academia O estudo de dinacircmicas conjugais e familiares constitui uma ferra-

menta fundamental para a compreensatildeo das manifestaccedilotildees da sexualidade e da violecircn-

cia em especial de fatores que geram situaccedilotildees de abuso sexual de meninos e meninas

Pesquisa- intervenccedilatildeo realizada com adolescentes que cometeram abuso sexual e suas

famiacutelias aponta o uso do Grupo Multifamiliar como estrateacutegia eficaz para conhecer o

pensamento e a realidade de vida desses adolescentes e de suas famiacutelias Ao mesmo

tempo essa teacutecnica permite criar um contexto propiacutecio agrave revisatildeo dos paracircmetros fami-

liares sociais e culturais que permeiam a construccedilatildeo da identidade masculina para que

os jovens possam encontrar formas adequadas de exerciacutecio de sua sexualidade

Haacute que se dizer tambeacutem que sexualidade eacute pensada em perspectivas diversas em Psico-

logia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea A constituiccedilatildeo da sexualidade eacute problematizada

com diferentes ecircnfases em textos de orientaccedilatildeo psicanaliacutetica Outra vertente parte de

uma criacutetica aos modelos heteronormativos Com base em uma perspectiva de gecircnero

questiona-se as praacuteticas culturais que estabelecem modelos riacutegidos para os papeacuteis de

gecircnero que categorizam como desviante uma orientaccedilatildeo sexual que natildeo seja heteroafe-

tiva Interessa agrave psicologia cliacutenica em sua articulaccedilatildeo com uma criacutetica aos paracircmetros

culturais normativos e hegemocircnicos apontar os impactos do sexismo e do heterosse-

xismo da discriminaccedilatildeo e dos preconceitos sobre a sauacutede e em especial sobre a sauacutede

mental Um segundo passo eacute propor estrateacutegias de accedilotildees preventivas no contexto das

poliacuteticas puacuteblicas

O diaacutelogo criacutetico com as poliacuteticas puacuteblicas envolve tambeacutem pensar a questatildeo das psico-

patologias e consequentemente os desafios relacionados agrave avaliaccedilatildeo dos proacutedomos e a

oferta de tratamento diante das manifestaccedilotildees das primeiras crises psicoacuteticas Torna-se

fundamental entender o que constitui uma ldquocriserdquo e as dimensotildees que atestam sua gra-

vidade A maneira como oa profissional concebe a crise influencia o modo como elea

trata pessoas com sofrimento psiacutequico grave

Um nuacutemero expressivo de trabalhos de Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea rela-

cionam-se a questotildees especiacuteficas que comparecem no fazer cliacutenico e agraves demandas cliacuteni-

cas na atualidade ndash as novas patologias e tipos cliacutenicos a avaliaccedilatildeo das psicoterapias os

instrumentais de registros e avaliaccedilotildees cliacutenicas a discussatildeo quanto as diferentes moda-

lidades de intervenccedilatildeo cliacutenica (hipnose psicoterapias existenciais psicanaacutelise atendi-

30

mento emergencial etc) a psicossomaacutetica e as questotildees da corporeidade o sonhar e a

cultura a discussatildeo sobre os diferentes espaccedilos de se fazer a clinica psi

Novos tipos cliacutenicos ou seja novas formas de subjetivaccedilatildeo e manifestaccedilotildees de adoeci-

mento satildeo pensadas a partir da interlocuccedilatildeosobreposiccedilatildeo entre modos de ser e estar no

mundo de personagens de mitos e textos claacutessicos e de personagens do agora produtos

de um cotidiano marcado por exigecircncias pressotildees e limitaccedilotildees de natureza diversa

Um conjunto de estudos propotildeem com base em uma leitura psicanaliacutetica reflexotildees

sobre a constituiccedilatildeo do sujeito como processual e imbricada de forma indissociaacutevel

agrave cultura A partir da pergunta ldquoPor que evocar o amorrdquo o papel central do amor na

dinacircmica entre o si mesmo e outro na produccedilatildeo da coesatildeo grupal na constituiccedilatildeo dos

laccedilos sociais assim como na prevenccedilatildeo das patologias narciacutesicas A psicanaacutelise tambeacutem

eacute problematizada tanto como praacutetica cliacutenica de subjetivaccedilatildeo na singularidade de cada

sujeito quanto como teoria e criacutetica da cultura Assim as divergecircncias presentes no inte-

rior da psicanaacutelise assim como as linhas da psicanaacutelise contemporacircnea satildeo exploradas

A riqueza de eixos teoacutericos e metodoloacutegicos marca a produccedilatildeo teoacuterica do PPGPsiCC

Em um dos capiacutetulos a hipnose eacute pensada como dispositivo metodoloacutegico em contextos

cliacutenicos onde as pessoas apresentam temaacuteticas de cunho espiritual Questotildees explo-

radas em Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea revelam que a pesquisa e o fa-

zer cliacutenico atravessam as vaacuterias fazes do ciclo vital e de desenvolvimento promovem

a articulaccedilatildeo entre diversas categorias ndash gecircnero raccedila classe idade niacutevel educacional

condiccedilotildees de vida de sauacutede e de acesso a bens serviccedilos ao trabalho lazer e agrave cultura

O pessoal o relacional e o poliacutetico satildeo vistos como indissociaacuteveis O texto mostra ainda

a importacircncia de entender especificidades da cultura brasileira em sua articulaccedilatildeo com

processos cliacutenicos

Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea evidencia com propriedade a imbricada tes-

situra entre a produccedilatildeo de conhecimento ndash a pesquisa e o compromisso da psicologia

cliacutenica com a construccedilatildeo e investigaccedilatildeo de estrateacutegias de atuaccedilatildeo Como bem aponta

Elvia Taracena uma das autoras deste livro aponta uma caracteriacutestica fundamental da

produccedilatildeo de conhecimento na aacuterea cliacutenica em seus muacuteltiplos contextos ldquola necesidad

de hacer una investigacion ligada al campo de la intervencion que permita caracterizar la

complejidad del fenomeno de la vidardquo

31Apresentaccedilatildeo

Em Psicologia Cliacutenica e Cultura Contemporacircnea as coautorias ndash entre docentes e discen-

tes entre docentes do PPG PsiCC e de outros programas no paiacutes e no exterior assim

como as autorias nacionais e internacionais deixam claro que pensar as muacuteltiplas arti-

culaccedilotildees entre a cliacutenica e a cultura exige abertura para diaacutelogos que revelem o encontro

de distintas estrateacutegias metodoloacutegicas e perspectivas dentro do campo do saber e do

fazer cliacutenico Esperamos que os vaacuterios textos apresentados nesse livro fomentem re-

flexotildees que tenham o potencial de mobilizar novos diaacutelogos entre o grupo de autores e

outros colegas de diversos campos de produccedilatildeo do conhecimento e de atuaccedilatildeo Ousa-

mos desejar que o proacuteximo volume dessa coletacircnea que ora se inicia jaacute contenha frutos

desse diaacutelogo ampliado

Desejamos a todosas uma oacutetima leitura

Terezinha de Camargo Viana

Glaacuteucia Starling Diniz

Liana Costa Fortunato

Valeska Zanello

Referecircncias

Diniz G R S (2012) Ateacute que a vida - ou a morte - os separe anaacutelise de paradoxos das

relaccedilotildees violentas Em Terezinha Feacuteres-Carneiro (org) Capiacutetulo de livro no prelo Satildeo

Paulo Editora Casa do Psicoacutelogo

Giddens A (2005) Mundo em descontrole o que a globalizaccedilatildeo estaacute fazendo de noacutes Rio

de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Jablonski (19911998) Ateacute que a vida nos separe a crise do casamento contemporacircneo

Rio de Janeiro Agir

Koocher Gerald P (2007) Twenty-first century ethical challenges for psychology

American Psychologist Vol 62(5) 375-384

Rago M (2006) Sexualidade e identidade na historiografia brasileira Revista Aulas

Dossiecirc Identidades Nacionais Glaydson Joseacute da Silva (Org) 2

32

Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

TeresaCristinaOCarreteiro

Este texto eacute composto de duas partes que se articulam 1Na primeira parte seratildeo discuti-

das e problematizadas vaacuterias perspectivas que compotildeem o campo de estudo da histoacuteria

de vida O propoacutesito eacute traccedilar aproximaccedilotildees entre estas discussotildees com a perspectiva

teoacuterica e metodoloacutegica denominada ldquoRomance Familiar e Trajetoacuteria Socialrdquo A segunda

parte discorreraacute sobre uma pesquisa que teve por objeto a histoacuteria de vida laboral de jo-

vens Seratildeo debatidas duas zonas de sentido fruto da anaacutelise a obrigaccedilatildeo de se adquirir

muitas formaccedilotildees acadecircmicas e o serviccedilo puacuteblico como campo de projetos profissionais

Histoacuteriahistoacuteriadevidaenarraccedilatildeo

Todo indiviacuteduo participa da construccedilatildeo de uma pluralidade de campos histoacutericos do

grupo familiar comunitaacuterio social entre outros Aqui a referecircncia ao indiviacuteduo eacute con-

1 Conferecircncia dada como Aula Inaugural no Programa de Poacutes graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura Universidade de Brasilia em novembro de 2012

33Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

siderada de modo bastante amplo tanto aqueles que satildeo invisibilizados pela socieda-

de quanto os que satildeo visibilizados ou os que tecircm uma hiper visibilidade Pensamos

que a Histoacuteria natildeo eacute feita soacute pelos poderosos mas por todos os humanos Ela eacute uma

construccedilatildeo e enquanto tal ela se presta a muacuteltiplas interpretaccedilotildees e leituras A Histoacuteria

estaacute sempre sendo construiacuteda e reconstruiacuteda como qualquer outra disciplina social ou

humana recebe influencias da conjugaccedilatildeo de forccedilas que se apossam dela e de outras

forccedilas que lutam por fazecirc-lo (Deleuze 1962)

Se deslocarmos as ideias sobre as forccedilas histoacutericas e sociais para o plano dos sujeitos

diremos que elas tecircm influencias nas construccedilotildees das subjetividades No entanto exis-

tiraacute uma relaccedilatildeo dialeacutetica continua entre ser influenciado pelas produccedilotildees da histoacuteria

e influenciar as mesmas Deste modo as vaacuterias modalidades interpretativas histoacutericas

e sociais e as construccedilotildees subjetivas estatildeo sempre podendo passar por reconstruccedilotildees

Uma das ideias exposta por Freud em ldquoPsicologia das Massas e anaacutelise do eurdquo eacute que as

relaccedilotildees que interferem no indiviacuteduo desde a sua infacircncia satildeo tambeacutem relaccedilotildees sociais

Ele diz a conhecida frase ldquoNa vida psiacutequica do indiviacuteduo considerado isoladamente o

outro interveacutem regularmente como modelo objeto suporte e adversaacuterio Por este fato

a psicologia individual eacute ao mesmo tempo e simultaneamente uma psicologia socialrdquo

(Freud 1981 p 123) Pode-se desmembrar esta ideia em outras (Carreteiro 1993) - a

identificaccedilatildeo qualquer que seja ela jaacute traz um social incorporado e as grandes noccedilotildees

do pensamento freudiano (pulsotildees fantasias projeccedilotildees etc) natildeo podem ser circunscri-

tas unicamente na perspectiva do pensamento individual agem igualmente no campo

social

A narrativa eacute uma modalidade de compreensatildeo das condiccedilotildees soacutecio histoacutericas de pro-

duccedilatildeo de vida dos sujeitos humanos Ela permite observar o conjunto de eixos que

intervecircm nas histoacuterias de vida (psiacutequicos familiares coletivos sociais econocircmicos e

tantos outros) Eacute atraveacutes da articulaccedilatildeo entre as diversas dimensotildees que atravessam o

indiviacuteduo que a construccedilatildeo subjetiva se faz mantendo sempre certo niacutevel de abertura

visto que a vida nas suas vaacuterias dimensotildees continua sempre pulsando

A narrativa oral ou escrita eacute um principio de expressatildeo do ser vivo que narra seus suces-

sos evoca suas experiecircncias sentimentos e emoccedilotildees sempre vinculados a seu universo

social (Enriquez 2002 p 36) A anaacutelise da histoacuteria de vida vai buscar compreender o

34

trabalho da incorporaccedilatildeo da heranccedila ligada agraves origens sociais familiares e institucio-

nais Ela permite estudar as modalidades de como a histoacuteria coletiva tem influecircncia

sobre os destinos individuais (Gaulejac 2005)

Diversos campos teoacutericos estudam as narrativas de vida (Pineau amp Le Grand 1993) Nes-

te texto nos focalizaremos sobre o denominado ldquoRomance Familiar e Trajetoacuteria Socialrdquo

(Gaulejac amp Levy 2000) que faz uma vinculaccedilatildeo entre o que eacute da ordem do psiacutequico

e o que eacute da ordem do social Mas antes de abordaacute-lo percorreremos perspectivas que

tecircm proximidades teoacutericas e que auxiliam a melhor adentrar o campo de nosso estudo

A perspectiva etno socioloacutegica na qual se situa Bertaux (1971 1980) tem por objetivo

estudar um fragmento particular de realidade social histoacuterica compreender como ele

funciona e como se transforma enfocando as configuraccedilotildees das relaccedilotildees sociais os

mecanismos os processos as loacutegicas de accedilatildeo que o caracterizam Em sua obra Bertaux

propotildee chamar a histoacuteria de vida de abordagem biograacutefica (approche biographique)

Esta denominaccedilatildeo ressalta a construccedilatildeo progressiva de uma nova abordagem socioloacutegi-

ca a qual permite conciliar observaccedilatildeo e reflexatildeo Estudando as questotildees voltadas para

o trabalho propotildee denominar as narrativas de vida como narrativas de praacuteticas Sugere

que elas sejam compreendidas natildeo como um objeto uacutenico do qual se busca apreender o

sentido mas sim como um conjunto de relaccedilotildees pessoais e interpessoais As narrativas

de praacuteticas permitem a reconstruccedilatildeo da loacutegica de produccedilatildeo destas praacuteticas e sua vincula-

ccedilatildeo nas relaccedilotildees sociais Cada narrativa de praacutetica eacute concebida como a de um ser huma-

no que eacute influenciado sucessivamente por diferentes subconjuntos de relaccedilotildees sociais

A narrativa de praacutetica favorece a observaccedilatildeo do processo de distribuiccedilatildeo dos seres hu-

manos nas relaccedilotildees sociais o qual Bertaux denomina processo de antropo-distribuiccedilatildeo

Concebe a produccedilatildeo antroponocircmica como a produccedilatildeo da energia humana (Bertaux

1973) tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo (concretizaccedilatildeo na praacutexis

Ex energia do artesatildeo do homem de negoacutecios da dona de casa entre outros) A famiacute-

lia para o autor eacute o lugar principal de produccedilatildeo antroponocircmica Natildeo se refere agrave famiacute-

lia no sentido global mas especiacutefico operaacuteria burguesa camponesa entre outras As

relaccedilotildees que determinam as praacuteticas de cada uma delas satildeo diferentes O que vai ser

determinante eacute a vinculaccedilatildeo das famiacutelias nas relaccedilotildees de classe

35Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

O ser humano vai ser portador da maneira como ele eacute produzido Pode-se deste modo

afirmar que ele eacute portador de traccedilos de praacuteticas Esta questatildeo eacute importante pois toda

narrativa conteacutem elementos que se vinculam a forma como o narrador se insere no es-

paccedilo social do qual faz parte A ideia impliacutecita eacute que a perspectiva social tem uma forte

influecircncia na construccedilatildeo do humano e as modalidades de praacuteticas sociais satildeo incorpo-

radas ao sujeito

Eacute atraveacutes das narrativas que o sentido que os indiviacuteduos datildeo para suas accedilotildees vai poder

ser apreendido Toda narrativa faraacute referecircncias impliacutecitas ou expliacutecitas a diversos per-

tencimentos sociais a uma variedade de instituiccedilotildees grupos (famiacutelia escola trabalho

vida associativa amigos etc) e organizaccedilotildees Deste modo a dimensatildeo coletiva estaacute sem-

pre presente na narrativa Quando ela eacute oral se dirige sempre a um outro seja o ouvinte

uma pessoa um grupo ou ainda um pesquisador Quando eacute escrita pode ou natildeo ser

dirigida a um puacuteblico bem especifico como o citado acima

Quando estudamos a histoacuteria de vida podemos dizer que a narrativa autobiograacutefica eacute

uma praacutetica humana (Ferrarotti 1983) Ferrarotti considera se inspirando em Sartre

que toda praacutetica individual humana eacute uma atividade sinteacutetica uma totalizaccedilatildeo ativa do

conjunto do contexto social Uma vida eacute uma praacutetica que se apropria de relaccedilotildees sociais

as interiorizando e as retransformando em estruturas psicoloacutegicas atraveacutes da atividade

de desestruturaccedilatildeo-reestruturaccedilatildeo Em cada um de nossos atos sonhos deliacuterios e com-

portamentos encontramos o sistema social Para este autor todo indiviacuteduo eacute um poacutelo

ativo na rede de relaccedilotildees Quando afirma que ele tem uma praacutetica sinteacutetica quer signi-

ficar que ele se apropria do social o midiatizando o filtrando e o projetando em outra

dimensatildeo ou seja a dimensatildeo de sua subjetividade

Porque pensamos que a narraccedilatildeo da histoacuteria de vida permite conhecer natildeo soacute os in-

diviacuteduos mas ainda o contexto social no qual eles foram produzidos Pois ldquoSe cada

indiviacuteduo representa a reapropriaccedilatildeo singular do universo social e histoacuterico que o cerca

poderemos conhecer o social partindo da especificidade irredutiacutevel de uma praacutetica in-

dividualrdquo (Ferrarotti 1983 p 51) Por isto o autor considera ser possiacutevel conhecer ldquouma

sociedade atraveacutes de uma biografiardquo o que se desdobra na ideia de que uma biografia

natildeo eacute unicamente a narrativa de experiecircncias vividas por um indiviacuteduo mas ela se apre-

senta tambeacutem como uma microrrelaccedilatildeo social

36

Consideramos que a escuta e a anaacutelise das narrativas biograacuteficas devem poder estar

atentas a vaacuterios aspectos as zonas cronificadas que se repetem assim como as sinaliza-

ccedilotildees de movimentos espontacircneos e novos que participam de sua construccedilatildeo A escuta

plural vai ser sensiacutevel agrave pluralidade de dimensotildees que compotildeem as narrativas Por elas

natildeo serem unificadas mas poliformes a escuta deve poder detectar as nuances que as

compotildeem Elas tecircm sincronias ambiguidades contradiccedilotildees e ainda vaacuterias oscilaccedilotildees

pulsatoacuterias mesmo que estas sejam difiacuteceis de serem apreendidas Eacute a escuta sensiacutevel

que vai poder detectar estas dimensotildees e buscar junto com o narrador construir sen-

tidos Estes natildeo devem ser postulados como fixos pois satildeo sempre passiacuteveis de serem

reconstruiacutedos Os sentidos natildeo satildeo visto como compondo verdades mas hipoacuteteses que

mudam segundo as forccedilas que as atravessam Aqui seguimos Morin (1990) para quem

os fenocircmenos satildeo sempre muito mais complexos do que podemos apreender Enriquez

(2002) tambeacutem ajuda a pensar esta questatildeo ao afirmar que todo fenocircmeno teraacute zonas

de desconhecimento Estes dois autores ajudam a se ter uma posiccedilatildeo de humildade na

elaboraccedilatildeo de sentidos

A narrativa teraacute sempre um interlocutor real ou imaginaacuterio (Rheacuteaume 2012) A dimen-

satildeo relacional funciona como um suporte de acolhimento da produccedilatildeo da narrativa

Deve-se considerar que lugar social e simboacutelico se estaacute ocupando e a quem se fala (tanto

a dimensatildeo psiacutequica quanto social) Enfim existe um conjunto de forccedilas que partici-

pam na construccedilatildeo narrativa

As formas e os conteuacutedos que se desenvolvem ao longo da narrativa tecircm uma relaccedilatildeo

com o interlocutor e com o tipo de viacutenculo estabelecido entre o que escuta e o que narra

sua vida No caso de uma pesquisa entre entrevistado e entrevistador se forma uma

espeacutecie de feedback circular

A histoacuteria soacute eacute acessiacutevel pela memoacuteria que eacute coletiva e simboacutelica A memoacuteria eacute sempre

percebida em uma perspectiva dinacircmica ela estaacute sempre sendo reconstruiacuteda seu senti-

do eacute buscado atraveacutes de um trabalho de interpretaccedilatildeo que eacute determinado pela situaccedilatildeo

atual daquele que narra sua histoacuteria e do conjunto de circunstacircncias presentes na qual

se inclui a relaccedilatildeo com o pesquisador Entre os elementos presentes estatildeo tambeacutem as

exigecircncias do inconsciente O trabalho da memoacuteria natildeo existe sem o do luto e da perda

Ricoeur nos diz que ldquoestes trabalhos afetam nossos esforccedilos para narrar de outros mo-

dos nossas histoacuterias de vida sejam elas individuais ou coletivasrdquo (Ricœur 2004 p 2)

37Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

Egrave neste ponto que podemos introduzir a perspectiva do ldquoRomance Familiar e Trajetoacuteria

Socialrdquo (RFTS) (Gaulejac 2002) Ao mesmo tempo em que ela tem proximidades com

as outras abordagens descritas ela articula as dimensotildees soacutecio histoacutericas agraves exigecircncias

do inconsciente Poder pensar no engendramento destas dimensotildees nos faz evitar cair

em posiccedilotildees extremas que satildeo de um lado o sociologismo e do outro o psicologismo

Trata-se de ter leituras muacuteltiplas que se vinculam e permitem anaacutelises transdisciplina-

res Uma das originalidades do meacutetodo ldquoRomance Familiar e Trajetoacuteria Socialrdquo eacute poder

vincular a realidade objetiva dos fatos sociais e a realidade da experiecircncia subjetiva A

hipoacutetese levantada eacute que a histoacuteria pessoal eacute produzida por uma multideterminaccedilatildeo

de fatores (psiacutequicos sociais ideoloacutegicos econocircmicos poliacuteticos entre outros) e que a

construccedilatildeo subjetiva vai depender da arte de cada sujeito de se construir em permanecircn-

cia a partir dos diferentes eixos que o atravessam (Carreteiro 2002)

Os estudos e pesquisa oriundos da abordagem RFTS mostram existir em toda narrativa

de vida uma forte tensatildeo entre o sujeito produto da histoacuteria (que sofre o peso da histoacute-

ria) e o sujeito agente de historicidade ou seja aquele que quer ser autor de sua histoacuteria

e ser reconhecido como construtor de histoacuteria

Perspectivasmetodoloacutegicas

Toda pesquisa na orientaccedilatildeo RFTS tem uma visatildeo de emancipaccedilatildeo ou seja considera

que os sujeitos natildeo satildeo informantes mas ativos no processo de pesquisa e capazes com

os recursos que lhes satildeo disponiacuteveis de traccedilarem hipoacuteteses sobre suas vidas refletindo

sobre as influecircncias que as determinam Isto abre brechas para o desenvolvimento da

funccedilatildeo de historicidade que remete a compreensatildeo por parte dos sujeitos dos modos

atraveacutes dos quais eles satildeo produzidos pela histoacuteria e das possiacuteveis opccedilotildees que tiveram

na construccedilatildeo de suas trajetoacuterias considerando as determinaccedilotildees sociais conscientes e

inconscientes Natildeo eacute possiacutevel transformar o passado mas sim mudar as relaccedilotildees que

se tecircm com ele Neste ponto voltamos agrave questatildeo da memoacuteria Ela eacute dinacircmica e pode

sempre ser mobilizada pelo presente

A visatildeo de emancipaccedilatildeo que existe nestas pesquisas nos remete a um outro elemento

as transformaccedilotildees que os narradores podem vivenciar decorrente do trabalho sobre

suas histoacuterias de vida Podem ocorrer efeitos de mudanccedilas mesmo quando estes natildeo

38

foram previstos na construccedilatildeo da pesquisa Outras vezes eles satildeo esperados quando se

trata de uma pesquisa- intervenccedilatildeo

As pesquisas sobre histoacuteria de vida tecircm vaacuterios objetivos Pode-se por exemplo realizar

o desenvolvimento do conjunto de uma histoacuteria de vida deixando que o narrador faccedila as

pontuaccedilotildees que julgar conveniente Outra possibilidade eacute pesquisar recortes precisos

Os exemplos satildeo inuacutemeros narrativas laborais escolares amorosas entre tantas ou-

tras Qualquer que seja a dimensatildeo analisada eacute importante o pesquisador ter claro que

toda narraccedilatildeo eacute uma produccedilatildeo Ela eacute sempre uma interpretaccedilatildeo como jaacute dissemos feita

pelo narrador de parte de sua vida que por sua vez teraacute elementos do grupo social no

qual aquela narrativa se constroacutei A escuta do pesquisador tambeacutem passaraacute por filtros

Eacute importante lembrar Bourdieu (2004) quando se diz que a histoacuteria eacute sempre narrada

em um momento diferente de quando ela foi vivida A narraccedilatildeo sempre ocorre a poste-

riori (apreacutes coup) e eacute ai entatildeo que lhe atribuiacutemos um sentido e uma ordenaccedilatildeo O autor

considera ser uma ilusatildeo atribuir agraves biografias uma loacutegica sequencial Neste sentido a

ordenaccedilatildeo biograacutefica seraacute sempre uma construccedilatildeo o que Bourdieu denomina de ilusatildeo

biograacutefica O mundo no qual a biografia foi construiacuteda eacute sem ordenaccedilatildeo

Na maioria das vezes a pesquisa em ciecircncias humanas natildeo faz parte de uma encomen-

da submetida ao pesquisador A questatildeo da demanda deve entatildeo ser considerada visto

natildeo ser o narrador que se dirige ao pesquisador com uma demanda de investigaccedilatildeo O

que ocorre eacute o inverso Nestes casos podemos dizer que a demanda eacute do pesquisador

Eacute ele que se voltaraacute a determinadas pessoas e solicitaraacute que narrem aspectos de suas

trajetoacuterias de vida Takeuti (2009) considera que os pesquisadores captam demandas da

sociedade ou seja de problemas que remetem a indiviacuteduos em situaccedilotildees reais tensas A

pesquisa soacute se realizaraacute em um solo profiacutecuo se dois aspectos forem respeitados

bull Se a temaacutetica trabalhada compuser um campo de interesse ou preocupaccedilatildeo ao nar-

rador Neste caso ao longo do desenvolvimento da(s) entrevista(s) podemos ver

que haacute um compartilhamento da demanda Se ela no iniacutecio pertencia ao pesqui-

sador agrave medida que avanccedila tambeacutem eacute apropriada pelo narrador

bull Se houver confianccedila da parte do narrador no pesquisador Ele sente isto de vaacuterias

maneiras Percebe que a escuta natildeo eacute unicamente em relaccedilatildeo ao que narra mas

que haacute um interesse nele enquanto sujeito Os narradores apreendem de algum

39Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

modo quando a escuta eacute instrumentalizada e a diferenciam de uma escuta da

pessoa

O pesquisador deve ter tanto uma atenccedilatildeo ao narrador quanto a sua proacutepria implicaccedilatildeo

na pesquisa No que se refere ao primeiro sua escuta se voltaraacute ao que este diz sente

as reflexotildees expostas e as formas de comunicaccedilatildeo Mas ao mesmo tempo estaraacute atento

agrave repercussatildeo que o narrador e a narrativa tecircm sobre ele Aqui retomamos os termos

psicanaliacuteticos de transferecircncia e contra transferecircncia na pesquisa levando tambeacutem em

consideraccedilatildeo os elementos soacutecio histoacutericos Os elementos transferecircncia e contra trans-

ferecircncia natildeo satildeo alvos diretos do trabalho de pesquisa mas podem orientar a elaboraccedilatildeo

reflexiva do pesquisador e o tipo de interaccedilatildeo que ele manteacutem com o narrador Dito de

outro modo o trabalho de pesquisa natildeo eacute feito sobre a transferecircncia e a contra transfe-

recircncia mas estes elementos devem ser considerados (Revault drsquoAllonnes 1989)

Entre os objetos metodoloacutegicos podem ser construiacutedos suportes mediadores que fa-

cilitam a produccedilatildeo da narratividade Alguns auxiliam a objetivaccedilatildeo da histoacuteria de vida

(aacutervore genealoacutegica fotos correspondecircncias entre outros) outros auxiliam a expressi-

vidade como os desenhos e as dramatizaccedilotildees (Penso Conceiccedilatildeo Costa amp Carreteiro

2012) Muitos destes mediadores em um primeiro tempo servem como tela objetiva ou

projetiva Eles satildeo executados em um momento e soacute posteriormente se solicita que se

comente sobre o que foi produzido Os suportes satildeo importantes pois criam uma dis-

tacircncia em relaccedilatildeo ao vivido Eacute soacute no segundo tempo quando a narratividade eacute solicitada

que uma reflexatildeo mais ativa eacute engendrada

A construccedilatildeo metodoloacutegica pode ser entatildeo bastante variada Ela vai depender do grupo

ou das pessoas que estatildeo participando da pesquisa e dos objetos de estudo do pesquisa-

dor A construccedilatildeo metodoloacutegica eacute feita em funccedilatildeo do objeto pesquisado

Umapesquisaemanaacutelise

Trata-se de uma pesquisa que focalizou a histoacuteria laboral O recorte aqui apresentado se

voltaraacute para o projeto profissional de jovens adultos onde este foi analisado a partir da

metodologia de historia de vida laboral Era solicitado aos entrevistados que narrassem

suas trajetoacuterias de trabalho a partir de eixos temaacuteticos que pudessem cobrir de modo

cronoloacutegico os estudos e as formaccedilotildees realizadas as influecircncias familiares e de contex-

40

to e as ideias referentes aos contextos empregatiacutecios atuais Antes de nos focarmos na

pesquisa propriamente dita abordaremos questotildees atuais relativas ao trabalho anali-

sando suas repercussotildees subjetivas

Axel Honnett (2000) afirma que tanto Hegel quanto Mead insistem sobre a necessida-

de que cada indiviacuteduo tem de ser reconhecido como um sujeito singular digno de amor

digno de ser considerado como um verdadeiro cidadatildeo reconhecido pelos outros e os

reconhecendo

Ter um trabalho se constitui como um dos siacutembolos da contribuiccedilatildeo do indiviacuteduo para

a sociedade em que se encontra Sem trabalho ou com trabalhos precaacuterios sem ser re-

conhecido como digno de estima o indiviacuteduo se qualifica como um cidadatildeo diminuiacutedo

(Carreteiro 1993) acendendo minimamente a estima de si Isto eacute gerador de sofrimen-

to pois ele se vecirc distanciado dos grandes projetos da sociedade se sente responsaacutevel

por seu fracasso e tem grande inseguranccedila em relaccedilatildeo ao futuro (Sennett 2004) Deste

modo inferimos que a precariedade e a instabilidade presentes no mercado de trabalho

satildeo geradoras de sofrimento pois os sujeitos temem se aproximar da figura de inuti-

lidade social (Carreteiro 1999) que os remete a ausecircncia de reconhecimento que os

alimenta narcisicamente

Ao mesmo tempo em que se refere a uma atividade econocircmica o trabalho eacute um aspecto

central na construccedilatildeo subjetiva (Carreteiro amp Barros 2011 Gaulejac 2011) O traba-

lho considerado na sua complexidade envolve vaacuterios campos da vida humana como

o fazer o ter e o ser enfim nada lhe escapa (Gaulejac 2011) Todo trabalhador atende

continuamente agraves demandas do psiquismo e do social o que remete a pensarmos em

uma perspectiva cliacutenica (Lhuilier 2006) As praacuteticas laborais produzem sentido se refe-

rindo por um lado agrave proacutepria atividade do trabalho (Clot 2011) e por outro permitindo

a construccedilatildeo progressiva dos sujeitos ao longo de suas vidas (Amado amp Enriquez 2011)

As grandes mudanccedilas ocorridas nesse uacuteltimo quarto de seacuteculo acarretaram um movi-

mento em que as pessoas se responsabilizam individualmente pela situaccedilatildeo contempo-

racircnea de desemprego trabalho informal e instabilidade empregatiacutecia Percebe-se que

se invertem cruelmente as loacutegicas de compreensatildeo da situaccedilatildeo se retira do mercado de

trabalho a causalidade e a localiza no indiviacuteduo lhe atribuindo a responsabilidade por

exemplo pelo desemprego Essa eacute uma das questotildees inerentes agrave proacutepria organizaccedilatildeo

41Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

neoliberal do trabalho As exigecircncias sobre as pessoas natildeo cessam de aumentar dando-

-lhes a sensaccedilatildeo de estarem sempre aqueacutem

Os cacircmbios acelerados nas atividades laborais tecircm atingido todo e qualquer trabalhador

Na pesquisa que mencionamos interrogamos sobre as diferenccedilas nas formas de socia-

lizaccedilatildeo referentes ao trabalho de duas geraccedilotildees (50-60 e 20-30) de uma mesma famiacutelia

que eixos as atravessam que representaccedilotildees constroem sobre os contextos de trabalho

que valores lhes associam e o que transmitem ou pretendem transmitir agraves proacuteximas

geraccedilotildees O recorte que fazemos neste texto nos faraacute abordar somente a geraccedilatildeo mais

nova e destacar duas zonas de sentido (Gonzaacutelez-Rey 2002) A obrigaccedilatildeo de se adquirir

muitas formaccedilotildees e O serviccedilo puacuteblico como campo de projetos profissionais

Aobrigaccedilatildeodeseadquirirmuitasformaccedilotildees

Sennett (2004) aponta como consequecircncia do ldquonovo capitalismordquo a sensaccedilatildeo de inse-

guranccedila Esta assola o conjunto da sociedade e natildeo oferece condiccedilotildees para se planejar o

futuro em longo prazo Em face desta realidade os jovens adultos pensam seguindo os

ditames do mercado que devem se equipar com cursos e formaccedilotildees diversas para poder

enfrentar o mercado de trabalho

Esta geraccedilatildeo vivecircncia a instabilidade empregatiacutecia e sente a obrigaccedilatildeo de adquirir qua-

lificaccedilotildees contiacutenuas para ingressar continuar ou evoluir no mercado de trabalho Haacute

o sentimento de estar sempre aqueacutem das exigecircncias demandadas Pode-se aproximar

este aspecto do que Erhenberg (1998) denomina ldquoindiviacuteduo insuficienterdquo aquele que

incorpora as exigecircncias sociais de se superar continuamente

Mas as formaccedilotildees tambeacutem tecircm efeitos paradoxais visto que haacute jovens que tecircm cursos

universitaacuterios e estatildeo exercendo empregos de niacutevel meacutedio Eles apesar da escolaridade

natildeo conseguiram encontrar empregos compatiacuteveis com suas formaccedilotildees Muitos deles

apoacutes a conclusatildeo dos estudos e um periacuteodo de desemprego assumem a estrateacutegia de

natildeo mencionar no curriacuteculo a escolaridade superior No entanto estas mesmas pessoas

natildeo abandonam o interesse de realizar cursos

Os jovens geralmente de extratos sociais meacutedios ou altos sabedores da grande compe-

ticcedilatildeo existente no mercado de trabalho sentem que devem estar sempre se atualizando

42

Este eacute um modo de se manterem competitivos e tentarem fazer face agraves exigecircncias sem-

pre maiores de seus trabalhos Vivem uma pressatildeo para natildeo se tornarem obsoletos em

suas formaccedilotildees e competecircncias Adquirir novos conhecimentos compotildee as diretrizes

que se obrigam a seguir A frase ldquodeve-se ter um diferencialrdquo eacute bastante comum entre os

jovens Haacute nesta ideia um quadro impliacutecito de competiccedilatildeo onde os mais qualificados

satildeo os que tecircm melhores postos

As anaacutelises apontaram que eacute presente entre muitos jovens com niacutevel de escolaridade

universitaacuterio o desejo de ter um emprego na funccedilatildeo puacuteblica

Oserviccedilopuacuteblicocomocampodeprojetosprofissionais

A instabilidade e os processos de intensificaccedilatildeo presentes no mundo do trabalho levam

muitos jovens a terem como projeto realizar concursos para se tornarem funcionaacuterios

puacuteblicos

Este dado em nossa pesquisa foi mais presente em pessoas que tinham niacutevel universitaacute-

rio Havia famiacutelias que tinham forte inscriccedilatildeo no puacuteblico Deste modo o puacuteblico era de

um lado um aspecto da heranccedila familiar e do outro era reforccedilado pelo difiacutecil contexto

empregatiacutecio atual onde a instabilidade adquire um peso determinante Para outras

pessoas o puacuteblico natildeo se inscrevia como heranccedila mas era mobilizado por questotildees de

contexto Para todos o puacuteblico era considerado como promotor de estabilidade Natildeo

eram as condiccedilotildees previdenciaacuterias que eram mobilizadas mas sim evitar um contexto

instaacutevel

Havia pessoas com niacutevel universitaacuterio que realizavam os concursos disponiacuteveis para

o niacutevel meacutedio O objetivo era ter um trabalho e posteriormente continuar realizando

concursos ateacute alcanccedilar a funccedilatildeo almejada Neste sentido se pode dizer que a maior parte

do cotidiano deles se concentra em estudar para concursos Podemos denominaacute-los

subjetividades concursantes (Oliveira 2010) No entanto estas pessoas constroem tra-

jetoacuterias mutantes quando almejam encontrar outro lugar profissional dentro do serviccedilo

puacuteblico

43Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida

Estudar e realizar concursos condensam aspectos que satildeo muito evidentes no mercado

de trabalho atual a exigecircncia de se estudar e a forte competiccedilatildeo O numero de vagas

nos concursos eacute pequeno face ao grande numero de candidatos daiacute os entrevistados

se sentirem obrigados a estudarem muito O cotidiano se concentra em torno de uma

riacutegida rotina de estudos Muitos se sentem culpados quando estatildeo realizando atividades

que lhes afastam dos estudos

Se fizermos uma vinculaccedilatildeo entre a primeira parte deste texto e esta segunda onde

citamos brevemente a pesquisa sobre histoacuteria de vida laboral podemos elaborar as se-

guintes construccedilotildees

bull As narrativas laborais dos jovens que almejam ter uma funccedilatildeo puacuteblica e os que jaacute

estatildeo no serviccedilo puacuteblico se apresentam como ldquotraccedilos de praacuteticas sociaisrdquo dos con-

curseiros Eles expotildeem suas ideias sobre o mercado de trabalho como compotildeem

os seus cotidianos e suas anguacutestias Os que ainda natildeo conseguiram ingressar nar-

ram seus sentimentos suas ansiedades e os medos de fracasso Outros estatildeo tatildeo

mobilizados que apresentam traccedilos depressivos bastante acentuados

bull Os que jaacute tecircm um trabalho puacuteblico querem alcanccedilar outra funccedilatildeo que corresponda

mais aos seus anseios e ambiccedilotildees profissionais Eles em vaacuterias ocasiotildees se sentem

desencorajados por estarem construindo suas vidas em torno de dois poacutelos traba-

lho e estudo Muitos parecem dilacerados entre continuar a riacutegida rotina estabele-

cida ou se acomodar em uma posiccedilatildeo jaacute conquistada

bull Muitas famiacutelias participam ativamente do processo de estudo dos filhos o que nos

leva a pensar em ldquofamiacutelias concursantesrdquo Satildeo aquelas que criam todas as condi-

ccedilotildees para facilitarem o estudo dos filhos Elas projetam neles seus ideais ou os

acompanham em seus ideais

Contratransferecircncianapesquisa

A equipe desta pesquisa eacute de jovens bolsistas que ainda natildeo concluiacuteram o curso de

Psicologia ou de jovens psicoacutelogas que tecircm pouco tempo de formadas e ainda vivem

uma indefiniccedilatildeo profissional Este fato muitas vezes cria uma grande identificaccedilatildeo com

os narradores Eacute necessaacuterio poder forjar condiccedilotildees de elaboraccedilatildeo para estabelecer uma

distanciaccedilatildeo entre narrador e pesquisador para que uma escuta atenta agraves nuances da

44

narrativa possa ocorrer A possibilidade de ter um grupo de pesquisa permite este traba-

lho pois cada pesquisador contribui com visotildees diferentes da anaacutelise da situaccedilatildeo

Conclusatildeo

A pesquisa com a histoacuteria de vida laboral tem mostrado as grandes contradiccedilotildees exis-

tentes no mundo hiper moderno Ao mesmo tempo em que as referecircncias em todos os

campos satildeo volaacuteteis fluiacutedas (Bauman 2002) e os sujeitos sociais parecem se adequar

a esta fluidez existe o desejo de se ter referecircncias mais estaacuteveis Eacute isto que observamos

no campo empregatiacutecio quando muitos jovens optam pelo serviccedilo puacuteblico como lugar

de realizaccedilatildeo profissional No entanto para poderem tentar viabilizar este projeto em-

penham um tempo enorme e uma grande mobilizaccedilatildeo psiacutequica Surgem sentimentos

diversos frutos do desconhecimento de como seraacute o resultado do esforccedilo para a reali-

zaccedilatildeo dos concursos Os sujeitos concursantes se angustiam pois duvidam em muitos

momentos se poderatildeo construir um lugar social mais soacutelido pelo trabalho

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47 Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

BrunoNogueira

LianaFortunatoCosta

Esse texto tem por objetivo apresentar uma metodologia de atendimento grupal a ado-

lescentes que cometeram ofensa sexual2 Desde 2001 autores vinculados ao Progra-

ma de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura da Universidade de Brasiacutelia e ao

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia da Universidade Catoacutelica de Brasiacutelia em

pesquisa interinstitucional vecircm desenvolvendo adaptaccedilotildees da metodologia de Grupo

Multifamiliar para diferentes contextos de intervenccedilatildeo psicossocial (Costa Penso amp

Almeida 2005 Costa Almeida Ribeiro amp Penso 2009) A partir de 2009 iniciou-

-se mais uma experiecircncia em continuidade a essas adaptaccedilotildees desta vez em relaccedilatildeo a

2 Texto baseado em Nogueira B (2012) Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual Dissertaccedilatildeo de mestrado em Psicologia Cliacutenica e Cultura Universidade de Brasiacutelia Orientadora Liana Costa Fortunato

48

adolescentes que cometeram ofensa sexual e suas famiacutelias (Costa Ribeiro Junqueira

Meneses amp Stroher 2011) Em 2012 o primeiro autor desse texto buscou investigar so-

bre a expressatildeo da sexualidade envolvendo esses sujeitos ainda na perspectiva de cons-

truccedilatildeo de conhecimento no contexto do Grupo Multifamiliar Sendo assim o texto trata

principalmente da descriccedilatildeo desse meacutetodo de atendimento grupal a esses adolescentes

e suas famiacutelias

AdolescentesqueCometeramAbusoSexual

A definiccedilatildeo de cometimento de violecircncia sexual por adolescentes eacute muito ampla e natildeo

oferece a possibilidade de elaboraccedilatildeo de um perfil do agressor pois natildeo estamos falando

de pedofilia (Oliver 2007 Seto 2009) Nossa referecircncia para apontar a conduta do ado-

lescente que comete ofensa sexual baseia-se nas observaccedilotildees de Chagnon (2008) que

aponta esse ato violento como decorrecircncia de um acting out produzido pela constacircncia

de praacuteticas educativas familiares erradas ou seja violentas

A Vara da Infacircncia e da Juventude do Tribunal de Justiccedila do Distrito Federal e Territoacuterios

identificou no periacuteodo de 2010 a 2011 uma incidecircncia maior de abuso sexual cometido

por adolescentes mais do que por adultos (VIJCEREVS 2011) resultado diferente do

que as pesquisas tradicionalmente apontam (Abrapia 2003 Aded Dalcin amp Cavalcanti

2007) O resultado da VIJDF nos interessa pois se trata de nosso contexto de estudo e

atuaccedilatildeo No entanto eacute necessaacuterio mais pesquisas para identificar se a maior incidecircncia

desses atos eacute cometida por adolescentes e eacute vaacutelido considerar pesquisas que afirmam

que as primeiras experiecircncias de abuso sexual de adultos foram no periacuteodo da adoles-

cecircncia (Oliver 2007)

A literatura internacional tem produzido ao longo de cinco deacutecadas muitas informaccedilotildees

sobre adolescentes que cometeram abuso sexual Worling e Langstroumlm (2003) identi-

ficaram que natildeo eacute o fato do adolescente ter sofrido abuso sexual na sua infacircncia que

configura um fator determinante para reproduzir a violecircncia As histoacuterias de violecircncia

entre pais e filhos e o isolamento social constituem para esses autores como os fatores

de risco para o desenvolvimento de uma sexualidade ofensiva nos adolescentes O uso

de uma pedagogia da violecircncia como recurso educativo dos pais e relaccedilotildees familiares ad-

jetivadas pela ausecircncia de trocas afetivas satildeo caracteriacutesticas geralmente encontradas em

49Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

famiacutelias de adolescentes que cometeram abuso sexual (Chagnon 2008 Costa 2012

Marshall 2001)

Para se obter o efeito esperado os fatores de proteccedilatildeo que auxiliam no combate a situ-

accedilotildees individuais familiares e sociais de riscos devem ser de natureza transversal Na

dimensatildeo individual as pesquisas identificaram que o desenvolvimento de orientaccedilatildeo

proacute-social a estimulaccedilatildeo da resiliecircncia o desenvolvimento para a autonomia autoesti-

ma e autoeficaacutecia representam objetivos a serem alcanccedilados no tratamento Na dimen-

satildeo familiar os fatores protetivos satildeo relaccedilotildees significativas e iacutentimas pelo menos com

um dos pais valores parentais proacute-sociais supervisatildeo monitoramento dos pais rela-

ccedilotildees de cuidado e proteccedilatildeo estaacuteveis No ambiente escolar as relaccedilotildees positivas entre pro-

fessores e adolescentes e o envolvimento destes uacuteltimos com as atividades escolares

configuram em importantes fatores de proteccedilatildeo Na dimensatildeo da comunidade alguns

dos fatores protetivos satildeo as atividades recreativas e o relacionamento com outros adul-

tos com valores proacute-sociais E por fim na relaccedilatildeo com os grupos de pares os fatores de

proteccedilatildeo satildeo relaccedilotildees positivas e iacutentimas e relaccedilotildees com amigos com valores proacute-sociais

(Rich 2009 Rogers 2000)

OsGruposMultifamiliaresemSituaccedilotildeesdeAbusoSexual

A proposta dos Grupos Multifamiliares (GM) possui sua gecircnese na Terapia Multifa-

miliar adotada por psicoacutelogos e assistentes sociais nos Estados Unidos e no Canadaacute

(Laquer 1976) Os fundamentos epistemoloacutegicos dessa metodologia satildeo a psicoterapia

de grupo e a terapia familiar (Narvaz 2010) O GM articula vaacuterios fatores facilitadores

identificados pela psicoterapia de grupo (vivecircncia comum do sofrimento reaccedilatildeo de es-

pelho pelas ressonacircncias e identificaccedilotildees experiecircncia emocional corretiva solidarieda-

de e oportunidade de troca e ajuda muacutetua entre outros) com as noccedilotildees sistecircmicas da

terapia familiar (circularidade criatividade espontaneidade)

A adaptaccedilatildeo do GM para situaccedilotildees de abuso sexual foi estudada extensamente por Cos-

ta et a 2005 Costa et al 2009 e Costa et al 2011 como jaacute apontado na introduccedilatildeo

desse texto O GM eacute considerado como um modelo de atendimento psicossocial que

se fundamenta em cinco aportes teoacutericos o da Psicologia Comunitaacuteria com a proposta

de Santos (1999) de articular diferentes saberes cientiacuteficos e populares o da Psicologia

Social Criacutetica e Histoacuterica a qual percebe o ser humano em uma relaccedilatildeo dialeacutetica com

50

o seu meio (Lane amp Sawaia 1995) o da Terapia Familiar que concebe a famiacutelia como

um sistema e consequentemente a relaccedilatildeo familiar eacute o ponto focal do trabalho tera-

pecircutico (Minuchin Colapinto amp Minuchin 1999) Em outras palavras a valorizaccedilatildeo

maior eacute a da dimensatildeo interpsiacutequica O Sociodrama (Moreno 1993) eacute outro aporte que

fundamenta este GM ao conceber o grupo como protagonista e as famiacutelias possuindo

objetivos em comum E por fim o uacuteltimo marco teoacuterico eacute a Teoria das Redes Sociais

(Sluzki 1996) que enfoca a interaccedilatildeo humana como troca de experiecircncia desenvolven-

do a capacidade autorreflexiva e autocriacutetica

Essa articulaccedilatildeo busca atender ao puacuteblico alvo que satildeo famiacutelias pertencentes agraves classes

D (renda familiar de dois a quatro salaacuterios miacutenimos) e E (renda familiar ateacute dois salaacuterios

miacutenimos) e que pouco tecircm acesso aos profissionais da sauacutede mental e o atendimento

raramente eacute efetivado na perspectiva sistecircmica (a famiacutelia como cliente) Aleacutem disso o

modelo de atendimento deve considerar ainda as atribuiccedilotildees da interface Psicologia e

Direito (Costa et al 2005 Costa et al 2011) pois esses adolescentes satildeo muitas vezes

encaminhados pelo sistema justiccedila

O meacutetodo do GM apresenta vaacuterias vantagens principalmente no contexto da sauacutede puacute-

blica Narvaz (2010) lista estas vantagens o grupo possibilita aos participantes diminu-

iacuterem a intensidade do controle e das defesas de modo que permita o desenvolvimento

de uma discussatildeo livre os membros satildeo encorajados a responder uns aos outros espon-

taneamente o GM estimula as famiacutelias mutuamente de modo que aspectos saudaacuteveis e

criativos emerjam com a intenccedilatildeo de romper com os padrotildees disfuncionais mantenedo-

res do sistema (o grupo promove novas visotildees e narrativas sobre os problemas compar-

tilhados de modo que a famiacutelia construa novos significados sobre suas dificuldades) as

famiacutelias podem significar o grupo como uma comunidade empenhada na resoluccedilatildeo dos

problemas o GM promove a formaccedilatildeo de redes de apoio reciacuteproco entre os membros

o GM neutraliza o isolamento de famiacutelias (principalmente quando estas vivenciam si-

tuaccedilotildees de violecircncia) oferecendo forccedila objetividade e modelos de um grupo de iguais

o GM possibilita a construccedilatildeo de um espaccedilo de escuta diferenciado fundamentado em

relaccedilotildees de confianccedila de solidariedade e de accedilatildeo coletiva Aleacutem destes benefiacutecios o GM

eacute um modelo de terapia breve e com um investimento natildeo tatildeo oneroso para a sauacutede

puacuteblica Costa et al (2005) identificaram outro importante benefiacutecio do GM no contexto

juriacutedico Ele pode ocorrer enquanto o moroso processo judicial tramita de modo que

51Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

o atendimento do GM possa contribuir com a justiccedila na conclusatildeo dos casos de abuso

sexual

Como todo meacutetodo de intervenccedilatildeo o GM apresenta alguns limites O GM pode apre-

sentar um menor controle sobre os casos e dessa forma pode comprometer a eficaacutecia

da terapecircutica Identificou-se tambeacutem que haacute a possibilidade do terapeuta natildeo se en-

volver ativamente com alguma famiacutelia uma vez que o grupo que eacute o cliente e natildeo uma

famiacutelia especiacutefica O GM oferece perigo de uma identificaccedilatildeo predominantemente pro-

blemaacutetica com outras famiacutelias que tecircm funcionamento semelhante ao dele e permite

que a pressatildeo sobre os terapeutas para provocar mudanccedilas estenda-se a um grupo

mais numeroso de co terapeutas Aleacutem do exposto a proacutepria temaacutetica do abuso sexual

eacute um fator de complicaccedilatildeo por tocar numa dimensatildeo muito privada da experiecircncia hu-

mana ndash a intimidade ndash dificultando o conhecimento sobre os conflitos inerentes deste

tipo de violecircncia sexual (Narvaz 2010 Costa et al 2005)

ComosefazoGM

Eacute preciso informar que essa descriccedilatildeo aqui apresentada foi baseada em uma pesquisa

qualitativa cujo contexto de realizaccedilatildeo foi o Centro de Orientaccedilatildeo Meacutedico-Psico pedagoacute-

gica ndash COMPP oacutergatildeo pertencente agrave Secretaria de Estado de Sauacutede do Distrito Federal

(SES-DF) O objetivo do COMPP eacute prestar atendimentos de natureza multi e interdisci-

plinar em sauacutede mental (neuropediatras psiquiatras psicoacutelogos nutricionistas fono-

audioacutelogos pedagogos psicopedagogos assistentes sociais enfermeiros e professores

de educaccedilatildeo fiacutesica) agrave crianccedila ao adolescente e seus respectivos familiares do Distrito

Federal e do entorno em diferentes niacuteveis de prevenccedilatildeo (primaacuteria secundaacuteria e terciaacute-

ria) A Unidade acolhe tanto pacientes que apresentam sofrimento psiacutequico leve como

grave (neurose psicose transtornos invasivos do desenvolvimento entre outros) A meacute-

dia anual de atendimentos eacute de 34 mil A adoccedilatildeo de meacutetodos grupais visa maximizar

atendimentos e otimizar tanto filas de espera como encaminhamentos provenientes do

sistema de Justiccedila

Seleccedilatildeo das famiacutelias - Para a seleccedilatildeo das famiacutelias participantes utilizou-se como instru-

mento de apoio uma entrevista semiestruturada com a finalidade de obter informaccedilotildees

sobre a estrutura familiar as condiccedilotildees socioeconocircmicas as regras familiares caracte-

riacutesticas da violecircncia cometida pelo adolescente entre outras informaccedilotildees Essa entrevis-

52

ta eacute realizada antes do iniacutecio do GM Os criteacuterios de inclusatildeo no GM satildeo adolescentes

do sexo masculino com idade entre 12 e 18 anos incompletos encaminhados pela rede

de proteccedilatildeo do Distrito Federal e do entorno (Conselho Tutelar ndash CT Centro de Referecircn-

cia de Assistecircncia Social ndash CRAS Ministeacuterio Puacuteblico do Distrito Federal e Territoacuterios

ndash MPDFT ndash e Vara da Infacircncia e da Juventude ndash V I J) que abusaram sexualmente de

alguma crianccedila da famiacutelia ou de alguma crianccedila de convivecircncia proacutexima Os criteacuterios de

exclusatildeo satildeo adolescentes com deficiecircncia mental que cometeram abuso sexual adoles-

centes sem viacutenculos familiares e adolescentes com 18 anos completos

Procedimentos - Apoacutes a seleccedilatildeo das famiacutelias o GM se iniciou com um planejamento de

sete encontros Cada encontro teve a duraccedilatildeo meacutedia de trecircs horas Em relaccedilatildeo agrave equipe

de atendimento esta foi composta por cinco psicoacutelogos (um do sexo masculino e qua-

tro do sexo feminino) uma assistente social dois estagiaacuterios de psicologia (um do sexo

masculino e uma do sexo feminino) e uma estagiaacuteria de pedagogia A infraestrutura foi

composta por uma sala grande o suficiente para reunir todos os membros de todas as

famiacutelias mais trecircs salas meacutedias para realizar atividades com grupos especiacuteficos

Os subgrupos eram de pais e matildees (alocados na sala grande e tiveram como profissio-

nais responsaacuteveis uma psicoacuteloga uma assistente social e o apoio de um estagiaacuterio de

psicologia que foi responsaacutevel pelo registro dos encontros) de adolescentes que come-

teram abuso sexual (alocados em uma das salas meacutedias e tiveram como profissionais

responsaacuteveis um psicoacutelogo uma psicoacuteloga e o apoio de uma estagiaacuteria de psicologia

quem foi responsaacutevel pelo registro dos encontros) de adolescentes do sexo feminino

(alocados em sala meacutedia e tiveram como profissional responsaacutevel uma psicoacuteloga e o

apoio de uma estagiaacuteria de pedagogia quem foi responsaacutevel pelo registro dos encon-

tros) e de crianccedilas (alocados na outra sala meacutedia com uma psicoacuteloga infantil) Antes

de prosseguir eacute importante fazer a seguinte nota O subgrupo de adolescentes do sexo

feminino foi estabelecido na medida da necessidade em funccedilatildeo desse grupo conter

muitas adolescentes meninas

Os temas dos encontros foram adaptados da proposta de Costa et al (2011) que contem-

pla a discussatildeo dos temas da proteccedilatildeo e do cuidado tanto de crianccedilas como de adoles-

centes que cometeram ofensas sexuais a sexualidade de todos os membros familiares

a responsabilizaccedilatildeo dos adolescentes que cometeram abuso sexual pelo ato cometido

assim como a responsabilidade dos pais e das matildees a transgeracionalidade da violecircncia

53Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

e um projeto de futuro das relaccedilotildees familiares Dessa forma os encontros foram assim

estabelecidos primeiro encontro ldquoProteccedilatildeo eu preciso proteger outras crianccedilas mas

ainda preciso de proteccedilatildeordquo segundo encontro ldquoSexualidade o que eacute e como expressordquo

terceiro encontro ldquoFantasias quebrando o tabu e compartilhando segredosrdquo quarto

encontro ldquoViolecircncia eacute um crime nenhum tipo de violecircncia tem justificativardquo quin-

to encontro ldquoGenograma precisamos conhecer as histoacuterias de nossos antepassadosrdquo

sexto encontro ldquoApresentaccedilatildeo dos Genogramas Vamos compartilhar o que temos em

comum e o que temos de diferenterdquo seacutetimo encontro ldquoProjeto de futuro da Relaccedilotildees

Familiares organizar o presente para um futuro conscienterdquo Essa proposta possibilitou

oferecer aos participantes um espaccedilo de escuta para o sofrimento particular de cada

famiacutelia e de cada membro familiar assim como suas duacutevidas sentimentos e pensamen-

tos de modo a promover mudanccedilas na relaccedilatildeo intrafamiliar

Dinacircmica do GM - Cada encontro do GM se desenvolveu em trecircs etapas definidas A

primeira etapa foi o aquecimento na qual todas as famiacutelias foram reunidas com o obje-

tivo de promover a integraccedilatildeo do grupo bem como preparar todos os participantes para

a conversaccedilatildeo do tema especiacutefico do encontro A etapa seguinte ndash desenvolvimento ndash

aprofunda os objetivos do tema do dia Nessa etapa subdivide-se o grupo por criteacuterio de

idade adultos adolescentes e crianccedilas Essa subdivisatildeo permite a adequaccedilatildeo da conver-

saccedilatildeo referente a cada grupo etaacuterio jogos dramaacuteticos debates role playing desenhos

colagens Ao final desta etapa cada subgrupo elabora um informe do que foi produzido

em grupo E por fim o uacuteltimo momento ndash fechamento ndash consiste na reuniatildeo de todos

os presentes com o objetivo de compartilhar o informe elaborado na etapa anterior

PlanejamentodosEncontros

1ordmEncontroProteccedilatildeo eu preciso proteger outras crianccedilas mas ainda preciso de proteccedilatildeo

A escolha do tema proteccedilatildeo como ponto de partida para ao iniacutecio do trabalho se fun-

damenta nas orientaccedilotildees de Fishman (1996) que afirma que ao atender famiacutelias que

se comunicam por meio da violecircncia eacute necessaacuterio fazer uma rica e profunda reflexatildeo

sobre as consequecircncias negativas do uso da violecircncia nas relaccedilotildees e sobre a proteccedilatildeo

A proposta eacute que as famiacutelias atualizem o seu contrato relacional e que a regra de natildeo

54

cometer mais violecircncia possa dirigir as accedilotildees entre os membros familiares Para atingir

este objetivo adotamos a estrateacutegia abaixo descrita

Momento Aquecimento - O primeiro momento do GM aconteceu com a apresentaccedilatildeo

da equipe de trabalho com a explanaccedilatildeo da proposta dos encontros e respectivos obje-

tivos do grupo Em seguida foi solicitado a cada participante que falasse brevemente

sobre si proacuteprio enquanto enrolava um pedaccedilo de barbante no dedo indicador de uma

das matildeos Apoacutes este momento foi proposto o jogo dramaacutetico ldquoO gato e o ratordquo Neste

jogo um participante por livre escolha fez o papel do gato e outros trecircs escolheram

fazer o papel do rato Os demais participantes do grupo fizeram uma grande roda com

as matildeos dadas O objetivo do gato eacute furar a roda e pegar os ratos que estatildeo dentro da

roda O objetivo do grupo eacute proteger o rato fazendo da uniatildeo dos corpos uma muralha

Apoacutes os comentaacuterios sobre essa brincadeira foi feita a divisatildeo do grupo em subgrupos

de pais adolescentes masculinos adolescentes femininos e crianccedilas

Momento Desenvolvimento Subgrupo de Adolescentes - O iniacutecio da atividade ocorreu

com o debate sobre o conceito da palavra proteccedilatildeo entre os adolescentes Apoacutes o debate

foi solicitado aos adolescentes que relatassem os momentos em que eles se sentiram

protegidos e os momentos que eles tiveram que proteger algueacutem E em seguida foi

solicitado que eles relatassem os momentos em que eles se sentiram desprotegidos ao

longo da vida Foi promovida uma reflexatildeo profunda isto eacute procurou-se saber quais

eram as implicaccedilotildees emocionais e comportamentais de estar em uma situaccedilatildeo de des-

proteccedilatildeo Por fim foi trabalhada a reflexatildeo com os adolescentes quando eles mesmos

se colocam em risco A intenccedilatildeo de aprofundar essas reflexotildees eacute instrumentalizar o

adolescente a procurar ajuda de poder analisar melhor as situaccedilotildees em que eles estatildeo

inseridos e de tomar decisotildees conscientes Ao final do debate os adolescentes elabora-

ram uma siacutentese do que foi discutido com a finalidade de apresentar para os demais

subgrupos no momento do fechamento

Momento Fechamento - Ao final do encontro cada subgrupo apresentou para os de-

mais participantes do GM o material produzido Apoacutes as apresentaccedilotildees foi solicitado agraves

famiacutelias que conversassem sobre o que foi discutido no encontro e que nova proposta de

relaccedilatildeo e organizaccedilatildeo familiar pudesse ser dialogada entre os membros de cada famiacutelia

Ao fim do encontro foi feita uma dinacircmica de grupo com o objetivo de avaliar como

55Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

foi o encontro Posicionou os participantes e terapeutas em roda e todos avaliaram o

encontro em uma palavra

2ordmEncontro Sexualidade o que eacute e como expresso

A razatildeo de se enfocar essa temaacutetica fundamenta-se em experiecircncias anteriores do proacute-

prio GM nas quais os adolescentes confundem os conceitos de sexo e sexualidade Ou-

tra razatildeo diz respeito aos adolescentes trazerem na proacutepria histoacuteria de expressatildeo de sua

sexualidade a associaccedilatildeo entre sexualidade e violecircncia e a dissociaccedilatildeo entre sexo e afeto

(Costa 2012) A utilizaccedilatildeo de um discurso de gecircnero como recurso de intervenccedilatildeo para

o desenvolvimento da associaccedilatildeo entre sexo e afeto e a dissociaccedilatildeo entre sexualidade e

violecircncia para o presente autor e a presente autora eacute a melhor estrateacutegia Nesse mo-

mento eacute fundamental a reflexatildeo com os adolescentes de como eacute a experiecircncia de ser

homem Nessa discussatildeo subtemas como a virilidade e as provas sexuais que os ado-

lescentes passam para provar a proacutepria masculinidade entra em reflexatildeo A justificativa

para refletir essas questotildees fundamenta-se na tese de Bourdieu (1998) que a virilidade

tem como objetivo a honra masculina que eacute realizada na exploraccedilatildeo e dominaccedilatildeo de

pessoas em desvantagem (mulheres e crianccedilas)

Momento Aquecimento ndash O encontro tem iniacutecio com a vivecircncia de uma dinacircmica de

integraccedilatildeo grupal A proposta do jogo foi com um pedaccedilo de barbante em uma das

matildeos o participante enrolava o fio no dedo indicador da outra matildeo enquanto ele falava

um pouco sobre o seu cotidiano Apoacutes enrolar todo o barbante no dedo o participante

parava de falar e entregava o barbante para outra pessoa

Momento Subgrupo com Adolescentes - A atividade iniciou com a apresentaccedilatildeo do

tema para os adolescentes e logo em seguida pediu-se que eles relatassem como com-

preendem sexualidade e quais palavras ou imagens poderiam estar relacionadas com

essa palavra Com base nas associaccedilotildees dos adolescentes propocircs-se uma discussatildeo so-

bre o tema do encontro Ao fim da atividade os adolescentes elaboraram uma siacutentese

do que foi discutido

Momento Fechamento - No final do encontro cada subgrupo apresentou suas produ-

ccedilotildees e compartilhou suas posiccedilotildees Esse momento possibilitou que pais e adolescentes

conversassem sobre sexualidade e negociassem regras intrafamiliares em relaccedilatildeo ao

56

tema A intenccedilatildeo de promover esse diaacutelogo natildeo foi para facilitar a determinaccedilatildeo de

regras mas sim para enfocar o tema em pauta como tabu familiar

3ordmEncontroFantasias quebrando o tabu e compartilhando segredos

As fantasias eroacuteticas fazem parte dos scripts sexuais intrapsiacutequicos que ldquo utilizam

elementos simboacutelicos fragmentaacuterios cenaacuterios culturais mais amplamente compartilha-

dos e elementos de experiecircncia pessoal ndash que satildeo organizados em esquemas cognitivos

estruturados e tomam a forma de sequecircncias narrativas planos e fantasias sexuaisrdquo

(Bozon 2004 p 130) Este script coordena a vida mental e o comportamento social de

modo a discriminar situaccedilotildees sexuais e os estados corporais

Eacute importante frisar que estes scripts satildeo uma construccedilatildeo soacutecio-histoacuterica-cultural (Bozon

2004 Vance 1995 Weeks 2000) de modo que as fantasias sexuais (como tambeacutem os

outros atos sexuais) e os significados sexuais satildeo variaacuteveis (Heilborn 1999 Loyola

1999) ou seja a importacircncia social e o significado subjetivo dependem da definiccedilatildeo

e da compreensatildeo das diferentes culturas em seus diferentes periacuteodos histoacutericos Em

outras palavras essas construccedilotildees organizam e significam a experiecircncia sexual coletiva

por meio do impacto das identidades definiccedilotildees ideologias e regulaccedilotildees sexuais Dessa

forma compreende-se que as fantasias sexuais satildeo vivecircncias subjetivas derivadas de um

determinado momento histoacuterico

Com base nessa compreensatildeo sobre fantasias sexuais e fantasias eroacuteticas a razatildeo de

escolhermos essa temaacutetica para fazer parte dos conteuacutedos discutidos no GM funda-

menta-se na associaccedilatildeo entre sexo e violecircncia e na intenccedilatildeo de se promover reflexotildees

sobre como foram construiacutedas as fantasias que os adolescentes expressaram Aleacutem de

refletir sobre o que essas fantasias subjacentemente comunicam a respeito dos papeacuteis

masculinos e femininos e tentar promover fantasias sexuais cujas regras sejam a con-

sensualidade

Momento Aquecimento - No iniacutecio do encontro cada participante falou um pouco sobre

como foi a sua semana Em seguida foi proposto um jogo dramaacutetico para a integraccedilatildeo

das famiacutelias A intenccedilatildeo deste jogo foi para a construccedilatildeo de redes de apoio entre os

participantes do GM O jogo adotado para este fim foi a dinacircmica do cordatildeo O grupo

recebeu um rolo de barbante e cada membro tinha que pegar uma parte do barbante

57Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

enrolar no dedo e falar seu nome idade o que faz e caracteriacutesticas pessoais Em segui-

da a pessoa escolhia algueacutem aleatoriamente para dar prosseguimento com a dinacircmica

Apoacutes todos falarem mostrava ao grupo a figura que foi criada com o barbante eviden-

ciando que o grupo tinha histoacuterias e caracteriacutesticas em comum e que isso os ligava uns

aos outros

Momento Subgrupo com Adolescentes - Quando o grupo de adolescentes se reuniu foi

apresentado o tema do encontro Foi solicitado aos participantes que dissessem o que

eles compreendem como fantasias e quais fantasias sobre sexo eles tecircm Apoacutes essas

falas foi proposto aos adolescentes se dividirem em dois grupos e cada grupo deveria

criar uma histoacuteria por meio de colagens de revistas masculinas ou desenhos sobre

essas fantasias

Momento Fechamento - Cada subgrupo apresentou a sua siacutentese com exceccedilatildeo dos ado-

lescentes A decisatildeo de natildeo apresentarem o produto da discussatildeo (os cartazes) foi toma-

da pelo fato da natureza iacutentima dos cartazes e por se considerar que havia crianccedilas nes-

se momento final Contudo foi dito para as famiacutelias que poderiamdeveriam expressar

suas curiosidades sobre o tema do trabalhado em casa

4ordmEncontro Violecircncia eacute um crime nenhum tipo de violecircncia tem justificativa

Como relatado anteriormente os adolescentes que cometeram abuso sexual foram en-

caminhados pela rede proteccedilatildeo do DF e do entorno sendo que alguns adolescentes

estatildeo cumprindo atendimento sob obrigaccedilatildeo como parte da aplicaccedilatildeo de medida socio-

educativa (ECA 1990) Mas a medida ndash accedilatildeo do sistema legal ndash em si natildeo significa que

eles assumiram a autoria (fenocircmeno psicoloacutegico) da violecircncia cometida A admissatildeo

legal natildeo implica nem eacute sinocircnimo de responsabilizaccedilatildeo psicoloacutegica Por isso natildeo raro

encontra-se adolescentes que natildeo admitem o cometimento do abuso sexual Por isso

considera-se fundamental a inclusatildeo desse item de discussatildeo

Ao considerar o exposto o GM foi estruturado com a cautela de ser uma accedilatildeo afirmativa

e cooperadora com as intervenccedilotildees normativas e legais mas sem deixar de considerar os

princiacutepios e as diretrizes da sauacutede mental e dos direitos humanos Em outras palavras

afirma-se que a reflexatildeo da responsabilidade psicoloacutegica deve ser mediada por meio da

58

empatia e da compreensatildeo (processos psicoloacutegicos) do profissional de modo que este

consiga identificar os processos mediadores que possibilitaram o desenvolvimento de

uma expressatildeo sexual ofensiva Alerta-se que a identificaccedilatildeo desses processos natildeo pode

ter o objetivo de desculpar o adolescente que cometeu o abuso sexual

Eacute importante considerar que um dos processos que contribuem no desenvolvimento de

uma sexualidade ofensiva eacute a violecircncia praticada por outros membros da famiacutelia prin-

cipalmente da parte dos pais e das matildees direcionada aos filhos (Costa 2012 Marshall

2001) Dessa forma a razatildeo de tratar este tema no GM eacute para promover a responsabi-

lizaccedilatildeo psicoloacutegica de todos os membros familiares que utilizaram da violecircncia para se

comunicar

Momento Aquecimento - Neste encontro houve atrasos da maioria dos participantes

que relataram dificuldades no tracircnsito Como o tempo do encontro foi reduzido a equi-

pe decidiu para a atividade do aquecimento realizar apenas a dinacircmica do barbante

que jaacute foi descrita no segundo encontro

Momento Subgrupo com Adolescentes - Para trabalhar o tema do encontro foi escolhi-

do um recorte de viacutedeo da novela Fina Estampa da Rede Globo que abordou o tema da

violecircncia intrafamiliar A partir daiacute foi proposto aos adolescentes um juacuteri simulado para

decidir se um dos protagonistas de uma cena de violecircncia era culpado ou natildeo

Momento Fechamento - Nesse momento cada subgrupo apresentou uma siacutentese do

que foi trabalhado Apoacutes a fala de cada representante do subgrupo os proacuteprios partici-

pantes comeccedilaram a negociar mudanccedilas nas regras familiares

5ordmEncontro Genograma precisamos conhecer as histoacuterias de nossos antepassados

Usamos o Genograma por representar graficamente a composiccedilatildeo da famiacutelia e dos re-

lacionamentos em pelo menos trecircs geraccedilotildees (Carter amp McGoldrick 1995) Por meio

desse diagrama estrutural eacute possiacutevel obter diferentes informes sobre a famiacutelia como a

estrutura familiar os viacutenculos a posiccedilatildeo de cada membro na estrutura familiar aspec-

tos importantes do relacionamento familiar em niacutevel intergeracional e transgeracional

conflitos padrotildees repetitivos ocorrecircncias importantes como doenccedilas alcoolismo uso

59Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

de drogas prisatildeo violecircncia separaccedilotildees nascimentos entre outras informaccedilotildees (Carter

amp McGoldrick 1995 McGoldrick Gerson amp Petry 2012 Penso Costa amp Ribeiro 2008)

Aleacutem disso a importacircncia da utilizaccedilatildeo do Genograma eacute que este instrumento daraacute

continuidade na proposta do tema anterior isto eacute a compreensatildeo dos processos psiacutequi-

cos repetitivos facilitaraacute que a famiacutelia desenvolva uma percepccedilatildeo sistecircmica da violecircncia

cometida pelo adolescente e dessa forma os pais e as matildees poderatildeo expressar empatia

e compreensatildeo ao filho

Ademais natildeo eacute incomum no puacuteblico estudado que as relaccedilotildees entre os filhos que

cometeram abuso sexual e os pais e as matildees sejam afetivamente instaacuteveis e com as

fronteiras difusas Os responsaacuteveis demonstram sentimentos ambiacuteguos como tristeza

raiva e maacutegoa como forma de expressar a decepccedilatildeo com a rejeiccedilatildeo dos filhos e ansieda-

de anguacutestia e tensatildeo como forma de expressar a preocupaccedilatildeo com o futuro deles Parte

dessa postura se fundamenta por uma compreensatildeo atomizada da violecircncia cometida

pelo adolescente e natildeo por uma compreensatildeo sistecircmica da atitude do filho

Procedimento ndash Neste encontro todo o tempo foi destinado exclusivamente para a cons-

truccedilatildeo do genograma de todas as famiacutelias Cada membro da equipe ficou como respon-

saacutevel por uma famiacutelia que estava participando tanto da pesquisa como do atendimento

Esse momento teve um criteacuterio diferente do ateacute entatildeo adotado que foi a reuniatildeo de

todos os membros de cada famiacutelia e natildeo o criteacuterio de subdivisatildeo por idade

6ordmEncontroApresentaccedilatildeo dos genogramas vamos compartilhar o que temos em comum e o que temos de diferente

Neste encontro assim como no anterior todo o tempo foi destinado exclusivamente agrave

apresentaccedilatildeo dos Genogramas de cada famiacutelia para os demais participantes As famiacute-

lias quando estavam na posiccedilatildeo de ouvintes compartilharam seus posicionamentos

diante dos conflitos da famiacutelia que apresentava o Genograma

Em experiecircncias anteriores percebemos que participantes do GM assume uma posiccedilatildeo

de co terapeutas apoacutes a apresentaccedilatildeo do Genograma de cada famiacutelia na medida em que

as caracteriacutesticas da presenccedila da violecircncia satildeo observadas percebidas e discutidas por

todos os presentes Eacute essa integraccedilatildeo entre os participantes que reforccedila a importacircncia

desse espaccedilo pois se identificou a solidificaccedilatildeo da construccedilatildeo de redes sociais de apoio

60

entre eles Muitas famiacutelias se identificam com as histoacuterias e as experiecircncias das outras

famiacutelias Apoacutes a revelaccedilatildeo do abuso sexual as famiacutelias tendem a se isolar socialmente

(Costa 2012) e consequentemente aumentam o risco de entrarem em outras situaccedilotildees

de vulnerabilidade (Sluzki 2006) A integraccedilatildeo obtida durante o GM possibilita o au-

mento da rede configurando em um espaccedilo de fator de proteccedilatildeo (Costa 2012 Penso

Conceiccedilatildeo Costa amp Carreteiro 2012)

7ordmEncontroProjeto de futuro das relaccedilotildees familiares organizar o presente para um futuro consciente

O uacuteltimo encontro considerou o fato de que algumas famiacutelias que passaram por situa-

ccedilotildees de estresse e conflito como o abuso sexual paralizam o seu projeto de vida familiar

(Carter amp McGoldrick 1995) A razatildeo deste encontro se fundamenta na importacircncia de

promover a reorganizaccedilatildeo das famiacutelias e a construccedilatildeo de novos projetos familiares e in-

dividuais Com os adolescentes eacute necessaacuterio refletir sobre a proacutepria expressatildeo sexual no

futuro por meio da reflexatildeo sobre um projeto de namoro Esse momento configura em

um espaccedilo proacuteprio para os adolescentes colocarem suas duacutevidas sobre namoro sexo

formas de abordar uma pessoa que tem interesse e como cuidar e construir a relaccedilatildeo

afetivo-sexual

Procedimento ndash Para o objetivo de reorganizar as famiacutelias e construir novos projetos fa-

miliares cada famiacutelia andou sobre uma fita adesiva a qual representava a linha do tem-

po O iniacutecio da linha representou o tempo atual e o fim da linha representou o tempo

da famiacutelia apoacutes 10 anos Ao longo da caminhada pais matildees e filhos relataram desejos

projetos e expectativas a serem alcanccedilados Com os adolescentes foi feito uma roda de

conversa onde os aspectos citados acima sobre namoro eram debatidos entre eles com

a mediaccedilatildeo dos terapeutas

PotencialidadesLimiteseDesafios

O meacutetodo do GM permite muitos avanccedilos no atendimento a essa populaccedilatildeo princi-

palmente no acircmbito das instituiccedilotildees puacuteblicas Mas o mais importante eacute que viabiliza

uma necessidade amplamente apoiada por estudiosos dos adolescentes que cometeram

ofensa sexual (Hengeller Chapman Borduin Schewe amp McCart 2009 Marshall 2001

61Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual

Oliver 2007 Zankman amp Bonomo 2004) que eacute a atenccedilatildeo agrave famiacutelia desses sujeitos Es-

ses autores preconizam que o atendimento ao adolescente natildeo pode se dar dissociado

de sua famiacutelia sob pena do surgimento de recidivas do ato violento

O primeiro encontro com o tema da proteccedilatildeo ajudou a problematizar os modelos pa-

rentais de educaccedilatildeo facilitando a reconstruccedilatildeo familiar de novas regras como natildeo cau-

sar dano natildeo fazer o mal (Fishman 1996) O segundo e o terceiro encontros (sexu-

alidade e fantasias) ajudaram os pais a reconhecerem o desenvolvimento psicossexual

dos adolescentes e possibilitaram aos adolescentes a reflexatildeo de como eles expressam

a proacutepria sexualidade A partir dessa reflexatildeo foi possiacutevel direcionar o desenvolvimento

de uma expressatildeo sexual que respeite as crianccedilas e que busque momentos espaccedilos e

pessoas proacuteximas de sua idade e do seu desenvolvimento psiacutequico O quarto encontro

(violecircncia eacute um crime) ajudou os pais novamente a refletir sobre os instrumentos uti-

lizados para estabelecer hierarquia autoridade regras e valores Este encontro tambeacutem

possibilitou aos adolescentes tomarem consciecircncia de seus atos violentos e que estes

atos possuem raiacutezes em diversas origens (individual famiacutelia escola e sociedade) Aleacutem

disso foi possiacutevel mostrar a eles a importacircncia de se responsabilizarem pelas atitudes

cometidas diante da crianccedila e da famiacutelia O quinto e o sexto encontros destinados ao

procedimento do Genograma ajudaram as famiacutelias a compreenderem o ciclo familiar

a heranccedila familiar e fenocircmenos como a repeticcedilatildeo da violecircncia E o uacuteltimo encontro

ajudou as famiacutelias a projetarem um futuro consciente e planejado e cooperarem com

os adolescentes na expectativa de exercerem uma sexualidade satisfatoacuteria com namoros

futuros

O GM configurou-se como um espaccedilo no qual as crianccedilas tiveram voz para expressarem

seus sentimentos seus desejos de maior proteccedilatildeo e trocas de afeto os adolescentes

tiveram um momento legiacutetimo para expressarem suas necessidades seus arrependi-

mentos suas esperanccedilas e firmarem novos compromissos com as famiacutelias e os pais

e as matildees tiveram a oportunidade de expressarem seus sentimentos de amor de faze-

rem exigecircncias plausiacuteveis e de propor novas regras familiares Em outras palavras o

GM possibilitou novas organizaccedilotildees familiares com o compromisso de buscar relaccedilotildees

familiares saudaacuteveis e de evitar os padrotildees disfuncionais Mas o principal potencial do

GM eacute que esta proposta eacute condizente com o contexto e a dinacircmica da sauacutede puacuteblica

Em outras palavras o GM oferece uma praacutetica social de sauacutede para um problema legiacuteti-

62

mo de sauacutede puacuteblica (abuso sexual) produzindo respostas que toda uma coletividade eacute

atendida direta e indiretamente

Em relaccedilatildeo aos limites precisamos avanccedilar na avaliaccedilatildeo de risco de repeticcedilatildeo do com-

portamento violento de cada adolescente com o objetivo de identificar detalhes do de-

senvolvimento psicoloacutegico familiar e sexual Infere-se que uma avaliaccedilatildeo dessa natu-

reza pode apresentar outras informaccedilotildees relevantes e esclarecedoras da impulsividade

sexual dos adolescentes Essa avaliaccedilatildeo mais acurada vai permitir que ao final do GM

se tenha melhor noccedilatildeo da possibilidade de recidiva do ato violento e a necessidade de

encaminhamento para atendimento individualizado

Dois desafios aqui se colocam em relevo O primeiro eacute que uma boa parte dos ado-

lescentes enfocados no GM apresentou demandas de desenvolvimento de habilidades

sociais mais especificamente na aacuterea de relacionamentos afetivo-sexuais Sugere-se que

um momento para o desenvolvimento dessas habilidades no GM pode ajudar o ado-

lescente a direcionar a sua sexualidade de acordo com os padrotildees e regras sociais bem

como melhorar sua competecircncia social O outro desafio beneficia os pais A maioria

deles concordou que eacute necessaacuterio utilizar outros recursos para educar poreacutem natildeo sa-

bem como usar outros meacutetodos uma vez que eles tecircm domiacutenio apenas do recurso da

violecircncia Precisamos pensar em durante o atendimento a adoccedilatildeo de um momento

destinado aos pais para desenvolvimento de estrateacutegias educacionais construtivas

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67 A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

MariaInecircsGandolfo

RaquelCairus

Neste texto pretende-se discutir os marcos legais que subsidiam as poliacuteticas de assistecircn-

cia agrave infacircncia e adolescecircncia no Brasil e paralelamente descrever a execuccedilatildeo das poliacuteti-

cas puacuteblicas referentes agrave proteccedilatildeo integral no que concerne ao atendimento de crianccedilas

e adolescentes e suas famiacutelias sob a oacutetica do sistema de garantia primaacuterio (envolvendo

a proteccedilatildeo baacutesica prevista na poliacutetica de assistecircncia social) secundaacuterio (no referente agrave

proteccedilatildeo especial da referida poliacutetica) e o terciaacuterio (sobre as medidas soacutecioeducativas)

68

O Art 2273 da Carta Magna de 1988 introduz no Brasil a Doutrina da Proteccedilatildeo Integral

conforme pontua Saraiva (1998) O autor lembra que a Constituiccedilatildeo Federal Brasileira

se adianta agrave Convenccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas na adoccedilatildeo da Proteccedilatildeo Integral sendo esta

uacuteltima aprovada pela Assembleacuteia-Geral das Naccedilotildees Unidas em 1989

Nesse contexto eacute criado o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente ndash ECA (Lei nordm 80691990)

que representa um marco histoacuterico no Brasil quanto agrave atenccedilatildeo agrave infacircncia e a adolescecircn-

cia Portanto o ECA se coaduna tambeacutem com a convenccedilatildeo internacional colocando

o Brasil no status de um dos paiacuteses com sistema legal mais avanccedilado no que tange ao

direito de crianccedilas e adolescentes

Esse avanccedilo representa uma grande mudanccedila paradigmaacutetica A partir do reconheci-

mento da condiccedilatildeo inerente agrave infacircncia e adolescecircncia enquanto fase peculiar de desen-

volvimento exige-se do Estado e da famiacutelia cuidados que lhes garantam o desenvolvi-

mento pleno e saudaacutevel Desloca-se desse modo a indeterminaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo

irregular para a responsabilizaccedilatildeo do Estado e da famiacutelia quanto agrave proteccedilatildeo e cuidados

das crianccedilas e adolescentes sujeitos de direitos e deveres Mas o que de fato eacute a proteccedilatildeo

integral Como entendecirc-las a partir do ECA Como se concretiza a proteccedilatildeo integral a

partir das poliacuteticas E quem satildeo os responsaacuteveis por esta proteccedilatildeo

A importacircncia dessa mudanccedila paradigmaacutetica pode ser melhor compreendida a partir

do resgate histoacuterico das poliacuteticas voltadas para a infacircncia e juventude Conceiccedilatildeo Toma-

sello e Pereira (2003) analisam essa questatildeo e apontam que na histoacuteria do Brasil tais

poliacuteticas eram voltadas diferencialmente para o ldquomenor abandonadordquo ou ldquodelinquumlenterdquo

Em 1906 surgiu o primeiro projeto de lei de proteccedilatildeo agrave infacircncia com base na ordem e

na higiene promulgado em 1927 como o Coacutedigo de Menores Sob o regime militar em

1964 o Estado elabora uma poliacutetica unificada e cria a Poliacutetica Nacional do Bem-Estar do

Menor (PNBEM) que fundamenta a Fundaccedilatildeo do Bem-Estar do Menor (FUNABEM)

3 Art 227 Eacute dever da famiacutelia da sociedade e do Estado assegurar agrave crianccedila e ao adolescente com absoluta prioridade o direito agrave vida agrave sauacutede agrave alimentaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo ao lazer agrave profissionalizaccedilatildeo agrave cultura agrave dignidade ao respeito agrave liberdade e agrave convivecircncia familiar e comunitaacuteria aleacutem de colocaacute-los a salvo de toda forma de negligecircncia discriminaccedilatildeo exploraccedilatildeo violecircncia crueldade e opressatildeo (Constituiccedilatildeo Federal 1988)

69A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

Pautada por esta Fundaccedilatildeo surgem as FEBEMs instituiccedilotildees totais para internaccedilatildeo e

reclusatildeo de menores denominadas como unidades educacionais ou terapecircuticas mas

que escondiam o mesmo discurso moralista e conservador destinados tambeacutem a jovens

abandonados e infratores E ainda eram seguidos de abordagens assistencialistas para

os abandonados e repressoras para os infratores Aleacutem de considerar como publico-alvo

ldquoo menor em situaccedilatildeo irregular e de periculosidade () caindo nesse espectro toda crianccedila da

camada popular brasileirardquo (Cheniaux citado por Conceiccedilatildeo amp cols 2003)

A partir da deacutecada de 1980 com o fim desse regime totalitaacuterio uma revisatildeo criacutetica dos

procedimentos adotados frente agrave questatildeo da infacircncia e juventude brasileira ganha forccedila

e inicia-se uma mobilizaccedilatildeo social sem precedentes na histoacuteria que culminaram com o

ECA tal como eacute conhecido hoje Os autores ainda apontam a mudanccedila paradigmaacutetica

engendrada desde a implantaccedilatildeo desse estatuto ao natildeo considerar a crianccedila e o adoles-

cente enquanto menor destituiacutedo de direitos e deveres perceber que as condiccedilotildees de

vida do adolescente em conflito com a lei eacute que satildeo irregulares e natildeo o adolescente

Como enfatiza Carvalho (2001) ldquocom a instituiccedilatildeo do paradigma da proteccedilatildeo integral

crianccedilas e adolescentes passam a ser considerados seres humanos em condiccedilatildeo peculiar de de-

senvolvimento sujeitos de direitos que devem ser prioridade absoluta da famiacutelia da sociedade

e do Estadordquo (p 153) Acredita-se que reside aiacute a grande inovaccedilatildeo do Estatuto e com ela haacute

a implicaccedilatildeo de ldquoum reordenamento institucional da relaccedilatildeo entre a Uniatildeo e os Estados e os

Municiacutepiosrdquo (p 153) em torno das questotildees afetas a crianccedilas e adolescentes

No Estatuto da Crianccedila e do Adolescente a palavra proteccedilatildeo aparece 26 vezes que se

concentram principalmente na parte que trata dos direitos fundamentais De acordo

com Saraiva (2004) o ECA eacute organizado sob trecircs sistemas de garantia

a o Sistema Primaacuterio que daacute conta das Poliacuteticas Puacuteblicas de Atendimento a crianccedilas

e adolescentes (especialmente os arts 4ordm e 8587)

b o Sistema Secundaacuterio que trata das Medidas de Proteccedilatildeo dirigidas a crianccedilas e ado-

lescentes em situaccedilatildeo de risco pessoal ou social natildeo autores de atos infracionais

de natureza preventiva ou seja crianccedilas e adolescentes enquanto viacutetimas enquan-

to violados em seus direitos fundamentais (especialmente os arts 98 e 101)

70

c o Sistema Terciaacuterio que trata das medidas socioeducativas aplicaacuteveis a adolescen-

tes em conflito com a Lei autores de atos infracionais ou seja quando passam a

condiccedilatildeo de vitimizadores (especialmente os arts 103 e 112) (ECA 2004)

No sistema primaacuterio eacute contemplado o acesso das crianccedilas e adolescentes agraves poliacuteticas

sociais baacutesicas como sauacutede educaccedilatildeo seguranccedila assistecircncia social entre outros Jaacute o

sistema secundaacuterio envolve crianccedilas e adolescentes vitimizados por situaccedilotildees de risco

onde satildeo aplicadas as medidas protetivas E por fim o sistema terciaacuterio quando o ado-

lescente comete algum ato infracional e eacute submetido a alguma medida socioeducativa

Esses trecircs sistemas compotildeem uma teia de proteccedilatildeo para as crianccedilas e adolescentes

Nesse sentido mesmo que estes cometam algum ato infracional respondem pelo ato

em conformidade com o seu estaacutegio de desenvolvimento seguindo sistemas peculiares

no cumprimento das medidas Como pode ser observado na forma da lei ateacute mesmo

a legislaccedilatildeo prevecirc o mau funcionamento do sistema Isto eacute quando natildeo se garante o

cumprimento das poliacuteticas sociais baacutesicas recorre-se ao sistema secundaacuterio que por

sua vez quando inoperante desemboca em accedilotildees do sistema terciaacuterio

Contudo constata-se que a legislaccedilatildeo foi construiacuteda sob o novo paradigma de proteccedilatildeo

mas entre os proacuteprios operadores do direito existe ambiguidade ao pensar o adolescen-

te nesse contexto Saraiva (1998) pontua a condiccedilatildeo do adolescente que cometeu ato

infracional como vitimizador e natildeo mais como vitimizado Ora se o novo paradigma

pressupotildee que natildeo eacute o adolescente que eacute irregular e sim sua situaccedilatildeo dever-se-ia consi-

derar que no miacutenimo o adolescente que comete o ato infracional passa da condiccedilatildeo de

somente vitimizado para vitimizado e vitimizador Compreendendo que o cometimento

do ato infracional envolve tambeacutem outras questotildees para aleacutem da uacutenica responsabilidade

do adolescente ndash tais como as dinacircmicas psicossociais

71A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

Especificamente sobre o sistema secundaacuterio que trata das Medidas Protetivas o ECA

dispotildee no artigo 984 que estas satildeo aplicaacuteveis sempre que os direitos reconhecidos nes-

ta lei forem ameaccedilados ou violados prevendo medidas para esses casos em seu artigo

1015

Quanto ao que Saraiva (2004) denomina de Sistema Terciaacuterio ndash que trata das medidas

aplicadas quando o adolescente comete o ato infracional6 ndash o ECA no artigo 103 de-

termina que ato infracional eacute ldquoa conduta descrita como crime ou contravenccedilatildeo penalrdquo De

acordo com o estatuto adolescente eacute aquele entre 12 e 18 anos de idade Nessa condiccedilatildeo

o adolescente eacute inimputaacutevel (natildeo responde criminalmente) mas estaacute sujeito agraves medidas

socioeducativas Aqueles que tecircm menos de 12 anos satildeo considerados crianccedilas e quan-

do cometem ato infracional ficam subordinados agraves medidas protetivas

4 Art 98 - As medidas de proteccedilatildeo agrave crianccedila e ao adolescente satildeo aplicaacuteveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaccedilados ou violados I - por accedilatildeo ou omissatildeo da sociedade ou do Estado II - por falta omissatildeo ou abuso dos pais ou responsaacutevel III - em razatildeo de sua conduta (ECA 2004)

5 Verificada qualquer das hipoacuteteses previstas no art 98 autoridade competente poderaacute determinar dentre outras as seguintes medidas I ndash encaminhamento aos pais ou responsaacutevel mediante termo de responsabilidade II ndash orientaccedilatildeo apoio e acompanhamento temporaacuterios III ndash matriacutecula e frequumlecircncia obrigatoacuterias em estabelecimento oficial de ensino fundamental IV ndash inclusatildeo em programa comunitaacuterio ou oficial de auxiacutelio agrave famiacutelia agrave crianccedila e ao adolescente V ndash requisiccedilatildeo de tratamento meacutedico psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico em regime hospitalar ou ambulatorial VI - inclusatildeo em programa oficial ou comunitaacuterio de auxiacutelio orientaccedilatildeo e tratamento a alcooacutelatras e toxicocircmanos VII ndash abrigo em entidade VIII - Colocaccedilatildeo em famiacutelia substituta Paraacutegrafo uacutenico O abrigo eacute medida provisoacuteria e excepcional utilizaacutevel como forma de transiccedilatildeo para a colocaccedilatildeo em famiacutelia substituta natildeo implicando privaccedilatildeo de liberdade (ECA 2004)

6 Art 112 Verificada a praacutetica de ato infracional a autoridade competente poderaacute aplicar ao adolescente as seguintes medidas I - advertecircncia II - obrigaccedilatildeo de reparar o dano III - prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade IV - liberdade assistida V - inserccedilatildeo em regime de semi-liberdade VI - internaccedilatildeo em estabelecimento educacional VII - qualquer uma das previstas no art 101 I a VI (ECA 2004)

72

AExecuccedilatildeodasMedidasdeProteccedilatildeo

O Conselho Tutelar eacute o principal agente operador das medidas protetivas eacute um ldquooacutergatildeo

permanente e autocircnomo natildeo jurisdicional encarregado pela sociedade de zelar pelo cum-

primento dos direitos da crianccedila e do adolescente definidos nesta Leirdquo (ECA 2004) Satildeo

previstos cinco conselheiros por municiacutepio escolhidos pela comunidade local por voto

direto cujo processo eleitoral eacute fiscalizado pelo Ministeacuterio Puacuteblico A lei municipal regu-

lamenta o local e horaacuterio de funcionamento bem como a remuneraccedilatildeo dos conselhei-

ros O ECA dispotildee que estes tenham idade superior a 21 anos residam no municiacutepio e

possuam reconhecida idoneidade moral

O papel do Conselho Tutelar postulado no ECA eacute entre outros aplicar as medidas pre-

vistas no artigo 101 (medidas protetivas) e requisitar os serviccedilos puacuteblicos nas diversas

aacutereas relacionadas a fim de assegurar o que o Estatuto prevecirc Cury Garrido e Marccedilura

(2000) lembram que cabe ao Conselho Tutelar somente a aplicaccedilatildeo dos incisos de I a

VII do artigo 101 do ECA Jaacute agrave autoridade judiciaacuteria cabe aplicar todos os incisos inclusi-

ve o inciso VIII do mesmo artigo e as medidas que tratam sobre o ato infracional entre

outros Atualmente existe um movimento de responsabilizaccedilatildeo e fortalecimento dos

Conselhos com o encaminhamento para estes oacutergatildeos dos casos envolvendo a aplicaccedilatildeo

das medidas protetivas que natildeo envolvam a guarda da crianccedila ou do adolescente

Liberati (1995) lembra que os incisos acima contemplam o exposto no art227 da Cons-

tituiccedilatildeo Federal abrangendo o atendimento agraves crianccedilas em seus direitos fundamentais

O que bem representa o paradigma da proteccedilatildeo integral em detrimento da ldquosituaccedilatildeo

irregularrdquo exposta no antigo Coacutedigo de Menores Ou seja ao compreender que os di-

reitos da crianccedila e do adolescente foram violados ou ameaccedilados se identifica o que o

autor chama de ldquosituaccedilatildeo de risco pessoal e social da crianccedila e do adolescenterdquo (p 64) que

se sobrepotildee a ldquofiguras casuiacutesticas tais como lsquomenor abandonadorsquo lsquodelinquentersquo etcrdquo (p 64)

Deste modo percebe-se o respeito ao estaacutegio de desenvolvimento peculiar das crianccedilas

e dos adolescentes quando se atribui responsabilidades a terceiros na proteccedilatildeo desses o

que se reflete nos incisos que remetem aos pais e ao Estado a competecircncia da proteccedilatildeo

Sobrepuja-se assim em termos legais a imaterialidade da responsabilidade bem como

a atribuiccedilatildeo desta somente aos ldquomenoresrdquo pela situaccedilatildeo em que vivenciam Inclusive

com a presenccedila de oacutergatildeos ligados ao Judiciaacuterio (como o Conselho Tutelar e a Vara da

Infacircncia) que exercem a funccedilatildeo mediadora no exerciacutecio dessas responsabilidades

73A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

No entanto o inciso II parece vago quando se refere ao tipo de acompanhamento a

ser realizado ldquo() A orientaccedilatildeo apoio e acompanhamento temporaacuterios que poderatildeo ser

realizada pelo Conselho Tutelar ou por serviccedilo de assistecircncia social ou ainda por serviccedilos

especializados do proacuteprio Poder Judiciaacuterio onde existam tem aplicaccedilatildeo em casos onde natildeo haacute

uma causa que possa ser incluiacuteda dentre as hipoacuteteses de tratamento meacutedico-psicoloacutegico e onde

natildeo exista omissatildeo imputaacutevel aos pais ou responsaacutevel a justificar a aplicaccedilatildeo das medidas dos

incisos VII ou VIII por exemplordquo (Mezzomo 2004 p 3)

Outros autores ponderam que o acompanhamento previsto no inciso II seja adminis-

trado pelo Conselho Tutelar que por sua vez deveraacute orientar seu desenvolvimento

execuccedilatildeo e conclusatildeo Liberati (1995) entende que o inciso II ldquoeacute o estudo social do caso

concreto que permitiraacute decidir se o acompanhamento da crianccedila ou adolescente seraacute feito na

famiacutelia ou em estabelecimento de educaccedilatildeo ou aprendizagem profissionalrdquo (p 67) Alberga-

ria (1991) pressupotildee a existecircncia de uma equipe interprofissional nessas instituiccedilotildees

que orientem ou ldquoassistamrdquo as crianccedilas e adolescentes Ele acrescenta que esta equipe

deveraacute enviar relatoacuterios ao Conselho Tutelar sobre o ldquotratamento educativo do menor e de

seu contexto familiarrdquo (p 73)

Todavia o inciso I parece ser mais claro ao tratar do encaminhamento aos pais Por

exemplo quando a crianccedila ou adolescente fogem de casa satildeo encaminhados aos pais

pelo Conselho Tutelar mediante termo de responsabilidade como pontua Liberati

(1995) Albergaria (1991) lembra que esse termo natildeo se restringe a uma formalidade

legal mais que isso deve ser apresentado aos pais diretrizes por parte da equipe inter-

disciplinar que o autor sugere ser da Vara da Infacircncia ou do Conselho Tutelar (p122)

Com relaccedilatildeo ao inciso IV Albegaria (1991) afirma que o programa comunitaacuterio eacute ldquodesti-

nado agrave promoccedilatildeo do bem-estar humano e social da populaccedilatildeo marginalizadardquo (p73) e prevecirc

a participaccedilatildeo da sociedade conjuntamente com o Estado na proteccedilatildeo social agraves crianccedilas

e adolescentes Este inciso tambeacutem parece vago embora Liberati (1995) enumere os

clubes oacutergatildeos de orientaccedilatildeo e aconselhamento familiar como recursos de execuccedilatildeo de

programas agrave famiacutelia agrave crianccedila e ao adolescente

Nota-se aqui que a histoacuteria da poliacutetica de assistecircncia social se entrelaccedila com o avanccedilo

sob o qual o ECA foi construiacutedo Pois assim como o estatuto a poliacutetica de assistecircncia

social tal como hoje eacute concebida eacute produto de uma mobilizaccedilatildeo histoacuterica Nogueira

74

(1994) acentua que a poliacutetica de assistecircncia social eacute sobretudo uma poliacutetica de in-

clusatildeo pois pretende alterar a situaccedilatildeo de exclusatildeo e para tanto deve ser alterativa e

alternativa ao inveacutes de ser simplesmente alternativa compensatoacuteria O autor coloca que

diferente da poliacutetica de assistecircncia social que eacute alternativa o assistencialismo pretende

manter o status quo como uma poliacutetica de anestesia ldquovocecirc anestesia aquela sociedade para

que ela suporte a dor para que natildeo se torne agudo o sofrimentordquo (p 17) O autor declara que

o sofrimento agudo suscita revolta e o crocircnico apatia

Alguns marcos legais representam bem essa mudanccedila Conforme disposto no artigo

203 da Constituiccedilatildeo Federal Brasileira a assistecircncia social eacute prestada a quem dela ne-

cessitar contrariamente agrave ideia de que a assistecircncia social seria somente para aqueles

empobrecidos economicamente Para tanto em 1993 foi publicada a Lei Orgacircnica da

Assistecircncia Social (LOAS) que regulamenta baseada nos princiacutepios da Carta Magna

Brasileira a assistecircncia social no paiacutes Em 2003 foi deliberada a construccedilatildeo do SUAS

(Sistema Uacutenico da Assistecircncia Social) enquanto um sistema que garante o que a LOAS

prevecirc integrando estados e municiacutepios na execuccedilatildeo dos direitos soacutecio-assistenciais

Por fim no ano de 2004 comeccedila a ser construiacuteda e implementada a Poliacutetica Nacional

de Assistecircncia Social (PNAS) com o objetivo de apontar ldquodiretrizes para a efetivaccedilatildeo da

assistecircncia social como direito de cidadania e responsabilidade do Estadordquo (PNAS 2004)

A PNAS entende a realidade entre outros olhares como ldquouma visatildeo social de proteccedilatildeordquo

(PNAS 2004) e aponta este conceito baseado em Di Giovanni

formas institucionalizadas que as sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de seus membros Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natural ou social tais como a velhice a doenccedila o infortuacutenio as privaccedilotildees () Neste conceito tambeacutem tanto as formas seletivas de distribuiccedilatildeo e redistribuiccedilatildeo de bens materiais (como comida e o dinheiro) quanto os bens culturais (como os saberes) que permitiratildeo a sobrevivecircncia e a integraccedilatildeo sob vaacuterias formas na vida social Ainda os princiacutepios reguladores e as normas que com intuito de proteccedilatildeo fazem parte da vida das coletividades (PNAS 2004)

A PNAS (2004) tem como diretrizes a descentralizaccedilatildeo administrativa ou seja a execu-

ccedilatildeo dos serviccedilos compete aos estados e municiacutepios ainda que as normas e coordenaccedilatildeo

geral sejam da esfera federal participaccedilatildeo popular por meio de organizaccedilotildees represen-

tativas e centralidade na famiacutelia na concepccedilatildeo e accedilatildeo dos serviccedilos Satildeo considerados

usuaacuterios da Poliacutetica de Assistecircncia Social famiacutelias e indiviacuteduos com perda ou fragilida-

75A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

de de viacutenculos de afetividade pertencimento e sociabilidade ciclos de vida identidades

estigmatizadas em termos eacutetnico cultural e sexual desvantagem pessoal resultante de

deficiecircncias exclusatildeo pela pobreza e ou no acesso agraves demais poliacuteticas puacuteblicas uso

de substacircncias psicoativas diferentes formas de violecircncia advinda do nuacutecleo familiar

grupos e indiviacuteduos inserccedilatildeo precaacuteria ou natildeo inserccedilatildeo no mercado de trabalho formal

e informal estrateacutegias e alternativas diferenciadas de sobrevivecircncia que podem repre-

sentar risco pessoal e social

Percebe-se que a PNAS abrange diversos segmentos no que se refere aos seus usuaacuterios

natildeo apenas agraves pessoas empobrecidas economicamente Com relaccedilatildeo agrave proteccedilatildeo social

a PNAS traz duas definiccedilotildees a proteccedilatildeo social baacutesica e a proteccedilatildeo social especial A pri-

meira voltada agrave prevenccedilatildeo dirige-se a desenvolver potencialidades e o fortalecimento

de viacutenculos familiares e comunitaacuterios Seu puacuteblico eacute a populaccedilatildeo que vive em situaccedilatildeo

de vulnerabilidade social decorrente da pobreza privaccedilatildeo (ausecircncia de renda precaacuterio

ou nulo acesso aos serviccedilos puacuteblicos dentre outros) e ou fragilizaccedilatildeo de viacutenculos afe-

tivos ndash relacionais e de pertencimento social (discriminaccedilotildees etaacuterias eacutetnicas de gecircnero

ou por deficiecircncias dentre outras)

As accedilotildees de proteccedilatildeo social baacutesica satildeo realizadas nos Centros de Referecircncia da Assis-

tecircncia Social (CRAS) Segundo a PNAS os centros devem desenvolver atividades de

convivecircncia e fortalecimento de viacutenculos para crianccedilas adolescentes jovens e idosos

bem como a execuccedilatildeo de programas de inclusatildeo produtiva e enfrentamento da pobreza

voltados para o trabalho e o Programa de Atenccedilatildeo Integral agraves Famiacutelias Este uacuteltimo con-

siste em ldquoum conjunto de accedilotildees relativas agrave acolhida informaccedilatildeo e orientaccedilatildeo inserccedilatildeo em

serviccedilos da assistecircncia social tais como socioeducativos e de convivecircncia encaminhamentos

a outras poliacuteticas promoccedilatildeo de acesso agrave renda e especialmente acompanhamento sociofami-

liarrdquo (Ministeacuterio do Desenvolvimento Social e Combate agrave Fome Programa de Atenccedilatildeo

Integral agrave Famiacutelia sd)

Quanto agrave proteccedilatildeo social baacutesica conta-se tambeacutem com os Centros de Orientaccedilatildeo Socioe-

ducativos (COSEs) Nestes centros estatais assim como em entidades conveniadas com

o governo local satildeo realizadas as atividades de convivecircncia Tambeacutem satildeo os locais de

execuccedilatildeo do inciso IV do ECA referente a programas de auxiacutelio agrave famiacutelia a crianccedila e ao

adolescente Embora natildeo haja regulamentaccedilatildeo sobre essa informaccedilatildeo na praacutetica esta

tem sido sua forma de funcionamento

76

Ao lembrar que a famiacutelia em medida protetiva eacute aquela cujo direito foi violado pode-

-se concluir que existe nesses centros uma interface tambeacutem com a proteccedilatildeo social

especial haja vista que baseado no exposto na PNAS a diferenccedila da proteccedilatildeo baacutesica e

da proteccedilatildeo especial eacute que esta uacuteltima trata de um atendimento dirigido a situaccedilotildees de

violaccedilotildees de direitos Haacute portanto uma relaccedilatildeo tecircnue de difiacutecil diferenciaccedilatildeo tendo em

vista a falta de definiccedilatildeo mais expliacutecita dos conceitos Seraacute que famiacutelias em vulnerabili-

dade em funccedilatildeo da situaccedilatildeo econocircmica jaacute natildeo tiveram seus direitos violados E seraacute que

famiacutelias em situaccedilatildeo de vulnerabilidade tecircm seus viacutenculos fragilizados

Assim eacute definida a proteccedilatildeo social especial eacute a modalidade de atendimento assistencial

destinada a famiacutelias e indiviacuteduos que se encontram em situaccedilatildeo de risco pessoal e so-

cial por ocorrecircncia de abandono maus tratos fiacutesicos e ou psiacutequicos abuso sexual uso

de substacircncias psicoativas cumprimento de medidas socioeducativas situaccedilatildeo de rua

situaccedilatildeo de trabalho infantil entre outras (PNAS 2004)

Nos Centros de Referecircncia Especial da Assistecircncia Social (CREAS) satildeo realizados entre

outros serviccedilos de orientaccedilatildeo e apoio sociofamiliar visando fortalecer o conviacutevio fami-

liar e comunitaacuterio A PNAS prevecirc que cabe ao CREAS o acompanhamento das medidas

socioeducativas em meio aberto

AsMedidasSocioeducativas

O objetivo preciacutepuo da medida socioeducativa eacute educar o adolescente para o conviacutevio so-

cial de forma que ele natildeo volte a cometer atos infracionais e aprenda a conviver em so-

ciedade sem quebrar normas Portanto o foco de intervenccedilatildeo do psicoacutelogo no contexto

da socioeducaccedilatildeo deve levar em consideraccedilatildeo os trecircs aspectos fundamentais referentes

agraves funccedilotildees da medida socioeducativa descritas por Selosse (1997) quais sejam 1) seu

caraacuteter sancionatoacuterio ou seja o aspecto coercitivo da medida face agrave transgressatildeo come-

tida isto eacute a relaccedilatildeo do adolescente com a lei 2) seu caraacuteter educativo ou reeducativo a

reconciliaccedilatildeo do adolescente com seu entorno social em outros padrotildees relacionais ou

seja a relaccedilatildeo do adolescente com a sociedade e 3) seu caraacuteter reparatoacuterio a reconcilia-

ccedilatildeo do adolescente consigo mesmo por meio de processo interno que favorece a resti-

tuiccedilatildeo de sua imagem pessoal que fora contaminada pelo ato infracional ou a relaccedilatildeo

do adolescente com ele mesmo

77A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

Apoacutes a verificaccedilatildeo do ato infracional as medidas socioeducativas satildeo aplicadas pelo

juiz que considera a capacidade do adolescente em cumpri-las (ECA 2004) Veronese

(2006) comenta que a gravidade da infraccedilatildeo tambeacutem eacute analisada para aplicaccedilatildeo das me-

didas e deve ser feito de maneira ponderada considerando as circunstacircncias O adoles-

cente responderaacute pelo ato a partir do processo legal O ato eacute investigado pela delegacia

especializada ndash a Delegacia da Crianccedila e do Adolescente (DCA) ndash e depois a notificaccedilatildeo

eacute remetida agrave Vara da Infacircncia e Juventude (VIJ) para a instauraccedilatildeo do processo

Entende-se que a DCA e a VIJ ainda que tratem do processo legal relacionado aos atos

infracionais exercem seu poder de proteccedilatildeo por assegurar o devido andamento a esse

processo Contudo para assegurar outros direitos de proteccedilatildeo agrave crianccedila e ao adolescen-

te a populaccedilatildeo em vulnerabilidade natildeo conta com oacutergatildeos que lhes sejam acessiacuteveis

quanto agrave localizaccedilatildeo

Apoacutes o julgamento do processo as medidas socioeducativas satildeo aplicadas

Advertecircncia censura verbal realizada pelo juiz seguida de um termo assinado Volpi

(2005) acredita que esta medida eacute coercitiva e possui caraacuteter intimidatoacuterio que deveraacute

contar com a presenccedila dos responsaacuteveis como um ato ritualiacutestico (p 25) Contudo Vero-

nese (2006) descreve a natureza pedagoacutegica desta medida e ressalta que a presenccedila dos

pais eacute importante em razatildeo da responsabilidade desses sobre os adolescentes

Obrigaccedilatildeo de reparar o dano o juiz determina que o adolescente restitua eou recom-

pense a viacutetima Volpi (2005) considera esta medida ldquocoercitiva e educativa levando o

adolescente a reconhecer o erro e a reparaacute-lordquo (p 23) Veronese (2006) complementa que o

autor do ato infracional tambeacutem pode responder civilmente dependendo da natureza

de sua accedilatildeo Liberati (1995) pondera que os pais respondem solidariamente no processo

pela obrigaccedilatildeo de ressarcir o dano se seus filhos tiverem entre 16 e 21 anos antes disso

somente os pais ou responsaacuteveis legais respondem civilmente Mezzomo (2004) ressal-

ta quanto a esta medida que ldquoobrigaccedilatildeo de reparar o dano por oacutebvio que pressupotildee infraccedilatildeo

compatiacutevel com a espeacutecie visto que nem toda infraccedilatildeo deixa um dano a repararrdquo (p 7)

A prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade com duraccedilatildeo maacutexima de seis meses o adoles-

cente realiza tarefas gratuitamente em instituiccedilotildees de interesse puacuteblico respeitando o

horaacuterio da escola e de trabalho (caso exerccedila) Atualmente esta medida assim como a

78

obrigaccedilatildeo de reparar o dano eacute acompanhada pela Seccedilatildeo de Medidas Socioeducativas da

1ordf Vara da Infacircncia e Juventude do Tribunal de Justiccedila do Distrito Federal e Territoacuterios

(SEMSEVIJTJDFT) Veronese (2006) lembra que para a prestaccedilatildeo de serviccedilo eacute suge-

rido que haja uma relaccedilatildeo com o ato infracional mas que tal condiccedilatildeo natildeo eacute determi-

nada legalmente (p 100) Liberati (1995) acrescenta que ldquoas tarefas devem ser atribuiacutedas

conforme a aptidatildeo do adolescenterdquo (p 86) Esta medida evidencia a co-participaccedilatildeo social

no trato agraves questotildees da adolescecircncia tal qual previsto legalmente (Albergaria 1991)

uma vez que o adolescente presta serviccedilo em meio comunitaacuterio Por fim Volpi (2005)

ressalta que esta medida seraacute mais efetiva ldquona medida em que houver o adequado acompa-

nhamento do adolescente pelo oacutergatildeo executor o apoio da entidade que o recebe e a utilidade

real da dimensatildeo social do trabalho realizadordquo (p 24)

Liberdade Assistida (LA) adotada quando eacute a medida pertinente para ldquoacompanhar au-

xiliar e orientar o adolescenterdquo (ECA 2004) quando do cometimento de um ato infracio-

nal Volpi (2005) avalia a medida de LA como coercitiva por sua necessidade de acom-

panhamento da vida social do adolescente e educativa na garantia de ldquoproteccedilatildeo inserccedilatildeo

comunitaacuteria cotidiano manutenccedilatildeo de viacutenculos familiares frequumlecircncia agrave escola e inserccedilatildeo no

mercado de trabalho eou cursos profissionalizantes e formativosrdquo (p 24)

Esta medida tem a duraccedilatildeo miacutenima de seis meses podendo ser substituiacuteda prorrogada

ou revogada pelo oacutergatildeo de justiccedila Trata-se de um acompanhamento especial ao adoles-

cente em meio aberto supervisatildeo que inclusive Albergaria (1991) afirma depender o

cumprimento adequado da medida O autor acrescenta que agrave medida de LA o juiz pode

aplicar concomitantemente as outras duas medidas socioeducativas supracitadas bem

como realizar outros encaminhamentos como algum tratamento por exemplo

As medidas em meio aberto tem a vantagem de manter o adolescente em seu meio

natural natildeo o afastando de sua convivecircncia familiar e comunitaacuteria e portanto devem

ser acompanhadas e aplicadas preferencialmente nas localidades de moradia dos ado-

lescentes Neste sentido faz-se imprescindiacutevel um acompanhamento que propicie que

este adolescente ressignifique sua realidade ao estar nela inserido

Regime de semi-liberdade esta medida natildeo possui prazo normalmente sendo conce-

dida como transiccedilatildeo ao meio-aberto Assim como a medida de LA a medida de semi-

-liberdade eacute aplicada quando do cometimento de ato infracional e possui como eixo de

79A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

acompanhamento a obrigatoriedade escolar e a preocupaccedilatildeo com a inserccedilatildeo no merca-

do de trabalho Como lembra Veronese (2006) nesta medida o adolescente eacute recolhido

em um estabelecimento mas durante o dia pode realizar atividades externas A autora

acrescenta que esta medida pode ser determinada desde o inicio ou como relaxamento

do regime de internaccedilatildeo no caminho para a liberdade assistida

Internaccedilatildeo uacuteltima medida a ser aplicada quando todas as outras natildeo couberem mais

quando existe ameaccedila ou violecircncia agrave pessoa repeticcedilatildeo das infraccedilotildees ou descumprimen-

to injustificaacutevel da medida anterior A internaccedilatildeo dura no maacuteximo trecircs anos devendo

ser avaliada a cada seis meses Se o motivo da internaccedilatildeo for o descumprimento injus-

tificaacutevel da medida anterior o prazo de internaccedilatildeo natildeo poderaacute exceder trecircs meses Aos

21 anos a liberaccedilatildeo eacute compulsoacuteria ponderando que o limite maacuteximo de internaccedilatildeo eacute de

trecircs anos e caso o adolescente tenha cometido o ato infracional aos 17 anos ele poderaacute

ficar no regime de internaccedilatildeo somente ateacute esse prazo

Haacute duas modalidades de internaccedilatildeo a provisoacuteria de no maacuteximo 45 dias na qual o ado-

lescente aguarda o pronunciamento judicial e a estrita onde eacute cumprida essa medida

socioeducativa Posteriormente o adolescente eacute submetido agrave semi-liberdade ou agrave liber-

dade assistida como transiccedilatildeo agrave liberdade

Concomitante agraves medidas socioeducativas estaacute prevista a aplicaccedilatildeo de qualquer um

dos incisos previstos no artigo 101 Isto porque lembrando o inciso III do artigo 98 a

medida protetiva pode ser aplicada em funccedilatildeo da conduta do proacuteprio adolescente nesse

caso o ato infracional

Volpi (2005) ressalta que a medida de internaccedilatildeo limita ldquoo exerciacutecio pleno do direito e ir e

vir e natildeo de outros direitos constitucionaisrdquo (p 28) podendo sair acompanhado da equipe

teacutecnica para atividades externas salvo impedimento judicial (artigo 121 sect1 ECA) Outros

direitos satildeo assegurados no que concerne agrave internaccedilatildeo conforme artigo 123 do ECA a

saber a exclusividade do local de cumprimento da medida a separaccedilatildeo dos adolescentes

pela idade gravidade da infraccedilatildeo e porte fiacutesico No artigo 124 do ECA tambeacutem satildeo pre-

vistos o acesso dos adolescentes em internaccedilatildeo agrave informaccedilatildeo processual escolarizaccedilatildeo

profissionalizaccedilatildeo atividades culturais esportivas meios de comunicaccedilatildeo contato com

familiares e amigos visitas semanais condiccedilotildees de higiene e salubridade entre outros

80

Eacute inequiacutevoca a constataccedilatildeo de que a pena de reclusatildeo eacute falha em seu aspecto correcional

da conduta social Tem sido sistematicamente observado que a sanccedilatildeo de restriccedilatildeo de

liberdade cria seacuterios obstaacuteculos agrave ressocializaccedilatildeo aleacutem de ferir direitos fundamentais

do cidadatildeo Por outro lado tal medida tem sido cada vez mais adotada em adolescentes

principalmente em se tratando daqueles que praticaram crimes contra o patrimocircnio

porte de armas e envolvimento com traacutefico de drogas

De fato na maioria dos casos o adolescente que comete um ato infracional de maior

gravidade acumula um histoacuterico de pequenas transgressotildees do que se pode deduzir

que as medidas anteriormente aplicadas natildeo foram eficazes pois natildeo preveniram a

reincidecircncia Assim a medida de internaccedilatildeo eacute a opccedilatildeo indicada quando todas as demais

medidas falharam em seu propoacutesito soacutecioeducativo Poreacutem natildeo se pode responsabili-

zar o Estatuto pelas falhas na aplicaccedilatildeo das medidas pois na realidade as medidas natildeo

estatildeo sendo aplicadas de acordo com o que estaacute previsto A responsabilidade natildeo eacute outra

senatildeo da proacutepria sociedade que fracassou na aplicaccedilatildeo dos mecanismos estabelecidos

mas que insiste na praacutetica estereotipada de travestir sua culpa e condenar os proacuteprios

adolescentes pela inobservacircncia da lei

Paralelamente ao movimento antimanicomial ndash que libertou os loucos da reclusatildeo dos

hospiacutecios ndash e na contramatildeo da humanizaccedilatildeo dos serviccedilos a histoacuteria tenta repetir o iso-

lamento social dos jovens indesejaacuteveis trancafiando-os em verdadeiras prisotildees

Vaacutelido lembrar como exposto por Volpi (2005) que as medidas soacutecioeducativas devem

garantir ao adolescente as ldquooportunidades de superaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo de exclusatildeordquo (p 21)

com a participaccedilatildeo da famiacutelia e da comunidade

Mesmo com os direitos previstos no ECA em 2004 foi sistematizada e organizada a

proposta do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) Pretende-se

que este sistema guie a implementaccedilatildeo das medidas soicoeducativas Nele satildeo contem-

plados desde paracircmetros pedagoacutegicos ateacute questotildees de financiamento e responsabilida-

de de gestatildeo avaliaccedilatildeo e monitoramento perpassando tambeacutem por normas e defini-

ccedilotildees teacutecnicas relacionadas ao aspecto arquitetocircnico das unidades aleacutem de princiacutepios

e marcos legais que norteiam esse sistema com o conceito de integraccedilatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas

81A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

Muito se fala dos direitos expostos no ECA Secircda (1993) recorda que o conceito de ci-

dadania aplicado a crianccedilas e adolescentes enquanto sujeito de direitos foi difundido

inicialmente como se estes soacute tivessem direitos questatildeo que foi disseminada nos meios

de comunicaccedilatildeo aos pais passando por educadores e liacutederes comunitaacuterios

Comeccedilaram assim a se formar novos usos e costumes em que pessoas mal informadas

ou mal informadoras induzem a desvios ao afirmarem que o Estatuto enfraqueceu o po-

der dos pais na educaccedilatildeo dos filhos que crianccedilas e adolescentes tecircm o direito (ilimitado)

de ir e vir natildeo podendo ser molestados que a poliacutecia estaacute impedida de cumprir suas

funccedilotildees quando depara no mundo do crime com crianccedilas e adolescentes que crianccedilas

e adolescentes natildeo podem ser punidos quando se desviam das normas e assim por

diante (Secircda 1993 p 24)

O autor membro da comissatildeo redatora do Estatuto lembra que o ECA eacute um instrumen-

to ldquoa favor da sociedaderdquo (p 25) e que a todos crianccedilas adultos adolescentes e idosos

satildeo determinados direitos e responsabilidades Secircda (1993) descreve que ldquoo direito de

cada um se inicia com o seu dever Dever de respeitar o direito do outro Esse eacute o mundo da

eacutetica da responsabilidade socialrdquo (p 26) O autor tambeacutem pontua a diferenccedila de adultos

adolescentes e crianccedilas com relaccedilatildeo ao Direito assinalando que os primeiros tecircm ldquoo po-

der de se autodeterminarem em suas relaccedilotildees sociaisrdquo (p 31) Por exemplo conforme a legis-

laccedilatildeo brasileira a partir dos 12 anos o adolescente tem a capacidade de discernimento

para fazer ou natildeo atos que a lei define como crimes e contravenccedilotildees sendo portanto

autodeterminado para esse fim especiacutefico e natildeo para outros Jaacute no caso de crianccedilas ateacute

12 anos quando da praacutetica de tais atos ficam submetidas (conforme jaacute mencionado) agraves

medidas de proteccedilatildeo

Nesse sentido Veronese (2006) ressalta que

O Estatuto obriga sim ele responsabiliza condutas compreendidas como atos infracionais atraveacutes das medidas socioeducativas portanto servindo-se de mecanismos instrumentos de caraacuteter social e educacional pretende-se a real inserccedilatildeo do adolescente que praticou o suposto ato sem discriminaccedilotildees sem roacutetulos sem a perversidade da exclusatildeo social (p 110)

Saraiva (1998) lembra que a ldquoinimputabilidade natildeo implica impunidade uma que estabele-

ce medidas de responsabilizaccedilatildeo compatiacuteveis com a condiccedilatildeo peculiar de pessoa em desenvol-

vimento destes agentesrdquo (p 15) Diante do exposto observa-se que o ECA eacute um potencial

82

instrumento de direitos e deveres e sobretudo de proteccedilatildeo que se coaduna sincronica-

mente com os princiacutepios constitucionais e que envolve uma ampla rede de atendimen-

to

Contudo o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente tambeacutem eacute alvo de controveacutersias tanto

referente aos seus fundamentos que em geral natildeo satildeo bem interpretados ou possui

equiacutevocos juriacutedicos (Cavallieri 1995) quanto agrave sua execuccedilatildeo responsabilidade dos Po-

deres Legislativo Executivo e Judiciaacuterio e dos demais atores e agentes da sociedade civil

organizada e natildeo organizada

Pereira (2006) ao analisar o ECA e os comportamentos de diversos aplicadores e exe-

cutores da lei esclarece que o ECA eacute balizado na atenccedilatildeo prioritaacuteria e garante a imple-

mentaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para crianccedilas e adolescentes proporcionando ldquoo

efetivo caraacuteter de promoccedilatildeo de mudanccedilas nas praacuteticas culturais existentesrdquo (p 12) Poreacutem

o comportamento dos executores natildeo corresponde ainda a tais mudanccedilas Vaacuterias pes-

quisas que permeiam o direito das crianccedilas e adolescentes possuem essa criacutetica Nessa

direccedilatildeo Fucks (2004) apresenta as contradiccedilotildees entre o direito real e o direito legal e

mostra a natildeo prioridade do adolescente autor de ato infracional nas poliacuteticas puacuteblicas

refletida na morosidade insuficiecircncia e ineficaacutecia dos serviccedilos prestados aos adolescen-

tes Nogueira (1994) pontua que o anuacutencio dos direitos de crianccedilas e adolescentes agraves

vezes se transforma em uma ironia diante da realidade de natildeo acesso a esses direitos

por alguns deles tal qual acena Dimenstein (1998) em Cidadatildeo de Papel

ConsideraccedilotildeesFinais

Percebe-se que o paradigma da proteccedilatildeo integral e o estatuto que o alicerccedila representam

uma notaacutevel mudanccedila na compreensatildeo dos cuidados com a infacircncia e a adolescecircn-

cia no Brasil Sob essa perspectiva a proteccedilatildeo aplica-se prioritariamente agrave crianccedila e ao

adolescente com a integraccedilatildeo da famiacutelia da sociedade e do Estado em detrimento de

uma poliacutetica que buscava defender muitas vezes a famiacutelia a sociedade e o Estado dos

ldquomenores perigososrdquo Em vista disso eacute o princiacutepio do melhor interesse que prevalece cuja

primazia se faz em torno dos interesses e necessidades das crianccedilas e adolescentes E

como lembra Amin (2008) ldquomaterializaacute-lo eacute dever de todosrdquo (p 29)

83A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil

Nesse sentido Mioto (2006) aponta duas questotildees relevantes para a consolidaccedilatildeo da

proteccedilatildeo integral uma nova concepccedilatildeo de assistecircncia agraves famiacutelias e por conseguinte

outra postura diante destas A primeira diz respeito agrave compreensatildeo de que proteger as

famiacutelias implica em proteccedilatildeo agraves crianccedilas e aos adolescentes ldquodessa forma ela (a famiacutelia)

tem o direito de ser assistida para que possa desenvolver com tranquumlilidade suas tarefas de

proteccedilatildeo e socializaccedilatildeo das novas geraccedilotildees e natildeo penalizada pelas suas impossibilidadesrdquo (p

57) Para tanto a sociedade e especialmente os teacutecnicos dos programas de atendimento

agraves famiacutelias tecircm agrave sua frente o desafio de sobrepujar a conceituaccedilatildeo dicotocircmica entre

ldquofamiacutelias capazes e incapazes normais ou patoloacutegicas e os estereoacutetipos e preconceitos delas

decorrentesrdquo (p 57)

Por uacuteltimo conveacutem refletir sobre as reais possibilidades do alcance do trabalho da psi-

cologia nesses contextos e compreender que assim como o SINASE preconiza a in-

completude das instituiccedilotildees e a necessidade da integraccedilatildeo de diferentes atores institu-

cionais tambeacutem o psicoacutelogo precisa reconhecer a incompletude de sua atuaccedilatildeo isolada

Por isso mesmo deve nutrir-se das forccedilas de suas redes de apoio social para que suas

accedilotildees natildeo pareccedilam apenas uma gota no oceano Trabalhar em rede eacute tambeacutem exercitar

a humildade o trabalho do psicoacutelogo pode muito mas natildeo pode tudo

A pesquisa de avaliaccedilatildeo dos 10 anos do ECA jaacute apontava como ldquoo grande desafio a efetiva

implementaccedilatildeo do paradigma da proteccedilatildeo integralrdquo (p 195) para a qual o clientelismo e a

repressatildeo no acircmbito das poliacuteticas sociais representavam fortes obstaacuteculos Entre outros

aspectos a pesquisa aponta a atuaccedilatildeo em redes e o protagonismo juvenil como itens

importantes para a consolidaccedilatildeo do ECA Ainda hoje remanesce tal desafio de garantia

da proteccedilatildeo integral e do papel protagocircnico do adolescente Passados quase duas deacuteca-

das da implementaccedilatildeo do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente o cenaacuterio das poliacuteticas

de atenccedilatildeo agrave infacircncia e juventude brasileiras em situaccedilatildeo de vulnerabilidade continua

refletindo o discurso e a praacutetica das abordagens estigmatizantes do velho paradigma mi-

norista Continuamos distantes do ideal de garantir a proteccedilatildeo integral preconizada pelo

estatuto Ainda que as concepccedilotildees oriundas dos antigos coacutedigos devessem ser ldquocoisa do

passadordquo seus ldquofantasmasrdquo se manifestam de forma contundente principalmente no

discurso e na praacutetica do atendimento ao adolescente em cumprimento de medida de in-

ternaccedilatildeo dos quais ressalta o aspecto punitivo da medida em detrimento de seu aspecto

socioeducativo Resta agrave sociedade civil e ao Estado a tarefa peremptoacuteria de vigilacircncia e

observacircncia do cumprimento da lei

84

O mais importante eacute que devemos reafirmar o compromisso eacutetico profissional defen-

der os direitos humanos a garantia da humanizaccedilatildeo destes serviccedilos e criar propostas

ousadas de atendimento principalmente aos adolescentes em conflito com a lei para

que se viabilize a emergecircncia do protagonismo juvenil longe das paacuteginas policiais Eacute

importante a presenccedila atuante do psicoacutelogo nesses contextos para fazer valer os direitos

do adolescente A privaccedilatildeo de liberdade deve se restringir apenas ao direito de ir e vir

Devem-se garantir a proteccedilatildeo integral a crianccedilas e adolescente aleacutem de seus direitos agrave

liberdade de expressatildeo de comunicaccedilatildeo de criaccedilatildeo de manifestaccedilatildeo da espontaneida-

de de dar e receber afeto de poder acreditar

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87 Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

ElviaTaracena

En este artiacuteculo se presenta una siacutentesis de los trabajos de investigacioacuten realizados des-

de una perspectiva socio-cliacutenica a lo largo de 15 antildeos en torno al programa Subjetivi-

dad y Sociedad de la FES-Iztacala Retomamos tambieacuten algunos otros estudios que son

acordes a la perspectiva que manejamos para ampliar la mirada y enriquecer nuestros

trabajos

Hemos defendido en todos estos antildeos la necesidad de hacer una investigacioacuten ligada al

campo de la intervencioacuten que permita caracterizar la complejidad del fenoacutemeno de la

vida en la calle En cada uno de los acercamientos a nintildeos y joacutevenes en riesgo o en situa-

cioacuten de calle hemos propuesto actividades que les sean uacutetiles y que puedan interesarles

a traveacutes de eacutestas hemos podido observar el fenoacutemeno de la vida en la calle y los aspectos

de su vida personal o su entorno social que los pone en riesgo asiacute como los procesos de

adaptacioacuten a la calle y su forma de responder a los conflictos Tomar en cuenta la posibi-

88

lidad de devolver a los nintildeos y joacutevenes y a las Asociaciones u organizaciones que trabajan

con ellos algo a cambio de aceptar dialogar con nosotros ha permitido equilibrar los

teacuterminos de la relacioacuten

En el mismo sentido un aspecto sumamente importante es el anaacutelisis de la implicacioacuten

del investigador en un proceso de intervencioacuten-investigacioacuten Ya que los sentimientos

las emociones las representaciones influyen las hipoacutetesis de trabajo y la relacioacuten con

los joacutevenes

Privilegiamos una perspectiva cualitativa de investigacioacuten ya que en nuestra opinioacuten

posibilita estudiar de manera fina los procesos implicados en los fenoacutemenos de margi-

nalizacioacuten y estigmatizacioacuten que se manifiestan en la vida en la calle En esta trayectoria

de investigacioacuten-intervencioacuten han participado la autora de este artiacuteculo investigadores

de este programa y estudiantes de Psicologiacutea quienes han realizado sus tesis mismas

que se citan en sus aportaciones

A traveacutes de estos trabajos se intenta dar cuenta de la realidad psicosocial del joven en si-

tuacioacuten de calle7 de su relacioacuten con el espacio de su relacioacuten con la economiacutea informal

y con las relaciones de poder Se han realizado estudios de caso individuales o de grupo

auxiliaacutendose con entrevistas cliacutenicas en profundidad y utilizando a menudo el dibujo

para explorar la realidad psiacutequica del nintildeo y del joven (Taracena y Tavera 1992 1996

1998 2001 Martiacutenez y Melgarejo 1996 Maacuterquez y Ordoacutentildeez 1996 Taracena Tavera y

Castillo 1993) En cada caso se pretende articular los aspectos sociales que caracterizan

la vida en la calle con las formas de expresioacuten singular de grupos o individuos con los

que hemos estado en relacioacuten para comprender mejor lo que significa la experiencia de

vivir y trabajar en la calle

El intereacutes de los estudios realizados ha sido tambieacuten explorar el caraacutecter psicosocial de

los fenoacutemenos de la salida a la calle de nintildeos y joacutevenes y resaltar la imposibilidad de la

familia y las instituciones como espacios previstos por la sociedad para la crianza del

7 A lo largo de nuestro trabajo hemos observado que el numero de nintildeos solos en las calles ha disminuido y ha aumentado el de adolescentes o joacutevenes adultas es por esta razoacuten que ha menudo utilizamos en este artiacuteculo el teacutermino joven para designar de forma geneacuterica los nintildeos y los adolescentes que se encuentran en la calle por otro lado el teacutermino en situacioacuten de calle designa los nintildeos que trabajan y los que viven en la calle

89Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

pequentildeo para funcionar como lugares de contencioacuten Por ello pensamos que es necesa-

rio mostrar que este fenoacutemeno estaacute ligado al sistema de inequidad en el cual estaacute basada

la sociedad mexicana actual En Meacutexico encontramos contradicciones tales como el he-

cho de que un hombre pueda acumular una riqueza imposible de gastaacutersela en su vida

y tampoco en la de varias generaciones de sus descendientes y que al mismo tiempo

haya millones de mexicanos que viven en una situacioacuten de pobreza extrema

La vida en la calle es una expresioacuten de esa inequidad y se va matizando por las historias

particulares de familias y de personas Especialmente en las grandes urbes la calle

ofrece espacios donde se pueden obtener beneficios materiales y formas de subsisten-

cia pero donde tambieacuten se roza la miseria el abuso del poder y la violencia Es por

esto que en nuestro trabajo vamos siempre de las condiciones sociales a las historias

individuales y viceversa en un movimiento recursivo que intenta dar cuenta de la com-

plejidad del fenoacutemeno

Los objetivos de estos estudios han sido

bull Conocer las representaciones que tienen los diferentes sectores sociales del fenoacute-

meno del trabajo y la vida de los nintildeos en la calle

bull Conocer las condiciones de vida y de trabajo de los nintildeos y joacutevenes de la calle para

sentildealar los riesgos que enfrentan pero tambieacuten sus posibilidades de aprendizaje

bull Conocer la representacioacuten que tiene la prensa de los joacutevenes de la calle

bull Conocer las caracteriacutesticas y la relacioacuten que establecen con sus familias asiacute como

la representacioacuten que tienen ellas

bull Realizar una reflexioacuten teoacuterica sobre la constitucioacuten de la identidad en condiciones

de marginalidad y sobre los mecanismos psico-sociales implicados en el grupo

como forma de organizacioacuten de la vida en la calle

Con base en dichos estudios planteamos hipoacutetesis sobre las condiciones de vida de

los joacutevenes de la calle Hemos puesto atencioacuten al anaacutelisis de los procesos sociales que

influyen en las trayectorias personales sin restarles importancia a las mismas Nos ha

interesado tambieacuten abordar el fenoacutemeno de la vida en la calle desde varias disciplinas

articulando conceptos que nos permitan tener una mejor comprensioacuten de la compleji-

dad del problema

90

Laeconomiacuteadelasupervivencia

De acuerdo con los datos del Banco Mundial sobre Meacutexico en el antildeo 2007 el ingreso Per

capita estimado es de 10108 doacutelares sin embargo tambieacuten sentildealan que de una pobla-

cioacuten total de 1074 millones el 45 gana menos de un doacutelar al diacutea y el 204 menos

de dos doacutelares esto significa que casi 25 millones de mexicanos estaacuten muy lejos de ac-

ceder al salario miacutenimo Por otro lado de acuerdo con los datos del CONEVAL (Consejo

Nacional de la Evaluacioacuten de la Poliacutetica de Desarrollo Social) en el 2007 se plantea que

A pesar de la tendencia a la reduccioacuten de la pobreza en los uacuteltimos antildeos se aprecia que este indicador se encuentra hoy en diacutea en niveles similares a los de 1992 47 por ciento de la poblacioacuten del paiacutes estaacute en situacioacuten de pobreza patrimonial y 182 por ciento en pobreza alimentaria De no incrementarse de manera acelerada los salarios reales y el empleo en el paiacutes los cuales son los principales motores del ingreso la pobreza no podraacute reducirse de manera sustantiva en el mediano y largo plazo

Esto significa que las estimaciones inducen a errores si se piensa que la calidad de

vida ha aumentado en Meacutexico ya que un sector importante de la poblacioacuten enfrenta

problemas de pobreza y en consecuencia desnutricioacuten y dificultades en atencioacuten a la

salud De acuerdo con el estudio realizado por el Dr Abelardo Aacutevila Curiel del Instituto

Nacional de Ciencias Meacutedicas y Nutricioacuten ldquoSalvador Zubiraacutenrdquo (INNSZ) sobre el estado

de la desnutricioacuten en Meacutexico se reporta que hay 972534 nintildeos desnutridos has el 18 de

septiembre del 2008

A consecuencia de la crisis econoacutemica y alimentaria el INNSZ estima un probable

aumento en la desnutricioacuten infantil en el 20 por ciento de la poblacioacuten maacutes pobre del

paiacutes y que se detenga el descenso de la mortalidad infantil que se habiacutea logrado en la

uacuteltima deacutecada8

8 httporganicconsumersorgACOartiacuteculos_15620cfm

91Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

La diferencia entre los niveles de vida y los ingresos entre las diferentes poblaciones en

Meacutexico ha sido muy marcada La distancia entre los pobres y los ricos se hace cada diacutea

mayor Ya en 1995 Julieta Campos observaba que la distancia entre los ricos y los po-

bres aumentoacute como resultado de los movimientos poliacuteticos y de adaptacioacuten del modelo

econoacutemico neoliberal La autora sentildeala que ya desde el noventa y cinco el ingreso de las

24 familias maacutes ricas de Meacutexico es equivalente al de 25 millones de los mexicanos maacutes

pobres

En un periodo de la historia reciente del paiacutes se creyoacute en un milagro econoacutemico Entre

los antildeos 30 y los 70 Meacutexico obtuvo un crecimiento espectacular de su PIB duplicaacutendolo

praacutecticamente9 lo que produjo una migracioacuten hacia las ciudades en particular hacia

la ciudad de Meacutexico que en 40 antildeos ha quintuplicado su poblacioacuten10 Un crecimiento

tan raacutepido ha impedido la absorcioacuten de estas poblaciones y con ello asistimos a la pro-

liferacioacuten de cinturones de miseria Estas nuevas entidades han alterado las formas de

organizacioacuten de la ciudad en particular el cambio de los barrios populares en el des-

plazamiento de poblaciones Las personas que llegan a Meacutexico desarrollan estrategias

de apropiacioacuten de la tierra de demanda de servicios y crean nuevas formas de acultu-

racioacuten11

Sin embargo las diversas crisis econoacutemicas que han golpeado al paiacutes desde los antildeos 80

no han hecho maacutes que aumentar la tasa de pobreza el nuacutemero de personas que viven

en un estado extremo de pobreza ha aumentado constantemente12 La crisis econoacutemica

y la migracioacuten en las zonas urbanas han contribuido al aumento del nuacutemero de perso-

nas que subsisten gracias al comercio ambulante Podemos distinguir varias categoriacuteas

de vendedores algunos de ellos teniendo un papel importante en la economiacutea informal

otros situaacutendose en el liacutemite de la mendicidad disfrazada

9 Seguacuten numerosos estudios el PIB pasoacute del 36 al 67 en ese periacuteodo

10 Meacutexico teniacutea en 1960 54 millones de habitantes y actualmente cuenta con maacutes de 25 millones

11 Un ejemplo interesante es el de Ciudad Netzahualcoacuteyotl que pasa de ser un gran cinturoacuten de miseria a ser un barrio popular con servicios y con una identidad propia en un periodo de 20 antildeos

12 Seguacuten Pieck y Aguado (1995) entre 1984 y 1989 la poblacioacuten en situacioacuten de pobreza extrema pasoacute de 11 millones a 149 millones Ademaacutes de acuerdo con los autores este porcentaje deberaacute incrementarse dado que el modelo de desarrollo y las poliacuteticas de modernizacioacuten e industrializacioacuten no benefician maacutes que a los exportadores

92

Los vendedores ambulantes son una institucioacuten en Meacutexico cuentan con una compleja

organizacioacuten y participan a traveacutes de sus liacutederes en la vida poliacutetica y social de los barrios

Estos mismos liacutederes aseguran los lazos entre los sectores formales e informales de la

economiacutea de un barrio y poseen a traveacutes de actividades como la negociacioacuten de permi-

sos y de espacios una forma importante de poder (Castro 1990)13

Otro caso es el de los vendedores de las esquinas o de semaacuteforos en alto quienes de-

ben negociar tambieacuten su lugar de venta pero participan mucho menos en las redes de

poder Estos vendedores ofrecen productos de moda o de uso corriente a bajos precios

Se trata de un mercado muy dinaacutemico pues los objetos deben ser renovados perioacutedica-

mente Este trabajo requiere ciertas habilidades el vendedor debe negociar raacutepidamen-

te convencer al cliente y buscar el beneficio mayor debe poder tambieacuten resistir a las

inclemencias del clima sol y lluvia y de la contaminacioacuten de la ciudad

Otra categoriacutea de vendedores es la que se define por las caracteriacutesticas de las personas

maacutes que por los productos vendidos Se trata de los nintildeos las mujeres de origen indiacute-

gena que a menudo llevan un nintildeo en brazos los ancianos o los discapacitados Estas

personas venden en general productos de bajo costo como dulces o chicles La relacioacuten

de venta se hace la mayoriacutea de las veces apoyada en una relacioacuten de ayuda ademaacutes del

intercambio mercantil

Los joacutevenes que lavan los parabrisas los tragafuegos o los pequentildeos payasos cuya ac-

tividad se encuentra maacutes proacutexima a la mendicidad son a menudo joacutevenes que viven en

la calle

En la Ciudad de Meacutexico hay familias enteras que sobreviven gracias a las diferentes

formas de comercio descritas A menudo toda la familia participa esto constituye una

especie de modelo familiar para asegurar los recursos econoacutemicos Las investigaciones

realizadas (Taracena 1995 Bueno 1990) muestran que ciertos joacutevenes vendedores en

la calle o aquellos que lavan los parabrisas pueden tener mayores ganancias que ciertos

obreros en una faacutebrica en ese contexto la importancia de la cantidad de dinero aportada

13 Castro Nieto (1990) estudioacute el papel de los liacutederes de los vendedores ambulantes en el Barrio de Tepito El autor pone en evidencia en su estudio la funcioacuten de control poliacutetico y social que pueden ejercer

93Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

por cada miembro de la familia puede introducir tensiones que transforman algunas

veces los lazos familiares (Taracena y Tavera 1996) Las relaciones de autoridad pueden

verse trastocadas ya que algunas veces un nintildeo pequentildeo puede aportar maacutes dinero a la

familia que alguno de los padres A menudo la consecuencia de este hecho es que el

nintildeo acepta mucho maacutes difiacutecilmente las reglas planteadas por la familia y se encuentra

seducido por el ambiente de la calle dejando de lado la escuela

En la economiacutea de la supervivencia encontramos entonces diferentes posiciones y es-

tatus desde los vendedores ambulantes organizados hasta los joacutevenes callejeros que

trabajan en situaciones maacutes o menos estructuradas hasta llegar a veces a situaciones

proacuteximas a la mendicidad

Los conceptos teoacutericos que nos pueden ayudar a dar cuenta de esta realidad no son

faacuteciles de elegir En los esfuerzos de los intelectuales mexicanos por dar cuenta de la

pobreza y de las formas de la sobrevivencia en los medios populares se escribioacute mucho

en los antildeos setenta sobre la nocioacuten de marginalidad un ejemplo de ello es el trabajo de

Lomnitz (1978) Este concepto fue abandonado en beneficio del de mercado informal

que implica una comprensioacuten populista (Fassin 1996) En esa liacutenea antropoacutelogos y so-

cioacutelogos se interesaron por el estudio de la cultura popular como una manera de conocer

los aspectos identitarios de las clases populares Las criacuteticas a esta posicioacuten mostraron

que la idea de cultura popular es un terreno de produccioacuten de discursos de estado o folk-

loacutericos que buscan definir los lazos de identidad

De acuerdo con Fassin (1996) la nocioacuten de exclusioacuten es otra propuesta para pensar la

posicioacuten de aquellos que no acceden a los derechos sociales fundamentales y deberiacutea

ser puesta en tela de juicio en ciertos paiacuteses en particular en Ameacuterica Latina donde la

poblacioacuten llamada excluida nunca ha sido incluida en una situacioacuten de empleo formal

Tal es el caso de Meacutexico en donde una parte importante de la poblacioacuten mexicana vive

de su participacioacuten en el sector informal y soacutelo una pequentildea parte de la poblacioacuten tiene

una seguridad en el empleo

De acuerdo con el observatorio de la economiacutea informal en su publicacioacuten del 9 de

Mayo del 2009 ldquoDevereux pone en primer teacutermino el hecho de que el ser humano

Los Vendedores callejeros son la cara visible de una economiacutea sumergida que no figura en las

94

estadiacutesticas oficiales pero que seguacuten el Fondo Monetario Internacional representa hasta el 30

por ciento del Producto Interno Bruto (PIB) de Meacutexico

La economiacutea informal emplea a unos 12 millones de mexicanos o la tercera parte de la poblaci-

oacuten ocupada del paiacutes seguacuten datos de la Caacutemara Nacional de la Industria de Transformacioacuten14

Quizaacute el teacutermino que maacutes se acercariacutea a la posibilidad de dar cuenta del fenoacutemeno de

los nintildeos y joacutevenes en situacioacuten de calle es el desafiliacioacuten social (Castel 1995) pues los

joacutevenes de la calle son excluidos de los sistemas de educacioacuten y salud Aunque lo ante-

rior no significa que ellos no tengan sus mecanismos de auto-adscripcioacuten a grupos de

joacutevenes que les permiten un sentimiento de pertenencia y que definen formas diferen-

tes de socializacioacuten que los impuestos por la cultura dominante

La pregunta que surge a menudo cuando se realizan acciones institucionales para tra-

bajar con esta poblacioacuten es iquestPor queacute esos joacutevenes se encuentran en la calle A menudo

la explicacioacuten que proponen los servicios sociales es maacutes bien de iacutendole psicoloacutegica ya

que tiende a responsabilizar al joven o a su familia de la expulsioacuten del nintildeo a la calle Asiacute

se insiste en constatar las fallas o faltas individuales o del grupo familiar

La descripcioacuten y anaacutelisis de la situacioacuten socio-econoacutemica y poliacutetica que subyace al incre-

mento de la poblacioacuten en situacioacuten de supervivencia es importante porque ante todo

el problema de los joacutevenes de la calle es resultado de una situacioacuten social El tratar de

explicar el fenoacutemeno de callejerizacioacuten soacutelo a partir de un marco psicoloacutegico contribui-

riacutea a des-responsabilizar al Estado y a la sociedad en su conjunto de un hecho que no

es maacutes que la expresioacuten de la sociedad en la que vivimos que se concretiza en personas

particulares

Tenemos la hipoacutetesis de que los joacutevenes que se encuentran ahora en la calle provienen

de familias que migraron del campo a la ciudad hace dos o tres generaciones y que en

el proceso de adaptacioacuten a la Ciudad de Meacutexico perdieron sus referentes culturales sin

adquirir otros Es innegable que el porcentaje mayor de joacutevenes de la calle se encuentra

en las zonas urbanas ya que en las comunidades pequentildeas los nintildeos que deben trabajar

conservan en general sus lazos con la familia y la comunidad

14 httpeconomia-informalblogspotcom

95Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

Algunos estudios realizados en la Ciudad de Meacutexico van en ese sentido Un estudio

realizado por Ekstein (1999) de 1967 a 1997 muestra la evolucioacuten de poblaciones que

participan en la economiacutea informal y en la economiacutea de la supervivencia La autora es-

tudioacute tres barrios de la Ciudad de Meacutexico en donde se realizan actividades de comercio

y donde se encuentra un gran nuacutemero de talleres y de micro-empresas familiares Uno

en el centro de la ciudad y otros dos en la periferia

En el curso de los treinta antildeos en el que Ekstein realizoacute su estudio observoacute una pauperi-

zacioacuten de las poblaciones estudiadas que los obliga a cambiarse de barrio en la buacutesque-

da de espacios y mano de obra maacutes baratos Esta movilidad ha roto a menudo el espiacuteritu

comunitario el modo de organizacioacuten y los haacutebitos de solidaridad La autora subraya

que se ha producido un incremento en las actividades del comercio ligadas a la droga

Se trata de un mercado domeacutestico secundario de drogas poco caras principalmente

marihuana e inhalantes Los habitantes de estos barrios estaacuten entrampados en una eco-

nomiacutea en la que juegan un doble papel como consumidores y como distribuidores

particularmente las generaciones joacutevenes La autora piensa que la peacuterdida de espiacuteritu

comunitario cobra un papel importante en la dificultad para luchar con este fenoacutemeno

Ciertos haacutebitos culturales y familiares de organizacioacuten y de solidaridad permiten ―en

ocasiones― a las familias maacutes pobres hacer frente a la falta de empleo y a las condicio-

nes de precariedad de la vida cotidiana Los cambios econoacutemicos producen migracio-

nes modos de urbanizacioacuten que rompen a menudo con estas cadenas de solidaridad el

sujeto se encuentra de maacutes en maacutes aislado de su grupo de referencia y debe hacer frente

solo o en el mejor de los casos en el seno de una familia mono-nuclear a las dificultades

para encontrar formas de supervivencia

En ese sentido es interesante el trabajo de Bronfman (1993) quien ha estudiado las

familias que muestran un porcentaje elevado de mortalidad infantil en las colonias po-

bres de la ciudad de Meacutexico El autor comparoacute 74 familias y encontroacute que en condi-

ciones sociodemograacuteficas equivalentes la tasa de mortalidad infantil estaacute ligada a la

ausencia de relaciones sociales que les ayudan a hacer frente a las urgencias en caso de

enfermedad o accidente

Es innegable entonces que la peacuterdida del lazo social se encuentra en la base del fenoacute-

meno que queremos estudiar pero queda por responder por queacute algunos joacutevenes en

96

particular Mediante una investigacioacuten de campo sustentada en maacutes de 100 joacutevenes en

situacioacuten de calle entrevistados (Taracena y Tavera 1996) encontramos que algunos

se encuentran en la calle cuando sus hermanos permanecieron en casa a pesar de vivir

condiciones similares de pobreza o de violencia por lo que se plantea que no se pueden

establecer lazos directos yo lineales entre pobreza violencia y situacioacuten de calle En

muchas de las historias de los nintildeos que se encuentran en la calle hay testimonios de

violencia pero lo que llama la atencioacuten es que encuentran en la calle tanta o maacutes violen-

cia que en su casa queda entonces la pregunta por responder en cuanto a las razones

por las cuales el nintildeo permanece en la calle y del poco arraigo que tiene a las Institucio-

nes que le ofrecen proteccioacuten

En la primera parte de nuestras investigaciones hemos realizado un diagnoacutestico de las

condiciones de vida de varios sectores de los joacutevenes que trabajan y de los que permane-

cen en la calle de manera constante o durante el diacutea Siempre nos ha interesado en los

estudios realizados no insistir solamente en sus dificultades y carencias sino tambieacuten

conocer sus capacidades en particular para subsistir en condiciones difiacuteciles Hemos

buscado conocer sus condiciones de vida sus modos de estructuracioacuten y la construcci-

oacuten de su identidad asiacute como su realidad psiacutequica

Asiacute en un estudio que llevamos a cabo (Taracena Tavera y Castillo 1993) hemos obser-

vado las diferencias entre cuatro categoriacuteas de nintildeos que trabajan tratando de describir

diferentes situaciones y tomando en cuenta la desarticulacioacuten o no de su familia y la

realizacioacuten de un proyecto escolar

a Nintildeos empacadores en los supermercados

b Nintildeos vendedores

c Nintildeos que prestan servicios

d Nintildeos que hacen diversos trabajos o realizan espectaacuteculos en la calle

97Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

a) Los nintildeos que empacan en los supermercados

Se trataba de chicos entre trece y diez y seis antildeos que trabajaban en los supermercados

ayudando a la gente a meter sus compras en las bolsas de plaacutestico y a llevarlas hasta su

automoacutevil a cambio de una propina

La mayoriacutea de estos joacutevenes trabajaban entre cuatro o cinco horas por diacutea y realizaban

esta actividad ademaacutes de sus estudios No teniacutean un salario pero como la mayoriacutea de la

gente les daba una propina percibiacutean una cantidad maacutes o menos regular por diacutea Por

esta razoacuten los supermercados les plantean un cierto nuacutemero de exigencias Por ejem-

plo los chicos debiacutean tener una autorizacioacuten por escrito de sus padres debiacutean mostrar

que estaban inscritos a la escuela y que compraban ellos mismos su uniforme Estar

siempre limpios ser puntuales y disciplinados en la organizacioacuten de su trabajo

Entrevistamos a doce joacutevenes empacadores entre los cuales habiacutea dos chicas La mayo-

riacutea de ellos teniacutean entre catorce y quince antildeos y estaban en segundo o tercero de secun-

daria Solamente dos de los joacutevenes habiacutea abandonado la escuela De acuerdo con las

entrevistas y la opinioacuten de los mismos joacutevenes el trabajo no implicaba ninguacuten riesgo

importante Encontramos que para los doce joacutevenes el trabajo era formativo y completa-

ba la experiencia de la escuela y de la familia en el proceso de socializacioacuten

El motivo por el cual trabajaban de acuerdo con la mayoriacutea de los entrevistados era

el de tener un dinero personal Sin embargo solamente cuatro lo guardaban soacutelo para

ellos y los ocho restantes compartiacutean su dinero con la familia

En cuanto a su proyecto personal cinco dijeron tener deseos de hacer estudios univer-

sitarios tres de hacer estudios teacutecnicos uno de ser empleado y tres no hablaron de un

proyecto particular

b) Los nintildeos vendedores

Se trataba de nintildeos que vendiacutean diversos objetos en las calles por ejemplo chicles dul-

ces fruta bebidas antojitos juguetes globos artiacuteculos de decoracioacuten etceacutetera

Entrevistamos a catorce nintildeos vendedores la mayoriacutea entre ocho y quince antildeos encon-

tramos uno solo de siete y tres de diez y seis antildeos entre quienes dos eran chicas La

98

mayoriacutea de estos nintildeos estudiaban entre el tercer antildeo de la escuela primaria y el primero

de secundaria Una de las muchachas llegoacute hasta la preparatoria pero debioacute interrum-

pirla para dedicarle maacutes tiempo a su trabajo De acuerdo con las entrevistas y a juzgar

por el lugar donde el nintildeo realizaba las ventas los riesgos maacutes claros eran para tres de

ellos la exposicioacuten demasiado directa a la contaminacioacuten para ocho el riesgo de acci-

dentes y para dos la incompatibilidad con la escuela por el nuacutemero de horas dedicadas

al trabajo Nueve trabajaban todos los diacuteas tres solamente los fines de semana Uno de

manera irregular y uno de ellos una vez por semana

En lo que concierne a la elaboracioacuten de un proyecto personal cinco expresaron un

deseo de hacer estudios universitarios entre ellos la joven que interrumpioacute su prepa-

ratoria manifestando al mismo tiempo el sentimiento de que seguramente no llegariacutea

a hacerlo porque era prioritario ayudar a su familia tres expresaron su deseo de tener

un comercio propio dos de ser artistas y cuatro no expresaron un proyecto particular

El motivo por el cual estos nintildeos trabajaban de acuerdo con ellos mismos es el de

la necesidad de subsistir Cuatro de ellos hablaban de la falta de dinero en su familia

como una situacioacuten que produciacutea conflictos tres perteneciacutean a familias que inmigraron

a la ciudad de Meacutexico en busca de trabajo Diez de estos nintildeos daban todo el dinero que

ganaban a su familia tres se quedaban con una parte para ellos mismos y solamente

uno dijo no dar dinero a su familia y reservarlo soacutelo para sus gastos personales

De acuerdo con la entrevista consideramos que para nueve nintildeos el trabajo podiacutea con-

siderarse como una situacioacuten formativa que completaba su proceso de socializacioacuten

Para cinco de ellos no lo era ya sea porque eran demasiado joacutevenes o porque su trabajo

resultaba incompatible con la escuela

c) Los nintildeos que prestan servicios

En esta categoriacutea encontramos joacutevenes entre doce y quince antildeos todos del sexo mas-

culino con una escolaridad promedio entre el sexto de primaria y el primero de secun-

daria Se trataba de joacutevenes que realizaban trabajos tales como limpiar zapatos lavar

carros cargar bultos u objetos pesados o hacer quehaceres domeacutesticos lavar parabrisas

entre otros

99Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

Solamente pudimos entrevistar cuatro joacutevenes que realizaban este tipo de trabajo Uno

que limpiaba parabrisas que lo haciacutea todos los diacuteas uno que lavaba coches solamente

los fines de semana uno que haciacutea quehaceres domeacutesticos de manera irregular y uno

que cargaba los instrumentos de muacutesica de los integrantes de un grupo de rock los fines

de semana Los cuatro joacutevenes hablaban de riesgos de violencia con sus compantildeeros

quienes intentaban quitarles su dinero dos estaban muy expuestos a la contaminacioacuten

y uno a riesgos de accidentes por la naturaleza de su trabajo

Uno de estos nintildeos daba todo el dinero que ganaba a su familia dos les daba la mitad y

la otra mitad lo reservaban para ellos mismos y uno lo conservaba todo para siacute mismo

El motivo que enunciaron de por queacute trabajaban era el de tener dinero sin que el he-

cho de que no lo obtuvieran pareciera producir conflictos en su familia Consideramos

que para estos cuatro chicos la experiencia de trabajo era formativa y les ayudaba en su

desarrollo

Concerniendo la posibilidad de enunciar un proyecto en particular uno de ellos habloacute

de su deseo de hacer estudios profesionales uno de ser muacutesico y los dos restantes no

hablaron de ello

d) Los nintildeos que hacen trabajos diversos o realizan espectaacuteculos

En esta categoriacutea se encontraban los nintildeos menos estructurados y que tienen menos

lazos con sus familias Entrevistamos seis nintildeos que realizaban este tipo de actividad

La edad promedio de los chicos era de doce antildeos

Fue necesario analizar separadamente las entrevistas de cinco de ellos pues perteneciacute-

an a un grupo de nintildeos que viviacutean completamente en la calle cerca de los respiraderos

del metro que producen calor y debajo de un puente que les brindaba un poco de protec-

cioacuten Estos nintildeos no teniacutean ninguacuten lazo con su familia trabajaban de manera irregular

algunos de ellos limpiando parabrisas a veces otros ayudando en los mercados algunos

otros de tragafuegos en los semaacuteforos Deciacutean trabajar soacutelo el tiempo indispensable

para juntar dinero para sus necesidades maacutes importantes que ellos mismos enuncia-

ban en el orden siguiente comida droga (cemento y alcohol) y la posibilidad de pagar

por utilizar los videojuegos El otro nintildeo que perteneciacutea a esta categoriacutea era cantante en

100

la calle y los autobuses conservaba lazos deacutebiles y conflictivos con su familia pero no

habiacutea roto totalmente con ella

Los nintildeos de esta categoriacutea deciacutean tener la posibilidad de reunir entre veinte y treinta

pesos por diacutea Para todos ellos los riesgos encontrados en su trabajo fueron el contacto

con la contaminacioacuten y sobre todo para cinco de ellos los que viviacutean solos la violencia

de la policiacutea y la violencia del contacto con sus propios compantildeeros o con otros grupos

que viviacutean como ellos Ninguno hablaba de un proyecto social Todos referiacutean la nece-

sidad de trabajar para subsistir y tres de ellos de la violencia familiar como motivo de

separacioacuten de sus familias

El grado de escolaridad era mayor en los nintildeos que ayudaban en los supermercados (en

general secundaria) el de los vendedores y de los servicios era equivalente (primaria

incompleta) mientras que el de trabajos diversos y espectaacuteculos era muy bajo (2o de

primaria)

Los riesgos van en aumento de ninguno en el grupo 1 hasta riesgos importantes como

violencia y droga en el grupo 4 Hay un mayor nuacutemero de nintildeos en el grupo 1 que utili-

zaba su dinero para siacute mismo en los grupos 2 y 3 habiacutea un mayor nuacutemero de nintildeos que

dan todo su dinero a la familia

Los proyectos sociales eran maacutes ambiciosos para el caso de los joacutevenes del grupo 1 esto

coincide con el grado de escolaridad de los hermanos que era maacutes elevado y la ocupa-

cioacuten de los padres con mayor estatus y posiblemente mayor estabilidad de hecho en

ese grupo habiacutea tambieacuten un mayor nuacutemero de madres que se quedaban en casa esto

hablariacutea quizaacute de una situacioacuten econoacutemica mejor de la familia en donde no se requeriacutea

necesariamente que las madres trabajasen No es asiacute para el caso del grupo de vendedo-

res en donde diez de catorce madres trabajaban

Una vez maacutes confirmamos las hipoacutetesis de Bourdieu y Passeron (1970) en lo que con-

cierne a la reproduccioacuten de la situacioacuten social de los padres y la escolaridad de los nintildeos

Es claro en el caso del grupo 2 en donde habiacutea una perfecta coherencia entre la activi-

dad que realizaban los nintildeos las de los padres y las ambiciones de los nintildeos

En general pudimos observar que en el grupo 2 y 3 las condiciones materiales de la fa-

milia eran maacutes precarias habiacutea un mayor nuacutemero de hijos que trabajaban habiacutea mayor

101Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

ausencia de los padres y por consecuencia mayor nuacutemero de madres que debiacutean hacer

de jefe de familia y atender al mismo tiempo los aspectos materiales que los relacionales

en la familia No pensamos que las condiciones de precariedad o de pobreza sean las

responsables directamente de los problemas de relacioacuten de una familia pero pueden en

un momento actuar como catalizador para aumentar la dimensioacuten del problema Fue

de hecho el caso del grupo 2 donde habiacutea maacutes nintildeos que percibiacutean a sus padres como

poco atentos o disponibles

Encontramos tres tipos de situacioacuten para los chicos que participaron en este estudio la

primera representada por el grupo 1 donde encontramos en general condiciones fami-

liares favorables Para este grupo el trabajo era maacutes formativo y agradable a causa de

varios factores la mayor parte de ellos decidioacute trabajar por su propia iniciativa aunque

con el consentimiento de sus padres la mayoriacutea de los joacutevenes se encontraban alrede-

dor de los quince antildeos lo que les permitiacutea aprovechar la experiencia teniacutean mejores

condiciones en su trabajo y se confrontaban a una situacioacuten maacutes estructurada que sig-

nificaba un mayor aprendizaje de las reglas Los conflictos encontrados en este grupo

fueron en general los propios de su edad

La segunda es una situacioacuten que nosotros llamariacuteamos de riesgo representada por los

grupos 2 y 3 Las condiciones que acompantildeaban el trabajo del nintildeo eran maacutes difiacuteci-

les En estos grupos eran maacutes joacutevenes doce antildeos en promedio muchos de ellos con

una experiencia de trabajo de varios antildeos A menudo estos nintildeos mostraban un cierto

cansancio o desaacutenimo El dinero que ganaban era importante y necesario para el sus-

tento familiar situacioacuten que produce en algunos casos una cierta tensioacuten en la relacioacuten

padres- hijos sobre todo en el caso de que el dinero pudiera faltar Percibimos maacutes

riesgos de abandono escolar La familia aparece menos estructurada y aparentemente

teniacutea mayores dificultades de cumplir con su funcioacuten de contencioacuten y de apoyo En este

grupo percibiacuteamos mayores problemas de inseguridad en los nintildeos

La tercera situacioacuten la representaban los nintildeos del grupo 4 en la que se encontraba una

situacioacuten francamente de desarticulacioacuten familiar y de desadaptacioacuten social expresada

en el uso frecuente de drogas y un comportamiento sexual correspondiente a joacutevenes

de mayor edad Estos nintildeos teniacutean problemas en su capacidad de establecer lazos afec-

tivos y en su auto-estima Los resultados obtenidos a lo largo de entrevistas de las ob-

servaciones y del anaacutelisis de los dibujos confirma la observacioacuten de Taboada-Leonetti

102

(1990) en cuanto a que en algunos casos el nintildeo o el adolescente tiende a afirmarse en

la imagen estigmatizada que se le presenta de siacute mismo encontramos tambieacuten muchas

coincidencias con el trabajo de Aacutengel Botbol y Facy (1987) sobre los procesos implica-

dos en el uso de inhalantes Podemos considerar que la utilizacioacuten de esta droga es un

siacutentoma que se encuentra entre una problemaacutetica social y los conflictos intra-psiacutequicos

del individuo A menudo el chico que inhala inviste su cuerpo a defecto de una funcioacuten

psiacutequica maacutes elaborada y de una posibilidad de simbolizacioacuten La primaciacutea de las sensa-

ciones corporales ocupa tambieacuten un lugar importante en su vida en el ejercicio precoz

de su sexualidad

Elprocesodecallejerizacioacuten

El estudio de la marginalidad permite la reflexioacuten y la elaboracioacuten de conceptos teoacutericos

alrededor de la funcioacuten social de los grupos minoritarios sobre la funcioacuten que cumplen

como depositarios de la diferencia del no ser del no saber del no tener Las formas de

referirse en los estudios de investigadores y educadores a los joacutevenes cuyas vidas trans-

curren mayoritariamente en la calle ha cambiado por un lado por que se trata de un

proceso dinaacutemico y no estaacutetico De las clasificaciones propuestas por UNICEF que se

abordan de manera detallada en el primer capiacutetulo de este libro al concepto de nintildeos y

joacutevenes en situacioacuten de calle o en proceso de callejerizacioacuten se encuentran tambieacuten las

preocupaciones de las organizaciones que trabajan con ellos de no contribuir a su estig-

matizacioacuten En todo caso nos parece importante insistir que se trata de un proceso de

una suerte de trayectoria que sigue el nintildeo en su relacioacuten con la calle y que da como re-

sultado diferentes posiciones existenciales Nos parecioacute importante darle la voz a nintildeos

y joacutevenes que se encontraban en diversas posiciones en cuanto a su relacioacuten con la calle

y la actividad que desempentildean en ella pero tambieacuten quisimos darle la voz a los transe-

uacutentes a los ciudadanos que diacutea con diacutea recorren la Ciudad de Meacutexico y miran a estos

nintildeos con una mezcla de indiferencia compasioacuten y a veces rechazo para saber cuaacuteles

eran sus representaciones con respecto de estos nintildeos Por uacuteltimo quisimos tambieacuten

conocer la imagen que la prensa da de ellos y la consecuencia que eacutesta puede tener en el

fenoacutemeno de callejerizacioacuten Sabemos que la mirada del otro construye al sujeto y que

en algunos casos eacuteste se siente atrapada por ella Los nintildeos y joacutevenes que subsisten en la

calle diariamente se cruzan con miles de miradas y a su vez las imaacutegenes de los medios

y de la prensa construyen nuestra mirada

103Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

A traveacutes de entrevistas semi-directivas con una orientacioacuten cliacutenica en donde se ha pues-

to el eacutenfasis en el anaacutelisis de los procesos de transferencia y contra-transferencia se

intentoacute aprehender la representacioacuten del problema de diferentes sectores sociales en la

Ciudad de Meacutexico

Un anaacutelisis de contenido permitioacute tener una visioacuten global en relacioacuten a la imagen del

problema que tiene cada sector entrevistado Las entrevistas fueron divididas en dife-

rentes categoriacuteas de acuerdo al tipo de trabajo realizado por el nintildeo vendedores servi-

cios espectaacuteculos y limpiador de parabrisas Este uacuteltimo fue motivo de una categoriacutea

aparte de la de servicios (boleros lava carros o cargadores) pues observamos que los

limpia parabrisas son percibidos de una manera particular por la gente ya que son los

que tienen mayor contacto con la poblacioacuten en la ciudad

Se observoacute que el nivel de estudios del nintildeo es diferente dependiendo del trabajo re-

alizado la mayoriacutea de los vendedores terminaron la primaria y el 37 continuaban

asistiendo a la escuela Los nintildeos que se dedicaban a servicios en su mayoriacutea la inter-

rumpieron alrededor del tercer antildeo de primaria y los que realizaban espectaacuteculos eran

casi todos analfabetos funcionales Esta diversidad contrastaba con la imagen que da la

prensa unificada alrededor del nintildeo que trabaja en la calle como casi sin escolarizacioacuten

La opinioacuten de la prensa la de los transeuacutentes y la informacioacuten de los nintildeos coincidiacutean

en los horarios de trabajo La mayoriacutea de los nintildeos trabajaban entre 6 y 10 horas por diacutea

y durante 6 diacuteas o maacutes Nuestras observaciones nos permiten hablar de una categoriacutea

particular de nintildeos vendedores que representa el 32 de ellos y que trabajaban sola-

mente el fin de semana muchos de ellos en compantildeiacutea de otros miembros de la familia

Eran seguramente los mismos que continuaban su escolarizacioacuten

Por su parte los transeuacutentes y los nintildeos a traveacutes de las entrevistas percibiacutean como acti-

vidad principal la del comercio dato confirmado por COESNICA (1992) que reportaba

un 699 de nintildeos que realizaban esta actividad

En lo que concierne a la imagen del nintildeo en relacioacuten con la actividad realizada los nintildeos

afirmaban que la gente aceptaba sus servicios cuando eacutesta los necesitaba Los transeuacuten-

tes confirmaban generalmente la misma idea pero el 30 de los entrevistados situaba

a los nintildeos en la mendicidad Por su parte la prensa los colocaba francamente en la

104

mendicidad como individuos inuacutetiles para la sociedad Esta imagen no era reconocida

por los propios nintildeos quienes en su mayoriacutea consideraban realizar un trabajo

Los nintildeos hablaban de su trabajo como una actividad faacutecil los limpiaparabrisas y los

de servicios deciacutean realizar una actividad cansada Los transeuacutentes pensaban tambieacuten

que esta actividad era cansada pero ademaacutes agregaban la dimensioacuten de peligro que en

general no era reconocida como tal por los propios nintildeos

En relacioacuten a la percepcioacuten de los nintildeos en lo que se refiere a la actitud de la gente eacutesta

variaba de acuerdo a la categoriacutea de los nintildeos entrevistados los limpiaparabrisas y los de

servicios sentiacutean la actitud de la gente mucho maacutes hostil que los vendedores Los transe-

uacutentes percibiacutean la actitud de la gente hacia los nintildeos como hostil La prensa la describiacutea

maacutes en teacuterminos de agresividad

En lo que concierne a la actitud de los propios nintildeos a la gente solamente los vendedo-

res en un 33 hablaban de ser amables con el puacuteblico la mayoriacutea de los nintildeos deciacutean

reaccionar de la misma manera en que eran tratados Los transeuacutentes pensaban lo mis-

mo La prensa poniacutea el eacutenfasis en la agresividad explicando que como son a menudo

maltratados por el puacuteblico ellos tambieacuten reaccionan de una manera agresiva

En cuanto al origen del problema las tres categoriacuteas analizadas los nintildeos los transeuacuten-

tes y la prensa estaban de acuerdo en el hecho de que es la pobreza en primer lugar y la

desintegracioacuten familiar en segundo lugar los motivos principales de este problema La

prensa y los transeuacutentes pensaban tambieacuten que la inmigracioacuten campo-ciudad era una

causa importante sin embargo en nuestras entrevistas hay pocos casos de nintildeos que

proveniacutean de la provincia

En la categoriacutea riesgos de la actividad los nintildeos y los transeuacutentes reconociacutean la enferme-

dad como el riesgo maacutes importante seguida por la violencia por parte de la policiacutea Los

nintildeos que realizaban espectaacuteculos los de servicios y los limpiaparabrisas en un 26

hablaban de la droga como un riesgo importante Los transeuacutentes lo pensaban tambieacuten

en su mayoriacutea La prensa hablaba de la adiccioacuten a los inhalantes no como un riesgo sino

como un hecho afirmando que el 80 o 90 de los nintildeos que estaban en la calle en ese

entonces se drogaban La delincuencia y la homosexualidad eran reconocidas por los

nintildeos como un riesgo La prensa hablaba de la homosexualidad en algunos nintildeos como

105Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

un problema que atantildee a todos La prensa y los transeuacutentes tendiacutean en lo general a aso-

ciar mecaacutenicamente y muy directamente el hecho de estar en la calle y el de convertirse

en delincuente

Sobre las posibilidades de aprendizaje y de construccioacuten en tanto individuo el resultado

de las entrevistas hace pensar que los aprendizajes maacutes importantes estaacuten alrededor de

la posibilidad de organizar su tiempo y su dinero tambieacuten en la capacidad de tomar de-

cisiones y de evaluar los riesgos y sobre todo de ser independiente y autosuficiente Por

uacuteltimo de ganar dinero para eacutel y su familia Los transeuacutentes no reconociacutean en general

la experiencia de la calle como una experiencia que pudiera ser constructiva en algunos

aspectos En este caso por el contrario la prensa coincidiacutea con nosotros reconociendo

el desarrollo de las mismas habilidades que observamos pero agregando ademaacutes la ca-

pacidad de organizarse en grupos de compantildeeros y de crear lazos de solidaridad entre

ellos

En relacioacuten a la representacioacuten de sus relaciones familiares la categoriacutea de vendedores

es diferente a las de otras actividades realizada por los nintildeos el 47 hablaban de su

familia como una familia constituida solamente el 21 de los nintildeos vendedores reco-

nociacutean conflictos familiares importantes Los que realizaban servicios deciacutean tener una

familia constituida en un 29 y los limpiadores de parabrisas hablaban mucho maacutes en

teacuterminos de una familia incompleta siendo eacutestos el 67 de los nintildeos entrevistados La

prensa presentaba la imagen del nintildeo en la calle viviendo con otros nintildeos con una idea

de libertad y de proteccioacuten entre ellos tambieacuten hablaba de los nintildeos en relacioacuten con un

adulto que pueda brindarles proteccioacuten Los transeuacutentes imaginaban la familia del nintildeo

como una familia desintegrada o bien como la imagen de la prensa en un grupo de

iguales Tambieacuten expresaban la idea del nintildeo en relacioacuten con un adulto en una relacioacuten

de proteccioacuten o a menudo en una relacioacuten de explotacioacuten

En el campo de la salud las enfermedades maacutes a menudo reportadas por los nintildeos

fueron las enfermedades respiratorias y gastrointestinales en segundo lugar los acci-

dentes y en tercero la utilizacioacuten de inhalantes y las complicaciones fiacutesicas y psicoloacute-

gicas que se derivan Tanto la prensa como los transeuacutentes coincidiacutean en los mismos

problemas de salud pero la prensa exageraba especialmente el problema de la droga

hablando algunas veces de un 90 de nintildeos que se drogaban Soacutelo el 15 de los nintildeos

entrevistados reconociacutean haberse drogado alguna vez Un dato importante es que de

106

la categoriacutea de vendedores ninguno de los nintildeos entrevistados se drogaba En esta ca-

tegoriacutea la enfermedad maacutes importante fue la de viacuteas respiratorias seguramente por el

contacto prolongado con la contaminacioacuten

En la relacioacuten con sus compantildeeros se encontroacute coincidencia de parte de la prensa los

transeuacutentes y los nintildeos en pensar que lo que prevaleciacutea entre estos uacuteltimos eran las re-

laciones de ayuda y complicidad aunque los nintildeos sobre todo los de espectaacuteculos y de

servicios hablaban tambieacuten de manera importante de la violencia existente entre ellos y

de algunos casos de abuso fiacutesico y de robo de dinero

En lo que se refiere a la relacioacuten con las Instituciones se encontroacute que el problema maacutes

importante para los nintildeos era el contacto con la policiacutea a menudo en el registro del

abuso fiacutesico y el de la explotacioacuten en lo que se refiere al dinero Los nintildeos que hablaron

de su experiencia con organismos gubernamentales los cuales fueron pocos narraron

malas experiencias los transeuacutentes en su mayoriacutea dijeron ignorar la existencia de or-

ganismos de proteccioacuten para ese tipo de nintildeo La prensa por su cuenta criticoacute las insti-

tuciones del gobierno describieacutendolas como ineficientes y calificaacutendolas de escuelas de

delincuencia y de vicios por el contrario hablaba en buenos teacuterminos de las institucio-

nes no gubernamentales

En lo que se refiere a la religioacuten la mayoriacutea de los nintildeos deciacutean ser catoacutelicos y un buen

nuacutemero de ellos asistir a misa regularmente Los transeuacutentes pensaban que los nintildeos

que trabajaban en la calle creiacutean seguramente en Dios pero que no participaban mucho

en actos religiosos La prensa no abordaba este aspecto de su vida

El anaacutelisis de los datos expuestos anteriormente permite hacer las siguientes observa-

ciones la prensa tendiacutea a unificar la imagen del nintildeo que trabaja en la calle alrededor de

un nintildeo casi no escolarizado o en todo caso plantear como incompatible la escolarizaci-

oacuten con el trabajo Tambieacuten exageraba la dimensioacuten de la droga y de la homosexualidad

De la misma manera los situaba maacutes cerca de la mendicidad y habiendo perdido los

lazos con su familia pues la imagen maacutes frecuente en la prensa fue la del nintildeo viviendo

en grupo con otros nintildeos que viviacutean en la calle

Sin embargo nuestro estudio coincide con el de COESNICA en varios puntos la mayo-

riacutea de los nintildeos que se encuentran en la calle se dedican al comercio es en esta categoriacutea

107Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

que se encuentran los maacutes escolarizados y los que continuacutean la escuela auacuten trabajando

Si la mayoriacutea ejercen el comercio hay muchos menos que mendigan o se dedican a una

actividad que se encuentra cercana a eacutesta La mayor parte de los nintildeos no ha perdido los

lazos con su familia soacutelo el 93 para COESNICA (1992)

Los resultados nos permiten pensar que la imagen que los transeuacutentes entrevistados

teniacutean del nintildeo que trabaja en la calle estaacute maacutes cerca de la imagen que da la prensa

que lo que piensa el nintildeo o del resultado de nuestras observaciones o las de COESNICA

(1992 1995)

Quisieacuteramos suponer que la exageracioacuten de ciertos rasgos destructivos de los nintildeos que

se encuentran en la calle por la prensa y la generalizacioacuten abusiva de las caracteriacutesticas

de los nintildeos de la calle a los nintildeos en la calle estaacute relacionada con un cierto deseo de los

periodistas de influir en la opinioacuten puacuteblica para crear una cierta conciencia en la gente

aunque desafortunadamente corremos el riesgo de crear una imagen estigmatizada y

caricatural del nintildeo que agrave el problema en lugar de ayudar a resolverlo

LasformasdeorganizacioacutenengrupoenlosnintildeosyjoacutevenesdelacalleenlaCiudaddeMeacutexico

Habiendo realizado observaciones regulares durante casi ocho antildeos de investigacioacuten

con nintildeos y joacutevenes en situacioacuten de calle llevamos a cabo un estudio comparativo de

dos grupos ubicados en los parques de Tacuba y de Indios Verdes en el Distrito Federal

con el fin de comprender la funcioacuten del grupo en sus formas de organizacioacuten y en su

estructura psiacutequica (Taracena y Tavera 2001) Para hacer este estudio se utilizoacute una

caacutemara de foto en la que los propios joacutevenes tomaron las fotos de ellos mismos de su

grupo y de nosotros como investigadores ya que nos interesaba saber la imagen que

ellos teniacutean de siacute mismos de su relacioacuten con sus compantildeeros y con nosotros

Objetivos

I Enriquecer la caracterizacioacuten de los modos de vida de los joacutevenes de la calle de la

zona de Tacuba y de Indios Verdes

108

II Comprender la funcioacuten del grupo dentro de la organizacioacuten de los joacutevenes de la

calle asiacute como el papel que juega en su estructura psiacutequica

Hipoacutetesis

El trabajo realizado con anterioridad con estos grupos de joacutevenes nos permite formular

las siguientes hipoacutetesis

a El grupo para los joacutevenes de la calle tiene un papel preponderante en su funciona-

miento psiacutequico

b EL grupo en los joacutevenes de la calle tiene un papel de sustitucioacuten familiar

c El grupo cumple para estos joacutevenes un papel protector en su relacioacuten con la calle

d Hay una relacioacuten entre la manera en que los joacutevenes de la calle representan al gru-

po en los dibujos y en las fotos con la funcioacuten psiacutequica que tiene para ellos

Espacio de Trabajo

El trabajo se realizoacute en dos parques

El de Tacuba ubicado a un costado de la estacioacuten del metro del mismo nombre Se trata

de un parque pequentildeo de estructura redonda con bancas de concreto y algunas aacutereas

verdes Cuando realizamos el estudio el parque era ocupado por grupos de alcohoacutelicos

viejos sin hogar y joacutevenes de la calle En una parte relativamente protegida del parque

estos joacutevenes acondicionaron un espacio con viejos sillones colchones y algunas co-

bijas donde conviviacutean y dormiacutean con una docena de perros Durante el diacutea jugaban

conversaban y se drogaban en el parque pediacutean dinero en los alrededores o limpiaban

parabrisas iban al mercado maacutes cercano en busca de comida y eventualmente haciacutean

pequentildeos trabajos que les aportaban dinero Los joacutevenes casi nunca saliacutean de la zona

de Tacuba en donde eran conocidos y relativamente protegidos por los comerciantes

trabajadores y personas que ejerciacutean la prostitucioacuten en la zona con quienes algunas

ocasiones teniacutean tambieacuten conflictos El trabajo se realizoacute en una de las pequentildeas zonas

verdes a un lado de donde soliacutean dormir dentro de las condiciones naturales de paso y

109Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

convivencia con los demaacutes intentando sin embargo contar con un espacio particular

para las actividades

El parque de Indios Verdes se encuentra entre un gran puente y frente a un Centro

Comercial es una zona verde aproximadamente de 500 metros que no es accesible a

los peatones protegida con alambre en el que los joacutevenes hicieron un hoyo para entrar

y salir Durante la noche dormiacutean en las coladeras en desuso En el diacutea utilizaban el

parque para descansar jugar fuacutetbol conversar y drogarse Como en el caso de Tacuba

los joacutevenes conviviacutean tambieacuten con grupos grandes de perros teniacutean relaciones con los

comerciantes con otros joacutevenes que acudiacutean a drogarse con ellos y personas que ejerciacute-

an la prostitucioacuten pediacutean dinero en los alrededores limpiaban parabrisas y acudiacutean al

mercado cercano en busca de comida El trabajo se realizoacute en el pasto de este parque

tratando tambieacuten de dedicar un espacio para la actividad realizada

Caracterizacioacuten de la poblacioacuten

Previo a este estudio se trabajoacute durante tres antildeos en estas dos colonias Tacuba e Indios

Verdes se efectuaron intervenciones con diversos temas por ejemplo ldquoLa utilizacioacuten

del teatro como una forma de educacioacuten para la prevencioacuten del SIDArdquo (Jayme y Juaacute-

rez 1995) ldquoLa cultura popular y los nintildeos de la callerdquo (Martiacutenez y Melgarejo 1996) el

trabajo con grupos utilizando las teacutecnicas propuestas por Pichoacuten Riviere (Maacuterquez y

Ordoacutentildeez 1996) Estas intervenciones fueron realizadas en periodos de seis meses a un

antildeo efectuando tres sesiones a la semana para trabajar con los nintildeos y joacutevenes en activi-

dades educativas luacutedicas y de expresioacuten Esto nos permitioacute conocer observar y realizar

entrevistas con los joacutevenes de los dos grupos

Caracterizacioacuten del grupo Tacuba

El lugar donde habitaban estos nintildeos estaba situado en una de las demarcaciones maacutes

pobladas y concurridas de la Ciudad Este punto fue catalogado como uno de los maacutes

frecuentados por los joacutevenes de la calle ya que les facilita la satisfaccioacuten de sus necesida-

des baacutesicas un parque varias salidas del Metro espacios sin habitar sitios en donde los

muchachos podiacutean dormir dos mercados y diversos puestos ambulantes de comida que

les facilitaba el acceso a eacutesta La estacioacuten del Metro y los diversos paraderos ocasionaban

mucho traacutensito de automoacuteviles y personas posibilitando oportunidades de trabajo yo

mendicidad ademaacutes existiacutea una gran cantidad de vendedores semifijos y ambulantes

110

quienes empleaban a algunos de estos nintildeos para ayudarles en mandados yo la limpie-

za de sus puestos

Sobre la base de los testimonios de los nintildeos calculamos que en este sitio se habiacutean es-

tablecido grupos de nintildeos de la calle desde hace aproximadamente diez antildeos La pobla-

cioacuten era flotante muchos de sus integrantes regresaron a este mismo punto despueacutes de

temporadas en Instituciones de cuidado de permanencia en otros puntos de la Ciudad

o de estancias con sus familias

Condiciones de vida

Entre veinte y cuarenta joacutevenes conformaban el grupo Tacuba ellos viviacutean cerca de la

zona del mercado y soacutelo habiacutean cambiado de lugar para dormir a pesar de que eran

corridos frecuentemente por la policiacutea o por los propietarios de los terrenos asiacute habiacutean

permanecido alguacuten tiempo a la salida del Metro en un estacionamiento en una casa

abandonada o en un jardiacuten este uacuteltimo es en el que pudieron permanecer maacutes tiempo

sin ser corridos y por lo tanto el que les proporcionoacute mayor tranquilidad

Los joacutevenes casi nunca abandonaban la zona del mercado y menos el aacuterea de Tacuba

Utilizaban las instalaciones sanitarias destinadas al personal de limpieza del Departa-

mento del Distrito Federal (DDF) en donde eventualmente se bantildeaban o se aseaban

Nosotros tuvimos contacto maacutes regularmente con veintitreacutes joacutevenes de entre doce y

veintidoacutes antildeos En el grupo habiacutea un hombre de treinta y ocho antildeos al que reconociacutean

como el fundador del grupo pero la mayor parte de los miembros teniacutean entre catorce y

veintiuacuten antildeos Su nivel de escolaridad era muy bajo el 27 analfabeto el 60 asistioacute a

dos o tres antildeos de primaria y solamente el 13 realizoacute un antildeo de secundaria

Entre los motivos por los cuales dejaron su casa destacan los siguientes la ausencia o

muerte de la madre (en general en forma violenta por ejemplo suicidio o asesinato)

por problemas de alcoholismo y la mayor parte por violencia familiar El tiempo prome-

dio de estancia en la calle era de siete antildeos y los rangos fluctuaban entre dos y veinte

antildeos El 36 habiacutea permanecido entre dos y cinco antildeos otro 36 entre seis y diez y el

28 entre diez y quince antildeos Lo anterior significa que la mayor parte de estos joacutevenes

habiacutea pasado maacutes de la mitad de su vida en la calle

111Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

Las actividades que realizaban para obtener dinero dependiacutean en gran medida de la

edad ya que los maacutes pequentildeos se dedicaban a pedir dinero y en ocasiones ayudaban a

vender los maacutes grandes tambieacuten pediacutean dinero pero se dedicaban maacutes a hacer man-

dados a los comerciantes o a ayudar a lavar los puestos Tambieacuten algunos se dedicaban

a robar y a prostituirse es interesante notar que estos uacuteltimos eran chicos que teniacutean

maacutes de diez antildeos de vivir en la calle y tambieacuten mucho tiempo de consumir alguacuten tipo

de droga El dinero que ganaban lo destinaban generalmente a comprar droga comida

y para jugar en los videojuegos

Estos joacutevenes inhalaban cemento regularmente y ocasionalmente fumaban marihua-

na Practicaban relaciones homosexuales entre ellos pero al exterior del grupo teniacutean

relaciones heterosexuales salvo algunos que se prostituiacutean ocasionalmente con homo-

sexuales

El 68 de estos joacutevenes habiacutea estado en Instituciones para menores centros de desin-

toxicacioacuten llevados por la policiacutea centros de readaptacioacuten o caacuterceles dependiendo de la

edad o cargo por el que fueron remitidos El 12 solamente habiacutea estado en casas para

menores y el 30 no habloacute de experiencias en instituciones

En general ellos teniacutean opiniones negativas sobre los centros de reeducacioacuten ya que

desde su punto de vista existiacutea mucho abuso y represioacuten Su opinioacuten de las Organiza-

ciones civiles ya sea centros de diacutea o casas para nintildeos de la calle era mejor ya que refi-

rieron que alliacute les ofreciacutean comida servicio meacutedico y a veces ropa Por otro lado estos

muchachos algunas veces iban a visitar a su familia sin embargo siempre regresaban

a Tacuba ya sea porque sus familiares les manifiestan que no habiacutea maacutes espacio para

ellos o porque ellos mismos se sentiacutean fuera de lugar De la misma manera que en In-

dios Verdes en Tacuba existiacutea una gran movilidad en los integrantes que conformaban

el grupo sin embargo siempre permaneciacutea un nuacutecleo que lo manteniacutea

Los muchachos de Tacuba no se preocupan por la limpieza ni en su ropa ni en su perso-

na salvo algunos muchachos del grupo la mayoriacutea rara vez se bantildeaban

Conformacioacuten del grupo

Observamos la existencia de reglas impliacutecitas en el grupo no robarse entre ellos mis-

mos no hablar de cosas que comprometiacutean a los demaacutes no denunciar a nadie prote-

112

gerse mutuamente de la agresioacuten externa ocuparse de los maacutes joacutevenes compartir la

comida la ropa y la droga con los maacutes necesitados no intervenir en las peleas de los

demaacutes compantildeeros cuando existiacutea un motivo justificado para la rintildea

Estos joacutevenes inhalaban cemento regularmente y ocasionalmente fumaban marihua-

na Practicaban relaciones homosexuales entre ellos pero al exterior del grupo teniacutean

relaciones heterosexuales salvo algunos que se prostituiacutean ocasionalmente con homo-

sexuales

Se agrupaban faacutecilmente en pequentildeos subgrupos dependiendo de la actividad que rea-

lizaban y en esos casos aceptaban momentaacuteneamente la direccioacuten de alguno de ellos

A diferencia del grupo de Indios Verdes en Tacuba no aceptaban mujeres entre sus

miembros ya que las ocasiones en que lo permitieron se generaron varios problemas y

peleas Durante el periodo en que trabajamos con ellos una jovencita de dieciseacuteis antildeos

se incorporoacute al grupo durante dos meses ella mantuvo relaciones con varios de los mu-

chachos del grupo y esto ocasionoacute varios pleitos entre ellos incluso uno de los joacutevenes

terminoacute en un hospital en vista de esto le pidieron a la joven que abandonara el grupo

Algunos muchachos manteniacutean relaciones con mujeres fuera del grupo de manera re-

gular y ocasionalmente con prostitutas de la colonia

Caracterizacioacuten del grupo Indios Verdes

En la delegacioacuten poliacutetica Gustavo A Madero localizada al norte de la ciudad se encuen-

tra el paradero del Metro Indios Verdes ademaacutes existe tambieacuten una gran cantidad de

paraderos de autobuses y microbuses lo que hace de esta zona un punto clave donde la

gente puede transportarse a diferentes puntos de la ciudad y zona metropolitana Por lo

tanto este lugar es visto por las posibilidades de trabajo que suscita para obtener una re-

muneracioacuten econoacutemica asiacute podemos encontrar una gran cantidad de comercios entre

ellos el mercado de Indios Verdes junto a eacuteste un pequentildeo parque con varios puestos

semi-fijos y con muchos vendedores ambulantes Cerca de alliacute varias viacuteas raacutepidas y un

gran puente peatonal con algunas aacutereas verdes Es en este punto donde se ubicaba un

grupo de nintildeos de la calle ya que las caracteriacutesticas del lugar resultaban muy apropiadas

para sus necesidades por una parte teniacutean lugares para dormir debajo del puente en

las aacutereas verdes y en un canal del desaguumle en desuso ahiacute tambieacuten podiacutean guardar sus

escasas pertenencias debido al gran traacutefico y a la cercaniacutea del mercado las posibilidades

113Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

de trabajo eran frecuentes de acuerdo con algunos testimonios el grupo habiacutea perma-

necido en este lugar desde aproximadamente cinco antildeos

Condiciones de vida

Este grupo estaba formado por nintildeos y joacutevenes de entre 7 y 23 antildeos aproximadamente

Se reuniacutean maacutes o menos entre 25 y 40 joacutevenes dentro del grupo existiacutean varias mu-

jeres de entre 14 y 16 antildeos Ellos pasaban la mayor parte del tiempo en el lugar donde

habitaban y se desplazaban rara vez a otras partes de la ciudad Muchos de estos joacutevenes

sabiacutean leer y escribir un 75 asistioacute a maacutes de tres antildeos de educacioacuten primaria algunos

terminaron la primaria y otros asistieron a la secundaria

Los motivos maacutes frecuentes que fueron referidos para estar en la calle violencia fami-

liar problemas econoacutemicos y el alcoholismo de uno o ambos padres La mayor parte

de estos joacutevenes habiacutea permanecido en la calle entre 2 y 4 antildeos pero hubo quien teniacutea

viviendo en la viacutea puacuteblica 12 antildeos o maacutes en cambio existiacutean otros que soacutelo teniacutean un

antildeo o menos Habiacutea un grupo de adolescentes que compartiacutean con los otros miembros

del grupo todas las actividades de la mantildeana y en las tardes regresaban a sus casas Apa-

rentemente soacutelo se ligaban al grupo a traveacutes de las drogas

Para conseguir dinero se dedicaban a mendigar a los transeuacutentes y tambieacuten realizaban

pequentildeos trabajos para los comerciantes de la zona ocasionalmente robaban El dinero

lo destinaban para comprar comida y droga

Todos los integrantes del grupo inhalaban cemento con regularidad el primero de ellos

que conseguiacutea dinero compraba un bote de inhalante y despueacutes eacutel vendiacutea o regalaba

a los otros pedazos de estopa impregnados de la sustancia En el grupo se hablaba de

ciertos casos de relaciones homosexuales sin embargo se privilegiaban las de iacutendole

heterosexual los casos de prostitucioacuten eran raros eventualmente vendiacutean droga para

completar sus ingresos

Todas sus redes sociales se desarrollaban en el mercado ahiacute manteniacutean relaciones im-

portantes con los comerciantes que les daban de comer a cambio de pequentildeos trabajos

Estos joacutevenes teniacutean una relacioacuten muy importante con los perros habiacutean adoptado a

cuando menos una docena y jugaban y conviviacutean con ellos de una manera muy estre-

cha ademaacutes compartiacutean con los animales su comida e inhalantes

114

Casi todos ellos habiacutean estado en instituciones para menores pero no quisieron hablar

sobre ellas Aunque no con frecuencia algunas veces iban a visitar a sus familias

Conformacioacuten del grupo

El grupo era movible en su composicioacuten podiacutea aumentar o disminuir coyunturalmente

tampoco existiacutea un liacuteder fijo los joacutevenes podiacutean aceptar ser dirigidos momentaacuteneamen-

te por uno u otro de los miembros del grupo en funcioacuten de la actividad que realizaban

Estos joacutevenes se protegiacutean entre ellos de las agresiones externas y trataban de regular

las internas tomando en consideracioacuten la edad de los contrincantes y las razones de

la pelea Los maacutes grandes protegiacutean y corregiacutean a los maacutes pequentildeos cuando alguacuten

integrante del grupo estaba herido o enfermo entre todos trataban de cuidarlo pro-

porcionarle comida y si era posible medicinas Tambieacuten eran capaces de respetar las

parejas sexuales de los integrantes del grupo Pareciacutean estar de acuerdo con las reglas

de funcionamiento grupal y con las condiciones de pertenencia Tambieacuten manifestaban

solidaridad respeto y amistad entre sus integrantes igualmente observaacutebamos situa-

ciones de mucha agresividad de manera frecuente

Para ser aceptado por el grupo existiacutea una prueba inicial que consistiacutea en embarrar al

aspirante con aceite sucio y despueacutes le pediacutean que inhalara cemento el mayor tiempo

posible quien lograba aguantar mucho tiempo podiacutea incorporarse

Las mujeres del grupo generalmente teniacutean un compantildeero fijo dentro del mismo y

jugaban en cierto sentido un rol materno por ejemplo los hombres les confiaban su

dinero para que lo distribuyeran en lo que se fuera necesitando y guardaran el resto

La funcioacuten del grupo

Indudablemente la organizacioacuten en grupo de las personas que sobreviven en la calle tie-

ne una funcioacuten de proteccioacuten y de racionalizacioacuten de los recursos A menudo encontra-

mos un nuacutecleo maacutes o menos fijo sobre el que vienen a agregarse otros personajes que

tienen una presencia irregular pero que buscan al grupo para satisfacer sus necesidades

afectivas y a menudo de obtencioacuten de drogas Podemos reconocer una funcioacuten psiacutequica

que se va entrelazando con una funcioacuten social

115Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

Nuestro trabajo permitioacute destacar que los nintildeos y joacutevenes de Tacuba teniacutean dificultades

para reconocer al grupo como algo exterior a ellos con frecuencia encontramos a traveacutes

de las fotos que ellos tomaron la disposicioacuten corporal de los miembros del grupo como

un conjunto de individuos amontonados aglutinados y traslapados dando la impresi-

oacuten ndashparadoacutejicamente- de que la piel del otro en tanto que presencia constituye en un

mismo tiempo tanto unidad como liacutemite reencontrado un deseo de fusioacuten que evoca

a la madre

Podriacuteamos recordar ciertas representaciones del grupo propuestas por Kaumles (1977) en

donde plantea al grupo como un organismo como un cuerpo en particular con el cuer-

po de la madre ldquotodas las representaciones del grupo como un cuerpo o como parte del cuerpo

se hallan conectadas a un escenario fantasmaacutetico a traveacutes del cual el sujeto se representa el ori-

gen y el destino de su concepcioacuten de su nacimiento de la sexualidad y de la diferencia entre los

sexos Estos fantasmas originarios tienen propiedades grupales en el sentido de que articulan y

representan de manera a la vez individual y colectiva personalizada y anoacutenima un conjunto

coherente y escenarizado de vinculaciones y procesos entre los objetos psiacutequicosrdquo (p110)

En cuanto a la fantasmaacutetica del origen podriacuteamos recordar el deseo de regresar al vientre

materno y los fantasmas de la escena primitiva con las imaacutegenes del grupo en posicioacuten de

fusioacuten-confusioacuten Este tipo de organizacioacuten nos devuelve a la imagen de la madre ldquoun lugar

materno bueno que escapa al orden de la sociedad mala en rigor un lugar de autarquiacutea y

autogeneracioacuten ya que se trataraacute de vivir por siacute mismo y para siacute mismo y de escapar gracias

a ello a la ley del trabajo y de la realidad social exteriorrdquo (Kaumles 1977 p 135)

El grupo constituido de esta manera tiene una funcioacuten contra las angustias psicoacuteticas

de fragmentacioacuten persecucioacuten y depresioacuten el objeto-grupo asegura un lazo preobjetal

de narcisismo funcional y una posibilidad de identificacioacuten en espejo al objeto comuacuten

lazo que cubre la funcioacuten de proteccioacuten de barrera y de defensa contra las angustias de

la separacioacuten y el ataque

Al mismo tiempo se constatoacute que en este caso los muchachos se apoyaban en los ima-

gos familiares en busca de apoyos de identificacioacuten que les permitiacutea escapar de la fami-

lia ldquo y transformar al grupo en otra familia en la que pareciacutea predominar el principio

del placer entre iguales y la realidad modelarse por el suentildeo El grupo es un conjunto

unido prieto homogeacuteneo cerrado en el que nos entendemos bien en el que se dibuja un deseo

116

insatisfecho en la familiahellip (p126) El grupo es un campo cerrado es el cierre del campo de

las relaciones con respecto a un exterior decepcionante que frustra y amenaza en su interior

se resuelven en lo imaginario las mayores insatisfacciones infligidas por la debilidad de los

otros -especialmente de la familia- para recibir y dar amor Al grupo se le fantasea como repre-

sentacioacuten plena en el pecho- falo materno o como agregacioacuten a la fratriacutea narcisista todopode-

rosa El grupo es ademaacutes encierro en un cerco que protege contra el exterior contra la salida

hacia una historia se le quiere precisamente sin historia(s) sin conflictos pero tambieacuten sin

devenir estacionario intemporalrdquo (Kaumles 1977 p130)

Con base en nuestros hallazgos podemos sentildealar que los nintildeos de la calle tienden a de-

positar la imagen de buen grupo en el que tienen en la calle y la imagen de mal grupo

a su grupo familiar O a veces ocurre que juegan alternativamente con estas dos imaacute-

genes a veces idealizando el recuerdo de la familia sobre todo cuando los padres han

desaparecido y a veces depositando el lado malo en el grupo de la calle En todo caso lo

que llama la atencioacuten es que la circulacioacuten de la violencia es importante y sin embargo

hay un apego importante al grupo

Una de las cosas que maacutes observamos en los nintildeos y joacutevenes que viven en la calle es la

manera en que establecen contacto fiacutesico A menudo manifestaban la sensacioacuten de re-

querir con urgencia establecer contacto con ellos Las sensaciones producidas por esos

contactos se encuentran entre la demanda afectiva y una maacutes ligada a la sensualidad

ya que por un lado existe un componente manifestado de una manera muy primaria

como lo realizariacutea cualquier nintildeo pequentildeo pero al mismo tiempo se establece un con-

tacto erotizado que estaacute presente y que se manifiesta principalmente en las sensaciones

olfativas Esta sensacioacuten la hemos podido percibir tanto con los grupos de nintildeos de la

calle como con nintildeos que son abandonados en Instituciones de cuidado de menores y

que despueacutes se instalan en la calle

Retomando los elementos propuestos por Winnicott (1984) y por Aulagnier (1979) po-

driacuteamos decir que esta necesidad de contacto se asemeja a reacciones regresivas ligadas

a fases de relacioacuten muy primarias con la madre

Winnicott (op cit) habla de esos movimientos regresivos que son a menudo asociados

con periodos muy satisfactorios en donde el yo estaacute constituido como una forma de

defensa por el nintildeo con carencias emocionales Aulagnier (op cit) enuncia la relacioacuten

117Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

del nintildeo con su cuerpo y con las sensaciones ligadas a la oralidad y con el placer como

esenciales en la constitucioacuten del yo en el nintildeo

No podemos pasar por alto la observacioacuten de los gestos de los nintildeos cuando inhalan la

droga en donde la sensacioacuten de placer se centra en la oralidad y en la funcioacuten gustativa

De manera evidente podemos reconocer una erotizacioacuten en la funcioacuten respiratoria De

acuerdo con Aulagnier (op cit) en la toxicomaniacutea la droga es una fuente de placer que

despueacutes se convierte en una necesidad

Otro elemento para discutir es el relativo a la promiscuidad homosexual de los mucha-

chos de los grupos callejeros No podriacutea asegurarse que en sentido estricto ese tipo de

relaciones debieran ser denominadas como homosexuales ya que aparentemente no

existe una relacioacuten de objeto tampoco hay un participante privilegiado ni existen celos

cuando alguno de esos mismos joacutevenes establece relaciones heterosexuales buscan es-

tablecer un compantildeero uacutenico y los problemas de celos pueden terminar en pleitos muy

serios Aquiacute maacutes bien aparece como un elemento muy importante en las relaciones en-

tre los hombres la nocioacuten de dominante-dominado No es el caso para aquellos quienes

reconocen su homosexualidad y eligen una pareja del mismo sexo En este caso la dinaacute-

mica afectiva es muy similar a la de las parejas heterosexuales En cualquier forma nos

parece que la promiscuidad sexual a una edad precoz y la utilizacioacuten de drogas (Angel

P Botbol M y Facy F 1987) son elementos importantes para bloquear la posibilidad

de pensar y simbolizar A menudo los dibujos de estos nintildeos muestran una gran canti-

dad de imaacutegenes ligadas a la sexualidad genital

Retomando el trabajo de Kaumles (1977) podriacuteamos decir que la relacioacuten en algunos gru-

pos corresponde a la imagen de grupo-objeto en su forma maacutes primitiva de preobjeto

maternal faacutelico y en otros a una forma maacutes secundaria que se refiere a una organizaci-

oacuten ediacutepica o a un modelo familiar

Todo grupo tiene la funcioacuten de proteccioacuten sin embargo ciertos grupos son maacutes abier-

tos que otros y permiten al nintildeo situaciones de socializacioacuten diferentes Las situacio-

nes regresivas la falta de posibilidad de simbolizacioacuten y elaboracioacuten de los joacutevenes asiacute

como el funcionamiento del grupo se retroalimentan ya que las primeras determinan

la estructura del grupo y al mismo tiempo el grupo favorece las situaciones y las activi-

dades que refuerzan esa falta

118

Por su parte las relaciones sexuales precoces y el consumo de drogas impiden la capa-

cidad de simbolizacioacuten y de elaboracioacuten al mismo tiempo mantienen las formas de

relacioacuten y de dependencia con el grupo lo cual disminuye las posibilidades de hacer

actividades de manera independiente y de desarrollar la autonomiacutea

Las posiciones maacutes abiertas en cuanto al funcionamiento grupal como es el caso de

Indios Verdes favorecen a los nintildeos la expresioacuten de su creatividad en la formulacioacuten de

reglas la creacioacuten de espacios luacutedicos y la negociacioacuten de relaciones con los adultos y

las autoridades

A menudo se tiene la impresioacuten de que las enormes posibilidades de adaptacioacuten que

tienen los nintildeos de la calle hacen que puedan pasar de una situacioacuten afectiva a una situ-

acioacuten social muy raacutepidamente y en forma aparentemente contradictoria Podriacutea decirse

que hay momentos en que aparentan ser muy autoacutenomos y otros muy dependientes

con algunos momentos en que aparecen como muy haacutebiles y otros en gran dificultad

En este sentido el anaacutelisis psicoloacutegico en relacioacuten a la funcioacuten del grupo puede ser

enriquecido por los trabajos de Lucchini (1995) en particular la nocioacuten del funciona-

miento del grupo de los joacutevenes que viven en la calle en forma de red y no de banda en

donde no hay un liacuteder fijo en el grupo sino que esa funcioacuten se comparte y se distribuye

coyunturalmente En lo que concierne a nuestras observaciones el liderazgo se plantea

en funcioacuten de las actividades o de las relaciones de poder en el espacio donde se en-

cuentra el grupo Este modo de funcionamiento requiere un entorno social particular y

una gran flexibilidad en la organizacioacuten En la dimensioacuten social encontramos tambieacuten

que el grupo ofrece posibilidades de identificacioacuten con los pares que entre otras cosas

significa una lucha contra la sensacioacuten de soledad y de desproteccioacuten La vida en la calle

es una forma de resistencia colectiva a la injusticia al abuso del poder a la miseria

Para disentildear una forma de trabajo con estos nintildeos y joacutevenes es necesario realizar un

diagnoacutestico maacutes preciso del modo de funcionamiento interno de cada grupo Sin em-

bargo este trabajo permite hacer una serie de reflexiones en cuanto al encuentro ―a me-

nudo difiacutecil y desfasado― con las Instituciones de Asistencia Social sean casas hogares

o centros de reeducacioacuten

En primera instancia aparece el problema de los liacutemites Se trata de un problema de

liacutemites externos y de liacutemites internos La funcioacuten del grupo que viene a cubrir reparar

119Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

una falla interna o encontrar fantasmaacuteticamente el cuerpo de la madre implica una ma-

nera de tomar al otro para poder sentir los liacutemites de siacute mismo Hay un problema con

la expresioacuten de la individualidad es como si la sensacioacuten de seguridad en este tipo de

estructura proviniera del yo grupal en donde el yo de cada quien estaacute un poco perdido

es decir con-fundido

El grupo tal como es descrito por Kaumles (1977) como teatro de manifestaciones pulsio-

nales y soporte proyectivo de deseos muy arcaicos favorece en los joacutevenes la transicioacuten

de pasajes al acto como la drogadiccioacuten y las relaciones sexuales precoces que implican

una confusioacuten en la construccioacuten de liacutemites internos Asiacute las manifestaciones del deseo

de fusioacuten y de borrar los liacutemites externos tiene su equivalente en los liacutemites internos y

se expresa en la incapacidad de simbolizacioacuten de los joacutevenes y en la utilizacioacuten del inha-

lante que produce un material sensorial que ocupa su pensamiento

Respecto a la funcioacuten de las reglas construidas por ellos mismos la existencia de estas

reglas puede significar la presencia de una estructura efectivamente auacuten si el grupo

representa un lugar fusional y regresivo las reglas tienen que ver con las relaciones

en el grupo y con la necesidad de garantizar la calidad y la duracioacuten de los lazos para

proteger la propia estructura grupal al mismo tiempo que cubren la funcioacuten de barrera

protectora del grupo frente al exterior

Es necesario sentildealar que estos joacutevenes son capaces de negociar con el exterior una serie

de comportamientos sociales con la policiacutea los comerciantes los transeuacutentes para

utilizar los espacios hacer trabajos eventuales para ser aceptados en lugares puacuteblicos

etceacutetera Este aprendizaje social parece estar desfasado del funcionamiento afectivo Es

por eso quizaacute que a menudo se tiene la sensacioacuten de que esos joacutevenes pueden pasar de

posiciones infantiles a posiciones adultas y que en su comportamiento hay un desfase

constante entre el saber praacutectico sus demandas afectivas y su adscripcioacuten en las rela-

ciones

El problema del encuentro de estos joacutevenes con las Instituciones es la diferencia del

grupo como lugar de vida y de la institucioacuten que implica una nocioacuten de sujeto comple-

tamente diferente La institucioacuten parte de la idea de un sujeto responsable deseoso con

un proyecto personal y ninguno de esos joacutevenes puede corresponder a ese perfil

120

El modo de funcionamiento del grupo produce una gran dificultad de ruptura sobre

todo porque aparentemente vienen a buscar en el grupo y en el consumo de la droga

disminuir las angustias de separacioacuten de una madre ausente La separacioacuten del grupo

produce al momento de tratar de integrarse a una institucioacuten una gran depresioacuten que

para algunos es irresoluble por la que recurrentemente vuelven al grupo

Finalmente hay un problema de lugar Estos joacutevenes tienen un lugar en su grupo un

lugar creado por ellos y que aparentemente nadie maacutes les puede quitar siendo la calle

un lugar de todos auacuten si la sociedad puede expresar que no es un buen lugar para un

nintildeo es el lugar creado imaginado vivido e investido por ellos El problema de las Ins-

tituciones es que en el mejor de los casos en las mejores concepciones de Institucioacuten

hay una especie de anonimato y de indiferencia afectiva inevitable a la nocioacuten de Insti-

tucioacuten Se puede intentar disminuir esta dificultad mejorar las propuestas psicopeda-

goacutegicas tratar de manifestar sentimientos de afeccioacuten pero finalmente no deja de ser

una Institucioacuten con una loacutegica propia En el grupo creado por los nintildeos ellos tienen el

sentimiento de que es un grupo escogido por ellos para sustituir a su familia y tienen

una calidad de lazos y de solidaridad que difiacutecilmente pueden encontrar en una Institu-

cioacuten sensacioacuten exacerbada por la corta duracioacuten de sus estancias

Aunado a esto muchas Instituciones tienen una racionalidad guiada por los proyectos

pedagoacutegicos o de socializacioacuten y cambian a los nintildeos frecuentemente de grupo o de es-

pacio fiacutesico aludiendo a etapas por las que debe pasar el nintildeo ignorando muchas veces

las cuestionas afectivas que los ligan a los grupos En nuestra opinioacuten esto produce una

reedicioacuten de los procesos traumaacuteticos de separacioacuten vividos por el nintildeo y en consecuen-

cia muchas veces una huiacuteda a la calle

Laconstruccioacutendelaidentidaddelosnintildeosyjoacutevenesensituacioacutendecalle

Camilleri y cols (1990) consideran que para explicar la identidad hay que tomar en

cuenta primero los procesos de identificacioacuten y de apego afectivo el acento debe po-

nerse en la percepcioacuten que tiene de siacute mismo el sujeto y finalmente se debe tomar en

consideracioacuten el peso del inconsciente sobre los deseos y elecciones del sujeto Estos

autores resumen los trabajos sobre la identidad en tres corrientes 1) Los de la antropo-

121Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

logiacutea psicoanaliacutetica que basaacutendose en los trabajos de Freud proponen categoriacuteas para

entender el proceso de construccioacuten de la identidad como autores representantes de

esta corriente abordan a Erikson y Devereux 2) Los de la psicologiacutea social con el con-

cepto de self desarrollado por autores como Mead Heider Festinger y Goffman y 3) La

de la sociologiacutea con conceptos tales como identidad social como una representacioacuten de

siacute mismo propuestos por Lavov Bernstein Ziegler y Wood

En lo que se refiere a la corriente de antropologiacutea psicoanaliacutetica la identificacioacuten fue

definida por Freud como un proceso mientras que la identidad fue planteada como un

producto La identidad aparece como la resultante de diferentes identificaciones del

sujeto pero de acuerdo con Erikson no puede ser concebida como la simple adicioacuten de

identificaciones pasadas Surge de la seleccioacuten y de la asimilacioacuten de identificaciones de

la nintildeez asiacute como de la integracioacuten de una nueva configuracioacuten que a su vez depende

de un proceso gracias al que una sociedad (a menudo a traveacutes de los grupos interme-

dios) identifica al individuo joven reconocieacutendolo de acuerdo a un deber ser La aceptaci-

oacuten de la comunidad termina esta construccioacuten de manera tal que la identidad final que

se fija al teacutermino de la adolescencia encierra todas las identificaciones significativas

pero las transforma tambieacuten para hacer un todo razonable coherente y especiacutefico La

identidad para Erikson tiene que ver con 1) Un sentimiento de especificidad individual

2) Un esfuerzo inconsciente de establecer una continuidad de la experiencia vivida (maacutes

allaacute de la diversidad de roles y de discontinuidades temporales) y de la participacioacuten del

individuo de los ideales culturales del grupo

Otro elemento que ha sido abordado por Erikson es que lejos de tratarse de una conste-

lacioacuten estaacutetica de rasgos y de roles la identidad es un fenoacutemeno dinaacutemico y conflictivo

Hay una tensioacuten en ella entre un polo positivo y uno negativo La identidad psico-social

encierra una jerarquiacutea de elementos positivos y negativos que resultan de los prototipos

ideales a los que se confronta el nintildeo Estos prototipos representan modelos que es ne-

cesario copiar pero tambieacuten representan otros modelos que es necesario evitar

ldquoDevereux pone en primer teacutermino el hecho de que el ser humano es socializado seguacuten

un modelo sexuado que encuentra su sentido y su complementariedad definieacutendose en

relacioacuten al otro sexo Tanto la masculinidad como la feminidad y esto no importa en

que cultura presuponen la existencia del otro sexo y representan respuestas significati-

vas a su existenciardquo Es asiacute que seguacuten Devereux no se puede ser humano sin ser hombre

122

o mujer y de la misma manera el modelamiento sexual determina una manera par-

ticular de existir El modelamiento imprime una coloracioacuten particular al inconsciente

individual puesto que el inconsciente idiosincraacutesico tiene sus raiacuteces en el inconsciente

eacutetnico al que se relaciona

En este marco teoacuterico las diversas facetas de la identidad no son solamente una repre-

sentacioacuten de siacute mismo sino llegan al conjunto de lo que es el individuo las modalida-

des de su existencia las interpretaciones que hace y auacuten las desviaciones de la norma

que se expresan de acuerdo a un conjunto de posibilidades propuestas por la cultura

(Camilleri y Cols 1992)

En cuanto a la aproximacioacuten de la psicologiacutea social de acuerdo con Lipiansky (1990)

Mead es uno de los primeros autores que plantean la conciencia de siacute el self como una

entidad en estrecha relacioacuten con los procesos sociales donde el sujeto se encuentra in-

merso Seguacuten Mead se prueba a siacute mismo no directamente sino solamente adoptando

el punto de vista de los otros o del grupo social al cual pertenece Esta aproximacioacuten

lleva a Mead a asegurar que el siacute en tanto que objeto para siacute es esencialmente una estruc-

tura social que nace en la experiencia social Es entonces el proceso ce comunicacioacuten

social que produce el siacute y las diversas facetas del siacute que reflejan los diversos aspectos de

ese proceso

Lipiansky ( Op cit) retoma a Tajfel para explicar la influencia del otro sobre la elabora-

cioacuten de las percepciones del sujeto de acuerdo con eacutel los dos determinantes principales

de la seleccioacuten y organizacioacuten social son los valores sociales y el consenso social Los va-

lores se refieren a intereses placeres gustos preferencias deseos necesidades recha-

zos y atracciones mientras que el consenso social influye sobre la actividad cognitiva

determinando las modalidades de la percepcioacuten social

Por su cuenta los trabajos de Goffman (1993) reconocen la relatividad de las normas y

el dinamismo de las identidades Basando sus reflexiones en las identidades estigmati-

zadas o negativas el autor pone el acento en la facultad que tiene el individuo como ac-

tor de verse como si viera una peliacutecula de su vida actuando un papel (o una identidad)

es decir sentildealando la distancia entre el YO y la identidad Esta aproximacioacuten supone

una cierta distancia entre las identidades del actor social y la esencia de su YO o si se

quiere la existencia de dos clases de identidades la identidad existencial y profunda que

123Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

representa la continuidad de la persona y el conjunto de identidades que hace suyas a lo

largo de su vida Esta es una de las razones quizaacute de la dificultad de precisar las historias

de los joacutevenes de calle ademaacutes de las resistencias propias a la evocacioacuten de situaciones

dolorosas existen tambieacuten las muacuteltiples facetas e identidades con las que juega el joven

en situacioacuten de calle desde la adopcioacuten de diferentes nombres o sobrenombres hasta

la invencioacuten de diferentes historias de acuerdo con el interlocutor que tiene y lo que eacutel

imagina que aquel quiere escuchar El autor pone tambieacuten el acento en la incertidumbre

del estigmatizado sobre en queacute categoriacutea puede ser ubicado de ahiacute que muchos joacutevenes

hagan preguntas sobre coacutemo se les percibe

Goffman (Opcit) hace notar que el individuo estigmatizado vacila a menudo entre la

actitud de retraimiento y actitudes agresivas y de bravata pasando faacutecilmente de una a

otra Por su parte De Gaulejac (2008) retomando a Taboada-Leonetti habla del comple-

jo del Ave Feacutenix para explicar la necesidad de tocar fondo y de recurrir a la exageracioacuten

destructiva en la abyeccioacuten como forma de posicionarse como sujeto A menudo en

nuestro encuentro con los joacutevenes de calle sentimos que hay cierto goce en ponerse en

situaciones de peligro y de liacutemite El sentimiento de omnipotencia del sujeto resulta

fortalecido en esta lucha cotidiana para sobrevivir A veces nos parece que la situacioacuten

de supervivencia y de jugar con el peligro es del mismo orden de aquellos que buscan

los deportes de alto riesgo para sentirse fortalecidos en su capacidad de mantenerse en

vida soacutelo que la vida en la calle no es una eleccioacuten conciente sino el uacuteltimo eslaboacuten de

elecciones no siempre realizadas por el propio sujeto

El punto de vista socioloacutegico de acuerdo con Lipiansky Taboada- Leonetti y Vaacutezquez

(1990) se ha desarrollado igualmente a partir de estudios sobre la identidad social con-

cebida como una representacioacuten de siacute en tanto que individuo pero sobre todo en tanto

grupo moldeado por la ideologiacutea dominante en una sociedad dada Lavov a partir de

investigaciones sobre la clase obrera o grupos minoritarios muestra como los grupos

sociales interiorizan una cierta interpretacioacuten del lugar que ocupan en las relaciones de

produccioacuten y las relaciones de poder de manera tal que no perciben la influencia de los

determinismos sociales sobre su destino individual Bernstein agrega que en este caso

la identidad impuesta equivale a un tipo de alienacioacuten de siacute porque ese tipo de grupos

sociales no pueden tomar conciencia de su identidad a partir de lo que poseen sino a

partir de lo que han estado privados Hoogart en la misma liacutenea de reflexioacuten agrega

que la identidad alienada no es maacutes que una ilusioacuten de identidad puesto que implica

124

el repliegue sobre siacute mismo la marginalidad y la no percepcioacuten de contradicciones y de

relaciones de poder

Retomando nuestro trabajo con los nintildeos que trabajan en la calle y la representacioacuten

que de eacutestos tienen los diferentes sectores parece que el resumen presentado anterior-

mente confirma la importancia que puede tener la imagen del otro en la construccioacuten

psiacutequica del individuo Algunos autores ponen el acento maacutes en las estructuras y en la

historia del sujeto otros en las experiencias del aquiacute y ahora algunos maacutes en la elabo-

racioacuten racional del individuo de su identidad otros maacutes en los procesos inconscientes

algunos maacutes en el grupo mientras que otros en el individuo pero lo que es innegable es

que todos coinciden en la importancia de la imagen que los otros proyectan al individuo

de siacute mismo

El trabajo de Taboada-Leonneti (1990) sobre las estrategias de construccioacuten en los

individuos pertenecientes a grupos minoritarios nos permite pensar que cada nintildeo

puede asumir estrategias diferentes para internalizar y ulteriormente convivir con la

imagen que se proyecta de eacutel Para algunos la viacutea es afirmaacutendola de manera exagerada

y proyectaacutendola de manera agresiva al grupo y a la sociedad asumieacutendose drogadictos

o delincuentes por ejemplo otros negaacutendola y reafirmaacutendose en la identidad contraria

algunos aceptaacutendola y con ello permitieacutendose el construir algo con ella Este podriacutea

ser el caso de los nintildeos de la calle que siendo adultos se convierten en educadores de

la calle para ayudar a otros nintildeos que se encontraban en sus mismas condiciones Esto

dependeraacute seguramente de la propia estructura del nintildeo y del trabajo que pueda reali-

zarse con eacutel

Si retomamos la importancia de la mirada del otro en la construccioacuten de la identidad

adquiere mucha relevancia el anaacutelisis de la imagen que proyecta la prensa del nintildeo en

la construccioacuten social que se estaacute haciendo de eacutesta asiacute como en el sentimiento de ex-

terioridad con que la gente vive este proceso Sabemos que toda situacioacuten que produce

angustia genera mecanismos de defensa para poder soportarlos la sola presencia de

los nintildeos en las calles en situaciones difiacuteciles tiende a generar mecanismos de toma de

distancia La fabricacioacuten de una imagen a partir de la prensa como futuro delincuente

del nintildeo y como drogadicto genera una actitud de rechazo y de hostilidad hacia eacutel

acentuando el proceso de toma de distancia y de sentimiento de exterioridad en relacioacuten

este fenoacutemeno Ha sido frecuente en nuestro trabajo el estar con joacutevenes de la calle y ob-

125Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

servar las miradas las actitudes de aquellos que se consideran dentro de la norma esta

mirada no soacutelo responde a los propios miedos de la mayoriacutea frente a la marginalidad

sino tambieacuten a la imagen que los medios masivos van construyendo de la misma como

un peligro para la sociedad Difiacutecilmente la gente puede pensar que tambieacuten la sociedad

ha puesto en peligro a estos joacutevenes

En nuestros estudios sobre el impacto de la representacioacuten social del fenoacutemeno de la

vida en la calle en gran parte producida por los medios de informacioacuten observamos

que partes del discurso de los nintildeos (de la calle y de las escuelas) coinciden con los pro-

ducidos por la clase media y por las Instituciones Por otro lado de cuarenta y nueve ar-

tiacuteculos analizados en seis perioacutedicos y tres revistas de difusioacuten nacional sobre los nintildeos

de la calle se concluyoacute que la primera causa que provoca la salida de los nintildeos a la calle

es la pobreza y la segunda la violencia familiar

Lucchini (1993) ha encontrado en diversos paiacuteses de Ameacuterica Latina que los nintildeos de

la calle responden muy faacutecilmente a las expectativas de sus interlocutores periodistas

educadores de calle turistas investigadores entre otros Se ha observado que los nintildeos

utilizan con frecuencia su marginalidad como una carta de presentacioacuten para establecer

una forma de relacioacuten basada en la seduccioacuten Ellos juegan con su marginalidad pero

tambieacuten con el deseo del otro de hacerlos salir de esa marginalidad

Un estudio realizado sobre la participacioacuten de los joacutevenes de la calle en el teatro (Tara-

cena y Tavera 2002) nos permitioacute acceder a las representaciones que ellos tienen de siacute

mismos Eacutestas a menudo son una re-elaboracioacuten de las representaciones que diversos

sectores sociales tienen de ellos

Se trabajoacute la relacioacuten identidad-cuerpo a traveacutes de un video de una puesta en escena que

se realizoacute en una plaza puacuteblica donde una organizacioacuten civil que trabaja con joacutevenes de

calle utilizoacute el teatro como una viacutea de educacioacuten sexual y en particular de la prevencioacuten

de enfermedades sexualmente transmisibles con el fin de producir en el infante de la

calle una especie de conciencia sobre el siacute mismo que le permita construir proyectos

alternativos

Posteriormente se invitoacute a los joacutevenes a ver el video de la obra de teatro realizada por

ellos mismos y se registraron todos los comentarios relacionados a su imagen Se les

126

pidioacute tambieacuten que dibujaran para tener acceso al imaginario que se puso en marcha con

su propia imagen Este dispositivo nos permitioacute profundizar el estudio de la conforma-

cioacuten de su identidad y del discurso que producen de la misma

De acuerdo con Linard y Prax (1980) al mirar su imagen puede ser llevado al fenoacuteme-

no de inquietante extrantildeeza a las viejas heridas narcisistas que marcaron su renuncia

al Yo ideal y su pasaje al estado de signo diferente El individuo es confrontado a una

doble imagen de siacute mismo la perceptiva y la interiorizada desdoblaacutendose en su Yo piel

y abandonado a la captura visual de la mirada del otro el signo que pareciacutea estable y que

se desbarata dentro de su liacutemites y sus barreras proyectado algunas veces por su propio

debilitamiento lejos en la historia de sus identificaciones y de sus relaciones con el otro

El caso de un nintildeo de la calle confrontando a su propia imagen es particular debido a su

propia historia de rupturas su fragilidad narcisista y tambieacuten porque eacutel no estaacute habitua-

do a verse dentro de una peliacutecula para todos estos joacutevenes era la primera experiencia de

este tipo Esta podriacutea ayudarnos a comprender por queacute ellos insistieron en mostrar una

identificacioacuten con su toxicomaniacutea apoyaacutendose en el hecho de que la droga les permite

enfrentar su cotidianeidad yendo a veces hasta substituirse por el bote de cemento esto

se encuentra tambieacuten en sus comentarios en los dibujos que realizaron ltsolamente

cuando estoy hasta atraacutes no me da penagt lttuacute estabas tambieacuten bien hasta atraacutesgt ltiexclMiacute-

ralo con su bote (risas)gt Es evidente que en el discurso de los nintildeos hay una alusioacuten a

la problemaacutetica narcisista y a la mirada del otro

Una problemaacutetica importante a reflexionar de esta experiencia es aquella que se relacio-

na con el cuerpo y la identidad de los nintildeos Relacionando estas observaciones con las

de Aacutengel P Botbol M y Facy F (1987) sobre los adolescentes inhaladores de Pariacutes

se puede decir que el deseo de drogarse no se situacutea en un nivel mental sino maacutes bien a

nivel corporal Ellos tambieacuten consideran a la inhalacioacuten como una traba para la menta-

lizacioacuten

En palabras de un nintildeo de la calle la relacioacuten entre el cuerpo y la droga es explicada asiacute

ltAlgunas veces nuestro cuerpo nos lo pide la droga nos llamagt Los autores antes men-

cionados citan la investidura libidinal de la funcioacuten respiratoria el apoyo sobre la fun-

cioacuten respiratoria de una libidinizacioacuten de la respiracioacuten o de la erotizacioacuten respiratoria

como un elemento importante en la toxicomaniacutea de los inhalantes Ellos citan tambieacuten

127Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

las imaacutegenes de satisfaccioacuten de las primeras experiencias respiratorias y alimenticias

ldquoComo el espasmo del primer llanto la inhalacioacuten voluntaria de solventes podriacutea ser

definida como el pasaje al acto para realizar esos fantasmas de satisfaccioacuten ligadas a

trazos mneacutesicos de imaacutegenes dejadas por las verdaderas satisfaccionesrdquo (p115)

Ellos subrayan la significacioacuten del inhalar ya que conduce al pasaje al acto y tambieacuten

al riesgo en caso de los nintildeos de la calle esos componentes se encuentran reforzados

constantemente por la presencia misma del nintildeo en la calle en donde estaacute obligado a

convivir con la muerte y el peligro esto aumenta su sensacioacuten de omnipotencia cada

vez que sale ileso de esas experiencias

Diversas investigaciones permiten constatar que estos nintildeos son incapaces de estable-

cer un lazo entre las enfermedades y los riesgos de contraerlas Citaremos en particular

el caso del SIDA y la rabia Tratando de hacerles comprender los mecanismos del con-

tagio a menudo ellos no fueron capaces de tomar las precauciones necesarias (Jayme

y Juaacuterez 1995) Ellos seguramente establecen una relacioacuten entre la muerte y un senti-

miento de invulnerabilidad parecida a la ya citada en los inhaladores (Angel P Botbol

M y Facy F 1987)

El video de la obra de teatro regresa a los joacutevenes al problema de su identidad ltEstaacute

bien estar en una casa porque tenemos una familia quien nos cuide quien nos veagt

ltHacemos teatro porque nos sentimos bien para que las personas nos mirengt ltEn

la calle la gente nos trata bien yo me siento bien ahiacute ellos no te critican Bueno hay

algunos que siacute lo hacen Hay personas que nos ayudan y otras que nos miran como si

fueacuteramos basura como un animal No seacute por queacute puede ser porque estamos suciosgt

Todas las anteriores intervenciones de diferentes nintildeos evidencian la importancia de

la mirada del otro la imagen que el otro puede devolverles de siacute mismos Lo mismo Za-

zzo que Lacan ha hablado de la experiencia especular como un momento decisivo de la

construccioacuten del sujeto El problema de la mirada del otro nos remite a las dificultades

narcisistas y al problema de la identidad

De acuerdo con Lipiansky (1992) se puede considerar a la identidad como un proceso

cognoscitivo que incluye componentes afectivos y que se apoya en la identificacioacuten de

128

proyecciones e introyecciones que pueden ser cambiadas o ajustadas a lo largo de la vida

del sujeto

A menudo se ha encontrado en los nintildeos de la calle una dificultad para decir su nombre

y apellidos Ellos se presentan siempre con un apodo y prefieren conocer tambieacuten a sus

compantildeeros por su apodo Una de las primeras tareas de las Instituciones que actual-

mente se acercan a los nintildeos es el tratar de convencerlos para que acepten la utilizacioacuten

de sus nombres En una de ellas se realizoacute una dinaacutemica de grupo para favorecer la uti-

lizacioacuten de sus nombres los nintildeos se sientan alrededor de una mesa y cada uno repite

el nombre de sus compantildeeros Cuando se llevoacute a cabo lo anterior los nintildeos mostraron

una gran dificultad para lograrlo dejando ver un cierto nerviosismo

Una gran parte del grupo se levantoacute y se salioacute de la sala un nintildeo mostroacute la tensioacuten que

le produciacutea el ejercicio y se levantoacute diciendo ltYo no quiero saber el nombre de nadie

yo no quiero que sepan el miacuteogt Sucede lo mismo cuando se le pregunta a un nintildeo su

apellido ltYo no seacute Peacuterez Saacutenchez oacute Loacutepez es lo mismogt o bien ltYo soy nadiegt o ltYo

soy nadagt

En este contexto las alusiones a la mirada del otro nos llevan a pensar en los primeros

estadios arcaicos de la infancia en la relacioacuten dual de la madre y en la problemaacutetica nar-

cisista reactualizada por algunos joacutevenes en la toxicomaniacutea la inhalacioacuten revive visual

y sensorialmente la imagen del pecho materno

Por su parte Lucchini (1993) enfatiza el problema del reconocimiento de la madre una

vez que el nintildeo ha abandonado su hogar como un elemento importante de su buacutesqueda

identitaria particularmente al entrar a la adolescencia De esta manera para construir

su realidad el nintildeo de la calle se apoya en su grupo de compantildeeros en el espacio fiacutesico

que le rodea y sobre sus relaciones con los diferentes actores sociales que estaacuten en la

calle

Para finalizar resulta importante subrayar que al igual que otros autores como Erikson

Devereux Wallon y Zazzo se puede pensar que el desarrollo de la identidad implica un

lazo constante entre lo subjetivo y lo social Los problemas manifestados por los nintildeos

de la calle a partir de su experiencia en el teatro nos hacen reconocer la importancia

129Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

que tiene para la construccioacuten del sujeto el encuentro entre los factores psiacutequicos y los

sociales

Dentro de la construccioacuten de su identidad y de la relacioacuten con su cuerpo hay una refe-

rencia constante a sus primeras experiencias personales en la relacioacuten con la madre

aunque tambieacuten en las referencias al espacio a la situacioacuten social a la violencia que

caracteriza ciertos medios sociales e incluso al rol de la madre y del padre determinado

por esta pertenencia en donde con frecuencia hay una presencia mucho mayor de la

madre y mucho menor del padre Si el joven conserva algunas imaacutegenes difusas en ge-

neral sensoriales de la primera relacioacuten con la madre en el nivel consciente lo que re-

salta maacutes a menudo es el sentimiento de ausencia abandono y a menudo de violencia

Esta violencia de su primera historia se re-edita en su vida en la calle Violencia concreta

en sus lazos con las personas que encuentra en su entorno inmediato La relacioacuten con

la policiacutea es ambivalente por un lado a veces se le extorsiona y se le utiliza como chivo

expiatorio y algunas otras se le permite la trasgresioacuten con cierta complicidad Lo mismo

sucede con la gente que por un lado los discrimina y por el otro les proporciona dinero

y comida Por uacuteltimo con las instituciones establecen una complicidad y algunas veces

no los reconocen Violencia simboacutelica de la sociedad que no encuentra otro lugar que

darles que la calle que no los protege y que a menudo soacutelo los reconoce en lo negativo

Esta violencia es revertida en sus relaciones y en los grupos en los que se encuentra aun

en los casos de relaciones de ayuda y de apoyo

Dentro de esta dialeacutectica se tejen las historias de los nintildeos de la calle los cuales sorpren-

den por su capacidad para resolver los problemas praacutecticos por su inteligencia y por su

forma de vivir y de enfrentar continuamente a la muerte pero tambieacuten con sus enor-

mes fragilidades sus desfases su capacidad de pasar raacutepidamente de adultos a nintildeos

en actitudes y comportamientos

Otrasinvestigacionessobreelfenoacutemenodelavidaenlacalle

Desde la antropologiacutea social el trabajo de Sara Makowski (2004) representa una mi-

rada original desde una propuesta antropoloacutegica para el anaacutelisis de las condiciones so-

ciales de produccioacuten del fenoacutemeno de los joacutevenes de la calle una propuesta que intenta

130

rescatar la mirada y la memoria de los joacutevenes esa memoria de la exclusioacuten de la que

la sociedad quiere saber poco o quiere ignorar Esta investigacioacuten ofrece tambieacuten un

material inapreciable para reflexionar sobre los modos de vida de los joacutevenes la relacioacuten

con la calle y con los objetos que en ella existen como uacutenico modo de recrear algo que

sientan suyo Dicha investigacioacuten coincide con las realizadas por nuestro equipo de tra-

bajo en el deseo de comprender y de escapar a los marcos normalizantes de las ciencias

sociales y de las instituciones que pretenden a menudo patologizar todo aquello que se

aleja del comportamiento de la mayoriacutea

La autora trabajoacute con joacutevenes que teniacutean maacutes de diez antildeos en la calle en lugares del cen-

tro de la ciudad que en cierto sentido son emblemaacuteticos de la presencia de los joacutevenes

callejeros La autora misma describioacute los lugares y su carga simboacutelica y afectiva la in-

vestigacioacuten transcurrioacute por muacuteltiples espacios puacuteblicos muy cercanos unos de otros y

que conformaban el repertorio de lugares del grupo de joacutevenes de la calle La etnografiacutea

―itinerante como la experiencia de los propios chavos de la calle― se escribioacute con partes

de las coladeras del Museo Franz Mayer de las aceras de la iglesia de la Santa Veracruz

de la explanada de la Plaza de Zarco de las escaleras de las estaciones del metro Hidal-

go y Bellas Artes de la esquina de Balderas y Av Juaacuterez del kiosco de la Alameda y del

campamento montado en la Plaza de la Solidaridad Todos estos lugares fueron a su

manera fragmentos de un hogar

Esta investigacioacuten utilizoacute como herramientas las entrevistas las fotos y los videos reali-

zados por los propios chavos y por la autora La historia oral de los grupos y los dibujos

y croquis de sus espacios y circuitos de itinerancia De este modo Makowski planteoacute

tres ejes para analizar los datos recolectados el de la experiencia el de los lugares y el

de la memoria

En cuanto al de la experiencia de acuerdo con la autora la calle representa polos opues-

tos y contradictorios en sus palabras ldquoLa calle condensa todos los paisajes de la peacuter-

dida La calle es abandono desproteccioacuten muerte olvido evaporacioacuten del tiempo y

del sentido La intemperie social es soacuterdida y aacuterida al igual que la propia intemperie

biograacutefica de cada uno de los chavos de la calle Pero a contraluz de esa densidad la calle

representa un juego de existencia irradia autonomiacutea libertad y atraccioacuten vitalrdquo (Mako-

wski 2004 p4) Lugar de visibilidad e invisibilidad los somete a la indiferencia a la que

ellos se rebelan con actos de acuerdo con sus propias reglas y formas de socializacioacuten

131Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

Por su parte el eje de los lugares del estudio tambieacuten estaacute lleno de paradojas los joacute-

venes de la calle no tienen un lugar reconocido socialmente pero al mismo tiempo se

mueven en un deseo de encontrar un lugar que sin embargo estaacute poblado de rupturas

y sin lugares En cuanto al eje de la memoria Makowski lo analiza desde la perspectiva

de la relacioacuten entre la memoria social y la individual en donde la segunda hace eco a

la primera en las memorias de los chavos de la calle hay algo que siempre persiste La

desinscripcioacuten la violencia los huecos en la transmisioacuten familiar la no herencia todo

esto insiste en la fragilidad de esas memorias iquestMemorias de una cataacutestrofe De la ca-

taacutestrofe individual y colectiva del rompimiento del lazo social Un quiebre que en pocos

casos tendraacute alguna posibilidad de sutura

Otro eco de las memorias de la exclusioacuten proviene de la propia grupalidad Un complejo

ensamblaje de fragmentos de memorias propias y de otros conforman las memorias de

los chavos de la calle Recuerdos de aventuras compartidas de actos heroicos contra la

violencia policial de eventos traumaacuteticos colectivos como la clausura de las coladeras

de afectividades que penetraron muy profundamente de solidaridades indisolubles

de ausencia de compantildeeros de risas de verguumlenzas todos estos materiales arman el

patchwork de las memorias de los chavos de la calle

Cuando el afluente de la grupalidad irriga activamente la memoria colectiva se reeditan

en forma paralela las memorias individuales Zonas de olvido y episodios desdibuja-

dos en las biografiacuteas encuentran otro orden y otra escena para recrearse La memoria

colectiva opera a veces como una barrera que detiene las disoluciones de la memoria

individual (Op Cit p8)

La autora encontroacute asiacute una manera de relacionar la historia de la ciudad de los lugares

habitados por los joacutevenes en el Centro Histoacuterico la historia colectiva de los grupos cre-

ados por los mismos y la historia individual de cada uno de ellos Aunado a ello una

dimensioacuten de la memoria particularmente interesante es la memoria corporal que el

trabajo de Makowski muestra de manera graacutefica las huellas en la piel de los joacutevenes de

la vida en la calle que en una suerte de mimetizacioacuten replican las figuras las texturas

las cicatrices de la calle

Por su parte los trabajos de Steacutephane Tessier en el Centro Internacional de la Infancia

(Tessier 1994 1995 y 1998) reunieron a investigadores de diferentes continentes que

132

constataron muacuteltiples coincidencias en el fenoacutemeno de la vida de los joacutevenes en la calle

Una de ellas es la utilizacioacuten de los inhalantes como forma de resistir a la vida en la

calle y de olvidar Pareciera que la utilizacioacuten del inhalante forma parte de la identidad

del nintildeo y el joven de la calle tanto es asiacute que muchas veces aquellos que consumen

esa droga y no viven en la calle niegan utilizarla pues dicen que es propia de los maacutes

desheredados

La relacioacuten con el espacio constituyoacute tambieacuten uno de los ejes de reflexioacuten la manera en

que cada sociedad va definiendo lo privado y lo puacuteblico y coacutemo las sociedades actuales

principalmente en la urbes preocupadas por la seguridad se ha ido construyendo el

espacio de la calle como un lugar de paso de traslado de un lugar a otro perdieacutendose

asiacute la concepcioacuten de la calle como espacio de aprendizaje asiacute quien permanece hoy en

la calle se considera ocioso o delincuente cuando en generaciones anteriores muchos

joacutevenes se constituyeron como adultos en referencia a los grupos que utilizaban la calle

como espacio de socializacioacuten

Otro aspecto discutido en estos trabajos es el del trastrocamiento de las relaciones fami-

liares por el hecho de que el nintildeo puede aportar a veces mayor cantidad de dinero que

los padres Hemos encontrado muchas veces el testimonio de madres de familia que

dicen no poder poner reglas a sus hijos por el hecho de que ellos tienen conciencia de

aportar una buena parte del ingreso familiar tal es el caso de las familias de origen in-

diacutegena que migran a la Ciudad de Meacutexico Este problema y el de la ausencia de la figura

paterna son frecuentes en los paiacuteses de Ameacuterica Latina como pudimos constatar en las

reuniones del Centro Internacional de la Infancia

Una preocupacioacuten importante del Centro Internacional de la Infancia fue el de analizar

las herramientas mediante las cuales podriacutea trabajarse con las poblaciones callejeras

asiacute se llevaron a cabo reuniones en el espacio de la Villette en Paris donde se encon-

traron alrededor de la muacutesica poblaciones callejeras de diferentes paiacuteses tambieacuten se

exploroacute el teatro como forma de expresioacuten para estos grupos

Otra referencia sobre el trabajo con los joacutevenes de la calle es la de las investigaciones re-

alizadas por Lucchini en Brasil Uruguay y Meacutexico El autor muestra que en las familias

maacutes pobres de la ciudad todos los miembros deben colaborar con el presupuesto fami-

liar y tambieacuten son las mujeres y los nintildeos los que deben trabajar El bajo nivel educativo

133Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

y la escasez de oportunidades impiden a algunos padres incorporarse al ambiente labo-

ral satisfactorio haciendo que las familia se quede a veces sin los ingresos suficientes

para subsistir hecho que obliga a los nintildeos a participar en las actividades generadoras

de ingresos a traveacutes de sus trabajos en la calle y reducen poco a poco su adscripcioacuten

escolar Muchas de estas familias ademaacutes son numerosas viven generalmente en zonas

marginadas o barrios populares que se caracterizan por tener elevados iacutendices de vio-

lencia intrafamiliar asiacute como un nivel de bienestar miacutenimo La pertenencia a estratos

populares con tales caracteriacutesticas de pobreza y marginalidad modela e influye sobre las

formas de relacioacuten el comportamiento las praacutecticas los valores las metas culturales y

la educacioacuten que se da a menores Seguacuten el autor se estima que el 30 de las familias

pobres de las regiones urbanas no reciben contribucioacuten alguna de los hombres y el 20

de ellas sobrevive gracias al trabajo de los nintildeos

Casi toda la totalidad de los nintildeos de la calle con los que Lucchini (1996) realizoacute su

estudio procediacutean de familias monoparentales o de familias en las que la madre viviacutea

con una pareja que no era el padre de todos los hijos y en algunos casos no era el padre

de ninguno de ellos Las condiciones econoacutemicas desastrosas la falta de empleo que

impide pensar en un futuro prometedor la promiscuidad de uno o de ambos coacutenyuges

vivida como un problema entre la pareja y la falta de un bienestar estructural aumentan

la presioacuten y deterioran las relaciones familiares que en la mayoriacutea de los casos se es-

cinden yo fragmentan Las frecuentes separaciones o los divorcios resultantes de este

deterioro son perjudiciales para todos los miembros de la familia particularmente para

los nintildeos quienes no reciben la atencioacuten necesaria e incluso en muchos casos reciben

maltrato por parte de la nueva pareja del padre o la madre La falta de comunicacioacuten

la escasez de respeto de solidaridad y de convivencia provoca un distanciamiento que

puede terminar en su expulsioacuten a la calle

El concepto que hemos retomado del autor es el de carrera del nintildeo de la calle el cual

surge a partir de una criacutetica realizada a las definiciones planteadas por las organizacio-

nes internacionales y los organismos que se ocupan de los joacutevenes de la calle15 El autor

considera que estas definiciones son demasiado estaacuteticas en cambio lsquocarrera de nintildeo

15 Muchas de las discusiones que llevaron a Lucchini a proponer el concepto de carrera del nintildeo de la calle provienen de las reuniones que se realizaron en el Centre International de lrsquoenfance dirigido por Steacutephane Tessier en los antildeos 90-95 (comunicacioacuten personal con Steacutephane Tesssier)

134

de la callersquo implica una visioacuten dinaacutemica del proceso en el cual el nintildeo pasa un tiempo

largo entre la calle y su casa con idas y vueltas entre una y la otra asiacute mismo sentildeala

que dependiendo del momento en que se encuentra el nintildeo la intervencioacuten debe ser

diferente (Lucchini 1996)

Para Lucchini (1998) es importante la imagen que tienen los educadores y los trabaja-

dores sociales de los nintildeos de la calle en la forma de intervencioacuten El autor advierte que

las imaacutegenes del nintildeo viacutectima y el nintildeo asocial son muy reductoras de la realidad vivida

por el nintildeo de la calle y que estas imaacutegenes tienden a borrar la cultura del nintildeo de su

familia y de los grupos a los que pertenece

Conclusiones

La vida en la calle es un universo complejo y ninguna historia de quienes la habitan es

igual Nos hemos esforzado por dar una imagen de esta diversidad y de crear meacutetodos

de estudio que respetando la singularidad puedan tambieacuten profundizar en los procesos

que nos permitan comprender el fenoacutemeno en su conjunto

Los joacutevenes de la calle se encuentran en una situacioacuten de supervivencia posiblemente

la salida de sus familias fue necesaria para resguardar su deseo de vivir por las condicio-

nes de violencia fiacutesica y psicoloacutegica el quedarse en sus familias quizaacute significariacutea una

situacioacuten maacutes amenazante Es la ausencia de padres o de alguna figura de substitucioacuten

la que contribuye a definirlo como perteneciente a la calle La ley y la autoridad son en

general representadas por la represioacuten y el maltrato en la figura de la policiacutea ante la

cual el joven se situacutea a menudo en la trasgresioacuten y en el sentimiento de ser abusado

La violencia fiacutesica y simboacutelica es el eje principal en la vida de estos joacutevenes paradoacutejica-

mente salen des sus casas muchas veces para evitar la violencia y la reproducen ellos

mismos con sus pares y hacia ellos mismos Asiacute la relacioacuten con su cuerpo refleja esta

violencia a menudo en el consumo de la droga aunque en el consumo de la misma se

mezcla tambieacuten una buena dosis de placer elemento que hay que reconocer como uno

de los motores del consumo

A traveacutes de estos textos podemos sentir las texturas de la calle y lo que implica vivir en

ella podemos apreciar las formas diferentes de socializacioacuten que plantean los joacutevenes

135Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica

de la calle con sus reglas en sus espacios aunque a la vez sean espacios de todos y de

nadie Los grupos se apropian de ella a tal grado que muchas veces los transeuacutentes evi-

tan pasar por sus puntos de reunioacuten Podemos pensar que la calle no es un lugar propio

para el desarrollo de los nintildeos o de las familias o de los joacutevenes y sin embargo cada diacutea

hay maacutes personas que dependen de la calle para su supervivencia

Las reflexiones realizadas a partir de las investigaciones psicosociales nos sirven tambi-

eacuten para dimensionar la fuerza de la calle como un polo de atraccioacuten inevitable que resul-

ta difiacutecil de dejar La calle impone sus reglas la loacutegica del aquiacute y el ahora la sensacioacuten

de libertad y de falta de ataduras aunque la calle constituya una atadura en siacute misma

Significa entonces todo un reto pensar en plantear un proyecto educativo para estos joacute-

venes indudablemente en este proyecto deberaacute incluirse un trabajo sobre la memoria

sobre la pertenencia sobre las reglas y los liacutemites partiendo de lo que es su realidad

Estos textos nos permiten tambieacuten medir las distancias que puede haber entre la vida

en la calle y las demandas o exigencias de las instituciones que trabajan con los joacutevenes

de la calle Podemos entender con mayor facilidad por queacute la mayoriacutea de los joacutevenes

tienen una relacioacuten instrumental con las instituciones de las que entran y salen regular-

mente Esta relacioacuten les permite aliviar un poco la dureza de la vida en la calle y a veces

les permite sontildear que alguacuten diacutea su vida podriacutea cambiar sin embargo no se produce el

arraigo suficiente para renunciar a la vida en la calle posiblemente porque es la uacutenica

manera de sentir que ellos son sujetos de su existencia El asistencialismo que domina

en la mayoriacutea de las Instituciones contribuye a crear una identidad de viacutectimas y no

favorece la posibilidad de visualizarse como actores de su propio destino Es entonces

que en la lucha cotidiana por la supervivencia en la calle ellos tienen la sensacioacuten de

ser independientes

Las investigaciones realizadas por nuestro equipo y por otros investigadores Boudjemai

(1998) nos llevan a evaluar la importancia de trabajar con los joacutevenes en situacioacuten de

calle a traveacutes de actividades de expresioacuten corporal artiacutesticas luacutedicas y educativas para

favorecer los procesos de elaboracioacuten reflexioacuten y creatividad que les permita visualizar-

se de manera diferente A menudo hemos encontrado reticencias de las Instituciones

para abordar las historias de vida de estos joacutevenes pensamos que esto tiene que ver con

la misma reticencia que los mismos joacutevenes muestran entre otras cosas por el mal uso

que se ha hecho de sus historias en la mediatizacioacuten de la miseria Sin embargo esta-

136

mos convencidos que para que un sujeto pueda elaborar un proyecto a futuro tiene que

dimensionar y elaborar su pasado Es necesario elaborar poliacuteticas puacuteblicas que apunten

a mejorar la calidad de vida de las poblaciones callejeras y a disminuir el riesgo de conta-

gio de enfermedades sexuales transmisibles y del consumo de drogas poniendo eacutenfasis

en la capacidad de ellos de convertirse en actores y dejando de lado el asistencialismo

que funda muchas de las intervenciones

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Tessier S (Coord) (1998) A la recherche des enfants des rues Eacuteditions Karthala Paris

141 Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

TeresaCristinaOCCarreteiro

AlanTeixeiraLima

BiancaCauperBohnert

ClaacuteudiaValenteLopes

DanielaSerrinadeLimaRodrigues

LeticiadeLunaFreire

LucianaRibeiroBarbosa

MarcosCeacutesardaRochaSalema

A juventude residente em localidades socialmente desfavorecidas tem recebido atenccedilatildeo

de inuacutemeros projetos de assistecircncia pesquisa e intervenccedilatildeo em sua maioria indepen-

142

dentes do Estado 16Em geral a preocupaccedilatildeo que norteia esses projetos eacute o fato de serem

os jovens das favelas e periferias os mais afetados diretamente pela falta de oportunida-

des de trabalho e pelo natildeo provimento de direitos baacutesicos como sauacutede e educaccedilatildeo o que

lhes concede uma dupla vulnerabilidade agrave violecircncia ndash como agentes e como viacutetimas17

Essa questatildeo poreacutem natildeo deve ser entendida de maneira simplista ou reducionista

Trata-se de um fenocircmeno muito mais complexo pois haacute uma seacuterie de fatores que atra-

vessam a vida destes jovens e que no entanto nenhuma teoria ou abordagem daacute conta

de sua totalidade

A relaccedilatildeo do jovem com o trabalho (ou a sua ausecircncia) por exemplo eacute uma problemaacute-

tica que natildeo pode ser pensada isolada de um contexto mais amplo e dinacircmico Nesse

sentido este artigo natildeo tem a pretensatildeo de esgotar a discussatildeo a respeito do binocircmio

juventude-trabalho mas busca apenas compartilhar e discutir uma experiecircncia singu-

lar contribuindo assim para o debate acerca desta temaacutetica Este trabalho eacute um desdo-

bramento da pesquisa-accedilatildeo ldquoDrogas e Complexidade a ressonacircncia do fenocircmeno das

drogas nas redes sociais de jovens de contextos desfavorecidos e a construccedilatildeo de meto-

dologias de intervenccedilatildeo preventivardquo

Desenvolvida na localidade de Acari zona norte do municiacutepio do Rio de Janeiro esta

pesquisa teve como objetivos principais investigar de que maneira a presenccedila das dro-

gas (tanto o consumo quanto o traacutefico) atua no estabelecimento ou na ruptura de viacuten-

culos afetivos e sociais para os jovens desta localidade analisar como esta questatildeo eacute

enfrentada nos seus diferentes niacuteveis de expressatildeo (individual grupal familiar e insti-

tucional) e construir metodologias de intervenccedilatildeo comunitaacuteria preventivas agrave drogadi-

ccedilatildeo e agrave marginalizaccedilatildeo desses jovens

16 Este trabalho eacute um desdobramento da pesquisa-accedilatildeo ldquoDrogas e Complexidade a ressonacircncia do fenocircmeno das drogas nas redes sociais de jovens de contextos desfavorecidos e a construccedilatildeo de metodologias de intervenccedilatildeo preventivardquo A pesquisa foi vinculada ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenada pela professora Teresa Cristina Carreteiro

17 Natildeo se trata de ratificar a relaccedilatildeo entre favela e violecircncia como uma relaccedilatildeo intriacutenseca como o faz muitas vezes a miacutedia mas de constatar que por diversos aspectos ldquoa violecircncia eacute em grande parte produzida na favela e natildeo pela favela e seus moradoresrdquo como afirma Rumba Gabriel membro do Movimento Popular de Favelas) Quanto aos jovens segundo pesquisa feita em 2000 eacute na faixa de 15 aos 24 anos que os homiciacutedios atingem sua maior incidecircncia chegando a ser no Rio de Janeiro a causa de mais da metade dos oacutebitos juvenis (Waiselfisg Julio Jacobo Mapa da Violecircncia III Brasiacutelia UNESCO Instituto Ayrton Senna Ministeacuterio da JusticcedilaSEDH 2002)

143Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

Seguindo o enfoque teoacuterico da psicossociologia francesa e a perspectiva da complexida-

de proposta por Edgard Morin (1996) consideramos que o fenocircmeno das drogas eacute mui-

to dinacircmico Ele eacute diretamente conectado com inuacutemeros outros fenocircmenos devendo-se

sempre considerar as dimensotildees micro e macro sociais Na perspectiva singular enten-

demos que todo sujeito eacute um sujeito social ou seja que o indiviacuteduo e a sociedade natildeo

satildeo categorias que se encontram isoladas nem tampouco opostas mas em constante e

imbricada relaccedilatildeo

Nesse sentido diante de todas as questotildees que nos defrontamos em Acari buscamos

considerar tanto o niacutevel individual quanto o coletivo o afetivo e o institucional os pro-

cessos inconscientes e os processos sociais (Gaulejac 2001) que ali se apresentam de

forma indissociaacutevel Inicialmente desenvolviacuteamos grupos semanais com os jovens

de duas instituiccedilotildees locais Denominados ldquoOficinas da Conversardquo esta atividade tinha

como objetivo criar espaccedilos de circulaccedilatildeo da palavra favorecer o diaacutelogo e a expressatildeo

dos jovens a respeito de temas pregnantes em seu cotidiano tais como famiacutelia escola

lazer trabalho drogas e violecircncia Para adquirir a confianccedila dos jovens e contrapor-se

agrave chamada ldquolei do silecircnciordquo que vigorava imperiosa nas localidades marcadas pela pre-

senccedila do traacutefico de drogas estabeleciacuteamos nos grupos um pacto de sigilo entre seus in-

tegrantes e utilizaacutevamos recursos luacutedicos plaacutesticos e dinacircmicos que pudessem facilitar

a ldquosubstituiccedilatildeo do combate pelo exerciacutecio do debaterdquo (Carreteiro 1993)

Iniciamos nossas atividades em campo apenas com os jovens e percebemos que estaacute-

vamos privilegiando apenas este segmento Atentos a esta questatildeo buscamos construir

coletivamente dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo sobre os projetos profissionais dos

jovens em Acari de modo que envolvessem a participaccedilatildeo de outros atores sociais Para

isso realizamos cinco encontros na localidade com a presenccedila de jovens familiares

liacutederes locais e educadores Esses encontros intitulados ldquoFoacuterum Trabalho e Juventude

em Acarirdquo tinham como objetivo proporcionar um espaccedilo de debate sobre as perspec-

tivas e possibilidades de trabalho da juventude local Pretendiacuteamos ainda discutir os

projetos existentes na localidade para os jovens possibilitando a troca de experiecircncias

entre seus representantes e o estabelecimento de parcerias

Os encontros se desenvolveram de maneira dinacircmica e descontiacutenua jaacute que o grupo

nunca se mantinha o mesmo (oscilava entre seis e doze pessoas aleacutem de nossa equipe)

144

assim como o local onde era realizado 18 Alguns encontros foram gravados e filmados

de maneira que houvesse um registro das imagens e falas sobre os temas abordados

Embora cada encontro tenha se caracterizado de modo particular foi possiacutevel mapear

alguns discursos predominantes Os principais discursos que destacamos foram em

relaccedilatildeo agrave famiacutelia educaccedilatildeo poliacutetica estigma e traacutefico de drogas

Odiscursofamiliarista

Um discurso bastante recorrente entre os participantes foi aquele no qual a famiacutelia apa-

rece como a grande responsaacutevel pelo sucesso ou fracasso de seus filhos Ressaltou-se

a atenccedilatildeo e dedicaccedilatildeo que os pais devem ter com seus filhos oferecendo ldquobons exem-

plosrdquo mantendo uma vida honesta e digna

ldquoNosso filho vai trabalhar de acordo com o que a gente daacute pra ele Apoiar o filho no que eacute bom eacute importantiacutessimordquo (fala do pai de um jovem)

Apesar disso eacute interessante notar que ao perguntarmos a uma matildee sobre o seu projeto

para seus filhos esta nos respondeu relatando o amor que sente por eles Tal fato denota

algo jaacute observado em outras ocasiotildees em Acari de que os pais frequumlentemente natildeo tecircm

um projeto definido para seus filhos Pensamos que isto pode estar relacionado com

dois aspectos Primeiramente por viverem uma temporalidade imediatista que pelas

proacuteprias condiccedilotildees de vida natildeo lhes permitem fazer planos ou pensar no futuro e em

segundo lugar por seus projetos se constituiacuterem natildeo a partir de uma afirmativa mas

de uma negaccedilatildeo ou seja do que natildeo desejam para seus filhos em geral que se tornem

ldquobandidos e marginaisrdquo

A autoridade e o controle sobre a vida e as amizades dos filhos tambeacutem foram aponta-

dos como uma maneira de tentar lhes garantir um ldquobom caminhordquo o que conforme

observamos em outras situaccedilotildees faz com que muitos pais eduquem seus filhos para

18 Sendo os participantes de diferentes aacutereas de Acari e tendo estas aacutereas simbologias diversas tal como demonstra Alvito (2001) dificultando a circulaccedilatildeo dos moradores tivemos o cuidado de realizar os encontros em locais que fossem vistos com ldquobons olhosrdquo pela comunidade como uma creche comunitaacuteria e uma das Associaccedilotildees de Moradores Pensamos que o conhecimento dessas representaccedilotildees eacute crucial para o desenvolvimento de quaisquer atividades que requeiram a participaccedilatildeo dos moradores dessas localidades

145Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

ficarem em casa e terem poucos amigos em contrapartida o ldquomundo da ruardquo eacute visto

como perigoso lugar de movimento surpresas e tentaccedilotildees (Da Matta 1984)

ldquoTem que ir atraacutes tomar conta dar conselho se dependesse da gente o filho natildeo entrava para o mau caminhordquo (fala da matildee de uma jovem)

ldquoMatildee tem que exigir controlar olhar a caderneta da escola todo diardquo

(fala do pai de um jovem)

ldquoEle [o jovem] tem que ser dominado ter respeito pela matildee e pelo pairdquo

(fala da matildee de duas jovens)

Ao mesmo tempo que esta visatildeo atribui agrave famiacutelia um papel importante sobre o futuro

dos jovens atraveacutes da educaccedilatildeo e da transmissatildeo de valores esta influecircncia na medida

que eacute vista como uacutenico elemento determinante de que os filhos seratildeo ldquotrabalhadoresrdquo

ou ldquocairatildeo na vidardquo (do crime) passa a refletir um sentimento de culpa e fracasso fa-

miliar Percebemos neste discurso familiarista uma falta de criacutetica em relaccedilatildeo a uma

menor participaccedilatildeo do Estado e da sociedade em geral Assumindo para si uma respon-

sabilidade que natildeo eacute meramente individual mas tambeacutem social a famiacutelia despolitiza os

acontecimentos e assim se despotencializa

Aeducaccedilatildeocomoocupaccedilatildeo

A educaccedilatildeo tambeacutem eacute apontada como um elemento importante para o futuro profissio-

nal dos jovens possibilitando-os ldquoser algueacutem na vidardquo poreacutem eacute mais valorizada como

apenas uma opccedilatildeo frente ao oacutecio Este por sua vez eacute visto como algo que predispotildee o

jovem ao mundo das drogas e da criminalidade O discurso predominante eacute ldquoocupar

os jovens para que natildeo fiquem agrave toa e faccedilam coisas erradasrdquo natildeo importando muito a

qualidade da ocupaccedilatildeo como podemos verificar nessas falas

ldquoO estudo e o trabalho andam juntos mas a maioria dos jovens vecirc o estudo para preencher um vazio fazer a vontade dos paisrdquo (fala de uma jovem)

ldquoA mente desocupada fica poluiacutedardquo (fala do pai de um jovem)

A ociosidade nas camadas pobres da sociedade eacute vista pelo discurso dominante como uma ldquobomba reloacutegiordquo pois aquele que natildeo estaacute integrado no ldquomundo do trabalhordquo eacute suscetiacutevel de integrar a ldquobandidagemrdquo como

146

nos aponta a pesquisadora Irma Rizzini (1997) em estudo realizado sobre as poliacuteticas puacuteblicas para a infacircncia no Brasil Ela constatou que satildeo dispensadas posturas diferentes para aqueles identificados como ldquopobres dignosrdquo e ldquopobres viciososrdquo Aos primeiros satildeo destinadas intervenccedilotildees que ldquofortalecem os valores morais e preceitos religiosos por pertenceram a uma classe mais vulneraacutevel aos viacutecios e as doenccedilasrdquo Jaacute para os segundos por natildeo pertencerem ao ldquomundo do trabalhordquo satildeo vistos como ldquoportadores de delinquumlecircncia libertinos maus pais e vadiosrdquo

Essa ideologia natildeo se encontra somente no discurso do poder puacuteblico sobre as classes

populares mas tambeacutem na forma como esses indiviacuteduos se reconhecem frente ao so-

cial No ldquoFoacuterum Trabalho e Juventude em Acarirdquo percebemos grande frequecircncia desse

discurso na fala de educadores lideranccedilas comunitaacuterias e familiares no que tange o

lugar que o trabalho ocupa na vida dos jovens O trabalho por diversas vezes eacute citado

como um artifiacutecio de dignificaccedilatildeo humana capaz de elevar a autoestima e de impedir o

jovem de ldquose misturarrdquo agraves maacutes companhias

Quanto agrave educaccedilatildeo formal cabe dizer que as escolas puacuteblicas no entorno de Acari se-

gundo as famiacutelias e os proacuteprios jovens funcionavam de modo bastante precaacuterio tanto

em termos de infraestrutura quanto da qualidade do ensino Aleacutem disso era comum

fazerem referecircncia agrave presenccedila de drogas e violecircncia nesses espaccedilos reforccedilando o sen-

timento de inseguranccedila dos moradores Esse esvaziamento da instituiccedilatildeo escolar pode

ser exemplificado com a fala de uma jovem ldquona escola vocecirc entra burro e sai bandidordquo

Desse modo a escassez de outras instituiccedilotildees que possam ldquoocuparrdquo e oferecer algum

aprendizado aos jovens na localidade eacute frequumlentemente enunciada pelos moradores

ldquoOs jovens que procuram ocupaccedilatildeo [cursos em Acari] tem que pagar e a maioria natildeo tem condiccedilatildeordquo (fala da matildee de duas jovens)

ldquoAqui na redondeza natildeo tem trabalho para os jovens a uacutenica coisa que tem pra eles aqui eacute forroacuterdquo (fala da avoacute de uma jovem)

Odiscursopoliacutetico

Embora em menor proporccedilatildeo um discurso mais politizado tambeacutem pocircde aparecer

principalmente nas falas daqueles mais articulados e que exerciam participaccedilatildeo poliacutetica

direta em Acari como os liacutederes comunitaacuterios Este discurso versava sobre os niacuteveis

econocircmicos sociais e poliacuteticos buscando sempre marcar o dever e a participaccedilatildeo (ou

147Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

ausecircncia) do Estado e da sociedade nas problemaacuteticas atuais Sobrepotildee-se ao discurso

familiarista uma vez que relacionava as questotildees do campo pessoal com o campo so-

cial Nesse sentido favorecia a organizaccedilatildeo coletiva e a luta pela cidadania

ldquoOs jovens natildeo estatildeo trabalhando porque os oacutergatildeos de alto niacutevel natildeo datildeo oportunidadesrdquo (fala do pai de um jovem)

ldquoSe a gente se organizar pra mudar a gente muda O direito era para ser igual mas natildeo eacuterdquo (fala de uma liacuteder comunitaacuteria)

Oestigmacomoobstaacuteculoagraveprocuradetrabalho

Historicamente as favelas tecircm sido consideradas espaccedilos tiacutepicos de concentraccedilatildeo da

pobreza da violecircncia e da criminalidade Esta representaccedilatildeo embora desmistificada nos

trabalhos de Valladares (1991 1999 2005) vem sendo reforccedilada pela miacutedia contri-

buindo assim para a construccedilatildeo de uma visatildeo preconceituosa acerca destes espaccedilos e

seus respectivos moradores vistos como perigo social ameaccedila agrave ordem e agraves normas

vigentes

Segundo Goffman (1982) a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas fa-

zendo com que os ambientes sociais determinem quais indiviacuteduos podem ser encontra-

dos nos respectivos espaccedilos Nesse sentido os que residem nessas localidades passam

a ser vistos socialmente como uma grande massa homogecircnea O que ocorre portanto

eacute que apesar de uma parcela iacutenfima da populaccedilatildeo local atuar em atividades ilegais e cri-

minosas todo o conjunto dos moradores eacute afetado pelo preconceito social pois como

nos relatou uma moradora ldquoas pessoas de fora acham que aqui na favela soacute mora bandidordquo

De acordo com o discurso dos moradores essa estigmatizaccedilatildeo interfere diretamente

nas relaccedilotildees dos jovens com o ldquomundo do trabalhordquo apresentando-se como mais um

obstaacuteculo a ser vencido

ldquoOs jovens satildeo discriminados pelo endereccedilo no curriacuteculordquo (fala de uma educadora)

ldquoSe vocecirc mora na favela as pessoas te pichamrdquo (fala da matildee de duas jovens)

ldquoEu falo pro meu filho natildeo eacute porque a gente mora na favela que vocecirc eacute pior que o jovem da zona sulrdquo (fala da matildee de duas jovens)

148

Para fazer face ao estigma na procura de trabalho os moradores criam diversas taacuteticas de defesa tais como omitir seu endereccedilo em curriacuteculo ou fichas de emprego substituindo-o pelo endereccedilo de amigos ou parentes que residam fora da favela A identificaccedilatildeo de Acari como aacuterea sob o domiacutenio de uma determinada facccedilatildeo criminosa ndash no caso o Terceiro Comando ndash tambeacutem eacute algo que interfere na busca dos jovens por oportunidades de trabalho fora da favela

ldquoPor causa do comando o jovem tem medo de sair da favela arrumar estaacutegio forardquo

(fala de uma educadora)

Aleacutem do estigma de ldquoser faveladordquo haacute o preconceito racial que acaba contribuindo para uma baixa auto-estima dos jovens Vejamos como uma senhora tenta lidar com o racismo sofrido por seu neto que natildeo consegue trabalho fora de Acari

ldquoO importante eacute ser preto e direito Natildeo eacute porque vocecirc eacute pretinho natildeo mas vocecirc tem que estudarrdquo (fala da avoacute de um jovem)

Eacute importante assinalar que os jovens muitas vezes satildeo estigmatizados dentro da proacutepria

localidade fundamentalmente pela atuaccedilatildeo arbitraacuteria da poliacutecia Uma educadora que

trabalha num projeto com jovens da comunidade nos relata indignada o discurso de um

policial posicionado na entrada do estabelecimento Em tom de deboche o policial re-

ferindo-se aos jovens do projeto lhe perguntou ldquoQuantos desses aiacute satildeo infratores Essa

instituiccedilatildeo soacute trabalha com infratorrdquo Este fato vem de encontro com uma pesquisa19 re-

alizada sobre a juventude carioca que demonstrou que as relaccedilotildees dos policiais com os

jovens pobres satildeo vistas por estes como relaccedilotildees de desrespeito agressatildeo e humilhaccedilatildeo

ldquoSorte do jovem se o policial for com a cara delerdquo (fala da matildee de duas jovens)

Situaccedilotildees que exemplifiquem esta loacutegica satildeo frequumlentes em Acari evidenciando uma

inversatildeo no papel que em tese deveria ter a instituiccedilatildeo policial Enquanto agente do

19 Esta pesquisa - intitulada ldquoJuventude violecircncia e cidadania no municiacutepio do Rio de Janeirordquo e publicada em livro sob o tiacutetulo ldquoFala Galerardquo - eacute uma parceria entre UNESCO FIOCRUZ Instituto Ayrton Senna e Fundaccedilatildeo Ford e teve como objetivo central analisar o sentido que os jovens cariocas pertencentes a distintos estratos socio-econocircmicos atribuem agrave juventude agrave violecircncia e agrave cidadania especialmente no acircmbito de seu cotidiano familiar escolar e de sociabilidade

6 R

149Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

Estado a poliacutecia ao inveacutes de proteger os moradores comuns abusa de sua autoridade

praticando accedilotildees de violecircncia e humilhaccedilatildeo que atingem em especial os jovens Con-

forme afirmam os moradores os policiais natildeo sabem diferenciar ldquobandidordquo e ldquotraba-

lhadorrdquo tratando todos como marginais em potencial Em livro que mistura realidade

e ficccedilatildeo Ronaldo Alves escritor nascido e criado na Rocinha relata que para a poliacutecia

nas favelas ldquotodos os pobres os negros e os que satildeo encontrados sem carteira profissio-

nal ldquoassinadardquo- prova irrefutaacutevel de homem decente ndash seratildeo eternamente suspeitosrdquo 20

Diante de sua vulnerabilidade acrescida do medo de represaacutelias muitos moradores

aconselham seus filhos a natildeo saiacuterem de casa sem o documento de identidade ou a car-

teira escolar na esperanccedila que estes possam lhes conferir alguma proteccedilatildeo no caso de

serem abordados por policiais evitando assim as possiacuteveis agressotildees e humilhaccedilotildees

Portanto percebemos que a estigmatizaccedilatildeo eacute um problema de muitas faces com efeitos

muacuteltiplos no campo social poliacutetico e cultural Por um lado vimos que o estigma age

diretamente na vida desses jovens produzindo efeitos de reclusatildeo e isolamento tornan-

do-os receosos muitas vezes de ldquosair da favelardquo em busca de outras oportunidades de

trabalho e estilos de vida Por outro lado este processo implica num reconhecimento

social negativo destes jovens Na medida em que satildeo reconhecidos na categoria de sus-

peitos esse reconhecimento os invalida envergonha e humilha (Carreteiro 2001)

Otraacuteficodedrogascomoldquoopccedilatildeordquo

Para os moradores trabalhar para o traacutefico de drogas surge como uma alternativa muito

atraente para os jovens de Acari que por diversos fatores se sentem solitaacuterios e impo-

tentes na tentativa de dirimir esse poder de atraccedilatildeo Entretanto como podemos verifi-

car satildeo bastante distintas as motivaccedilotildees desses jovens assim como as accedilotildees referidas

como preventivas agrave sua entrada para o ldquomovimentordquo

ldquoOs jovens entram pro traacutefico por causa das condiccedilotildees financeiras da famiacuteliardquo

(fala de um educador)

20 Referimo-nos ao livro O bandido e outras histoacuterias da Rocinha publicado pela Editora Sette Letras 1997

150

ldquoFome e desemprego satildeo as causas principais Viver com dignidade evita a entrada do jovem no traacuteficordquo (fala de uma liacuteder comunitaacuteria)

ldquoAs crianccedilas natildeo tecircm uns trocados os outros vatildeo ver ele chegar com uns trocados e vatildeo querer tambeacutemrdquo (fala da avoacute de um jovem)

ldquoA uacutenica condiccedilatildeo de lutar contra o traacutefico de drogas eacute investir nos jovens dentro das comunidadesrdquo (fala de um educador)

ldquoEles entram [para o traacutefico] pra ter famardquo (fala de uma liacuteder comunitaacuteria)

ldquoO trabalho deles [os policiais] hoje aqui eacute ateacute levar esses garotos pro traacuteficordquo

(fala da matildee de duas jovens)

De modo geral as principais motivaccedilotildees dos jovens a participarem das atividades do

traacutefico relatadas foram 1)- a possibilidade de ganho financeiro ldquoalto raacutepido e faacutecilrdquo

reforccedilada pelo desemprego generalizado e as dificuldades de inserccedilatildeo no mercado de

trabalho formal 2)- o sentimento de pertenccedila a um grupo com coacutedigos proacuteprios e 3)-

uma manifestaccedilatildeo de revolta diante do preconceito social e da accedilatildeo violenta e arbitraacuteria

da poliacutecia na favela Mesmo sabendo que como nos disse um morador ldquoquem entra

natildeo sai soacute pra morrerrdquo parece-nos que os riscos reais natildeo satildeo ao menos de forma cons-

ciente muito considerados pelos jovens no momento de sua entrada no traacutefico

Conforme podemos notar o ingresso dos jovens no traacutefico de drogas pode ser analisado

por muacuteltiplos aspectos Destacaremos nesse trabalho um duplo aspecto Em primeiro

lugar a desvalorizaccedilatildeo do trabalho honesto como via de ascensatildeo social pois como

diz Cenoura personagem do romance ldquoCidade de Deusrdquo de Paulo Lins ldquosoacute os otaacuterios

trabalham com a certeza de que nunca vatildeo desfrutar das coisas boas da vidardquo Como aponta

Zaluar (1994) os jovens explicitam uma rejeiccedilatildeo ao tipo de vida dos pais e avoacutes vistos

entatildeo como ldquootaacuteriosrdquo e passam a negar e evitar seguir a mesma trajetoacuteria Em segun-

do lugar o reconhecimento que os traficantes adquirem na comunidade tanto pelo

poder que dispotildeem quanto pela forccedila que impotildeem atraveacutes de execuccedilotildees exemplares

do inimigo Natildeo eacute agrave toa que o traficante chefe do comeacutercio local de drogas eacute chamado

pelos moradores de ldquoo dono da favelardquo Afinal como afirma Alvito (2001 p 219) ldquosua

importacircncia natildeo deriva apenas do poder que ele deteacutem por vezes superestimado mas

daquilo que sintetiza que simbolizardquo

151Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo

Expressando um certo fasciacutenio com a figura do traficante os meninos demonstram de

diversas formas o desejo de serem reconhecidos socialmente Pela ausecircncia ou presen-

ccedila enfraquecida de instituiccedilotildees sociais em Acari que lhe confiram o reconhecimento de

sua alteridade este desejo acaba encontrando mais facilmente respaldo nas malhas do

traacutefico de drogas local De acordo com Carreteiro (2002) ldquoignorar os sujeitos significa

ausecircncia de reconhecimento uma vez que eles se sentem deixados de lado abandona-

dos agrave proacutepria sorte Associado agrave reestruturaccedilatildeo econocircmica esse sentimento de desam-

paro favoreceu o estabelecimento de atores alternativos que se fortaleceram nas aacutereas

em que ocorreu debilitaccedilatildeo do poder do Estado Nos territoacuterios esquecidos em seus

direitos de cidadania o traacutefico de drogas () ganhou amplitude significativardquo

No que tange as accedilotildees preventivas agrave inserccedilatildeo desses jovens nas malhas tatildeo proacuteximas do

traacutefico de drogas e agrave sua marginalizaccedilatildeo Zaluar (1996 p 55) traz agrave luz uma importante

reflexatildeo

ldquoA imagem do menino favelado que com uma Ar-15 ou metralhadora UZI na matildeo as quais considera como siacutembolos de sua virilidade e fonte de grande poder local com um boneacute inspirado no movimento negro da Ameacuterica do Norte ouvindo muacutesica funk cheirando cocaiacutena produzida na Colocircmbia ansiando por um tecircnis Nike do uacuteltimo tipo e um carro do ano natildeo pode ser explicada para simplificar a questatildeo pelo niacutevel do salaacuterio miacutenimo ou pelo desemprego crescente no Brasil nem tampouco pela violecircncia costumeira do sertatildeo nordestinordquo

Atraveacutes das temaacuteticas aqui explicitadas concluiacutemos que o ldquoFoacuterum Trabalho e Juventude

em Acarirdquo possibilitou uma ampla discussatildeo entre os diversos segmentos da comuni-

dade local familiares jovens educadores e liacutederes comunitaacuterios Muitos projetos des-

tinados aos jovens desenvolvidos na localidade foram divulgados e debatidos por todos

que estavam presentes multiplicando a rede de informaccedilotildees num local em que a ldquolei

do silecircnciordquo imperava Aleacutem disso pessoas que natildeo se falavam por desavenccedilas poliacuteticas

e histoacutericas dentro da comunidade puderam estabelecer maiores contatos e expor seus

pontos de vista sobre as temaacuteticas que foram relatadas

Outro aspecto relevante que podemos destacar no que tange a relaccedilatildeo entre juventude e

trabalho eacute o lugar que o trabalho ocupava para esses indiviacuteduos Nos segmentos sociais

menos favorecidos o trabalho representa muito mais do que a possibilidade de prover o

sustento familiar Ele confere uma identidade social de pertencimento e reconhecimen-

152

to institucional conforme nos relata um jovem ldquoDeveria ter mais instituiccedilotildees para acolher

os jovens que ficam sem fazer nada e sem ter outros deveresrdquo

Essas questotildees nos possibilitou criar novos dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo junto

aos moradores da localidade Como um prosseguimento deste Foacuterum nos aprofunda-

mos no tema da relaccedilatildeo entre trabalho e juventude em Acari com a criaccedilatildeo de um outro

projeto - intitulado ldquoOficina de Viacutedeordquo - direcionado aos jovens e utilizando o recurso au-

diovisual como disparador de discussotildees Os jovens aleacutem de aprenderem a filmar criar

cenografia e atuar trazendo sempre a realidade e o cotidiano na qual estatildeo inseridos

puderam refletir de modo mais concreto sobre seus projetos e suas histoacuterias de vida

Consideramos que a utilizaccedilatildeo de equipamentos audiovisuais pode ser um importante

instrumento para a criaccedilatildeo de novos espaccedilos de sociabilidade em locais desfavorecidos

socialmente pois conforme relatamos estas pessoas tinham pouco espaccedilo e oportuni-

dade de refletir sobre seus projetos de vida incluindo o projeto profissional

Para concluir o dispositivo do Foacuterum permitiu envolver vaacuterios segmentos da localidade

para debater questotildees relativas a juventude junto com os jovens Ele permitiu confron-

tar ideacuteias mobilizar estereoacutetipos buscar potencializar novas parcerias entre os diversos

atores para pensar imaginar e projetar novos horizontes para os jovens que levassem

em conta os recursos nas dimensotildees institucionais poliacuteticas familiares

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154

155 De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

LuizFelipeCasteloBrancodaSilva

MariaFaacutetimaOlivierSudbrack

Nesta pesquisa21 objetivou-se estudar a expressatildeo da demanda espontacircnea para tratamen-

to em sujeitos abusadores e dependentes de aacutelcool no contexto do acolhimento

de um Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Aacutelcool e outras Drogas em Brasiacutelia A opccedilatildeo

epistemoloacutegica se fundou na Epistemologia Qualitativa de Gonzaacutelez Rey Como re-

ferencial teoacuterico adotou-se a Teoria Sistecircmica complementada pelos pressupostos

da Entrevista Motivacional e o modelo Transteoacuterico dos Estaacutegios da Mudanccedila Uti-

lizou-se a metodologia da pesquisa qualitativa de Gonzaacutelez Rey Como instrumento

21 Texto baseado em Silva L F C B (2009) Do caacutelice que cala agrave escuta que liberta as expressotildees da demanda de abusadores e dependentes de aacutelcool no contexto do acolhimento em um Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Aacutelcool e outras Drogas no Distrito Federal Dissertaccedilatildeo de mestrado em Psicologia Cliacutenica e Cultura Universidade de Brasiacutelia Brasiacutelia Orientadora Maria Fatima Olivier Sudbrack

2

156

utilizado optou-se pela entrevista semi-estruturada aplicada em nove sujeitos do sexo

masculino entre 30 e 51 anos de idade e de distintas classes soacutecio- econocircmicas Como

parte dos resultados verificou-se a demanda pela interrupccedilatildeo do ciclo de violecircncia

intrafamiliar mimetizado na dimensatildeo intergeracional e relacionado com o abuso ou

dependecircncia de bebidas alcooacutelicas dos pais

Introduccedilatildeo

A compreensatildeo da drogadiccedilatildeo enquanto fenocircmeno sustenta-se na consideraccedilatildeo da triacute-

ade na qual se tem um sujeito consumidor uma droga eleita que eacute consumida e um

contexto no qual o uso da mesma eacute realizado (Colle 2001 Kalina amp Kovadloff 1983

Olievestein 1985) No consumo de bebidas alcooacutelicas esta configuraccedilatildeo natildeo se revela

diferente exigindo-se a profunda compreensatildeo de cada um desses elementos em relaccedilatildeo

entre em si Quando se busca ampliar a consideraccedilatildeo do comportamento etilista para

aleacutem da diacuteade sujeito-bebida possibilita-se a contemplaccedilatildeo da dimensatildeo contextual

que pode estar situada no eixo horizontal ou vertical do sistema soacutecio-familiar Como

eixo horizontal pode-se compreender o contexto atual da famiacutelia enquanto o eixo ver-

tical refere-se agrave dimensatildeo histoacuterica das geraccedilotildees familiares (Penso Costa amp Ribeiro

2008)

A coesatildeo familiar eacute em parte mantida pela transmissatildeo de regras de valores e

de expectativas que podem ter diversos niacuteveis de visibilidade e que moldam formas de se

comportar de se situar no mundo e na vida Recebe-se em heranccedila tudo o que as

geraccedilotildees precedentes adquiriram fazendo de cada ser humano natildeo mais do que

um elo numa longa cadeia de transmissotildees que datam do primoacuterdio da humanida-

de (Prieur 1999) Natildeo obstante nesta heranccedila podem ser transmitidos padrotildees disfun-

cionais e nem sempre claramente perceptiacuteveis capazes de imprimir exigecircncias sutis e

dificilmente recusaacuteveis Como destacaram Nichols e Schwartz (1998) carrega-se onde

quer que se esteja a reatividade emocional natildeo resolvida com os pais sob a forma de

vulnerabilidades para mimetizar os mesmos antigos padrotildees em todo relacionamento

novo e intenso que se inicia

Diante de inuacutemeras evidecircncias em torno das influecircncias dos legados familiares de ou-

tras geraccedilotildees na famiacutelia atual constatou-se a fecundidade de estudos que exploraram

157De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

a dimensatildeo multigeracional - diversidade de geraccedilotildees anteriores - e intergeracional

- influecircncias entre geraccedilotildees familiares (Bowen 1991 Bucher-Maluschke 2008 Penso

amp Costa 2008) Destarte verificou-se coexistir um mimetismo do problema em geraccedilotildees

distintas o que ampliou o olhar em direccedilatildeo agrave verticalidade da presenccedila dos problemas

associados ao consumo de aacutelcool verificando-se a presenccedila de padrotildees transmitidos trans-

geracionalmente (Krestan amp Bepko 1995 Silva 2009 Steinglass 1997 Trindade 2007)

Entende-se que uma heranccedila pode se tornar uma escravidatildeo quando os padrotildees exigem

sacrifiacutecios capazes de comprometer a sauacutede mental dos herdeiros mesmo que estes

natildeo tenham consciecircncia disso No complexo movimento dialeacutetico de pertencimento e

separaccedilatildeo ampliado para o processo de transmissatildeo multigeracional estabelece-se a exis-

tecircncia de padrotildees herdados de geraccedilotildees anteriores para as seguintes que transferem

expectativas por meio de delegaccedilotildees e exigem lealdades no cumprimento das mesmas

A assimilaccedilatildeo das delegaccedilotildees desta heranccedila e lealdade na continuidade das mesmas

oferece elementos para a constituiccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade individual e cole-

tiva dos membros familiares assim como podem gerar aprisionamentos em torno

de padrotildees que solapam a possibilidade de renovaccedilatildeo do funcionamento familiar Deste

modo a demanda percebida em alguns colaboradores da pesquisa revela-se no sentido

de buscar romper com padrotildees insalubres e promover possibilidades de novos niacuteveis

de autonomia

Meacutetodo

Este estudo apoiou-se na Epistemologia Qualitativa defendida por Gonzaacutelez Rey (2005)

que se funda em torno de trecircs princiacutepios 1) o conhecimento eacute uma produccedilatildeo

construtivo- interpretativa o que significa afirmar que o conhecimento natildeo traduz

a somatoacuteria de fatos definidos por constataccedilotildees imediatas do momento empiacuterico

A interpretaccedilatildeo se caracteriza enquanto um processo no qual o pesquisador integra

reconstroacutei e apresenta em construccedilotildees interpretativas indicadores obtidos no decor-

rer da pesquisa que natildeo possuiriam sentido se fossem tomados isoladamente como

constataccedilotildees empiacutericas 2) o caraacuteter interativo do processo de produccedilatildeo do conhe-

cimento que aponta que as relaccedilotildees pesquisador-pesquisado satildeo uma condiccedilatildeo para o

desenvolvimento das pesquisas nas ciecircncias humanas A dimensatildeo interativa eacute essencial

no processo de produccedilatildeo de conhecimentos revelando-se as relaccedilotildees entre os envolvidos

no processo de construccedilatildeo da informaccedilatildeo o principal cenaacuterio da pesquisa e 3) a signifi-

158

caccedilatildeo da singularidade como niacutevel legiacutetimo da produccedilatildeo do conhecimento Este

aspecto ressalta um resgate da singularidade enquanto fonte legiacutetima de conhecimen-

to cientiacutefico Dessa maneira o conhecimento cientiacutefico diante da perspectiva qualitativa

natildeo se destaca pela quantidade de sujeitos a serem estudados mas pela qualidade de

sua expressatildeo

A pesquisa aconteceu em um Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Aacutelcool e outras Drogas

do Distrito Federal no contexto do acolhimento deste serviccedilo Utilizou-se uma en-

trevista semi- estruturada com nove homens de idades entre 30 e 51 anos que buscaram

o serviccedilo volitivamente em decorrecircncia do alcoolismo As entrevistas foram gravadas e

degravadas mediante autorizaccedilatildeo por escrito dos participantes A discussatildeo dos dados

baseou-se na anaacutelise de discurso advogada por Gonzaacutelez Rey (2005) resultando portan-

to na construccedilatildeo de indicadores e zonas de sentido

Os participantes da pesquisa foram selecionados entre os usuaacuterios que chegaram ao

serviccedilo pela primeira vez a partir de demanda espontacircnea com histoacuterico de abuso e

dependecircncia de bebidas alcooacutelicas nos uacuteltimos 2 anos natildeo ter associado ao problema

com o aacutelcool consumo de drogas iliacutecitas nos uacuteltimos 10 anos e ter assinado o termo de

consentimento livre e esclarecido

Discussatildeodosresultados

Da anaacutelise dos achados percebeu-se existir o pedido pela interrupccedilatildeo de ciclos de

violecircncia intrafamiliar que se reproduziram em distintas geraccedilotildees familiares provocan-

do lembranccedilas dolorosas como a brutalidade do paipadrasto ser receptaacuteculo da violecircncia

materna e tornar-se reprodutor da violecircncia sofrida poreacutem sem desejaacute-lo As discussotildees

das informaccedilotildees obtidas nesta pesquisa estatildeo dispostas na sequecircncia

1) ldquoO que me machuca mais eacute a lembranccedilardquo trajetoacuteria de vida marcada pela violecircncia intrafamiliar pela negligecircncia e pelo desamparo

Nas histoacuterias reconstituiacutedas a partir das narrativas dos participantes da pesquisa perce-

beu- se a presenccedila do consumo de bebidas alcooacutelicas (BA) no subsistema parental

Notou-se a existecircncia de pais e matildees habituados com padrotildees de consumo suficientes

159De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

para a produccedilatildeo no miacutenimo de intoxicaccedilatildeo alcooacutelica O padratildeo abusivo ou dependente

do consumo de BA feita por estes pais natildeo apenas foi apontado como fator influencia-

dor do iniacutecio do consumo dos filhos Tambeacutem revelou indiacutecios de repercussotildees negativas

no acircmbito familiar no qual os participantes da pesquisa foram criados uma vez que os

pais alcoolistas natildeo puderam cumprir com seus papeacuteis para com os filhos

Para Minuchin e Fishman (1985) a famiacutelia representa o contexto natural para crescer

e para receber auxiacutelio Caracteriza-se tambeacutem pelo locus no qual os indiviacuteduos receberatildeo

apoio para a individuaccedilatildeo sem perda do sentimento de pertencimento Na famiacutelia os

filhos tecircm o direito de serem cuidados protegidos e socializados internalizando regras e

valores assim como estilos de enfrentamento de conflitos e de negociaccedilatildeo dos mesmos

As famiacutelias assumem ou renunciam suas funccedilotildees de acordo com as necessidades cultu-

ras ou conforme a capacidade psiacutequica e maturidade de seus membros

Para Krestan e Bepko (1995) o nascimento de um primeiro filho pode despertar antigos

conflitos conjugais ou mais antigos do que o advento do matrimocircnio e ainda natildeo resolvi-

dos Essa sensaccedilatildeo de inabilitaccedilatildeo para lidar com as responsabilidades pela criaccedilatildeo

dos filhos pode desencadear um quadro de futuro alcoolismo como forma de lidar com

a erupccedilatildeo dessas questotildees conflituosas Considerando-se a presenccedila de pais alcoolistas

as funccedilotildees dos mesmos para com os filhos ficam prejudicadas De acordo com Gomes

Deslandes e Veiga (2002) os problemas associados ao consumo de BA podem pro-

vocar comportamentos agressivos negligecircncia e abandono dos cuidados com os proacute-

prios filhos Tambeacutem representa fator de risco para maus-tratos contra crianccedilas (Ramos amp

Oliveira 2008) Diversas evidecircncias empiacutericas apontam para o fato que o consumo de

BA no acircmbito familiar potencializa a ocorrecircncia de conflitos interpessoais desen-

tendimentos familiares e afetivos separaccedilatildeo de casais abuso fiacutesico e sexual homiciacutedio

suiciacutedio e envolvimento em manifestaccedilotildees de violecircncia no acircmbito intrafamiliar (Peluso

amp Blay 2008)

Das narrativas apresentadas pelos participantes destacou-se a trajetoacuteria de vida na qual

a violecircncia se revelou recorrente Natildeo raramente a cultura do beber associada agrave violecircncia

vitimou matildees irmatildeos e os proacuteprios sujeitos Embora a ecircnfase na modalidade de violecircncia

fiacutesica tenha sido destaque na fala dos colaboradores natildeo significa afirmar que outros tipos

de violecircncia natildeo tenham ocorrido ldquo() problema mesmo assim familiar neacute () soacute mes-

160

mo que meu pai me batia em mim e na minha matildee eacute soacute isso ai (JEOVAacute) na metodologia eacute

preciso dizer se os nomes satildeo fictiacutecios ou natildeo

De acordo com Guerra (2001) reconhecem-se quatro tipos de violecircncia domeacutestica

violecircncia sexual violecircncia fiacutesica violecircncia psicoloacutegica e negligecircncia A primeira caracteri-

zar-se- ia como toda accedilatildeo ou jogo sexual relaccedilatildeo hetero ou homossexual entre um ou mais

adultos e uma crianccedila ou adolescente tendo por objetivo estimular sexualmente esta

crianccedila ou adolescente ou utilizaacute-lo para lograr estimulaccedilatildeo sexual sobre sua pessoa

ou de terceiro Embora esta manifestaccedilatildeo de violecircncia domeacutestica natildeo tenha sido ver-

balizada deve-se considerar que por sua natureza normalmente assume a dimensatildeo

de segredo familiar expressando-se de forma camuflada (Ramos amp Oliveira 2008)

Adicionalmente existem correlaccedilotildees significativas entre o histoacuterico de abuso sexual e o

consumo posterior de drogas e aacutelcool (Bastos Bertoni amp Hacker 2005) assim como o

consumo de BA atua como fator de risco para abuso sexual (Chavez Ayala et al 2009)

A violecircncia fiacutesica de acordo com Guerra (2001) revela-se enquanto conceito controver-

so Existem segmentos que afirmam tratar-se de atos que resultam em danos fiacutesicos agraves

viacutetimas Outras correntes a definem como todo ato capaz de causar no miacutenimo dor

fiacutesica nas viacutetimas Sem embargos esta praacutetica constitui-se como uma das principais

causas de mortalidade de crianccedilas e adolescentes em todo mundo (Gomes et al 2002)

Em situaccedilotildees nas quais a praacutetica de violecircncia fiacutesica natildeo resulta em oacutebito ela produz

marcas no corpo que se tornam registros eternizados na pele dos vitimados que po-

deratildeo ativar lembranccedilas e o sofrimento vivenciado configurando-se em uma contiacutenua

tortura psiacutequica que poderaacute solapar as potencialidades de realizaccedilatildeo dessas viacutetimas na

vida Essas consequumlecircncias danosas se amplificam quando existe a presenccedila da violecircncia

psicoloacutegica e a negligecircncia associada agrave anterior Para Ballone e Ortolani (2002) e Guerra

(2001) a violecircncia psicoloacutegica se caracterizaria pelos atos de depreciaccedilatildeo de hu-

milhaccedilatildeo de discriminaccedilatildeo de chantagens e xingamentos cujos efeitos podem causar

danos emocionais para o resto da vida Enquanto a negligecircncia se define como atos de

omissatildeo dos pais agraves necessidades dos filhos quanto agrave alimentaccedilatildeo condiccedilotildees de vida

educaccedilatildeo carinho (Lippi 1985) Essas desassistecircncias satildeo capazes de provocar danos du-

radouros no psiquismo das viacutetimas

Em uma das narrativas apresentou-se o histoacuterico de um dos participantes que quase

teve seu braccedilo decepado pelo padrasto quando crianccedila Olhar para a marca no braccedilo

161De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

feita por um padrasto alcoolizado ativava a memoacuteria de cenas doloridas e recalcitrantes

em desaparecer Esta reiteradamente comparecia no relato da histoacuteria da marca no

braccedilo como se a reproduccedilatildeo do contar e recontar o ocorrido pudesse estar promovendo

alguma cicatrizaccedilatildeo em feridas natildeo mais no braccedilo mas enraizadas na interioridade da-

quele ser humano ldquoEsse corte aqui eu devia ter uns 10 ou 11 anos Viu Esse corte aqui

degolou meu braccedilo assim e eu dei sorte que num cortou num num num decepou o

nervo () o tamanho disso maior que os peacutes () E aiacute eu o que me machuca mais eacute a

lembranccedilardquo (SOacuteCRATES)

2) Receptaacuteculo da violecircncia materna

Em outras situaccedilotildees os participantes revelaram situaccedilotildees na infacircncia nas quais servi-

ram como receptaacuteculo no qual as matildees descontentes com a vida ou com os maridos

violentos e alcoolistas descarregavam seu sofrimento em forma de violecircncia fiacutesica ou

verbal Eles assumiam esse papel de aliviar a tensatildeo dessas matildees aceitando a violecircncia

depositada neles ldquo() eu sofri muito apanhei muito ela me bateu muito mas eu natildeo

culpo ela de nada ()batia batia de fio eleacutetrico batia de cinto ()Eu acho que ela

me batia mais sem necessidade Me bateu muitas das vezes sem precisatildeo Sem

precisatildeo mas eu tambeacutem natildeo culpo ela natildeo porque porque tenho que pensar o

seguinte minha matildee era soacute cheio de fiacute tinha um marido becircbado desgramado

dentro de casa Que soacute vivia judiando dela que soacute dava pra pinga que soacute dava pra

Caracu que soacute dava pra jogo entendeu Eacute E ela e ela era bem pobrezinha

do Maranhatildeo gente pobre vocecirc sabe como eacute A pessoa se esquentura (SOacuteCRATES)

Ao inveacutes dos pais cumprirem as tarefas de proteccedilatildeo e cuidados dos filhos estes assumiam

o lugar daqueles que passavam a servir como amortecedores da tensatildeo intrafamiliar Esta

inversatildeo passa a ser a regra Os filhos ficam sobrecarregados ao ponto de tornarem-se

impedidos de ser crianccedila Tornam-se crianccedilas com responsabilidades adultas (Krestan amp

Bepko 1995) cuidando de pais pueris e imaturos que possivelmente natildeo receberam

os devidos cuidados quando crianccedilas fenocircmeno este denominado parentalizaccedilatildeo ou

papel de filho parental (Boszormenyi-Nagy amp Spark 2008 Penso 2003) A possibili-

dade de ruptura da famiacutelia (separaccedilatildeo dos pais em virtude dos problemas associados ao

consumo de BA e agrave violecircncia por exemplo) mobiliza algo ou algueacutem que promova um

adiamento dessa desconstituiccedilatildeo familiar Assim um dos filhos eacute eleito como aquele

que assumiraacute essa tarefa Esta situaccedilatildeo evoca o conceito de triangulaccedilatildeo de Bowen (1976)

162

que se refere a um sistema de interaccedilatildeo entre trecircs pessoas Segundo ele quando um par

apresenta um niacutevel de ansiedade proacuteximo ao insuportaacutevel um dos membros da diacuteade

elege um terceiro como reforccedilo

A diacuteade original passa a se constituir como triacuteade a qual natildeo raramente deixa um dos

componentes originais do par do lado de fora da nova configuraccedilatildeo Natildeo obstante

Guerin Fay Burden e Kauto (1987) destacam que a formaccedilatildeo de triacircngulos pode ocor-

rer natildeo apenas da maneira anteriormente destacada Eles apontam adicionalmente

a possibilidade de uma terceira pessoa sensibilizada com a ansiedade de um dos

membros da diacuteade ou com o conflito neste sistema mover-se em direccedilatildeo aos envolvi-

dos para oferecer-se como apaziguador ou aliado de uma das partes Independentemente

da maneira como as relaccedilotildees triangulares se formam todas tecircm o objetivo de reduzir ou

aplacar a ansiedade inicial

No entanto embora haja uma reduccedilatildeo nos sentimentos desestabilizadores do sistema

o conflito permanece congelado sem atingir uma resoluccedilatildeo efetiva (Nichols Schwartz

1998) Nos casos onde um dos filhos eacute envolvido na triangulaccedilatildeo o processo de diferen-

ciaccedilatildeo deste membro fica prejudicado Uma vez fusionado com a matildee por exemplo um

filho que procure se emancipar de sua famiacutelia sem deixar de pertencer agrave mesma

vecirc-se em um conflito de lealdade A desvinculaccedilatildeo do triacircngulo e a busca por au-

tonomia significaria trair os pactos acordados sutilmente no seio familiar Desse

modo existe o sacrifiacutecio da proacutepria vida em nome das expectativas depositadas ou

ldquovolitivamenterdquo assumidas por este membro familiar para que haja minimizaccedilatildeo da

ansiedade no sistema familiar e se mantenha a coesatildeo deste

3) Tornar-se reprodutor da violecircncia sofrida mas sem desejaacute-lo

Quando a triangulaccedilatildeo constituiacuteda natildeo se revela com capacidade suficiente para lidar com

a ansiedade presente no intuito de abrangecirc-la ou dissipaacute-la haacute o aparecimento de

formaccedilotildees triangulares adicionais denominados como triacircngulos imbricados (Bowen

1976) ou triacircngulos justapostos (Andres 1971 citado por Nichols amp Schwartz 1998)

De acordo com esses autores a inserccedilatildeo contiacutenua de novas pessoas na triangulaccedilatildeo

inicial produz muacuteltiplas triangulaccedilotildees que formam uma tessitura caoacutetica e caracte-

rizada por sobreposiccedilotildees de triacircngulos de difiacutecil observaccedilatildeo A meta deste muacuteltiplo

envolvimento se inscreveria com o mesmo objetivo de apartar a ansiedade familiar A

163De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

imaturidade dos filhos em terem que assumir o papel de continecircncia aos anseios dos

pais imaturos associada agrave insustentabilidade de ser receptaacuteculo amortecedor da

violecircncia intrafamiliar e o lidar com as questotildees edipianas produzidas pela intensa fusatildeo

entre matildee e filho resultaria na necessidade de inclusatildeo de um novo elemento na triangu-

laccedilatildeo inicial

Nestes termos pode-se dizer que a nova inserccedilatildeo natildeo se restringiria necessariamente a

uma nova pessoa podendo se direcionar para outros elementos Desta maneira com-

preendeu-se do empiacuterico que o consumo de BA disponibilizou-se como elemento de uma

nova triangulaccedilatildeo O ato de beber excessivamente compreendido enquanto sintoma fa-

miliar instalar-se-ia em situaccedilotildees nas quais a ansiedade familiar se encontrasse elevada

excedendo-se a capacidade do sistema familiar de ligaacute-lo ou neutralizaacute-lo (Bowen 1974)

O esquecimento provocado pela BA seria uma forma apresentada de lidar com o in-

suportaacutevel da relaccedilatildeo familiar ldquoQuando quando eu bebo eu natildeo lembro de nada A

minha bebida eacute uma bebida que eu esqueccedilo de tudordquo (TESEU) ldquoAh a gente a

gente esquece das coisas neacute A gente esquece dos problemas se tu tiver algum

problema tu esquece vocecirc se sente mais animado pra fazer alguma coisa eacute diferente

demaisrdquo (AKHENATOacuteN)

Durante anos o beber serviu ou serve como um regulador auxiliar ateacute que os filhos se tor-

nam como os pais atores reprodutores de violecircncia natildeo tendo mais no beber um aliado

mas um gatilho para a repeticcedilatildeo do ciclo de violecircncia vivenciado durante anos Este

padratildeo se reproduz na proacutepria famiacutelia e aquele que era viacutetima se transparece em al-

goz e fiel cumpridor dos padrotildees vividos e condenados no passado A teoria sistecircmica

contribuiu para o pensamento humano no sentido de direcionar o foco para aleacutem das

personalidades individuais redescobrindo a interconectividade fundamental da condi-

ccedilatildeo humana Neste sentindo algumas perspectivas contribuiacuteram para a teoria e a praacute-

tica do trabalho com os sistemas soacutecio-familiares Conhecidas como terapias familiares

intergeracionais (Elkaiumlm 1998) as propostas contidas nesses modelos compreensivos

e interventivos pressupotildeem que as famiacutelias possuem uma histoacuteria que extrapola a fa-

miacutelia nuclear e envolve a famiacutelia extensa (Penso Costa amp Ribeiro 2008) As questotildees

que aparecem em uma geraccedilatildeo podem passar para uma geraccedilatildeo seguinte de outra forma

mas mantendo-se um padratildeo das famiacutelias repetirem a si mesmas (Carter amp McGoldrick

2007) Estas heranccedilas recebidas contemplam tanto aspectos positivos quanto negativos

(Boszormenyi-Nagy 1986) O patrimocircnio herdado em sua vertente positiva serviria para

164

assegurar a sobrevivecircncia transgeracional assim como facilitar a sobrevivecircncia huma-

na Em sua dimensatildeo negativa caracterizar-se-ia pela heranccedila de padrotildees disfuncionais

(Bucher-Maluschke 2008) Dessa maneira o patrimocircnio dos problemas associados ao

consumo de aacutelcool e da violecircncia seriam exemplos de padrotildees transferiacuteveis ao longo

das geraccedilotildees

Na busca de compreender este fenocircmeno de mimetismo de padrotildees intergeracio-

nais Bowen (1974) desenvolveu o conceito de processo de transmissatildeo multigeracional

Segundo ele a famiacutelia eacute uma unidade emocional portanto um sistema cujo funciona-

mento afeta e eacute afetado por todos seus membros O padratildeo emocional da famiacutelia eacute trans-

mitido atraveacutes de muacuteltiplas geraccedilotildees onde todos os membros satildeo agentes e reagentes

dos problemas que surgem Para este autor todas as famiacutelias possuem dois processos

basilares que se influenciam mutuamente de maneira dialeacutetica Uma das forccedilas se

direciona para a uniatildeo das personalidades individuais no seio familiar enquanto a outra

visa o logro da individualidade e separaccedilatildeo da famiacutelia O desequiliacutebrio pendente para a

uniatildeo denominou ldquofusatildeordquo ldquoaglutinaccedilatildeordquo ou ldquoindiferenciaccedilatildeo do selfrdquo enquanto a capacida-

de de funcionamento autocircnomo estaria relacionada agrave maior diferenciaccedilatildeo do self

Quando essa indiferenciaccedilatildeo ocorre nas famiacutelias de origem - conceito de massa egoacuteico-

familiar indiferenciada - as relaccedilotildees se caracterizam pelo fusionamento emocional

destacada dificuldade de diferenciaccedilatildeo dos membros caos cognitivo coletivo e exces-

sivo apego (Bucher Maluschke 2008) Nestes termos os pais transmitiriam aos

filhos o equivalente ao niacutevel de maturidade ou imaturidade que alcanccedilaram por

meio de um processo denominado de projeccedilatildeo familiar sendo que o filho que eacute o

alvo do processo de projeccedilatildeo torna-se mais ligado aos pais e menos diferenciado em

termos de self enquanto os filhos menos envolvidos tenderiam a lograr niacuteveis mais

altos de diferenciaccedilatildeo (Bowen 1974)

De acordo com Boszormenyi-Nagy e Spark (2008) a manutenccedilatildeo dessas heranccedilas

recebidas por diversas geraccedilotildees ocorre por meio de lealdades invisiacuteveis compreendidas

como a existecircncia de um conjunto de expectativas familiares em torno da adesatildeo a certas

regras e padrotildees e orquestradas em torno de distribuiccedilatildeo de compromissos entre

todos os membros Esta distribuiccedilatildeo tambeacutem conhecida por delegaccedilatildeo2 implica na

execuccedilatildeo de tarefas missotildees encomendadas de forma inconsciente que estatildeo vincula-

das aos anseios do grupo familiar Seu cumprimento fiel defere prova de solidariedade e

165De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

compromisso agraves expectativas familiares aleacutem de conferir status de pertencimento agravequele

que se revela leal O seu contraacuterio se concentra naqueles que transgridem ao que foi dele-

gado podendo ocasionar a expulsatildeo do membro traidor (Simon Stierlin amp Wynne 1988)

Nestes termos o ciclo de violecircncia descrito pode ser pensado enquanto produto de redes

complexas de delegaccedilotildees lealdades invisiacuteveis projeccedilotildees familiares que exigem uma ma-

nutenccedilatildeo da tradiccedilatildeo familiar em seu eixo vertical (relativo agraves muacuteltiplas geraccedilotildees) Natildeo

obstante no niacutevel horizontal esta continuidade do ciclo de violecircncia pode encontrar ex-

pectativas natildeo condizentes com aquelas transmitidas transgeracionalmente Esta situa-

ccedilatildeo pode gerar conflitos de lealdade ocasionando percepccedilotildees estranhas sobre si mesmo

Em um dos participantes esta situaccedilatildeo revelou- se exemplar quando o mesmo destacou

existir uma espeacutecie de duplo dentro de si Um almeja mudar a relaccedilatildeo com o beber

e aquilo que o padratildeo abusivo ou dependente acarreta enquanto o outro parece servir

aos propoacutesitos de outra entidade ldquoE eu sei laacute a gente eu faccedilo forccedila aiacute pra natildeo ver

se natildeo daacute vontade gente parece que tem duas pessoas mas tem hora que daacute um

trem uma coisa esquisita dentro da gente a parece eacute duas duas pessoas dentro

de mim Uma hora eu falo que natildeo vou beber () Aiacute quando daacute quando eu penso que

natildeo jaacute taacute com um cigarro no dedo uma bebida na boca E isso que eacute chato demais ()rdquo

(AKHENATOacuteN)

Esta manifestaccedilatildeo de uma espeacutecie de duplo parece apontar para aspectos que falam

tanto de uma atualidade sofrida descrita pelos sujeitos mas tambeacutem parece enunciar

uma verdade encoberta Este duplo ldquoesquisitordquo dentro dessas pessoas adotando-se a

cosmovisatildeo sistecircmica aponta para realidades aleacutem do sujeito singular Esta realidade

traduz-se em uma constituiccedilatildeo interna que se manteacutem fiel aos padrotildees herdados na

contiacutenua verticalidade transgeracional que rivaliza com outra vertente que almeja a

possibilidade da mudanccedila A consideraccedilatildeo desta perspectiva amplia o conceito de

ambivalecircncia destacado por Miller e Rollnick (2001) descrito pelos mesmos enquanto

conflito de vontades entre a mudanccedila e a manutenccedilatildeo do comportamento disfuncional

No alcoolismo a pessoa deseja mudar sua relaccedilatildeo com o aacutelcool mas concomitan-

temente revela existirem fatores mantedores do comportamento ndash que geramcul-

minam (n)a ambivalecircncia Nestes termos entende-se que este fenocircmeno pode estar

vinculado a um conflito de lealdades visiacuteveis e portanto verbalizaacuteveis quanto invisiacuteveis

e perceptiacuteveis de forma indireta o que exige uma melhor consideraccedilatildeo deste fenocircmeno

no contexto terapecircutico

166

Diante do exposto o pedido em torno da questatildeo do ciclo de violecircncias se associa com a

preocupaccedilatildeo em torno da continuidade dos possiacuteveis prejuiacutezos para as novas geraccedilotildees

Existe o conhecimento sobre as perturbaccedilotildees advindas da experiecircncia trazida pelo ciclo

violento vivido com o padrasto que se encontra atuante no presente podendo afetar

negativamente as novas geraccedilotildees O pedido de ajuda parece se direcionar para o logro

de um barramento ou ruptura do ciclo violento com a finalidade de garantir uma vida

diferente para os filhos ldquoEle ganhava bem Ele fazia soacute feirinha e levava pra casa O

resto ele perdia tudo na sinuca e na bebida neacute () aquela onda de violecircncia dentro

de casa Eu acho que isso ajuda muito na destruiccedilatildeo da gente e dos filho da gente

sabia Que eacute o meu medo laacute dentro de casa Eacute por isso que eu procurei aqui ()

Eacute Porque eu fui criado com um padrasto que natildeo me dava nada soacute violecircncia

dentro de casa () Poxa eu eu num lugar que natildeo sou (referindo-se ao seu pai3

alcoolista e violento) padrasto sou pai e ficar dando lugar pra futuramente meus

filho ficar com o juiacutezo perturbado tambeacutemrdquo (SOacuteCRATES)

A busca por ruptura com aspectos de uma heranccedila transgeracional escravizante

e disfuncionalizante natildeo objetiva contudo o despertencimento o deixar de ser herdeiro

Implica na possibilidade de promoccedilatildeo de mudanccedilas produtoras de novas possibilidades

relacionais entre as geraccedilotildees e seus membros

Consideraccedilotildeesfinais

A busca volitiva por serviccedilos de CAPSad revelam demandas que natildeo se restringem agrave

simples mudanccedila da relaccedilatildeo do sujeito com a bebida alcooacutelica Nesses pedidos subjazem

diversos niacuteveis de solicitaccedilotildees que nem sempre satildeo compreendidas pelos profissionais de

sauacutede mental que atuam nesses serviccedilos A consideraccedilatildeo da dimensatildeo transgeracio-

nal oportuniza identificar a miriacuteade de disposiccedilotildees disfuncionais na forma como as

famiacutelias em que se tem um ou mais membros alcoolistas Possibilita perceber que

podem coexistir agrave dificuldade de mudanccedila do comportamento de beber abusivo ou

dependente a transmissatildeo e manutenccedilatildeo de padrotildees comportamentais que enges-

sam a possibilidade de novas formas de funcionamento familiar

Nestes termos entende-se que o processo de acolhimento deve almejar uma escuta que

natildeo se restrinja agrave descriccedilatildeo do sintoma do beber ou que tenha como uacutenico foco o bene-

167De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento

ficiaacuterio dos serviccedilos dos CAPS ad o sujeito singular Este deve ser compreendido como

um ser em relaccedilatildeo natildeo podendo seu sistema soacutecio-familiar ser excluiacutedo do processo de

compreensatildeo de suas questotildees e demandas no contexto do acolhimento A exemplo

disso se a violecircncia intrafamiliar pode ser compreendida enquanto resultante do be-

ber problemaacutetico o beber abusivo ou dependente pode servir como alternativa de para

lidar com feridas provocadas por histoacutericos de violecircncia posteriores e cuja dinacircmica eacute

transmitida para outras geraccedilotildees como uacutenica forma aprendida de lidar com situa-

ccedilotildees problema

Entende-se das falas dos participantes da pesquisa que existe o pedido para a interrup-

ccedilatildeo da atividade de padrotildees escravizantes transmitidos e mantidos atraveacutes das geraccedilotildees

familiares e pela construccedilatildeo de heranccedilas benfazejas para as proacuteximas geraccedilotildees na

linhagem familiar A consideraccedilatildeo desses aspectos poderaacute promover uma escuta

mais integralizadora e capaz de permitir que novas formas de vinculaccedilatildeo e relacio-

namento inter e intrafamiliar se dinamizem natildeo tendo no alcoolismo e nos padrotildees

violentos respostas de lidar com os desafios da vida

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171 Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

AdrianaBarbosaSoacutecrates

MariaFaacutetimaOlivierSudbrack

Introduccedilatildeo

A definiccedilatildeo do local de realizaccedilatildeo da pesquisa assunto do presente artigo ocorreu em

funccedilatildeo de uma parceria entre o Programa de Estudos e Atenccedilatildeo agraves Dependecircncias Quiacute-

micas - PRODEQUI do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura do

Departamento de Psicologia Cliacutenica da Universidade de Brasiacutelia e a Promotoria Espe-

cial Criminal do Ministeacuterio Puacuteblico do Distrito Federal e Territoacuterios do Juizado Especial

172

Criminal 22 E teve como propoacutesito a implementaccedilatildeo de um Projeto que previa a exe-

cuccedilatildeo de Grupos de Intervenccedilatildeo Psicossocial para usuaacuterios de drogas enquadrados no

Artigo 28 Lei 1134306 situados nos crimes de menor potencial ofensivo conforme a

Lei 909995 dos Juizados Especiais Criminais

Tratou-se portanto da execuccedilatildeo de um projeto piloto intitulado Intervenccedilatildeo Psicosso-

cial para jurisdicionados do MPDFT em cumprimento de medida de pena alternativa

pelo uso de drogas que previu em suas diretrizes accedilotildees mais eficazes de conscientiza-

ccedilatildeo acerca dos prejuiacutezos pessoais e sociais do uso de drogas por meio de medidas de

educaccedilatildeo e informaccedilatildeo operacionalizadas em dois momentos distintos Acolhimento

Psicossocial ndash AP e Grupos de Intervenccedilatildeo Psicossocial - GIP

Este artigo aborda o estudo no momento do Acolhimento Psicossocial do referido Pro-

jeto das experiecircncias subjetivas reveladas no envolvimento com a Justiccedila por uso de

drogas levando em consideraccedilatildeo o sujeito deste envolvimento e suas experiecircncias sub-

jetivas aqui consideradas como pessoal singular e com o social pelos caminhos possiacute-

veis E teve como objetivo verificar a hipoacutetese de que o envolvimento com a Justiccedila pode

ser um caminho capaz de propiciar experiecircncias subjetivas e o Acolhimento Psicosso-

cial pode ser uma possibilidade para esse caminho no contexto da Justiccedila

As informaccedilotildees relatadas neste estudo se legitimam pela capacidade dialoacutegica intriacutense-

ca neste contexto mesmo quando se verifica pouco ou nenhum espaccedilo no acircmbito da

Justiccedila para os envolvidos em processos serem ouvidos em seus discursos e razotildees E

certamente este foi um dos aspectos motivadores para a realizaccedilatildeo deste estudo jaacute que

a presenccedila da pesquisadora ocorreu em diferentes momentos na execuccedilatildeo do Projeto

designado como campo de pesquisa favorecendo inevitavelmente a existecircncia de um

espaccedilo de escuta e observaccedilatildeo

22 Texto baseado em Socrates A S (2008) Do sujeito agrave lei da lei ao sujeito- o revelar das experiecircncias subjetivas de envolvimento com a justiccedila por uso de drogas no contexto do acolhimento psicossocial Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Psicologia Cliacutenica e CullturaUniversidade de Bras[ilia Orientadora Mara Fatima Olivier Sudbrcak

173Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

A definiccedilatildeo dos procedimentos para apreensatildeo e elaboraccedilatildeo das informaccedilotildees nesta

pesquisa representando os procedimentos de coleta e anaacutelise dos dados em pesqui-

sa qualitativa viabilizou a revelaccedilatildeo de experiecircncias dos sujeitos usuaacuterios de drogas

considerados como colaboradores deste estudo que obteve um espaccedilo de fala e de voz

para relatarem e significarem suas experiecircncias Nesse intuito elegeu-se como fonte

primaacuteria das informaccedilotildees as entrevistas semi-estruturadas realizadas no decorrer do

Acolhimento Psicossocial

Neste estudo o Serviccedilo Psicossocial no contexto da Justiccedila foi considerado como um

lugar de possibilidades para intervenccedilotildees que convocam o sujeito para aleacutem de seus

atos capturados pela Justiccedila As questotildees de investigaccedilatildeo perpassaram o propoacutesito de

conhecer as experiecircncias de envolvimento com a Justiccedila com vistas a verificar como os

usuaacuterios de drogas vivenciavam a experiecircncia de apreensatildeo pela Justiccedila o que a situaccedilatildeo

de apreensatildeo judicial mobilizou enquanto reflexatildeo sobre a relaccedilatildeo com as drogas como

os usuaacuterios de drogas significavam e re-significavam suas experiecircncias judiciais no

mundo das drogas quais possibilidades a apreensatildeo judicial permitiu que vislumbras-

sem e quais desdobramentos ela representou em suas vidas como entendiam a nova

lei sobre drogas quais suas reflexotildees criacuteticas e suas experiecircncias em torno das situaccedilotildees

desta e de outras apreensotildees pela poliacutecia como se percebiam simbolicamente nesta

intervenccedilatildeo psicossocial como avaliavam sua relaccedilatildeo consigo mesmo com as drogas

e suas relaccedilotildees com o social famiacutelia trabalho apoacutes este e envolvimento com a Justiccedila

Neste sentido o AP representou um lugar de convocaccedilatildeo do sujeito e o ponto de partida

deste estudo que teve como objetivo geral fornecer subsiacutedios teoacutericos e metodoloacutegicos

aos profissionais psicossociais do acircmbito juriacutedico em razatildeo da promulgaccedilatildeo da Lei nordm 1134306 Os objetivos especiacuteficos consistiram na investigaccedilatildeo psicossocial e psicanaliacute-

tica das experiecircncias subjetivas de envolvimento com a Justiccedila por uso de drogas Neste

cenaacuterio subjetivo os colaboradores foram descritos por fotografias simboacutelicas a partir

da forma como se simbolizaram nesta experiecircncia

Este estudo retratou o lugar ofertado pelo Acolhimento Psicossocial aos colaboradores

que em suas vozes relatam suas experiecircncias subjetivas a partir do envolvimento com

a Justiccedila por uso de drogas Percebemos a riqueza das possibilidades concentradas na

oferta deste lugar que foram percebidas nos indicadores de sentido que permitiram um

174

tracircnsito psiacutequico e emocional para produccedilatildeo de quatro zonas de sentidos como alterna-

tiva para a construccedilatildeo de inteligibilidade e de conhecimento cientiacutefico

Trata-se portanto de acordo com Fernando Gonzalez Rey (2005) do princiacutepio inter-

pretativo-construtivo como possibilitador dos processos de construccedilatildeo da informaccedilatildeo

a partir da expressatildeo subjetiva muito mais metafoacuterica do que descritiva e passiacutevel

de ser construiacuteda somente no estudo singular dos diferentes sujeitos ou nos espaccedilos

concretos da subjetividade social a serem estudados Assim o tracircnsito das direccedilotildees nos

movimentos e nos caminhos que foram trilhados neste estudo sugere o magniacutefico do

ser humano ou seja sua singularidade

Este artigo situa-se ainda na interface entre a psicologia e o direito o ser humano e a

Justiccedila em busca da emancipaccedilatildeo do sujeito como construtor de sua proacutepria histoacuteria A

Justiccedila parece estar entre o sujeito e suas accedilotildees e com a possibilidade de tornaacute-lo cons-

ciente das mesmas ou alienaacute-lo ainda mais Acredita-se que a conscientizaccedilatildeo de suas

accedilotildees por meio de espaccedilos de escuta e fala oportunos podem tornar dinacircmica a relaccedilatildeo

do sujeito consigo mesmo a partir dos sentidos subjetivos atribuiacutedos e incorporados por

eles agraves suas experiecircncias de envolvimento com a Justiccedila por uso de drogas

Este estudo teve como base teoacuterica a psicossociologia e a teoria psicanaliacutetica que com-

preendem o sujeito para aleacutem de seu envolvimento com a Justiccedila E que possibilita a

denuacutencia de diferentes significados no entrelaccedilamento entre o sujeito e a Lei como

uma busca reciacuteproca da subjetividade revelada nas experiecircncias de envolvimento com a

Justiccedila por uso de drogas

Meacutetodo

Trata-se de um estudo orientado pela epistemologia qualitativa proposta por Rey (2005)

no qual se buscou privilegiar o estudo das experiecircncias subjetivas de envolvimento com

a Justiccedila por uso de drogas reveladas no Acolhimento Psicossocial

Neste estudo buscaram-se infinitamente no discurso dos sujeitos as possibilidades

para promover a construccedilatildeo de zonas de sentido como marco de novas linhas de in-

teligibilidade aglomeradas ao que se pensou previamente nos objetivos e ao que foi

apreendido e apropriado no decorrer do processo de construccedilatildeo das informaccedilotildees Como

175Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

aponta Rey (2005) a epistemologia qualitativa como orientaccedilatildeo metodoloacutegica promo-

ve o caraacuteter construtivo-interpretativo da produccedilatildeo cientiacutefica considerando o conheci-

mento um processo permanente de produccedilatildeo de inteligibilidade mediante a construccedilatildeo

de novas zonas de sentido sobre o problema estudado

De acordo com Rey (2005) a pesquisa qualitativa emergiu como uma forma de romper

com o ponto de vista estreito e opressivo do positivismo Este autor propotildee um processo

de pesquisa qualitativa apoiada na epistemologia qualitativa amplamente utilizada em

estudos complexos sobre a construccedilatildeo de modelos compreensivos e que necessitam

de uma metodologia capaz de interagir e fazer sentindo para as ciecircncias afins e natildeo

apenas para a psicologia e que ainda tenha um valor heuriacutestico para a construccedilatildeo do

conhecimento dentro do campo de pesquisa Ou seja a realidade como um domiacutenio

infinito de campos inter-relacionados e o conhecimento como imbuiacutedo de um caraacuteter

construtivo-interpretativo

Os colaboradores consistiram em 24 sujeitos usuaacuterios de drogas apreendidos usando

ou portando drogas pela Poliacutecia Militar ou Civil e enquadrados no Artigo 28 da Lei

1134306 tendo participado de audiecircncias realizadas no decorrer dos meses de setem-

bro e outubro do ano de 2007 no 1deg Juizado Especial Criminal do Distrito Federal

Para uma melhor compreensatildeo e retrataccedilatildeo das experiecircncias subjetivas expressadas pe-

los 24 (vinte e quatro) colaboradores deste estudo entendeu-se necessaacuterio descrevecirc-los

um a um a partir de trecircs aspectos em contiacutenua articulaccedilatildeo quais sejam forma como se

representaram nas entrevistas por meio de siacutembolos informaccedilotildees contidas nos proces-

sos judiciais sobre as apreensotildees e a interpretaccedilatildeo e compreensatildeo da pesquisadora Tais

fotografias simboacutelicas foram retiradas pela maacutequina fotograacutefica lsquocapacidade de pensar

os pensamentosrsquo da pesquisadora e reveladas pelo entrelaccedilamento entre o teoacuterico e o

empiacuterico no decorrer da pesquisa Esta metodologia de descriccedilatildeo dos colaboradores foi

proposta pela pesquisadora e teve o objetivo de aproximar o leitor dos sujeitos impres-

sos nos colaboradores pela forma que se permitiram ser fotografados Dessa forma os

sujeitos foram fotografados simbolicamente e nomeados de O tatuado O self O praiano

O poeta O definido O forasteiro O militar O pastor O cego A guerreira O pombo branco

O lento A muacutesica O resolvido O competidor O profeta O filho O cantor O metamorfose

O deus O indefinido O famiacutelia O sensaccedilatildeo O (sem) vergonha

176

Dos 24 colaboradores 22 eram homens e 2 mulheres com idade meacutedia entre 25 e 26

anos sendo a miacutenima 19 e a maacutexima 40 anos Quanto agrave escolaridade a maioria dos

colaboradores cursavam niacutevel meacutedio 6 cursavam niacutevel superior e 2 eram formados

Em relaccedilatildeo ao trabalho 15 colaboradores estavam empregados 3 desempregados 3 re-

alizavam atividades informais e 2 estaacutegio de niacutevel superior A renda alcanccedilava uma me-

dia de R$ 49500 variando de R$ 150000 a R$ 27000 sendo que 5 colaboradores natildeo

possuiacuteam renda Tais informaccedilotildees coadunam com a explanaccedilatildeo de muitos colaborado-

res acerca do valor gasto com as drogas exceder o planejamento financeiro e prejudicar

os gastos essenciais apresentando de uma forma geral condiccedilatildeo soacutecio-econocircmica baixa

Quanto ao estado civil a maioria eram solteiros 15 sendo que 5 estavam casados 3

conviventes e 1 divorciado Quanto agrave residecircncia 12 residiam com a famiacutelia sendo que

5 residiam com a matildee 2 residiam com o pai 5 residiam com os pais 7 residiam com a

esposa 3 residiam com o cocircnjuge e familiares e 2 (dois) residiam sozinhos Apesar de

haver 15 colaboradores solteiros muitos ainda residiam com os pais ou com um deles e

apenas 2 deles residiam sozinhos o que reforccedila a concepccedilatildeo de que haacute pouca autono-

mia e individuaccedilatildeo dos mesmos frente agrave vida (Bulacci 1992)

A religiatildeo mais seguida pelos colaboradores era a catoacutelica com 12 seguidores sendo

que 2 eram espiacuteritas 1 evangeacutelico 1 do cristianismo 1 agnoacutestico 2 ateus 1 kardesista 2

sem religiatildeo e 2 que apenas acreditavam em Deus Estas informaccedilotildees trazem um inte-

ressante dado em relaccedilatildeo agrave crenccedila social de que o usuaacuterio de drogas natildeo possui religiatildeo

e que possuir uma religiatildeo seria um caminho para a cura Talvez com base na ideacuteia da

busca eterna da cura do sentimento de ter que lidar com a condiccedilatildeo ontoloacutegica do ser

humano como ser finito (Safra 2006)

Em relaccedilatildeo agraves informaccedilotildees obtidas a partir da Ficha de Acolhimento entendemos rele-

vante haver uma busca por informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria da sauacutede e de envolvimento

com a Justiccedila dos colaboradores Portanto 17 deles nunca realizaram algum tratamento

psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico em funccedilatildeo das drogas ou por outra razatildeo e 6 realizaram

tratamento psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico Destes 2 compareceram ao NUPS na eacutepoca

Nuacutecleo Psicossocial Forense do Tribunal de Justiccedila e atual Serviccedilo de Atendimento a

Usuaacuterios de Substacircncias Quiacutemicas - SERUQ para atendimento psicoloacutegico em razatildeo

do cumprimento de medida de pena alternativa 2 permaneceram internados em clini-

177Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

cas por mais de 6 meses 1 frequumlentou o atendimento ambulatorial do Hospital de Base

1 foi atendido pelo serviccedilo de psicologia e psiquiatria do HUB por 2 anos e 1 estava sen-

do atendido no CAPSad do Guaraacute-DF na ocasiatildeo do Acolhimento Psicossocial

Mesmo havendo um nuacutemero maior de colaboradores que natildeo realizaram tratamento

algum muitos deles possuiacuteam certo grau de comprometimento da sauacutede em funccedilatildeo do

uso de drogas bem como possuiacuteam outros envolvimentos com a Justiccedila Por essa razatildeo

persiste a percepccedilatildeo acerca do envolvimento com a Justiccedila possuir vaacuterios e diferentes

desdobramentos e significados para os colaboradores o que instigou ainda mais a ouvir

suas histoacuterias acerca de suas experiecircncias neste contexto

A trajetoacuteria de envolvimento com a Justiccedila dos colaboradores se mostrou similar agrave da

sauacutede talvez pelos mesmos motivos Dentre os 24 colaboradores 16 puderam optar

pela transaccedilatildeo penal23 agrave tramitaccedilatildeo processual e mesmo 2 deles possuiacuterem anteceden-

tes criminais ambos tiveram as exigecircncias legais de 5 anos para nova transaccedilatildeo penal

atendidas E 8 deles foram contemplados pela suspensatildeo condicional do processo por

possuiacuterem antecedentes variando entre um ou mais de um acumulados dos artigos

do Coacutedigo Penal Brasileiro A transaccedilatildeo penal agrave tramitaccedilatildeo processual impotildee o cumpri-

mento de medida de pena alternativa que pode ser a aplicaccedilatildeo de um dos Incisos do

Artigo 28 da Lei 1134306 I ndash advertecircncia II ndash prestaccedilatildeo de serviccedilo agrave comunidade e

III ndash participaccedilatildeo em grupos educativos

Em relaccedilatildeo ao uso de drogas verificou-se que 23 dos colaboradores faziam uso de maco-

nha sendo que 14 faziam uso soacute de maconha e 9 utilizavam a maconha concomitante-

mente agrave outras drogas E 7 deles consumiam tambeacutem aacutelcool juntamente com as outras

drogas como cocaiacutena merla aacutelcool LSD rupinol Apenas 1 (um) colaborador fazia uso

apenas de crack cocaiacutena e aacutelcool

Os procedimentos para apreensatildeo dos processos de construccedilatildeo da informaccedilatildeo foram

realizados por diferentes fontes de informaccedilatildeo tendo em vista ampliar a apreensatildeo da

realidade em foco Definiu-se como fonte primaacuteria de informaccedilatildeo as entrevistas semi-

-estruturadas realizadas no Acolhimento Psicossocial e como fonte secundaacuteria os dife-

23 Opccedilatildeo dada ao envolvido com a Justiccedila que natildeo tenha transaccedilatildeo penal nos uacuteltimos 5 anos para cumprir medidas alternativas em lugar da tramitaccedilatildeo do Processo podendo culminar na condenaccedilatildeo

178

rentes registros provenientes da observaccedilatildeo participante no Juizado Especial Criminal

e no Grupo de Intervenccedilatildeo Psicossocial nas supervisotildees e discussotildees da equipe acerca

dos temas relevantes agrave execuccedilatildeo do Projeto e na anaacutelise de documentos dos Processos

Judiciais dos colaboradores entrevistados

A busca das informaccedilotildees ocorreu durante a execuccedilatildeo do primeiro momento do Projeto

Piloto de Intervenccedilatildeo psicossocial para jurisdicionados do MPDFT em cumprimento

de medida de pena alternativa pelo uso de drogas Neste primeiro momento ocorreu

a entrevista semi-estruturada no Acolhimento Psicossocial que se caracterizou pela

oferta de um espaccedilo de escuta e pelo encaminhamento dos sujeitos colaboradores para

o segundo momento o Grupo de Intervenccedilatildeo Psicossocial

Durante a realizaccedilatildeo das entrevistas no Acolhimento Psicossocial foram preenchidas

as Fichas de Acolhimento para o Grupo de Intervenccedilatildeo Psicossocial com o objetivo de

registrar dados pessoais e sociais dos colaboradores tanto para a pesquisa como para

o Projeto fornecidos por eles mesmos fator considerado tambeacutem importante em um

estudo sobre as experiecircncias subjetivas ou seja o fato de proporcionar o falar de si e

o fornecer dados pessoais na voz e comando de quem os possui Aleacutem da assinatura

do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apoacutes a explicaccedilatildeo sobre os objetivos

riscos e benefiacutecios da pesquisa As entrevistas foram realizadas logo apoacutes a ocorrecircncia

das audiecircncias no Juizado Especial Criminal pelo fato de ser este momento oportuno

jaacute que todos os colaboradores receberam o mesmo tratamento pela Justiccedila encaminha-

mento ao Grupo de Intervenccedilatildeo Psicossocial apoacutes tendo em vista o cumprimento de

medida alternativa Os colaboradores logo apoacutes a realizaccedilatildeo de suas audiecircncias eram

entatildeo conduzidos a uma sala privada disponibilizada no local onde ocorreram as 24

entrevistas de acolhimento

Apenas uma das 24 entrevistas realizadas natildeo pocircde ocorrer conforme o descrito pelo

fato do colaborador natildeo estar se sentindo bem na audiecircncia No entanto foi realizada

a entrevista um pouco antes do horaacuterio de iniacutecio do primeiro encontro do Grupo de

Intervenccedilatildeo Psicossocial

De uma forma geral nas Entrevistas de Acolhimento Psicossocial parece ter havido

um lsquovoltar-se a si mesmorsquo e um lsquopoder refletir sobre o que estava acontecendorsquo talvez

de forma imediata e instantacircnea por terem sido realizadas logo apoacutes a audiecircncia in-

179Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

tenccedilatildeo primordial do estudo deste artigo Verificou-se que a Entrevista de Acolhimento

Psicossocial tenha funcionado como integradora das experiecircncias subjetivas e de seus

desdobramentos no envolvimento com a Justiccedila pelo uso de drogas

A elaboraccedilatildeo dos processos de construccedilatildeo da informaccedilatildeo ocorreu a partir da abertura de

possibilidades para construir novas articulaccedilotildees e aumentar a sensibilidade do modelo

teoacuterico em desenvolvimento avanccedilar na criaccedilatildeo de novos momentos de inteligibilidade

e elaborar novas zonas de sentido a partir de indicadores de sentido

Trata-se portanto do procedimento investigativo-interpretativo e de acordo com Rey

(2005) no qual as informaccedilotildees que as entrevistas nos reportam satildeo suscetiacuteveis de estra-

teacutegias diferentes de construccedilatildeo as quais natildeo estatildeo limitadas agrave uma anaacutelise fragmentada

feita por perguntas

Na elaboraccedilatildeo dos processos de construccedilatildeo da informaccedilatildeo realizou-se inicialmente

uma leitura flutuante do conteuacutedo das 24 (vinte e quatro) entrevistas com o objetivo

de elencar os indicadores de sentido mais significativos em articulaccedilatildeo com o modelo

teoacuterico adotado que orienta a seleccedilatildeo dessas informaccedilotildees E posteriormente a anaacutelise

interpretativo-construtivo com vistas a estabelecer conexotildees interpretaccedilotildees acerca das

experiecircncias subjetivas de envolvimento com a Justiccedila por uso de drogas reveladas nas

entrevistas

ResultadoseDiscussatildeo

Deste niacutevel de anaacutelise resultou a construccedilatildeo de 2 (duas) dimensotildees de anaacutelise em 4

(quatro) zonas de sentido A primeira dimensatildeo contemplou as experiecircncias do sujeito

com o pessoal singular atraveacutes das zonas de sentido Mobilidade do sujeito agrave droga e da

droga ao sujeito e O movimento do sujeito entre os altos e baixos da vida A segunda di-

mensatildeo consistiu nas experiecircncias do sujeito com o social a partir das zonas de sentido

O creacutedito do descreacutedito e o descreacutedito do creacutedito as vaacuterias faces da Justiccedila e O tracircnsito

de significaccedilotildees entre a Justiccedila o sujeito e suas relaccedilotildees sociais afetivas

Este artigo abordaraacute apenas a dimensatildeo das experiecircncias subjetivas de envolvimento

com a Justiccedila com o pessoal singular Nesta dimensatildeo verificou-se uma Mobilidade do

sujeito agrave droga e da droga ao sujeito e um Movimento do sujeito entre os altos e baixos

180

da vida Dessa forma esses movimentos foram retratados nas experiecircncias dos sujeitos

tanto com a droga como consigo mesmos e com a vida Recorreu-se ainda com vistas a

retratar esses movimentos agrave hermenecircutica do revelar do idioma pessoal proposta por

Safra (2006)

Notou-se prevalecer esta mobilidade uma vez que as experiecircncias primordiais do su-

jeito com a droga muitas vezes representam este movimento E assim justificou-se o

nome dado agrave zona de sentido Tal constataccedilatildeo vai de encontro ao que se tem na literatura

acerca da busca da droga se movimentar em prol do retorno agrave uma experiecircncia originaacute-

ria como repeticcedilatildeo ou como recuperaccedilatildeo de algo tido como natildeo vivenciado

Noutro giro a experiecircncia de uso de drogas se apresentou para cada sujeito de forma

singular No caso do uso de maconha a droga mais utilizada pelos colaboradores deste

estudo verificou-se que um nuacutemero significativo de colaboradores expressaram atingir

sensaccedilotildees relaxantes e de aliacutevio mental Nesse sentido Martins (2003) afirma que a

maconha funciona em muitas situaccedilotildees como ansioliacutetico ou analgeacutesico sendo que o

efeito mais importante incorre em atos sobre o pensamento facilitando a imaginaccedilatildeo

por um lado e impregnando uma motivaccedilatildeo diminuiacuteda por outro

A relaccedilatildeo do sujeito com a droga eacute complexa e pode compreender vaacuterias categorias

como uso recreativo abusivo e adicccedilatildeo Esta uacuteltima pode ainda atingir uma situaccedilatildeo

limite que implica a lsquoescravidatildeorsquo do indiviacuteduo diante da droga que se torna o objeto

de um prazer sentido como necessidade e que assume o comando das accedilotildees do sujei-

to Considerou-se para o presente estudo conforme aponta Martins (2003) ao citar a

trilogia de Olievenstein (1989) ser necessaacuterio para compreender o uso de drogas nos

inclinarmos agrave um sujeito em relaccedilatildeo com uma substacircncia inserido em um determinado

contexto

Situamos os sujeitos colaboradores em relaccedilatildeo com as drogas como o abordado pela

psicanaacutelise e que por essa via como nos aponta Santos (2007) visa estabelecer uma

relaccedilatildeo intersubjetiva um novo laccedilo social capaz de possibilitar o transcender da mobi-

lidade das experiecircncias com as drogas para as experiecircncias do sujeito com ele mesmo

Ao longo dos processos de construccedilatildeo da informaccedilatildeo houve a constataccedilatildeo de uma mo-

bilidade na relaccedilatildeo do sujeito com a droga que traduz algo moacutevel do sujeito agrave droga e

181Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

da droga ao sujeito Apesar de ter havido discrepacircncias de envolvimento com as drogas

entre os colaboradores as muitas dimensotildees dessa relaccedilatildeo reveladas retrataram um

movimento pendular amparado nos seguintes indicadores de sentido que sustentaram

esta zona de sentido as vivecircncias em relaccedilatildeo agraves drogas e as drogas em relaccedilatildeo agraves vivecircn-

cias a dependecircncia do uso e o uso da dependecircncia a consciecircncia do risco e o risco da

consciecircncia as consequumlecircncias do uso e o uso das consequumlecircncias a pessoa da droga e a

droga da pessoa aleacutem das oscilaccedilotildees entre os pensamentos e os sentimentos em relaccedilatildeo

ao uso de drogas

Considerou-se importante indicar a evidecircncia de vivecircncias diversificadas sobre os efeitos

das drogas pelos colaboradores Sentir animado estar de bem com a vida aliviar a mente

da tensatildeo o pensamento fica mais raacutepido foram expressotildees que delinearam essas vivecircn-

cias demarcadas pela motivaccedilatildeo para o uso Por outro lado essas vivecircncias alcanccedilaram

extremos indesejados como sinaliza O definido ldquoE dependendo da pessoa a percepccedilatildeo fica

tatildeo grande que acaba fazendo mal como agraves vezes faz para mim Vocecirc estaacute conversando e sua

percepccedilatildeo fica tatildeo grande que vocecirc acaba criando as coisas natildeo eacute mais uma percepccedilatildeordquo Po-

reacutem ao diminuiacuterem a frequumlecircncia do uso vivenciavam melhoras tanto na sauacutede como

no humor Assim como um aumento dessa frequumlecircncia representa pioras significativas

Percebe-se portanto um movimento nessas vivecircncias como nos mostra O forasteiro

ldquoDe certa forma a droga ajuda a pensar mas atrapalha o pensamento desconcentrardquo

O uso de drogas parece estar livre da dependecircncia quando realizado sem prejudicar as

atividades cotidianas numa baixa frequumlecircncia sem adquirir a droga comprando como

a busca de algo Como exemplo o que apontou A muacutesica ldquo a maconha abre a minha

cabeccedila agraves vezes ateacute pra tocar eu consigo pensar em arranjos em coisas diferentes

que eu tenho uma concentraccedilatildeo que vocecirc pode ter tambeacutem mas que eacute uma abertura

Eacute a abertura da minha mente assim sabe Ateacute no momento que natildeo me cause essa

dependecircnciardquo Este uso da dependecircncia consiste na forma encontrada para lsquomanipularrsquo

e lsquocontrolarrsquo o uso em uma crenccedila onipotente Apesar dos efeitos das drogas depen-

derem do organismo e do psiquismo de quem as consome este territoacuterio de uso de

drogas parece ser aacuterido de vivecircncias emocionais e construtivas pelo fato de ser a via

que impossibilita o experimentar de vivecircncias em suas condiccedilotildees naturais em lugar de

experiecircncias artificiais No entanto parece ser a via eleita para lidar consigo e com o

mundo mesmo engendrando necessidades orgacircnicas e psiacutequicas em decorrecircncia das

vivecircncias em torno desse uso

182

Nesse sentido O filho relatou ldquoHoje eu fumo maconha natildeo fumo mais cigarro Jaacute fu-

mei muito cigarro Fumo maconha Hoje eu digo que abre o apetite daacute uma sensaccedilatildeo

de libertar natildeo eacute Hoje eu uso cada vez mais como uma necessidaderdquo

Algumas expressotildees dos colaboradores escapam ao uso que relatam fazer da consciecircn-

cia e dos riscos das drogas Como foi possiacutevel verificar nas palavras de O forasteiro ldquoA

droga para mim hoje em dia eu vejo que estaacute me trazendo mais riscos que benefiacutecios

Eu vejo que tenho a consciecircncia mas eu tenho que ter a vontade de parar de ter aquele

estopim parou Ter um ponto de partida vai vocecirc vai conseguir Entendeu Eacute isso que

eu penso Eu quero parar eu tenho a pretensatildeo de parar e minha pretensatildeo de parar eacute

porque sei que eacute a coisa que me atrapalha a estudarrdquo

Convocando o dinamismo psiacutequico inerente a todos os seres humanos foi possiacutevel

perceber que os colaboradores conhecem os riscos do uso de drogas e mesmo assim

as utilizam Os riscos advindos dos relatos dos mesmos em relaccedilatildeo ao uso de drogas

alertam para o fato de natildeo considerarem adequado um uso compulsivo mas um uso

aleatoacuterio e de acordo com o ambiente pois relacionam o uso ao contexto que o incita

O uso do risco perpassa as possibilidades de escolha da droga de uso ou seja a droga

eleita por um sujeito depende do sujeito que a escolhe bem como do ambiente em que

a utiliza e dos efeitos advindos (Olievenstein 1989)

Os colaboradores mencionaram em seus relatos sobre suas experiecircncias com o pessoal

singular as consequumlecircncias do uso que remontam ao uso das consequumlecircncias em prol de

um aprendizado nesse vivenciar em diferentes niacuteveis Quanto a isso O definido apon-

tou ldquo as consequumlecircncias ajudam a gente a tomar um rumo diferente caso isso natildeo tivesse

acontecidordquo Ou seja o envolvimento com a Justiccedila por uso de drogas reverencia o limite

e a contenccedilatildeo

De acordo com o que expressaram os colaboradores acerca do uso das consequumlecircncias

parecem estar tateando as consequumlecircncias do uso e revelando-as como uma via de matildeo

dupla sendo que em uma via as consequumlecircncias incitam reflexotildees e noutra consti-

tuem justificativas para o uso Relataram ainda estabelecer com a droga uma relaccedilatildeo

que coincide a vontade de usar drogas com a de parar de usaacute-las pois acreditam que

as aquisiccedilotildees que obtecircm a partir do seu uso podem ser alcanccediladas de outras formas

Talvez por nunca terem percorrido outros caminhos senatildeo o das drogas para vivenciar

183Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

diferentes sensaccedilotildees Percebe-se neste ponto a droga com a funccedilatildeo de vida trazendo

consigo sensaccedilotildees para um corpo que natildeo as possui Isto eacute a vida na morte subjetiva

Nesta seara foram constatas singularidades nas vivecircncias com as drogas expressas pelos

colaboradores ldquosatildeo vaacuterios pensamentos curiosidade aventura aproveitar ali a sensa-

ccedilatildeo sentir se achar eacute algo bem pessoal a onda eacute diferente para cada um um fuma e fica

chapado outro estaacute nervoso outro fuma e estaacute alegre cada um eacute cada um isso eacute bem

psicoloacutegico bem de pessoa para pessoa na hora eacute pra se divertir mas tem outros meios

aiacute pra se divertir sem ser drogardquo

Das oscilaccedilotildees existentes nas possibilidades para refletir geradas pelo uso de drogas agraves

reflexotildees acerca do que pode proporcionar a droga constatamos expressotildees dos colabo-

radores sobre o impacto ao outro no ato de se drogar As palavras de O poeta retratou

tal proposiccedilatildeo ldquoPelo produto tem muita coisa que faz mal para a sauacutede e mesmo assim

eacute liberado mas natildeo estou falando que a maconha faz bem para a sauacutede vocecirc estaacute ali

puxando fumaccedila para dentro do seu pulmatildeo vai da loacutegica fumaccedila natildeo faz bem droga

tambeacutem natildeo Muitas coisas que fazemos fazem mal tomar sol comer maionese mas

nossa preocupaccedilatildeo deve ser natildeo fazer mal ao proacuteximordquo

De acordo com Bulaccio (1992) a droga eacute uma resposta natildeo eacute uma pergunta sendo a

soluccedilatildeo encontrada pelo sujeito para lidar com sua anguacutestia Para este autor a toxico-

mania se sustenta no outro no social e onde ocorre sua plenitude Para aleacutem da toxico-

mania percebemos as experiecircncias dos colaboradores com o pessoal singular por meio

de suas expressotildees que culminaram na mobilidade evidenciada do sujeito agrave droga e da

droga ao sujeito

Posto isto partiu-se rumo ao movimento dos sujeitos entre os altos e baixos da vida

consistindo a outra zona de sentido implicada nas experiecircncias dos colaboradores com

o pessoal singular que proporcionaram pensamentos e reflexotildees profundos e revelado-

res oscilantes e taacutecitos flexiacuteveis e frutos de elaboraccedilotildees incalculaacuteveis tal como a vida

se apresenta Tais constataccedilotildees impotildeem ao Acolhimento um ambiente holding capaz de

sustentar os colaboradores em suas experiecircncias por meio de compreensotildees adequadas

e necessaacuterias ao revelar de experiecircncias tal como aponta Winnicott (2001)

184

De acordo com Safra (2005) cada acontecimento na vida de uma pessoa a obriga a se

posicionar frente a estas questotildees de alguma forma e a estabelecer sentidos para os

misteacuterios que respiram em seu ser Este eacute o drama do ser humano e ao mesmo tempo

a sua fecundidade A partir do movimento dos sujeitos entre os altos e baixos da vida

ilustrou-se a forma como os colaboradores foram se posicionando frente agraves experiecircncias

com a Justiccedila utilizando o Acolhimento Psicossocial como um caminho para a reve-

laccedilatildeo da subjetividade nesse contexto mediante os seguintes indicadores de sentido

Parando para pensar na vida pelos veacutertices do sofrimento e Aproveitando os momentos

crescimento e aprendizado nos altos e baixos da vida

Assim quando uma pessoa experimenta a atualizaccedilatildeo de uma possibilidade em que

desdobramentos de um modo de ser se realizam ela jaacute natildeo eacute mais a mesma estaacute exis-

tencialmente posicionada de forma distinta (Safra 2005)

Percebeu-se em um dos veacutertices do sofrimento a presenccedila do sentimento de solidatildeo

como condiccedilatildeo para pensar na vida como demonstrou A guerreira ao apontar ldquo per-

cebo que todo mundo estaacute preocupado com sua proacutepria vidardquo Indicamos o sofrimento

como uma importante via para o ser humano reavaliar suas condutas e escolhas Sentir-

-se sozinha pode indicar entre outras revelaccedilotildees sua condiccedilatildeo de natildeo estar bem consigo

mesmo Aliaacutes podemos inferir que os colaboradores relataram por meio de seus atos

a dificuldade de entrarem em contato com seu mundo interno uma vez que utilizam

substacircncias para mediar esse contato e assegurar o si do si mesmo

Ferro (2005) postula que a gecircnese do sofrimento psiacutequico deriva da vivencia de um

trauma e do gradiente de disponibilidade da mente do outro juntamente com o tipo e

a qualidade de emoccedilotildees percebidas e presentes na mente desse outro que se relaciona

Ele defende ainda que o ato de falar antes mesmo do ato de refletir propicia o contato

com o funcionamento oniacuterico da mente que eacute capaz de criar mais nexos e sentidos que

qualquer reflexatildeo

O mais eficaz meacutetodo de evitar o desprazer contido no sofrimento consiste nas alte-

raccedilotildees quiacutemicas pela via da intoxicaccedilatildeo apesar de ser o meacutetodo mais grosseiro As

substacircncias quiacutemicas administradas neste intuito alteram tanto as condiccedilotildees que di-

rigem nossa sensibilidade quanto os impulsos desagradaacuteveis da vida psiacutequica A esse

respeito Freud (1930) afirma

185Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

O serviccedilo prestado pelos veiacuteculos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraccedila eacute tatildeo altamente apreciado como um benefiacutecio que tanto indiviacuteduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido Devemos a tais veiacuteculos natildeo soacute a produccedilatildeo imediata de prazer mas tambeacutem um grau altamente desejado de independecircncia do mundo externo pois sabe-se que com o auxiacutelio desse acuteamortecer de preocupaccedilotildees` eacute possiacutevel em qualquer ocasiatildeo afastar-se da pressatildeo da realidade e encontrar refuacutegio num mundo proacuteprio com melhores condiccedilotildees de sensibilidade Sabe-se igualmente que eacute exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos Satildeo responsaacuteveis em certas circunstacircncias pelo desperdiacutecio de uma grande quota de energia que poderia ser empregada para o aperfeiccediloamento do destino humano (p 86)

O acuteamortecer de preocupaccedilotildees` referido acima parece representar uma das funccedilotildees da

droga ou da busca da droga como a forma encontrada para conviver com a realidade Ou

seja o amortecer da energia sentida e aproximada ao desprazer necessita de uma des-

carga imediata de prazer adquirida momentaneamente pela substacircncia quiacutemica poreacutem

natildeo adveacutem de uma construccedilatildeo de sentido psiacutequico fruto de uma forma aprendida de

lidar com o desprazer Talvez seja uma forma de evitar o desprazer artificialmente que

alcanccedila um estado sensiacutevel imediato capaz de neutralizar as sensaccedilotildees ou melhor o

sofrimento meio pelo qual o organismo estaacute regulado

No entanto natildeo existe uma regra a seguir para um percurso satisfatoacuterio e equilibrado

entre prazer e desprazer Cada ser humano precisa conhecer e reconhecer de que modo

pode ser conduzido e se conduzir ao longo da vida Acredita-se que as substacircncias quiacute-

micas como meacutetodo de evitar o desprazer ou de buscar o prazer imediato impedem

o aprendizado e a construccedilatildeo necessaacuterios agrave capacidade de lidar com situaccedilotildees adver-

sas proacuteprias da vida e suas intercorrecircncias e oscilaccedilotildees Jaacute que as vivecircncias internas

articulam-se agraves vivecircncias externas ao sujeito em sua constituiccedilatildeo e como decorrecircncia do

desenvolvimento humano podendo haver sempre um muacutetuo aprendizado

As relaccedilotildees estabelecidas ao longo da vida proporcionam o desenvolvimento psiacutequico

e emocional necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo psiacutequica do sujeito A relaccedilatildeo entendida entre o

sujeito e a droga ocupa o lugar mantido economicamente impossibilitando de propor-

cionar essa relaccedilatildeo de aprendizagem por se localizar ligada ao sujeito impedindo-o de

ver a si mesmo e ao outro Dessa forma entende-se que haacute uma relaccedilatildeo dual entre o

sujeito e a droga que pode inviabilizar o vivenciar do sofrimento como transformador

186

A psicanaacutelise situa o sujeito em busca de suas redes de ligaccedilatildeo entre seus sintomas

e seus diversos sentidos Assim o sujeito implicado com o uso de drogas passa a ser

considerado para aleacutem de seu sintoma como forma de abranger os seus reais sentidos

Tanto como sintoma quanto como funcionamento psiacutequico o sujeito parece construir

suas relaccedilotildees e suas aquisiccedilotildees pela via do aliacutevio das tensotildees psiacutequicas e emocionais do

dia-a-dia e da vida cotidiana Cada sujeito vivencia o aliacutevio psiacutequico de formas diferen-

ciadas e com desdobramentos diversos

Haacute no aparelho psiacutequico desde o iniacutecio da vida a construccedilatildeo de modelos24 de inuacutemeras

formulaccedilotildees acerca da vivecircncia de experiecircncias emocionais e da capacidade de pensar

os pensamentos A abstraccedilatildeo adveacutem desses modelos que tornam possiacutevel sua continui-

dade ou seja o conteuacutedo desses modelos proporciona um somatoacuterio de experiecircncias de

ter suas necessidades atendidas pelo ambiente que caracteriza a abstraccedilatildeo

A partir da forma como foram vivenciadas as experiecircncias emocionais ao longo da vida

determina-se a capacidade de pensar e de utilizar os pensamentos como desenvolvi-

mento de um aparelho capaz de tolerar frustraccedilatildeo O conceito de consciecircncia de Freud

(1911) como oacutergatildeo sensiacutevel agrave percepccedilatildeo de atributos psiacutequicos fornece tal aparelho que

ordena as percepccedilotildees primordiais e suas constituiccedilotildees

Bion (1991) aponta que parte do aparelho psiacutequico primitivo se amolda para prover o

aparelho como dispositivo indispensaacutevel por substituir a descarga motora e sugere ser o

pensar algo que se impotildee ao aparelho pelas exigecircncias da realidade tal como o predomiacute-

nio do princiacutepio do prazer proposto por Freud A capacidade para pensar adveacutem de um

aparelho adaptado e apto a adaptar-se agraves tarefas proacuteprias agrave satisfaccedilatildeo dos requisitos da

realidade Institui-se por essa via o aprender com a experiecircncia que se liga agrave funccedilatildeo que

Freud atribui agrave atenccedilatildeo quando afirma que de modo intermitente sonda o mundo exter-

no com familiaridade caso surja uma necessidade urgente Bion (1991) complementa

indicando serem esses os modelos utilizaacuteveis para a satisfaccedilatildeo urgente de necessidades

internas ou externas e que trazem a reminiscecircncia das experiecircncias emocionais

24 O modelo eacute a abstraccedilatildeo da experiecircncia emocional ou a concretizaccedilatildeo da abstraccedilatildeo (Bion 1991 p 112)

187Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

O aprender com a experiecircncia e a capacidade para pensar o pensamento fornecem

meios para restringir a descarga motora ou seja natildeo mais alivia o aparelho mental dos

acreacutescimos de estiacutemulos mas agora altera adequadamente a realidade Epistemologica-

mente Bion (1991) considera o pensamento anterior ao pensar e desenvolve o pensar

como meacutetodo ou aparelho para lidar com os pensamentos e seus desdobramentos A re-

sultante do pensar o pensamento institui a evacuaccedilatildeo e o pensar A evacuaccedilatildeo soluciona

o problema se a personalidade eacute dominada pelo impulso para fugir agrave frustraccedilatildeo e por

pensar os objetos se dominada pelo impulso de modificar a frustraccedilatildeo

Nessa vertente verificou-se que os colaboradores estatildeo ldquosegurando as pontasrdquo ou estatildeo

sendo ldquosegurados pelas pontasrdquo face agrave linha tecircnue que separa o sujeito de suas esco-

lhas os sofrimentos das consequumlecircncias de suas escolhas num tecido costurado pela

fragilidade das relaccedilotildees estabelecidas com as drogas

Tais experiecircncias incorporam-se agrave histoacuteria de vida dos colaboradores que a situam como

aprendizado para ser utilizado posteriormente Ou seja quando parece ser possiacutevel para

os colaboradores se apropriarem de suas vivecircncias torna-se igualmente possiacutevel utilizaacute-

-las quando entenderem necessaacuterio ao longo da vida Pelo que se observou os colabora-

dores inseriram o revelar dessas experiecircncias em suas subjetividades

De todo modo o Acolhimento Psicossocial se revelou como um ambiente capaz natildeo soacute

de sustentar os colaboradores mas tambeacutem de situaacute-los em suas experiecircncias de envol-

vimento com a Justiccedila em diversos aspectos E tornou possiacutevel tambeacutem o desvendar o

movimento do sujeito entre os altos e baixos da vida

Conclusotildees

O Acolhimento Psicossocial passou a ser revelador dos desdobramentos do envolvi-

mento com a Justiccedila por uso de drogas para cada colaborador acionando neles diferen-

tes formas de relatar e lidar com essa situaccedilatildeo e apropriar-se dela como experiecircncia no

curso de suas vidas

A dimensatildeo das experiecircncias subjetivas vivenciadas entre o sujeito com ele mesmo natildeo

estaacute estanque e se desenvolve pelo diaacutelogo nessa dimensatildeo constituindo um processo

relacional na busca do sujeito pela Lei como instauradora e constitutiva do mesmo

188

psiacutequica e emocionalmente bem como na busca da Lei pelo Sujeito como instauraccedilatildeo

de sua constituiccedilatildeo

Considerou-se o Acolhimento Psicossocial propiciador de condiccedilotildees favoraacuteveis agrave ex-

pressatildeo dos colaboradores sobre suas experiecircncias de envolvimento com a Justiccedila por

uso de drogas bem como revelador do idioma pessoal dos mesmos Favorecer a expres-

satildeo de suas singularidades reporta-nos agrave Safra (2005) quando se refere que falar sobre

qualquer fenocircmeno impotildee a possibilidade de nomear as diferentes experiecircncias e fazer

relaccedilotildees entre elas Era o que foi proposto no momento em que foi oportunizado espaccedilo

para palavras isto eacute o apropriar-se das mesmas e poder utilizaacute-las como aprendizado a

partir das experiecircncias

Sugere-se com o presente estudo que o Acolhimento Psicossocial tenha funcionado

como um aparelho para ajudar a pensar os pensamentos e proporcionar o aprender

com as experiecircncias Considerou-se que o envolvimento com a Justiccedila representou para

os colaboradores a modulaccedilatildeo de um aparelho para pensar os pensamentos exercendo

a reformulaccedilatildeo de um aparelho para pensar os pensamentos como propotildee Bion (1991)

Verificou-se que o acolhimento inserido na Intervenccedilatildeo Psicossocial nestes moldes

convoca os colaboradores a refletirem e a pensarem sobre seus atos e a conferirem a eles

pensamentos e consequumlentemente aprendizados a partir da experiecircncia

Tocou-se por essa via na vertente cliacutenica que convoca os colaboradores como sujeitos

constituiacutedos e constituidores de sua proacutepria histoacuteria Neste sentido Rey (2003) aponta

a psicanaacutelise como a inauguradora da psicologia na vertente cliacutenica tendo em vista bus-

car enfrentar os problemas derivados da praacutetica cliacutenica

No contexto da Justiccedila percebemos que o Acolhimento Psicossocial funcionou ainda

como o elo de ligaccedilatildeo entre os colaboradores e o cumprimento da medida de pena al-

ternativa pelo fato de esse funcionamento apresentar-se como aparelho para pensar os

pensamentos e proporcionar o aprender com as experiecircncias A vertente cliacutenica fez-se

presente neste entendimento pois convocou o sujeito como constituiacutedo e constituidor

de sua proacutepria histoacuteria

Natildeo se trata de defender a cliacutenica como meacutetodo para Intervenccedilotildees Psicossociais mas

destacar a importacircncia de um Acolhimento neste contexto que favoreccedila a auto-reflexatildeo

189Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila

e o sentimento de receber creacutedito da Justiccedila por meio de um lugar ofertado de existecircn-

cia e de palavra devolvendo aos lsquoprocessadosrsquo a autoria de suas histoacuterias Para justificar

estes pensamentos recorreu-se a Lavenu (1985) psicoloacutegica de presidiaacuterios na Franccedila

conforme citada por Sudbrack (1992)

Privar o ato do sentido (em niacutevel das inscriccedilotildees inconscientes) do qual ele tenta fugir eacute deixar o criminosa em seu status de Ator e portanto encorajar a repeticcedilatildeo O processo a histoacuteria inscrita no seu dossiecirc judiciaacuterio tornar-se-aacute uma autobiografia escrita pelas palavras dos outros O anti-heroiacute poderaacute permanecer ator de sua vida Mas aquele que assumindo seu crime teraacute podido colocaacute-lo em palavras e inscrever sua histoacuteria em uma aventura terapecircutica teraacute uma chance de tornar-se AUTOR de seu ato e talvez de seu destinordquo

Constatou-se que o acima mencionado coaduna como nossa perspectiva teoacuterica e meto-

doloacutegica tendo em vista trazer agrave tona o sujeito para aleacutem de seus atos e envolvimentos

judiciais

Dessa forma este estudo foi firmado tambeacutem no cenaacuterio cliacutenico da intervenccedilatildeo psi-

cossocioloacutegica pois a praacutetica da psicossociologia como nos mostra Machado (2001)

transforma-se na anaacutelise cliacutenica do discurso dando ecircnfase agrave histoacuteria relatada e real dos

sujeitos dos grupos das organizaccedilotildees e da coletividade A anaacutelise social de documentos

e entrevistas compotildee a pesquisa qualitativa podendo ser utilizada na busca do senti-

do e das significaccedilotildees aleacutem de produzir novas realidades em diferentes contextos A

Intervenccedilatildeo Psicossocial eacute condizente com a praacutetica da psicossociologia uma vez que

remonta agrave complexa relaccedilatildeo entre o sujeito e o social

Leacutevy (1995) citado por Machado (2001) sinaliza que o discurso desvela a realidade so-

cial com seus conflitos Ou seja os atos de linguagem que remodelam e interpretam o

discurso interferem na realidade individual e social dos sujeitos simultaneamente

Verificou-se que os colaboradores utilizaram a Justiccedila como a via possiacutevel e passiacutevel de

proporcionar reflexotildees acerca de suas posturas pessoais e sociais Infere-se que quando

os colaboradores vivenciaram esse envolvimento como um creacutedito da Justiccedila encontra-

ram respaldo para se apropriarem de suas experiecircncias no curso de suas vidas Neste

sentido conferiu-se a isso um patamar de possibilidades para pensar e aprender com a

experiecircncia pela via do creacutedito da Justiccedila

190

Por outro lado quando natildeo haacute esse creacutedito tanto na Justiccedila como nas relaccedilotildees pessoais

e afetivas dos colaboradores constatamos rupturas no percurso de vida psiacutequica e emo-

cional retratados pelas expressotildees sobre descreacutedito preconceito banalizaccedilatildeo fragilida-

des nas relaccedilotildees sociais afetivas uso de drogas

O Acolhimento Psicossocial se revelou nesta pesquisa acolhedor dessas rupturas opor-

tunizando um espaccedilo para pensar os pensamentos transformando-os em aprendizado

frente agraves adversidades da vida Notamos suas possibilidades pelas palavras e expressotildees

dos colaboradores que tornaram possiacutevel o revelar do idioma pessoal singular de cada

um

Podemos pensar que para muitos colaboradores o Sujeito busca a Lei pelo envolvimen-

to com a Justiccedila como uma possibilidade encontrada inconscientemente para ressigni-

ficar a lei interna e reguladora de suas relaccedilotildees com o mundo Da mesma forma a Lei

representa o limite organizador para o Sujeito e o remete a si mesmo impondo sua pre-

senccedila simboacutelica e ordenadora Constatou-se um movimento contiacutenuo e ininterrupto do

Sujeito agrave Lei e da Lei ao Sujeito caracterizado no compasso da vida interna e externa

inquieta e dinacircmica

O uso de drogas perfaz a via utilizada pelos colaboradores para lidar com a vida interna

e externa e por incriacutevel que pareccedila consiste justamente no instaurador do compareci-

mento agrave Justiccedila Inferiu-se dessa forma a droga como a via rumo agrave Lei e agrave Justiccedila como

uma busca de continecircncia para sentimentos adversos vivenciados pelos sujeitos pesso-

al e socialmente Talvez por esse motivo o Acolhimento tenha marcado sua diferenccedila

sustentadora na Intervenccedilatildeo Psicossocial como uma condiccedilatildeo ofertada e aproximada

das necessidades dos colaboradores

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193 Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

EugeneEnriquez

Pourquoi eacutevoquer lrsquoamour Lrsquoamour semble ne plus faire partie des preacuteoccupations

centrales de nos socieacuteteacutes alors qursquoau Moyen-acircge lrsquoamour courtois eacutetait devenu un des

ressorts essentiels de la socieacuteteacute europeacuteenne et un des signes des capaciteacutes drsquoideacutealisation

et de sublimation de celle-ci qursquoau 17egraveme siegravecle le sentiment amoureux eacutetait mis au pi-

nacle par les Preacutecieuses qui dessinaient la ldquocarte du Tendrerdquo qursquoau 18egraveme il eacutetait le souci

principal des libertins qui eacutetaient charmeacutes ou obseacutedeacutes par la conquecircte amoureuse et des

bourgeois qui espeacuteraient reacuteussir aussi bien dans le mariage que dans les affaires qursquoau

19egraveme siegravecle lrsquoamour romantique ne mettait en contact que deux cœurs qui srsquoaccordaient

au delagrave de toutes les conventions et au risque de la mort Pourquoi parler maintenant

drsquoune passion indeacutefinissable qui comme lrsquoeacutecrivait Andreacute Le Chapelain est ldquoun je ne sais

quoi qui vient de je ne sais ougrave et qui srsquoen va je ne sais commentrdquo et il ajoutait ldquoet par ces

termes qui ne nous apprennent rien ils nous apprennent tout ce qui peut srsquoen savoirrdquo

Pourquoi ne pas parler plutocirct de sexualiteacute dans une socieacuteteacute ougrave nombre de magazines

procircnent les rencontres eacutepheacutemegraveres prodiguent des conseils pour accroicirctre tous azimuts

le plaisir sexuel ougrave se multiplient les peep-shows les revues et les films pornographiques

194

dans une socieacuteteacute donc ougrave la libeacuteration sexuelle continue agrave ecirctre agrave lrsquoordre du jour et ougrave elle

semble demeurer le mot drsquoordre drsquoune eacutepoque voueacutee agrave la jouissance

Il serait possible de reacutetorquer agrave bon droit que de parler constamment de sexualiteacute est

en reacutealiteacute la faire taire Nous le savons bien nous qui avons eacuteteacute inteacuteresseacutes au sens fort

du terme par la deacutecouverte freudienne concernant le fonctionnement inconscient de

la psycheacute et qui nous sommes rendus compte que plus on invoquait lrsquoinconscient et

les reacutepercussions de son pouvoir dans la vie la plus quotidienne plus on le banalisait

le travestissait le rendait inopeacuterant et lrsquoempecircchait drsquoecirctre cette ldquoblessure narcissiquerdquo

fondamentale que Freud avait cru infliger agrave lrsquohumaniteacute A force de traiter de sexualiteacute agrave

force de mettre lrsquoinconscient agrave toutes les sauces notre socieacuteteacute fait perdre son tranchant

aux hypothegraveses et aux deacutemonstrations freudiennes les plus novatrices

Crsquoest pourquoi nous laissons le discours sur la sexualiteacute agrave drsquoautres Non qursquoil ne soit pas

drsquoimportance mais parce qursquoil est tellement envahissant qursquoil nous paraicirct relevant de

tenter drsquoexplorer drsquoautres terres qursquoon croie bien connaicirctre et qui sont comme lrsquoacircme

dirait A Schnitzler des ldquoterres eacutetrangegraveresrdquo

Si nous restons fidegraveles agrave lrsquoinspiration freudienne nous sommes obligeacutes de nous rendre

compte de trois eacuteleacutements fondamentaux de notre socieacuteteacute 1) Lamonteacutee de la ldquomaladie rsquo

des conduites pathologiques 2) Le rocircle central de lrsquoamour aussi bien dans ldquole narcis-

sisme des petites diffeacuterencesrdquo que dans le repli sur soi ou au contraire dans la forma-

tion ldquodrsquoentiteacutes toujours plus grandesrdquo 3) Lrsquoimportance de lrsquoamour dans la Kulturarbeit

Reprenons ces divers points

Lamonteacuteedelamaladie

Nous nrsquoavons peut-ecirctre pas accordeacute suffisamment drsquoattention agrave la phrase suivante de

Freud ldquoUn solide eacutegoiumlsme preacuteserve de lrsquoamour mais agrave la fin on doit se mettre agrave aimer

pour ne pas tomber malade et lrsquoon doit tomber malade lorsqursquoon ne peut aimerrdquo

Essayons de tirer tout le sue de cette phrase en nous reacutefeacuterant naturellement aussi agrave

drsquoautres aperccedilus de Freud ou agrave drsquoautres auteurs importants pour notre propos

195Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

Le ldquosolide eacutegoiumlsmerdquo connote la libido du moi qui envahissante peut devenir une libido

uniquement ldquonarcissiquerdquo Or que signifie ecirctre uniquement narcissique crsquoest non seu-

lement risquer de mourir en se regardant dans le miroir en eacutetant happeacute par son image

speacuteculaire (et la maladie est le premier chemin vers le deacutenouement fatal) mais drsquoabord

renoncer agrave sa liberteacute car quand on est plein de soi-mecircme quand on est dans cette com-

paciteacute (que deacutenonccedilait aussi bien Ibsen que Freud) qui se cache sous le masque de la

pleacutenitude on est bien pregraves de srsquoeacutetouffer de ne plus ecirctre capable de vivre de faire des

choix de deacutevelopper un ordre ldquonormatifrdquo par rapport auquel drsquoautres peuvent se deacutefinir

Dans lrsquoamour au contraire si un individu srsquoaliegravene agrave lrsquoautre il se rend en mecircme temps

libre et il le rend libre Alieacutenation et liberteacute ne sont pas antinomiques Lrsquohomme libre

nrsquoest pas malade Crsquoest ce que veut dire fort justement Leacutevi-Strauss inspireacute par Lacan

auquel il se reacutefegravere lorsqursquoil eacutecrit (1950) ldquoCar crsquoest agrave proprement parler celui que nous

appelons sain drsquoesprit qui srsquoaliegravene puisqursquoil consent agrave exister dans un monde deacutefinis-

sable seulement par la relation de moi et drsquoautruirdquo Hegel srsquoen eacutetait deacutejagrave rendu compte

dans sa premiegravere dialectique eacutecrit du temps drsquoIeacutena - ldquoLa dialectique des amantsrdquo

Pour Hegel lrsquoamour est ce qui rend lrsquohomme speacutecifiquement humain puisqursquoil est lrsquoex-

pression du deacutesir drsquoun autre deacutesir crsquoest-agrave-dire de la reconnaissance En srsquoaimant les

amants se reconnaissent simultaneacutement et reconnaissent leur alteacuteriteacute irreacuteductible Lrsquoun

et lrsquoautre sont donc donneacutes ensemble plus exactement ils naissent ensemble Comme

ils sont deacutefinis par la mort lrsquoun comme lrsquoautre ils comprennent que crsquoest leur propre

finitude qui les rend libres et disponibles agrave cette aventure exceptionnelle Un sociologue

comme G Simmel (1921) eacutecrit ces phrases qui vont dans le mecircme sens ldquoSeul lrsquoecirctre qui

aime est un esprit reacuteellement libre car seul il affronte chaque pheacutenomegravene avec cette ca-

paciteacute ou cette propension agrave lrsquoaccueillir agrave lrsquoappreacutecier pour ce qursquoil est agrave en ressentir plei-

nement toutes les valeurshellip Le sceptique lrsquoesprit critique celui qui est deacutepourvu de preacute-

jugeacutes en theacuteorie se comporte diffeacuteremment Jrsquoai souvent noteacute que ces types drsquohomme

par peur de perdre leur liberteacute nrsquooffrent pas un accueil reacuteellement indeacutependant vis-agrave-vis

de tout le dehors accueil neacutecessitant toujours un certain abandon au pheacutenomegravenerdquo

Crsquoest ainsi quand la libido peut investir un nouvel objet radicalement diffeacuterent de soi

que lrsquoecirctre eacuteprouve sa liberteacute et sa capaciteacute agrave lutter pour la vie Ce ldquonarcissisme bien tem-

peacutereacuterdquo reacutefute le narcissisme de mort car il srsquoaccompagne du don de soi qui ne se joue pas

en une fois mais qui se reacutevegravele ecirctre une vraie creacuteation Comme lrsquoeacutecrit encore Simmel

196

ldquoLa conservation de lrsquoamour drsquoautrui est sa reconquecircte continue (Souligneacute par nous) et la

conservation de lrsquoamour qursquoon a en soi une recreacuteation tout aussi continue de celui-cirdquo

Quand lrsquohomme est incapable drsquoamour quand il nrsquoest preacuteoccupeacute que de soi il devient

ldquomaladerdquo car il se recroqueville sur lui-mecircme et lui-mecircme crsquoest vraiment peu Il va se

centrer sur son plaisir immeacutediat sur la reacutealisation de son fantasme de toute-puissance

(ecirctre aimeacute deacutesireacute sans rien donner en eacutechange) mais comme agrave chaque moment il veut

renouveler son plaisir il va finir par se trouver insatisfait Cette tendance agrave lrsquoeacutegoiumlsme est

renforceacutee par la socieacuteteacute libeacuterale dans laquelle nous vivons Au lieu de comprendre que

la vraie liberteacute srsquoeacuteprouve dans lrsquoeacutepreuve le libeacuteralisme (principalement eacuteconomique

mais crsquoest celui qui preacutedomine dans notre monde) ne va insister que sur le principe

de plaisir que sur la jouissance eacutegoiumlste que sur la multiplication des rencontres Or

on ne le sait que trop qursquoil srsquoagisse de Don Juan ou de Casanova ils sont condamneacutes

agrave lrsquoinsatisfaction car ce qursquoils obtiennent nrsquoest que comme le disait avec justesse Sade

ldquofort loin de ce qursquoils avaient ardemment envieacuterdquo Le deacutesir va donc rebondir drsquoobjet en

objet la quecircte sera infinie et toujours deacutecevante De plus et la figure de Sade ne se pro-

file pas pour rien la volonteacute de prolifeacuteration des affects signifie que lrsquohomme est entreacute

deacutefinitivement dans le monde de la production et de la consommation des ldquoustensilesrdquo

(Enriquez 1991) Il a cru ecirctre libre il est au contraire totalement devenu lrsquohomme

producteur consommateur Il lui faudra des plaisirs toujours renouveleacutes des nouveaux

partenaires de nouvelles maniegraveres de ldquofaire lrsquoamourrdquo (fort mauvaise expression dans ce

cas preacutecis) Il voudra ressentir des sensations originales ecirctre agiteacute drsquoeacutemotions inouiumles

ou agrave lrsquoinverse (mais ce nrsquoest que le revers de la mecircme piegravece) ecirctre lrsquoorganisateur et le

metteur en scegravene de ses volupteacutes mais sans ldquoecirctre toucheacute rsquo sans ldquoressentir la moindre

eacutemotionrdquo (Sade) Drsquoougrave la possibiliteacute comme le deacutecrit Sade dans son œuvre drsquoinstru-

mentaliser totalement lrsquoautre de le situer comme un objet temporaire de jouissance

jetable et tuable au besoin (comme dans ce film ougrave la femme trouve lrsquoacmeacute de sa satis-

faction en lardant son amant de coups de couteau) Lrsquoecirctre humain se conduit alors de

faccedilon totalement aberrante mortifegravere pathologique Srsquoil ne va pas jusque lagrave il trouvera

des compensations dans le drogues les plus diverses et les addictions les plus affirmeacutees

Il sera devenu alors vraiment malade et la socieacuteteacute avec lui quand elle ne lrsquoa pas preacuteceacutedeacute

dans cette voie Il ses sera transformeacute sans le savoir en un des personnages sadiens Le

monde du capitalisme libeacuteral est en train drsquoecirctre dans la reacutealiteacute le monde recircveacute (et simple-

ment recircveacute) par le marquis de Sade celui de la perversion polymorphe qui aura quitteacute le

stade de lrsquoenfance pour caracteacuteriser celui de lrsquounivers adulte

197Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

Lerocirclejoueacuteparlrsquoamourdanslaconstitutiondeslienssociaux

a) Le narcissisme des petites diffeacuterences

On se souvient que Freud deacutesigne ainsi un ldquonarcissisme groupalrdquo porteacute agrave lrsquoincandes-

cence Pour qursquoun tel narcissisme puisse se deacutevelopper il est neacutecessaire que la libido lie

les ecirctres humains profondeacutement les uns aux autres ainsi qursquoagrave leur chef quand ils ont

mis agrave la place de leur ideacuteal du moi lrsquoobjet incarneacute dans le chef

Comme Freud lrsquoa montreacute cet ldquoamourrdquo est neacutecessaire pour la creacuteation et la coheacutesion

du groupe Il srsquoagit rarement drsquoun attirance sexuelle directe elle sera plutocirct inhibeacutee

deacutesexualiseacutee sublimeacutee Elle sera plus de type homosexuel ou dans certains cas sans

reacutefeacuterence agrave la sexualiteacute chacun des membres du groupe eacutetant semblable les uns aux

autres uniformes conformes

Le groupe ira vers lrsquohomogeacuteneacuteisation parfaite vers la ldquomassificationrdquo Or que nous dit

notre socieacuteteacute de capitalisme libeacuteral sinon que si lrsquoindividu est libre il est libre drsquoecirctre

comme les autres Lrsquoindividualisation deacutebouche sur la massification Seule lrsquoindividua-

tion diffeacuterencie les ecirctres Au contraire pour ecirctre un individu ldquoindividualiseacuterdquo il est in-

dispensable de rechercher les mecircmes plaisirs que les autres ceci drsquoautant plus quand

il fait parti drsquoun groupe particuliegraverement coheacutesif et se moquant des autres Lrsquoidentiteacute

individuelle tend agrave se fondre dans une identiteacute collective Or comme nous preacutevient G

Devereux (1973) ldquoSi nous ne sommes rien que des Atheacuteniens ou des Spartiates des

capitalistes ou des proleacutetaires (et nous pouvons ajouter des Franccedilais ou des Allemands

des partisans du Hard Rock ou de la musique de Wagner) nous ne somme bien precircts de

nrsquoecirctre rien du tout et donc de ne pas ecirctre du tout (souligneacute par lrsquoauteur) et il ajoute ldquolrsquoacte

de formuler et drsquoassumer une identiteacute massive et dominanterdquo - et cela quelque soit cette

identiteacute ndash constitue le premier pas agrave la renonciation ldquodeacutefinitiverdquo agrave lrsquoidentiteacute ldquoreacuteellerdquo

Cet amour (qui en meacuteriteacute guegravere son nom qui est quand mecircme de lrsquoattachement at-

tachement alieacuteneacute srsquoil en est) est particuliegraverement deacuteveloppeacute dans nos socieacuteteacutes Nous

nrsquoavons qursquoagrave constater la prolifeacuteration des confreacuteries des sectes des groupes drsquoappar-

tenance de toutes sortes qui tendent tous agrave combler lrsquoinsatisfaction des individus peu

rassureacutes sur eux-mecircmes et qui puisent dans l lsquoamour mutuel et le rejet le meacutepris des

autres (qui servent de surfaces de projection agrave tout lrsquoignoble lrsquoabject la souillure qui

198

peuvent exister dans leur propre inteacuterioriteacute) un semblant de soliditeacute capable de dispa-

raicirctre lors de tout choc violent

Ainsi ce ldquofaux amourrdquo (cette connivence cette collusion cette alieacutenation) est-il particu-

liegraverement priseacute par la culture libeacuterale qui en faisant semblant drsquoencenser les individus

les transforme en une ldquomasse stagnanterdquo (Canetti 1960)

b) Le repli sur soi

Nous envisageons ici certaines conseacutequences du narcissisme agrave son apogeacutee Lorsque

lrsquoindividu nrsquoobtient pas ce qursquoil deacutesire ne peut assouvir ses besoins il rendra respon-

sable la socieacuteteacute de cette limitation Notre individu triomphant se transforme en victime

de la socieacuteteacute qui ne peut eacutemettre qursquoun son plaintif quand il nrsquoest pas pris de rage du

fait de cette situation et quand il ne demande pas agrave hauts cris des reacuteparations pour le

preacutejudice subi Certes notre culture libeacuterale engendre de veacuteritables victimes comme

nous lrsquoavons deacutejagrave noteacute Mais en nous faisant croire que lrsquoindividu peut ecirctre un roi et doit

pouvoir satisfaire lrsquoensemble de ses deacutesirs (alors que Freud nous avait fait bien com-

prendre que la civilisation se nourrissait du renoncement agrave la satisfaction immeacutediate

drsquoun tregraves grand nombre de deacutesirs) elle deacuteveloppe une tendance agrave la victimisation qui

offre parfois des cocircteacutes comiques (ainsi cet individu tombeacute dans lrsquoescalier de sa maison

et qui attaque lrsquoarchitecte et lrsquoentrepreneur afin drsquoobtenir reacuteparation pour un tel dom-

mage) Lrsquohomme qui nrsquoaime pas les autres se met agrave avoir peur drsquoautrui agrave craindre pour

sa vie son inteacutegriteacute et se preacutepare agrave se deacutefendre avant mecircme qursquoun danger le menace Il

est comme ces ameacutericains deacutenonceacutes par M Moore dans son film Bowling for Columbine

qui cheacuterissent leurs armes pour preacuteserver leur liberteacute et qui dans certains cas abattent

ceux qui pourraient les mettre en difficulteacute ou encore comme ces enfants eacutevoqueacutes

eacutegalement par M Moore qui tuent leurs camarades drsquoeacutecole pour des raisons difficiles agrave

deacutemecircler mais ougrave la peur la jalousie lrsquoenvie et la haine de soi entrent certainement en

ligne de compte

Le repli sur soi et sur ses plaisirs peut avoir aussi pour conseacutequence un deacutetachement

rapide des personnes auxquelles on eacutetait quand mecircme relativement attacheacute Ainsi un

mari perdant sa femme est pousseacute par son entourage non agrave entreprendre un travail de

deuil mais le plus rapidement possible agrave combler le vide eacuteprouveacute en trouvant une nou-

velle compagne qursquoil eacutepousera ou avec laquelle il aura une liaison temporaire (drsquoautres

199Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

viendront car comme le dit le langage populaire une de perdue dix de retrouveacutees)

Nous nous apercevons ainsi que les individus obseacutedeacutes par le deacutesir de pleacutenitude nrsquoar-

rivent plus agrave supporter le moindre manque agrave endurer la moindre fecirclure et ne pensent

qursquoagrave une chose oublier le plus vite ce qui pourrait les importuner ou leur faire subir

des blessures psychiques Ainsi lrsquoamour de soi peut aboutir agrave la plainte agrave la peur au

meurtre physique ou agrave lrsquooubli Il dissout dans toutes les circonstances progressive-

ment les liens sociaux

c) Lrsquoamour comme formation ldquodrsquoentiteacutes toujours plus grandesrdquo (Freud 1930)

Freud a insisteacute sur le rocircle drsquoEros pour creacuteer chaque jour des liaisons nouvelles avec des

ecirctres diffeacuterents et de plus en plus eacuteloigneacutes du cercle familial Eros oeuvrerait comme

la libido (avec laquelle il ne faut pas pourtant le confondre car la libido turbulente est

plus du cocircteacute de la deacuteliaison que de la liaison est plus une eacutenergie libre qursquoun eacutenergie

lieacutee) pour nous rapprocher des autres cette fois-ci sous le mode de lrsquoamour sublimeacute

donc de lrsquoamitieacute amoureuse de la fraterniteacute de la camaraderie de la convivialiteacute Ne pas

aimer est au contraire se mettre sous lrsquoeacutegide de Thanatos de la pulsion de mort dans

son aspect allo-destructif Or une socieacuteteacute drsquoindividus ougrave chacun est mis en concurrence

eacuteconomique ou en compeacutetition politique en eacutemulation constante pour les honneurs

non seulement nous eacuteloigne des autres mais nous les rend souvent insupportables Si

lrsquoindividu fidegravele agrave lrsquoinjonction de la socieacuteteacute libeacuterale veut faire partie des winners et non

des loosers il devra se transformer constamment en ce que nous avons nommeacute il y a

deacutejagrave quinze ans en ldquotueur coolrdquo Il en srsquoagit pas (et encore ) du tuer reacuteellement autrui

car il pourra dans drsquoautres circonstances ecirctre utile devenir un partenaire mais seule-

ment lrsquoeacuteliminer dans la course agrave la reacuteussite comme doit le faire tout bon sportif (on sait

bien agrave quel point la reacutefeacuterence au sport est devenue centrale dans nos socieacuteteacutes libeacuterales)

Aimer lrsquoautre (ou mecircme simplement entretenir avec lui des relations amicales tendres

chaleureuses) risquerait de nous mettre agrave sa merci alors que nous deacutesirons en eacutetant le

premier subjuguer autrui le dominer le prendre aux recircts de nos propres deacutesirs En re-

fusant la liaison lrsquohomme contribue sans en avoir une conscience nette au deacutelitement

du lien social Lrsquohomme nrsquoenvisagera plus lrsquoautre qursquoagrave lrsquointeacuterieur de ldquostrateacutegies relation-

nellesrdquo qursquoil aura mis au point On se rend compte alors que cet homme nrsquoest que le

200

serviteur de la culture strateacutegique seule culture pensable dans une socieacuteteacute libeacuterale qui

nrsquoenvisage lrsquoautre que comme objet agrave seacuteduire agrave manipuler ou agrave bannir

LerocirclecentraldelrsquoamourdanslaKulturarbeit

Le travail de la culture crsquoest-agrave-dire la possibiliteacute eacutevoqueacutee par Freud en particulier dans

Lrsquohomme Moiumlse et la religion monotheacuteiste (1939) que celle-ci permette de faire des ldquopro-

gregraves dans la spiritualiteacute rsquo drsquoapporter sa pierre agrave lrsquoeacutemancipation humaine et agrave la recon-

naissance mutuelle est directement deacutependant de lrsquoamour qui peut se nouer entre

les ecirctres Freud disait ldquotout ce qui renforce les liens affectifs eacuteloigne de la guerrerdquo

Effectivement les liens affectifs font reculer les deacutesirs de destruction et favorisent lrsquoeacutelan

creacuteateur œuvres litteacuteraires arts plastiques musique et surtout affinement des relations

des hommes entre eux qui deviennent plus affables plus courtois plus enclins agrave srsquoai-

der mutuellement Sans sentiment positif sans compreacutehension drsquoautrui sans inteacuterecirct

pour lrsquoautre la culture ne peut au contraire que peacutericliter et les pulsions retrouver leur

force archaiumlque et leurs tendances destructrices Certains psychanalystes en particulier

N Zaltzman (2002) dans son ouvrage La gueacuterison psychanalytique nous montre qursquoune

psychanalyse ldquoreacuteussierdquo ne signifie pas que lrsquohomme se sente plus agrave lrsquoaise dans sa peau

ou qursquoil soit plus en mesure de reacutesoudre ses problegravemes mais qursquoil prenne conscience

de son appartenance agrave ce que R Antelme appelait ldquoLrsquoespegravece humainerdquo Crsquoest lorsque

lrsquoindividu se conccediloit comme rattacheacute au monde ldquohomme parmi les hommesrdquo (Sartre)

comme pouvant entrer en dialogue avec toutes les ethnies toutes les religions toutes

les nations et pouvant partager la souffrance des autres (Tocqueville avait drsquoailleurs bien

mis en eacutevidence le rocircle central de la sympathie envers les autres pour fonder dura-

blement la deacutemocratie) qursquoil devient veacuteritablement un homme de la culture et qursquoil

contribue ainsi agrave son ldquotravailrdquo Dans une socieacuteteacute par contre du chacun pour soi du

chacun contre lrsquoautre lrsquohomme se deacute-culture il se deacute-civilise (comme le notait N Elias

1989) et il nrsquoest plus que le siegravege de ses passions eacutegoiumlstes Il nrsquoest pas neacutecessaire drsquoaller

plus avant Lrsquoamour en tant que la rencontre de deux ecirctres de plusieurs ecirctres drsquoune

multitude drsquoecirctres nouant des rapports de reacuteciprociteacute de longue dureacutee et marqueacutes par

la symeacutetrie est loin de caracteacuteriser notre culture libeacuterale Dans celle-ci comme lrsquoeacutecrit

N Luhmann (1982) lrsquoamour est devenu un problegraveme lrsquoincommunicabiliteacute devenue

la regravegle la performance (rester le plus jeune le plus beau le plus viril ou pour une

femme la plus attirante) obligatoire Comme le dit eacutegalement A Giddens (1992) ldquoon

ne reste ensemble que si cette relation donne satisfaction ldquoon ne srsquoengage que pour ce

201Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

qursquoon peut espeacuterer tirer de cet engagementrdquo ou encore comme lrsquoeacutecrit Z Bauman (2003)

ldquolrsquoamour est devenu liquiderdquo et il peut srsquoeacutecouler rapidement Il nrsquoa plus drsquointeacuterecirct que srsquoil

aide agrave la reacutealisation de soi Si au contraire il amegravene des doutes suscite des remises en

cause srsquoil occasionne des brucirclures il ne peut qursquoecirctre rejeteacute

Aussi les liaisons (que les individus soient marieacutes leacutegalement ou non) srsquoeffilochent rapi-

dement les divorces se multiplient les rencontres eacutepheacutemegraveres preacutedominent Il faut sa-

tisfaire tous ses deacutesirs et cela continuellement Il ne doit pas y avoir de repos de moments

difficiles de problegravemes agrave reacutesoudre ldquoJe trsquoaime moi non plusrdquo nrsquoest plus le titre drsquoune

chanson Elle constitue lrsquoaffirmation prototypique drsquoune socieacuteteacute ougrave la place de lrsquoautre

est celle drsquoun pourvoyeur de satisfactions immeacutediates et de satisfactions agrave long terme

Mais comme jouir constamment est de lrsquoordre de lrsquoimpossible comme lrsquoautre ne joue

pas forceacutement ce jeu lagrave car il a lui aussi son jeu agrave mener comme la maladie guette

lrsquohomme des socieacuteteacutes libeacuterales devient en reacutealiteacute un ecirctre de plus en plus insatisfait qui

ne comprend pas qursquoautrui ne se comporte pas comme un bon ordinateur qursquoil suffit

de pianoter pour obtenir la reacuteponse deacutesireacutee Alors le malaise srsquoinstalle

Nos socieacuteteacutes ne sont pas malades seulement parce qursquoelles nrsquoarrivent pas agrave reacutesoudre

le problegraveme du chocircmage parce qursquoelles sont de plus en plus ineacutegalitaires qursquoelles

laissent des pans entiers de population dans le deacutenuement le plus complet agrave tel point

que certaines personnes ne vivent plus mais survivent seulement elles sont malades

du manque drsquoamour

Notre culture libeacuterale a oublieacute que lrsquoamour lrsquoamitieacute le respect la deacutefeacuterence la consideacute-

ration pour lrsquoautre eacutetait le ciment indispensable agrave leur consistance et agrave leur permanence

Elle a cru qursquoen instaurant la ldquoguerre de tous contre tousrdquo elle permettrait agrave chacun de

se deacutepasser de se reacutealiser de jouir sans entrave

La conseacutequence de cet eacutetat de fait nous le constatons chaque jour ce nrsquoest pas la crise

(il est toujours possible de sortir drsquoune crise et de la crise ndash comme le terme lrsquoindique- a

souvent des aspects beacuteneacutefiques en tant qursquoelle ouvre des portes crsquoest le malaise diffus

constant eacutetouffant impalpable vrai ldquosmogrdquo psychologique qui environne chacun drsquoun

brouillard eacutepais Ce malaise que Freud avait repeacutereacute et que tout le monde avait espeacutereacute

temporaire persiste et devient de plus en plus dense Lrsquohomme moderne ne sait quoi

202

en faire Il peste contre la socieacuteteacute les autres lui-mecircme Il ne voit pas qursquoil en est partie

prenante et qursquoil lrsquoentretient chaque jour Ethellippourtant certains signes certes discrets

nous rappellent que le pire nrsquoest pas toujours sucircr Les hommes ne se reacutesignent pas tous

agrave ce monde sans amour sans passion reacuteciproque et non alieacutenante sans reconnaissance

mutuelle En effet beaucoup de personnes tiennent toujours agrave se marier et agrave avoir des

enfants (enfants qui comme le montrait Hegel constitue le deacutepassement drsquoune rela-

tion duelle qui pourrait devenir mortifegravere) les couples homosexuels veulent avoir des

enfants (gracircce agrave des megraveres porteuses) ou en adopter ils deacutesirent de plus en plus sou-

vent se marier ou entretenir des relations durables Les femmes ceacutelibataires deacutesirent

elles aussi se prolonger dans leurs enfants

Sur un tout autre plan lrsquoindividu atomiseacute commence agrave retrouver le goucirct du collectif

des groupes chaleureux (certes souvent il se trompe et adhegravere agrave des sectes qui lrsquoaliegravenent

Cependant malgreacute tout en choisissant cette voie ce qursquoil veut signifier crsquoest lrsquoimpos-

sibiliteacute de vivre seul coupeacute de ses semblables et ayant froid au cœur) des groupes

politiques qui se situent en dehors des partis politiques ou des syndicats traditionnels

Il retrouve aussi le goucirct de la politique crsquoest-agrave-dire lrsquointeacuterecirct pour la vie de la citeacute et donc

pour les humains qui la composent il srsquoinvestit dans des mouvements sociaux plus ou

moins novateurs et en tout eacutetat de cause non traditionnels (comme les mouvements

altermondialistes) Il srsquointeacuteresse agrave la construction europeacuteenne mecircme srsquoil combat les

formes actuelles de celle-ci

Eros nrsquoa dons pas dit son dernier mot Et vraisemblablement il ne le fera jamais car un

monde ougrave chacun est deacutefinitivement seacutepareacute des autres ne deviendrait qursquoune ldquoterre

deacutevasteacuteerdquo ougrave regravegnerait un eacuteternel hiver Ceci eacutetant Eros parle encore agrave voix basse et on

entend beaucoup mieux les clameurs de Thanatos Il nrsquoempecircche que lrsquoavenir est loin

drsquoecirctre joueacute Nous savons depuis longtemps que lorsque les socieacuteteacutes eacutevoluent dans un

certain sens des reacuteticences et des reacutesistances finissent par se faire jour Comme le

disait Houmllderlin ldquoquand croissent les peacuterils croicirct aussi ce qui sauverdquo Peut ecirctre agrave un

moment non preacutevisible un tregraves grand nombre drsquohommes pourront reacutepeacuteter agrave nouveau

les vers fameux de La Fontaine ldquoAmants heureux amants voulez-vous voyager que

ce soit aux rives prochaines soyez vous lrsquoun agrave lrsquoautre un monde toujours beau Tou-

jours divers toujours nouveau Une telle occurrence est peu probable Il ne srsquoagit pas

drsquoabandonner tout espoir de surprise car comme lrsquoeacutecrivait un autre poegravete Reneacute Char

ldquoA chaque effondrement des preuves le poegravete reacutepond par un salve drsquoavenirrdquo

203Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees

Bibliographie

Bauman Z (2003) Lrsquoamour liquide Le Rouergue

Canetti E (1960) Masse et puissance Paris Gallimard

Devereux G (1973) Essais drsquoethnopsychiatrie geacuteneacuterale Paris Gallimard

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Simmel G (1921) La philosophie de lrsquoamour Rivages

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204

Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

LuizAugustoMonneratCeles

Freudeapoacutes-Freud

O movimento psicanaliacutetico como se sabe natildeo foi uniforme desde o iniacutecio e nem assim

permaneceu apesar dos esforccedilos de Freud e de certo grupo encabeccedilado por Ernest Jo-

nes para protegecirc-la de desvios de fundamento As consequecircncias mais imediatas (ainda

em vida de Freud) foram a ldquoexpulsatildeordquo e a dissidecircncia dos que se ldquodesviaramrdquo O caso de

Jung e Adler foram emblemaacuteticos Saacutendor Ferenczi sofreu reprimendas de Freud pelo

motivo de mudanccedilas introduzidas na teacutecnica de psicanaacutelise Escapou da dissidecircncia por

sua forte amizade pessoal com o mestre e por sua morte prematura De qualquer modo

suas contribuiccedilotildees soacute foram tardiamente incorporadas agrave psicanaacutelise

Apoacutes o periacuteodo de dissensotildees o movimento psicanaliacutetico passou por grande periacuteodo

de diferenciaccedilotildees de segmentaccedilotildees que muitas vezes terminaram por formar escolas

de psicanaacutelise A iniciar-se pelas divergecircncias entre os kleinianos e os freudianos na

205Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

Sociedade Britacircnica de Psicanaacutelise mediados em seguida por um terceiro grupo enca-

beccedilado por Winnicott A psicanaacutelise fez-se viver e prosperar com as diferenccedilas embora

as segmentaccedilotildees do movimentos natildeo conseguissem estabelecer fundamentos teoacutericos

e teacutecnicos comuns que pudessem eventualmente constituir sua siacutentese

Iniciadas em meados do seacuteculo XX as divergecircncias que natildeo foram expurgadas do mo-

vimento psicanaliacutetico introduziram mudanccedilas mais ou menos radicais em relaccedilatildeo agrave psi-

canaacutelise freudiana chamada padratildeo claacutessica ou tiacutepica Encontram-se presentes ainda

hoje conforme perspectivas adotadas para sua observaccedilatildeo malgrado os esforccedilos empre-

endido nos uacuteltimos 30 anos aproximadamente por parte de importantes psicanalistas

que buscam certa unidade de fundamentos

Antes poreacutem de discutir tais esforccedilos e suas direccedilotildees ou linhas de desenvolvimentos

que caracterizam a psicanaacutelise contemporacircnea exploraremos resumidamente segun-

do dois fundamentos a origem das divergecircncias que tanto fragmentaram a psicanaacutelise

levando ateacute mesmo ao limites de muitos de os segmentos natildeo reconhecerem outros

como de mesma iacutendole psicanaliacutetica Essa mesma fragmentaccedilatildeo constituiu o problema

para a psicanaacutelise contemporacircnea

IDivergecircnciasfundamentaisnointeriordapsicanaacutelise

Esquematicamente as divergecircncias na psicanaacutelise aconteceram de acordo com o privi-

leacutegio dado a um entre dois eixos atenccedilatildeo ao intrapsiacutequico ou atenccedilatildeo ao interpsiacutequico

(ou intersubjetivo) implicando entre as escolas que seguiram este ou aquele aspecto

diferenccedilas de fundamentos e variaccedilotildees teacutecnicas

1) Diferenccedilas de fundamentos

11) Caracterizaccedilatildeo esquemaacutetica das posiccedilotildees intrapsiacutequicas

Normalmente se identifica este fundamento com o freudiano o da psicanaacutelise padratildeo

Os fundamentos das perspectivas psicanaliacuteticas intrapsiacutequicas podem ser resumidos na

adoccedilatildeo prioritaacuteria de dois conceitos pulsatildeo e inconsciente

206

a) A adoccedilatildeo da pulsatildeo como uma caracteriacutestica congecircnita e permanente uma forccedila

quase selvagem que exige trabalho psiacutequico para a sua dominaccedilatildeo e eliminaccedilatildeo trouxe

ecircnfase agrave noccedilatildeo de conflitos Inicialmente o conflito que determina o psiquismo e sua

conformaccedilatildeo se estabelece entre a pulsatildeo sexual vs pulsatildeo de autoconservaccedilatildeo A pulsatildeo

sexual cuja definiccedilatildeo maacutexima se encontra no conceito de sexualidade infantil guia-se

pelo princiacutepio do prazer desprazer sem reconhecimento da realidade portanto sub-

metida a processos primaacuterios e precisa ser domesticada em favor da vida da autocon-

servaccedilatildeo A funccedilatildeo de autoconservaccedilatildeo eacute dada ao eu como uma instacircncia quase natural

num primeiro momento ndash a funccedilatildeo quase bioloacutegica de adaptaccedilatildeo agrave realidade desse ldquoor-

ganismo enlouquecidordquo pelas pulsotildees em busca de uma satisfaccedilatildeo condizente Prazer

sexual vs conservaccedilatildeo da vida sexualidade vs vida seria o entendimento mais basal do

conflito da psicanaacutelise votada ao intrapsiacutequico

Posteriormente os desenvolvimentos da psicanaacutelise os quais natildeo cabem aqui serem

esmiuccedilados25 conduziram a outras formas do entendimento do conflito pulsional sen-

do o mais caracteriacutestico a oposiccedilatildeo que se estabeleceu a partir de 1920 entre a pulsatildeo

de vida e a pulsatildeo de morte A pulsatildeo de vida conglomerou as funccedilotildees libidinais e da

autoconservaccedilatildeo embora se mantenha a ideia de que a pulsatildeo sexual seja guiada pelo

princiacutepio do esgotamento que a aproxima do princiacutepio da morte da ineacutercia do zero de

excitaccedilatildeo No entanto a pulsatildeo de vida privilegia o aspecto de ligamento da libido ou

seja Eros que aproxima e manteacutem unido os grupos Conduz tais grupos e agrupamen-

tos cada vez mais abrangentes em favor da vida e em certo sentido da vida prazerosa

dentro dos limites impostos pela realidade A pulsatildeo de vida ou Eros tambeacutem eacute uma

pulsatildeo culturada isto eacute submetida agraves exigecircncias e agraves perspectivas de satisfaccedilatildeo ofereci-

das pelo ambiente social e cultural Eros representa a integraccedilatildeo entre pulsatildeo e cultura

como o sugere Guimaratildees (2010 e 2011)

A pulsatildeo de morte ao contraacuterio parece natildeo manter afinidade com as formaccedilotildees cul-

turais exceto talvez que os grupamentos de humanos possam servir como ldquoobjetosrdquo

de sua satisfaccedilatildeo quando entatildeo ela passa a ser entendida como pulsatildeo de destrutivida-

de Destroacutei elos em busca da fragmentaccedilatildeo cada vez maior com vistas a cessaccedilatildeo da

25 A importacircncia e a radicalidade de transformaccedilatildeo da psicanaacutelise a partir desses desenvolvimentos pode ser muito apropriadamente acompanhada em Green (2005) e seu alcance e efeito de ruptura particularmente Parte II Cap 1 p 141-158

207Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

vida Ela se faz a responsaacutevel pelo mal-estar estruturalmente caracteriacutestico da condiccedilatildeo

humana em sua vida civilizada (lembrando que natildeo haacute outra certamente) A pulsatildeo

de morte tambeacutem nomeia um princiacutepio o princiacutepio pulsional por excelecircncia como o

observa Freud (19201976) O princiacutepio pulsional do zero da busca de esgotamento

de qualquer excitaccedilatildeo Como princiacutepio pulsional a pulsatildeo de morte natildeo eacute apreendida

por assim dizer como um ente mas como o que ldquoanimardquo toda pulsatildeo em busca de sua

satisfaccedilatildeo Um dos muitos paradoxos da psicanaacutelise princiacutepio de morte que anima Tal

princiacutepio do esgotamento eacute impedido em seu fim pela vida encadeando desta maneira

a satisfaccedilatildeo verdadeiramente eroacutetica (i eacute de Eros Eacute seu trabalho seu processo) As-

sim numa abordagem ligeira podemos delimitar duas perspectivas de entendimento

da pulsatildeo de morte e seu conflito com Eros Em sua compreensatildeo mais substantiva

distinguem-se duas pulsotildees que se confrontam e se esforccedilam em direccedilatildeo agraves suas satis-

faccedilotildees caracteriacutesticas a de morte como destrutividade e a de vida como buscas vinculan-

tes Elas se combinam e se apresentam na vida cotidiana nos meandros conflituosos de

satisfaccedilotildees e limites de satisfaccedilotildees a constituir a condiccedilatildeo estrutural do mal-estar Em

sua condiccedilatildeo de causa primaacuteria do trabalho psiacutequico em busca da satisfaccedilatildeo ela estaacute

aleacutem do princiacutepio do prazer e guia (a contragosto do psiquismo constituiacutedo) o processo

de satisfaccedilatildeo de toda pulsatildeo mesmo que para esse fim voltas rodeios desvios e repeti-

ccedilotildees intermedeiem seu esgotamento

O modelo pulsional eacute basicamente neuroacutetico em sua origem com ecircnfase nos processos

de recalcamento sobre a sexualidade infantil o que tem por consequecircncia uma visada

da psicanaacutelise sobre os aspectos infantis das neuroses Inclui-se posteriormente uma

perspectiva traumaacutetica das proacuteprias pulsotildees quando entatildeo o acento teoacuterico e cliacutenico

recai sobre a compulsatildeo agrave repeticcedilatildeo e seu aspecto destrutivo mas principalmente auto-

destrutivo

b) O segundo conceito que baliza e guia as abordagens intrapsiacutequicas eacute o inconsciente

A ideia eacute a de que o psiquismo se constitui primeiramente originariamente e predomi-

nantemente inconsciente Trata-se do inconsciente sistemaacutetico processual O incons-

ciente compreendido inicialmente como trabalho sendo o seu modelo o trabalho do so-

nho (como tambeacutem os trabalhos de formaccedilatildeo dos sintomas da inibiccedilatildeo e da anguacutestia)

O psiquismo eacute representacional composto por representaccedilotildees ideativas (representaccedilatildeo

de coisa representaccedilatildeo de palavra e representaccedilatildeo de objeto) e representaccedilatildeo do afeto mdash

de uma maneira particular a proacutepria pulsatildeo eacute uma representaccedilatildeo representaccedilatildeo da exi-

208

gecircncia de trabalho imposta ao psiquismo pelas excitaccedilotildees corporais As representaccedilotildees

de coisa caracterizam o inconsciente Submetido ao processo primaacuterio a distribuiccedilatildeo

da libido no inconsciente eacute por assim dizer livre Por isso paracircmetros como a racionali-

dade o tempo e a percepccedilatildeo da realidade natildeo estatildeo em consideraccedilatildeo no processamento

inconsciente que eacute ldquoassociativordquo (Roussillon 2012) Aliaacutes para ser preciso a associati-

vidade eacute caracteriacutestica de todo o psiquismo determinado que estaacute pelo inconsciente

Representaccedilotildees de palavra e representaccedilotildees de objeto completam a apreensatildeo do psi-

quismo As associaccedilotildees entre as representaccedilotildees de coisa e as representaccedilotildees de palavras

constituiratildeo secundariamente as representaccedilotildees de objeto O objeto eacute originariamente o

objeto da pulsatildeo apreendido secundariamente como objeto do desejo como os objetos

das interaccedilotildees dos viacutenculos de Eros e mesmo como objetos culturais (na sublimaccedilatildeo

por exemplo) Como objeto da pulsatildeo eacute em sua origem objeto auto-eroacutetico e parcial e o

trabalho em direccedilatildeo agrave apreensatildeo de um objeto total se faz necessaacuterio com o auxiacutelio do

complexo ediacutepico e da castraccedilatildeo e entrada por assim dizer no acircmbito dos processos

secundaacuterios que nunca seraacute completo e sinteticamente estruturado Portanto forma-

ccedilotildees inconscientes estaratildeo sempre presentes e a realidade se constitui como realidade

psiacutequica

Sugerimos entender o que Freud designa de realidade psiacutequica como proacuteximo ao pro-

cesso terciaacuterio proposto por Green (1979) Pois ela faz a mediaccedilatildeo entre o inconsciente

e o preacute-conscienteconsciente e entre o psiquismo com suas fantasias de desejo e a

realidade objetiva ou histoacuterica (como a ela se refere Freud) A vida eacute particularmente

entendida permitam-nos a liberdade de expressatildeo como em ldquosonhordquo Assim ao menos

eacute o que pode ser apreendido da vivecircncia neuroacutetica

O modelo neuroacutetico do conflito entre as fantasias de desejo e as forccedilas do recalque seraacute

ampliado para o modelo paranoico e melancoacutelico (Celes 2010) Cada um desses dois

se diferencia e tem por base os desenvolvimentos iniciados por Freud a partir de 1920

e seguido pelos freudianos apoacutes-Freud Entatildeo uma metapsicologia para as psicoses

inicia-se na psicanaacutelise de maneira mais sistemaacutetica tendo por centro as afecccedilotildees do

eu e com elas as consideraccedilotildees sobre a perda da realidade As noccedilotildees de cisotildees do eu

incluindo sua cisatildeo estruturante entre eu e supereu (e os ideais do eu) mas tambeacutem a

cisatildeo por consequecircncia das proacuteprias defesas do eu adiantam-se em relaccedilatildeo aos confli-

tos neuroacuteticos entre recalcado e recalque embora este uacuteltimo padratildeo natildeo seja defini-

tivamente abandonado Convivem modelos distintos que se sobrepotildeem por vezes se

209Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

substituem mas natildeo se excluem no pensamento psicanaliacutetico intrapsiacutequico e mesmo

no freudiano

As fantasias e desejos encontram-se em foco na cliacutenica Trata-se aqui do modelo do

sonho em oposiccedilatildeo ao privileacutegio do modelo matildee-bebecirc adotado pela psicanaacutelise inter-

subjetiva tal como Green (2003) sugere distinguir os modelos psicanaliacuteticos dominan-

tes na segunda metade do seacuteculo passado No entanto o modelo do sonho de que fala

Green natildeo se limite aos achados da Interpretaccedilatildeo dos sonhos (1900a) e adjacecircncias

questatildeo que ao fim retomaremos Isto eacute natildeo se restringe ao periacuteodo do desenvolvimen-

to psicanaliacutetico freudiano que Kristeva (1996) caracteriza como otimismo com a lingua-

gem Sabemos que a chamada psicanaacutelise tiacutepica ou padratildeo rapidamente encontrou seus

limites e que os freudianos natildeo ignoraram seus problemas Natildeo eacute difiacutecil entender que

a chamada feita por Green para o retorno ao modelo do sonho diga mais respeito a natildeo

nos esquecermos apressadamente da riqueza do que ali se estabeleceu e desenvolveu

lanccedilando-se muito aleacutem da interpretaccedilatildeo dos sonhos dos atos falhos e dos chistes

Na perspectiva da psicanaacutelise intrapsiacutequica os processos psiacutequicos mais significativa-

mente considerados satildeo o recalque (precisamente o mecanismo responsaacutevel pela sepa-

raccedilatildeo do psiquismo entre consciente e inconsciente) a projeccedilatildeo e a identificaccedilatildeo (cujo

caraacuteter original eacute histeacuterico dizendo apressadamente)

12) Caracterizaccedilatildeo esquemaacutetica das posiccedilotildees interpsiacutequicas ou intersubjetivas

Satildeo perspectivas assumidamente apoacutes-Freud e buscam ampliar complementar e mes-

mo suplantar a psicanaacutelise freudiana a padratildeo ou tiacutepica estabelecendo fundamentos

distintos dos intrapsiacutequicos e modificando consequentemente secundo entendem sua

teacutecnica Psicanaacutelise modifica foi o nome que lhe deu Winnicott As perspectivas psica-

naliacuteticas interpsiacutequicas ou intersubjetivas privilegiam a compreensatildeo da constituiccedilatildeo

do psiquismo e de suas dificuldades nas relaccedilotildees com o mundo externo nos conflitos

de ldquointeressesrdquo entre o sujeito e o objeto ou o deacuteficit entre as necessidades e respos-

tas agraves necessidades proporcionadas pelos objetos O externo pode ser tomado como o

ambiente como tal (Winnicott) ou como os objetos de que o sujeito depende em seu

periacuteodo inicial (desamparado e dependente) de vida Duas noccedilotildees guiam a psicanaacutelise

que a partir daiacute se desenvolveu e tambeacutem se dispersou relaccedilotildees de objeto e inconsciente

compartilhado (sugerimos como expressatildeo provisoacuteria)

210

a) A importacircncia das relaccedilotildees de objeto para o entendimento da constituiccedilatildeo do psiquis-

mo e de suas dificuldades e patologias bem como para a apreensatildeo do sofrimentos dos

sujeitos baseia-se numa diferenccedila de posiccedilatildeo entre o sujeito desamparado e dependen-

te e o objeto (adulto) que dele se ocupa Desde Ferenczi com a proposiccedilatildeo da diferenccedila

entre as liacutenguas de ternura e sexual que se estabelece necessariamente mdash antropologi-

camente poderiacuteamos afirmar mdash entre a crianccedila e o adulto passando pela impossibili-

dade do atendimento sempre adequado das necessidades do ego de Fairbairn pela falha

do essencial asseguramento (holding) de Winnicott ou da contenccedilatildeo (containing) de

Bion ateacute a condiccedilatildeo da matildee morta de Green a dificuldade se estabelece entre sujeito x

objeto eu x outro self x natildeo-eu etc No entanto essas dificuldades das relaccedilotildees e das sa-

tisfaccedilotildees de necessidades natildeo se constituem primariamente como conflitos mas como

falhas na constituiccedilatildeo dos processos psiacutequicos ou dos limites do psiquismo O conflito

no seu sentido mais originaacuterio somente apareceraacute de modo secundaacuterio de forma de-

fensiva para obstruir as falhas primitivas das relaccedilotildees de objeto Podemos pensar no

falso self nos aparatos libidinais para a proteccedilatildeo da esquizoidia estrutural do Fairbairn

nas evacuaccedilotildees dos objetos maus internalizadoshellip

Teoricamente a atenccedilatildeo se volta para as relaccedilotildees primitivas em busca das condiccedilotildees

de constituiccedilatildeo do eu (self sujeito subjetividade etc) mas tambeacutem do psiquismo em

seus processos baacutesicos Questotildees de tal ordem satildeo consideradas primitivas anteriores

agraves consideraccedilotildees pulsionais e necessaacuterias para sua instalaccedilatildeo Os conflitos ediacutepico e de

castraccedilatildeo satildeo tomados como formaccedilotildees segundas baseadas que estriam na condiccedilatildeo

de miacutenima totalizaccedilatildeo do psiquismo Seja no sentido de sua adequada diferenciaccedilatildeo do

objeto seja em sua constituiccedilatildeo simboacutelica Em geral parte-se do pressuposto de que o

psiquismo natildeo eacute originariamente representacional cuja constituiccedilatildeo dependeraacute de ade-

quada simbolizaccedilatildeo Falhas no processo da simbolizaccedilatildeo proporcionadas pelos objetos

acarretariam estados de sofrimento natildeo-neuroacuteticos que requerem apropriada interven-

ccedilatildeo terapecircutica distinta da proporcionada pela psicanaacutelise padratildeo

Deve-se considerar neste aspecto que a estrutura psiacutequica eacute fundamentalmente egoica

(Fairbairn) ou se trata da constituiccedilatildeo de um self (Winnicott) um envelope por assim

dizer um continente para o psiquismo O outro e o objeto estabelecem as condiccedilotildees

de constituiccedilatildeo do eu e do self Nessa perspectiva amplamente falando de uma base

egoica do psiquismo as instacircncias psiacutequicas se borram Alguns autores como Green

ou Roussillon que pretendem manter viacutenculos com a psicanaacutelise freudiana veem na

211Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

segunda toacutepica freudiana onde o ego eacute ele mesmo (segundo a leitura que se faccedila) in-

consciente certa inspiraccedilatildeo para a indiferenciaccedilatildeo das instacircncias psiacutequicas No entanto

tal indiferenciaccedilatildeo seria ela mesma uma condiccedilatildeo primitiva mantida mais ou menos

grave em consequecircncia da adequada ou inadequada responsividade dos objetos Ainda

na linha do psiquismo egoico Figueiredo (2009a) mostra como os fragmentos natildeo sin-

tetizados dos objetos se depositam na forma de um supra-eu arcaico que a seguir seratildeo

evacuados nos objetos

b) O borratildeo por assim dizer das instacircncias psiacutequicas conduz agrave consideraccedilatildeo da possibi-

lidade de alheamento de partes do psiquismo A ideia do inconsciente compartilhado eacute

de que ele se passa entre os sujeitos envolvidos seja entre o sujeito e o objeto primaacuterio

seja entre os sujeitos da anaacutelise a dupla analiacutetica (as trocas transferenciais mdash contra-

transferenciais o terceiro analiacutetico de Ogden 1996 etc) Sugere tambeacutem a compreen-

satildeo da possibilidade da exterioridade das funccedilotildees psiacutequicas impedidas de se realizarem

no sujeito De modo geral desaparece a ideia de um inconsciente sistemaacutetico separado

do eu

O inconsciente quando considerado eacute um inconsciente egoico ele mesmo partes do

ego cindidas do ego central e recalcadas (Fairbairn 19521999) Ou o inconsciente per-

de seu sentido como instacircncia (compreensatildeo que se pode apreender da obra de Winni-

cott) Ou suas funccedilotildees mais elementares satildeo exercidas pelo objeto (kleinianos tardios

Bion Ogden etc) Tambeacutem o analista assume uma funccedilatildeo de instacircncia psiacutequica na

anaacutelise como a do superego complacente de Fairbairn e como os de desenvolvimentos

mais recentes como o mostra Figueiredo (2009a) A base da ideia da instacircncia psiacutequica

dada ao outro ou compartilhado com o objeto tambeacutem eacute tomada de Freud (1921c1976)

quando sugere que nas formaccedilotildees grupais com forte lideranccedila entregamos nossos ide-

ais de ego ao liacuteder justamente Tal posiccedilatildeo em psicanaacutelise se justifica na especificidade

dos casos atendidos psicoacuteticos e principalmente borderlines (esse enorme campo li-

miacutetrofe do qual afinal sabe-se tatildeo pouco)

Os processos psiacutequicos mais significativamente considerados satildeo a cisatildeo (muito aleacutem

do recalque que distingue o psiquismo em suas partes se trata de um processo que

incide sobre o eu dividindo-o em partes boas e maacutes) a identificaccedilatildeo projetiva (meca-

nismo responsaacutevel pela evacuaccedilatildeo das partes maacutes e cindidas do eu) e a capacidade de

elaboraccedilatildeo do objeto primaacuterio sua habilidade fantasiacutestica (a matildee suficientemente boa

212

de Winnicott mas tambeacutem o objeto interpretativo de alguns kleinianos e o estado de

recircverie de Bion) Nessas perspectivas a capacidade de constacircncia de asseguramento e

de elaboraccedilatildeo dos objetos primaacuterios satildeo os responsaacuteveis pela constituiccedilatildeo dos sujeitos e

pela integridade de suas subjetividades de seus psiquismos

2) Variaccedilotildees teacutecnicas

21) Caracterizaccedilatildeo esquemaacutetica da psicanaacutelise voltada para o intrapsiacutequico

Aplica-se plenamente a regra fundamental da associaccedilatildeo livre Supotildee um aparelho psiacute-

quico associativo representacional e se busca alcanccedilar as fantasias e desejos recalcados

A interpretaccedilatildeo do sonho constitui seu modelo teacutecnico modelo do sonho Embora esse

modelo natildeo se esgote no sonho ou nas praacuteticas de interpretaccedilatildeo dos atos falhos ou dos

chistes A anaacutelise trata da recordaccedilatildeo da repeticcedilatildeo e da elaboraccedilatildeo Eacute a anaacutelise do in-

consciente o que se pratica tanto se busca sua investigaccedilatildeo como se atende ao objetivo

terapecircutico Nesta perspectiva tratam-se no trabalho psicanaacutelise da inibiccedilatildeo do sintoma

e da anguacutestia

Mas tambeacutem ainda que em tal base se busca a anaacutelise do ego suas relaccedilotildees com o

objeto e tem-se a redistribuiccedilatildeo da libido como meta

A interpretaccedilatildeo eacute o meacutetodo caracteriacutestico Tal interpretaccedilatildeo natildeo significa uma herme-

necircutica simplesmente Ela supotildee a mobilizaccedilatildeo da pulsatildeo e a possibilidade de seu des-

locamento de seu escoamento pela via da palavra Visa-se a adequada simbolizaccedilatildeo me-

lhor dizendo a adequada representaccedilatildeo das experiecircncias sexuais infantis organizadas

inconscientemente em cenas em fantasias Como o sugere Freud (1905e1972) sua

meta teoacuterica eacute tornar o inconsciente consciente

A oposiccedilatildeo dos sujeitos agrave recordaccedilatildeo do recalcado conduz agrave compreensatildeo da psica-

naacutelise como trabalho de vencer resistecircncias Tal trabalho define a posiccedilatildeo do analista

privilegiando-se sua escuta O analista tem posiccedilatildeo fundamental na forma da escuta li-

vremente flutuante Escuta sem que se hierarquize o discurso do analisando Como seu

discurso eacute predominantemente narrativo e raramente se realiza explicitamente como

213Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

associativo a funccedilatildeo da escuta do analista eacute a de ouvir a associaccedilatildeo implicada na narrati-

va do analisando (como o sugere Green 1988) A posiccedilatildeo do analista eacute basicamente a do

silecircncio (silecircncio vivo de trabalho) e o da paciecircncia em deixar vir o que eacute inconsciente

Posiccedilatildeo de silecircncio que deve ser entendida em seu sentido metafoacuterico Trata-se do silecircn-

cio que deixe vir a fala do analisando e para que se a receba

A interpretaccedilatildeo tem o sentido da confrontaccedilatildeo (Figueiredo 2012a) A de sugerir senti-

dos distintos dos que se manifestam no discurso do analisando Confrontaccedilatildeo que natildeo

pode ser entendida como jogo de esperteza entre analista e analisando A confrontaccedilatildeo

supotildee o tempo adequado o momento em que seja possiacutevel ao analisando ouvir ele tam-

beacutem o que sua fala diz pela boca do analista e que ele mesmo o analisando natildeo ouviu

enquanto dizia Trata-se de um trabalho de fazer falar e fazer ouvir (Celes 2005) Vale

lembrar a compreensatildeo lacaniana de que o inconsciente eacute aquilo que constantemente

nos fala mas agrave qual fala natildeo damos a menor bola A resistecircncia e o entendimento da

psicanaacutelise como trabalho de vencer resistecircncias ganham aiacute pleno sentido

A transferecircncia eacute o suporte teacutecnico (fator teacutecnico assim a entende Freud) para tornar

possiacutevel a fala em associaccedilatildeo e ouvir em atenccedilatildeo flutuante Ela carrega uma forccedila su-

gestiva a forccedila para que o analisando ouccedila o que lhe diz o analista Assim a atitude de

reserva (Figueiredo 2008) e da benevolente compreensatildeo (Freud) regem a posiccedilatildeo do

analista no trabalho psicanaacutelise de exploraccedilatildeo associativa do inconsciente A contra-

transferecircncia tem um lugar secundaacuterio Natildeo porque se a ignora e natildeo se a tome em

consideraccedilatildeo Mas porque ela natildeo eacute propriamente explorada como instrumento de anaacute-

lise Isso ganha sentido no fundamento intrapsiacutequico do conflito A transferecircncia ela

mesma eacute a condiccedilatildeo da anaacutelise define a situaccedilatildeo analiacutetica e se visa ao cabo sua ldquodisso-

luccedilatildeordquo fim aliaacutes nunca alcanccedilado mas horizonte de fazer passar o passado Por isso

busca-se interpretaacute-la isto eacute apontar seu sentido infantil e seu caraacuteter transferido (cujo

uso do conceito ldquotransferecircnciardquo pode mascarar que em sua interpretaccedilatildeo se objetive

revelar seu caraacuteter transferido) O diaacutelogo analiacutetico eacute regressivo em direccedilatildeo ao infantil

mesmo que ele se atualize no presente da anaacutelise Atualiza-se na forma da posteriorida-

de isto eacute da ressignificaccedilatildeo do recalcado

Ao fim e ao cabo com a introduccedilatildeo da pulsatildeo de morte ou da importacircncia da destruti-

vidade em anaacutelise deve-se considerar a capacidade de o analista suportar as investidas

transferenciais destrutivas para que a interpretaccedilatildeo seja possiacutevel Toda a compreensatildeo

214

da anaacutelise da interpretaccedilatildeo da sexualidade ao suporte e interpretaccedilatildeo da destrutividade

baseia-se do enquadre claacutessico divatilde (que eacute o berccedilo da psicanaacutelise) poltrona (lugar de

reserva e atenccedilatildeo flutuante do analista) e a fala como meio eficaz para se alcanccedilar o que

se deseja isto eacute o inconsciente recalcado

Como jaacute se disse o modelo fundamental eacute o sonho e a psicanaacutelise eacute da neurose Natildeo se

quer dizer com esta restriccedilatildeo neurose que o sofrimento a que se dedica a psicanaacutelise

seja menos relevante nem que a psicanaacutelise seja faacutecil e o recalque esteja agrave matildeo para ser

desfeito Jaacute se repetiu que a histeria natildeo tem cura o que quer dizer que sua estrutura

(estrutura baacutesica da neurose segundo Freud o inconsciente) natildeo se desfaz Eacute o que re-

presenta a conquista fundamental da psicanaacutelise qual seja a de que o inconsciente natildeo

se esgota (embora seja finito como o sugere pensar Leclair 1977)

22) Caracterizaccedilatildeo esquemaacutetica da psicanaacutelise voltada para o interpsiacutequico (intersubjetivo)

Natildeo se aplica com facilidade a regra fundamental da associaccedilatildeo livre (Ogden 1996)

Existe nestes casos a suposiccedilatildeo de que natildeo houve suficiente simbolizaccedilatildeo do psiquis-

mo ou suficiente siacutentese narciacutesica para que a palavra associativa seja o carro chefe da

revelaccedilatildeo do inconsciente Se busca com o diaacutelogo analiacutetico restabelecer as condiccedilotildees

primitivas de constituiccedilatildeo do psiquismo com a finalidade de sua reconstruccedilatildeo de sanar

falhas de seu processo de sua delimitaccedilatildeo e falhas de simbolizaccedilatildeo O movimento re-

gressivo eacute concreto diferenciando-se do movimento regressivo freudiano que eacute toacutepico

processual e temporal

A regressatildeo em anaacutelise em substituiccedilatildeo ao retraimento (Winnicott 1978) eacute meta e meio

de accedilatildeo do analista Pode-se entender que o analista age sua interpretaccedilatildeo eacute entendida

(como o sugere Winnicott) como ato de continecircncia de acolhimento de asseguramen-

to etc Neste sentido natildeo se espera a associaccedilatildeo do analisando mas sua accedilatildeo e ateacute mes-

mo sua passagem ao ato como se diz O ato natildeo eacute principalmente interpretado mas

contido embora se possa pensar o papel de contenccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo

O analista no caso eacute mais presente do que aquele do conflito intrapsiacutequico A con-

tratransferecircncia ganha sentido como instrumento da anaacutelise (Heimann 19491989)

Ela pode ser usada para fomentar a interpretaccedilatildeo que privilegiaraacute o ldquoaqui e agorardquo da

anaacutelise (como na posiccedilatildeo kleiniana pois os conflitos estatildeo presentificados e realizados

215Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

na relaccedilatildeo transferencialmdashcontratransferencial) ou ela seraacute meio de ldquodigestatildeordquo do que

o analista recebe do analisando na forma da identificaccedilatildeo projetiva (seja a ldquodigestatildeordquo

como a ldquomaternagemrdquo winnicottiana pois a regressatildeo eacute efetiva e se realiza no presente

da sessatildeo de anaacutelise seja a ldquodigestatildeordquo sonhada recircverie como as propostas por Bion

Ogden dentre outros)

Sustenta-se a suposiccedilatildeo de uma quase equivalecircncia do objeto externo e objeto interno

que faz entender a participaccedilatildeo efetiva do analista como instacircncia psiacutequica do anali-

sando E o analista como receptaacuteculo direto (ou quase) das evacuaccedilotildees do analisando

Assim o analista ocupa a funccedilatildeo superegoica complacente (Fairbairn op cit Figueire-

do 2009a) para o e do analisando com a finalidade de ingerir-se nas necessaacuterias elabo-

raccedilotildees de simbolizaccedilatildeo visando uma reconstituiccedilatildeo do psiquismo do analisante Ou o

analista eacute ele mesmo a instacircncia que elabora eacute simbolizante (Bion Ogden) fazendo-se

vez do objeto primitivo (egoico por evidente) e faz retornar ao paciente de modo cons-

titutivo o que sobre o analista foi evacuado Em qualquer das formulaccedilotildees admite-se a

natildeo completa diferenciaccedilatildeo entre analisando e analista como reproduccedilatildeo da situaccedilatildeo

primitiva de constituiccedilatildeo do psiquismo de indiferenciaccedilatildeo entre o bebecirc e a matildee o su-

jeito nascente e o objeto ou o meio

O enquadre como jaacute se pode supor varia segundo as necessidades do analisando Os

quadros natildeo-neuroacuteticos as psicoses e particularmente os chamados borderlines mdash

problemaacuteticas narciacutesico-identitaacuterias como o diz Roussillon (2012) mdash constituem-se a

clientela desta anaacutelise modificada Nessas situaccedilotildees nem sempre o divatilde e a abstinecircncia

do analista satildeo possiacuteveis de ser mantidos Tambeacutem outros fatores do enquadre padratildeo

satildeo ou podem ser modificados como o tempo das sessotildees a sua frequecircncia semanal e

a admissatildeo de uma atitude psicoteraacutepica de contenccedilatildeo e acolhimento

A reserva do analista se torna no caso ainda mais radicalmente necessaacuteria embora

e mesmo porque ele abandona a posiccedilatildeo da abstinecircncia (da neutralidade interessada

como o diria Green) Sua participaccedilatildeo na dinacircmica analiacutetica uma vez que ela natildeo estaacute

controlada pelas regras fundamentais da associaccedilatildeo livre e da escuta flutuante pela

abstinecircncia e nem mesmo pela posiccedilatildeo invisiacutevel entre analista e analisando como na

psicanaacutelise padratildeo corre mais iminentemente o risco de conduzir a anaacutelise como uma

relaccedilatildeo dual dispensando-se a mediaccedilatildeo necessaacuteria O que quer dizer a mediaccedilatildeo sim-

boacutelica e simbolizante sem a qual a relaccedilatildeo analiacutetica pode se transformar numa relaccedilatildeo

216

de quase exclusiva intimidade como se diz ou simplesmente uma relaccedilatildeo imaginaacuteria

(Lacan 1979 particularmente p 77-86)

Os riscos da seduccedilatildeo provocada pelo analista e do uso sugestivo da contratransferecircncia

ficam mais eminentes daiacute que se impotildee o cuidado redobrado do analista como natildeo o

cansou de expressar Winnicott reconhecendo o oacutedio na contratransferecircncia e adotando

o cuidado meticuloso de se manter invariante o enquadre uma vez ajustado adequada-

mente agrave singularidade do paciente

Natildeo se trata mais do modelo do sonho mas do modelo matildee-bebecirc (Green) no qual

predomina a situaccedilatildeo de desamparo e dependecircncia precoces Modelo que se atualiza

na cliacutenica Essa concepccedilatildeo da psicanaacutelise pode afastaacute-la profundamente de seu padratildeo

sendo reinventada a cada vez com o risco de muito se afastar da ldquosituaccedilatildeo analisanterdquo

(Donnet 2001)

II-Apsicanaacutelisecontemporacircnea

A concepccedilatildeo assim cindida da psicanaacutelise provocou sua segmentaccedilatildeo representada

em escolas mais ou menos dogmaacuteticas que trouxeram uma dispersatildeo criacutetica do movi-

mento psicanaliacutetico Importantes psicanalistas reagiram em busca de uma possiacutevel fun-

damentaccedilatildeo que atenda agraves exigecircncias das dificuldades intrapsiacutequicas e interpsiacutequicas

Natildeo dogmaacutetica em sua intenccedilatildeo a busca de uma unificaccedilatildeo teria que atender a diversas

das questotildees que a psicanaacutelise se pocircs embora se reconheccedila a caracteriacutestica sempre in-

completa da psicanaacutelise portanto sua resistecircncia a siacutenteses abrangentes e gerais Sugiro

pensar uma siacutentese possiacutevel metaforicamente como aquela proporcionada pela genita-

lidade em relaccedilatildeo agrave dispersatildeo e parcializaccedilatildeo da sexualidade infantil ou como a siacutentese

alcanccedilada pelo narcisismo primaacuterio em relaccedilatildeo agrave fragmentaccedilatildeo auto-eroacutetica

Na tarefa de se elaborar tais siacutenteses como atravessamento de paradigmas (Figueiredo)

portanto natildeo como aglutinaccedilatildeo ou convergecircncia da dispersatildeo das escolas a psicanaacutelise

contemporacircnea se projeta para o futuro (Green 2010) como reconhecimento de que

muito da segmentaccedilatildeo das escolas permanece vigente de modo sutil ou presentes em

dogmatismo disfarccedilado apesar dos esforccedilos ditos contemporacircneos

217Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

Na tentativa da reflexatildeo para o presente-futuro da psicanaacutelise antecipando por assim

dizer seus problemas e suas soluccedilotildees destacam-se a nosso ver duas tendecircncias que

resumem as reflexotildees psicanaliacuteticas contemporacircneas Elas se apoiam mais ou menos

ainda que natildeo sejam derivaccedilotildees diretas nas reflexotildees ldquoda psicanaacutelises modernardquo (o ter-

mo eacute de Green 1979204) que viemos de apresentar fazendo pesar ora a ideia da rela-

ccedilatildeo de objeto ora a da pulsatildeo embora busque responder a ambas as problemaacuteticas que

eacute o quecirc a rigor pode caracterizar uma psicanaacutelise contemporacircnea distinta das que se

expressam nas formas segmentadas que discutimos acima

No entanto deve-se alertar para o fato de que os esforccedilos de ldquosiacutentesesrdquo que se fazem

neste iniacutecio do seacutec XXI natildeo resolveram segundo nosso julgamento de modo defini-

tivo a unificaccedilatildeo dos fundamentos da psicanaacutelise sob paracircmetros amplamente e comu-

mente acolhidos A problematizaccedilatildeo dos fundamentos da psicanaacutelise e de sua cliacutenica

permanece atual e se atualiza inclusive porque a psicanaacutelise se adapta agraves mudanccedilas de

demandas de tratamento caracteriacutesticas de eacutepocas e situaccedilotildees distintas mdash isto eacute ela eacute

sensiacutevel agraves transformaccedilotildees soacutecio-culturais (Celes 2003)

De fato em duas grandes direccedilotildees parece-nos razoaacutevel circunscrever os desenvolvimen-

tos psicanaliacuteticos atuais nos seus propoacutesitos de atender a necessaacuteria articulaccedilatildeo entre

pulsatildeo e relaccedilotildees de objeto (resumidamente falando)

1) Psicanaacutelise dos cuidados gerais

Nesta perspectiva a direccedilatildeo para o desenvolvimento do entendimento da psicanaacutelise

atual se expressa segundo um julgamento muito raacutepido no que se convencionou cha-

mar de ldquoTeoria Geral do Cuidadordquo (Figueiredo 2009b) Ressalte-se que Figueiredo na

obra citada natildeo faz a extensatildeo de alcance que aqui proporemos Mas nossas ideias ali se

fomentaram

Nesta perspectiva de desenvolvimento se supotildee a psicanaacutelise sendo originaacuteria de uma

teoria (mas principalmente praacutetica ressalte-se) do cuidado na qual o sujeito na tota-

lidade de suas vivecircncias constitutivas seja tomado como objeto da teoria e da cliacutenica

psicanaliacutetica A extensatildeo agrave formulaccedilatildeo de Figueiredo que fazemos por nossa conta pode

ser resumida no tiacutetulo deste subitem psicanaacutelise dos cuidados gerais

218

Esta concepccedilatildeo da psicanaacutelise apoia-se mais ou eacute mais particularmente herdeira da psi-

canaacutelise das teorias das relaccedilotildees de objeto (Bollas 1987 Golse 2003 Ogden 2003 Zor-

nig 2008 etc) As questotildees das relaccedilotildees de objeto primitivas na constituiccedilatildeo psiacutequica

e estruturaccedilatildeo subjetiva satildeo privilegiadas na perspectiva metapsicoloacutegica sem deixar

de se considerar os fundamentos pulsionais embora permaneccedilam marginais Trata-

-se aqui como na perspectiva que abaixo descreveremos de uma questatildeo de peso nos

pratos da balanccedila na qual historicamente se constituiu a psicanaacutelise a partir de meados

do seacutec XX

A praacutetica dos cuidados aleacutem de abrir pelo menos teoricamente a possibilidade e le-

gitimidade para intervenccedilotildees multi- ou interdisciplinares adota no fazer do analista

procedimentos muito aleacutem dos determinados pelo enquadre psicanaliacutetico estrito senso

guiado pela associaccedilatildeo livre e pela atenccedilatildeo flutuante O cuidado geral com os sujeitos

da anaacutelise que tambeacutem nos parece presentes nas propostas cliacutenicas de Khan (1984)

embora natildeo nos mesmos termos conduz o analista a uma atenccedilatildeo com a vida geral dos

sujeitos mesmo quando a atitude do analista permanece limitada agrave sala de anaacutelise isto

eacute mesmo quando ele natildeo saia em campo em atividades francamente multidisciplinar

e extramuros (Laplanche) como em hospitais cliacutenicas gerais juizados de menores e

famiacutelia atividades preventivas de vaacuterias iacutendoles etc mdash neste caso assemelha-se a uma

psicanaacutelise aplicada como bem o lembrou Luciano Antunes Figueiredo de Souza (co-

municado pessoal)

O interesse pelas vivecircncias quotidianas dos sujeitos uma ecircnfase ainda que residual da

atenccedilatildeo ao aqui e agora da anaacutelise a adoccedilatildeo de uma funccedilatildeo superegoica benevolente

(heranccedila talvez das proposiccedilotildees de Fairbairn 19521999) marcam dentre outras ca-

racteriacutesticas uma dispersatildeo da psicanaacutelise em seus propoacutesitos uma certa criacutetica ao

caraacuteter analiacutetico da psicanaacutelise como meacutetodo bem como uma releitura (para usar um

termo em voga) da situaccedilatildeo de anaacutelise (do enquadre) Sua praacutetica sugere ainda que

natildeo explicitamente uma recuperaccedilatildeo ou reabilitaccedilatildeo da noccedilatildeo de sujeito implicada no

pressuposto praacutetico da constituiccedilatildeo de siacutenteses mais ou menos autocircnomas das falhas

narcisistas (ainda que tal conceito possa estar ele mesmo ausente) ou mais precisamen-

te de uma recuperaccedilatildeo egoica de seu sonhado assenhoramento de partes cindidas ou

inconscientes

219Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

Muito particularmente essa tendecircncia da psicanaacutelise contemporacircnea se aproxima do fa-

zer meacutedico e das questotildees psicopatoloacutegicas Melhor talvez seria dizer que a psicanaacutelise

se aproxima das disciplinas da sauacutede Segundo entendemos a psicanaacutelise assim perde

um tanto de sua iacutendole criacutetica inaugurada na Interpretaccedilatildeo dos sonhos com a descoberta

do inconsciente

2) Psicanaacutelise mais restrita como simbolizaccedilatildeo por meio da palavra

Na outra perspectiva tomando como exemplo e representante desta vertente a obra de

Andreacute Green (particularmente 2005) e a psicanaacutelise principalmente francesa mas

natildeo somente a revisatildeo de que falamos pretende manter-se fiel ao fundamento pulsional

freudiano Tambeacutem aqui representados pela reflexatildeo de outros psicanalistas abaixo

citados busca-se a unificaccedilatildeo das problemaacuteticas que acossaram a psicanaacutelise moder-

na qual seja a determinaccedilatildeo das relaccedilotildees de objeto na constituiccedilatildeo e estruturaccedilatildeo do

psiquismo mantendo agraves questotildees proacuteprias agrave pulsionalidade O peso recai sobre este

uacuteltimo aspecto estendendo-se agraves formulaccedilotildees sobre o narcisismo Diz-se entatildeo de pro-

blemaacuteticas narciacutesico-identitaacuterias (Roussillon 2012) isto eacute busca-se pela formaccedilatildeo da

siacutentese narciacutesica e natildeo das falhas constitutivas com o entendimento de que algo falta

ao ego e precisa ser reconstituiacutedo Ao narcisismo aderem-se as questotildees do conflito pul-

sional particularmente com o papel exercido pela pulsatildeo de morte mas tambeacutem pelas

cadeias formativas de Eros (Green 2000)

Isso natildeo eacute possiacutevel sem se adotar uma leitura criacutetica de Freud uma leitura em poste-

rioridade na qual se busca a justificativa para certa modificaccedilatildeo da praacutetica psicanaliacutetica

com base natildeo mais na diferenccedila de demandas determinadas pelos quadros psicopato-

loacutegicos (psicoses borderlines particularmente e organizaccedilotildees narcisistas de um modo

geral) Green (2005) sugere tomar a analisabilidade dos sujeitos como condiccedilatildeo para

mudanccedilas que se faccedilam necessaacuterias no enquadre Pois o enquadre permanece fundado

na associaccedilatildeo livre e atenccedilatildeo flutuante Mesmo nos casos em que o sofrimento natildeo seja

neuroacutetico o enquadre eacute posse do analista que o manteacutem nas situaccedilotildees em que o setting

fisicamente varia Adota-se uma conversa psicanaliacutetica ou um diaacutelogo em que o analista

permanece flutuantemente atendo aos traccedilos associativos das narrativas dos paciente

A analisabilidade significa a possibilidade ou as condiccedilotildees da submissatildeo dos sujeitos

ao enquadre psicanaliacutetico Percebe-se assim que para o autor ultimamente citado o

220

enquadre (principalmente definido pela associaccedilatildeo livre e atenccedilatildeo flutuante como ldquosi-

tuaccedilatildeo analisanterdquo Donnet 2001) eacute o vetor o fundamento da definiccedilatildeo do tratamento

psicanaliacutetico

Como haacute demandas que chegam agrave psicanaacutelise mas que natildeo se adequariam ao enqua-

dre a saiacuteda proposta por Green (e por outros embora natildeo necessariamente com a mes-

ma terminologia como Donnet 2001 Figueiredo 2012a Kernberg 1979 1995 Par-

sons 2002 2005 Roussillon 19992008 2005 2012 etc) seraacute a diferenciaccedilatildeo entre

psicanaacutelise e psicoterapia exercida por psicanalistas

O enquadre no caso continua dominante pois preconiza-se para a psicoterapia a pre-

senccedila do enquadre internalizado pelo analista efeito de sua formaccedilatildeo analiacutetica que no

caso sugere-se rigorosa dando ecircnfase agrave anaacutelise pessoal e agrave supervisatildeo

Natildeo cabe agora desenvolver todo o tema seus desdobramentos e suas consequecircncias

De qualquer modo e ainda que se entenda que o psicanalista nem sempre faz psica-

naacutelise a ideia da psicoterapia exercida por psicanalistas (condiccedilatildeo aliaacutes sugerida em

1945 por Winnicott 1978) natildeo deixa de introduzir questotildees sobre os fundamentos da

psicanaacutelise Particularmente pensamos no sentido metapsicoloacutegico de que sujeito psi-

quicamente constituiacutedo estamos falando na psicanaacutelise e na psicoterapia

Quanto agrave teoria da cliacutenica a diferenciaccedilatildeo acima rapidamente apresentada natildeo respon-

de de modo preciso pela proximidade e afastamento dos objetivos da psicanaacutelise e de

tais psicoterapia Recolocamos parece-nos diante de velhas questotildees como a similar-

mente formulada por Freud sobre o objetivo da anaacutelise jaacute em 1905 no caso Dora

Paraconcluir

A psicanaacutelise padratildeo claacutessica ou tiacutepica de que tanto se fala para diferenciaacute-la da que se

seguiu e propocircs mudanccedilas por vezes profundas na teacutecnica e na metapsicologia natildeo nos

parece ter no entanto uma delimitaccedilatildeo tatildeo estreita como se a sugere normalmente

e tenho aqui em mente como exemplo o que propotildee Roussillon (19992008) para o

seu entendimento Embora Roussillon possa ser considerado um psicanalista contem-

poracircneo herdeiro de Andreacute Green por assim dizer e assim o tomamos acima isto eacute

221Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

contemporacircneo no sentido conceitual que o situa numa outra perspectiva da psicanaacute-

lise em busca de uma unificaccedilatildeo de seus fundamentos ele talvez por forccedila didaacutetica

expressa a psicanaacutelise padratildeo freudiana muito estritamente Claro que o acompanham

muitos outros jaacute citados como psicanalistas intersubjetivos

A olhar de perto a psicanaacutelise padratildeo como a expotildee Roussillon trata o sujeito e a sub-

jetividade neuroacutetica num sentido muito amplo de neurose Proacuteximo da assertiva freu-

diana estabelecida na Interpretaccedilatildeo dos sonhos (1900) de que o inconsciente eacute comum

eacute universal e sendo ele inicialmente a caracteriacutestica da neurose em consequecircncia to-

dos somos neuroacuteticos (Celes 2010) O que quer dizer todos somos inconscientes De

qual afirmaccedilatildeo se pode concluir que a normalidade em Freud eacute neuroacutetica Os avanccedilos

freudianos apoacutes 1920 satildeo por Roussillon incluiacutedos numa psicanaacutelise por vir embora

ele encontre laacute em Freud alguma de suas acircncoras para reflexatildeo Por nosso lado com-

preendemos que as reflexotildees freudianas da paranoia da melancolia do narcisismo da

feminilidade inserem-se em problemaacuteticas identitaacuterias-narcisistas (se bem lido isto eacute

lido criticamente e em posterioridade as encontramos jaacute em Dora Celes 2007) que

natildeo justificam o estreitamento da concepccedilatildeo divulgada da chamada psicanaacutelise padratildeo

Na verdade a delimitaccedilatildeo tatildeo apertada que dela se faz parece-nos ter muito mais um

caraacuteter de poliacutetica psicanaliacutetica para a afirmaccedilatildeo de uma originalidade que natildeo eacute toda

assim nos parece

Embora tal atitude possa se justificar como estrateacutegia de exposiccedilatildeo e para tornar evi-

dente o que se diferencia na psicanaacutelise a partir de meados do seacuteculo passado ela nos

leva a encobrimentos significativos da diversidade do pensamento psicanaliacutetico mesmo

em sua versatildeo freudiana dita claacutessica ou padratildeo Mas tambeacutem aleacutem da versatildeo freudia-

na Excetuando-se o que se cindiu do movimento psicanaliacutetico e teve desenvolvimento

independente o que nele permaneceu foi de uma riqueza muito aleacutem do que se vem

chamando e definindo como psicanaacutelise padratildeo Mesmo se circunscrevermos a psi-

canaacutelise padratildeo em torno da neurose como indiretamente o sugere Green (2005) o

tratamento ldquopadratildeordquo da neurose transpocircs e ateacute mesmo em seu iniacutecio (Estudos sobre a

histeria 1895) os marcos da revelaccedilatildeo da fantasia de desejo secundariamente recalcada

e o conflito pulsatildeo versus defesa A sexualidade infantil somente para lembrar uma das

facetas tem caraacuteter originaacuterio e o narcisismo ele eacute primaacuterio e sexualmente determi-

nado Dito de outro modo o narcisismo eacute sexual desde sua origem Portanto questotildees

identitaacuterias-narcisistas mesmo que natildeo levassem este nome estatildeo presentes na psica-

222

naacutelise (teoacuterica e clinicamente) desde Freud Embora certamente ele natildeo tenha de uma

vez tudo abordado e levado em consideraccedilatildeo E mais ainda ele natildeo tenha levado tudo

que descobriu ou apontou ao seu desenvolvimento pleno Tambeacutem na teacutecnica eacute sabido

que Freud manteve-se muito mais fiel ao que se chama tiacutepico ou padratildeo do que em

teoria Esta uacuteltima parece avanccedilar mais do que sua teacutecnica Embora se deva observar

com firmeza que foi de sua experiecircncia cliacutenica psicanaliacutetica (natildeo necessariamente do

tratamento psicanaliacutetico mas muito dele) que Freud pode avanccedilar em sua teoria ou

metapsicologia Natildeo sendo esta o caso de puro exerciacutecio conceitual como se sabe (A

propoacutesito veja-se a retomada recente e profunda da reflexatildeo metodoloacutegica em psicanaacute-

lise em Figueiredo 2012b)

Sem negar as diferenccedilas que se fizeram entre os freudianos e muitos apoacutes-Freud natildeo

haacute ganho para a psicanaacutelise resumir tal diferenccedila reduzindo a chamada psicanaacutelise pa-

dratildeo ao estado onde

O narcisismo permanece suficientemente ldquobomrdquo e permite a organizaccedilatildeo de uma ilusatildeo que torna a transferecircncia sob o primado do princiacutepio do prazer possiacutevel e torna considerado possiacutevel um trabalho de luto ldquofragmento por fragmentordquo das realizaccedilotildees de desejos infantis evocadas pelo trabalho analiacutetico Em um tal esquema o processo analiacutetico ldquomelhorardquo o narcisismo e o funcionamento psiacutequico eacute beneficiado mesmo nos momentos de transferecircncia ldquonegativardquo pelo levantamento progressivo dos recalques (Roussillon 19992008 p 12 Traduccedilatildeo nossa)

Caracterizaccedilatildeo tatildeo restrita refere-se agrave interpretaccedilatildeo do sonho (natildeo necessariamente agrave

obra Interpretaccedilatildeo dos sonhos 1900 que avanccedila mais embora contenha a matriz de sua

praacutetica e da psicanaacutelise nela baseada) Natildeo se refere ao modelo do sonho como o sugere

Green (2005) no sentido conceitual que me parece mais amplo que esta descriccedilatildeo do

quadro que caracteriza a psicanaacutelise padratildeo Mas refere-se ao sonho da interpretaccedilatildeo dos

sonhos (1900) que se estende em Psicopatologia da vida cotidiana (1901b) e em Os chistes

de sua relaccedilatildeo com o inconsciente (1905c) Literalmente entendido trata-se de modelo que

se estende agrave vida cotidiana Eacute duvidoso que ele se tenha vingado como tal a ponto de se

tornar padratildeo Pelo menos natildeo em Freud ele alcanccedila esse estatuto

O modelo restrito imediatamente mostra seu limite Jaacute na articulaccedilatildeo metapsicoloacutegica

do sonho com a primeira teoria da sexualidade que como todos sabem apareceu em

1905 na forma de trecircs ensaios sendo acrescentado de novos modelos ao longo de suces-

223Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea

sivas ediccedilotildees Clinicamente o modelo chamado padratildeo encontra seu limite em sua pri-

meira prova no caso Dora (Freud 1905e1972) Se Freud deu a essa prova um sentido

cientificista natildeo precisamos manter a intenccedilatildeo freudiana para verificar que o tal padratildeo

de anaacutelise natildeo serviu (como numa prova de roupa um terno natildeo serve natildeo cai bem

eacute curto apertado comprido ou largo e natildeo haacute remendo que o conserte) Aspectos da

transferecircncia ausentes no sonho na psicopatologia cotidiana e nos chistes atrapalha-

ram Mas principalmente aspectos identitaacuterios-narcisistas (para usar a expressatildeo hoje

corrente) natildeo permitiram que o modelo se sustentasse e desse conta da petite hysteacuterie

de Ida Brauer Tambeacutem se pode seguindo o espiacuterito de Green reler criticamente e a

posteriori o caso Dora e aiacute encontrar a problemaacutetica narciacutesico-identitaacuterias no desejo de

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227 Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

ChristianIngoLenzDunker

Introduccedilatildeo

Recentemente participei de uma espeacutecie de enquete feita pela Revista Veja Satildeo Paulo

acerca das principais fontes de sofrimento do paulistano E a conversa foi muito inte-

ressante porque sendo eu um dos uacuteltimos a serem entrevistados tive a oportunidade de

discutir as hipoacuteteses e consideraccedilotildees dos 17 outros psicoterapeutas majoritariamente

psicanalistas que me precederam Gostaria de manter este escopo na hipoacutetese que vou

apresentar a seguir sobre a cliacutenica em uma cidade como Satildeo Paulo no qual a densidade

discursiva e praacutetica da psicanaacutelise sua inserccedilatildeo em equipamentos de sauacutede mental e

geral sua circulaccedilatildeo e diversificaccedilatildeo de tendecircncias sua presenccedila acadecircmica e cultural

eacute excepcionalmente elevada Creio que a maior parte das alteraccedilotildees que percebi nestes

uacuteltimos vinte anos de cliacutenica seriam inaplicaacuteveis se tomaacutessemos em consideraccedilatildeo uma

cidade como Jundiaiacute ou Sorocaba ou o Brasil profundo como Rondonoacutepolis ou Boa

228

Vista lugares onde aliaacutes a psicanaacutelise e sua cliacutenica vem adquirindo uma funccedilatildeo social

ascendente que deveriacuteamos examinar com mais cuidado

Aintra-misturadiagnoacutestica

Crescentemente me encontro com pacientes de extensa trajetoacuteria diagnoacutestica Crian-

ccedilas que foram disleacutexicas autistas espectrais26 depois adolescentes hiperativos e agora

adultos bipolares que fazem uso de drogas legais e ilegais para aumentar o rendimen-

to laboral sexual e ocupacional Quando a cliacutenica psiquiaacutetrica de alta performance se

estabeleceu em fins dos anos 1980 temia-se que a velha hermenecircutica do mal-estar

desapareceria Penso que no balanccedilo geral deu-se o contraacuterio As medicaccedilotildees nunca

inserem-se fora de um discurso ausentes de narrativa ou de orientaccedilatildeo para a auto-

-observaccedilatildeo e a incitaccedilatildeo para nomear o mal-estar A nomeaccedilatildeo dos sintomas e seu

agrupamento em quadros feito pelo proacuteprio paciente substituiu a antiga dificuldade

composta pela antecipaccedilatildeo de sentido diante de um ato-falho ou as versotildees reificadas

em torno da superdeterminaccedilatildeo edipiana de uma dificuldade Pelo contraacuterio a superme-

dicalizaccedilatildeo e a automedicaccedilatildeo sancionaram nomearam e reconheceram uma quantida-

de nova e inusitada de formas de sofrimento

Eacute o que proponho chamar de intra-mistura diagnoacutestica tomando por referecircncia agrave ab-

sorccedilatildeo e cruzamento de diferentes racionalidades diagnoacutesticas que agora se incorpo-

ram apesar de sua heterogeneidade de origem ao modo de uma mesma unidade ao

discurso sobre o sofrimento e agraves estrateacutegias de inclusatildeo do mal estar na transferecircncia

O termo intra-mistura eacute retirado da conferecircncia de Lacan em Baltimore ocorrida em

1966 intitulada ldquoDa Estrutura como a Intra-mistura do Outro como preacute Requisito para

Qualquer Sujeitordquo (Lacan 19661998) Intra-mistura (inmixing) corresponde a opera-

ccedilatildeo pela qual o Outro eacute tomado como internalidade estrutural em relaccedilatildeo ao sujeito

sendo sua divisatildeo universal decorrecircncia da estrutura assim composta pela linguagem

26 Alusatildeo agrave expansatildeo do diagnoacutestico conhecido como ldquotranstorno no espectro autistardquo que encontra-se em franca expansatildeo apoacutes a compressatildeo da categorias diagnoacutesticas da infacircncia operada pelo DSM-IV publicado os anos 1980

229Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

assim como seus efeitos de singularidade decorrentes da articulaccedilatildeo entre fala liacutengua e

discurso A intra-mistura diagnoacutestica refere-se aos sistemas de preacute-nomeaccedilotildees do mal-

-estar incluindo o cruzamento de gramaacuteticas de reconhecimento dos sintomas e os

dispositivos de identificaccedilatildeo narrativa do sofrimento A intra-mistura diagnoacutestica inclui

tanto os dispositivos institucionais de individualizaccedilatildeo operados pelo Estado pela me-

dicina pelo sistema juriacutedico-psicoloacutegico ou escolar quanto narrativas morais religiosas

ou midiaacuteticas que regulam e legitimam a expressatildeo do sofrimento a certos esquemas

enunciativos Se o sintoma eacute a mensagem que o sujeito produz para o Outro o Outro jaacute

determina a articulaccedilatildeo significante na qual o sofrimento se expressa sobretudo entre

sua funccedilatildeo de Ideal e sua realizaccedilatildeo como sujeito (Lacan 1960) Se a psicanaacutelise eacute filha

da modernidade ela natildeo apenas trata e completa os sintomas sob transferecircncia mas

incita e eacute uma forccedila poliacutetica importante na determinaccedilatildeo de suas poliacuteticas de reconhe-

cimento (Parker 1997)

Ocorre que a psicanaacutelise como discurso culturalmente eficiente tambeacutem concorre para

a produccedilatildeo desta intro-mistura mas natildeo mais como ocorria nos anos 1960 Ou seja

alterou-se o que Jameson chamava de narrativa mestre (Jameson1979) que havia sido

majoritariamente estabelecida e administrada pela psicanaacutelise dos anos 1970 Ao con-

traacuterio haacute uma sensibilidade geralmente patente nas primeiras sessotildees para saber se

seu analista seraacute algueacutem interessado demais no seu passado e que por outro lado ficaraacute

silencioso ateacute obter uma hermenecircutica da histoacuteria de vida

Por sua parte assim como nos anos 1990 tentamos abandonar a importacircncia da me-

tapsicologia nos anos 2000 tentamos abandonar o terreno da diagnoacutestica A soberana

indiferenccedila psicanaliacutetica aos chamados diagnoacutesticos psiquiaacutetricos ou ainda no caso da

infacircncia aos diagnoacutesticos psicoloacutegico-educativos parece ter colaborado para uma taacutecita

distribuiccedilatildeo de funccedilotildees Aos primeiros os nomes e os medicamentos aos segundos os

conflitos e a soluccedilatildeo de problemas

Este movimento parece ter pacificado o antagonismo antes reinante o qual era preciso

fazer uma escolha Tal divisatildeo social do sofrimento aprofundou- por outro lado a di-

mensatildeo psicoterapecircutica da psicanaacutelise A cliacutenica comeccedila pelo sintoma Ateacute onde pude

advogar em meu uacuteltimo livro natildeo haacute cliacutenica sem algum tipo de razatildeo diagnoacutestica

230

Conveacutem lembrar que o que chamamos genericamente de ldquocliacutenicardquo inclui tanto o que

Freud considerava como meacutetodo de tratamento das neuroses quanto a disposiccedilatildeo eacutetica

para a cura e ainda as condiccedilotildees teacutecnicas para o uso terapecircutico da palavra

A autonomizaccedilatildeo da categoria psicanaliacutetica de sintoma seu desdobramento em sintho-

mas sua generalizaccedilatildeo confusa em modalidades de sofrimento bem como sua diluiccedilatildeo

na categoria de mal-estar satildeo subprodutos do recuo de nossas pretensotildees diagnoacutesticas

ou quiccedilaacute da ineacutepcia em produzir uma racionalidade diagnoacutestica agrave altura da praacutetica no

horizonte de nossa eacutepoca e com a criticidade que esta exige

Talvez estejamos agraves voltas com formas de diagnoacutestico que natildeo ousam dizer seu nome ou

que se contentam em grandes categorias estruturais para justificar uma espeacutecie de mo-

nismo procedimental No polo oposto temos uma situaccedilatildeo curiosa se examinamos uma

categoria flutuante como a de borderline ou ldquopaciente difiacutecilrdquo Para lacanianos tratam-se

de categorias inexistentes enquanto para os demais satildeo categorias super-existentes O

fato cliacutenico saliente eacute que os analisantes se reacostumaram com esta espeacutecie de confu-

satildeo de liacutenguas entre analistas e psiquiatras aprenderam rapidamente a relatividade dos

nomes e os limites de sua regulaccedilatildeo medicamentosa

E foi assim com um paciente de vinte e tantos anos que se apresenta ao tratamento com

um deliacuterio paranoico muito bem sistematizado em torno do uso pornograacutefico da inter-

net e de sistemas adjacentes que pareciam controlar seus pensamentos e saber de suas

intenccedilotildees como se ele fosse um criminoso procurado Mensagens e vigilacircncias envol-

vendo carros e retaliaccedilotildees Ele tinha iniciado o uso de medicaccedilatildeo neuroleacuteptica Ele vem

como uma espeacutecie de uacuteltimo recurso antes da internaccedilatildeo que tornava-se uma possibi-

lidade iminente Confidencia entatildeo um pequeno detalhe que ocultara ao meacutedico com

receio de que isso chegasse aos pais fazia uso ldquoocasionalrdquo de certa substacircncia relaxante

O tal uso recreativo envolvia cinco ou seis baseados por dia haacute seis anos Tenho entatildeo

que lhe explicar a situaccedilatildeo na qual ele se encontrava natildeo poupando detalhes do que po-

deria vir a acontecer caso ele ldquoocasionalmenterdquo entrasse ldquono sistemardquo fosse ldquofichadordquo e

afinal descoberto por um grande nuacutemero de pessoas que certamente se aproveitariam

disso ldquopara o malrdquo Desta forma ficou claro que havia uma uacutenica chance que passava

pela interrupccedilatildeo imediata e sumaacuteria do consumo da tal substacircncia para ldquover o que po-

dia acontecerrdquo E assim desapareceu um deliacuterio clinicamente muito bem definido que

poderia ter conduzido um sujeito a uma carreira psiquiaacutetrica longa e penosa

231Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

Contudo jamais teria feito uso de tal taacutetica ainda mais no iniacutecio de um tratamento 20

anos atraacutes por mais que Lacan tenha confessado sua filiaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo espiritual de

Ferenczi e sua teacutecnica ativa27

DeacuteficitNarrativo

Mas o caso poderia ter tido um desenrolar completamente outro se natildeo encontrasse

neste jovem paciente uma disposiccedilatildeo narrativa capaz de sugerir que havia algo estra-

nhamente ldquopreservadordquo na verdade ldquoexcessivamente organizadordquo em seu deliacuterio Este

ponto me leva a segunda novidade cliacutenica que tenho encontrado Trata de algo como um

deacuteficit narrativo generalizado Pessoas que natildeo conseguem contar uma histoacuteria apenas

descrevem estados de alma e situaccedilotildees de comportamento

Natildeo satildeo os casos psicossomaacuteticos repletos de sonhos evacuativos e empobrecimento

de simbolizaccedilatildeo descritos desde Pierre Marty a Joyce MacDougall Tambeacutem natildeo satildeo ca-

sos marcados por enactments expressivos como os apresentados por Julia Kristeva para

caracterizar as novas doenccedilas da alma Aacutes vezes eles se associam mas isto me parece

uma contingecircncia com as desarticulaccedilotildees da economia de gozo e da fantasia descritas

por Jean Pierre Lebrun (2008)

Trata-se mais de algo como Walter Benjamin (1933 1997) descreveu para os soldados

que voltavam da primeira guerra mundial sem uma histoacuteria para contar e que Chris-

topher Dejours (Lancman amp Sznelwar 2008) expandiu para um modo de estar no tra-

balho baseado na oposiccedilatildeo entre pressatildeo e depressatildeo ou ocupaccedilatildeo-vazio Em termos

lacanianos satildeo pacientes que estatildeo demasiados implantados em discursos que soacute fa-

zem laccedilo social sem narrativa sem diaacutelogo sem intimidade apenas funcionamento

inclusatildeo e exclusatildeo ligaccedilatildeo e desligamento

27 ldquoSachez que je fais toujours une grande part dans mon enseignement agrave la ligneacutee spirituelle de Ferenczi et que je vous reste sympathiquement lieacute avec mes meilleurs sentimentsrdquo Lettre de Jacques Lacan agrave Michael Balint publieacutee dans ldquoLa scission de 1953rdquo (Suppleacutement agrave Ornicar ) ndeg 7 1976 page 119

232

Alguns autores sensiacuteveis agraves ideias de Lacan tem isolado natildeo apenas novas formas de

sintomas mas novas maneiras de sofrer com antigos sintomas Por exemplo se para

Freud a sexualidade possuiacutea uma potecircncia traumaacutetica violenta e informulada para La-

can a sexualidade ela mesma pode ser uma defesa contra algo muito pior chamado

de Real E o Real se mostra como mal-estar como impossibilidade de dizer de narrar

e de nomear Eacute nesta direccedilatildeo que poderiacuteamos falar de uma forma de sofrimento que

generaliza a observaccedilatildeo de Walter Benjamin sobre o retorno dos soldados que lutaram

na primeira guerra mundial A brutalidade do choque o inominaacutevel da experiecircncia

silenciava os combatentes Eles saiacuteam narrativamente lesados do conflito Catherine

Malabou propotildee para esta situaccedilatildeo a noccedilatildeo de subjetividade poacutes-traumaacutetica cuja ex-

pressatildeo de sofrimento seria semelhante a lesotildees cerebrais como afasias e demecircncias

Seu paradigma literaacuterio satildeo os zumbis ou mortos-vivos seres funcionais que repetem

automaticamente uma accedilatildeo incapazes de reconstruir a histoacuteria da trageacutedia que sobre

eles se abateu Parecem seres perderam a alma e cujo sofrimento aparece em meio a

mutismos seletivos fenocircmenos psicossomaacuteticos e alexetimias (dificuldade de perceber

sentimentos e nomeaacute-los)

Satildeo pacientes para os quais desenvolvi uma abordagem combinada envolvendo extrema

importacircncia conferida aos sonhos suplementada por leituras e provocaccedilotildees fiacutelmicas

Para estes casos importei um diagnoacutestico filosoacutefico perda da experiecircncia Satildeo casos nos

quais nota-se uma dificuldade para articular os elementos que fazem da narrativa um

ato social-simboacutelico compartilhar coletivamente um mito de modo oral e reversiacutevel por

uma comunidade de sentido de destino ou de passado

Lacan extraiu de Levi-Strauss (1951) esta ideia muito simples e eficaz de que a neurose

corresponde a um mito individual Mas o que natildeo estava previsto pela hipoacutetese de Lacan

eacute que se poderia falar em subjetividades para os quais o mito natildeo possui aparentemen-

te funccedilatildeo decisiva Duas hipoacuteteses aqui

a Ou temos que pensar funccedilotildees miacuteticas organizadas fora das versotildees na verdade

natildeo exclusivamente organizados por versotildees de Totem e Tabu Eacutedipo e Narcisis-

mo como aliaacutes suponho se possa encontrar na miacutetica perspectiva ameriacutendia por

exemplo nos iacutendios Araweteacute tal qual descrita pelo antropoacutelogo Viveiros de Castro

(2002)

233Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

b Ou temos que pensar que natildeo eacute que o mito esteja indisponiacutevel mas que sua forma

individualizada eacute que o problema Neste caso temos que rever a teoria do reconhe-

cimento que define psicanaliticamente o que eacute uma individualizaccedilatildeo no caso da

expressatildeo ldquomito individualrdquo E quero crer que precisamos incluir natildeo apenas as

patologias da individualizaccedilatildeo mas as patologias e o sofrimento de ldquosoacute ser um

indiviacuteduordquo como definiu recentemente Vladimir Safatle (2012)

Ou seja natildeo precisamos psicotizar nossa sociedade ou imaginar uma suacutebita inflaccedilatildeo de

subjetividades perversas para pensar que nem sempre a identidade precisa ser o ponto

de partida para pensar laccedilos desejantes e conflitos respectivamente narrativizados por

histoacuterias de confronto com a lei e com a troca inter-grupos Natildeo acho muito bem esco-

lhido o termo mas haacute autores que falam em um sujeito poacutes-traumaacutetico (Zizek 2009)

cujo principal traccedilo cliacutenico eacute que a estrutura narrativa de seu sofrimento se assemelha a

um paciente cerebralmente lesado como algueacutem com Alzheimer Ou seja eacute a proacutepria

possibilidade de articular o sofrimento em uma histoacuteria na qual podemos reconhecer a

sua persistecircncia sua repetitividade sua permanecircncia diferencial em um traccedilo

Vejam que de certa forma este eacute um problema que inverte o pressuposto psicanaliacutetico

de que o sintoma estaacute imerso em um excesso de narrativas que suturam por sua vez

a supressatildeo e certos detalhes estrateacutegicos Pressuposto que tornava a psicanaacutelise uma

operaccedilatildeo e reduccedilatildeo simboacutelica desta narrativa a seus significantes fundamentais e agrave suas

posiccedilotildees fantasmaacuteticas invariantes

Portanto e esta eacute a inversatildeo que quero salientar se antes constituiacutea um traccedilo funda-

mental do perspectivismo lacaniano recusar a narrativa em prol do discurso recusar o

indiviacuteduo em prol do sujeito recusar o conteuacutedo imaginaacuterio em prol da forma simboacuteli-

ca hoje temos que explicar com as categorias como significante discurso sujeito e real

como eacute possiacutevel a individualizaccedilatildeo patoloacutegica do sujeito e a impossibilidade narrativa e

os perigos do ldquoexcesso da formardquo

Acliacutenicadasdecisotildees

Proponho a vocecircs entatildeo estas primeiras duas novas situaccedilotildees cliacutenicas os que se iden-

tificam a uma narrativa pret-a-porteacute (palavra meio fora de moda mas que tem o tal a

no meio) que chamei aqui de intro-mistura diagnoacutestica de um lado Do lado oposto

234

apresentam-se os que natildeo conseguem articular seu mal-estar ao modo de uma narrati-

va Sugiro agora um segundo par de situaccedilotildees da cliacutenica hoje

No polo oposto ao dos pacientes que natildeo conseguem narrativizar seu sintoma haacute ou-

tros analisantes que organizam a associaccedilatildeo livre em torno de sucessivas situaccedilotildees de

decisatildeo casar ou natildeo ter filhos agora ou depois internar os pais agora ou daqui a pou-

co mudar ou natildeo de paiacutes de cidade de emprego Isso natildeo eacute por si soacute uma novidade

mas o fato para o qual quero chamar a atenccedilatildeo eacute a existecircncia de um discurso que soacute

consegue se organizar em torno de decisotildees que trata a anaacutelise como uma sequencia

de ldquosolve-problem situationsrdquo como um viacutedeo game com fases vilotildees e desafios muito

organizados

O segundo tipo cliacutenico ascendente nas grandes metroacutepoles brasileiras responde bem ao

que um autor como Slavoj Zizek tem descrito para o caso daqueles que experimentam

uma forma de vida que eacute sentida como monstruosa animal e coisificada tal qual a an-

tropologia do inhumano proposta por Vladimir Safatle Ao contraacuterio dos que natildeo conse-

guem inscrever seu sofrimento em um discurso temos aqui aqueles que parecem viver

em estado permanente de fracasso sistemaacutetico em dar nome agrave causa de seu sofrimento

Procuram encontrar a razatildeo de seu mal-estar no mundo explorando para isso a forccedila

de estranhamento inadequaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo Sentem-se permanentemente fora de

lugar fora de tempo ou fora do corpo como as sexualidades estudadas por Judith Butler

(1990) Eacute o drama daqueles que satildeo habitados por experiecircncias de radical anomia e in-

determinaccedilatildeo cujo maior exemplo literaacuterio eacute Frankenstein Esta desregulaccedilatildeo sistecircmi-

ca do mundo teorizada por Lacan como separaccedilatildeo entre real simboacutelico e imaginaacuterio

exprime-se como sentimento permanente de perda de unidade Eacute por isso que seu sofri-

mento tematizado como exiacutelio e isolamento assemelhando-se com a reconstituiccedilatildeo da

experiecircncia tal como encontramos clinicamente no trabalho de luto Satildeo antes de tudo

errantes da linguagem depressivos do desejo e inadaptados do trabalho O espectro do

ressentimento e do teacutedio rondam sua forma de vida

Geralmente esta situaccedilatildeo vem acompanhada por uma relaccedilatildeo com a anaacutelise intermi-

tente e que precisa ser acolhida como tal Seja porque o sujeito estaacute no Brasil uma ou

duas semanas por mecircs seja porque ele soacute consegue se autorizar a vir agrave anaacutelise em um

sistema de ldquodrive throughrdquo sempre em emergecircncia sempre em situaccedilotildees de exaustatildeo

235Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

no qual o proacuteprio espaccedilo impoluiacutedo de silecircncio natildeo intromissatildeo e suspensatildeo do juiacutezo

constituem uma oportunidade rara

Mas haacute tambeacutem as decisotildees realmente difiacuteceis por exemplo as que cercam a reprodu-

ccedilatildeo assistida a descoberta de doenccedilas geneacuteticas as transformaccedilotildees irreversiacuteveis do cor-

po as redesignaccedilotildees sexuais Nestes assim como nos anteriores a recuperaccedilatildeo da loacutegi-

ca da escolha a recomposiccedilatildeo dos encontros e perspectivas torna-se de grande auxiacutelio

A emergecircncia cliacutenica dos decisionistas talvez sinalize um deslocamento nosso paradig-

ma eacutetico narrativamente considerado Antes um grande modelo do lado de caacute e do

lado de laacute do divatilde eram as Antiacutegonas Engajamentos desejantes radicais e confrontati-

vos que tencionam sua posiccedilatildeo na poacutelis e diante das leis Hoje estamos mais proacuteximos

de um personagem mencionado por Lacan ao final do Seminaacuterio sobre a Eacutetica da Psica-

naacutelise o protagonista da trageacutedia homocircnima de Euriacutepedes chamado Filoctetes Amigo

de Heacutercules e um dos pretendentes de Helena de Troacuteia Filoctetes foi picado por uma

serpente e sua perna natildeo cicatriza comeccedilando a exalar um odor feacutetido que gradualmen-

te insuportaacutevel para os outros Argonautas Ademais Filoctetes natildeo parava de se queixar

de sua condiccedilatildeo o que poderia se alastrar como uma peste para um descontentamento

generalizado entre os marinheiros Decide-se entatildeo que Filoctetes deve ser abandono

sozinho na ilha de Lemnos tambeacutem conhecida pelo sugestivo nome de ilha de Crise

Poreacutem no auge das batalhas contra Priacuteamo descobre-se que a uacutenica forma de derrotar

Troacuteia eacute usar o arco e flecha que pertencera a Heacutercules e o uacutenico que sabe o paradeiro da

referida arma natildeo eacute outro senatildeo Filoctetes Ulisses ordena entatildeo uma expediccedilatildeo para

resgatar o pobre poliqueixoso A surpresa eacute que laacute chegando nosso heroacutei que tivera sua

ferida curada pela solidatildeo os recebe de braccedilos abertos entrega o local do arco e flecha

luta com seus companheiros voltando para Iacutetaca como heroacutei Lacan afirma que Filocte-

tes eacute um heroacutei que estaacute a altura da eacutetica da psicanaacutelise e eu digo ainda mais da cliacutenica

de nossos tempos pois

a Eacute capaz de vencer o ressentimento

b Triunfa sobre a solidatildeo

c Suporta a maldiccedilatildeo que vai da dor ao sofrimento que natildeo se pode curar

236

d Sua vida estaacute sobredeterminada por sequencias de decisotildees cujos motivos e razotildees

se lhe escapam mas que ele as suporta e acolhe mesmo assim

Aprecariedadeposicionalumnovotipodeanguacutestiaflutuante

Um terceiro tipo ascendente de sofrimento foi antecipado pela feliz expressatildeo de Bau-

delaire heautontimorumenos ou seja aqueles que parecem experimentar prazer em se

atormentar Aqui podemos incluir as pesquisas de Ernesto Laclau e Alain Badiou em

torno de sujeitos que satildeo colhidos por um movimento social ou dos que se engajam

num percurso da verdade Por exemplo nas recentes pesquisas de Jesseacute de Souza sobre

a nova classe trabalhadora brasileira destacam-se vaacuterios predicados necessaacuterios para

ascenccedilatildeo social senso de planejamento espiacuterito de colaboraccedilatildeo disciplina e aperfeiccedilo-

amento Mas esta nova classe social tambeacutem traz consigo novas formas de sofrimento

principalmente baseadas na divisatildeo de fidelidades entre sua origem e famiacutelia e as exi-

gecircncias de sua nova condiccedilatildeo Eacute o caso dos que fracassam quando triunfam dos que

estatildeo agraves voltas com o peso de seus laccedilos de sangue e famiacutelia no interior de uma traje-

toacuteria de separaccedilatildeo e autonomia Tanto naquelas famiacutelias europeias nas quais haacute duas

ou trecircs geraccedilotildees a narrativa do trabalho se interrompeu quanto nas famiacutelias brasileiras

emergentes ou ainda no temor de empobrecimento que assombra as classes meacutedias

americanas haacute o sentimento profundo de que um pacto foi violado A incerteza quanto

agraves verdadeiras razotildees do sucesso ou do fracasso engendram uma forma de diacutevida difusa

e de ansiedade flutuante O sentimento eacute de que algo foi abolido sem deixar testemu-

nho ou histoacuteria e que cedo ou tarde um fantasma viraacute cobrar sua parte em vinganccedila

Uma novela como Avenida Brasil eacute um marco para tais processos de subjetivaccedilatildeo Lacan

afirmava que a verdade do sofrimento neuroacutetico eacute ter a verdade como causa Esta nova

forma de masoquismo eacute antes de tudo um tipo de paixatildeo pela verdade que no mais das

vezes aparece como desamparo e inseguranccedila

Assim como temos de um lado os que narram demais e de outro os que narram de me-

nos podemos agora opor tratamentos em torno de tomadas de decisatildeo ao tratamentos

nos quais saber qual seria uma decisatildeo a ser tomada torna-se quase impossiacutevel Aqui se

trata de uma boa situaccedilatildeo para evocar o conceito freudiano mesmo de mal-estar Mal-

-estar quer dizer Unbehagen ou seja ausecircncia de clareira (Hagen eacute a clareira na mata)

de descanso de lugar Tipicamente estes satildeo os casos nos quais se procura desesperada-

237Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

mente uma saiacuteda uma evasatildeo um suporte para o que chamo de precariedade posicio-

nal Natildeo estou em meu corpo natildeo estou em minha casa natildeo estou em minhas palavras

Mas natildeo se trata de um drama em torno da inautenticidade como as personalidades

narciacutesicas dos anos 1960 ou as neuroses de caraacuteter dos anos 1950

Satildeo pacientes que parecem gozar com a anguacutestia que se produzem Para algueacutem que

estaacute sempre agrave procura de uma saiacuteda que estaacute sempre procurando o ponto de dissoluccedilatildeo

montar uma verdadeira decisatildeo eacute um fato relativamente raro e difiacutecil No fundo as de-

cisotildees que surgem pervasimante no discurso destes sujeitos satildeo pseudo-decisotildees feitas

para jamais realmente produzirem consequecircncias

Poderia-se falar aqui de formas a-transferenciais de demanda

Talvez fosse exagero dizer que se trata aqui dos verdadeiros casos de inclusatildeo Natildeo soacute os

que jamais fariam parte de um clube que os admitisse como soacutecios pois na verdade a

proacutepria ideia de clube lhes parece insuportaacutevel Natildeo estatildeo em uma ilha como nem em

tracircnsito permanente nem constrangidos por diagnoacutesticos sedentaacuterios mas para eles

soacute haacute um imperativo categoacuterico ldquosairrdquo Nenhum lugar eacute habitaacutevel nenhuma posiccedilatildeo

lhes eacute suficientemente autecircntica nenhum espaccedilo lhe soa possiacutevel Satildeo os desafiantes

da topologia Os sem-lugar natildeo satildeo como vampiros paranoides ou como Frankenstein

esquizoides eles estatildeo mais para zumbis em busca da alam perdida

Sofrimentodeindeterminaccedilatildeo

O quarto tipo de sofrimento emergente pode ser descrito como uma nova forma de

paranoia Paranoia benigna associada ao que chamo de vida em forma de condomiacutenio

com seus muros siacutendicos e regulamentos Trata-se de um tipo de sofrimento basea-

do no medo permanente de um objeto intrusivo e anocircmalo capaz de perturbar a paz

administrada cujo preccedilo eacute uma vida asceacutetica e vigiada A paranoia sistecircmica floresce

abundante no mundo corporativo institucional e nos estados de exceccedilatildeo descritos por

Giorgio Agamben Ela cria e manteacutem o sofrimento derivado da segregaccedilatildeo (como o

bulling) da purificaccedilatildeo (como o higienismo do corpo belo ou saudaacutevel) e do controle

sobre o gozo do proacuteximo (como nas homofobias e demais formas de intoleracircncia) A

paranoia eacute um sintoma de excesso de identidade por isso ela interpreta o gozo do outro

como perturbador justificando a violecircncia persecutoacuteria Eacute assim por um processo de

238

auto-confirmaccedilatildeo que se criam o outro traidor do ciumento o outro impostor do ero-

tomaniacuteaco o outro invejoso do megalomaniacuteaco Curiosamente satildeo estas as formas de

vida mais propensas ao uso de substacircncias dopantes para aumentar a produtividade

para anestesiar a experiecircncia de si para substituir a hermenecircutica discursiva de si por

uma vivecircncia sensorial individualizada Por isso podemos associar este quarta forma

de sofrimento agraves narrativas de vampiros nas quais o tema da mistura e do domiacutenio da

seduccedilatildeo e do controle surge em primeiro plano

O que reuacutene estes quatro tipos cliacutenicos que representam formas inovativas de sofrer e

de articular este sofrimento em sintomas eacute o que reformulamos a partir do conceito

desenhado pelo filoacutesofo Axel Honneth (2007) de sofrimento de indeterminaccedilatildeo Tanto

a multiplicaccedilatildeo discursiva das modalidades de nomeaccedilatildeo e ciframento dos sintomas

quanto as situaccedilotildees de deacuteficit narrativo e ainda o grupo dos laccedilos decisionais ou das

subjetividades em erracircncia tem em comum o fato de que a dominante maior do sin-

toma natildeo eacute a reorganizaccedilatildeo das relaccedilotildees de determinaccedilatildeo desejantes sempre mais ou

menos articuladas pela inscriccedilatildeo do falo no campo do Outro e pelas perturbaccedilotildees deste

grande determinante da subjetividade que satildeo os Nomes-do-Pai

Ora o que caracteriza estas formas de vida natildeo eacute o excesso ou a falta de determinaccedilotildees

simboacutelicas mas a anomia como um fato positivo O sofrimento de indeterminaccedilatildeo re-

quer no fundo um tipo de orientaccedilatildeo de gozo ou de desejo natildeo orientado para a forma-

ccedilatildeo de unidades

Entendo que a psicanaacutelise tem duas tarefas teoacutericas e cliacutenicas diante deste quadro O

primeiro movimento implicaria em rever sua teoria do reconhecimento derivada e pre-

sente por exemplo em suas teses sobre o narcisismo em sua teoria do desejo em sua

concepccedilatildeo de sujeito dividido A principal revisatildeo aqui nos convidaria a introduzir a

natildeo-identidade como princiacutepio fundamental de sua teoria das relaccedilotildees Isso significa

por exemplo interpolar um conceito psicanaliacutetico de narrativa como funccedilatildeo intermedi-

aacuteria entre o discurso e a fala O conceito que em Lacan representa esta natildeo-identidade

eacute naturalmente o objeto a

a O objeto intrusivo (corpo)

b O objeto que resta do pacto formativo da lei do desejo (mito)

239Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

c O objeto que eacute a causa e razatildeo a desregulaccedilatildeo estrutural do espiacuterito

d O objeto que eacute a alma perdida

A segunda modificaccedilatildeo que considero importante nos envia agrave introduccedilatildeo de uma loacutegica

natildeo-toda no proacuteprio interior da cliacutenica A loacutegica do natildeo-todo natildeo equivale agrave loacutegica da cas-

traccedilatildeo Mas o sujeito em Lacan eacute o sujeito natildeo eacute o sujeito homem ou o sujeito mulher

Ora o natildeo-todo eacute um decircixico uma forma diferencial de incluir relaccedilotildees ao gozo confor-

me uma loacutegica de natildeo-relaccedilotildees Portanto teoria das relaccedilotildees em Lacan por exemplo

estruturas cliacutenicas teorias dos discursos nos convidam a repensar formas de inscriccedilatildeo

faacutelica do sentido e da significaccedilatildeo De outro lado teoria das natildeo-relaccedilotildees dos fracassos

produtivos da anomias criativas como parece ser o caso com a triacuteade real-simboacutelico-

-imaginaacuterio e mais ainda com a teoria da sexuaccedilatildeo

Conclusatildeo

Temos entatildeo dois grupos os Zumbis e os Frankensteins sofrem com a falta de experi-

ecircncias produtivas de indeterminaccedilatildeo pois para eles os processos de racionalizaccedilatildeo apare-

cem como vazio indiferente ou como uma experiecircncia caoacutetica de si e do mundo Jaacute os

Fantasmas e Vampiros ao contraacuterio sofrem com o excesso de experiecircncias improdutivas

de determinaccedilatildeo ou seja eacute como se acreditassem demasiadamente nos processos de

simbolizaccedilatildeo e subjetivaccedilatildeo que regulam os diferentes regimes de verdade Tudo se

passa como se para os primeiros o Real aparecesse como impossiacutevel e para os segundos

como contingecircncia Se os Fantasmas e Vampiros estatildeo questionando os fundamentos

totecircmicos da autoridade os Zumbis e Frankenstein estatildeo mais proacuteximos do que o antro-

poacutelogo brasileiro Viveiros de Castro chamou de perspectivismo ameriacutendio (ou seja uma

cultura na qual a identidade natildeo eacute tratada como um fato de origem e onde a experiecircncia

de reconhecimento estaacute sujeita a elevados niacuteveis de indeterminaccedilatildeo)

Tais tipos cliacutenicos sejam apenas identificaccedilotildees ou seja formas narrativas mais ou me-

nos coletivas pelas quais a experiecircncia de sofrimento pode se incluir em discursos cons-

tituiacutedos Questatildeo relevante porque a inclusatildeo discursiva de uma forma de sofrimento

eacute o que permite que ela seja reconhecida tratada e localizada em um registro moral ou

juriacutedico cliacutenico ou poliacutetico literaacuterio ou religioso Sofrimentos que natildeo se enquadram

240

nos discursos constituiacutedos satildeo frequentemente tornados invisiacuteveis derrogados de sua

verdade como uma palavra amordaccedilada

Se toda forma de sofrimento encerra a teoria de sua proacutepria causa podemos ver como a

narrativa da perda da alma eacute no fundo uma versatildeo atualizada do que Lacan pensou com

sua tese do sintoma como alienaccedilatildeo ao desejo do Outro mas agora uma alienaccedilatildeo Zum-

bi afeita a nossa forma mutante de produccedilatildeo e consumo A narrativa frankensteiniana

da desregulaccedilatildeo sistecircmica e da perda da unidade retoma a tese lacaniana de que o sinto-

ma eacute efeito (e tambeacutem causa) do desmembramento entre Real Simboacutelico e Imaginaacuterio

Tambeacutem a narrativa neo-masoquista da violaccedilatildeo do pacto simboacutelico de origem com seu

retorno fantasmaacutetico retoma as teses sobre a negaccedilatildeo em curso no interior do drama

ediacutepico e particularmente da castraccedilatildeo Finalmente a narrativa paranoica em torno da

existecircncia de objetos intrusivos que se infiltram por entre muros e regulamentos con-

firma que todo sintoma conteacutem uma satisfaccedilatildeo paradoxal que Lacan chamou de gozo

Quando a cliacutenica lacaniana chegou ao Brasil nos anos 1980 um de seus motes principais

era a substituiccedilatildeo das extensas narrativas realiacutesticas sobre a infacircncia e seus meandros

rememorativos pela agilidade simboacutelica dos significantes fundamentais Hoje parece

haver um movimento pelo qual os psicanalistas se perguntam como facultar que certos

pacientes se tornem novamente capazes de bem narrar suas experiecircncias de sofrimen-

to A psicopatologia lacaniana prometia inicialmente distinccedilotildees fortes e seguras entre

psicose neurose e perversatildeo Hoje se pensa como organizar diagnoacutesticos envolvendo

formas muacuteltiplas e combinadas entre tipos de sofrimento modalidades de sintomas e

formas de mal-estar Lacan trouxe a antropologia estrutural e a teoria dialeacutetica do reco-

nhecimento para o centro da experiecircncia psicanaliacutetica Hoje pensamos como lidar com

os tipos de mal-estar cuja nomeaccedilatildeo eacute precaacuteria incerta ou improvaacutevel e com os tipos

de sofrimento que escapam agrave loacutegica identitaacuteria do reconhecimento Se o sofrimento e o

amor satildeo os dois motivos de qualquer processo transformativo eacute fundamental reter que

no centro de qualquer experiecircncia de sofrimento haacute um gratildeo de Real e uma pitada de

verdade que aspira a uma nova forma de vida

241Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010

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242

Corpo em psicanaacutelise e obesidade

ElianaRigottoLazzarini

CarolinaFranccedilaBatista

TerezinhadeCamargoViana

Os transtornos alimentares satildeo expressotildees de casos da demanda cliacutenica contemporacirc-

nea os quais conjugam a cultura nas manifestaccedilotildees do corpo e na imagem corporal

suas prerrogativas 28A experiecircncia com tais pacientes a reflexatildeo a respeito dos pilares

da praacutetica cliacutenica e de suas questotildees teoacutericas colocam em pauta o questionamento sobre

as especificidades destes casos e os casos claacutessicos da eacutepoca de Freud A semelhanccedila

entre eles reside na pertinecircncia da sexualidade como sustentaccedilatildeo da descoberta psica-

naliacutetica do inconsciente e ainda hoje o mal-estar destes sujeitos estaria relacionado agrave

alteridade trazida na experiecircncia psiacutequica do sexual e como o modo de lidar com ela

28 Este texto eacute um dos produtos da pesquisa Transtornos Alimentares psicopatologias narciacutesicas e obesidade que vem sendo desenvolvida no Laboratoacuterio de Psicanaacutelise e Subjetivaccedilaacuteo ndash Lapsus Universidade de Brasiacutelia Pesquisa apoiada pelo CNPq com bolsa de produtividade em pesquisa e bolsa de mestrado

243Corpo em psicanaacutelise e obesidade

vem refletindo ao longo dos anos uma mudanccedila da influecircncia dos processos terciaacuterios

na cultura Um destes traccedilos de mudanccedila que verificamos eacute o modo como o corpo tem

sido concebido culturalmente e os efeitos disto para o sujeito Teoacutericos contemporacircne-

os observam que a nossa cultura atual tem contribuiacutedo para aumentar a anguacutestia do

sujeito que tende a natildeo cultivar a interiorizaccedilatildeo e a reflexatildeo sobre si mesmo passando

a buscar formas para tentar sedar a anguacutestia que sente muitas vezes isto se traduzindo

em adoecimento psiacutequico

Delineandoaquestatildeo

A escuta do sofrimento dos indiviacuteduos que passam por alguma modalidade de trans-

torno alimentar convoca o olhar e a anaacutelise psicanaliacutetica pelo modo como o corpo eacute

concebido na atualidade A pertinecircncia da psicanaacutelise nestes casos reside em seu modo

de questionar o discurso ao qual este indiviacuteduo encontra-se adaptado e do qual queixa

sentir-se excluiacutedo

Eacute neste ponto que a psicanaacutelise apresenta o desafio da inquietaccedilatildeo a quem quer que a

pratique e com ela dialogue teoricamente aspecto que deve ser levado em considera-

ccedilatildeo na obesidade Tal inquietaccedilatildeo gera questionamentos quais seriam os fundamentos

encontrados na cultura para o alto iacutendice de casos de obesidade Em que criteacuterios se

fundamentam seu diagnoacutestico e qual a sua pertinecircncia para a escuta psicanaliacutetica do

sujeito Qual posiccedilatildeo este sujeito ocupa e qual sua influecircncia na produccedilatildeo do mal-estar

Permeando estas questotildees encontramos a importacircncia de uma anaacutelise da cultura e dos

discursos contemporacircneos como co-produtores de novas manifestaccedilotildees de sofrimento

A alta incidecircncia de casos de transtornos alimentares e o lugar que eles ocupam social-

mente eacute expressatildeo segundo Lazzarini (2006) de uma subjetividade afetada por um

mundo em constante mutaccedilatildeo do qual ela mesma tambeacutem eacute veiacuteculo e agente desta mu-

danccedila Tal particularidade remete agrave emergecircncia em esquadrinhar que fatores culturais

atuais satildeo contingecircncias determinantes agrave constituiccedilatildeo deste sujeito

Frente agraves caracteriacutesticas da subjetividade contemporacircnea dentre as quais pode ser sa-

lientada a exacerbaccedilatildeo narciacutesica torna-se necessaacuterio que tanto o sujeito contemporacircneo

como o pesquisador e o psicanalista imersos como estatildeo nesta cultura possam sair da

posiccedilatildeo de massificaccedilatildeo a qual tende a impedir a construccedilatildeo de um olhar a respeito

244

das condiccedilotildees atuais de subjetivaccedilatildeo e assim ter um olhar diferenciado que permita

ampliar a compreensatildeo destes novos modos de subjetivaccedilatildeo

Uma das contingecircncias do momento atual eacute a ocorrecircncia de um encurtamento dos tem-

pos histoacutericos pela rapidez com que os eventos se atualizam na cena contemporacircnea

Tal incidecircncia ocasiona uma maior exposiccedilatildeo dos sujeitos aos efeitos de acontecimentos

importantes ocorridos recentemente na histoacuteria humana Isto pode em consequecircncia

gerar o encurtamento do tempo subjetivo promovendo uma tendecircncia ao imediatismo

Este encurtamento eacute influenciado tambeacutem pelos avanccedilos tecnoloacutegicos decorrentes de

um progresso civilizatoacuterio o que tende a tornar os novos produtos rapidamente obsole-

tos e consequentemente descartaacuteveis

No entanto este descarte como se vecirc atualmente natildeo diz de uma experiecircncia de perda

justamente pela possibilidade de um objeto melhor vir a substituiacute-lo Este aspecto pro-

duz implicaccedilotildees na temporalidade psiacutequica que pela falta da vivecircncia de um processo

de perda e de seu consequente luto resulta cada vez mais na dificuldade de simbolizar

e elaborar os fatores culturais sociais e tambeacutem psiacutequicos Logo as transformaccedilotildees so-

ciais histoacutericas e culturais recentes mostram suas consequecircncias no modo de conduccedilatildeo

e compreensatildeo dos elementos constituintes da cliacutenica psicanaliacutetica ou seja nos efeitos

produzidos no tratamento destes sujeitos

Esta exposiccedilatildeo do sujeito contemporacircneo marca uma diferenccedila dos casos e da cultura na

eacutepoca de Freud onde o sofrimento do sujeito estava ligado agrave culpa pela transgressatildeo de

uma lei e de um limite O conflito se centrava na renuacutencia que o processo civilizatoacuterio

exigia das satisfaccedilotildees pulsionais demandando a repressatildeo destas pulsotildees Logo o sofri-

mento e a regulaccedilatildeo pulsional destes sujeitos seria regida pelo recalque Considerando

que a cliacutenica freudiana foi construiacuteda e estruturada tomando por fundamento a neu-

rose e a castraccedilatildeo como referecircncia questiona-se se haacute uma diferenccedila entre o sexual da

cliacutenica freudiana e a sexualidade tal qual temos acesso contemporaneamente e por tal

em que aspecto podemos distinguir os casos atuais dos antigos Eacute importante salientar

que a questatildeo da sexualidade remete agrave necessidade de delimitaccedilatildeo do que eacute essencial agrave

psicanaacutelise do que permaneceria em sua passagem por esta nova construccedilatildeo do social

245Corpo em psicanaacutelise e obesidade

AdescobertadeFreudeastransformaccedilotildeesdosexualnolaccedilosocial

De acordo com autores psicanaliacuteticos contemporacircneos a cliacutenica psicanaliacutetica da forma

como formulada por Freud tem sofrido mudanccedilas face as diferentes modalidades de

mal-estar apresentadas pelos sujeitos que procuram anaacutelise Esta diferenccedila estaacute intima-

mente ligada agrave mudanccedila de um contexto social e cultural que lhe era especiacutefico entre o

final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX periacuteodo da criaccedilatildeo dos fundamentos psicana-

liacuteticos As transformaccedilotildees histoacutericas e sociais sempre afetam o processo de questiona-

mento que permite a produccedilatildeo teoacuterica e a praacutetica psicanaliacutetica consequentemente as

novas perspectivas apresentadas agrave psicanaacutelise dizem de uma transformaccedilatildeo na cultura

no que concerne agrave sexualidade e aos modos de satisfaccedilatildeo

Importante salientar que a fundaccedilatildeo da psicanaacutelise se deu pela escuta da histeria fato

que coloca em cena a expressatildeo do mal-estar e do sofrimento corporal na neurose O

fundamento da vivecircncia do corpo pela histeacuterica expressiva em seus sintomas conver-

sivos remete agrave formulaccedilatildeo da noccedilatildeo de sexualidade infantil Eacute por meio da fala das

pacientes histeacutericas que Freud pocircde observar que estes sintomas diziam respeito a uma

divergecircncia entre a sexualidade em suas manifestaccedilotildees e a moral vigente

Lazzarini e Viana (2006) discutem que a elaboraccedilatildeo freudiana do inconsciente em seus

princiacutepios esteve relacionada agrave sexualidade pela via da noccedilatildeo de trauma concebido

neste periacuteodo como um acontecimento factual ocorrido na histoacuteria do sujeito Os sin-

tomas histeacutericos instauravam-se por um significado sexual que se encontrava recalcado

e por tal inconsciente Por natildeo poder encontrar expressatildeo pela via consciente esta

tendecircncia pulsional manifestar-se-ia por sintomas corporais

Deste modo o campo psicanaliacutetico foi instaurado pelo sentido subversivo da sexualida-

de que encontrava entraves agrave sua expressatildeo pelas tendecircncias repressivas do contexto

cultural no qual este discurso emergia Estes obstaacuteculos seriam expressatildeo da ameaccedila

que a sexualidade apresentava ao eu do indiviacuteduo O texto de Freud Moral sexual civi-

lizada e a doenccedila nervosa moderna de 1908 coloca o acento da origem da neurose na

caracteriacutestica repressiva autoritaacuteria e puritana da moral da civilizaccedilatildeo A capacidade

sublimatoacuteria seria assim dessexualizada e direcionada para a produccedilatildeo com fins ao

progresso civilizatoacuterio

246

Birman (2009) expotildee que a ecircnfase encontra-se na possibilidade de extirpaccedilatildeo da sexu-

alidade para uma finalidade terapecircutica e civilizatoacuteria que promoveria uma tentativa

de harmonizaccedilatildeo do sujeito e da sociedade A psicanaacutelise freudiana no texto de 1908

apostaria na possibilidade de encadeamento pela representaccedilatildeo das exigecircncias pulsio-

nais de modo a promover um completo abarcamento pelo simboacutelico do registro real e

pulsional Jaacute no texto Mal-estar na civilizaccedilatildeo de 1930 Freud expotildee o conflito civilizaccedilatildeo

versus pulsatildeo e na impossibilidade da cura do desamparo pela psicanaacutelise o resultado

seria um compromisso do sujeito com a sua gestatildeo para toda a vida

Birman (2009) observa que a criacutetica freudiana agrave modernidade e agrave evoluccedilatildeo cientiacutefica

localiza-se justamente na impossibilidade de resoluccedilatildeo da condiccedilatildeo de desamparo e

de fragilidade do sujeito pois a ciecircncia funda-se na razatildeo e ela nada poderia fazer para

impedir a morte Este eacute um conceito chave no redirecionamento de Freud sobre a cons-

tituiccedilatildeo do sujeito e sobre a questatildeo da sua origem

A elaboraccedilatildeo do conceito de desamparo permite uma mudanccedila da submissatildeo do sujeito

agraves exigecircncias de um progresso civilizatoacuterio para uma nova noccedilatildeo da relaccedilatildeo com o Ou-

tro via construccedilatildeo do laccedilo social Enquanto o discurso da primeira elaboraccedilatildeo freudiana

- identificado agrave ciecircncia que muitas vezes se presta ao progresso ndash era fundado em uma

tentativa de espiritualizaccedilatildeo de separaccedilatildeo entre o sujeito sua sexualidade e erotismo

logo de seu corpo no segundo momento haacute uma mudanccedila desta verticalizaccedilatildeo para a

horizontalizaccedilatildeo da sexualidade jaacute que somente pela sua construccedilatildeo intermediada por

um Outro eacute que o sujeito poderia se estruturar

Ocorponacontemporaneidadeeocorponapsicanaacutelise

O corpo aparece como uma das certezas que o indiviacuteduo tem ou seja seu pertenci-

mento ao mundo das coisas o torna locus privilegiado na cultura para se constituir um

porto seguro Sennett (2001) observa que no mundo contemporacircneo a aceleraccedilatildeo dos

acontecimentos e a voracidade do consumo faz com que o tempo seja insuficiente para

a formaccedilatildeo das subjetividades e o corpo torna-se passivo sofrendo diante de tantas

transformaccedilotildees Neste cenaacuterio o corpo fica cada vez mais voltado para suas proacuteprias

necessidades e prazeres fechado para a entrada do outro Tal modo de hipervalorizaccedilatildeo

do corpo na era atual transforma os homens em seus proacuteprios escravos e o que impera

eacute a forccedila da imagem Consequentemente a vida interior o outro e os laccedilos que podem

247Corpo em psicanaacutelise e obesidade

se estabelecer na troca de experiecircncias passam a ser valores pouco encontrados Isso

de certa forma parece ser um bom terreno para a anguacutestia e o adoecimento

Diante dos desencadeamentos contemporacircneos encontramos hoje indiviacuteduos marca-

dos pelo sofrimento em seus proacuteprios corpos e com dificuldades significativas para nar-

raacute-las McDougall (1983) faz notar que a forma como o sujeito vive seu corpo informa a

respeito da natureza de sua relaccedilatildeo com o mundo ou seja quando o corpo natildeo eacute capaz

de significar a diferenccedila entre o eu e o outro interior e exterior quando o sujeito tem di-

ficuldade em habitar seu corpo as relaccedilotildees com os outros correm o risco de se tornarem

confusas De acordo com a autora ldquoeacute a maneira como a pessoa pensa o proacuteprio corpo

assim como a posiccedilatildeo que ela assume em relaccedilatildeo a esse corpo o que naturalmente iraacute

influenciar de forma marcante a relaccedilatildeo eumundordquo (1983 p155)

O sujeito busca no corpo uma consciecircncia de si ou seja fazer com que o corpo exista

por si mesmo para que possa estimular sua reflexatildeo e reconquistar sua interioridade

O corpo natildeo eacute apenas um meio de locomoccedilatildeo mas um organismo vivo corpo sexuado

marcado pelas pulsotildees fonte de prazer (e tambeacutem de dor sensaccedilotildees) que necessita ser

cuidado por seu possuidor

O corpo marca sua presenccedila na psicanaacutelise contemporacircnea natildeo somente no que diz

respeito agraves doenccedilas psicossomaacuteticas e agrave hipocondria mas tambeacutem porque encontra

outras formas de se manifestar E uma dessas formas eacute a de um movimento narciacutesico

no qual o corpo vai ser lugar de investimento libidinal Se a eacutepoca de Freud foi mar-

cada pela repressatildeo sexual como salientado acima a era atual se caracteriza por um

movimento contraacuterio Natildeo eacute da repressatildeo que se fala mas da dificuldade de lidar com

os limites e os contornos de si A barreira quando colocada eacute feita de modo incisivo

muitas vezes mantendo o sujeito ilhado em um mundo fechado ao acesso do outro Haacute

portanto uma incapacidade no estabelecimento e manutenccedilatildeo de laccedilos mais amplos

o que coloca em evidecircncia o retorno ao momento psiacutequico primordial de instalaccedilatildeo do

eu a etapa narciacutesica

Lazzarini e Viana (2006) observam a necessidade de refletir sobre esta condiccedilatildeo pela

forma como o corpo eacute visto tradicionalmente pela psicanaacutelise ou seja em paralelo ao

discurso da linguagem Poreacutem como coloca Fernandes (2002) quando a psicanaacutelise

248

se vecirc enredada com o adoecer do corpo a tendecircncia eacute realizar uma ampliaccedilatildeo de seu

campo cliacutenico resultando necessariamente em uma ampliaccedilatildeo de seu campo teoacuterico

ldquoa inclusatildeo de novos conceitos ao arsenal do saber psicanaliacutetico permitiu uma fertilizaccedilatildeo da escuta do corpo na cliacutenica para aleacutem das somatizaccedilotildees abrindo campo para as aproximaccedilotildees e diferenccedilas entre determinados quadros cliacutenicos e as neuroses claacutessicas as toxicomanias os transtornos alimentares as perversotildees etcrdquo (p 53)

A concepccedilatildeo psicanaliacutetica do corpo tem sua particularidade por estar em uma posiccedilatildeo

de fronteira entre os diferentes registros da experiecircncia psiacutequica logo por poder ser

tomada pelo registro real simboacutelico e imaginaacuterio Conforme mencionado trata-se de

uma perspectiva inaugurada pela histeria que concede agrave ele um lugar radicalmente

diferente do concebido como objeto de estudo de outras ciecircncias

A leitura psicanaliacutetica do corpo permite o seu questionamento para aleacutem do lugar que

lhe eacute fixado numa suposta realidade social uma vez que traz no nascimento de seu

discurso a sexualidade como seu centro Trata-se de uma perspectiva que fundamenta o

trabalho da psicanaacutelise em sua dimensatildeo outra que eacute alheia agraves conformidades que um

saber de leis riacutegidas ou universais dispotildee

Lazzarini e Viana (2006) comentam que o corpo na psicanaacutelise em sua primeira for-

mulaccedilatildeo de corpo eroacutegeno eacute atravessado pela pulsatildeo estrutura-se em confronto ao

corpo da necessidade na medida em que a linguagem nele faz efeito inserindo-o na re-

presentaccedilatildeo significaccedilatildeo e lembranccedila O corpo seria entatildeo pela sexualidade articulado

agrave histoacuteria do sujeito situando-o no imaginaacuterio social pela representaccedilatildeo

A teoria freudiana portanto permite colocar em evidecircncia que o somaacutetico habita um

corpo que eacute tambeacutem lugar de realizaccedilatildeo de um desejo inconsciente Fernandes (2002)

pontua que o corpo psicanaliacutetico se apresenta ao mesmo tempo como o palco onde se

desenrola o jogo das relaccedilotildees entre o psiacutequico e o somaacutetico e como personagem inte-

grante da trama das relaccedilotildees De fato esse corpo eacute regido segundo uma dupla raciona-

lidade a do que eacute somaacutetico e do que eacute psiacutequico

Para Lacan (1949) a importacircncia do estaacutedio do espelho se daacute pelo que instaura o mo-

mento inaugural da constituiccedilatildeo do eu O infans pela visatildeo e percepccedilatildeo de sua proacutepria

imagem da imagem de seu corpo no espelho prefigura uma totalidade corporal que eacute

249Corpo em psicanaacutelise e obesidade

corroborada pelo outro que a reconhece como verdadeira Deste modo ou seja para a

crianccedila poder se apropriar de sua imagem eacute necessaacuterio a presenccedila de um outro que a

confirme para que ela possa assim interiorizaacute-la A crianccedila tem neste momento uma

vivecircncia de unidade que estabelece a passagem do corpo despedaccedilado e natildeo diferencia-

do do corpo de sua matildee para um corpo proacuteprio

Tal momento no qual o indiviacuteduo se identifica imaginariamente faz parte do seu pro-

cesso de constituiccedilatildeo que aos poucos pela incidecircncia do simboacutelico pode apartar-se das

identificaccedilotildees primaacuterias e construir sua verdade Este momento de captaccedilatildeo do imagi-

naacuterio funda-se pela funccedilatildeo de continecircncia da condiccedilatildeo de desamparo e de imaturidade

fiacutesica Trata-se de um momento na constituiccedilatildeo do infans em que o outro cuidador aco-

lhe o sujeito em sua prematuridade A constituiccedilatildeo do narcisismo do sujeito eacute resultado

portanto da presenccedila ativa de um outro realizada neste periacuteodo pelo qual a crianccedila

poderaacute apreender-se em seu corpo pela obtenccedilatildeo de um contorno niacutetido e definido

O corpo eacute portanto lugar da passagem do outro lugar de onde nasce o sujeito Sen-

do assim pode-se dizer que a grande inovaccedilatildeo da psicanaacutelise foi precisamente con-

siderar essa dupla racionalidade como articulada pelo desejo inconsciente mas cuja

leitura tambeacutem se daacute no corpo Birman (2009) complementa dizendo que o corpo em

psicanaacutelise pode ser definido como sendo um corpo sujeito marcado pelo outro pela

linguagem Esse corpo de acordo com o autor deixa de ser corpo como condiccedilatildeo de or-

ganismo e se assujeita isto eacute passa a ser habitado pelo outro implicando uma condiccedilatildeo

relacional ndash euoutro

Com esse percurso podemos asseverar que desde Freud o corpo encontra espaccedilo na

psicanaacutelise pois foi o proacuteprio Freud quem inaugurou esta escuta ao ouvir o corpo das

histeacutericas encontrando um caminho que possibilitou livraacute-las de seu sofrimento

Corpoeobesidade

No plano da cultura e sociedade atual momentos de indefiniccedilatildeo e mudanccedila com relaccedilatildeo

a valores e papeacuteis sociais sobrecarregam os indiviacuteduos expondo-os agrave anguacutestia e ao mal

estar Com isto o cuidado de si e de seu corpo fica prejudicado

250

Birman (2003) observa que no cotidiano as pessoas se apresentam cada vez mais com

queixas difusas localizadas no corpo que vatildeo desde dores diversas e inespeciacuteficas ateacute

sensaccedilotildees de completo esgotamento Queixam-se tambeacutem de stress constante e uma di-

ficuldade em limitar a carga fiacutesica ou emocional que podem suportar O autor enfatiza

a incapacidade crescente dos sujeitos de lidar de forma produtiva com seu corpo sendo

surpreendidos constantemente por manifestaccedilotildees corporais diversas das quais satildeo in-

capazes lidar e de subjetivar

Neste cenaacuterio o corpo tem adquirido mais destaque e sofre sob os efeitos da doenccedila da

fragilidade e do stress A partir desta perspectiva a concretude do corpo aparece como

uma das certezas para o sujeito e em contrapartida o registro metafoacuterico da linguagem

eacute cada vez mais pobre visto que o discurso fica esvaziado em sua dimensatildeo simboacutelica

(Lazzarini 2006) A psicanaacutelise por sua vez procura dar voz ao sujeito e a seu corpo

em sua singularidade para aleacutem das demandas corporais relacionadas agrave dor Trata de

lidar com um corpo diferente do corpo bioloacutegico e dar voz a um corpo que eacute atravessado

pela linguagem e marcado por vivecircncias do sujeito

A escuta da fala do paciente obeso em psicanaacutelise evidencia algo de um mal estar locali-

zado no corpo (dores e sensaccedilotildees corporais desagradaacuteveis paralisias amortecimentos)

mas que deve encontrar ressonacircncia psiacutequica Em sua fala vemos ser ressaltada uma

condiccedilatildeo de imobilidade de impedimento agrave accedilatildeo causada por sua proacutepria limitaccedilatildeo e

que caracteriza um estado de ineacutercia uma falta de vontade ou incapacidade para agir de

fazer a vida andar e de nela se sentir presente

Apesar de ser um dos temas centrais de seu discurso o corpo natildeo eacute nomeado em seu

discurso o que aparece eacute uma fala sobre suas dores e incocircmodos mais do que do corpo

como unidade e pertencimento Apesar de ser um corpo grande e expressivo ele natildeo

tem contorno delimitaccedilatildeo e fica referenciado a uma massa disforme Haacute uma oscilaccedilatildeo

entre se sentir cheio e se sentir vazio e esta eacute a referecircncia que apresentam

Natildeo podemos deixar de nos referenciarmos neste momento ao ldquoestaacutedio do espelhordquo de

Lacan Ou seja parece que estamos falando do processo de constituiccedilatildeo deste sujeito

o que nos remete agrave problemaacutetica dos limites e das fronteiras da vida psiacutequica (Cardoso

2004 Figueiredo 2003) a delimitaccedilatildeo entre o eu e o outro o dentro e o fora incluin-

251Corpo em psicanaacutelise e obesidade

do aiacute tambeacutem os limites da proacutepria simbolizaccedilatildeo que parece nestes casos ser sempre

precaacuteria

Nessa configuraccedilatildeo subjetiva o corpo eacute sentido como um peso e natildeo como unidade

e posse sendo entatildeo qualquer sensaccedilatildeo aiacute localizada um enigma a ser decifrado um

acontecimento para o qual natildeo estatildeo preparados para lidar Natildeo se observa um estado

de desintegraccedilatildeo corporal como visto na psicose mas um estado no qual a unificaccedilatildeo eacute

fraacutegil e provisoacuteria O que se constata eacute que o sujeito convive com uma imagem corporal

pouco delimitada marcada por equiliacutebrio precaacuterio prestes a desmontar Constata-se que

quando apresentam certo senso de corpo natildeo eacute nessa totalidade que se reconhecem e

o corpo eacute raramente reconhecido como proacuteprio Haacute tambeacutem um sentimento de estra-

nheza com relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees e percepccedilotildees e ateacute mesmo uma negaccedilatildeo da realidade

objetiva do corpo verificando-se a alteraccedilatildeo na capacidade de nomeaccedilatildeo das sensaccedilotildees

corporais

O obeso fica sem condiccedilatildeo de traccedilar uma imagem de si pois natildeo se fixa nela Seu olhar

poderia auxiliaacute-lo a formar uma imagem psiacutequica mais soacutelida e consistente mas eacute um

olhar que se desvia Com isto perde a possibilidade de se ver com seus contornos e seu

tamanho real passando a imaginaacute-los Em seu relato o paciente obeso traz uma sensa-

ccedilatildeo desagradaacutevel de se sentir devassado pelo olhar do outro uma sensaccedilatildeo de insegu-

ranccedila quando observa que natildeo passa despercebido

Estranhamentodaimagemnaobesidade

Freud (1914) vai ressaltar tambeacutem a importacircncia do olhar na constituiccedilatildeo do eu do

sujeito o que vai lhe propiciar para o resto da vida uma maior sensaccedilatildeo de unidade e

completude A teoria do narcisismo em Freud mostra que eacute pela idealizaccedilatildeo do proacuteprio

eu mediante o narcisismo dos pais o qual vai libidinizar o eu da crianccedila relegando-a agrave

alienaccedilatildeo das imagos parentais cujos defeitos e incompletudes foram apagados Eacute por

esta alienaccedilatildeo que se forma o eu consciente da crianccedila tal qual Freud (1923) o concebe

instacircncia corporal e superfiacutecie de projeccedilatildeo psiacutequica

Eacute importante refletir sobre as implicaccedilotildees da aderecircncia do indiviacuteduo ao discurso atual

e a proacutepria funccedilatildeo do narcisismo na economia psiacutequica do sujeito de modo a lanccedilar

252

questionamentos a respeito da particularidade desta forma de subjetivaccedilatildeo na qual se

inclui a obesidade

A imagem do gordo causa sem duacutevida um estranhamento Apesar do ideal da sauacutede

apresentar-se como moral para todos as pessoas identificadas como obesas satildeo espe-

cialmente vistas e criticadas por supostamente natildeo se submeterem a um regime res-

tritivo do prazer e de seus corpos Pois bem eacute frequente tambeacutem na fala de pacientes

obesos de que quando eram magros tampouco eram felizes E eacute neste momento que o

sujeito pode questionar-se a respeito de sua alienaccedilatildeo promovida no momento do estaacute-

dio do espelho tal qual o cunha Lacan (1949) nesta mudanccedila assumida pelo sujeito agrave

medida em que ele se identifica a uma imagem que eacute sua

Eacute no momento de questionamento que estes sujeitos tecircm a possibilidade de sair do lu-

gar de exclusatildeo justamente por compreender que sua posiccedilatildeo de sujeito eacute descentrada

longe dos aportes imaginaacuterios promovidos pela sua constituiccedilatildeo narciacutesica Frequente-

mente assim os obesos satildeo representantes no imaginaacuterio social de significados em

uma identificaccedilatildeo a um gozo num excesso posiccedilatildeo que assumem em muitos momen-

tos mas que lhes eacute alheia pois natildeo se trata de identificaccedilatildeo consciente Satildeo pessoas que

muitas vezes natildeo sabem da onde adveacutem tanta rejeiccedilatildeo e gordura

Este processo de questionamento pode ser realizado pelo confronto com os significan-

tes de sua histoacuteria abrindo a possibilidade de um espaccedilo de indeterminaccedilatildeo que permi-

ta a dialetizaccedilatildeo a escolha e a responsabilizaccedilatildeo pela posiccedilatildeo que ocupa em sua fantasia

Consideraccedilotildeesfinais

O sujeito que constitui sua subjetividade neste periacuteodo poacutes-moderno confronta-se e se

estrutura em um momento de exacerbaccedilatildeo das condiccedilotildees que favorecem o lanccedilamento

agrave sua condiccedilatildeo primitiva de desamparo a pluralidade de objetos ofertados Estes objetos

mascaram a esta condiccedilatildeo do sujeito caracteriacutestica de seu desenvolvimento primitivo

no qual se encontrava no estado de prematuraccedilatildeo fiacutesica impossibilitado de ter prazer

por si mesmo e de acalmar suas necessidades e demandas

Haacute neste ponto algumas bases para se pensar como na atualidade a constituiccedilatildeo da

imagem e corpo fixa-se numa demanda de identificaccedilatildeo a um objeto perfeito uacutenico e

253Corpo em psicanaacutelise e obesidade

completo por meio do qual capta sua imagem Trata-se de uma demanda que encontra

lugar no discurso capitalista contemporacircneo pela oferta de dispositivos aos quais o in-

diviacuteduo identifica-se no intuito de restabelecer uma suposta relaccedilatildeo dual perdida e pela

qual tenta resgatar uma parcela de seu narcisismo Este objeto serviria portanto para

obliterar a falta proacutepria ao seu processo de constituiccedilatildeo como sujeito Esta procura e

alienaccedilatildeo no objeto remetem agrave tentativa de adequaccedilatildeo ao seu Eu ideal momento de sua

constituiccedilatildeo em que era massivamente investimento pelo narcisismo parental

A gestatildeo do proacuteprio desamparo ocorre no encontro com a diferenccedila que promoveria

uma quebra da construccedilatildeo imaginaacuteria e fantasiacutestica do mundo conhecido ao eu onde

as crenccedilas do sujeito foram sedimentadas e contornadas pelo seu narcisismo (Birman

1999) A manutenccedilatildeo desta posiccedilatildeo ilusoacuteria e autocentrada aleacutem de exigir um alto

dispecircndio econocircmico torna-se uma soluccedilatildeo precaacuteria e autoritaacuteria na evitaccedilatildeo do de-

samparo

Nesse sentido o que se verifica na atualidade eacute uma profusatildeo de ofertas que se fundam

no saber de um discurso capitalista apresentando soluccedilotildees para o aplacamento da an-

guacutestia do mal-estar pela sedaccedilatildeo do sujeito Lacan (1958) coloca que o fundamento da

alienaccedilatildeo do sujeito agrave cadeia significante pelo qual a demanda confunde-se agrave satisfaccedilatildeo

das necessidades - o que na sociedade moderna encontra seu apoio nos dispositivos

como a comida as drogas objetos tecnoloacutegicos objetos prontos para o consumo - tem

seu fundamento na primeira relaccedilatildeo de amor do sujeito que o colocava no estado de

completude por ele vivenciado no qual seu Eu se bastava onipotentemente

Trata-se de um amor que mais se assemelha agrave paixatildeo pela sua modalidade de investi-

mento no qual se organiza principalmente pela zona eroacutegena oral relacionando-se com

o objeto amoroso mediante a voracidade que caracteriza a introjeccedilatildeo

Diante disto pode-se compreender que o caraacuteter epidecircmico da obesidade e de outras

modalidades de sofrimento como a toxicomania a anorexia a bulimia depressotildees en-

tre outros mostram sua relaccedilatildeo com a configuraccedilatildeo da cultura contemporacircnea pois

a instabilidade deste periacuteodo histoacuterico favoreceria a regressatildeo destes sujeitos agraves suas

constituiccedilotildees narciacutesicas o eu assumiria o lugar do objeto do proacuteprio investimento libidi-

nal que dele emana O eu torna-se idealizado agarrando-se agrave ilusatildeo de completude que

os objetos fornecem Lazzarini e Viana (2010) a este respeito comentam que haacute uma

254

tendecircncia dos sujeitos de regredirem aos seus narcisismos de modo a se sentirem per-

feitos e seguros gozando da fusatildeo com o objeto primitivo que se encontra localizado

dentro de si

Portanto pode-se conceber que a atualidade promove as condiccedilotildees para uma modali-

dade de sofrimento orientada pelo narcisismo que Freud chamou em alguns momen-

tos de neurose narciacutesica A delimitaccedilatildeo destes casos possibilita o estabelecimento de

relaccedilotildees entre as suas particularidades e as caracteriacutesticas da cultura e da sociedade

contemporacircnea Uma mudanccedila do periacuteodo cultural de Freud que pode ser caracteriza-

da por um aumento da toleracircncia aos excessos excesso do consumo mas tambeacutem da

violecircncia da intoleracircncia da inseguranccedila e do stress situaccedilotildees nas quais a tradiccedilatildeo natildeo

surte o seu efeito coercitivo e limitador como no periacuteodo freudiano

Considerando a delimitaccedilatildeo da neurose narciacutesica podemos articulaacute-la aos casos de

transtornos alimentares Inseridos neste contexto contemporacircneo a vivecircncia do excesso

pulsional encontra expressatildeo nestes casos

Os casos de queixa de obesidade trazem para primeiro plano a problematizaccedilatildeo da expe-

riecircncia psiacutequica do corpo O mal-estar destes sujeitos manisfesta-se pela sua corporei-

dade na dor fiacutesica ou por meio de atuaccedilotildees que implicam uma intervenccedilatildeo neles Logo

fazendo com que estes indiviacuteduos busquem terapias intervencionistas seja por uma

suposta cura do incocircmodo por habitar seu proacuteprio corpo seja pelo vazio que nele haacute e

frente ao qual natildeo parece haver outra possibilidade

Referecircncias

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Sennett R (2001) Autoridade Rio de Janeiro Editora Record

256

Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea

MaacuterciaCristinaMaesso

DanielaScheinkmanChatelard

AndreaHorteacutelioFernandes

Os modos de expressatildeo compreensatildeo e percepccedilatildeo da dor mudam em relaccedilatildeo agrave cons-

truccedilatildeo cultural e social O discurso meacutedico-cientiacutefico vigora na atualidade excluindo a

dimensatildeo do corpo em relaccedilatildeo agrave pulsatildeo desejo e gozo restringindo agrave leitura organicista

as manifestaccedilotildees de sofrimento e dor psiacutequicos oferecendo aliacutevio imediato atraveacutes das

substacircncias quiacutemicas A psicanaacutelise orientada pela eacutetica do desejo cria outro espaccedilo

para o corpo sofrimento e dor ao oferecer a escuta testemunhando a existecircncia do

inconsciente

A dor eacute uma das coisas mais importantes da minha vida

Marguerite Duras

A dor acompanha a humanidade em todas as eacutepocas entretanto os modos de expressatildeo

interpretaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dor se distinguem no decurso da histoacuteria As vias criadas

257Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea

pelo ser humano para formular sobre o sofrimento e a dor transitaram principalmente

entre o discurso religioso com a suposiccedilatildeo de causas miacutesticas e o discurso cientiacutefico

na busca insaciaacutevel da localizaccedilatildeo objetiva do agente causador da dor A criaccedilatildeo artiacutestica

pode ser outra via para contornar a dor contudo despreocupada quanto a conhececirc-la

para dominaacute-la Vale lembrar como constataccedilatildeo do irrepresentaacutevel posto na arte a de-

claraccedilatildeo escrita por Marguerite Duras (1986) sobre seu livro A Dor de onde destacamos

a frase posta na epiacutegrafe

Como pude escrever isto que ainda natildeo sei nomear e que me assombra quando releio Como pude abandonar esse texto durante anos naquela casa de campo constantemente inundada no inverno A Dor eacute uma das coisas mais importantes de minha vida A palavra ldquoescritordquo natildeo seria adequada Encontrei-me diante de paacuteginas metodicamente repletas de uma letra extraordinariamente regular e calma Encontrei-me diante de uma fenomenal desordem do pensamento e do sentimento que natildeo ousei tocar e comparada agrave qual a literatura me envergonha ( p 8)

A dor se manifesta lancinante no corpo mas tambeacutem eacute representada nas criaccedilotildees hu-

manas de diversos modos na Biacuteblia e na Mitologia Grega como puniccedilatildeo divina nas

Belas Artes conservando seu aspecto irrepresentaacutevel nas Ciecircncias Bioloacutegicas atraveacutes

das pesquisas semioloacutegicas e pela busca de tratamento a fim de apaziguaacute-la

Natildeo se contesta que a experiecircncia da dor seja subjetiva J Cambier (2012 p 399) pro-

fessor de cliacutenica neuroloacutegica declara que ldquoa dor natildeo eacute fisicamente mensuraacutevelrdquo pode-se

apenas identificar atraveacutes de estimulaccedilatildeo eleacutetrica o limite da dor que eacute variaacutevel tanto

de um indiviacuteduo para o outro quanto no proacuteprio indiviacuteduo dependendo da situaccedilatildeo Se

a dor varia dependendo das circunstacircncias no corpo de um mesmo indiviacuteduo natildeo eacute

improacuteprio considerar que haacute incidecircncia da construccedilatildeo cultural e social sobre a experi-

ecircncia subjetiva da dor

O estudo que aborda a histoacuteria da dor no ocidente demarca que os significados da dor

satildeo distintos em cada eacutepoca natildeo satildeo os mesmos em todas as civilizaccedilotildees mudam de

sentido de acordo com a cultura e a sociedade transformando a relaccedilatildeo do sujeito com

a dor

A mudanccedila de sentido que uma sociedade daacute agrave dor eacute menos importante do que as

consequecircncias desta transformaccedilatildeo sobre a experiecircncia individual da dor os diferen-

258

tes significados atribuiacutedos agrave dor ndash prova necessaacuteria mal que precede um bem maior

castigo fatalidade ndash modificam a percepccedilatildeo que o sujeito tem da dor aumentando ou

diminuindo sua capacidade de resistecircncia (Rey 2012 p 20)

Isso posto eacute preciso considerar que na contemporaneidade evidencia-se a potecircncia do

discurso meacutedico-cientiacutefico sustentado pela sofisticaccedilatildeo tecnoloacutegica das maacutequinas e pelo

avanccedilo das pesquisas na produccedilatildeo de faacutermacos que auxiliam no diagnoacutestico e tratamen-

to da dor seja ela fiacutesica ou psiacutequica

No coloacutequio sobre O lugar da psicanaacutelise na medicina Lacan (19662001) mencionou

que a definiccedilatildeo do homem moderno eacute determinada pelo mundo cientiacutefico em torno

dos ideais da sauacutede gerando na sociedade uma demanda especiacutefica de sauacutede e cura ao

mesmo tempo depositando nas matildeos do meacutedico - a quem todos vecircm requerer o ldquoticket

de benefiacuteciordquo com resultado imediato - o poder que adveacutem dos produtos tecnoloacutegicos e

quiacutemicos de uacuteltima geraccedilatildeo

A leitura de Birman (2001) acerca do mal-estar na contemporaneidade coaduna com

esse apontamento de Lacan ao considerar os fundamentos da cultura do narcisismo e

da sociedade do espetaacuteculo desenvolvidos respectivamente por Lasch e Debord29 como

intervenientes no direcionamento bioloacutegico das pesquisas psicopatoloacutegicas atuais lar-

gamente pautadas nos conhecimentos geneacuteticos bioquiacutemicos e psicofarmacoloacutegicos O

discurso psicopatoloacutegico atual na concepccedilatildeo de Birman estaacute submetido ao ideal social

de sanidade que preconiza o evitamento da dor e do sofrimento psiacutequico ao ser fomen-

tado pela cultura do narcisismo e pela sociedade do espetaacuteculo que propotildeem o gozo

imediato do tempo presente resultado da exaltaccedilatildeo do eu na cena social e da perda das

relaccedilotildees do sujeito com o tempo e a histoacuteria Birman (p 242) indica as consequecircncias

para o sujeito do que ele nomeia como ldquosubversatildeo da tradiccedilatildeo eacutetica do Ocidenterdquo pelo

ideal cientificista mencionando a mudanccedila significativa na subjetivaccedilatildeo das paixotildees

(pathos) a partir do uso eloquente das drogas (liacutecitas ou iliacutecitas) contra a anguacutestia e a de-

pressatildeo afirmando o aumento vertiginoso da medicalizaccedilatildeo psicofarmacoloacutegica sobre o

sofrimento psiacutequico em relaccedilatildeo agrave diminuiccedilatildeo do limiar suportaacutevel dos sofrimentos nos

indiviacuteduos que por sua vez passam a demandar as substacircncias miraculosas

29 O autor se refere agraves seguintes publicaccedilotildees Lasch C The culture of narcissism Nova York Warner Barnes Books 1979 e Debord G La socieacuteteacute du spectacle Paris Gallimard 1992

259Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea

Outro apontamento importante realizado por Birman (p 58) acerca do mal-estar na

contemporaneidade articulado agrave pregnacircncia do discurso meacutedico-cientiacutefico concerne agrave

ldquocolonizaccedilatildeo do corpo-organismo pela medicinardquo Com isso dividem-se as competecircncias

teoacuterico-cliacutenicas e o ser humano constituindo como domiacutenio do territoacuterio meacutedico o sa-

ber sobre o organismo que eacute separado do psiquismo esse uacuteltimo devendo ser tratado e

investigado no territoacuterio da psicologia e ou da psicanaacutelise Nessa correlaccedilatildeo o organismo

sem subjetividade pertence ao conjunto da cliacutenica meacutedica assim como o psiquismo

sem organismo pertence ao conjunto composto pela cliacutenica psicoloacutegica O resultado

dessa operaccedilatildeo eacute a subtraccedilatildeo ou exclusatildeo do corpo que foi concebido por Freud com

marcado pela pulsatildeo e pelo desejo

Lacan (19662001 p 32) situou os fenocircmenos corporais que satildeo considerados e nome-

ados pela medicina como psicossomaacuteticos a partir de uma falha ldquoepistemo-somaacuteticardquo

Ao criar esse termo ldquoepistemo-somaacuteticardquo e colocaacute-lo articulado a uma falha Lacan alude

ao fracasso do progresso cientiacutefico em relaccedilatildeo ao saber sobre o corpo na medida em

que exclui a dimensatildeo do gozo dessa relaccedilatildeo A falha epistemo-somaacutetica refere-se ao

alcance impossiacutevel do conhecimento absoluto almejado pelo ideal cientiacutefico acerca dos

enigmas apresentados pelo corpo Ideal de conhecimento cujo ponto de partida para

conquistaacute-lo se localiza na criaccedilatildeo de ldquouma liacutengua bem feitardquo que permita a realizaccedilatildeo

de uma ldquoleitura exaustiva sem obscuridade ou resiacuteduordquo na qual ldquotodas as manifestaccedilotildees

patoloacutegicas falariam uma linguagem clara e ordenadardquo capaz de transformar todos os

sintomas em signos (Foucault 1998 p107)

A psicanaacutelise natildeo nega nem exclui que o corpo goza e fala atraveacutes dos sintomas por

situar-se em referecircncia a um discurso que difere fundamentalmente da ordem do dis-

curso cientiacutefico em diversos aspectos dos quais se destaca o tratamento das questotildees do

corpo em relaccedilatildeo ao inconsciente Do corpo-organismo concebido pela ciecircncia meacutedica

exclui-se a dimensatildeo do gozo do que o corpo diz-fazendo-menccedilatildeo ao gozo suposto e

perdido por meio de fenocircmenos somaacuteticos como Lacan sinalizou Numa metaacutefora que

alude agrave primazia do organismo sobre o corpo proposto na ciecircncia atual podemos dizer

que o ato meacutedico que rapidamente diagnostica e medica funciona como um ato antro-

pofaacutegico que engole a dimensatildeo do corpo portanto do humano em nome da ciecircncia e

empanturra o organismo com as substacircncias quiacutemicas que a induacutestria oferece

260

Tomando esse panorama parcial acerca do mal-estar na contemporaneidade articulado

agrave pregnacircncia do discurso meacutedico-cientiacutefico colocado na funccedilatildeo de dominar o sofrimen-

to que aflige o ser humano concernente agraves paixotildees (pathos) na forma das inibiccedilotildees

sintomas e anguacutestia e estendendo a questatildeo agrave manifestaccedilatildeo da dor no corpo eacute possiacutevel

conceber que a consequecircncia da raacutepida resposta agrave demanda por medicamentos eacute pro-

porcional agrave diminuiccedilatildeo do limiar suportaacutevel da dor

No campo da psicanaacutelise a questatildeo que envolve corpo sofrimento e dor se apresenta

desde seus primoacuterdios quando Freud passou a investigar a demonstraccedilatildeo do sintoma

histeacuterico no corpo em relaccedilatildeo agrave sexualidade distinguindo-o da leitura proposta pela

neurologia na qual o sintoma tinha significado preconcebido em referecircncia agrave estrutura

e ao funcionamento orgacircnico A separaccedilatildeo de Freud da concepccedilatildeo meacutedica do sintoma

aumentou na medida em que avanccedilou em seu percurso propondo um novo meacutetodo de

investigaccedilatildeo orientado pelo material inconsciente em formaccedilatildeo na fala no sonho no

chiste no lapso no ato falho e tambeacutem no sintoma

Freud atribuiacutea a Charcot o meacuterito de ter livrado a histeria do descreacutedito dos meacutedicos que

a interpretavam como uma simulaccedilatildeo um teatro mas ele rompeu com seu mestre a

respeito da qualificaccedilatildeo de ldquolesatildeo funcionalrdquo dada ao sintoma histeacuterico e tambeacutem com a

consideraccedilatildeo do caraacuteter generalizado do trauma que passou a ser abordado por ele em

sua particularidade A lesatildeo funcional histeacuterica remete ao que natildeo pode ser capturado

ao niacutevel do olhar na necropsia consistindo em uma lesatildeo suposta mas essa qualifica-

ccedilatildeo garante que o meacutetodo de diagnoacutestico meacutedico que transforma o sintoma em signo

patognomocircnico subsista E ao fazer do sintoma um signo representativo da doenccedila

descarta-se sua dimensatildeo significante (Allouch 1995) Nesse ponto localiza-se a rup-

tura fundamental realizada por Freud com o campo meacutedico para constituir o campo

psicanaliacutetico referido ao saber inconsciente

A interpretaccedilatildeo freudiana da lesatildeo funcional como lesatildeo devida agrave ligaccedilatildeo da represen-

taccedilatildeo a uma outra representaccedilatildeo implica que a passagem ao sintoma da primeira estaacute

referida a esta proacutepria ligaccedilatildeo e natildeo a um processo de incubaccedilatildeo de extensatildeo da uacutenica

representaccedilatildeo que tem em conta a teoria do trauma de Charcot O acreacutescimo por Freud

dessa outra representaccedilatildeo traumaacutetica eacute decisivo pois ela escapa assim ao saber tanto

ao do meacutedico quanto ao da histeacuterica O saber do trauma elaborado por Freud daacute lugar

261Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea

agrave fala da histeacuterica pois ele espera desta fala em conformidade com a estrutura de seu

discurso a produccedilatildeo de um saber natildeo sabido (Allouch 1995 p 49)

Nessa formulaccedilatildeo Allouch aponta que Freud deslocou o sintoma da posiccedilatildeo de signo

tal qual era concebido colocando-o na posiccedilatildeo de significante no sentido lacaniano do

termo ao concebecirc-lo como representaccedilatildeo que alude ao irrepresentaacutevel O sintoma histeacute-

rico na psicanaacutelise eacute um significante que representa o sujeito para outro significante

o do trauma que por sua vez escapa agrave representaccedilatildeo absoluta e cristalizada Para isso

Freud tambeacutem teve de se deslocar da posiccedilatildeo do cientista em relaccedilatildeo ao saber passando

da referecircncia ao saber constituiacutedo na linguagem especializada agrave referecircncia ao saber in-

consciente constituiacutedo pela fala dos seus pacientes

A criaccedilatildeo de Freud do conceito de trieb traduzido por pulsatildeo cedeu devido lugar ao

corpo humano rompendo com a dicotomia entre corpo e alma Com a escolha do termo

trieb Freud (19152004) formulou sobre a forccedila constante que emana do corpo fonte

pulsional em direccedilatildeo agrave satisfaccedilatildeo que soacute pode ser parcial por apenas contornar o objeto

(que tampouco eacute definido e existente) para satisfazer a excitaccedilatildeo corporal

Hanns (2004) nos esclarece que o termo trieb no alematildeo e tambeacutem em Freud se refere

agraves determinaccedilotildees da natureza incluindo as determinaccedilotildees psiacutequicas enquanto instinkt

enfatiza a articulaccedilatildeo entre o bioloacutegico e o fisioloacutegico como determinantes

Mas eacute na posiccedilatildeo entre o psiacutequico e o somaacutetico na qual Freud (19152004) concebe o

conceito de pulsatildeo (trieb) como conceito-limite que ele situa o corpo num lugar propria-

mente humano dependente da relaccedilatildeo com o Outro e com linguagem

Se abordamos agora a vida psiacutequica do ponto de vista bioloacutegico a ldquopulsatildeordquo nos aparece-

raacute como um conceito-limite entre o psiacutequico e o somaacutetico como o representante psiacutequico

[itaacutelico nosso] dos estiacutemulos que provecircm do interior do corpo e alcanccedilam a psique

como uma medida da exigecircncia de trabalho imposta ao psiacutequico em consequecircncia de

sua relaccedilatildeo com o corpo ( p 148)

O destaque sobre ldquorepresentante psiacutequicordquo refere-se a sinalizar que Freud trata da proacute-

pria inscriccedilatildeo do corpo na linguagem ao definir desse modo o conceito de pulsatildeo Nas

notas sobre a traduccedilatildeo dos termos utilizados por Freud no artigo Pulsotildees e destinos das

pulsotildees Hanns atenta para o uso do termo representante em alematildeo repraumlsentant sig-

262

nificando ldquoestar no lugar derdquo ldquosubstitutordquo alertando que frequentemente chega a ser

confundido nos idiomas latinos por ldquorepresentaccedilatildeordquo ldquofiguraccedilatildeordquo ldquoapresentaccedilatildeordquo Para

ldquofiguraccedilatildeordquo ou ldquoapresentaccedilatildeordquo utiliza-se a palavra vorstellung em alematildeo

A pulsatildeo situada como representante entre o corpo e o psiacutequico como o que estaacute no

lugar de outra coisa ldquonatildeo habita lugar nenhumrdquo como Garcia-Roza considerou mas

sendo uma potecircncia indeterminada soacute pode ter alguma determinaccedilatildeo ao ser capturada

pelo aparelho psiacutequico formulado por Freud ou pela rede de significantes concebida

por Lacan Na leitura de Garcia-Roza (1995) entre pulsatildeo e linguagem se estabelece

uma relaccedilatildeo dialeacutetica

O aparato aniacutemico pode ser visto como um aparato de captura Sua funccedilatildeo eacute capturar as

intensidades pulsionais dispersas e organizaacute-las Mas este aparato de captura eacute tambeacutem

um aparato de linguagem Mesmo quando o concebemos como um aparato de me-

moacuteria essa memoacuteria eacute memoacuteria de uma escritura psiacutequica Eacute portanto a linguagem o

princiacutepio estruturante das pulsotildees No entanto se eacute a linguagem que confere agraves pulsotildees

uma organizaccedilatildeo satildeo as pulsotildees que conferem agrave escritura psiacutequica sua intensidade (p

73)

Com a criaccedilatildeo freudiana do conceito de pulsatildeo amplia-se o campo de investigaccedilatildeo sobre

o corpo o sofrimento e a dor incluindo a problemaacutetica questatildeo da sexualidade

Freud jaacute apontava para os conflitos que enfrentamos atualmente na eacutepoca em que

escreveu O mal estar na civilizaccedilatildeo (1929-19301990) formulando que o humano

diante do desamparo e do sofrimento que vecircm de nosso corpo do mundo externo e

da relaccedilatildeo com o semelhante construiu formas sofisticadas para amortecer e evitar as

preocupaccedilotildees Por meio de substacircncias quiacutemicas da ciecircncia e da religiatildeo a humani-

dade encontrou uma saiacuteda que por um lado esboccedila proteccedilatildeo e aliacutevio da dor mas por

outro produz alienaccedilatildeo Nesse texto Freud indica que o homem se tornou parecido a

um ldquoDeus de proacuteteserdquo nomeaccedilatildeo que ganha maior consistecircncia nos tempos atuais

em funccedilatildeo do avanccedilo da ciecircncia da tecnologia e da importacircncia dada a essas esferas

da criaccedilatildeo humana na resoluccedilatildeo de problemas

Freud (19081990) investigou por exigecircncia de seu trabalho cliacutenico a importacircncia do

contexto social na constituiccedilatildeo do sintoma de seus pacientes chegando a formular a

263Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea

problemaacutetica dicotomia entre sexualidade e civilizaccedilatildeo na formaccedilatildeo do sintoma neuroacute-

tico defendendo de forma otimista em seu texto Moral sexual civilizada e doenccedila nervosa

moderna que uma reforma na moral social poderia evitar a neurose dos sujeitos

Em funccedilatildeo da continuidade de sua investigaccedilatildeo imposta pela cliacutenica Freud constatou

que a responsabilidade pelo sintoma dos sujeitos natildeo era da civilizaccedilatildeo mas que os

proacuteprios sujeitos manifestavam repulsa agrave sexualidade e que a sexualidade era fonte

de perturbaccedilatildeo para o humano Sendo assim ele formulou em Totem e Tabu (Freud

1912-19131990) ao investigar sobre a origem da civilizaccedilatildeo que os homens criaram as

instituiccedilotildees sociais pautadas na moral e nos tabus organizadas em torno da culpa que

se aloja na realidade psiacutequica Essa culpa eacute decorrente de um ato miacutetico do assassinato

do pai

A ficccedilatildeo criada por Freud em Totem e Tabu trata da existecircncia de um pai uacutenico a gozar

de todas as mulheres do grupo que proibia aos outros membros pertencentes ao grupo

que eram seus filhos a possibilidade de ter acesso a essas mulheres e por esse moti-

vo o pai foi assassinado e devorado pelos proacuteprios filhos Com o pai morto os irmatildeos

tiveram de instaurar e se submeter agrave lei contra o incesto renunciando agraves mulheres

desejadas para natildeo se tornarem rivais destinados agrave destruiccedilatildeo muacutetua e para manter a

organizaccedilatildeo do grupo

Freud afirma que o ato que correspondeu ao assassinato do pai marcou o princiacutepio da

civilizaccedilatildeo pois consequentemente levou agrave instauraccedilatildeo da lei da interdiccedilatildeo do incesto e

agrave criaccedilatildeo da religiatildeo totecircmica que eacute tambeacutem um sistema social

O homem criou a civilizaccedilatildeo para encaminhar seus conflitos subjetivos relativos ao de-

samparo agraves instituiccedilotildees humanas se articulam a expressatildeo subjetiva dos indiviacuteduos A

formulaccedilatildeo de Fuks (2003) eacute precisa para exprimir essa articulaccedilatildeo

Freud designa como cultura a interioridade de uma situaccedilatildeo individual ndash manifesta nos

impulsos que vecircm desde dentro do sujeito ndash e a exterioridade de um coacutedigo universal

subjacente aos processos de subjetivaccedilatildeo e aos regulamentos das accedilotildees do sujeito com o

outro (p 10)

As construccedilotildees culturais e sociais trazem a marca do desamparo humano em relaccedilatildeo a um

gozo impossiacutevel de obter similar ao gozo do pai da horda da ficccedilatildeo freudiana a partir da

264

qual Freud demonstrou o quanto o ser humano estaacute envolvido na busca interminaacutevel

pela obtenccedilatildeo de uma satisfaccedilatildeo absoluta mas por ser essa satisfaccedilatildeo inalcanccedilaacutevel eacute

preciso inventar sua proibiccedilatildeo A produccedilatildeo e uso indiscriminado das substacircncias quiacute-

micas para aliviar o sofrimento e dor psiacutequicos revelam uma tentativa de restituiccedilatildeo

desse gozo entretanto essa tentativa natildeo eacute completamente bem sucedida em razatildeo de

um resto que concerne agrave pulsatildeo forccedila constante e indeterminada que emana do corpo

A partir desse resto a articulaccedilatildeo entre corpo sofrimento e dor eacute tratada na psicanaacutelise

diferentemente do corpo-organismo da medicina Desde os conceitos de trauma e de

trieb cunhados por Freud para considerar o desamparo e o sofrimento humano diante

da sexualidade ateacute as construccedilotildees de Lacan acerca do objeto a como causa do desejo

ou mais-de-gozar para formular sobre o desejo e o gozo a escritura lacaniana do noacute

borromeano demarcando a incidecircncia do real simboacutelico e imaginaacuterio articulados e

delimitando distintas modalidades de gozo satildeo ferramentas que permitem conceber

o corpo e o sofrimento que nele se manifesta a partir da eacutetica orientada pelo real que

escapa ao ideal do conhecimento cientiacutefico

Lacan (1959-19601997) retira a discussatildeo sobre a eacutetica que comumente incide sobre o

domiacutenio do ideal passando a orientar-se na relaccedilatildeo do homem ao real A eacutetica regula

a praacutexis da psicanaacutelise ressaltando a responsabilidade sobre o sintoma e o desejo prin-

cipalmente quanto agrave posiccedilatildeo ocupada pelo analista na relaccedilatildeo transferencial na qual

geralmente eacute alvo do endereccedilamento da demanda de felicidade almejada pelo encontro

ao Bem Supremo As construccedilotildees culturais e imperativos sociais de cada eacutepoca podem

funcionar como determinantes do ideal de felicidade Entretanto pela proacutepria posiccedilatildeo

do analista de escutar o que nessa demanda se articula o percurso da anaacutelise permite

o contato com a problemaacutetica do desejo que eacute singular e nisso consiste sua dimensatildeo

traacutegica

Lacan (1959-19601997) encontrou na trageacutedia de Soacutefocles Antiacutegona argumentos fe-

cundos para abordar a questatildeo do desejo e da eacutetica psicanaliacutetica

Representada pela primeira vez em 441 aC a trageacutedia se passa em Tebas e inicia-se

a partir da morte dos dois irmatildeos de Antiacutegona (filha da uniatildeo incestuosa de Eacutedipo e

Jocasta) em combate muacutetuo Eteoacutecles por defender a cidade foi enterrado com todas

as honras enquanto Polinices que foi tomado como traidor da cidade seria punido

265Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea

segundo a determinaccedilatildeo do rei Creonte deixado insepulto para ser devorado pelas aves

carniceiras Antiacutegona ciente do decreto do rei decide enterrar seu irmatildeo Polinices com

todos os rituais necessaacuterios para encaminhaacute-lo ao aleacutem mesmo sabendo da puniccedilatildeo (de

morte) prevista para quem desobedecesse ao edito do rei Flagrada nesse ato junto ao cadaacute-

ver do irmatildeo os guardas a levaram a Creonte que se viu obrigado a sentenciar sua morte

Hemon filho de Creonte e noivo de Antiacutegona admirado pela atitude da amada tenta

argumentar em vatildeo com o pai para de demovecirc-lo da sentenccedila de morte de Antiacutegona

Mas Creonte determina que Antiacutegona seja enterrada viva O oraacuteculo Tireacutesias que era

cego anteviu desgraccedilas para Creonte se ele mantivesse a condenaccedilatildeo de Antiacutegona de-

sagradando aos deuses Relutante quando Creonte volta atraacutes em sua decisatildeo de punir

Antiacutegona era tarde demais Enterrada viva natildeo pertencendo nem aos vivos nem aos

mortos ela se enforcou deixando Hemon seu futuro marido em desespero Respon-

sabilizando o pai pelo suiciacutedio da amada Hemon tenta mataacute-lo e como natildeo consegue

mata-se em seguida Euriacutedice matildee de Hemon e mulher de Creonte ao saber dos acon-

tecimentos tambeacutem se suicida Creonte lamenta a trageacutedia (Kury 2004)

Lacan (1959-19601997) destaca que a recusa de Antiacutegona a curvar-se ao edito do rei

aponta que a lei eacute ldquonatildeo todardquo que haacute leis natildeo escritas de modo que em relaccedilatildeo ao dese-

jo cabe a cada um de modo proacuteprio escrever A lei escrita por Creonte estaacute pautada em

ldquoquerer fazer o bem de todosrdquo para honrar aqueles que defenderam Tebas e preservaacute-

-la dos inimigos mas ele comete um erro de julgamento Ao impor sua visatildeo a partir

de um valor de consistecircncia moral fica cego para o desejo Antiacutegona segue na direccedilatildeo

contraacuteria a de Creonte ela ldquonatildeo cede de seu desejordquo mesmo que tenha que atravessar o

ldquotemor e a piedaderdquo para responsabilizar-se e pagar por ele

A eacutetica de Antiacutegona se aproxima do compromisso eacutetico do analista em relaccedilatildeo agrave falta-a-

-ser o traacutegico na psicanaacutelise relaciona-se agrave sua eacutetica que consiste na responsabilizaccedilatildeo

de cada um na direccedilatildeo de sustentar-se na trilha do desejo proacuteprio implicando em su-

portar o sofrimento que corresponde ao desamparo e agrave falta de um gozo absoluto

Atualmente a manifestaccedilatildeo de dores difusas no corpo sem lesatildeo correspondente ou

evidecircncias de um agente causador eacute nomeada como fibromialgia de acordo com o

diagnoacutestico meacutedico que eacute estritamente cliacutenico O tratamento recomendado pela Socie-

dade Brasileira de Reumatologia (Hermann et al 2010) associa recursos farmacoloacutegi-

cos destacando o uso de antidepressivos relaxantes musculares analgeacutesicos simples e

266

opiaacuteceos leves aos exerciacutecios fiacutesicos variados como os aeroacutebicos de alongamento e de

fortalecimento muscular e agraves terapias como fisioterapia terapia cognitivo-comporta-

mental e suporte psicoteraacutepico

Considerando que o tratamento da fibromialgia gira em torno de aliviar a dor que in-

siste apesar dele sendo por isso concebida como siacutendrome crocircnica formulamos uma

questatildeo A fibromialgia poderia ser tomada como um testemunho da falha epistemo-

-somaacutetica (Lacan 19662001) como uma declaraccedilatildeo do fracasso cientiacutefico ao excluir a

dimensatildeo do gozo e do corpo

Cabe agrave psicanaacutelise natildeo recuar diante dessa discussatildeo acerca do sofrimento e dor para

propor outra psicopatologia referida agrave eacutetica que inclui o corpo em relaccedilatildeo ao desejo e

gozo e outro tratamento oferecendo a escuta que remete agrave existecircncia do inconsciente

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268

Narcisismo e estados limites

MaacuterciaTeresaPorteladeCarvalho

ElianaRigottoLazzarini

TerezinhadeCamargoViana

Neste ensaio pretendemos estabelecer uma compreensatildeo sobre a relaccedilatildeo entre o nar-

cisismo tal qual formulado por Freud e os estados-limite30 Iniciamos nossa anaacutelise

priorizando o narcisismo como categoria conceitual freudiana e suas relaccedilotildees com a

estruturaccedilatildeo do Eu Tendo ainda esse conceito como foco de estudo buscamos compre-

ender a repercussatildeo e a crescente difusatildeo do que tem sido descrito e difundido como

um fenocircmeno no espaccedilo de vida contemporacircneo e sinal de patologia tiacutepica de nossa

30 Este texto eacute baseado em pesquisas que veumlm sendo desenvolvidas no Laboratoacuterio de Psicanaacutelise e Subjetivaccedilacirco ndash Lapsus da Universidade de Brasiacutelia sobre as temaacuteticas de psicopatologias narciacutesicas corporeidade e estados limites e que tecircm se consubstanciado em produccedilotildees relevantes dentre as quais Carvalho M T P (2011) A atualidade dos estados limite trauma e trabalho do negativo Tese de doutorado em Psicologia Cl[inica e Cultura Universidade de Brasiacutelia Pesquisa apoiada pela CAPES Orientadora Terezinha de Camargo Viana

269Narcisismo e estados limites

eacutepoca Em seguida passamos a formular uma aproximaccedilatildeo entre o fenocircmeno e a cliacutenica

psicanaliacutetica contemporacircnea tendo em vista os chamados casos-limite ou estados-limite

Tendo ainda esse conceito como foco de estudo buscamos compreender a repercussatildeo

e a crescente difusatildeo do que tem sido descrito e difundido como um fenocircmeno no

espaccedilo de vida contemporacircneo e sinal de patologia tiacutepica de nossa eacutepoca Em seguida

passamos a formular uma aproximaccedilatildeo entre o fenocircmeno e a cliacutenica psicanaliacutetica con-

temporacircnea tendo em vista os chamados casos-limite ou estados-limite

Onarcisismocomoconceituaccedilatildeofreudiana

Muito embora o narcisismo natildeo tenha sido formulado por Freud como uma teoria seus

estudos acerca desse tema satildeo tomados como ponto de partida para uma compreen-

satildeo aprofundada do psiquismo mais primitivo Eacute dado lugar essencial agrave sua elaboraccedilatildeo

para a compreensatildeo do processo de constituiccedilatildeo da separaccedilatildeoindividuaccedilatildeo da crianccedila

pequena em relaccedilatildeo ao adulto (Andreacute l996) O estudo de Freud sobre o narcisismo in-

troduz os conceitos de eu ideal e ideal do eu traz uma nova distinccedilatildeo entre libido do eu

e libido do objeto aleacutem de esclarecimentos sobre as relaccedilotildees de objeto Green (2001b)

explicita que a questatildeo do objeto foi apresentada por Freud quando de sua apresentaccedilatildeo

teoacuterica sobre o luto e suas relaccedilotildees com a melancolia No entanto observa ainda esse

autor Freud natildeo havia encontrado a maneira de falar adequadamente do objeto antes da

introduccedilatildeo do conceito de narcisismo em sua teoria

Em seu texto Agrave guisa de introduccedilatildeo ao narcisismo (1914) Freud apresenta o narcisismo

como um estaacutegio no desenvolvimento da libido entre o autoerotismo e o amor objetal

Com isto ele estabelece que o desenvolvimento humano acontece em decorrecircncia de de-

terminados processos sucessivos de identificaccedilotildees primaacuterias e secundaacuterias Freud nos

permite notar a importacircncia do narcisismo em seu texto ao especular que a noccedilatildeo de

narcisismo talvez abranja um campo bem mais vasto do que o das perversotildees podendo-

-se atribuir a ele um importante papel no desenvolvimento normal do humano

Se partirmos da formulaccedilatildeo freudiana de que o fortalecimento e desenvolvimento do Eu

se daacute em direccedilatildeo a uma emancipaccedilatildeo e afastamento da instacircncia autoeroacutetica e narciacutesica

primitiva podemos pressupor que a individuaccedilatildeo do sujeito se daria pelo afastamento

do objeto e pela instauraccedilatildeo da alteridade De acordo com Freud o narcisismo eacute con-

270

cebido como uma dimensatildeo estruturante do psiquismo Contudo Pontalis (2005) nos

apresenta uma reflexatildeo interessante sobre o narcisismo e sua relaccedilatildeo com o Eu O autor

ressalta que o narcisismo nem deve ser visto apenas como uma fase no desenvolvimen-

to do Eu nem como um modo especiacutefico de investimento O narcisismo deve ser en-

tendido como uma posiccedilatildeo um componente insuperaacutevel e permanente do sujeito hu-

mano Ressalta Pontalis (2005) que das funccedilotildees mais intelectuais como o pensamento

ou mais objetivas como a percepccedilatildeo do real e passando para os comportamentos mais

proacuteximos do instinto tais como comer todos trazem a marca do narcisismo

O narcisismo como categoria conceitual trata do processo de constituiccedilatildeo do Eu instacircn-

cia que em Freud natildeo existe desde o nascimento devendo-se constituir no momento

em que o Eu se identifica com a imagem de seu corpo imagem que assume como sua

e mais ainda como sendo ele proacuteprio Refere-se a um fenocircmeno segundo o qual um

indiviacuteduo elege a si proacuteprio como objeto de amor Nas palavras de Freud ldquoA libido re-

tirada do mundo exterior foi redirecionada ao eu dando origem a um comportamento

que podemos chamar de narcisismordquo (Freud 1914 p98)

Para Green (1988) o narcisismo permaneceu para Freud como uma aquisiccedilatildeo pertinen-

te e esclarecedora No entanto esse construto foi deixando de ter a importacircncia devida

nos escritos freudianos na medida em que o conceito de pulsatildeo de morte tomou a

cena aparecendo declaradamente em seu texto denominado Aleacutem do principio do prazer

(1920) Freud definiraacute como narciacutesica a libido retirada do mundo exterior e depositada

no Eu Mas isto natildeo se daacute de forma uniacutevoca como pode parecer agrave primeira vista De fato

o narcisismo eacute interpretado por Freud como um passo necessaacuterio do desenvolvimento

entre o autoerotismo e o amor objetal rumo agrave concepccedilatildeo de um Eu unificado

Laplanche e Pontalis (1983) afirmam que Freud vai propor a existecircncia de um estado

narciacutesico primitivo ao qual ele daacute o nome de narcisismo primaacuterio Este narcisismo

primaacuterio eacute caracterizado por uma ldquoausecircnciardquo de relaccedilotildees com o meio devido a uma

ldquoindiferenciaccedilatildeordquo entre o Eu e o objeto As aspas servem para apontar a impossibilida-

de de uma total indiferenciaccedilatildeo Eu-objeto e a presenccedila de relaccedilotildees com o meio mes-

mo que incipientes O narcisismo primaacuterio corresponderia desse modo a ldquouma fase

precoce ou momentos baacutesicos que se caracterizam pelo aparecimento simultacircneo de

um primeiro esboccedilo de ego e pelo seu investimento pela libidordquo (Laplanche e Pontalis

1983 p 370) Junto agrave ideia de um narcisismo primaacuterio haacute o denominado narcisismo

271Narcisismo e estados limites

secundaacuterio momento em que eacute possiacutevel a percepccedilatildeo de uma maior diferenciaccedilatildeo entre

o Eu e o objeto e momento em que o Eu consegue desinvestir o objeto redirecionando

o investimento para si proacuteprio

Podemos observar que Freud considera a questatildeo da descoberta da escolha narciacutesica de

objeto a razatildeo mais forte para aceitar a hipoacutetese do narcisismo Desta forma o Eu natildeo

seria mais um representante apenas dos interesses de conservaccedilatildeo do indiviacuteduo ele

tambeacutem seria permeado pelo erotismo Esta foi talvez a maior importacircncia teoacuterica do

conceito de narcisismo para a concepccedilatildeo psicanaliacutetica do Eu ou seja o fato de o Eu se

constituir como objeto libidinalmente investido e natildeo apenas um representante dos in-

teresses da autoconservaccedilatildeo como postulado na primeira teoria freudiana das pulsotildees

No artigo de 1914 Freud vai dizer ainda que o ser humano sente com certa facilidade

um fasciacutenio por si mesmo desde o iniacutecio da vida psiacutequica Enfatiza tambeacutem a concep-

ccedilatildeo do narcisismo dominada pela ideia de um fechamento em si mesmo Eacute atraveacutes da

formulaccedilatildeo da metaacutefora do protozoaacuterio ressaltada no texto de 1914 que Freud vai dizer

que na etapa narciacutesica haacute uma indiferenciaccedilatildeo entre o eu e a realidade exterior porque

nessas condiccedilotildees tudo eacute uma posse exclusiva de si mesmo

Aretiradadosinvestimentosdomundoexterior

Freud (1914) faz referecircncia agraves ldquoparafreniasrdquo modernamente concebidas como psicoses

que englobam a paranoia e a esquizofrenia para explicar o fenocircmeno do narcisismo

quando da retirada dos investimentos no mundo exterior Essas patologias evidenciam

o fenocircmeno da perda de interesse de tudo o que diz respeito ao mundo exterior Nesses

casos o que ocorre eacute um exagero e uma distorccedilatildeo no campo do patoloacutegico mas que

pode ser utilizado para compreendermos o fenocircmeno tambeacutem quando pensamos na

dimensatildeo neuroacutetica Teoricamente a perda de interesse no mundo exterior diz respei-

to a uma concentraccedilatildeo desse interesse sobre a proacutepria pessoa A retirada do interesse

dessas pessoas do mundo externo natildeo configura segundo Freud uma atitude perversa

mas uma defesa do Eu ligada agrave necessidade de sobrevivecircncia do indiviacuteduo em funccedilatildeo

da autoconservaccedilatildeo de tal forma havendo um reinvestimento no Eu da libido retirada

dos objetos

272

Na segunda parte do texto de 1914 Freud torna evidente alguns outros caminhos a ob-

servaccedilatildeo da doenccedila orgacircnica a hipocondria e a vida amorosa das pessoas Com respeito

agrave doenccedila orgacircnica Freud observa que para os termos proacuteprios da teoria da libido o

doente recolhe seus investimentos libidinais para o Eu e torna a enviaacute-los apoacutes a cura

Quanto agrave hipocondria esta se comporta como doenccedila orgacircnica Haveria desse modo

uma diferenccedila entre a hipocondria e a doenccedila orgacircnica pois nesta as sensaccedilotildees desa-

gradaacuteveis calcam-se sobre alteraccedilotildees comprovaacuteveis e naquela natildeo Freud explica que na

hipocondria estariacuteamos lidando com uma erogeneidade que emana de uma parte do

corpo e envia estiacutemulos sexuais em direccedilatildeo agrave vida psiacutequica em analogia agrave concepccedilatildeo de

localizaccedilatildeo de zonas eroacutegenas no corpo que substituem os oacutergatildeos genitais e se compor-

tam de maneira anaacuteloga a eles

Freud (1914) encontra na vida amorosa a terceira via de acesso ao narcisismo Eacute impor-

tante ressaltar a forma de Freud enfocar como a crianccedila vai fazendo suas escolhas obje-

tais Ele deixa claro que a crianccedila toma seus objetos sexuais a partir de suas primeiras

experiecircncias de satisfaccedilotildees sexuais autoeroacuteticas vividas em conexatildeo com funccedilotildees vitais

que servem ao propoacutesito de autoconservaccedilatildeo No texto podemos destacar que aqueles

que se envolvem nos primeiros cuidados com a crianccedila vatildeo se tornar seus primeiros

objetos sexuais e que as pulsotildees sexuais a princiacutepio vatildeo se apoiar nas pulsotildees do eu

apesar de distintas

Freud diz que de maneira geral a opccedilatildeo narciacutesica faz com que a pessoa ame segundo o

que ela eacute (a si mesma) o que ela foi o que ela gostaria de ser uma parte de si tomada

independente Do interesse que o indiviacuteduo tem de seu proacuteprio corpo diz ele orienta-se

para um objeto exterior semelhante a ele ou seja homossexual Esta etapa seraacute (ou natildeo)

superada pela escolha heterossexual segundo as condiccedilotildees da vida libidinal Eacute a busca

da diferenccedila que vai propiciar o alcance do objeto de tal forma que ele passe a pertencer

ao dinamismo sexual

Esse movimento para a eleiccedilatildeo objetal narciacutesica movimento da libido em direccedilatildeo agraves

relaccedilotildees objetais na qual o criteacuterio de escolha dos objetos segue o modelo do Eu da pes-

soa ou seja a busca no outro do que ela foi eacute ou gostaria de ser constitui-se num dos

caminhos apontados por Freud para o desenvolvimento do Eu

273Narcisismo e estados limites

Segundo Green (1988) o advento do narcisismo na teoria e no pensamento freudia-

no natildeo soacute foi um marco mas tambeacutem um parecircntese Antes dele foram as pulsotildees de

autoconservaccedilatildeo e depois dele as pulsotildees de morte Com a introduccedilatildeo do conceito de

narcisismo surge claramente no pensamento de Freud a libidinizaccedilatildeo das pulsotildees do

Eu ateacute entatildeo destinadas a autoconservaccedilatildeo Segundo Green foi um salto decisivo para

Freud levar a sexualidade ao seio do Eu quando este uacuteltimo parecia numa primeira

abordagem escapar agrave sua influecircncia O narcisismo eacute a inclusatildeo do Eu na teoria da libido

e no circuito do discurso da psicanaacutelise ou como coloca Birman (1999) ldquoa descoberta

do narcisismo implicou justamente a erotizaccedilatildeo do Eurdquo (p41)

O narcisismo eacute entatildeo para a teoria do Eu a passagem do que diz respeito agrave autoconser-

vaccedilatildeo ou necessidade baacutesica para o amor a libido Introduzir o narcisismo na teoria das

pulsotildees implica fazer com que as pulsotildees tomem o Eu como objeto de investimento

o que se daacute pela erotizaccedilatildeo do proacuteprio corpo Nesse novo esquema o Eu aparece como

uma das possiacuteveis localizaccedilotildees da libido O Eu passa a ser tambeacutem objeto da pulsatildeo se-

xual tanto quanto os demais objetos soacute que de maneira um tanto quanto diferenciada

a qual Freud daacute o nome de libido narciacutesica

A questatildeo que aqui se interpotildee eacute a seguinte como pode o indiviacuteduo a partir de um

eu unificado fechado em si mesmo seguir rumo agrave abertura rumo agrave escolha do outro

como objeto de amor Uma das prerrogativas dessa questatildeo eacute que o fechamento man-

teacutem o sujeito num verdadeiro ldquoamor de sirdquo agigantado onde os campos do outro e dos

objetos ficariam eclipsados por este grandiosismo do Eu senhor e centro do mundo

Por outro lado a percepccedilatildeo da realidade externa forccedilaria o Eu a dirigir aos objetos suas

cargas libidinosas sob pena de que poderaacute adoecer se natildeo o fizer isto eacute poderaacute romper

o viacutenculo com a realidade (Lazzarini 2006) No amor do outro o eu se desprenderia de

parte desse investimento alocando-o no campo do objeto

Andreacute (l996) nos esclarece que esta saiacuteda para o amor pelo outro eacute a proacutepria saiacuteda para

a alteridade ou seja o eu necessitaria mesmo de um confronto amoroso com o outro

para que se possa estabelecer esta saiacuteda Entretanto a tendecircncia do eu vai ser a de sem-

pre tirar proveito e benefiacutecio da situaccedilatildeo o amor por si tendendo a encobrir o amor pelo

outro e passando a ser a dinacircmica narciacutesica aquilo que trabalha para voltar a fechar as

brechas abertas pela irrupccedilatildeo da alteridade Ao permanecer fechado na vida adulta o eu

274

tenderaacute a se perceber como engrandecido eu centro do mundo o que poderaacute caracteri-

zar uma formaccedilatildeo patoloacutegica

Narcisismoepsicanaacutelisecontemporacircneareflexosnacultura

Tem havido uma crescente preocupaccedilatildeo por parte dos psicanalistas contemporacircneos

com a modificaccedilatildeo do perfil da demanda cliacutenica que remonta a fins do seacuteculo passado

O que vem sendo observado eacute um progressivo deslocamento dos quadros neuroacuteticos

para as patologias que envolvem de alguma forma as questotildees narciacutesicas fazendo-se

pertinente uma revisatildeo nos aspectos relacionados a essa demanda e agrave cliacutenica da atuali-

dade Depressatildeo drogadiccedilatildeo anorexia bulimia siacutendromes complexas de toda ordem

constituem reflexos de uma cultura que passa por momentos de indefiniccedilatildeo e mudanccedila

com relaccedilatildeo a valores sociais rompendo com aspectos que eram considerados primor-

diais nos tempos de Freud Como observa Lipovetsky (2005) a respeito da eclosatildeo de tais

fenocircmenos na contemporaneidade

ldquoA patologia mental obedece agrave lei da eacutepoca que tende agrave reduccedilatildeo da rigidez assim como a liquefaccedilatildeo das relevacircncias estaacuteveis a crispaccedilatildeo neuroacutetica foi substituiacuteda pela flutuaccedilatildeo narciacutesica Impossibilidade de sentir vazio emocional donde a dessubstancializaccedilatildeo chegou a seu fim explicitando a verdade do processo narcisista como estrateacutegia do vaziordquo (p55)

O que podemos dizer de uma sociedade como a nossa que se vecirc exaltada pelos avanccedilos

cientiacuteficos e tecnoloacutegicos e em descompasso muitas vezes com a possibilidade de o in-

diviacuteduo apreender esses mesmos avanccedilos O que dizer de uma sociedade competitiva

aquela que gera o empobrecimento da experiecircncia coletiva e valoriza os interesses e as

demandas iacutentimas Que bases essa mesma sociedade estaria oferecendo para a cons-

tituiccedilatildeo da individuaccedilatildeosubjetivaccedilatildeo O que dizer dos sujeitos caracterizados como

casos limites Eles natildeo estatildeo evidenciando uma sobrecarga de tarefas e natildeo estariam

prejudicados pelos padrotildees de eficiecircncia dessa sociedade altamente desenvolvida Satildeo

estas algumas das questotildees que se encontram no compasso dos estudos da conjugaccedilatildeo

entre cultura contemporacircnea e psicanaacutelise

As subjetividades contemporacircneas refletem esses descompassos e uma das consequecircn-

cias desse processo sobressai no sofrimento psiacutequico do sujeito que ganha na atualida-

275Narcisismo e estados limites

de novos contornos Estamos cientes de que apesar de ser uma problemaacutetica da cliacutenica

esse processo se encontra mediado tambeacutem pela cultura calcada na proacutepria crise da

subjetividade fundamentada na modernidade

A grande parte das queixas e perturbaccedilotildees se apresentam hoje sob a forma de um mal

estar difuso e invasor um sentimento de vazio interior uma incapacidade de sentir as

coisas e as pessoas ou dito de outra forma as configuraccedilotildees subjetivas contemporacircneas

tendem a apresentar uma ausecircncia de sofrimento devido a conflitos neuroacuteticos claacutessi-

cos regulados pela loacutegica da castraccedilatildeo e do desejo Fala-se que algo da ordem do desam-

paro primordial disposto por Freud em sua obra tem encontrado espaccedilo diferenciado

em nossos dias Os sintomas neuroacuteticos que correspondiam em grande parte a uma

sociedade mais repressiva tiracircnica autoritaacuteria e puritana deram lugar agraves desordens

narcisistas fruto de uma sociedade mais permissiva e tambeacutem mais ecleacutetica em suas

manifestaccedilotildees Os pacientes natildeo sofrem tanto mais de sintomas fixos e exuberantes na

sua forma mas sim de perturbaccedilotildees vagas e difusas com sentimentos de vazio inte-

rior e incapacidade de sentir as coisas e as pessoas

Dosestados limiteseafragilidadedasfronteirasdoEu

Sabemos o quanto a teoria psicanaliacutetica se atualiza em uma interaccedilatildeo direta e contiacutenua

com a praacutetica cliacutenica de psicanalistas Mesmo que a denominaccedilatildeo estados-limite seja poacutes-

-freudiana e diga respeito a um modo de organizaccedilatildeo do psiquismo que se tornou de

importacircncia na atualidade compreendemos que os casos-limite de todos os tempos satildeo

aqueles que desafiam os diversos profissionais a se deslocarem de seus usuais lugares

de atuaccedilatildeo e compreensatildeo Podemos dizer que todos os casos publicados por Freud ser-

viram para ele de (pre)texto para que sua teoria e praacutetica fossem (re)visadas

Do mesmo modo os denominados na literatura psicanaliacutetica atual de estados limite

casos-limite ou borderline tecircm exigido que psicanalistas ampliem suas escutas O meacutetodo

tradicional do trabalho com pacientes neuroacuteticos a anaacutelise das transferecircncias cede par-

te do espaccedilo para a escuta daquilo que Green (1988b) chama de ldquoa loucura pessoal do

pacienterdquo Se no trabalho analiacutetico com pacientes neuroacuteticos o predomiacutenio eacute a presenccedila

da ansiedade de castraccedilatildeo e uma busca da resoluccedilatildeo ediacutepica da neurose infantil o tra-

balho com os casos-limite revela uma dupla ansiedade a ansiedade de separaccedilatildeo e a de

276

intrusatildeo e um foco especial no luto do objeto primaacuterio vivenciado como excessivo (na

presenccedila ou na ausecircncia) Se na neurose eacute priorizada a teoria do recalque nos estados

limite a priorizaccedilatildeo estaacute focada nas cisotildees dissociaccedilotildees e evitaccedilotildees da constituiccedilatildeo dos

conflitos psiacutequicos

Green (1988b) propotildee a ideia de limite como conceito psicanaliacutetico para descrever a pre-

senccedila na cliacutenica desse sujeito fraacutegil na sustentaccedilatildeo de suas proacuteprias fronteiras psiacutequi-

cas fazendo emergir as questotildees relacionadas agrave constituiccedilatildeo do proacuteprio Eu e a retomada

teoacuterica acerca da vida preacute-genital Trata-se de dar foco ao arcaico e ao modo como este

funciona e se organiza em prol da constituiccedilatildeo e sustentaccedilatildeo do aparato psiacutequico o que

traz agrave cena a importacircncia do objeto primaacuterio para aleacutem das questotildees ediacutepicas

Essa fragilidade do eu tem interferido diretamente na constituiccedilatildeo do senso de realida-

de (noccedilotildees de dentrofora) e consequentemente interferido na capacidade de o sujeito

simbolizar suas proacuteprias experiecircncias de vida Mas podemos pensar tambeacutem que falhas

na constituiccedilatildeo das noccedilotildees de dentro e fora fragilizam o proacuteprio Eu Sem colocar em

questatildeo no momento o que pode ser primaacuterio e secundaacuterio atentamos para o fato de

que existe uma falha na capacidade de o sujeito construir realidades que possam ser

compartilhadas Segundo Green (2010) haacute um fracasso do trabalho do negativo geran-

do uma dependecircncia ou uma tentativa de exclusatildeo excessiva do objeto primaacuterio que

natildeo pode ser perdido para ser reencontrado

A importacircncia de um objeto ser perdido para ser reencontrado em relaccedilatildeo agrave constitui-

ccedilatildeo do senso de realidade foi discutida em Freud em seu texto denominado A Negativa

(1925) A negativa estaria diretamente ligada a uma das operaccedilotildees do Eu a de emitir juiacute-

zos responsaacutevel por permitir a expressatildeo do conteuacutedo intelectual do recalcado separado

de seu conteuacutedo afetivo O ldquonatildeordquo emitido como juiacutezo um ldquonatildeordquo simboacutelico permite ao

Eu deliberar sobre o que pode estar dentro ou fora dele mesmo ou seja deliberar sobre

se algo que foi percebido pode ser acolhido ou expelido

Mas para que se constitua um ldquonatildeordquo simboacutelico precisa acontecer uma operaccedilatildeo psiacute-

quica que diferencie a representaccedilatildeo da percepccedilatildeo Eacute essa diferenciaccedilatildeo que permitiraacute

ao sujeito reencontrar o mundo (o objeto) conforme surja a necessidade Isso eacute o que

Freud chama de teste de realidade que soacute ldquoentraraacute em cena quando e se os objetos que

outrora trouxeram satisfaccedilatildeo jaacute tiverem sido perdidosrdquo (Freud 19252007 p149) O

277Narcisismo e estados limites

objeto da satisfaccedilatildeo precisa ser perdido para ser reencontrado Em ambos os casos o

ldquonatildeordquo eacute considerado um importante vetor de constituiccedilatildeo e manutenccedilatildeo de fronteiras

de contato do sujeito com o mundo delimita espaccedilos internos e externos e constitui

tempos diferenciados

Assim se existir uma falha no trabalho psiacutequico para realizar a construccedilatildeo do ldquonatildeordquo

simboacutelico ou seja se o objeto natildeo puder ser perdido para ser reencontrado a constitui-

ccedilatildeo da imagem narciacutesica e a constituiccedilatildeo do pensamento estaratildeo prejudicadas Como

vimos anteriormente Freud (1914) afirma que o narcisismo eacute um estaacutedio do desenvol-

vimento da libido entre o auto-erotismo e o amor objetal Se as fronteiras internas e

externas do Eu estaratildeo fragilizadas o autoerotismo e as relaccedilotildees objetais se estabelecem

de modo precaacuterio

O autoerotismo tem como funccedilatildeo sustentar uma operaccedilatildeo de transitividade entre o

objeto primaacuterio e a crianccedila ateacute que o proacuteprio corpo (fiacutesico e mental) da crianccedila possa

substituir o mundo externo Ele surge com a perda do objeto de satisfaccedilatildeo momento

importante em que a crianccedila consegue descobrir seu proacuteprio corpo como fonte de sa-

tisfaccedilatildeo libidinal Green (1988b) salienta que o mais importante no autoerotismo eacute a

possibilidade de a crianccedila fazer as introjeccedilotildees ldquoAquilo de que deveriacuteamos dar conta eacute da

passagem do objeto de satisfaccedilatildeo lsquoforarsquo para a procura de uma satisfaccedilatildeo senatildeo lsquodentrorsquordquo

(Green 1988c p120) processo que natildeo acontece de uma soacute vez A perda do objeto vai

acontecendo na medida em que a crianccedila consegue ficar bem mesmo na ausecircncia do

objeto Mas se a diferenciaccedilatildeo internoexterno falha significa dizer que o objeto primaacute-

rio natildeo foi perdido e que tampouco poderaacute ser reencontrado

Nas palavras de Green (2010) haacute um fracasso no trabalho do negativo o que significa

dizer que o objeto primaacuterio falhou em sua funccedilatildeo de se fazer esquecer de se ausentar

Nesses casos o objeto primaacuterio fica como que entalado a crianccedila nem estaacute dele acompa-

nhada nem pode largaacute-lo Estaacute preso naquilo que o autor chama de analidade primaacuteria

Alguns sintomas descritos na cliacutenica dos casos-limite tais como dificuldade para elabo-

rar a experiecircncia vivida um estado de paralisia mental dificuldade para diferenciar eu

natildeo-eu podem ser compreendidos a partir desse construto teoacuterico

Esse conceito de Green (2010) nos permite pensar o estudo do autoerotismo em duas

fases diferenciadas mesmo porque satildeo responsaacuteveis por diferentes desenvolvimentos

278

A oralidade nos possibilita experimentar e cuspir mas no momento em que o objeto eacute

engolido ele soacute pode ser lanccedilado fora pelo vocircmito ou evacuado Para que haja evacua-

ccedilatildeo faz-se necessaacuterio um processo de reter o que eacute importante para o organismo e expe-

lir o resto que natildeo lhe serviu naquele momento Pensamos que as patologias narciacutesicas

abarcam de vaacuterias maneiras essas duas fases

Desse modo haacute patologias narciacutesicas relacionadas agrave proacutepria constituiccedilatildeo da imagem

corporal e existem as patologias focadas na dificuldade de o sujeito escolher e decidir o

que vai ser evacuado e o que vai ser retido do ldquobolordquo nutritivo e toacutexico ao mesmo tempo

das interrelaccedilotildees do sujeito limite com o meio ou com os objetos (Carvalho 2012) Em

todos esses casos natildeo se trata diretamente de um modo de relaccedilatildeo eroacutetica mas de um

modo de sustentaccedilatildeo narciacutesica

No primeiro caso podemos abarcar as anorexias as dismorfias corporais e as experiecircn-

cias de perda dos contornos do corpo Enfim consideramos as patologias relacionadas agrave

constituiccedilatildeo e reconhecimento da imagem corporal No segundo caso podemos abarcar

as patologias relacionadas especificamente agrave ordem pensamento transformado em um

ldquobem inalienaacutevelrdquo (expressatildeo de Green 19932010) ldquoEsses pacientes nem podem reter

e fazer seu nem expulsar e tornar alheio nem podem se apropriar de seus objetos

nem podem diferenciar-se delesrdquo (Figueiredo ampCintra 2004 p 38) Qualquer desses

movimentos potildee em risco a integridade do Eu Aqui estatildeo presentes os problemas ad-

vindos da esfera do julgamento e como consequecircncia do processamento da realidade

As questotildees relacionadas ao risco aos ldquoensaiosrdquo da vida natildeo podem ser vividos como

tentativas Ou eacute acerto ou eacute erro

Em todos os casos os sujeitos experimentam sentimentos de pavor para lidar com si-

tuaccedilotildees sociais lugares onde o controle soacute pode ser exercido de modo precaacuterio e tam-

beacutem com sua vida iacutentima Podem surgir tambeacutem ataques de violecircncia e raiva com

aqueles que lhes frustram Quase tudo para esse paciente se chama vulnerabilidade

mesmo que isso nem sempre esteja evidente menos sua tentativa de viver ilusoriamen-

te a proacutepria autossuficiecircncia psiacutequica

279Narcisismo e estados limites

Consideraccedilotildeesfinais

A cada eacutepoca sua proacutepria transiccedilatildeo A cada eacutepoca o intenso diaacutelogo entre os valores da

tradiccedilatildeo e o que se evidencia como novo Na atualidade vivemos a ideia de um tempo

que nos falta de uma necessidade de consumo de objetos que nos tornem mais pode-

rosos e inteiros Mas esses bens satildeo fraacutegeis em suas instalaccedilotildees e carentes do poder a

eles destinados Com isto as identificaccedilotildees ficam esvaziadas e os ideais necessaacuterios agrave

funccedilatildeo especular integradora inexistentes o que parece gerar uma falta de consistecircncia

na formaccedilatildeo da imagem do sujeito e de seus julgamentos de valor O mundo contem-

poracircneo constituiacutedo assim constituiacutedo coloca o sujeito numa posiccedilatildeo paralela e sem

condiccedilotildees de manejar seus projetos e sua inserccedilatildeo no cenaacuterio social ficando marcado

pela inseguranccedila Desta forma uma saiacuteda tentada eacute o investimento maciccedilo no proacuteprio

eu uma necessidade de autossuficiecircncia Quando o outro natildeo tem a possibilidade de

se constituir como uma referecircncia identificatoacuteria para o sujeito torna-se estranho e

ameaccedilador Nesse momento o Eu tenta se sustentar na proacutepria busca de sua imagem e

de pensamentos proacuteprios Satildeo os objetos e a proacutepria busca que se colocam como outro

Mas trata-se de uma alteridade vazia

Podemos pensar que um dos projetos eacuteticos da psicanaacutelise pode ser o de propiciar ao

sujeito uma vivecircncia mais direta da qualidade desse vazio retirando do mundo das coi-

sas e do tempo futuro as ilusotildees de garantia de preenchimento A cliacutenica psicanaliacutetica

continua seu trabalho de sustentaccedilatildeo das possiacuteveis transformaccedilotildees que aparecem nas

organizaccedilotildees singulares Se a mudanccedila dos coacutedigos e a reviravolta dos valores tradicio-

nais tendem a contribuir para provocar colapsos psiacutequicos que se apresentam na cliacuteni-

ca esta por sua vez deve ser capaz de acolher os reflexos de tais colapsos e sustentar os

contornos singulares que se evidenciam como limites possiacuteveis de tracircnsito

Na atualidade os estados limites que se gestam nos desencontros e nas separaccedilotildees es-

tariam fora do arsenal teoacuterico e teacutecnico da psicanaacutelise natildeo fossem os incessantes mo-

vimentos que a psicanaacutelise faz para conjugar praacutetica e atualizaccedilatildeo teoacuterica Novos tem-

pos novos saberes novas maneiras de compreender e lidar com o sofrimento psiacutequico

Velhos saberes que se apresentam novos e mostram a travessia no tempo Ao concluir

pensamos ser mister atribuir agrave psicanaacutelise contemporacircnea a manutenccedilatildeo da possibilida-

de de abertura e acolhimento agraves novas formas de subjetivaccedilatildeo

280

Referecircncias

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Lipovetski J (2005) A era do vazio Satildeo Paulo Editora Manole

Pontalis JB (2005) Entre o sonho e a dor Aparecida ndash SP Ideacuteias e Letras

281 O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

TainaacutePinto

TaniaRivera

Nesse ensaio parte-se da ideia de que o conto ldquoO Alephrdquo de Jorge Luis Borges e o sonho

possuem uma estruturaccedilatildeo comum em que a condensaccedilatildeo tem papel fundamental31

Essa estruturaccedilatildeo se daria em torno de diversos nuacutecleos condensados e sincrocircnicos que

se unem apoacutes de uma segunda condensaccedilatildeo compondo um todo heterogecircneo A partir

desse ponto comum o que se busca eacute apreender o que o Aleph objeto inimaginaacutevel

para onde tudo converge pode ensinar sobre o umbigo ponto insondaacutevel e obscuro do

sonho Chega-se a conclusatildeo de que em meio ao excesso disruptivo que tanto sonho

31 Este trabalho eacute baseado em Pinto T (2012) A condensaccedilatildeo entre poesia e trauma um percurso com Augusto de Campos e Jorge Luis Borges Dissertaccedilatildeo de mestrado Universidade de Brasiacutelia DF Brasil Pesquisa apoiada pela CAPES Orientadora Tania Rivera Pesquisa apoiada pela CAPESgt

282

como conto colocam em jogo haacute um ponto de captura do sujeito e que esse ponto que

o fisga parece dizer uma maneira radical algo do lugar que ele ocupa diante do outro

Borges estava ali sozinho no escuro poratildeo de Carlos Argentino Daneri deitado em

decuacutebito dorsal embaixo da escada e olhando fixamente para o deacutecimo nono degrau

Nessa situaccedilatildeo um tanto esquisita e constrangedora ele aguarda a prometida grande

revelaccedilatildeo de sua vida natildeo sem se perguntar se tudo isso natildeo seria uma cilada armada

por Daneri Os dois nunca foram amigos nunca se deram bem Daneri estaria ficando

louco Matar Borges faria parte dos seus planos insanos O conhaque que oferecera

logo antes de descerem para o poratildeo estaria envenenado Borges sente um confuso mal

estar e busca ficar calmo Talvez a sensaccedilatildeo indistinta fosse apenas uma consequecircncia

de sua tensa rigidez e natildeo efeito de algum narcoacutetico Ele fecha os olhos volta a abri-los

e entatildeo vecirc Vecirc o Aleph vecirc aquilo que seus olhos natildeo podem acreditar

O diacircmetro do Aleph seria de dois ou trecircs centiacutemetros mas o espaccedilo coacutesmico estava ali

sem diminuiccedilatildeo de tamanho Cada coisa (a lacircmina do espelho digamos) era infinitas

coisas porque eu a via claramente de todos os pontos do universo Vi o mar populoso vi

a alvorada e a tarde vi as multidotildees da Ameacuterica vi uma teia de aranha prateada no cen-

tro de uma negra piracircmide vi um labirinto truncado vi uma chaacutecara em Androgueacute

um exemplar da primeira versatildeo inglesa de Pliacutenio a de Philemon Holland vi ao mesmo

tempo cada letra de cada paacutegina vi a noite e o dia contemporacircneos vi tigres ecircmbolos

bisotildees marulhos e exeacutercitos vi todas as formigas que haacute na Terra vi a engrenagem do

amor e a transformaccedilatildeo da morte vi o Aleph de todos os pontos vi no Aleph a Terra e

na Terra outra vez o Aleph e no Aleph a Terra (BORGES 19492008 p149)

Esse eacute um trecho de ldquoO Alephrdquo conto de Jorge Luis Borges de 1949 A citaccedilatildeo eacute uma

seleccedilatildeo do vertiginoso paraacutegrafo em que Borges descreve o que foi o seu encontro com

esse objeto inimaginaacutevel Os que conhecem a breve narrativa sabem que esse encontro

fantaacutestico eacute uma das dimensotildees do conto sem duacutevida o seu aacutepice mas apenas uma

de suas facetas Aleacutem de Borges e do Aleph que tem status de personagem haacute ainda

Beatriz Viterbo a amada morta de Borges e Carlos Argentino Daneri primo-irmatildeo de

Beatriz e um mau escritor Daneri o detentor do Aleph haacute anos burila um poema inti-

tulado ldquoA Terrardquo que em sua iludida expectativa realiza uma descriccedilatildeo exata do planeta

inteiro Entediado com os trechos do estuacutepido poema que Daneri lhe mostra Borges

aproveita esses encontros para pelo menos estar mais proacuteximo do que restou de Bea-

283O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

triz ndash as fotografias espalhadas por toda casa Inesperadamente surge uma ameaccedila de

demoliccedilatildeo desta casa e com ela a consequente ameaccedila de que o precioso Aleph fosse

destruiacutedo Eacute nesse momento de desespero que Daneri telefona a Borges e fala sobre o

Aleph ndash o ponto do espaccedilo que conteacutem todos os outros pontos Imediatamente apoacutes

a ligaccedilatildeo Borges corre agrave casa pronto para atestar a loucura de Daneri ou ter a maior

revelaccedilatildeo de sua vida

Lia Luft numa breve anaacutelise do conto propotildee pensaacute-lo como um texto que acontece em

diferentes niacuteveis como se fosse organizado em camadas Tal estrutura eacute a bem dizer

tiacutepica de boa parte se natildeo de toda a obra borgeana Em um exemplo dentre muitos

outros ela se encontra em ldquoO Zahirrdquo (19492008) que guarda com ldquoO Alephrdquo muitas

outras semelhanccedilas ndash a temaacutetica fantaacutestica o amor por uma mulher morta a proximi-

dade da loucura Essa divisatildeo em niacuteveis narrativos como a autora ressalta serve para

fins de anaacutelise pois tais niacuteveis satildeo magistralmente bem encaixados no conto e quase

imperceptiacuteveis E esses encaixes acontecem por breves informaccedilotildees que parecem tri-

viais ou desnecessaacuterias agrave primeira vista (uma data precisa por exemplo) mas que logo

surpreendem ao se revelarem cruciais ao desenrolar de outro niacutevel da narrativa Tudo

na escrita de Borges parece extremamente calculado e pensado Natildeo eacute por menos que

Luft o chama de ldquoo bruxordquo ao argumentar que em seu texto natildeo haacute espaccedilo para o ldquoluxordquo

e para a ldquosimples cataacuteliserdquo (Luft 2001 p 332)

Tomaremos o conto de Borges como uma narrativa que se organiza em torno de trecircs

nuacutecleos sincrocircnicos que adaptamos dos quatro niacuteveis de narrativa que Luft propotildee em

sua anaacutelise o primeiro eacute o da histoacuteria fantaacutestica o encontro de Borges com esse incon-

cebiacutevel objeto o segundo nuacutecleo eacute o da histoacuteria de amor entre Beatriz e Borges um

amor idealizado e natildeo correspondido e o terceiro eacute o nuacutecleo da criacutetica literaacuteria que se

desenvolve em torno do poema descabido de Carlos Argentino Daneri Conceberemos

a relaccedilatildeo entre esses diversos nuacutecleos a partir de uma das noccedilotildees baacutesicas drsquo A Interpre-

taccedilatildeo dos Sonhos a ideia de que o sonho estrutura-se como uma reuniatildeo de nuacutecleos si-

multacircneos de pensamentos oniacutericos e portanto estrutura-se fundamentalmente graccedilas

agrave operaccedilatildeo de condensaccedilatildeo como detalharemos a seguir

284

Acondensaccedilatildeodacondensaccedilatildeo

As elaboraccedilotildees freudianas nos autorizam a pensar que o processo de formaccedilatildeo do so-

nho envolve duas condensaccedilotildees A primeira ocorre para a constituiccedilatildeo de cada nuacutecleo

de pensamentos oniacutericos cujo centro eacute o ponto nodal E a segunda acontece no momen-

to da reuniatildeo sincrocircnica desses nuacutecleos que resulta no sonho uma unidade atiacutepica e

nada uniforme Mais do que uma sucessatildeo de condensaccedilotildees independentes parece-nos

tratar de uma condensaccedilatildeo dentro da outra Melhor dizendo a segunda condensaccedilatildeo

viria potencializar a anterior como em uma operaccedilatildeo de potenciaccedilatildeo na matemaacutetica

Poderiacuteamos entatildeo grafar (condensaccedilatildeo)sup2

Devemos salientar que natildeo haacute unidade mais heteroacuteclita e divisiacutevel que o ponto nodal

Ele eacute um elemento do conteuacutedo manifesto do sonho que concentra em si as intensida-

des psiacutequicas de toda uma cadeia de pensamentos oniacutericos que o circundam Com cada

um dos pensamentos ele manteacutem ao menos uma ligaccedilatildeo Para uma exemplificaccedilatildeo

raacutepida pensemos na figura de Irma do famoso ldquosonho da injeccedilatildeo de Irmardquo o grande

modelo de interpretaccedilatildeo Freud em sua anaacutelise logo se daacute conta de que a figura de

Irma aleacutem de representar si mesma tambeacutem representa vaacuterias outras figuras femini-

nas Ele vai de Irma agrave amiga dela aquela que ldquoabriria a boca mais facilmenterdquo (Freud

19002012 p128) lembra-se de sua esposa pelas queixas de dores no abdocircmen da

governanta pela maneira como Irma resite em abrir a boca da proacutepria filha Mathilde

a partir de uma suspeita diagnoacutestica de difteria que surge no sonho de uma paciente

de mesmo nome que a filha (Mathilde) e de uma crianccedila do hospital em que trabalhou

e que fora examinada de forma muito similar agrave maneira como Irma eacute examinada no

sonho pelos colegas Otto e Leopold

Nesse sonho Irma eacute portanto um ponto nodal A anaacutelise do sonho revela que para

ela convergem associaccedilotildees relativas a vaacuterias outras figuras femininas A partir desse

exerciacutecio de decomposiccedilatildeo que o trabalho de anaacutelise possibilita tem-se uma noccedilatildeo do

volume de condensaccedilatildeo do sonho que eacute sempre indeterminaacutevel de acordo com Freud

(19002012 p 301) A indeterminaccedilatildeo da cota de condensaccedilatildeo eacute um fato que parece

relacionaacute-la diretamente com o umbigo do sonho ndash essa que provavelmente foi a maior

descoberta de Freud em A Interpretaccedilatildeo dos Sonhos

A noccedilatildeo de umbigo do sonho subverte a proacutepria de ideia de interpretaccedilatildeo jaacute que potildee em

jogo o que resta da anaacutelise aquilo que natildeo eacute interpretaacutevel a dimensatildeo do inconcluso e

285O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

da infinidade e indeterminaccedilatildeo uacuteltima do sentido Ele eacute o ponto ldquoinsondaacutevelrdquo do sonho

ldquoque o liga ao desconhecidordquo (ibid p132) De alguma forma para esse emaranhado

parecem convergir todos os pensamentos oniacutericos A proposta desse ensaio eacute buscar

apreender o que o Aleph ndash o ponto do espaccedilo para onde tudo converge ndash pode ensinar

acerca do umbigo ndash o ponto obscuro do sonho

Nuacutecleossincrocircnicos

A perfeita combinaccedilatildeo dos diferentes nuacutecleos que Borges realiza no conto nos leva a

considerar que em seu texto natildeo haacute espaccedilo para o aleatoacuterio Satildeo vaacuterias pequenas infor-

maccedilotildees que a princiacutepio podem soar desnecessaacuterias ndash como a data da morte de Beatriz

o nome da praccedila em que passou apoacutes seu enterro a data do seu aniversaacuterio o nome da

rua onde ela morava e outros Mas elas revelam-se fundamentais e eacute por elas que os

personagens vatildeo tomando consistecircncia a ponto de termos a sensaccedilatildeo de conhececirc-los

por toda uma vida Satildeo elas tambeacutem que nos situam no contexto da histoacuteria ndash Buenos

Aires entre as deacutecadas de 30 e 40

E natildeo eacute de se surpreender se em meio aos dados tatildeo precisos do conto nos deparar-

mos com um dado irreal como o falso nome da biblioteca ldquoJuan Crisoacutestomo Lafinurrdquo

Nossas pesquisas indicam que uma biblioteca com esse nome natildeo existe na cidade de

Buenos Aires e que esse era o nome do tio bisavocirc de Borges a quem ele dedica um po-

ema de mesmo tiacutetulo em seu livro ldquoA moeda de ferrordquo (Borges 1976) Da mesma forma

Aacutelvaro Meliaacuten Lafinur o homem de letras a quem Daneri deseja recorrer para conseguir

um bom prefaacutecio para o seu poema tambeacutem eacute o nome de um primo de Borges que

em vida dedicou-se ao estudo da literatura e chegou mesmo a escrever alguns prefaacutecios

Haacute ainda outro dado biograacutefico que vale a pena ser mencionado ndash a dedicatoacuteria final

Boa parte de seus contos Borges dedicou a amigos especialmente mulheres e ldquoO Ale-

phrdquo ele dedicou agrave escritora e tradutora argentina Estela Canto Estela teria sido a grande

paixatildeo de Borges na deacutecada de 40 e apoacutes a morte dele ela escreveu um livro Borges agrave

contraluz (Canto 1991) em que torna puacuteblico algumas correspondecircncias que ele envia-

va-lhe Alguns criacuteticos (Monegal 1980 e Bernucci 2001) tomam essa dedicatoacuteria como

ponto de partida para especulaccedilotildees sobre a relaccedilatildeo dos dois Estabelecem comparaccedilotildees

entre Estela Canto Beatriz Viterbo e a Beatriz de Dante (ldquoA Divina Comeacutediardquo) como se

286

uma refletisse a outra Tomam o conto como uma espeacutecie de espelho que desnuda a

vida pessoal de Borges Bernucci (2001) a partir dos relatos de Estela chega a dizer que

Beatriz Viterbo eacute uma ldquorepresentaccedilatildeo verossiacutemilrdquo da escritora argentina

Esse parece entretanto ser mais um jogo de Borges Como propotildee Nascimento (2008)

o uso dos dados biograacuteficos envia o texto ficcional para uma noccedilatildeo de relato de experi-

ecircncia A dedicatoacuteria parece tentar capturar o leitor num pacto dissimulado que encobre

e revela o jogo entre realidade e ficccedilatildeo Dessa forma vemos dados biograacuteficos sendo

utilizados de duas maneiras completamente opostas Na primeira situaccedilatildeo os nomes

reais (Lafinur) satildeo deslocados e parecem ldquoficcionalizarrdquo a realidade E em contrapartida

a dedicatoacuteria agrave Estela Canto parece tentar tornar mais real a ficccedilatildeo O jogo eacute tamanho

que Borges eacute capaz de promover uma inversatildeo referencial e nos fazer acreditar nas in-

formaccedilotildees falsas e duvidar das verdadeiras

Como Luft (2001) propotildee Borges lanccedila ao leitor dados reais e inventados Parece-nos

que nesse ato de lanccedilar dados ele brinca e assim realiza jogos cominatoacuterios complexos

em seus contos E pouco importa se satildeo dados reais fictiacutecios e ateacute biograacuteficos O que

ele busca eacute a combinaccedilatildeo Numa entrevista com Antonio Carrizo Borges diz que em

ldquoO Alephrdquo colocou elementos autobiograacuteficos como sempre tem que se por ldquopara que as

coisas soem convincentesrdquo (Borges 1983 p 236) Esperamos poder demonstrar alguns

desses jogos enquanto detalhamos cada nuacutecleo narrativo Apostamos ainda que essa

anaacutelise estrutural do conto possa nos ajudar a pensar a estruturaccedilatildeo do sonho em torno

de seu fulcro ndash o umbigo

Onuacutecleofantaacutestico

Esse eacute o nuacutecleo axial do conto para o qual os outros convergem Nele temos a histoacuteria do

encontro de Borges (que eacute autor narrador e personagem) com este inconcebiacutevel objeto

O momento da visatildeo do Aleph experiecircncia quase miacutestica eacute o cliacutemax do conto do qual

jaacute citamos acima o iniacutecio Nesse instante Borges nos lanccedila num paraacutegrafo de mais de

quarenta linhas sem um uacutenico ponto Paraacutegrafo descritivo intenso e vertiginosamente

poeacutetico em que busca recuperar numa metoniacutemia desvairada algo de sua experiecircncia

indescritiacutevel O Aleph eacute um ponto do espaccedilo que conteacutem todo o espaccedilo assim como a

eternidade seria um instante que conteacutem todo o tempo Dessa forma o Aleph seria para

o espaccedilo o que a eternidade eacute para o tempo (Borges 1983) ldquoNaquele instante gigantes-

287O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

co vi milhotildees de atos deleitaacuteveis ou atrozes nenhum me assombrou tanto como o fato

de todos ocuparem o mesmo ponto sem superposiccedilatildeo ou transparecircncia O que meus

olhos viram foi simultacircneordquo (Borges 19492008 p 148)

A imensidatildeo contida num ponto natildeo eacute o uacutenico paradoxo com qual Borges brinca Para

Harold Bloom (2010) o Aleph pode ser pensado como um labirinto ldquosiacutembolo do caosrdquo

que seria uma imagem central na obra de Borges Por sua vez Maurice Blanchot desig-

na o proacuteprio Borges como um homem labiriacutentico por sua surpreendente capacidade

de realizar uma ldquoinfinitizaccedilatildeordquo do espaccedilo (Blanchot 2005 p137) Borges transformaria

qualquer espaccedilo limitado (bibliotecas a pele de um jaguar livros) por menor que ele

seja em caoticamente ilimitado O autor francecircs explicita o paradoxo dizendo que o que

aprisiona natildeo eacute o espaccedilo finito e fechado posto que deste podemos sempre esperar sair

mas sim a vastidatildeo infinita da qual pode natildeo haver saiacuteda

Ainda em sua atordoante visatildeo Borges vecirc seu quarto sem ningueacutem vecirc todos os espe-

lhos do planeta e nenhum deles reflete sua imagem Eacute como se ele ocupasse inicial-

mente um ponto cego do espaccedilo jaacute que eacute de uma onipresenccedila absoluta (tudo vecirc) sem

estar em lugar algum Mas estranhamente ele parece ser visto ldquovi interminaacuteveis olhos

imediatos perscrutando-se em mim como num espelhordquo (Borges 19492008 p149)

Haacute olhos anocircnimos que o espreitam e o flagram vendo vendo isso que seus proacuteprios

olhos mal podem acreditar Olhos que o perscrutam como num espelho como se ele

Borges fosse o reflexo desses olhos perseguidores como se nesse momento se igua-

lasse a eles sendo nada aleacutem desses olhos Apenas olhos sem corpo olhos muacuteltiplos

interminaacuteveis e imediatos

E novamente ele encontra o espelho ldquovi num escritoacuterio de Alkmar um globo terrestre

entre dois espelhos multiplicado infindavelmenterdquo (ibid p149) Eacute um complexo jogo

especular que infinitiza a imagem do planeta Assim como as uacuteltimas palavras de sua

visatildeo ldquovi o Aleph de todos os pontos vi no Aleph a Terra e na Terra outra vez o Aleph

e no Aleph a Terrardquo (ibid p150) Impossiacutevel distinguir o que eacute mundo e o que eacute Aleph

Blanchot problematiza brevemente a questatildeo da coacutepia e do duplo afirmando borgia-

namente que quando a coacutepia eacute perfeita o original eacute apagado Se o duplo eacute idecircntico a

origem se perde e torna-se impossiacutevel a distinccedilatildeo entre o original e sua coacutepia Ele afirma

ainda que o mundo deixaria de ser o mundo diante de uma hipoteacutetica materializaccedilatildeo do

288

prodigioso e abominaacutevel Aleph Ele natildeo passaria do mundo ldquopervertido na soma infini-

ta dos possiacuteveisrdquo (Blanchot 2005 p 139)

Haacute um momento chave nesse nuacutecleo narrativo que pode a princiacutepio passar desperce-

bido mas que como veremos eacute crucial para a apreensatildeo da histoacuteria de amor (o nuacutecleo

seguinte) No meio de sua deslizante descriccedilatildeo sem ponto sem destaque simplesmen-

te como mais um elemento que viu encontramos ldquovi um astrolaacutebio persa vi numa

gaveta da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas incriacuteveis precisas que

Beatriz enviara a Carlos Argentino vi um adorado monumento na Chacaritardquo (Borges

19492008 p 150) E depois dessa silenciosa e dolorida revelaccedilatildeo eacute como se Borges

fosse retirado do ponto cego do ponto de observador externo desafetado E comeccedilasse

ele mesmo a estar implicado no que vecirc Intricado visceralmente agraves proacuteprias imagens do

Aleph ldquovi a reliacutequia atroz do que deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo vi a circu-

laccedilatildeo de meu sangue escuro vi a engrenagem do amor e a transformaccedilatildeo da morterdquo

(ibidem) E entatildeo conclui seu vertiginoso paraacutegrafo dizendo ldquovi meu rosto e minhas

viacutesceras vi teu rosto e senti vertigem e chorei porque meus olhos tinham visto aquele

objeto secreto e conjectural cujo nome os homens usurpam mas que nenhum homem

contemplou o inconcebiacutevel universordquo (ibidem)

Parece que a partir da evidecircncia das cartas de Beatriz para Carlos Borges eacute violenta-

mente afetado Tudo o que podiacuteamos saber dele antes era justamente onde natildeo estava

seu quarto estava vazio e sua imagem natildeo se refletiu em nenhum espelho A partir da

letra que o faz tremer Borges torna-se presente Eacute a caligrafia marca derradeira e incon-

fundiacutevel da mulher amada que o convoca E Borges surge despedaccedilado vecirc seu proacuteprio

rosto vecirc a circulaccedilatildeo de seu sangue escuro vecirc as proacuteprias viacutesceras sente vertigem e

chora E ao ser implacavelmente afetado na monstruosidade do que vecirc ele convoca

cruel tambeacutem o leitor ldquovi meu rosto e minhas viacutesceras vi teu rostordquo Tendo visto todos

os gratildeos de areia de todos os acircngulos que existem certamente ele viu tambeacutem cada ros-

to o meu e o seu E com essa frase ndash vi teu rosto ndash ele convoca cada um que lecirc

Antes da grande visatildeo ainda parecia possiacutevel alguma distinccedilatildeo entre as trecircs instacircncias

de Borges ndash autor narrador e personagem A partir do Aleph tudo se fusiona O que

ficaacutevamos sabendo dos personagens era pela visatildeo parcial do narrador e ele soacute sabia o

que os personagens o revelavam Apoacutes a visatildeo do Aleph natildeo haacute mais parcialidade Soacute a

absoluta onividecircncia Borges ndash autor narrador e personagem ndash tudo sabe pois tudo viu

289O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

Todo relato que vem depois dessa lancinante visatildeo parece ser decliacutenio e degradaccedilatildeo O

fim comeccedila com a brusca interrupccedilatildeo de Daneri que entra no poratildeo com suas usuais

desagradaacuteveis observaccedilotildees Borges concebe sua vinganccedila imediatamente finge nada ter

visto Aparentando benevolecircncia e piedade sugere a Daneri que aproveite a demoliccedilatildeo

da casa para ir morar no campo bem longe da loucura nociva das grandes metroacutepoles

Ao fim do conto o protagonista manifesta seu medo de nunca mais ter surpresas na

vida jaacute que nas ruas no metrocirc todos os rostos lhe pareciam familiares Entatildeo nos diz

que apoacutes algumas noites de insocircnia o esquecimento finalmente voltou a agir sobre ele

Num surpreendente poacutes-escrito datado de 1ordm de marccedilo de 1943 Borges fala da suspeita

de que o Aleph de Daneri fosse um falso Aleph Daacute justificativas apade aparecircncia douta

citando complicados nomes de livros pessoas e lugares Por fim constata que a memoacute-

ria eacute porosa reconhecendo falsear natildeo soacute a experiecircncia extraordinaacuteria que tinha vivido

mas tambeacutem os traccedilos de Beatriz

Onuacutecleodoromance

O conto comeccedila na cadente manhatilde de fevereiro de 1929 em que Beatriz Viterbo mor-

reu Em meio a uma imperiosa agonia ldquoque em nenhum instante se rebaixou ao sen-

timentalismo ou ao medordquo Borges percebe que cartazes satildeo trocados na praccedila Cons-

titucioacuten e se daacute conta de que o ldquovasto e incessante universordquo jaacute se afastava de Beatriz

(Borges 19492008 p 136) Poderia mudar o mundo mas natildeo ele e muito menos o

que sentia por ela pensou em sua melancoacutelica vaidade Em 30 de abril aniversaacuterio de

Beatriz considerou que seria um ato de cortesia irrepreensiacutevel fazer uma visita agrave casa

da Rua Garay para cumprimentar-lhe o pai e Carlos Daneri o primo-imatildeo Cada ano

na mesma data faria a mesma visita um pouco mais longa a cada ano ateacute incluir com

naturalidade o jantar

Essas situaccedilotildees forccediladas esses jantares ldquomelancoacutelicos e inutilmente eroacuteticosrdquo mais pa-

recem uma tentativa de Borges reter a amada morta esforccedilos para natildeo perdecirc-la Ele

aproveitava as visitas para analisar cada pormenor dos numerosos retratos de Beatriz

No conto satildeo essas fotografias que nos apresentam a personagem ldquoBeatriz de maacutescara

no Carnaval de 1921 a primeira comunhatildeo de Beatriz Beatriz no dia de seu casamento

com Roberto Alessandri Beatriz pouco depois do divoacutercio num almoccedilo no clube hiacutepi-

cordquo (Borges 19492008 p 137) Este era um haacutebito cultivado desde quando Beatriz

290

ainda era viva e o deixava esperando na salinha abarrotada Pelo menos agora que Be-

atriz estava morta ele natildeo se sentia obrigado a justificar sua presenccedila com acanhados

presentes de livros Livros que como nos conta aprendeu a entregar jaacute abertos para natildeo

constatar meses depois que ainda permaneciam intactos Beatriz sempre o desprezou

essa eacute a verdade Por isso como ele mesmo confessa agora era mais faacutecil amaacute-la De-

pois de morta ele poderia devotar-se a sua memoacuteria ldquosem esperanccedila mas tambeacutem sem

humilhaccedilatildeordquo (ibid p138)

Eacute essa admiraccedilatildeo por vezes ridiacutecula que torna a revelaccedilatildeo do Aleph tatildeo dolorida Bor-

ges eacute obrigado se dar conta do que ele era para essa mulher insignificante Brutalmente

ele eacute obrigado a perceber o lugar que ocupa nessa histoacuteria ndash ele eacute o tolo o cego (revela-

ccedilatildeo paradoxal justo quando conquista a absoluta onividecircncia oferecida pelo Aleph) O

nuacutecleo romacircntico do conto revela-se assim como um triacircngulo amoroso

Haacute um curioso e constante paralelismo entre os personagens de Borges e de seu rival

mais favorecido por Beatriz Daneri Borges brinca como se os dois fossem reflexos de

sua proacutepria imagem Sabe-se que o escritor trabalhou durante muitos anos numa pe-

quena biblioteca em Buenos Aires a mesma ocupaccedilatildeo de Carlos Argentino Daneri no

conto Aleacutem desse paralelo biograacutefico haacute outros relacionados agrave proacutepria trama do conto

Borges deseja exasperadamente Beatriz e eacute para Carlos que ela escreve as tais cartas

Borges eacute o escritor sem reconhecimento e eacute Carlos (o mau escritor) que no fim ganha

o precircmio nacional de literatura por seu poema pedante Mas nem sempre Carlos leva a

melhor mesmo sem saber seu maior triunfo ndash seu Aleph ndash seria um falso Aleph

Onuacutecleocriacutetico

Apesar de ser o nuacutecleo mais acessoacuterio da narrativa certamente esse eacute o mais longo

Vaacuterias paacuteginas satildeo preenchidas com as leituras dos trechos do poema de Daneri e seus

enfadonhos e presunccedilosos comentaacuterios recheados de autoelogio A cada duas estrofes

que Daneri lecirc de seu poema megalomaniacuteaco laacute se vatildeo alguns paraacutegrafos de comentaacute-

rios em que ele explicita toda sua culta referecircncia aos claacutessicos e fala da sua certeza de

que agradaraacute a todos os criacuteticos E ironicamente eacute essa obra empolada que recebe o

precircmio nacional de literatura depois de ser publicada pela Editora Procusto que natildeo se

deixou intimidar pela extensatildeo do poema e lanccedilou uma seleccedilatildeo de ldquotrechos argentinosrdquo

A Editora Procusto eacute outra bela ironia na referecircncia ao personagem da mitologia grega

291O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

que tanto esticava como amputava suas viacutetimas de acordo com o tamanho da cama

Desta forma Borges constroacutei nesse nuacutecleo da narrativa uma saacutetira cruel a certo estilo

literaacuterio assim como ao mercado de publicaccedilatildeo e premiaccedilatildeo em literatura

Daneri ostenta uma erudiccedilatildeo enorme Cita uma lista sem fim de claacutessicos com nenhu-

ma outra funccedilatildeo aleacutem da exibiccedilatildeo Por sua vez as referecircncias expliacutecitas de Borges para

a construccedilatildeo de seu conto estatildeo numa literatura muito mais marginal na teoria miacutestica

da cabala e em um conto de Wells escritor inglecircs de literatura fantaacutestica A primeira

surge no fim do conto quando Borges diz que o nome Aleph eacute a primeira letra do alfa-

beto da liacutengua sagrada e que para a cabala essa letra significa o En Soph ldquoa ilimitada e

pura divindaderdquo A segunda Welss eacute uma referecircncia que aparece no epiacutelogo do livro

na declaraccedilatildeo de Borges na qual afirma ver tanto em ldquoO Alephrdquo como em ldquoO Zahirrdquo

uma influecircncia de ldquoThe crystal eggrdquo de H G Wells (1899) Nesse conto o personagem

principal eacute fatalmente seduzido por um objeto fantaacutestico um ovo de cristal de brilho

inconfundiacutevel que abre visotildees para outro mundo ndash provavelmente o planeta Marte

A referecircncia ao claacutessico de Dante ldquoA divina comeacutediardquo (2010) natildeo eacute evidente Pode entre-

tanto ser inferida tanto no nome de Beatriz Viterbo quanto nas caracteriacutesticas da per-

sonagem que ecoam a Beatriz Portinari de Dante ndash sobretudo a frieza e a indiferenccedila

Da mesma maneira o nome de Carlos Argentino Daneri parece fazer jogo com o nome

Dante Alighieri Haacute ainda outras sutilizas que podem indicar o quanto Borges toma a

Comeacutedia como referecircncia para a concepccedilatildeo de seu conto Nas produccedilotildees de Borges de

cunho mais ensaiacutestico ele deixa muito clara a sua paixatildeo por essa obra de Dante Como

por exemplo em ldquoSete noitesrdquo (1980) e ldquoNove ensaios dantescosrdquo (1982) A Comeacutedia eacute

para Borges ldquoo aacutepice das literaturasrdquo (Borges 19801999 p 226) Entatildeo talvez natildeo seja

mera coincidecircncia o fato de Borges ser autor personagem e narrador de seu conto da

mesma maneira que Dante tambeacutem foi autor personagem e narrador de seu poema

A forma como Borges cifra o universo em seu conto parece ter algo a ver com a potecircn-

cia de cifraccedilatildeo de Dante Para Borges ldquoA Divina Comeacutediardquo eacute uma espeacutecie de ldquolacircmina

maacutegicardquo e ldquonatildeo haacute coisa na Terra que natildeo esteja aiacuterdquo (Borges 19821999 p 383) Agrave sua

maneira o Aleph tambeacutem eacute uma lacircmina maacutegica um microcosmo de acircmbito universal

E haacute ainda outro ponto comum que nos parece fundamental Para Borges Dante teria

edificado ldquoo melhor livro que a literatura alcanccedilourdquo soacute para interpor em seus escritos

alguns encontros com sua irrecuperaacutevel Beatriz que em vida supostamente teria des-

292

tratado e se escarnecido de Dante Borges argumenta ldquoDante morta Beatriz brincou

com a ficccedilatildeo de encontraacute-la para mitigar sua tristezardquo (Borges 19821999 p 417) O

escritor argentino aposta que Dante teria concebido a triacuteplice arquitetura de seu poema

ndash Inferno Purgatoacuterio e Ceacuteu ndash soacute para ter a chance de intercalar o encontro com Beatriz

E o mais significativo ldquoRecusado para sempre por Beatriz sonhou com Beatriz mas so-

nhou-a severiacutessima mas sonhou-a inacessiacutevelrdquo (ibidem) Nesse ponto Borges tem toda

razatildeo Os encontros de Dante e Beatriz no poema satildeo poucos breves e desagradaacuteveis

O primeiro que acontece no Canto XXX do Purgatoacuterio eacute extremante humilhante para

Dante Por isso para Borges Dante seria um infeliz que imagina a cada dia a felicidade

mas os encontros que concebe acabam sempre sendo lastimaacuteveis Uma ilusatildeo que deixa

entrever o horror que oculta ldquonightmares of delightrdquo ldquopesadelos de deleiterdquo eacute o oximoro

de Chesterton que Borges (19821999 p 419) toma para descrever essa busca por feli-

cidade que redunda sempre em mais dor e sofrimento Expressatildeo que nos parece exata

para descrever a ideia freudiana de compulsatildeo agrave repeticcedilatildeo em que o sujeito sem se dar

conta repete compulsivamente atos que lhe causam desprazer Em Borges encontra-

mos a mesma tentativa frustrada de reter a mulher amada que redunda em mais dor e

sofrimento Esse eacute todo o eixo do nuacutecleo romacircntico da narrativa

Oumbigoeopontodecapturadosujeito

A estruturaccedilatildeo do conto parece sugerir que na literatura assim como nos sonhos a

composiccedilatildeo narrativa em diferentes nuacutecleos simultacircneos que se reuacutenem compondo

uma unidade heterogecircnea eacute o resultado de jogos combinatoacuterios como se a meta fosse

encontrar a melhor combinaccedilatildeo possiacutevel entre os elementos que se encontram disponiacute-

veis no momento da formaccedilatildeo do conto ou do sonho Conto e sonho compotildeem laccedilam

dados num jogo combinatoacuterio e talvez seja indiferente a origem desses dados Tanto

faz se satildeo biograacuteficos ou fictiacutecios se vecircm de lembranccedilas infantis ou de restos diurnos

o importante eacute o jogo E muitas vezes o que se percebe eacute que um dado aparentemente

irrelevante para um nuacutecleo pode ser crucial para outro

Outro ponto interessante estaacute no encaixe dos diferentes nuacutecleos Os encaixes de Borges

satildeo magistrais e parecem eliminar o eventual e o fortuito Eacute possiacutevel apostar que o mes-

mo aconteccedila nos sonhos A diferenccedila entre sonho e conto talvez natildeo esteja exatamente

nos elementos utilizados para tais encaixes Provavelmente eles satildeo os mesmos e vecircm

293O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

do mesmo lugar ndash o inconsciente Natildeo se deve subestimar a determinaccedilatildeo inconsciente

Rivera (2012) aponta que na associaccedilatildeo livre (uacutenica regra do tratamento analiacutetico) em

vez de falatoacuterio sem nexo tem-se justamente associaccedilotildees que se revelam nada livres

Elas satildeo firmemente ligadas a um encadeamento inconsciente que a interpretaccedilatildeo ten-

ta reconstruir Provavelmente a diferenccedila entre sonho e conto estaacute no que Freud (1900)

chama de elaboraccedilatildeo secundaacuteria ndash a que empresta ao sonho certo ar de coerecircncia para

que ele possa passar um tanto mais despercebido pela censura psiacutequica O conto de

Borges eacute extremamente elaborado com trama muito sofisticada e histoacuterias bastante se-

quenciadas Jaacute os sonhos podem ser muito mais fragmentados apesar de muitas vezes

apresentarem uma sequecircncia narrativa bem elaborada Entretanto nos dois sonho e

conto ateacute os elementos mais triviais satildeo determinados O que proporciona jogos signi-

ficantes sempre precisos mesmo que nem sempre apreensiacuteveis

ldquoO Alephrdquo parece mostrar que a condensaccedilatildeo estaacute relacionada ao umbigo do sonho de

uma forma bastante particular Borges mostra o quanto condensar eacute uma sofisticada

operaccedilatildeo de ciframento que inclui um resto que resiste a qualquer ciframento E que

transmite assim um excesso perturbador Eacute como se a base da condensaccedilatildeo residisse

exatamente no ldquoincondensaacutevelrdquo Daiacute uma caracteriacutestica tatildeo curiosa todo sonho tem a

possibilidade de apontar para muacuteltiplos sentidos interpretativos mas ao mesmo tem-

po nenhum sonho pode ser interpretado em sua totalidade Satildeo duas faces da mesma

moeda ao mesmo tempo em que o umbigo e seu denso emaranhamento proporcionam

a possibilidade de que indeterminaacuteveis novos caminhos associativos possam surgir ele

tambeacutem aponta para o que resta desconhecido ndash o nuacutecleo duro que natildeo eacute passiacutevel de

interpretaccedilatildeo

Eacute possiacutevel sustentar em uma leitura atenta da teoria dos sonhos de Freud que cada

ponto nodal ou seja cada centro dos nuacutecleos de pensamentos oniacutericos eacute um umbigo

em potencial A formaccedilatildeo dos dois parece ser a mesma A diferenccedila estaria na quan-

tidade de pensamentos e de sobredeterminaccedilotildees Como se o umbigo fosse um ponto

nodal excessivamente condensado ou um ponto nodal em que a rede de pensamentos

se tornou tatildeo emaranhada a ponto do caminho inverso natildeo poder ser refeito Por isso o

umbigo consiste em um grande centro atrativo de associaccedilotildees Uma quantidade enor-

me de associaccedilotildees converge por exemplo para a boca aberta de Irma que em nossa

leitura tomamos como um umbigo do sonho Na verdade quase todas as associaccedilotildees

294

que Freud faz em sua interpretaccedilatildeo desse sonho parecem de alguma forma tocar esse

nuacutecleo condensador32

Tanto no umbigo do sonho quanto no Aleph encontramos de forma expressiva o des-

medido A sequecircncia natildeo se interrompe porque faltam elementos mas sim porque

paradoxalmente haacute elementos demais Trata-se de um excesso disruptivo paralisa(dor)

que parece vir em resposta a algo Eacute a letra que faz Borges tremer que parece ser o fulcro

de tudo no conto Ela eacute uma espeacutecie de ponto de captura do sujeito como vimos Por

essa letra Borges natildeo passa intacto ela o fisga e ele eacute entatildeo visceralmente implicado no

que vecirc Ele sai da ausecircncia desafetada para a presenccedila em corpo fragmentado E natildeo sa-

tisfeito nos inclui a noacutes leitores do conto nessa estranha presenccedila Como se buscasse

passar adiante transmitir aquilo que o tomou tatildeo violenta e repentinamente

No sonho da injeccedilatildeo de Irma haacute tambeacutem um similar ponto de captura do sujeito Laacute eacute a

aterrorizante imagem da boca aberta de Irma que parece apreender algo de Freud Por

essa boca como destaca Lacan (1954-19551985) em sua releitura desse sonho Freud

natildeo passa ileso as identificaccedilotildees imaginaacuterias se rompem e entram em cena as falas

incongruentes e insensatas Em meio a uma enxurrada de elementos associativos tanto

no Aleph como no sonho haacute algo (um umbigo na eloquente metaacutefora corporal empre-

gada por Freud) que fisga o sujeito Ele aponta para a verdade do lugar que o sujeito

ocupa diante do outro E talvez seja o impossiacutevel (ou o insuportaacutevel) saber desse lugar

que faccedila precipitar todo o desmedido Eacute a esse ponto cego que o excesso vem responder

A bela expressatildeo trazida por Borges para se referir agrave consumiccedilatildeo de Dante em sua

devoccedilatildeo amorosa ldquonightmares of delightrdquo ndash ldquopesadelos de deleiterdquo ndash aponta para o gozo

da repeticcedilatildeo nesse lugar de captura O ponto que diz algo da posiccedilatildeo objetalizada que

o sujeito ocupa diante do outro E a coincidecircncia (ou o encaixe preciso) dessa histoacuteria eacute

justamente que por meio do pesadelo Freud pode duas deacutecadas mais tarde em 1920

conceber a pulsatildeo de morte e pensar a compulsatildeo agrave repeticcedilatildeo Satildeo os sonhos repetitivos

de pessoas que sofriam de neuroses traumaacuteticas que permitem a Freud perceber que a

funccedilatildeo primaacuteria do sonho natildeo eacute a realizaccedilatildeo de desejo Eacute antes conjurar pela repeticcedilatildeo

os excessos pulsionais oriundos do trauma que subjulgam o sujeito Conforme aponta

Rivera em sua leitura do texto de 1900 o sonho repete sempre a mesma cena traumaacute-

32 Ver para mais detalhes o segundo capiacutetulo de Pinto 2012

295O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho

tica na tentativa de fazer engatar uma posiccedilatildeo de sujeito desejante neste que era um

lugar de ldquomortiacutefero assujeitamentordquo (Rivera 2012 p 23) O sujeito repete a mesma

cena na tentativa de se fazer sujeito da cena de sofrer natildeo tatildeo passivamente aquilo que

lhe tomou violentamente de surpresa Esse parece ser o ponto que tanto Aleph quanto

sonho ao mesmo tempo em que encobrem tambeacutem revelam

Referecircncias

Alighieri D (2010) A divina comeacutedia Traduccedilatildeo e notas de Iacutetalo Eugecircnio Mauro Satildeo

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297 A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

DionedeMedeirosLulaZavaroni

TerezinhadeCamargoViana

MassimoAmmaniti

Introduccedilatildeo

Este trabalho apresenta parte da pesquisa de doutorado realizada dentro do acordo de

co-tutela celebrado entre o Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura

da Universidade de Brasiacutelia e o Dottorato di Ricerca in Psicologia Dinamica Clinica e dello

Sviluppo da Universitagrave degli Studi di Roma ldquoLa Sapienzardquo para o desenvolvimento da

298

tese de doutorado intitulada O transtorno alimentar poacutes-traumaacutetico na primeira infacircncia33

Optamos por fazer um recorte privilegiando a apresentaccedilatildeo e discussatildeo dos dados da

pesquisa referentes agrave interaccedilatildeo alimentar entre a crianccedila e a matildee visto que a literatu-

ra aponta como uma das principais caracteriacutesticas dos transtornos da alimentaccedilatildeo na

infacircncia a presenccedila de um elevado iacutendice de dificuldades na interaccedilatildeo alimentar matildee-

-bebecirc O recorte apresentado com os dados extraiacutedos a partir da utilizaccedilatildeo da SVIA na

avaliaccedilatildeo da interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc corroboram os estudos anteriormente reali-

zados que apontam dificuldades na interaccedilatildeo da crianccedila com transtorno alimentares e

seus cuidadores no momento da alimentaccedilatildeoOs objetivos gerais da tese O transtorno

alimentar poacutes-traumaacutetico na primeira infacircncia consistiram em desenvolver um estudo

empiacuterico que possibilitasse

a Identificar os fatores de risco presentes no Transtorno Alimentar Poacutes-

traumaacutetico (TAPT)

b Identificar caracteriacutesticas especiacuteficas do comportamento alimentar da crianccedila e dos

modelos de interaccedilatildeo matildee-bebecirc no TAPT

c Estabelecer criteacuterios diagnoacutesticos diferenciais entre o TAPT e a Anorexia Infantil

(AI)

d Evidenciar a pertinecircncia da observaccedilatildeo da interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc no proces-

so diagnoacutestico do TAPT

O estudo foi realizado com 60 crianccedilas (n=60) com idade meacutedia de 23 meses divididas

em trecircs grupos Grupo de crianccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-TraumaacuteticoTAPT

(n=20) Grupo de crianccedilas com Anorexia InfantilAI (n=20) e Grupo de Controle com-

posto por crianccedilas sem transtornos alimentares (n=20) Na presente pesquisa todas

as crianccedilas com diagnoacutestico de Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico passaram por

33 Tese de doutorado realizada dentro do acordo de co-tutela celebrado entre o Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Cliacutenica e Cultura da Universidade de Brasiacutelia e o Dottorato di Ricerca in Psicologia Dinamica Clinica e dello Sviluppo da Universitagrave degli Studi di Roma La Sapienza Zavaroni D L M (2009) O transtorno alimentar poacutes-traumaacutetico na primeira infacircncia Tese de DoutoradoUniversidade de Brasilia Brasilia DF Brasil Universitagrave di Roma La Sapienza Roma Itaacutelia Orientadora Terezinha de Camargo Viana Co-orientadorMasimo Ammaniti

299A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

um procedimento ciruacutergico e todas foram observados aproximadamente seis meses

apoacutes a resoluccedilatildeo do problema meacutedico As crianccedilas foram selecionadas em um Hospital

Pediaacutetrico da cidade de Roma (Itaacutelia) dentre aquelas que depois de resolvida a proble-

maacutetica meacutedica na esfera da orofaringe continuavam a apresentar uma intensa recusa

do alimento acompanhada de comportamentos foacutebicos de evitaccedilatildeo e terror As crianccedilas

do Grupo Anorexia Infantil tambeacutem foram selecionadas em um Hospital Pediaacutetrico da

cidade Roma (Itaacutelia) apoacutes a avaliaccedilatildeo do transtorno alimentar tendo sido excluiacutedas as

crianccedilas que apresentavam alguma patologia meacutedica O Grupo de Controle eacute composto

de vinte crianccedilas (n=20) nos primeiros trecircs anos de vida que natildeo apresentam sintomas

de transtornos alimentares em suas anamneses e que apresentam um desenvolvimento

psicomotor regular Os dados do grupo de controle foram coletados graccedilas agrave colaboraccedilatildeo

com uma creche do Municiacutepio de Ciampino na Proviacutencia de Roma (Itaacutelia)

As crianccedilas e suas matildees foram observadas em sessotildees alimentares e a interaccedilatildeo alimen-

tar videorregistrada foi avaliada atraveacutes Feeding Resistance Scale (Chatoor et al 2001) e

da adaptaccedilatildeo italiana da Feeding Scale (Chatoor et al 1997) intitulada Scala di Valutazio-

ne dellrsquoInterazione Alimentare Madre-Bambino SVIA (Ammaniti et al 2006) O perfil

psicoloacutegico das matildees e das crianccedilas foi avaliado a partir do Psychiatric Symptom Checklist

(SCL-90-R) (Derogatis 1994) e do Child Behavior Checklist 1frac12-5 (CBCL 1―-5) (Achenbach

e Rescorla 2000 versatildeo italiana Frigerio 1998 Frigerio et al 2006) respectivamente

O diagnoacutestico de Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e de Anorexia Infantil foi reali-

zado com base nos criteacuterios do DSM-IV-TR (APA 2000) da Classificaccedilatildeo 0-3R (Zero-

-to-Three 2005) e da Classificaccedilatildeo Cliacutenica proposta por Irene Chatoor (2002 Cahatoor

et al 2001 Chatoor e Ammaniti 2007)

Para o presente trabalho optamos em fazer um recorte privilegiando a apresentaccedilatildeo

e discussatildeo dos dados da pesquisa referentes agrave interaccedilatildeo alimentar entre a crianccedila e a

matildee visto que a literatura aponta como uma das principais caracteriacutesticas dos trans-

tornos da alimentaccedilatildeo na infacircncia a presenccedila de um elevado iacutendice de dificuldades na

interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc

300

Avaliaccedilatildeodainteraccedilatildeoalimentarmatildee-bebecirc

A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc foi avaliada atraveacutes de procedimentos de observaccedilatildeo

direta As diacuteades matildee-bebecirc dos Grupos Cliacutenicos e de Controle foram observadas em

uma sessatildeo videorregistrada de 20 minutos efetuada durante uma das principais re-

feiccedilotildees da crianccedila Antes de comeccedilar a realizaccedilatildeo do viacutedeo as matildees foram orientadas a

comportar-se de modo habitual durante o momento da alimentaccedilatildeo da crianccedila Foi soli-

citado que as sessotildees de alimentaccedilatildeo fossem realizadas apenas com a presenccedila da matildee

e da crianccedila Nos viacutedeos feitos em casa a escolha do local onde seria realizada a refeiccedilatildeo

da crianccedila (sala cozinha quarto etc) foi feita pela matildee eou pela crianccedila tendo como

referecircncia os procedimentos mais usuais entre ambas A decisatildeo sobre o modo como

acomodar a crianccedila ficou a criteacuterio da matildee (cadeira da mesa de refeiccedilotildees cadeiratildeo colo

etc) Os viacutedeos foram feitos por psicoacutelogos com training na Feeding Scale

A observaccedilatildeo videorregistrada foi avaliada atraveacutes de dois checklist que permitem anali-

sar a qualidade das modalidades relacionais e o estado afetivo da diacuteade durante a refei-

ccedilatildeo

bull Feeding Resistance Scale (Chatoor et al 2001 adaptaccedilatildeo italiana Ammaniti et al

2008)

bull Feeding Scale (Chatoor et al 1998 na adaptaccedilatildeo italiana Scala di Valutazione

dellrsquoInterazione Alimentare Madre-Bambino SVIA Ammaniti Lucarelli Cimi-

no DrsquoOlimpio 2006)

A Feeding Resistance Scale (Chatoor et al 2001) foi criada para ser usada na observaccedilatildeo

direta da crianccedila e da matildee no momento da alimentaccedilatildeo quando a histoacuteria cliacutenica indica

a possiacutevel presenccedila de um Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico A escala se apresenta

sob a forma de um checklist que se aplica a observaccedilatildeo videorregistrada da diacuteade matildee-

-crianccedila durante uma sessatildeo alimentar de aleitamento ou de uma refeiccedilatildeo principal

O uso da Feeding Resistance Scale possui dois objetivos principais orientar o diagnoacutestico

do transtorno alimentar e orientar as intervenccedilotildees com base nas relaccedilotildees matildee-crianccedila

Como um instrumento cliacutenico e diagnoacutestico serve agrave identificaccedilatildeo de modelos disfun-

cionais emotivos e comportamentais da crianccedila durante a refeiccedilatildeo e das dinacircmicas re-

lacionais de risco avaliadas clinicamente nos procedimentos de avaliaccedilatildeo diagnoacutestica

dos transtornos alimentares infantis Os viacutedeos satildeo ainda utilizados nas intervenccedilotildees

301A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

cliacutenicas com os genitores com o objetivo de prevenir ou tratar transtornos emotivos e

problemas relacionais precoces

A Feeding Resistance Scale eacute composta por vinte itens que descrevem o comportamento

da crianccedila durante a refeiccedilatildeo com ecircnfase nas respostas da mesma agrave situaccedilatildeo alimentar

e agrave comida Cada item da escala deve ser medido de acordo com uma escala Likert com-

posta por quatro pontos (0 = nunca 1 = pouco 2 = algumas vezes 3 = muito) em corres-

pondecircncia agrave frequecircncia e agrave intensidade dos comportamentos descritos que a crianccedila re-

vela no curso da refeiccedilatildeo A avaliaccedilatildeo oferece um iacutendice global da resistecircncia alimentar

(feeding resistance) ou pontuaccedilotildees agrupadas em cada dimensatildeo observada pela escala

bull Resistecircncia Preacute-oral I avalia a ansiedade antecipatoacuteria e os comportamentos defen-

sivos da crianccedila antes que a comida chegue agrave boca (por ex ao ver os utensiacutelios da

alimentaccedilatildeo ou quando posicionada para comer) Eacute composta de cinco itens

bull Resistecircncia Preacute-oral II avalia a ansiedade antecipatoacuteria e a resistecircncia em aceitar a

comida quando lhe eacute oferecida Eacute composta por oito itens

bull Resistecircncia Intra-oral avalia a resistecircncia em ingerir e deglutir quando a comida eacute

colocada na boca da crianccedila Eacute composta por sete itens

Conjuntamente agrave Feeding Resistance Scale (Chatoor et al 2001) eacute possiacutevel aplicar uma

escala de observaccedilatildeo da interaccedilatildeo alimentar entre a matildee e a crianccedila A Feeding Scale

ndash Observational Scale for Mother-Infant Interaction during Feeding (Chatoor et al 1998

Ammaniti et al 2006) oferece uma avaliaccedilatildeo eficaz da interaccedilatildeo matildee-bebecirc duran-

te uma sessatildeo de alimentaccedilatildeo de 20 minutos A escala pode ser usada com crianccedilas

entre um mecircs e trecircs anos de idade A versatildeo original padronizada para a populaccedilatildeo

norte-americana consiste de 46 itens que descrevem os comportamentos da matildee e da

crianccedila no curso de uma refeiccedilatildeo e se aplica a observaccedilotildees videoregistradas da diacuteade

durante a interaccedilatildeo alimentar Os itens satildeo avaliados apoacutes a sessatildeo de alimentaccedilatildeo Na

presente pesquisa foi utilizada a versatildeo italiana da Feeding Scale (Scala di Valutazione

dellrsquoInterazione Alimentare Madre-Bambino Ammaniti et al 2006) que se apresenta

sob a forma de um checklist com quarenta e um itens que se aplicam agraves observaccedilotildees

videoregistradas da diacuteade matildee-bebecirc durante a interaccedilatildeo alimentar nos primeiros trecircs

anos de vida

302

A escala foi criada para ser utilizada como instrumento de pesquisa ou como instru-

mento cliacutenico e diagnoacutestico Como instrumento de pesquisa eacute um precioso meio para

o estudo do desenvolvimento da relaccedilatildeo matildee-bebecirc nos primeiros trecircs anos de vida e das

dinacircmicas relacionais de risco no contexto da alimentaccedilatildeo Como instrumento cliacutenico e

diagnoacutestico permite identificar e mostrar modelos disfuncionais de regulaccedilatildeo alimen-

tar da crianccedila e dinacircmicas relacionais de risco da diacuteade matildee-bebecirc que satildeo avaliadas

clinicamente para aprofundar a avaliaccedilatildeo diagnoacutestica dos transtornos alimentares in-

fantis O viacutedeo da interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc pode ser utilizado por especialistas na

intervenccedilatildeo psicoterapecircutica junto aos genitores com o objetivo de prevenir ou tratar

transtornos evolutivos e problemas relacionais precoces Na adaptaccedilatildeo italiana a escala

se subdivide em quatro subescalas Estado Afetivo da Matildee Conflito Interativo Compor-

tamento de Recusa Alimentar da Crianccedila Estado Afetivo da Diacuteade

Resultados

Feeding Scale

As diacuteades matildee-bebecirc dos Grupos Cliacutenicos e do Grupo de Controle foram observadas

durante uma das principais refeiccedilotildees da crianccedila em uma sessatildeo videoregistrada de

vinte minutos A observaccedilatildeo foi avaliada atraveacutes da Feeding Scale (Chatoor et al 1998

Ammaniti et al 2006) e da Feeding Resistance Scale (Chatoor et al 2001 Ammaniti et

al 2008)

A aplicaccedilatildeo da Feeding Scale evidenciou diferenccedilas significativas entre os dois Grupos

Cliacutenicos e o Grupo de Controle em relaccedilatildeo as quatro subescalas da escala Estado Afetivo

da Matildee Conflito Interativo Comportamento de Recusa Alimentar da Crianccedila Estado

Afetivo da Diacuteade Nas quatro subescalas da SVIA os resultados meacutedios mais elevados

foram encontrados no grupo cliacutenico Anorexia Infantil seguido do grupo cliacutenico Trans-

torno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico O Grupo de Controle obteve resultados significativa-

mente mais baixos em todas as subescalas

A diferenccedila mais relevante entre os Grupos Cliacutenicos e o Grupo de Controle foi obser-

vada na dimensatildeo Conflito Interativo onde as crianccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-

-Traumaacutetico e com Anorexia Infantil apresentaram um elevado resultado com relaccedilatildeo

303A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

ao Grupo de Controle No confronto entre os resultados dos dois grupos cliacutenicos na Fe-

eding Scale o Grupo Cliacutenico Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico teve resultados mais

baixos em todas as subescalas em relaccedilatildeo ao Grupo Cliacutenico de crianccedilas com Anorexia

Infantil (Graacutefico 1)

GRAacuteFICO 1 ndash Feeding Scale

SVIA

-

5

10

15

20

25

30

35

40

Estado Afetivo da Matildee Conflito Interativo Comportamento deRecusa Alimentar da

Crianccedila

Estado Afetivo daDiacuteade

TAPT

AI

Controle

O Grupo de Controle teve resultados significativamente mais baixos em todas as subes-

calas quando comparados aos Grupos Cliacutenicos Os resultados mais elevados no Grupo

Cliacutenico Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e no Grupo de Anorexia Infantil foram

obtidos na subescala Conflito Interativo seguida das subescalas Estado Afetivo da Matildee

Comportamento de Recusa Alimentar da Crianccedila e Estado Afetivo da Diacuteade O Grupo

Anorexia Infantil obteve pontuaccedilotildees mais elevadas em todas as subescalas quando com-

parado ao Grupo Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico (Graacutefico 2)

304

GRAacuteFICO 2 ndash RESULTADOS SVIA POR GRUPO

RESULTADOS SVIA

0

5

10

15

20

25

30

35

40

TAPT AI CONTROLE

Grupos

Resu

ltado

s

Estado Afetivo da Matildee Conflito Interativo

Comportamento de Recusa Alimentar da Crianccedila Estado Afetivo da Diacuteade

Feeding Resistance Scale

Na Feeding Resistance Scale (Resistecircncia Preacute-oral I ndash Ansiedade Antecipatoacuteria Resistecircncia

Preacute-oral II ndash Anguacutestia e Resistecircncia agrave Comida Resistecircncia Intra-oral ndash Resistecircncia agrave inges-

tatildeo de comidas) as crianccedilas do Grupo Cliacutenico Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico ob-

teve resultados meacutedios significativamente mais elevados em todas as subescalas quan-

do confrontado ao Grupo Cliacutenico Anorexia Infantil e ao Grupo de Controle

Em todas as dimensotildees os resultados das crianccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-Trau-

maacutetico foram significativamente mais elevados com relaccedilatildeo agraves crianccedilas do Grupo Ano-

rexia Infantil e ao Grupo de Controle A diferenccedila entre os grupos foi particularmente

marcante na demissatildeo Ansiedade Antecipatoacuteria (Resistecircncia Preacute-oral I) que se refere ao

estresse da crianccedila no momento dos preparativos para iniciar a refeiccedilatildeo antes de iniciar

a alimentaccedilatildeo propriamente dita e que se constitui um dos sintomas mais relevantes

do Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico Nesta dimensatildeo o grupo de crianccedilas com

Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico obteve resultados muito mais elevados que e o

grupo de crianccedilas com Anorexia Infantil e o Grupo de Controle e natildeo houve diferenccedila

significativa entre o Grupo Anorexia Infantil e o Grupo de Controle

305A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

GRAacuteFICO 3 ndash Feeding Resistance Scale

Feeding Resistance Scale

-

5

10

15

20

25

Ansiedade Antecipatoacuteria Ansiedade e Resistecircncia agraveComida

Resistecircncia agrave ingestatildeo daComida

TAPTAICONTROLE

Discussatildeo

O presente estudo dedicou-se agrave pesquisa das caracteriacutesticas do Transtorno Alimentar

Poacutes-Traumaacutetico na primeira infacircncia sobretudo na sua diferenciaccedilatildeo da Anorexia In-

fantil Segundo estudos anteriores (Benoit e Coolbear 1998 Chatoor et al 2001) o

principal criteacuterio diagnoacutestico do Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico eacute a existecircncia

de uma intensa e persistente recusa alimentar associada a um evento traumaacutetico pre-

cedente ligado agrave alimentaccedilatildeo ou ao sistema digestoacuterio Segundo Chatoor et al (2001)

este transtorno pode ser associado a episoacutedios reais desprazerosos ou aterrorizantes

ligados agrave esfera alimentar (sufocamento obstruccedilatildeo por comida vocircmito severo) ou a pro-

cedimentos meacutedicos que envolveram a orofaringe e o esocircfago (sonda nasogaacutestrica ou

intubaccedilatildeo) Aleacutem disso a literatura especializada reporta uma correlaccedilatildeo entre o Trans-

torno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e a presenccedila do Refluxo Gastroesofaacutegico Contudo

existem alguns estudos (Chatoor et al 2001) indicando que apenas um pequeno grupo

de crianccedilas com Refluxo Gastroesofaacutegico desenvolveu um Transtorno Alimentar Poacutes-

306

-Traumaacutetico Dellert et al (1993) afirmam que natildeo existe diferenccedila quando se considera

a patologia orgacircnica (refluxo gastroesofaacutegico ou esofagite) entre as crianccedilas que desen-

volveram o Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e aquelas que natildeo desenvolveram

Ao mesmo tempo a cliacutenica revela que natildeo existe uma relaccedilatildeo de causa e efeito direta

entre os procedimentos meacutedicos no acircmbito do sistema digestoacuterio e o Transtorno Ali-

mentar Poacutes-Traumaacutetico ou seja natildeo satildeo todas as crianccedilas que vivenciam experiecircncias

de naacuteusea sufocamento vocircmito ou manipulaccedilatildeo da orofaringe que desenvolvem um

Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico Chatoor et al (2001) sugerem que se deve estu-

dar de modo mais detalhado as caracteriacutesticas do temperamento a reatividade fisio-

loacutegica e a co-morbidade com transtornos de ansiedade para compreender melhor a

fenomenologia do Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico na infacircncia

Em consonacircncia com estudos precedentes (Chatoor et al 2001) as crianccedilas com Trans-

torno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico analisadas nesta pesquisa revelaram um acentuado

niacutevel de recusa alimentar A caracteriacutestica mais marcante da recusa alimentar das crian-

ccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e que diferencia estas crianccedilas daquelas

com diagnoacutestico de Anorexia Infantil aqui estudadas refere-se sobretudo ao elevado

niacutevel de sofrimento estresse e medo que essas crianccedilas revelam na fase preacute-oral da

alimentaccedilatildeo ou seja na fase em que a crianccedila e o ambiente se preparam para iniciar a

sessatildeo alimentar

Este dado tambeacutem aparece em outras pesquisas (Chatoor et al 2001) e eacute associado agrave

lembranccedila da experiecircncia traumaacutetica em torno da alimentaccedilatildeo que a crianccedila vivenciou

anteriormente e que lhe eacute trazida agrave memoacuteria quando a mesma se encontra na situaccedilatildeo

de alimentaccedilatildeo Aleacutem da Resistecircncia Preacute-oral as crianccedilas com Transtorno Alimentar

Poacutes-Traumaacutetico estudadas na presente pesquisa revelaram como caracteriacutestica impor-

tante uma acentuada resistecircncia em deglutir o alimento que lhe foi oferecido Portanto

a partir dos resultados obtidos se pode sustentar que a ansiedade antecipatoacuteria e os

comportamentos defensivos da crianccedila antes que a comida lhe seja oferecida a resis-

tecircncia em aceitar a comida que lhe eacute oferecida e a resistecircncia em ingerir e deglutir a

comida que lhe eacute colocada na boca se confirmam na presente pesquisa como as princi-

pais caracteriacutesticas do comportamento alimentar da crianccedila com Transtorno Alimentar

Poacutes-Traumaacutetico Eacute importante evidenciar que neste estudo a Feeding Resistance Scale

307A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

se confirma como um importante instrumento no processo diagnoacutestico do Transtorno

Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e na sua diferenciaccedilatildeo da Anorexia Infantil

Ao mesmo tempo a utilizaccedilatildeo da Feeding Scale ndash Observational Scale for Mother-Infant

Interaction during Feeding (Chatoor et al 1998 na adaptaccedilatildeo italiana Scala di Valuta-

zione dellrsquoInterazione Alimentare Madre-Bambino SVIA Ammaniti et al 2006) na

presente pesquisa ofereceu uma avaliaccedilatildeo eficaz da interaccedilatildeo matildee-bebecirc durante a ali-

mentaccedilatildeo

Como principal caracteriacutestica dos grupos cliacutenicos a Feeding Scale revelou a presenccedila de

um intenso Conflito Interativo no momento da alimentaccedilatildeo entre a crianccedila e a matildee

As crianccedilas com transtornos alimentares quando comparadas agraves crianccedilas do Grupo de

Controle tiveram resultados significativamente mais elevados em todas as subescalas

da Feeding Scale (Estado Afetivo da Matildee Conflito Interativo Comportamento de Recusa

Alimentar da Crianccedila Estado Afetivo da Diacuteade) Eacute interessante observar que embora na

Feeding Resitance Scale as crianccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico tenham

alcanccedilado pontuaccedilotildees muito mais elevadas que as crianccedilas com Anorexia Infantil na

avaliaccedilatildeo da resistecircncia agrave comida na Feeding Scale a avaliaccedilatildeo do comportamento de

recusa alimentar da crianccedila e o conflito interativo (que tambeacutem avalia alguns compor-

tamentos de recusa alimentar da crianccedila) tiveram resultados significativamente mais

elevados entre as crianccedilas com Anorexia Infantil Uma interpretaccedilatildeo possiacutevel para essa

inversatildeo na posiccedilatildeo dos grupos cliacutenicos em relaccedilatildeo a este item pode ser encontrada nas

proacuteprias caracteriacutesticas das escalas utilizadas Enquanto a Feeding Resistance Scale eacute um

instrumento com o objetivo de avaliar o comportamento de recusa alimentar a Feeding

Scale eacute um instrumento destinado agrave avaliaccedilatildeo da interaccedilatildeo matildee-bebecirc no momento da

alimentaccedilatildeo revelando principalmente elementos ligados agrave interaccedilatildeo Deste modo o

uso conjunto dos dois instrumentos na presente pesquisa se revelou complementar e

de grande importacircncia na ampliaccedilatildeo dos diversos aspectos avaliados

Os resultados revelados a partir da observaccedilatildeo da sessatildeo alimentar da matildee e da crianccedila

nos permitem afirmar que nos grupos estudados nesta pesquisa o elevado Conflito

Interativo revelado pelas crianccedilas com transtorno alimentar aparece em estreita relaccedilatildeo

com o Estado Afetivo da Matildee e com o Comportamento de Recusa Alimentar da Crianccedila

Estes dados conduzem agrave conclusatildeo de que estes aspectos interagem entre si contri-

buindo para o aumento ou a diminuiccedilatildeo de sua presenccedila na interaccedilatildeo alimentar matildee-

308

-bebecirc das crianccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e com Anorexia Infantil

O Estado Afetivo da Diacuteade tambeacutem aparece como um fator importante na interaccedilatildeo

alimentar destas crianccedilas mas dentre os fatores analisados foi o que revelou menor

interferecircncia nas dificuldades alimentares da crianccedila

Dentre os dados revelados na presente pesquisa merece destaque os elevados resulta-

dos na dimensatildeo Conflito Interativo nos grupos de crianccedilas com Transtorno Alimentar

Poacutes-Traumaacutetico e com Anorexia Infantil Estes resultados revelam a existecircncia de difi-

culdades na interaccedilatildeo ligadas a uma comunicaccedilatildeo conflituosa natildeo colaborativa e natildeo

empaacutetica entre a matildee e a crianccedila durante as refeiccedilotildees

No caso das crianccedilas com Anorexia Infantil a presenccedila marcante de conflitos interati-

vos entre a matildee e a crianccedila pode ser compreendida a partir da observaccedilatildeo de que este

transtorno alimentar frequentemente inicia-se no periacuteodo de transiccedilatildeo agrave alimentaccedilatildeo

autocircnoma quando a crianccedila mostra muito interesse nas atividades luacutedicas e na explora-

ccedilatildeo do ambiente em contrapartida a um escasso apetite Em consequecircncia eacute frequente

a luta pelo controle entre a crianccedila e o cuidador sobretudo no momento das refeiccedilotildees

quando a crianccedila demonstra mais interesse pelo brincar do que pela situaccedilatildeo alimentar

(Chatoor et al 2001)

Com relaccedilatildeo agraves crianccedilas com Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico a intensa recusa

alimentar frequentemente provoca ansiedade e desconforto no cuidador Em consequ-

ecircncia observa-se um intenso conflito onde estatildeo presentes fatores referentes agrave crianccedila

e agrave matildee Do lado do cuidador a interaccedilatildeo torna-se difiacutecil em consequecircncia de compor-

tamentos maternos que dificultam a interaccedilatildeo alimentar com a crianccedila Segundo os cri-

teacuterios da Feeding Scale dentre tais comportamentos estatildeo presentes o comportamento

materno de conduzir a refeiccedilatildeo sem perceber os sinais da crianccedila interromper ou ter-

minar a alimentaccedilatildeo causando incocircmodo na crianccedila exprimir desaprovaccedilatildeo ou criacutetica

com relaccedilatildeo ao modo como a crianccedila se alimenta limitar os movimentos da crianccedila

fazer frequentes e insistentes diretivas eou solicitaccedilotildees agrave crianccedila manifestar incocircmodo

durante grande parte da sessatildeo alimentar regular a alternacircncia de pausas e dos turnos

com o filho no curso da refeiccedilatildeo de modo riacutegido ou pouco flexiacutevel Da parte da crianccedila

os elevados resultados referentes ao Conflito Interativo no momento das refeiccedilotildees es-

tatildeo relacionados agrave presenccedila de comportamentos persistentes de recusa alimentar e de

309A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

desconforto provavelmente em resposta ao controle agrave intrusividade agrave falta de sensibi-

lidade e de continecircncia materna

O alto iacutendice de Conflito Interativo nos grupos cliacutenicos estudados pode tambeacutem ser

interpretado a partir da proposta de Sander (1975) sobre os eventos da interaccedilatildeo matildee-

-bebecirc que satildeo considerados o ponto de partida das questotildees de adaptaccedilatildeo negociadas

interativamente entre a crianccedila e o seu cuidador segundo o periacuteodo no qual eacute mais fre-

quente que tais adaptaccedilotildees aconteccedilam Considerando que na presente pesquisa a faixa

de idade das crianccedilas se situa entre dezessete e trinta e seis meses se pode pensar que

as principais questotildees com as quais a diacuteade matildee-bebecirc se depara satildeo sobretudo a Auto-

-afirmaccedilatildeo (que se apresenta dos catorze aos vinte meses de idade) e o Reconhecimento

e a questatildeo da ldquocontinuidade ou constacircncia do Eurdquo (entre os dezoito e os trinta e seis

meses) (Sander 1975)

Deste modo se pode sustentar que o alto iacutendice de conflito interativo presente nos gru-

pos cliacutenicos evidencia provavelmente dificuldades nas demandas de negociaccedilatildeo entre

matildee-bebecirc presentes nesta faixa etaacuteria e que se referem por um lado ao incremento da

autonomia da crianccedila e por outro lado ao excesso de restriccedilotildees agrave vontade da crianccedila

colocadas pelos genitores A partir do perfil de interaccedilatildeo revelado neste estudo se su-

potildee que a coordenaccedilatildeo reciacuteproca nas diacuteades matildee-bebecirc das crianccedilas com transtornos

alimentares estudadas eacute problemaacutetica Em consequecircncia a ruptura do equiliacutebrio das

trocas com o cuidador revelada no momento da refeiccedilatildeo pode ser interpretada como

uma dificuldade de interaccedilatildeo da diacuteade que interfere nas condiccedilotildees emocionais da crian-

ccedila (Sander 1975)

Agraves dificuldades interacionais reveladas pela diacuteade matildee-bebecirc nos grupos cliacutenicos des-

ta pesquisa acrescentam-se ainda as condiccedilotildees de sauacutede das crianccedilas com Transtorno

Alimentar Poacutes-Traumaacutetico que foram submetidas a intervenccedilotildees meacutedicas em consequ-

ecircncia de graves problemas de sauacutede Aleacutem disso o elevado iacutendice de comportamento

agressivo revelado por essas crianccedilas34 impotildee uma maior exigecircncia de negociaccedilatildeo agrave

interaccedilatildeo matildee-bebecirc jaacute posta em condiccedilotildees especiais quanto ao requisito negociaccedilatildeo

em consequecircncia da faixa etaacuteria Segundo Sander (1975) na faixa etaacuteria estudada o

34 Dados apontados pelo Child Behavior Checklist 1―-5 (CBCL 1―-5) (Achenbach e Rescorla 2000 versatildeo italiana Frigerio 1998 Frigerio et al 2006)

310

comportamento agressivo e destrutivo eacute dotado de direcionalidade e de intencionalida-

de exigindo da matildee uma maior toleracircncia e capacidade de negociaccedilatildeo com a crianccedila Na

presenccedila de conflitos a restauraccedilatildeo sucessiva das condiccedilotildees de equiliacutebrio eacute necessaacuteria

para a vivecircncia de uma importante experiecircncia de superaccedilatildeo quanto agrave constacircncia do Ser

por parte da crianccedila

Por fim neste estudo foi corroborada a hipoacutetese jaacute comprovada em outros estudos

que a principal caracteriacutestica do comportamento alimentar da crianccedila com Transtorno

Alimentar Poacutes-Traumaacutetico eacute o acentuado medo da situaccedilatildeo alimentar e a ansiedade an-

tecipatoacuteria enquanto os modelos interativos matildee-bebecirc se caracterizam pela resistecircncia

agrave alimentaccedilatildeo e pelo conflito diaacutedico sobretudo quando os genitores tentam alimentar

a crianccedila

Como resultado significativo pode-se afirmar que o presente estudo contribuiu para a

diferenciaccedilatildeo entre o Transtorno Alimentar Poacutes-Traumaacutetico e a Anorexia Infantil quan-

do colocou em evidecircncia que o medo e a ansiedade antecipatoacuteria juntamente com o

comportamento agressivo satildeo as principais caracteriacutesticas das crianccedilas com Transtorno

Alimentar Poacutes-Traumaacutetico enquanto a ansiedade e depressatildeo infantil35 e a dificuldade

de interaccedilatildeo entre a matildee e a crianccedila revela-se como a principal caracteriacutestica do grupo

de crianccedilas com Anorexia Infantil

Diversas pesquisas demonstram que a observaccedilatildeo e a avaliaccedilatildeo da interaccedilatildeo alimen-

tar matildee-bebecirc satildeo fatores decisivos na compreensatildeo dos transtornos alimentares Desse

modo as pesquisas que se dedicam agrave investigaccedilatildeo dos transtornos alimentares natildeo

podem prescindir de problematizar e de utilizar instrumentos de observaccedilatildeo que pos-

sibilitem uma eficaz compreensatildeo da interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc no contexto desses

transtornos O recorte apresentado com os dados extraiacutedos a partir da utilizaccedilatildeo da

SVIA na avaliaccedilatildeo da interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc corroboram os estudos anterior-

mente realizados que apontam dificuldades na interaccedilatildeo da crianccedila com transtorno ali-

mentares e seus cuidadores no momento da alimentaccedilatildeo Estes dados apontam para

a importacircncia do desenvolvimento de pesquisas e das intervenccedilotildees voltadas agrave diacuteade no

tratamento das queixas relacionadas a tais transtornos

35 Dados apontados pelo Child Behavior Checklist 1―-5 (CBCL 1―-5) (Achenbach e Rescorla 2000 versatildeo italiana Frigerio 1998 Frigerio et al 2006)

311A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo

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313 O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

MariaIzabelTafuri

GilbertoSafra

Na deacutecada de 1920 Melanie Klein recebera para tratamento uma crianccedila com o diag-

noacutestico de ldquoDemecircncia Precocerdquo Chamado por ela de Pequeno Dick com apenas trecircs

anos de idade falava algumas palavras sem contexto natildeo manifestava anguacutestia de

separaccedilatildeo natildeo fantasiava a realidade e natildeo estabelecia relaccedilatildeo afetiva com a analista

Segundo a autora ldquosenti-me obrigada a fazer minhas interpretaccedilotildees agrave base do meu

conhecimento geral sendo as representaccedilotildees do material de Dick relativamente vagasrdquo

(Klein193073) A psicanalista considerou agrave eacutepoca que o simbolismo poderia ser revela-

do pela crianccedila inibida por meio de alguns detalhes do comportamento permitindo ao

analista fazer interpretaccedilotildees para criar a relaccedilatildeo transferencial caracteriacutestica essencial

de um tratamento psicanaliacutetico E em oposiccedilatildeo agrave Anna Freud Klein enfatizara a prima-

zia do efeito da accedilatildeo interpretativa na relaccedilatildeo transferencial com Dick em detrimento

das accedilotildees pedagoacutegicas para adaptar o pequeno agrave escola Em suma o campo psicanaliacutetico

ficou marcado por um paradigma claacutessico o analista precisa ser inteacuterprete de gestos

314

pouco representativos das crianccedilas inibidas para criar a relaccedilatildeo transferencial condiccedilatildeo

essencial para a cliacutenica psicanaliacutetica

Agrave eacutepoca da publicaccedilatildeo do caso cliacutenico de M Klein (1930) o Autismo infantil precoce

ainda natildeo havia sido descrito Dick havia sido encaminhado com o diagnoacutestico de De-

mecircncia Precoce A psicanalista descartou a classificaccedilatildeo enfatizando a potencialidade

das capacidades cognitivas da crianccedila que estariam preservadas poreacutem pouco desen-

volvidas de acordo com a idade cronoloacutegica Segundo Klein Dick apresentava uma ini-

biccedilatildeo afetiva que o impedia de entrar no processo simboacutelico e de fantasiar a realidade

Devido agrave ausecircncia de fantasias associada ao isolamento afetivo Klein chegara a pensar

o quadro cliacutenico da crianccedila como uma primeira manifestaccedilatildeo da Esquizofrenia Infantil

(Potter1933) Com o tratamento psicanaliacutetico foi possiacutevel ver a franca evoluccedilatildeo da crian-

ccedila e a sua inserccedilatildeo na escola e na sociedade

Na deacutecada de 1940 Leacuteo Kanner psiquiatra de origem austriacuteaca radicado nos Estados

Unidos publicou o primeiro Manual de Psiquiatria Infantil que se tornou referecircncia

nesse campo E em 1943 apresentou ao mundo a descriccedilatildeo de uma doenccedila psicopatoloacute-

gica rara que afetaria as crianccedilas desde o iniacutecio da vida o Autismo infantil precoce Con-

tudo natildeo foi apenas mais uma classificaccedilatildeo nosoloacutegica ocorrera uma nova definiccedilatildeo de

autismo contraacuteria agravequela que jaacute existia no contexto psiquiaacutetrico a noccedilatildeo de pensamento

autiacutestico nas esquizofrenias (Bleuler 1911)

Bleuler influenciado pela obra de Freud sobre a interpretaccedilatildeo dos sonhos poreacutem com

restriccedilotildees ao determinismo da sexualidade infantil na etiologia das neuroses houve a

subtraccedilatildeo de Eros do conceito de auto-erotismo ou seja autismo seria o auto-erotismo sem

Eros Como se sabe Bleuler ao descrever o pensamento fantasioso do esquizofrecircnico

denominado por ele de pensamento autiacutestico propiciou uma verdadeira revoluccedilatildeo em

relaccedilatildeo ao pensamento psiquiaacutetrico kraepeliano distinguindo os estados de demecircncia

orgacircnica das doenccedilas mentais O pensamento autistico por exemplo foi definido por

Bleuler como o sintoma secundaacuterio mais importante da esquizofrenia e o mais signifi-

cativo natildeo estaria diretamente relacionado com o processo moacuterbido da afecccedilatildeo

Acompanhando o pensamento de Bleuler Klein (1930) natildeo considerou Dick uma crian-

ccedila com esquizofrenia justamente por causa da ausecircncia do pensamento autiacutestico da

crianccedila O garoto natildeo se refugiava em um mundo proacuteprio repleto de ideias fantasiosas

315O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

Portanto para Klein o mundo interno da crianccedila natildeo era povoado por fantasias e ex-

pressotildees verbais a serem interpretadas como Bleuler passara a fazer com os esquizo-

frecircnicos Tanto Bleuler quanto Klein enfatizaram o potencial das capacidades psiacutequicas

de pacientes tidos ateacute aquela eacutepoca como dementes e incuraacuteveis Kanner por sua vez

inverteu todo o processo iniciado por Klein e Bleuler de distinguir os estados deficitaacute-

rios das doenccedilas mentais ao descrever o isolamento do grupo das onze crianccedilas como

um distuacuterbio neuroloacutegico inato que incapacita todas as aacutereas do desenvolvimento da

crianccedila E o mais paradoxal nomeou esse deacuteficit de autismo Daiacute em diante o autismo

passou a ser sinal de doenccedila deficitaacuteria assim como a descriccedilatildeo psiquiaacutetrica das doen-

ccedilas mentais deficitaacuterias

Na deacutecada de 40 Kanner se mostrava otimista quanto agrave comprovaccedilatildeo orgacircnica da nova

siacutendrome agrave medida que os exames laboratoriais se tornassem mais especiacuteficos e mais

aprimorados Hoje mais de meio seacuteculo de pesquisas cientiacuteficas com todo o avanccedilo

tecnoloacutegico alcanccedilado a procura continua pela comprovaccedilatildeo de uma causa orgacircnica do

Autismo infantil precoce Entretanto natildeo se trata apenas de um otimismo em pesquisar

as causas passou a ocorrer por parte de muitos profissionais e Associaccedilotildees de Pais um

patrulhamento radical contraacuterio agrave visatildeo psicodinacircmica do Autismo infantil precoce

No Brasil por exemplo foi aberto pela Secretaria de Estado da Sauacutede do Estado de Satildeo

Paulo em setembro de 2012 um Edital de Convocaccedilatildeo para Credenciamento de Insti-

tuiccedilotildees Especializadas em Atendimento a Pacientes com Transtorno do Espectro Autista

(Tea) para Eventual Celebraccedilatildeo de Contrato de convecircnio com as instituiccedilotildees que tratam

as crianccedilas autistas Dentre os preacute-requisitos necessaacuterios agrave cliacutenica eou hospital a serem

credenciados haacute uma determinaccedilatildeo ao trabalho do psicoacutelogo que deve comprovar espe-

cializaccedilatildeo em terapia cognitivo comportamental E mais o Estado pretende determinar

a metodologia de trabalho nesse campo cliacutenico O responsaacutevel legal pela Instituiccedilatildeo

deveraacute declarar a utilizaccedilatildeo de meacutetodos cognitivos comportamentais validados na litera-

tura cientiacutefica tais como PECS (Picture Exchange Communication System) ndash Sistema

de Comunicaccedilatildeo por figuras) ABA (Applied Behavior Analysis) ndash Anaacutelise do Compor-

tamento Aplicada TEACCH (Treatment and Education of Autistic and Communication

Handiscapped Childrem) ndash Tratamento e Educaccedilatildeo de Crianccedilas Autistas com desvanta-

gem na Comunicaccedilatildeo

316

Na Franccedila por influecircncia das pesquisas americanas em torno dos meacutetodos cognitivo

comportamentais para o Autismo vem crescendo de forma avassaladora o rechaccedilo pe-

las intervenccedilotildees psicanaliacuteticas tanto por parte de uma grande parte dos profissionais

como pelas Associaccedilotildees de Pais e mais recentemente pelo Estado Ateacute mesmo as Uni-

versidades estatildeo sendo alvo de accedilotildees puacuteblicas contraacuterias agrave realizaccedilatildeo de cursos sobre au-

tismo e psicanaacutelise Como aponta Hochmann (2009) o Autismo suscita sempre uma

tendecircncia aos aportes excludentes que conduzem ao fechamento de um saber caracteri-

zado por uma certeza ilusoacuteria de ser o portador de uma verdade irrefutaacutevel

Compreende-se que tais clivagens trazem prejuiacutezo agraves poliacuteticas coerentes agrave sauacutede e agrave

educaccedilatildeo das crianccedilas autistas como tambeacutem para a pesquisa que realizada dessa for-

ma tende a ter vida curta Persistir sobre a procura das causas orgacircnicas da origem do

Autismo natildeo nos ajuda de forma grandiosa quanto ao tratamento Precisamos reconhe-

cer de forma modesta o modelo de reaccedilatildeo da crianccedila frente aos muacuteltiplos fatores ina-

tos ou adquiridos estruturais ou funcionais geneacuteticos ou relacionais provavelmente

intricados desde o primeiro ano de vida da crianccedila Seria interessante voltar o conheci-

mento para a promoccedilatildeo de redes de cuidados psicoteraacutepicos associados agrave educaccedilatildeo e agrave

pedagogia

No contexto psicanaliacutetico haacute uma forte tendecircncia entre os autores em considerar as

vaacuterias formas de manifestaccedilotildees autiacutesticas considerando-se o processo simboacutelico em

curso de cada crianccedila que apresenta traccedilos autiacutesticos Passou-se a pensar no plural Au-

tismos (Hochmann 2009 Lebovici 1990 Houzel ampHaag 1990 Barral et all 2010

Haag 19871988 2000 a 2000b Rocha 1997 Lafforg 1993 Lebovici 1990) levando-

-se em conta a singularidade de cada crianccedila que apresenta caracteriacutesticas autiacutesticas A

proposta atual das ciecircncias positivas eacute a de considerar o Autismo como um Espectro

onde se encontram agrupadas as crianccedilas que apresentam siacutendromes degenerativas

como a siacutendrome de Rett e a siacutendrome degenerativa da infacircncia siacutendromes geneacuteticas

como o X-Fraacutegil a siacutendrome de Asperger como tambeacutem o Autismo infantil e o Autis-

mo Atiacutepico cujos sintomas claacutessicos seriam ldquoa presenccedila de um desenvolvimento acen-

tuadamente anormal ou prejudicado na interaccedilatildeo social e comunicaccedilatildeo e um repertoacuterio

marcantemente restrito de atividades e interessesrdquo (DSM-IV) O que diferencia substan-

cialmente da noccedilatildeo difundida no meio psicanaliacutetico o Autismo no plural justamente

para priorizar a subjetividade de cada crianccedila que apresenta caracteriacutesticas autiacutesticas

317O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

Em relaccedilatildeo a essa seacuteria problemaacutetica a cliacutenica psicanaliacutetica com as crianccedilas ditas autis-

tas oferece dados substantivos para rejeitar a noccedilatildeo de Espectro Nesse trabalho preten-

de-se abordar o trabalho psicoteraacutepico desenvolvido haacute mais de vinte e cinco anos na

Cliacutenica Escola da Universidade de Brasiacutelia-CAEP A partir da dissertaccedilatildeo de Mestrado

defendida em 1990 intitulada Autismo infantil precoce e nome proacuteprio um estudo explo-

ratoacuterio teoacuterico-cliacutenico acerca do sistema de nominaccedilatildeo foi possiacutevel iniciar as atividades de

ensino e pesquisa em psicopatologia psicanaacutelise psicoterapia e linguagem com alunos

da graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo pesquisadores do Laboratoacuterio de Psicopatologia e Psica-

naacutelise do Instituto de Psicologia da UnB A Cliacutenica Escola da Universidade de Brasiacutelia

ndash CAEP passou a receber as crianccedilas autistas e o trabalho cliacutenico foi a principal fonte

das pesquisas realizadas sobre o autismo

Em 2002 com a defesa da Tese de Doutorado intitulada ldquoDos sons agrave palavra explora-

ccedilotildees sobre o tratamento psicanaliacutetico da crianccedila autistardquo foi possiacutevel apresentar um estudo

criacutetico sobre a cliacutenica psicanaliacutetica com a crianccedila autista a partir de um caso cliacutenico

paradigmaacutetico o caso de Maria A criaccedilatildeo da relaccedilatildeo transferencial com Maria uma

crianccedila autista de trecircs anos em um setting constituiacutedo sem as interpretaccedilotildees verbais

propiciou um estudo criacutetico sobre o determinismo psicanaliacutetico da teacutecnica claacutessica ao

longo da histoacuteria da psicanaacutelise com crianccedilas A partir desses dois referenciais a cliacutenica

com Maria e o estudo teoacuterico-cliacutenico sobre os fundamentos claacutessicos da psicanaacutelise com

crianccedilas foi proposto um outro lugar para o psicanalista na cliacutenica com uma crianccedila

autista ldquoo analista natildeo-inteacuterpreterdquo Aquele que natildeo confere agraves manifestaccedilotildees sensiacuteveis

de uma crianccedila autista uma significaccedilatildeo exterior por meio da decifraccedilatildeo decodificaccedilatildeo e

interpretaccedilatildeo Trata-se de um trabalho cliacutenico fundado por pelo menos trecircs princiacutepios

baacutesicos a capacidade de espera do analista por um material cliacutenico representativo a

convivecircncia do analista com o lsquonatildeo saberrsquo e em especial a experiecircncia paradoxal do

analista de se sentir soacute sem palavras na presenccedila de uma crianccedila ensimesmada em

sensaccedilotildees inominaacuteveis

Atualmente a partir de uma experiecircncia cliacutenica ampliada principalmente com a super-

visatildeo de psicoterapeutas jovens que trazem agrave flor da pele a anguacutestia do natildeo existir para

uma crianccedila que aparentemente os ignora e os rechaccedila Escutar a fala dos jovens tera-

peutas permite reviver sensaccedilotildees que ficaram marcadas no corpo ao longo de histoacuterias

cliacutenicas de uma forma menos aflitiva Ou seja a experiecircncia da supervisatildeo permite ao

318

psicanalista reviver cenas cliacutenicas antigas adormecidas que vecircm agrave tona em um espaccedilo

mais propiacutecio agrave elaboraccedilatildeo metapsicoloacutegica

As questotildees mais aflitivas para os jovens psicoterapeutas eram as seguintes Como ser

encontrado por uma crianccedila ensimesmada que natildeo estabelece contato afetivo com o

analista Como estabelecer a relaccedilatildeo transferencial com a crianccedila autista sem a utili-

zaccedilatildeo das interpretaccedilotildees O que fazer para acessar a crianccedila que natildeo brinca e natildeo olha

para nenhum lugar Eu natildeo estou fazendo nada com a crianccedila parece que natildeo estou

aprendendo nada e o tratamento natildeo estaacute rendendo frutos

Essas perguntas e comentaacuterios sempre estiveram presentes nas supervisotildees dos casos

cliacutenicos e permitiram ao longo desse ano a elaboraccedilatildeo de mais uma proposiccedilatildeo com-

plementar agrave primeira a do ldquoanalista natildeo inteacuterpreterdquo O lugar do psicanalista com uma

crianccedila que natildeo fala e natildeo representa a realidade eacute o de ldquoestar laacute para ser encontradordquo

Essa proposiccedilatildeo surgiu a partir da supervisatildeo dos trabalhos de mestrado e doutorado

realizados de 2005 a 2012 pelos pesquisadores do Laboratoacuterio de Psicopatologia e Lin-

guagem (Fonseca 2005 Abreu 2007 Benjamim 2007 Coelho 2007 Arauacutejo 2008

Parra 2008 Januaacuterio 2008 2012)

Deixar de falar e natildeo promover estiacutemulos agrave procura de respostas da crianccedila eacute um dos

fundamentos mais sensiacuteveis para a condiccedilatildeo de ocupar o lugar de natildeo inteacuterprete e o de

estar laacute para ser encontrado Agrave medida que o psicanalista ocupa a mente com a neces-

sidade de encontrar as palavras justas para uma boa interpretaccedilatildeo ele se ausenta de um

possiacutevel encontro Ou quando se coloca a procurar estiacutemulos para chamar a atenccedilatildeo da

crianccedila o psicanalista inverte a cena Movido pela angustia do natildeo existir ele passa a

fazer accedilotildees na acircnsia de encontrar a crianccedila Entretanto a experiecircncia cliacutenica nos mostra

que a crianccedila autista pode encontrar o analista em um ambiente no qual ela natildeo eacute pro-

curada de forma ansiosa e repetitiva A experiecircncia de estar soacute na presenccedila da crianccedila

eacute de fundamental importacircncia para o estabelecimento da relaccedilatildeo transferencial com a

crianccedila Dentre uma gama avassaladora de comportamentos estereotipados a crianccedila

pode em uma fraccedilatildeo de segundos dirigir um olhar enviesado para o analista esboccedilar

um gesto fugaz de passar as costas das matildeos nos objetos do ambiente emitir um som

em um momento especiacutefico etc

319O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

Nesse sentido natildeo se trata de promover accedilotildees para se ldquoter acesso agrave crianccedilardquo ldquoentrar em

contatordquo ldquoestimular a crianccedilardquo ldquointerpretar comportamentos pouco representativosrdquo

O lugar do analista com uma crianccedila autista por mais enigmaacutetico que possa ser eacute o de

estar laacute para ser afetado pela experiecircncia do encontro por meio de parcelas sensiacuteveis de

um sujeito a advir

Para exemplificar o lugar do analista com uma crianccedila autista utilizaremos vinhetas de

dois casos cliacutenicos um mais antigo apresentado na Tese de Doutorado o de Maria e

outro mais atual o de Abel

VinhetasdecasoscliacutenicosMaria e Abel

Com Maria uma crianccedila autista de trecircs anos de idade o primeiro encontro foi marcado

pela forma como corria pela sala saltitante na ponta dos peacutes ao mesmo tempo balan-

ccedilava as matildeos e emita sons estridentes sem estabelecer contato afetivo Os movimentos

da pequena crianccedila chamaram a atenccedilatildeo pela plasticidade e ritmo que apresentavam

Entre uma corrida e outra sem motivo aparente Maria parava repentinamente na fren-

te de algum objeto Permanecia ali por alguns momentos pulando no mesmo lugar

batendo as matildeos no ar e olhando fixamente para o objeto Importante constatar que ela

natildeo tocava o objeto contemplado apenas o fitava com um olhar atento e vivo Nesses

momentos a psicanalista ficara encantada com os movimentos das matildeos dos peacutes e dos

olhos daquela crianccedila e veio agrave mente dela a imagem de um beija-flor

A partir de um estado de encantamento e contemplaccedilatildeo dos movimentos leves e raacutepidos

daquela pequena crianccedila a analista comeccedilou a imitar os sons produzidos por ela Maria

natildeo olhava a analista natildeo mantinha qualquer contato afetivo e seus gestos eram pouco

representativos Entretanto a cena plaacutestica apresentada pela crianccedila nos momentos em

que produzia sons meloacutedicos pulava e olhava fixamente um objeto afetou a psicana-

lista no sentido de presenciar a manifestaccedilatildeo criativa de uma crianccedila alheia a qualquer

tentativa de contato usual

A psicanalista passou a imitar Maria naqueles momentos em que parecia hipnotizada

por um objeto Uma accedilatildeo impensada que se mostrara anos depois uma ferramenta

possiacutevel para favorecer o surgimento da relaccedilatildeo transferencial com uma crianccedila au-

320

tista Os sons produzidos por Maria foram presenciados pela analista como formas

sensoriais de estar em contato com o meio externo (sinestesias sons temperaturas

cores cheiros e movimentos corporais) Nas palavras de Gilberto Safra (1999) formas

sensoriais que denotam uma presenccedila de ser Surgiu daiacute uma importante constataccedilatildeo os

sons eram somente de Maria por meio deles ela existia e se apresentava Tratava-se na

verdade de uma criatividade primaacuteria tal como preconizada por W D Winnicott (1971)

Segundo Winnicott a criatividade primaacuteria de um ser humano jamais eacute destruiacuteda nem

mesmo nos casos psicopatoloacutegicos mais graves como diz o autor

ldquoNa origem do self encontra-se a tendecircncia do indiviacuteduo geneticamente determinada de permanecer vivo e de se relacionar com objetos que aparecem no horizonte quando chega o momento de alcanccedilaacute-lo Nas condiccedilotildees adversas o indiviacuteduo reteacutem alguma coisa pessoal mesmo que em segredo nem que seja o respirarrdquo (apud Safra 1999 p29 grifo da autora)

O momento de alcanccedilar o objeto como descrito por Winnicott reflete uma das ques-

totildees mais sensiacuteveis dessa cliacutenica ndash a capacidade de espera do analista por um material

cliacutenico representativo a ser interpretado Entretanto nesse periacuteodo de espera a relaccedilatildeo

transferencial pode ser estabelecida a partir da presenccedila do ldquoanalista natildeo inteacuterpreterdquo

Em outras palavras como no caso de Maria o analista no momento em que eacute afetado

por uma manifestaccedilatildeo sensiacutevel da crianccedila pode se oferecer tambeacutem de forma sensiacutevel

no caso em questatildeo o ecoar os sons e imitar os gestos da crianccedila O analista precisar

estar laacute para aleacutem das palavras para que a crianccedila possa alcanccedilaacute-lo

Ao longo das primeiras semanas de tratamento foram percebidos trecircs tipos distintos de

ensimesmamento O primeiro denominado de ensimesmamento vazio tendo em vista que

Maria passava quase todas as sessotildees correndo na ponta dos peacutes de um lado para outro

sem motivo aparente Encostava as pontas dos dedos nos objetos e a expressatildeo de seu

rosto era sempre a mesma Havia um sorriso estaacutetico nos laacutebios e uns lsquogrunhidosrsquo sem-

pre estridentes atonais e arriacutetmicos Nesses momentos a analista se sentia desmotiva-

da e sonolenta torcendo para que Maria saiacutesse daquele comportamento aparentemente

estereotipado Tomando por base tais reaccedilotildees a analista teve a impressatildeo de estar diante

de um estado emocional vazio de expressotildees sensiacuteveis

O segundo estado de ensimesmamento caracterizado por reaccedilotildees auto-agressivas e de-

sesperadoras ocorriam sem motivo aparente Nesses momentos ela comeccedilava a se

321O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

morder a ponto de abrir feridas em seu braccedilo e a bater a cabeccedila na parede Os lsquogru-

nhidosrsquo se tornavam ensurdecedores Esse quadro levava a analista a um sentimento

de impotecircncia pois natildeo tinha como consolar a crianccedila denominado ensimesmamento

sofrido A psicanalista continha fisicamente a crianccedila para tentar impedir ferimentos

graves Eram momentos de grande sofrimento para a analista Natildeo havia maneira de

compreender como surgiam e natildeo era possiacutevel consolar a crianccedila

Havia ainda um terceiro tipo o ensimesmamento prazeroso demonstrado principalmen-

te no estado de excitaccedilatildeo exibido por ela quando ficava mais absorvida com as sensa-

ccedilotildees oriundas de seu corpo como por exemplo permanecer como que hipnotizada

por um objeto pulando no mesmo lugar e emitindo sons mais meloacutedicos e ritmados

Naqueles momentos havia uma expressatildeo de tranquilidade e felicidade no rosto da

pequena crianccedila

Quando Maria entrava nesse estado de ensimesmamento prazeroso seus movimentos

corporais obedeciam a um ritmo cadenciado completamente diferente daquele apre-

sentado nos estados de ltisolamento vaziogt ou de ltisolamento sofridogt A analista pas-

sava a escutar com interesse a sonoridade dos sons que ela emitia Nesses momentos

ela parecia se deixar embalar pelos sons e por seus movimentos cadenciados

Como se pode ver na evoluccedilatildeo do caso de Maria a analista pocircde criar uma descontinui-

dade ao imitar a crianccedila apenas no ensimesmamento prazeroso marcado pela capacidade

insipiente da crianccedila de demonstrar por gestos e olhares enviesados a capacidade de

esperar pelos sons da analista Maria passou tambeacutem a estranhar os sons diferentes

que a analista fazia Ela reagia afetivamente demonstrando decepccedilatildeo e raiva Atacava

a boca da analista como que procurando os sons conhecidos A partir dessas reaccedilotildees a

de esperar se iludir e se desiludir face agraves manifestaccedilotildees da analista Maria passou a de-

monstrar capacidade para brincar com os sons Ela fazia sons diferentes e esperava que

a analista os imitasse E o mais significativo Maria passou a brincar de faz de conta com

os sons ela abria a boca fingia que ia emitir um som olhava para a analista e sorria Na

primeira vez em que demonstrara essa brincadeira a analista tomada de emoccedilatildeo soltou

uma expressatildeo verbal ldquoahvocecirc me pegourdquo

Houve nessa fase uma grande evoluccedilatildeo Maria passou a balbuciar passou a brincar de

esconde-esconde Ela entrava debaixo da mesa fazia os sons e esperava que a analista

322

os imitasse Soacute depois de escutar os sons da analista eacute que saia do seu esconderijo As

brincadeiras foram ficando mais complexas os desenhos das primeiras garatujas pas-

saram a ocorrer e o olhar deixou de ser enviesado Ela passou a olhar de forma firme e

direcionada para a boca da analista e posteriormente para os olhos

A analista considerou que o seu lugar com aquela crianccedila natildeo era o da matildee que pode

sentir o corpo do bebecirc se amoldando ao seu aplacar suas necessidades olhar e se sentir

olhada imitar os vocalizes do bebecirc e criar a ilusatildeo que estaacute se comunicando com ele

Ou seja a analista natildeo podia ser inteacuterprete dos sons e do corpo de Maria da mesma for-

ma que uma matildee faz com o bebecirc Maria era um ser sonoro e natildeo um bebecirc sonoro uma

constataccedilatildeo que fez uma grande diferenccedila em relaccedilatildeo ao lugar ocupado pela analista na

cliacutenica com Maria

OprimeiroencontrocomAbel

Abel uma crianccedila de dois anos que natildeo fala e natildeo responde aos estiacutemulos sociais Os

pais procuraram atendimento a partir do diagnoacutestico de Autismo infantil conferido

por um neurologista Profundamente abalados e preocupados com o futuro do filho

solicitaram uma nova avaliaccedilatildeo

Ao entrarem na sala de consulta com o pequeno Abel houve uma recusa corporal e

sonora por parte da crianccedila que se debatia no colo do pai e gritava indicando que natildeo

queria entrar Ao fecharmos a porta o pequeno se mostrou desesperado gritava e se de-

batia a ponto de se machucar no colo do pai que disse ldquoDoutora noacutes estamos tristes e

desolados ele estaacute assim grita muito e noacutes natildeo conseguimos consolaacute-lo Natildeo responde

quando chamamos parece surdo natildeo brinca foge das outras crianccedilas evita ser abra-

ccedilado e natildeo se aconchega no nosso colo Ele natildeo era assim ficou dessa forma depois do

nascimento da irmatilderdquo

Repentinamente parou de gritar se voltando para os carrinhos expostos na estante Jo-

gou-os no chatildeo e comeccedilou a movimentaacute-los silenciosamente sem olhar para ningueacutem

A analista deitou-se no chatildeo acompanhando o movimento da crianccedila que deitada de

lado estendera o braccedilo sob a cabeccedila e com a outra matildeo fazia o carrinho ir e vir em uma

linha reta Ele acompanhava atentamente as rodas do carrinho como que enfeiticcedilado

323O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

pelo movimento delas Enquanto a analista fazia o mesmo ao lado da crianccedila os pais

comeccedilaram a contar a histoacuteria de vida deles com o filho

Passados os primeiros trinta minutos foi pedido aos pais para fazerem o mesmo que a

analista estava fazendo ou seja imitando o comportamento de Abel Eles se sentarem

no chatildeo junto agrave crianccedila e comeccedilaram a imitaacute-lo Ficaram todos em silecircncio movimen-

tando os carrinhos na mesma maneira que a crianccedila Nesse periacuteodo Abel permaneceu

colado aos objetos procurou pegar outros brinquedos sem expressar nenhum som e

sem olhar para nenhum dos adultos

Para tentar criar um ambiente mais familiar para Abel e os pais a psicanalista se levan-

tou sentando em outro canto da sala de tal sorte que pudesse observar a cena sem

participar diretamente dela Passado algum tempo os pais visivelmente decepcionados

com o isolamento da crianccedila passaram a fazer barulho com os brinquedos para chamar

atenccedilatildeo do filho De forma repentina e fugaz Abel tampa o rosto com as duas matildeos

levanta a cabeccedila e dirige um olhar alegre entre os dedos na direccedilatildeo da psicanalista

Ela se surpreende tampa o rosto com as matildeos e tambeacutem olha pra ele entre os dedos

expressando o som da palavra achou achou

Naquele momento os pais se alegraram e comeccedilaram a brincar com ele da mesma for-

ma poreacutem falando ldquopude e achourdquo Abel se voltou novamente para o jogo estereotipado

de olhar para as rodas dos carrinhos permanecendo assim pelo resto do tempo O que

deixou os pais desarvorados e tristes

Os pais voltaram a comentar o laudo da neurologista principalmente em relaccedilatildeo agraves

deficiecircncias da crianccedila pois o prognoacutestico havia sido dado no sentido de ser uma pa-

tologia grave e incuraacutevel Ela e o marido comeccedilaram a listar uma fonte de dados que

poderiam ter levado Abel a parar de falar troca da babaacute depois do primeiro ano de vida

nascimento da irmatilde morte da avoacute materna falta de tempo para o Abel como tinha antes

da irmatilde nascer etc Ansiosos e sofridos procuram encontrar as possiacuteveis causas para o

ensimesmamento do filho

A partir da surpresa advinda da brincadeira da crianccedila de esconde-esconde a psicanalis-

ta propocircs aos pais falarem do sentimento deles em relaccedilatildeo ao ocorrido Os pais se emo-

cionaram e puderam expressar o prazer sentido por eles naquela cena que apesar de ter

324

sido fugaz fora muito significativa Mas expressaram o medo de acreditar na capacidade

do filho por causa da falta de continuidade da brincadeira ldquoVeja doutora quando agen-

te quis brincar ele natildeo estava mais laacute jaacute tinha se voltado para o carrinhordquo disse a matildee

O grande desafio era o de confiar nas capacidades do filho que podem surgir inespe-

radamente e desaparecer da mesma maneira Ao perceber o surgimento da expressatildeo

criativa da crianccedila no ambiente mais familiar entre os pais sem o uso das palavras

a psicanalista percebera a existecircncia de uma organizaccedilatildeo egoacuteica jaacute em curso poreacutem

bastante inibida Dentre uma gama de comportamentos estereotipados Abel diferente-

mente de Maria pocircde trazer de pronto uma brincadeira dirigida ao analista Ele havia

dirigido o olhar na direccedilatildeo da analista de forma jocosa fugaz e sedutora Foi lembrado

aos pais que ao emitirem as palavras ldquoachou e sumiurdquo a brincadeira fora interrompida

por ele A entonaccedilatildeo da palavra ldquoachourdquo levou a crianccedila a repetir por mais de duas vezes

o mesmo gesto o que evidencia o surgimento de uma anguacutestia de perda

A cena produzida pela crianccedila era niacutetida expressatildeo de um mecanismo de defesa face agrave

angustia de perder o objeto de amor Ou seja havia ali a presenccedila de uma estrutura psiacute-

quica em funcionamento O que levou a psicanalista a colocar o diagnoacutestico de autismo

em suspense e solicitar uma avaliaccedilatildeo mais prolongada de pelo menos dois meses com

sessotildees duas vezes por semana

A brincadeira trazida de forma espontacircnea por parte da crianccedila tinha dois componentes

muito importantes ele havia iniciado a brincadeira demandando da analista um olhar

para ele acompanhada de uma emoccedilatildeo o sorriso sedutor Essa faceta jocosa e sedutora

de uma brincadeira mesmo que fugaz permite fazer uma diferenciaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao

caso de Maria No caso da pequena natildeo surgiu nenhum gesto espontacircneo em direccedilatildeo agrave

analista nos primeiros sete meses de tratamento

Ao longo do primeiro mecircs de atendimento sempre realizado com a crianccedila e os pais

Abel demonstrou um desenvolvimento surpreendente Jaacute na segunda sessatildeo chegou

com as matildeos no rosto se escondendo e sorrindo Entrou contente e agarrou os carri-

nhos brincando com eles de uma forma mais simboacutelica ou seja comeccedilou a colocar os

carrinhos em uma pista de corrida fazendo-os descer uma rampa e cair Passou a se in-

teressar por outros brinquedos e a fazer mais contato com a analista por meio do olhar

325O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

dos sons e dos maneirismos Segundo os pais Abel estava mais alegre e comunicativo

mesmo sem falar

No terceiro mecircs de tratamento Abel jaacute estava falando as primeiras palavras havia feito

todos os exames neuroloacutegicos solicitados pelo neurologista Na consulta de retorno o

neurologista havia recebido um relatoacuterio do tratamento psicoteraacutepico sobre a refutaccedilatildeo

do diagnoacutestico de Autismo Entretanto mesmo com a presenccedila de todas as evidecircncias

de um desenvolvimento mais normalizado o neurologista considerou a crianccedila dentro

do Espectro do Autismo pelo fato de ter apresentado de iniacutecio os comportamentos si-

nalizadores da siacutendrome de Kanner Os pais foram aconselhados a prestarem atenccedilatildeo

redobrada pois se tratava de um caso especial Mesmo assim a matildee disse ao psicana-

lista ldquomesmo que o meacutedico tivesse dito que ele era autista eu natildeo ia mais acreditar

pois depois desses trecircs meses percebo que meu filho estaacute como as outras crianccedilas ele

brinca da mesma maneira que as outras crianccedilas mesmo sem falar Eu natildeo tenho mais

duacutevidardquo

O relato da matildee de Abel foi muito emocionado e para a analista impressionante Ela

tinha reconquistado a esperanccedila o orgulho a alegria a espontaneidade de brincar com

o filho sem se preocupar com uma possiacutevel patologia Essa crianccedila ficou em tratamento

por mais 1 ano e estava totalmente integrada na escola Sua fala estava desenvolta e co-

municativa com um vocabulaacuterio proacuteprio agrave idade cronoloacutegica A escola natildeo foi alertada

em relaccedilatildeo ao atraso do desenvolvimento do pequeno e natildeo houve nenhuma queixa por

parte dos professores Para a escola Abel era uma crianccedila comum que natildeo chamava

atenccedilatildeo devido a comportamentos estranhos

Consideraccedilotildeesfinais

A cenas cliacutenicas relatadas nos colocam face agrave possibilidade de compreendermos o set-

ting analiacutetico de forma mais flexiacutevel do que aquele postulado pela psicanaacutelise claacutessica

Podemos visualizar por meio do brincar espontacircneo da crianccedila a possibilidade de agir

terapeuticamente por meio dos sons e dos gestos e natildeo necessariamente por meio

da palavra dando significaccedilatildeo ao sensiacutevel Por exemplo depois das primeiras quatro

sessotildees de Abel a analista permaneceu imitando os gestos da crianccedila principalmente o

de esconder o rosto com as matildeos A partir da quinta sessatildeo ocorreu uma sequencia de

326

gestos importantes que denotam a estruturaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo transferencial Antes de

iniciar a brincadeira do esconde-esconde Abel olhava para a analista para os pais esbo-

ccedilava um sorriso e soacute depois de comprovada a nossa reaccedilatildeo de estar laacute para ele eacute que ele

se escondia por entre os dedos das matildeozinhas Ou seja havia uma antecipaccedilatildeo de um

jogo por meio do apelo ao outro Nesse sentido a crianccedila constituiu na situaccedilatildeo cliacutenica

o terreno necessaacuterio agrave gestaccedilatildeo da transferecircncia

Trata-se de uma postura eacutetica de natildeo interpretar ou decodificar o mundo sensorial da

crianccedila antes que ela mesma a crianccedila possa trazer componentes significativos de um

nuacutecleo de eu ainda insipiente O lugar do analista eacute o de estar laacute para ser encontrado

quando a crianccedila demandar por gestos sons ou palavras Como no caso de Abel ao ser

encontrada a analista imitou a crianccedila acrescentando ao gesto um som lsquocomo se tives-

se faladorsquo achou As palavras natildeo foram ditas apesar de estarem na mente da analista

para preservar o sentido esteacutetico da tentativa da crianccedila de um encontro Assim como a

crianccedila trouxera o gesto e o sorriso na brincadeira a analista por sua vez devolvera-lhe

o gesto o sorriso e o som

Com Maria a analista natildeo tinha a mesma compreensatildeo dos gestos e sons como aqueles

apresentados por Abel Estava presente nas sessotildees um isolamento radical no sentido

de natildeo haver um compartilhamento na accedilatildeo de imitar Foi necessaacuterio por parte da ana-

lista uma capacidade de espera muito maior com mais angustia frustraccedilotildees e indaga-

ccedilotildees Mesmo assim a accedilatildeo de imitar foi mantida e repetida em todas as sessotildees ateacute o

seacutetimo mecircs de tratamento Com Abel diferentemente de Maria houve a apresentaccedilatildeo

no primeiro encontro de uma brincadeira sensiacutevel ligeira quase que imperceptiacutevel

que poderia ter sido vista como mais uma estereotipia Entretanto se pudermos visu-

alizar e acompanhar uma brincadeira dessa natureza poderemos ser encontrados pela

crianccedila O susto da analista e o entusiasmo imediato ocorrido no corpo a levaram a es-

conder seu proacuteprio rosto entre as matildeos de tal sorte que pudesse olhar para a crianccedila e

ser vista por ela Foi uma accedilatildeo impensada imediata automaacutetica natildeo intencional como

no caso de Maria a partir da imagem do beija-flor quando a analista passou a imitar os

sons e os gestos da crianccedila

Finalizamos esse trabalho sublinhando a necessidade de encontrarmos maneiras cada vez mais sensiacuteveis de criar ambientes terapecircuticos para que as crianccedilas aparentemente autistas possam demonstrar suas capacidades Como no caso de Abel

327O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado

recebemos hoje no serviccedilo da Clinica Escola da Universidade um nuacutemero cada vez maior de crianccedilas com histoacuterias semelhantes agrave desse uacuteltimo caso Crianccedilas natildeo falantes inibidas para brincar comportamentos estereotipados mas que em uma fraccedilatildeo de segundos podem revelar uma expressatildeo sensiacutevel passiacutevel de ser compreendida pelo terapeuta em um ambiente no qual a crianccedila possa encontrar o terapeuta Trata-se de um encontro agraves avessas o psicanalista com a crianccedila dita autista necessita criar condiccedilotildees para que ele seja encontrado

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330

Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

ValeskaZanello

FranciscoMartins

Segundo Laplantine (2004) cada cultura apresenta modelos etioloacutegicos de compreen-

satildeo da doenccedila e do adoecer os quais privilegiam por conseguinte determinadas formas

de tratamento As culturas em cada momento histoacuterico apresentam paradigmas espe-

ciacuteficos (muitas vezes multifacetados) que fornecem um enquadre interpretativo que daacute

sentido agraves experiecircncias humanas dentre as quais o adoecer eacute uma delas

A psicoterapia enquanto modelo terapecircutico especiacutefico da sociedade ocidental eacute relati-

vamente recente com menos de um seacuteculo Ela deve ser compreendida como mais um

artefato cultural No Brasil tornou-se profissatildeo reconhecida com exigecircncias de forma-

ccedilatildeo especiacuteficas como preacute-requisito para praticaacute-la haacute apenas 50 anos

No entanto a psicoterapia enquanto praacutetica cultural terapecircutica remete a outras formas

simboacutelicas de intervenccedilatildeo e cura Segundo Kleinman (1988) ela seria apenas uma for-

331Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

ma indiacutegena de cura simboacutelica isto eacute uma terapia baseada em palavras mitos e o uso

ritual de siacutembolos

Apesar das exigecircncias de formaccedilatildeo acadecircmica (e de curso de especializaccedilatildeo em alguns

paiacuteses) haacute uma grande discussatildeo acerca da especificidade (ou natildeo) da eficaacutecia da psico-

terapia em relaccedilatildeo agraves demais alternativas terapecircuticas disponiacuteveis atualmente no mer-

cado

Sampson (2001) destaca que natildeo existe criteacuterio algum para dizer o que seria uma te-

rapia ldquocientiacuteficardquo Ele aponta ldquoA diversidade das etnoterapias tanto as da antiguidade

como as contemporacircneas na sociedade moderna e nas preacute-modernas atuais eacute inegaacutevelrdquo

(retirado da web) Para o autor a atitude ideal seria natildeo repudiar as demais terapias

como preacute-cientiacuteficas visto que o marco para sua definiccedilatildeo natildeo eacute claro mas antes seria

razoaacutevel estudaacute-las para tentarmos explicitar sua loacutegica interna Elas podem e devem

se tornar objeto mesmo de pesquisa cientiacutefica por parte da psicologia cliacutenica O autor

aponta assim uma lista de pelo menos 300 terapias que foram listadas ateacute 1980

Krause (2011) sugere ao menos trecircs transformaccedilotildees necessaacuterias no campo das psicote-

rapias em geral ampliar nosso ponto de vista sobre a psicoterapia ampliar nossa visatildeo

de como se pode adquirir melhor conhecimento cientiacutefico sobre a psicoterapia e por

uacuteltimo ampliar o ponto de vista sobre os contextos humanos nos quais ocorre a psi-

coterapia Ou seja terapias nas quais encontramos fatores similares aos atuantes nas

psicoterapias

Mas como eacute definida a psicoterapia Segundo Cordiolli e Giglio (2008) as psicoterapias

seriam

Meacutetodos de tratamento realizados por profissionais treinados com o objetivo de reduzir ou remover um problema uma queixa ou um transtorno de um paciente ou cliente utilizando para tal fim meios psicoloacutegicos Satildeo realizados em um contexto primariamente interpessoal a relaccedilatildeo terapecircutica e utilizam a comunicaccedilatildeo verbal como principal recurso (Cordiolli amp Giglio 2008 p42)

A definiccedilatildeo de psicoterapia deve ser dada no plural pois mesmo o campo psicoterapecircu-

tico permeado pelas exigecircncias de formaccedilatildeo acima explicitada eacute marcado pela multi-

plicidade de paradigmas teacutecnicas e pressupostos epistemoloacutegicos No entanto a pro-

332

liferaccedilatildeo de abordagens e teorias nem sempre foi acompanhada pela preocupaccedilatildeo em

avaliar sua eficaacutecia e efetividade (Cordiolli2008) Isso levou alguns teoacutericos tais como

Eysenck em 1950 a afirmar que as mudanccedilas ocorridas durante uma psicoterapia eram

devidas a proacutepria passagem do tempo e natildeo agraves teacutecnicas utilizadas Em outras palavras

foi colocada em xeque a eficaacutecia terapecircutica da mesma

Isso acabou por se tornar um grande estiacutemulo agraves pesquisas acerca da eficaacuteciaefetivi-

dade das psicoterapias A eficaacutecia das psicoterapias se refere agrave avaliaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo

causal entre o tratamento e a resposta (Peuker AC Habigzang LF Koller SH amp

Araujo LB 2009) Visa agrave validade interna exigindo o delineamento de pesquisa ex-

perimental com controle do setting e com intervenccedilotildees bem definidas baseadas em

manuais Jaacute a efetividade das psicoterapias eacute a avaliaccedilatildeo da resposta ao tratamento em

um setting semelhante ao real Visa agrave validade externa e o delineamento da pesquisa eacute

quase experimental O setting eacute menos controlado e mais proacuteximo do natural (Peuker

AC Habigzang LF Koller SH amp Araujo LB 2009)

Em 1960 foi realizado o projeto Menninger o qual se utilizou de metanaacutelise para com-

provar a eficaacutecia das psicoterapias (Cordiolli 2008) Os dados foram surpreendentes

Comparando a eficaacutecia sobretudo na supressatildeo dos sintomas entre pacientes submeti-

dos a processos psicoteraacutepicos e outros em lista de espera para atendimento chegou-se

a um nuacutemero confirmado por inuacutemeras pesquisas posteriores de melhora em torno

de 80 Isto eacute pacientes em processo de psicoterapia melhoravam 80 mais do que

aqueles que simplesmente melhoravam com o simples decorrer do tempo (Cordioli amp

Giglio 2008) Aleacutem disso os efeitos mantiveram-se por mais tempo que aqueles efetu-

ados sem uma psicoterapia

Tais pesquisas comprovaram na contramatildeo da acusaccedilatildeo de Eysenck a eficaacutecia da psi-

coterapia Mas outro problema surgia no horizonte das discussotildees quais seriam os

fatores relacionados agrave melhora do sujeito Os investigadores estudaram inicialmente os

resultados da psicoterapia para evidenciar sua eficaacutecia somente depois eacute que se buscou

compreender e estudar os fatores a ela relacionados (Sales 2009)

Houve concordacircncia de que boa parte dos efeitos se dava ao uso de teacutecnicas especiacuteficas

proacuteprias a cada modelo e por outro lado a fatores comuns ou inespeciacuteficos presentes

em todas as abordagens Os fatores especiacuteficos seriam aqueles tiacutepicos e exclusivos a

333Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

cada abordagem por exemplo o manejo da transferecircncia na psicanaacutelise e a dessensibi-

lizaccedilatildeo sistemaacutetica na abordagem comportamental Jaacute os inespeciacuteficos abarcariam uma

seacuterie de fatores que apresentaremos a seguir

Cordioli e Giglio (2008) classificam os fatores inespeciacuteficos em 4 grandes grupos os

de natureza cognitiva os fatores comportamentais (aprendizagem) os fatores inerentes

agrave relaccedilatildeo terapecircutica (experiecircncia afetiva) e por uacuteltimo os fatores sociais grupais ou

sistecircmicos

Os fatores de natureza cognitiva dizem respeito agrave psicoeducaccedilatildeo agrave reestruturaccedilatildeo cog-

nitiva e agrave ocorrecircncia de insight Os fatores comportamentais referem-se ao processo

de aprendizagem impliacutecita em toda e qualquer terapia levando a mudanccedilas compor-

tamentais Os fatores inerentes agrave relaccedilatildeo terapecircutica apontam para a importacircncia do

viacutenculo afetivo (sendo este um importante preditor do sucesso terapecircutico) da alianccedila

de trabalho da identificaccedilatildeo com o terapeuta do apoio e da catarse E por uacuteltimo os

fatores sociais tangem agraves psicoterapias que incluem mais de um sujeito no setting va-

lorizando o contexto grupal como fator de mudanccedila

Nestes uacuteltimos principalmente nas terapias de grupo satildeo apontados onze fatores tera-

pecircuticos (Vinogradov S Cox PD amp Yalom DI 2003) Instilaccedilatildeo de esperanccedila (acre-

ditar que eacute possiacutevel superar os problemas) a universalidade do problema (perceber que

natildeo se eacute o uacutenico a ter estes problemas) compartilhamento de informaccedilotildees altruiacutesmo

(sentir-se ajudando aos demais) socializaccedilatildeo comportamento imitativo (pela observa-

ccedilatildeo do comportamento dos outros) catarse (ventilaccedilatildeo das emoccedilotildees) recapitulaccedilatildeo cor-

retiva (possibilidade de reverrecapitular no grupo comportamentos que apresenta com

seus familiares) fatores existenciais coesatildeo grupal e aprendizagem interpessoal

Segundo Frank (1982) os elementos comuns (inespeciacuteficos) a todas as psicoterapias

seriam estabelecimento e manutenccedilatildeo de uma relaccedilatildeo significativa confianccedila e espe-

ranccedila de aliviar o sofrimento obtenccedilatildeo de novas informaccedilotildees ativaccedilatildeo emocional de

certos fatos aumento da sensaccedilatildeo de domiacutenio e autoeficaacutecia

Para Fernaacutendez PMS Mella MFR Chenevard C L Garciacutea AEE Caacuteceres DEI

e Vergara PAM (2008) a literatura que discute os fatores inespeciacuteficos em psicote-

rapia os classificam ao redor de trecircs grandes eixos o paciente o terapeuta e a relaccedilatildeo

334

entre ambos Os fatores do paciente seriam variaacuteveis demograacuteficas (como por exemplo

gecircnero idade e niacutevel socioeconocircmico) diagnoacutestico cliacutenico tais como caracteriacutesticas de

personalidade tipo de transtorno e complexidade do sintoma crenccedila e expectativa de

melhora e disposiccedilatildeo pessoal As variaacuteveis do terapeuta seriam a atitude (acolhimento

aceitaccedilatildeo autenticidade congruecircncia) habilidades personalidade niacutevel de experiecircncia

e bem estar emocional As variaacuteveis da relaccedilatildeo satildeo apontadas como o aspecto mais

importante responsaacutevel por 45 do processo de mudanccedila Uma relaccedilatildeo terapecircutica de-

sejaacutevel deveria ser marcada pela confianccedila acolhimento e empatia O mesmo tem sido

apontado por Kleinman (1988)

A relaccedilatildeo paciente-terapeuta coloca em evidecircncia a necessidade da feacute do paciente no

terapeuta e o efeito placebo daiacute decorrente Como aponta Sampson (2001)

La psicoterapia es una manera de maximizar respuestas placebo un efecto no especiacutefico del tratamiento entonces tanto mejor que sea aprovechado un mecanismo terapeacuteutico subutilizado en la medicina en general Si durante los tratamientos psicoterapeacuteuticos se generan efectos psicofisioloacutegicos debido a la activacioacuten del sistema nervioso autoacutenomo y de los sistemas psiconeuro-inmunoloacutegico y endocrinoloacutegico como efectivamente parece ser el caso esto no tiene nada de ignominioso (Sampson 2001 retirado da web)

A diferenccedila talvez numa praacutetica dita cientiacutefica eacute que podemos estudar a importacircncia

os fatores envolvidos e o impacto do efeito placebo nos processos de cura Tal intento foi

efetivado por Wolberg (1988) o qual apontou alguns fatores envolvidos na melhora dos

pacientes em um processo terapecircutico De iniacutecio a ldquomelhorardquo do quadro apresentado

pelo paciente se deve segundo Wolberg agrave influecircncia do placebo agrave catarse emocional

ao relacionamento idealizado com o terapeuta agrave sugestatildeo e aos fatores de dinacircmica

grupal Todos estes fatores podem ser englobados no conjunto de fatores comuns ou

inespeciacuteficos presentes tambeacutem em quase todas as terapias em geral

Sampson (2001) aponta em relaccedilatildeo agrave discussatildeo de qual das abordagens seria a mais

eficaz que

Antes de precipitarnos a condenar o a reir deberiacuteamos preguntarnos si existe una pauta de evaluacioacuten que permita distinguir entre la paja - es el caso de decirlo - y el grano Las estadiacutesticas permiten de acuerdo con el criterio de la satisfaccioacuten del usuario afirmar que el mismo porcentaje de eacutexitos y de

335Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

fracasos puede ser atribuido a todas las formas de terapia actualmente en el mercado (Sampson 2001 retirado da web)

Trata-se segundo Sales (2009) da aplicaccedilatildeo do veredicto do paacutessaro Dodocirc em Alice

no Paiacutes das Maravilhas ldquoTodos ganharam e todos devem receber precircmiosrdquo Segundo

este autor estes resultados levaram a questionar o modo de realizaccedilatildeo destas pesquisas

pois de um lado ou a metodologia estava errada (e levava a pensar em equivalecircncias

inexistentes) ou o resultado era reflexo de fatores comuns agraves mudanccedilas terapecircuticas

Isto eacute os fatores inespeciacuteficos A hipoacutetese do problema metodoloacutegico foi o mais aceito

e desenvolvido Foi tentando ldquoconsertarrdquo esta falha metodoloacutegica que surgiram os tra-

tamentos com suporte empiacuterico ou seja que utilizavam manuais que detalhavam os

procedimentos terapecircuticos a serem utilizados

O uso de manuais detalhando os procedimentos terapecircuticos a serem adotados para garantir uma padronizaccedilatildeo miacutenima levantou e tem levantado muita polecircmica Argumenta-se que se cria uma distacircncia cada vez maior entre a pesquisa que repete modelos experimentais da realidade cliacutenica em si complexa e multifatorial ldquoA principal objeccedilatildeo levantada refere-se ao excesso de confianccedila na significacircncia estatiacutestica em detrimento da significacircncia cliacutenicardquo (Eneacuteas 2008 retirado da web)

Sales (2009) aponta que a preocupaccedilatildeo em investigar a eficaacutecia dos efeitos da psicote-

rapia levou a uma adoccedilatildeo do paradigma loacutegico-matemaacutetico da ciecircncia moderna com

ecircnfase no controle experimental e em dados quantitativos Os estudos tornaram-se ana-

loacutegicos pois reproduziam artificialmente a realidade cliacutenica Neste sentido abordagens

mais proacuteximas de um paradigma positivista poderiam ser mais bem avaliadas por se

ajustarem mais agraves metodologias (mais positivistas) utilizadas para avaliar a eficaacutecia

Estas criacuteticas trouxeram de volta ao centro das reflexotildees os estudos de caso uacutenico E

tambeacutem trouxeram agrave baila a discussatildeo entre os defensores de observaccedilotildees mais objeti-

vas e outros guiados mais pela teoria

Outro problema na discussatildeo sobre a especificidade e inespecificidade teacutecnica versus

eficaacutecia psicoterapecircutica diz respeito agrave inevitabilidade da utilizaccedilatildeo de estrateacutegias ainda

que de forma natildeo intencional tiacutepicas de outra abordagem (Cordiolli 2008) Como

por exemplo um psicanalista ao falar ldquohum humrdquo depois de um sonho relatado pelo

paciente pode estar depois de muito tempo em silecircncio na sessatildeo reforccedilando positi-

vamente o comportamento de relatar sonhos por parte do paciente Apesar de natildeo ser

336

um uso intencional do reforccedilo ele pode ter ocorrido e obviamente ter participaccedilatildeo no

processo de mudanccedila terapecircutica

Krause (2011) sublinha a necessidade de aproximarmos neste sentido a ciecircncia e o

ofiacutecio da psicoterapia pois segundo ela persiste ainda no campo cliacutenico um profundo

divoacutercio entre a praacutetica e a investigaccedilatildeo Para ela a razatildeo para tamanho afastamento diz

respeito aos dados produzidos pela investigaccedilatildeo os quais natildeo satildeo capazes de nutrir a

praacutetica de forma sistemaacutetica o que acabaria por levar a um desinteresse por parte dos

cliacutenicos

Espada (2003) destaca que na atualidade as pesquisas tecircm se focado mais no processo

da psicoterapia na efetividade e na ocorrecircncia dos vaacuterios fatores especiacuteficosinespeciacutefi-

cos do que apenas nos resultados e na eficaacutecia

Levando em consideraccedilatildeo que os aspectos mais importantes na discussatildeo do campo

hoje satildeo de um lado a busca de evidecircncia cientiacutefica que ldquoesbarra nas limitaccedilotildees dos

delineamentos de pesquisa e nos modelos estatiacutesticos existentes que natildeo se prestam a

abranger a complexidade da interaccedilatildeo das variaacuteveis do campordquo (Eneacuteas 2007 retirado

da web) e de outro lado a necessidade de articulaccedilatildeo entre a pesquisa e a praacutetica cliacuteni-

ca o presente artigo tem como escopo apontar algumas contribuiccedilotildees que a teoria dos

atos de fala tem dado e poderia dar para a compreensatildeo do trabalho e da efetividade das

(psico)terapias em geral Trata-se de retornar natildeo aos pressupostos epistemoloacutegicos do

terapeuta mas de verificar o que realmente se passa numa sessatildeo no que tange ao uso

da linguagem e interpretar posteriormente estes usos agrave luz teoacuterica da abordagem do

terapeuta Ou seja a partir da contribuiccedilatildeo do estudo dos atos de fala promovidos pela

Filosofia da Linguagem Ordinaacuteria faz-se mister perguntar pelos seus usos isto eacute se os

tipos de atos de fala e suas incidecircncias satildeo semelhantes nas diversas abordagens e como

o uso se relaciona com a teacutecnica com os fatores (in)especiacuteficos e com a efetividade

Alinguagemquandodizereacutefazer

O uso da palavra como um pharmakon era conhecido desde os gregos tendo sido apon-

tada jaacute por Platatildeo (sd) em A Repuacuteblica Isto eacute Platatildeo percebia que a palavra promove

accedilotildees na alma do ouvinte podendo agir tanto como remeacutedio quanto como veneno O

337Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

filoacutesofo defendia a ideia de que a palavra deveria ser bem usada e que seu ldquobom usordquo

deveria levar em consideraccedilatildeo o conhecimento da alma do ouvinte e dos possiacuteveis efei-

tos sobre a mesma

Apesar da ideia platocircnica retomada na Retoacuterica de Aristoacuteteles de que podemos fazer

coisas com as palavras vingou no Ocidente a compreensatildeo representativa da lingua-

gem isto eacute a ideia de que a linguagem servia como espelho da natureza tendo como

funccedilatildeo representar o mundo (Rorty 1994) Esta compreensatildeo da linguagem eacute denomi-

nada de enfoque semacircntico e teve como aacutepice o Tractatus Logico-Philosophicus de Witt-

genstein (1994) Nesta obra o filoacutesofo apresentou a noccedilatildeo de figuraccedilatildeo da proposiccedilatildeo e

a afirmaccedilatildeo de seu sentido como sendo anterior aos valores de verdade e de falsidade O

proacuteprio filoacutesofo se deparou no entanto com os limites de sua busca de uma linguagem

formal quando lidou com o problema das cores (Wittgenstein 1995) Ocorreu aqui o

que em filosofia eacute comumente denominado de ldquolinguistic turnrdquo Wittgenstein escreveu

entatildeo as Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1991) obra cuja ecircnfase eacute denominada de pragmaacutetica

Uma das grandes contribuiccedilotildees das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1991) foi apontar que fa-

zemos vaacuterias coisas com a linguagem aleacutem de representar o mundo Para o filoacutesofo

saber como se joga um jogo de linguagem eacute ter interiorizado um conjunto de regras

ou seja falar uma liacutengua seria adotar uma forma de comportamento regida por regras

Para ele os jogos de linguagem seriam em nuacutemero infinito e natildeo haveria sentido fixo

relacionado agraves palavras pois a significaccedilatildeo de uma palavra seria seu uso na linguagem

(Wittgenstein 1991)

Austin (1990) seguidor das ideias de Wittgenstein propocircs a teoria dos atos de fala

justamente para nomear o uso da linguagem pelo qual realizamos coisas Segundo ele

os atos de fala satildeo constituiacutedos por 3 elementos o ato locucionaacuterio o ato ilocucionaacuterio

e o ato perlocucionaacuterio O ato locucionaacuterio seria composto pelo ato foneacutetico (produccedilatildeo

de ruiacutedos) ato faacutetico (proferimento de certos vocaacutebulos ou palavras numa determinada

entonaccedilatildeo) e ato reacutetico (ato de utilizar tais vocaacutebulos com certo sentido e referecircncia mais

ou menos definidos)

Jaacute o ilocucionaacuterio seria o proferimento da locuccedilatildeo que ao ser dita realiza um ato Por

exemplo o proferimento de ldquovocecircs estatildeo casadosrdquo feita por um padre e preenchidos os

preacute-requisitos para a felicidade desse ato (que os noivos natildeo sejam jaacute casados com ou-

338

tras pessoas que o padre natildeo seja um farsante simulando ser um padre dentre outros)

eacute a realizaccedilatildeo do proacuteprio ato de casar

Quanto aos perlocucionaacuterios Austin nos diz que poderiacuteamos traduzi-los ainda que natildeo

sem algum problema pela frase ldquopor dizer algo fez tal coisardquo Austin aponta como um

importante elemento diferenciador entre os atos ilocucionaacuterios e os perlocucionaacuterios

a convencionalidade Para ele ldquoos efeitos consequentes das perlocuccedilotildees satildeo realmente

resultados que natildeo incluem efeitos convencionaisrdquo (Austin 1991 p 90) ou seja ldquopro-

duzimos porque dizemos algordquo (Austin 1991 p95) Jaacute os atos ilocucionaacuterios ldquopodem

estar ligados a convenccedilotildeesrdquo (Austin 1991 p 93) Os atos ilocucionaacuterios possuem assim

certa forccedila convencional Esta distinccedilatildeo visa segundo o proacuteprio Austin separar bem a

accedilatildeo que fazemos (no caso uma ilocuccedilatildeo) de sua consequecircncia Neste sentido os atos

ilocucionaacuterios se ligariam a efeitos diferentemente da produccedilatildeo de efeitos efetuada

pelos perlocucionaacuterios Como tratado em outro artigo (Zanello 2010) os atos perlo-

cucionaacuterios satildeo extremamente importantes sobretudo para a configuraccedilatildeo da relaccedilatildeo

terapecircutica ou em um vieacutes psicanaliacutetico para a transferecircncia

Searle (1984) seguiu os passos de Wittgenstein e Austin para pensar o que fazemos

com a linguagem ao pronunciarmos certas proposiccedilotildees Para ele toda comunicaccedilatildeo

linguumliacutestica envolve atos linguumliacutesticos sendo sua unidade miacutenima natildeo a ocorrecircncia de

uma mensagem mas a produccedilatildeo ou emissatildeo de uma ocorrecircncia de frase sob certas

condiccedilotildees isto eacute os atos de fala (Searle 1984) Retomando Wittgenstein via Austin

(1991) Searle tentou sistematizar os tipos de jogos de linguagem que para ele natildeo se-

riam infinitos mas de cinco tipos Os atos de fala se classificariam em compromissi-

vos assertivos declarativos diretivos e expressivos Apresentamos abaixo uma tabela

com caracteriacutesticas de cada um deles

339Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

Tabela 1 - Os Atos de Fala de Searle (1995) e Suas Caracteriacutesticas

Atos de fala caracteriacutesticas Exemplos

Assertivostem o propoacutesito de comprometer o falante com o fato de algo ser verdadeiro com a verdade da

proposiccedilatildeo expressa pode ser verdadeiro ou falsoldquo(Afirmo que) vocecirc eacute capazrdquo

Diretivos tentativas (em graus variados) de levar o ouvinte a fazer algo

ldquoPor favor abaixe a temperatura do ar

condicionadordquo (diz um paciente ao

psicoterapeuta)

Compromissivostem o propoacutesito de comprometer

o falante a alguma linha de accedilatildeo futura

ldquoPrometo dizer tudo o que vier agrave minha cabeccedilardquo

Expressivos tem o propoacutesito de expressar um estado psicoloacutegico

ldquoSinto muito pelo atrasordquo

Declaraccedilotildees

o estado de coisas representado na proposiccedilatildeo eacute realizado ou feito

existir pelo dispositivo indicador de forccedila ilocucionaacuteria

ldquoA sessatildeo estaacute abertardquo diz um mediador de grupo terapecircutico

Searle (1995) natildeo descartou completamente uma semacircntica pois segundo ele o ato

de fala executado na enunciaccedilatildeo de uma frase seria a funccedilatildeo do significado da frase

em questatildeo Isto eacute natildeo haveria dois estudos semacircnticos distintos um que estudaria

as significaccedilotildees das frases e outro que estudaria as execuccedilotildees dos atos de fala mas an-

tes haveria um uacutenico domiacutenio que deveria estudar os atos de fala nestes dois aspectos

(Searle 1984) Neste sentido para Searle o que queremos dizer depende em parte do

que eacute dito havendo uma relaccedilatildeo profunda entre os aspectos intencionais do falante e

convencionais da liacutengua A Forccedila Ilocucionaacuteria (F) diz acerca do que o falante faz ao

pronunciar certa proposiccedilatildeo (p) Deste modo podemos fazer coisas diferentes com a

mesma proposiccedilatildeo dependendo da forccedila ilocucionaacuteria Por exemplo posso dizer ldquoVocecirc

estaacute aborrecidordquo (asserccedilatildeo pois eu afirmo que vocecirc estaacute aborrecido) ou ldquoVocecirc estaacute abor-

recidordquo (diretivo onde coloco o interlocutor em uma posiccedilatildeo de me responder) Trata-se

da mesma proposiccedilatildeo com forccedilas ilocucionaacuterias diferentes

340

Psicoterapiaseousodalinguagem

Como vimos o uso terapecircutico da palavra foi apontado como fator essencial natildeo apenas

das psicoterapias mas das terapecircuticas em geral (etnoterapias) Leacutevi-strauss (1970) ao

comparar o que se passa em um processo analiacutetico e as praacuteticas xamaniacutesticas destaca

a importacircncia do processo de simbolizaccedilatildeo efetuado pela palavra Trata-se da ldquoeficaacutecia

simboacutelicardquo

O xamatilde oferece agrave sua doente uma linguagem na qual se podem exprimir imediatamente estados natildeo formulados de outro modo informulaacuteveis E eacute a passagem a esta expressatildeo verbal (que permite ao mesmo tempo viver sob uma forma ordenada e inteligiacutevel uma experiecircncia real mas sem isto anaacuterquica e inefaacutevel) que provoca o desbloqueio do processo fisioloacutegico isto eacute a reorganizaccedilatildeo num sentido favoraacutevel da sequecircncia cujo desenvolvimento a doente sofreu (Leacutevi-Strauss 1970 p228)

O pai da psicanaacutelise foi no campo psi um dos primeiros a formular com clareza a

importacircncia da palavra como praacutetica curativa Segundo ele as palavras seriam o mais

importante meio pelo qual um homem buscaria influenciar outro sendo as palavras

um bom meacutetodo de produzir mudanccedilas mentais na pessoa a quem satildeo dirigidas (Freud

1905)

() as palavras satildeo o instrumento essencial do tratamento mental Um leigo sem duacutevida acharaacute difiacutecil compreender de que forma os distuacuterbios patoloacutegicos do corpo e da mente podem ser eliminados por lsquomerasrsquo palavras Ele acharaacute que lhe estatildeo pedindo que acredite em maacutegica E natildeo estaraacute muito errado pois as palavras que usamos em nossa fala diaacuteria natildeo satildeo senatildeo uma maacutegica atenuada Mas teremos que seguir um desvio para explicar de que forma a ciecircncia se propotildee restituir agraves palavras pelo menos uma parte de seu antigo poder maacutegico (Freud 1905 p 306)

A partir da compreensatildeo da fala enquanto um fazer acreditamos ser possiacutevel realizar

uma leitura interpretativa do que ocorre em um setting (psico)terapecircutico no desenrolar

de uma ou vaacuterias sessotildees Ou seja eacute desde dentro que se procede a esta leitura e natildeo a

partir do que o cliacutenico ou paciente pensam que acontece Pesquisas tecircm sido realizadas

(Martins amp Zanello 2001 Miranda amp Martins 2004 Aristegui 2000 Aristegui amp cols

2004 Aristegui amp cols 2009 Montin amp Zanello 2008 Alfonso amp Zanello 2009 Ho-

sel amp Zanello 2009 Santos amp Zanello 2009 Soares amp Zanello 2009 Zanello 2009)

e podem servir como exemplos esclarecedores do que este campo tem de promissor

341Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

Martins e Zanello (2001) realizaram um estudo acerca do papel dos atos de fala compro-

missivos no iniacutecio de um processo psicanaliacutetico Segundo estes autores para que seja

possiacutevel o processo analiacutetico eacute necessaacuterio o comprometimento (atos de fala compromis-

sivos) por parte do paciente em relaccedilatildeo agrave regra fundamental da associaccedilatildeo livre ldquoProme-

ta-me com a mais absoluta sinceridade que vai associar livrementerdquo Prometer neste

sentido significa entrar no trabalho seguindo a regra de dizer tudo o que vem agrave cabeccedila

Fazemos um pacto um com o outro O ego enfermo nos promete a mais absoluta sinceridade isto eacute promete colocar agrave nossa disposiccedilatildeo que a sua autopercepccedilatildeo lhe fornece garantimos ao paciente a mais estrita discriccedilatildeo e colocamos a seu serviccedilo a nossa experiecircncia em interpretar material influenciado pelo inconsciente () Esse pacto constitui a situaccedilatildeo analiacutetica (Freud 1940[1938] p200)

Fazer um contrato implica assim em estabelecer uma convenccedilatildeo um acordo entre as

partes com atos compromissivos simultacircneos Os autores destacam assim o quanto

Freud eacute expliacutecito ao enfatizar a necessidade da fala para a ocorrecircncia da anaacutelise mas

tambeacutem a insuficiecircncia desta caso natildeo seja acompanhada da associaccedilatildeo livre O ato

de fala compromissivo (expliacutecito ou impliacutecito) por parte do paciente eacute um marco fun-

damental do iniacutecio do trabalho de anaacutelise apontando a existecircncia e submissatildeo a um

contrato estabelecido entre o analista e o paciente para que o processo de anaacutelise seja

possiacutevel Os autores deixam abertas outras possibilidades acerca do uso da teoria dos

atos de fala para estudar a cliacutenica psicanaliacutetica

Tanto o dinamismo como o trabalho nos parecem presentes na concepccedilatildeo de que a fala na psicanaacutelise consistem em atos que podem ser melhor estudados atraveacutes de uma teoria que forneccedila criteacuterios de anaacutelise e entendimento do funcionamento da situaccedilatildeo psicanaliacutetica tal como descreveu Freud (Martins amp Zanello 2001 p83)

Miranda e Martins (2004) investigaram uma dessas possibilidades Os autores realiza-

ram uma anaacutelise dos atos de fala presentes nos casos cliacutenicos de Freud no desenrolar

dos anos Sua anaacutelise levou os autores a apontar uma mudanccedila sistemaacutetica da preva-

lecircncia dos tipos de atos de fala utilizados por ele no decorrer de sua praacutetica cliacutenica Tal

mudanccedila deve ser compreendida em relaccedilatildeo direta agraves modificaccedilotildees teoacutericas pelas quais

a psicanaacutelise passou e sobretudo agraves mudanccedilas em relaccedilatildeo agrave teacutecnica Miranda e Martins

(2004) destacam neste sentido uma passagem da prevalecircncia de atos de fala diretivos

para os assertivos Tal modificaccedilatildeo da frequecircncia dos tipos de atos de fala deve-se ao re-

342

conhecimento e agrave validaccedilatildeo da transferecircncia como pedra angular do proacuteprio tratamento

psicanaliacutetico Isto eacute se no iniacutecio Freud fazia perguntas ao paciente para fazer-lhe recor-

dar certas lembranccedilas ldquoesquecidasrdquo passou cada vez mais a ocupar o lugar onde era

colocado pela transferecircncia do paciente e a interpretar de forma assertiva os conteuacutedos

que aquele lhe trazia E mais ldquocriavardquo realidade a partir deste lugar usando atos de fala

assertivos como declarativos (Miranda e Martins 2004)

Aristegui e cols (2009) por sua vez utilizaram a teoria dos atos de fala para pesqui-

sar o processo de mudanccedila em psicoterapia baseado nos Indicadores de Mudanccedilas

Gerais comparando episoacutedios de mudanccedila com outros de estancamento A pergunta

dos autores eacute se havia algum padratildeo conversacional recorrente desde o ponto de vis-

ta da teoria dos atos de fala caracteriacutestico dos episoacutedios de mudanccedila e dos episoacutedios

de estancamento Foram escolhidos dois processos de psicoterapias completos um de

base psicodinacircmica (18 sessotildees) e outro mais breve de base cognitivo-comportamental

(6 sessotildees) Aleacutem da anaacutelise das transcriccedilotildees das sessotildees (e dos atos de fala) houve

observaccedilatildeo das mesmas com a presenccedila de pesquisadores experts e com larga expe-

riecircncia na cliacutenica As anaacutelises apontaram haver nos momentos de mudanccedila (signi-

ficativos) a adoccedilatildeo de uma estrutura linguumliacutestica performaacutetica e com auto-referecircncia

(auto-implicaccedilatildeo) por parte do paciente Isto eacute a presenccedila de trecircs passos importantes

1) uma fala do paciente 2) uma posiccedilatildeo de resposta do terapeuta 3) uma siacutentese do pa-

ciente como uma nova posiccedilatildeo do Eu ou uma resposta que voltava a recolocar a primeira

fala O episoacutedio de mudanccedila foi caracterizado como uma conversaccedilatildeo que leva ao uso

autorreferencial do discurso (autodialoacutegico) de maneira que o paciente se implica e se

repensa no que ele estaacute dizendo Trata-se de ldquopadrotildees linguiacutesticos ilocutivos orientados

numa direccedilatildeo performativa autorreferencial que articulam um diaacutelogo Eu-mim aqui

e agorardquo (retirado da web) Jaacute os episoacutedios de estancamento seriam marcados por um

discurso monoloacutegico sem levar a uma mudanccedila na relaccedilatildeo Eu-mim (do sujeito consigo

mesmo) As caracteriacutesticas dos episoacutedios de mudanccedila tambeacutem foram encontradas em

estudos anteriores na terapia gestaacuteltica (Aristegui 2000) e na terapia de base analiacutetica

(Aristegui e cols 2004)

Montin e Zanello (2008) fizeram um estudo longitudinal sobre atos de fala e terapia co-

munitaacuteria na escola o qual demonstrou haver mudanccedila na frequecircncia dos tipos de atos

de fala no decorrer do processo terapecircutico bem como da distribuiccedilatildeo percentual de

falas entre mediador e participantes Houve a diminuiccedilatildeo da participaccedilatildeo do mediador

343Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

(em nuacutemeros de atos de fala) e o crescimento da participaccedilatildeo dos integrantes do grupo

Aleacutem disso houve um aumento de atos de fala diretivos dentre os participantes o qual

era mais frequente no iniacutecio na fala do mediador Tal mudanccedila apontou para o funcio-

namento do grupo o qual nesta abordagem deve aprender a funcionar por si mesmo

incorporando certas habilidades que satildeo facilitadas no iniacutecio pelo mediador Grande

parte dos diretivos eram perguntas referidas a outro participantes no sentido de levaacute-lo

a explorar sua questatildeo a pensar alternativas ou a vecirc-la de outro ponto de vista e assim

trabalhar com seus proacuteprios recursos Esta mudanccedila parece apontar para a efetividade

do processo terapecircutico neste grupo

Alfonso amp Zanello (2009) Hosel amp Zanello (2009) Santos amp Zanello (2009) e Soares amp

Zanello (2009) realizaram um estudo sobre a frequecircnciatipos de atos de fala em qua-

tro grupos anocircnimos de auto-ajuda (Comedores Compulsivos Anocircnimos Narcoacuteticos

Anocircnimos Alcoacuteolicos Anocircnimos e Mulheres que Amam Demais Anocircnimas) em uma

capital brasileira Foram gravadas 4 reuniotildees de cada grupo e depois de transcritas

analisados todos os atos de fala que ocorreram (12250 no total) divididos entre atos

de fala do mediador e atos de fala dos participantes Ficou evidente o predomiacutenio dos

atos de fala assertivos tanto entre mediadores quanto entre participantes No entanto

o conteuacutedo proposicional mostrou-se bastante diferente entre mediadores tratava-se

sobretudo da afirmaccedilatildeo de certas regras sobre o funcionamento do grupo (por exemplo

o sigilo) enquanto entre participantes ocorreu a narraccedilatildeo da histoacuteria pessoal acerca do

problema-chave do grupo Tal dado apontou para a importacircncia da catarse como fator

terapecircutico inespeciacutefico fundamental no modo de funcionamento desses grupos bem

como da identificaccedilatildeo com a fala das outras pessoas (ao escutaacute-las narrando) confi-

gurando a denominada ldquoteacutecnica de espelhosrdquo Foram encontrados aleacutem disso outros

fatores inespeciacuteficos presentes tambeacutem nas psicoterapias grupais em geral a saber a

recapitulaccedilatildeo corretiva a instilaccedilatildeo de esperanccedila (ao ouvir a narrativa de outras pessoas

que superaram ou aprenderam a lidar com o problema) e a universalidade do problema

(ao perceber que natildeo se eacute o uacutenico a ter estas questotildees) Em suma a quantificaccedilatildeo dos

atos de fala forneceu indiacutecios do modo de funcionamento dos fatores inespeciacuteficos bem

como da teacutecnica adotada (Alfonso amp Zanello 2009 Hosel amp Zanello 2009 Santos amp

Zanello 2009 Soares amp Zanello 2009)

Apesar das pesquisas apresentadas partirem do mesmo cabedal teoacuterico (teoria dos atos

de fala) utilizaram-no em enfoques diferentes para refletir sobre o engajamento do

344

paciente com seu proacuteprio tratamento para evidenciar a mudanccedila da prevalecircncia da

frequecircncia dos tipos de atos de fala na histoacuteria de uma abordagem teoacuterica e a relaccedilatildeo

com a mudanccedila da teacutecnica adotada para levantar os tipos de atos de fala implicados em

momentos de mudanccedila e de estancamento na psicoterapia em diferentes abordagens

para pesquisar a mudanccedila longitudinal dos atos de fala mais frequentes e sua distribui-

ccedilatildeo no decorrer de um processo (psico)teraacutepico e sua relaccedilatildeo com a efetividade para

mapear a frequecircncia dos tipos de atos de fala em grupos terapecircuticos de auto-ajuda e a

relaccedilatildeo da forccedila ilocucionaacuteria com o conteuacutedo proposicional relacionando-a aos fatores

inespeciacuteficos e agrave teacutecnica

Apesar da diversidade de possibilidades a utilizaccedilatildeo da teoria dos atos de fala ainda

eacute incipiente e parece estar longe de ter realizado sua contribuiccedilatildeo para uma melhor

compreensatildeo do que se faz com a fala no processo de (psico)terapia e suas muacuteltiplas

relaccedilotildees possiacuteveis com a teacutecnica com os fatores (in)especiacuteficos e com a efetividade

Conclusatildeo

Parece-nos evidente que o campo de conversaccedilatildeo aberto entre a filosofia da linguagem

ordinaacuteria e as (psico)terapias eacute bastante promissor Trata-se talvez de mais um instru-

mento que pode nos auxiliar a esclarecer o que ocorre de tatildeo maacutegico no uso das palavras

e na sua promoccedilatildeo do processo de cura nas (psico)terapias e sua possiacutevel relaccedilatildeo com a

teacutecnica com os fatores inespeciacuteficos e com a efetividade

Talvez sua contribuiccedilatildeo permita pensar cientificamente o ofiacutecio do cliacutenico partindo

da proacutepria praacutetica e natildeo como muitas vezes ocorre dos pressupostos epistemoloacutegicos

e das teacutecnicas supostamente utilizadas Seria interessante neste sentido a realizaccedilatildeo

de pesquisas que levassem em consideraccedilatildeo a anaacutelise dos atos de fala de atendimen-

tos (psico)teraacutepicos em diversas abordagens em estudos longitudinais e sua respectiva

comparaccedilatildeo

Em suma se a praacutetica eacute epistemologia em ato trata-se de qualificar natildeo apenas o que o

cliacutenico acredita que faz mas o que ele efetivamente faz Pensamos que a anaacutelise da fala

e de seus modos de uso constituem-se como uma boa alternativa para enriquecer ainda

mais a discussatildeo sobre a avaliaccedilatildeo do campo das (psico)terapias em suas mais diversas

abordagens

345Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias

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349 Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

LaiacutesMacecircdoVilasBoas

DeiseMatosdoAmparo

O estudo sobre a adolescecircncia ocupa cada vez mais espaccedilo nas pesquisas empreendidas

pelos psicanalistas contemporacircneos que configuram esse tempo como um momento

importante da organizaccedilatildeo da vida psiacutequica Eacute evidente que Freud natildeo se dedicou a

estudar a adolescecircncia como um conceito ou como uma especificidade da psicanaacutelise

como o fez em relaccedilatildeo ao infantil poreacutem em sua obra eacute possiacutevel encontrar algumas pa-

lavras que remetem a essa fase da vida como puberdade juventude e ateacute mesmo ado-

lescente Na maioria de seus escritos eacute o termo puberdade que seraacute utilizado quando se

procura delimitar o campo da adolescecircncia (Alberti 1996) Diante dessas imprecisotildees

como poderiacuteamos delimitar e conceituar a adolescecircncia na psicanaacutelise Como parte do

meacutetodo intriacutenseco a essa perspectiva teoacuterica o resgate da histoacuteria e da cliacutenica eacute fun-

350

damental desde que uma teorizaccedilatildeo possiacutevel da adolescecircncia coincide com o proacuteprio

evento da psicanaacutelise 36

AdolescecircnciaemFreud

No Projeto para uma Psicologia Cientiacutefica Freud (1895) se depara com o entendimento

da Psicologia e a partir de um paradigma cientiacutefico-naturalista busca explicitar os pro-

cessos psiacutequicos enquanto estados determinados quantitativamente Baseado em dois

postulados centrais a saber a quantidade e o neurocircnio que explicariam os processos

psiacutequicos normais e patoloacutegicos Uma ampla gama de conceitos freudianos eacute esque-

matizada no Projeto e receberam nos futuros trabalhos com o desenvolvimento da

teoria e da teacutecnica psicanaliacutetica diferentes abordagens Dentre eles estaacute a concepccedilatildeo de

puberdade que apesar de natildeo possuir um tratamento sistemaacutetico na obra freudiana

encontra um papel relevante na teoria principalmente no que se refere a sua relaccedilatildeo

com a concepccedilatildeo de genitalidade e ao desligamento da autoridade parental

Freud no Projeto aborda o tema puberdade a partir da cliacutenica quando estaacute explorando

o Caso Emma Mostra a formaccedilatildeo do trauma em dois tempos poreacutem entre eles haacute a

condiccedilatildeo da puberdade Trata-se de uma jovem que o procurara para tratamento por natildeo

conseguir entrar em lojas quando estava sozinha Neste caso duas cenas que se passam

em temporalidades diferentes satildeo importantes A Cena I refere-se a uma lembranccedila do

momento em que Emma com doze anos pouco depois da puberdade entrava em uma

loja para comprar algo e dois vendedores riam dela especificamente de suas roupas

Dentre eles recorda que um a havia agradado sexualmente A Cena I isoladamente

natildeo revela conexotildees plausiacuteveis que tragam sentido para o sintoma de Emma Afinal

natildeo havia relaccedilatildeo entre as roupas que usava e sua corrente dificuldade de ingressar em

lojas nem seu interesse pelo vendedor poderia ser impedido se tivesse acompanhada de

algueacutem Ao continuar com a investigaccedilatildeo surge nos relatos de Emma a Cena II Aconte-

ceu quando ela contara oito anos em uma confeitaria o proprietaacuterio agarrou por cima

da roupa suas partes genitais Durante esse ato ele ria Mesmo assim ela retornou agrave

confeitaria e se censurou bastante por isso

36 Trabalho resultante de Pesquisa com apoio CNPq

351Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

O que possibilita a associaccedilatildeo entre as duas cenas eacute a semelhanccedila de estar sozinha e do

riso A hipoacutetese freudiana eacute de que a Cena II despertou uma sexualidade que soacute pode

ser liberada apoacutes a entrada na puberdade quando ocorrera a Cena I mas que se trans-

formou em anguacutestia no sintoma de Emma O que permanece inconsciente em Emma

eacute o despertar de uma sexualidade (Cena II) que conseguiu ser liberada em um soacute depois

(Cena I) momento em que a paciente estava passando pela puberdade

Freud se depara com a explicaccedilatildeo da defesa histeacuterica na qual se recalca uma lembranccedila

que soacute ganha seu valor traumaacutetico atraveacutes de uma accedilatildeo retardada devido ao impacto da

sexualidade pubertaacuteria ldquoTemos aqui um caso em que uma lembranccedila desperta um afe-

to que natildeo pocircde suscitar quando ocorreu como experiecircncia porque nesse entretempo

as mudanccedilas [trazidas] pela puberdade tornaram possiacutevel uma compreensatildeo diferente

do que era lembradordquo (1895 p410) A cadeia associativa explorada atraveacutes da recordaccedilatildeo

mostra que haacute uma relaccedilatildeo entre a sexualidade pubertaacuteria e a infacircncia Uma lembranccedila

eacute recalcada e com o efeito do a posteriori sendo a puberdade uma condiccedilatildeo ela se torna

um trauma A irrupccedilatildeo da pulsatildeo na puberdade autoriza um modo diferente de com-

preender a lembranccedila da experiecircncia sexual ocorrida na infacircncia marcando um movi-

mento de ressignificaccedilatildeo Foi preciso a Cena II para que a Cena I ganhasse seu caraacuteter

traumaacutetico A investigaccedilatildeo das origens da neurose ndash histeacuterica no caso Emma - revela a

puberdade como seu momento de eclosatildeo a partir de uma visatildeo loacutegica e natildeo cronoloacute-

gica na relaccedilatildeo do sujeito com o sexo

A puberdade estaacute na etiologia das neuroses na medida em que a alteraccedilatildeo ocorrida

no segundo momento ndash pubertaacuterio - faz com que as experiecircncias vividas remontem agraves

marcas infantis de modo que eacute reprimida uma lembranccedila que soacute com efeito retardado

tornou-se trauma A maturaccedilatildeo orgacircnica eacute fundamental para que o segundo tempo

ocorra Esse remete agrave lembranccedila anterior delineando uma conjuntura que produz o ca-

raacuteter traumaacutetico do primeiro registro Este modelo natildeo eacute exclusivo dos casos conhecidos

como patoloacutegicos Freud sustenta no mesmo texto que ldquotoda pessoa adolescente possui

marcas mnecircmicas que soacute podem ser compreendidas com a emergecircncia de sensaccedilotildees

sexuais proacuteprias dir-se-ia entatildeo que todo adolescente porta em si o lsquogeacutermen da histeriarsquo

(p411) Desde o Projeto Freud jaacute pensava no funcionamento psiacutequico a partir de uma

dupla temporalidade atraveacutes da concepccedilatildeo de uma accedilatildeo retardada

352

Tal hipoacutetese sobre a etiologia da histeria e a concepccedilatildeo de puberdade igualada ao surgi-

mento da sexualidade no indiviacuteduo ainda se manteve por um tempo no pensamento

de freudiano Em 1896 no estudo sobre a Etiologia da histeria a infacircncia eacute denominada

como um periacuteodo preacute-sexual em que ocorreria o trauma a partir de uma experiecircncia de

irritaccedilatildeo real dos oacutergatildeos sexuais numa atividade semelhante agrave copulaccedilatildeo Eacute soacute em um

tempo posterior agrave puberdade e permitido pela eclosatildeo sexual pubertaacuteria que tais exci-

taccedilotildees impelem um retorno dos traccedilos mnecircmicos traumaacuteticos infantis Em uma busca

pela descarga afetiva que prepara o terreno para a histeria

No entanto em 1905 Freud nos Trecircs Ensaios sobre a Sexualidade a sexualidade infantil

ganha um novo e revolucionaacuterio estatuto para a teoria psicanaliacutetica Nesse texto Freud

decide ir contra a noccedilatildeo da eacutepoca e sua tambeacutem de textos anteriores de que a puber-

dade dava iniacutecio agrave sexualidade O desenvolvimento de uma neurose histeacuterica que ateacute

entatildeo ocorreria devido agrave aptidatildeo pubertaacuteria de imprimir o caraacuteter sexual em traccedilos

mnecircmicos ocorridos uma fase preacute-sexual (a infacircncia) encontra um novo desenrolar

Freud pretendia rever a tese do lugar da puberdade na constituiccedilatildeo psiacutequica e teoriza

que a puberdade leva a vida sexual infantil a sua conformaccedilatildeo definitiva a partir do pri-

mado das zonas genitais e da escolha objetal ambas prefiguradas no tempo do infantil

A puberdade eacute o incremento da pulsatildeo sexual com a primazia da zona genital Ela reor-

dena todas as zonas e permite que o sujeito realize escolhas objetais fora de seu proacuteprio

corpo saindo do autoerotismo

Entatildeo retira-se da puberdade a funccedilatildeo de apresentar ao ser humano aquilo que eacute da

ordem da sua sexualidade Mas por outro lado natildeo nega a novidade pulsional da pu-

berdade nem a sua caracteriacutestica de segundo tempo Na terceira seccedilatildeo desse texto inti-

tulada As transformaccedilotildees da puberdade dedica-se a sustentar que a puberdade possui um

alicerce bioloacutegico ao colocar um grande peso sobre os fatores constitucionais quando

trata das correspondecircncias orgacircnicas para eventos psiacutequicos da quiacutemica e das glacircndu-

las na deflagraccedilatildeo da puberdade Talvez em uma tentativa de garantir a universalidade

da teoria psicanaliacutetica da sexualidade (Matheus 2007)

Todas as pulsotildees parciais se prendem ao mesmo jugo ao primado das zonas genitais A

tensatildeo sexual faz a exigecircncia de um aumento de prazer e soacute a puberdade faz emergir o

aparato para um prazer finalndash diferente do preacute-prazer infantil ndash e novo Em outras pala-

353Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

vras a genitaacutelia mediante uma excitaccedilatildeo externa ou interna estaacute preparada para o ato

sexual Se a fisiologia parece tatildeo clara agrave Freud o processo de desenvolvimento da puber-

dade ainda carece de elucidaccedilatildeo afinal estas ldquotransiccedilotildees intermediaacuterias ainda nos satildeo

obscuras em muitos aspectosrdquo (Freud 1905 p197) Na exigecircncia de um prazer maior

a libido do ego comeccedila a ser investida psiquicamente em objetos sexuais e converte-se

em libido do objeto Na busca por um objeto para levar a cabo sua capacidade fisioloacutegica

de reproduccedilatildeo o indiviacuteduo depara-se com a diferenccedila sexual Aleacutem das transformaccedilotildees

fisioloacutegicas pubertaacuterias propiciarem o momento em que as caracteriacutesticas masculinas e

femininas demarcam uma niacutetida separaccedilatildeo

Os Trecircs Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905) proporciona uma virada no que se re-

fere agrave pulsatildeo sexual infantil poreacutem a puberdade natildeo perde seu valor de segundo tempo

na constituiccedilatildeo do trauma a partir da origem infantil Na teoria freudiana o trauma ain-

da aparece enquanto um efeito do a posteriori mediante as transformaccedilotildees pubertaacuterias

em um sujeito que jaacute vivenciou o Complexo de Eacutedipo e de castraccedilatildeo Elementos que se

passam em uma infacircncia que natildeo eacute mais desprovida de sexualidade

Posteriormente Freud (1923) em um trabalho chamado A organizaccedilatildeo genital infantil

faz uma anaacutelise sobre a genitalidade na infacircncia e na puberdade A insatisfaccedilatildeo freudia-

na com o postulado de que a vida sexual infantil natildeo efetuaria de modo completo ou

por vezes de modo algum a primazia dos oacutergatildeos sexuais levou-o a afirmar que ldquoMes-

mo natildeo se realizando uma combinaccedilatildeo adequada dos instintos parciais sob a primazia

dos oacutergatildeos genitais no auge do curso do desenvolvimento da sexualidade infantil o

interesse nos genitais e em sua atividade adquire uma significaccedilatildeo dominante que estaacute

pouco aqueacutem da alcanccedilada na maturidaderdquo (p158) Entatildeo a genitalidade natildeo eacute novidade

da puberdade mas entre esses dois tempos a infacircncia e a adolescecircncia existem uma

enorme diferenccedila Freud conclui que a organizaccedilatildeo genital infantil considera somente

o oacutergatildeo genital masculino haacute uma primazia do falo A aposta na genitalidade anterior

a puberdade se daacute pela constataccedilatildeo de uma curiosidade sexual o temor agrave castraccedilatildeo e a

primazia faacutelica Na infacircncia a antiacutetese ldquoeacute entre possuir um oacutergatildeo genital masculino e

ser castradordquo (p161) A oposiccedilatildeo entre masculino e feminino soacute eacute posta no momento

em que o indiviacuteduo vai escolher um objeto ou seja na puberdade ldquoA masculinidade

combina [os fatores de] sujeito atividade e posse do pecircnis a feminilidade encampa [os

de] objeto e passividaderdquo (p161)

354

Mesmo na sexualidade infantil feminina eacute o paradigma masculino que entra em consi-

deraccedilatildeo eacute o clitoacuteris que envolve a atividade faacutelica feminina Nesse sentido Freud (1923)

afirma que a sexualidade feminina na puberdade tem um complicador a mais eacute preciso

que ela troque de zona genital do clitoacuteris para a vagina O clitoacuteris seria o anaacutelogo ao

oacutergatildeo sexual masculino tendo em vista que a vagina na infacircncia potencialmente natildeo

existe Eacute na puberdade que esse oacutergatildeo comeccedila a produzir sensaccedilotildees que o caraacuteter femi-

nino a vagina entra em questatildeo Esse complicador do encontro com o feminino que

faz a certeza faacutelica bascular natildeo eacute soacute para as mulheres os homens tambeacutem tem que se

a ver com esse encontro

Ao retomarmos a busca do objeto para Freud relembramos que ele afirma que esta eacute

na verdade um reencontro Apesar de natildeo tratar explicitamente do Complexo de Eacutedipo

Freud aproxima-se desse tema ao trabalhar a dimensatildeo incestuosa do reencontro com a

imagem mnecircmica da matildee no rapaz na relaccedilatildeo entre os viacutenculos infantis e na eleiccedilatildeo de

objetos Eacute no campo das fantasias e das escolhas objetais que o sujeito atua seu desejo

de reencontro A eleiccedilatildeo de novos objetos eacute realizada a partir das marcas infantis

A escolha objetal acontece em dois tempos um antes e outro depois da latecircncia Sua

dupla temporalidade trabalhada desde o Projeto na obra de Freud eacute marcada pelos

rastros da preacute-genitalidade caracterizando a sexualidade humana e a constituiccedilatildeo do

aparelho psiacutequico Matheus (2007) afirma que Freud reserva esse lugar a puberdade eacute

o momento da segunda ativaccedilatildeo sexual jaacute anunciada em 1905 quando diz ldquoum prazer

novordquo decorrente de uma ldquodiferenccedila de naturezardquo e uma satisfaccedilatildeo de maior intensida-

de Haacute uma reordenaccedilatildeo direcionada pela funccedilatildeo sexual eacute na puberdade que a imagem

mnecircmica da matildee eacute perseguida em novos enlaces

A barreira do incesto eacute relacionada agrave impossibilidade fiacutesica da concretizaccedilatildeo incestuo-

sa ou seja ao retardo da maturaccedilatildeo sexual Matheus (2007) comenta que esse cotejo

denota que a interdiccedilatildeo infantil se sustenta numa incapacidade fiacutesica concreta mais do

que simboacutelica ou subjetiva Se a interdiccedilatildeo se baseia na desproporccedilatildeo maturacional a

puberdade representa uma forte ameaccedila pela possibilidade de concretizaccedilatildeo das fanta-

sias incestuosas

Sobre esse aspecto da escolha sexual do objeto Winnicott (1975) coloca que estaacute incluiacuteda

na imaturidade adolescente e na maturidade adulta Se a primeira possui sua marca

355Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

de tensatildeo na sexualidade adolescente a segunda estaacute caracterizada pela aceitaccedilatildeo da

ldquoescolha de objeto a constacircncia objetal a satisfaccedilatildeo sexual e o entrelaccedilamento sexualrdquo

(p200) Ao mesmo tempo em que a imaturidade eacute considerada por Winnicott a maior

vantagem da adolescecircncia pela sua ldquoliberdade de ter ideias e de agir segundo seu impul-

sordquo (p202) tambeacutem eacute processual e demanda tempo para a realizaccedilatildeo da escolha sexual

Outro fator essencial apontado por Freud jaacute em 1905 eacute o desligamento da autoridade

dos pais entendido como o evento mais significativo e doloroso da puberdade Este vem

a demarcar a diferenccedila de geraccedilotildees Sem duacutevida haacute uma forte ligaccedilatildeo entre a desistecircn-

cia de realizaccedilatildeo das fantasias incestuosas e o desligamento da autoridade parental

Sobre o distanciamento dos pais no texto Romances Familiares Freud (1908) toma a

puberdade como referecircncia Natildeo em seu aspecto da imposiccedilatildeo bioloacutegica de uma nova

escolha de objeto mas em relaccedilatildeo ao objetivo eroacutetico e ambicioso da fantasia no desliga-

mento com a autoridade A crianccedila pequena toma seus pais como fonte de todo o co-

nhecimento poreacutem em seu desenvolvimento conhece outras famiacutelias e comeccedila a ldquopocircr

em duacutevida as qualidades extraordinaacuterias e incomparaacuteveis que lhes atribuiacuteardquo (p219)

Esse processo se inicia em um periacuteodo logo anterior a puberdade podendo prolongar

ndashse para muito depois dela O indiviacuteduo elabora o seu romance familiar neuroacutetico que

pode incluir as mais variadas fantasias desde a substituiccedilatildeo por pais melhores ateacute a

infidelidade materna A atividade de fantasiar ambiciosamente busca certa autono-

mia frente aos progenitores tomando-os como modelo ndash parental inscrito na primeira

infacircncia ao mesmo tempo em que busca por outros exemplos a ser equacionado na

constituiccedilatildeo dos ideais (Matheus 2007)

Em Algumas Reflexotildees sobre a Psicologia Escolar Freud (1914) trabalha o desligamento

dos pais na juventude e as outras relaccedilotildees no mesmo periacuteodo da vida atravessado pelas

marcas do Complexo de Eacutedipo Jaacute no fim da infacircncia o menino manteacutem contato com

vaacuterias pessoas fora do nuacutecleo familiar e natildeo pode deixar de perceber o quatildeo elevado era

o seu primeiro ideal paterno Assim ele se apressa em desligar-se desse ideal infantil

e comeccedila a criticar e avaliar seus comportamentos Eacute nessa fase em que o jovem entra

em contato com outras figuras de autoridade poreacutem em seus relacionamentos o me-

nino natildeo eacute uma folha em branco ele traz seus traccedilos infantis e edipianos e investe nos

substitutos parentais as ambivalecircncias de sentimentos que experimenta em relaccedilatildeo aos

seus pais ldquoEssas figuras substitutivas podem classificar-se do ponto de vista da crianccedila

356

segundo provenham do que chamamos as lsquoimagosrsquo do pai da matildee dos irmatildeos e das ir-

matildes e assim por diante Seus relacionamentos posteriores satildeo assim obrigados a arcar

com uma espeacutecie de heranccedila emocional []rdquo (p 248-249)

Ao percorrer o caminho freudiano sobre a adolescecircncia percebe-se que em um pri-

meiro momento a puberdade eacute igualada ao iniacutecio da vida sexual Depois a sexualidade

infantil e as concepccedilotildees que permeiam o Complexo de Eacutedipo altera radicalmente esse

lugar dado agraves transformaccedilotildees pubertaacuterias Enquanto um segundo momento da sexu-

alidade a puberdade fica como pano de fundo mas manteacutem sua importacircncia para a

constituiccedilatildeo do aparelho o psiacutequico

O texto dos Trecircs Ensaios sobre a Sexualidade eacute um tratado privilegiado para analisar as

transformaccedilotildees pubertaacuteria pela sua associaccedilatildeo com as fantasias incestuosas com o des-

ligamento da autoridade parental e a configuraccedilatildeo definitiva da vida sexual (Matheus

2007) As transformaccedilotildees pubertaacuterias no entanto enquanto orgacircnicas natildeo podem ser

excluiacutedas do estudo de Freud poreacutem natildeo conseguem sustentar uma causalidade linear

da adolescecircncia Eacute preciso estar atento agraves vaacuterias formulaccedilotildees freudianas com relaccedilatildeo agrave

primazia da zona genital proporcionada pela puberdade Pois essa genitalidade refere-

-se ao encontro com a feminilidade e a saiacuteda da primazia da ordem faacutelica em que so-

mente o paradigma masculino estava em questatildeo

O lugar psiacutequico que a puberdade ocupa em Freud principalmente nos Trecircs ensaios

aparece principalmente quando ele se debruccedila sobre a questatildeo da excitaccedilatildeo psiacutequica e

do trabalho psiacutequico de diferenccedila geracional no desligamento dos pais Igualar adoles-

cecircncia e puberdade eacute contrariar o legado Freudiano pois eacute na contradiccedilatildeo das diferentes

geraccedilotildees que se centra o trabalho psiacutequico da adolescecircncia (Alberti 1996)

Enfim o que estaacute em jogo na adolescecircncia Haacute um movimento na teoria psicanaliacutetica

de buscar uma definiccedilatildeo para a adolescecircncia que natildeo seja o de puberdade Aleacutem disso

o proacuteprio conceito de puberdade na psicanaacutelise ganha conotaccedilotildees diferentes para aleacutem

das transformaccedilotildees corporais fisioloacutegicas Entatildeo qual o lugar da puberdade no tempo

adolescente e como esse aspecto eacute teorizado nas construccedilotildees psicanaliacuteticas posteriores

357Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

Guttonogolpepubertaacuterio

O impacto da puberdade na adolescecircncia toma uma dimensatildeo conceitual nos trabalhos

de Philippe Gutton As transformaccedilotildees corporais violentas do corpo puacutebere levam a

uma genitalizaccedilatildeo corporal e psiacutequica do adolescente (Gutton 1990) Freud jaacute afirmara

que a puberdade eacute o momento do primado das zonas genitais e de investir em objetos

externos Tal novidade impotildee a necessidade de uma reorganizaccedilatildeo da identidade do

corpo sexual e psicoloacutegica constituiacuteda na infacircncia Gutton formaliza o termo pubertaacute-

rio afirmando que se refere agrave vida psiacutequica enquanto puberdade trata de um processo

corporal Tempo explosivo que visa dar conta do real bioloacutegico da puberdade tendo em

vista a pressatildeo que faz agrave barreira do incesto estabelecida no Complexo de Eacutedipo A orga-

nizaccedilatildeo pubertaacuteria coloca agrave prova do supereu face agrave entrada no possiacutevel da cena ediacutepica

Gutton (2002) afirma que natildeo existe coisa alguma na infacircncia que a prepare para a

sexualidade pubertaacuteria Bordejado pela genitalidade o destino da crianccedila puacutebere eacute fazer

advir o sujeito de sua genitalidade O pubertaacuterio ainda natildeo pertence ao sujeito eacute im-

posto a ele como uma forccedila centriacutepeta vinda de fora como um evento incontornaacutevel

A pressatildeo da realidade interna a partir da temaacutetica edipiana reposiciona o sujeito da

infacircncia na medida em que o pubertaacuterio como considerado por Gutton eacute uma forccedila

violenta pulsional genital que abusa o corpo e a psique O caraacuteter violento do pulsional

adveacutem da genitalizaccedilatildeo do corpo invadido por excitaccedilotildees que o adolescente natildeo conse-

gue dominar Nessa invasatildeo interna da forccedila pulsional o pubertaacuterio eacute por essecircncia passi-

vo O sujeito constituiacutedo atraveacutes da loacutegica imaginaacuteria faacutelica encontra um real genital que

reafirma que nada pode ser como antes A experiecircncia sensual natildeo diz somente que o

corpo genital eacute de uma natureza diferente da infantil mas que ele anima uma parte do

corpo que natildeo eacute integrada ao eu-sujeito ele sente coisas desconhecidas o estrangeiro

do corpo e do psiquismo Por isso o pubertaacuterio por definiccedilatildeo abusa violenta A elabo-

raccedilatildeo adolescente deve reconhecer o debate subjetivo entre a histoacuteria infantil interna e

o evento pubertaacuterio

Jeammet e Corcos (2005) pensam junto com Gutton que a adolescecircncia eacute ldquouma mu-

danccedila induzida pelo processo da puberdaderdquo (2005 p38) As transformaccedilotildees corporais

escapam ao domiacutenio do Eu e mostram a impotecircncia do adolescente frente agraves mudanccedilas

pubertaacuterias O corpo ldquoeacute parte integrante da representaccedilatildeo de si mas percebido pela

psique como corpo estranho na medida em que escapa a seu controle e a [psique] mer-

358

gulha numa situaccedilatildeo de passividaderdquo (p 42) Indica a realidade da separaccedilatildeo dos pais

no mundo infantil e da dependecircncia

Os autores sustentam que existe uma crise na adolescecircncia pela sua exigecircncia de mu-

danccedila a partir da puberdade e suas consequecircncias psicossociais ou seja pressotildees inter-

nas e externas ao aparelho psiacutequico que acarretam um trabalho de remanejamento do

funcionamento do sujeito Assim a adolescecircncia faz uma exigecircncia de trabalho psiacutequi-

co que pode induzir comportamentos conturbados mostrando a vulnerabilidade desse

momento e natildeo uma patologia As condutas mais atiacutepicas poderiam ser vistas como o

ldquopreccedilo da crise assimilada a uma desorganizaccedilatildeo temporaacuteria no momento em que o

jovem adolescente abandona os amparos da infacircncia sem ter ainda encontrado os da

idade adultardquo (Jeammet e Corcos 2005 p30) Nesse sentido Marty (2010) defende

que a puberdade fragiliza o corpo e o Eu transformando-os pela forccedila das pulsotildees e dos

fantasmas incestuosos e parricidas A fragilidade eacute interna e externa o que pode levar a

adolescecircncia a ser vivida como um verdadeiro traumatismo

Lacanadolescecircnciacomooencontrocomorealdosexo

Lacan no Seminaacuterio IV (1956-57) trabalha a genitalidade fase central para o estudo da

adolescecircncia em Freud a partir do desencontro que a relaccedilatildeo sexual provoca Em um

primeiro momento relembra a posiccedilatildeo de Freud com relaccedilatildeo ao objeto em que o objeto

que liga as primeiras satisfaccedilotildees da crianccedila natildeo poderaacute ser reencontrado eacute sempre um

objeto perdido O que marca no homem eacute uma tendecircncia por buscaacute-lo Haacute um desen-

contro entre o objeto buscado e reencontrado que ldquomarca a redescoberta do signo de

uma repeticcedilatildeo impossiacutevel jaacute que precisamente este natildeo eacute o mesmo objeto natildeo poderia

secirc-lordquo (p13) Nesse sentido Lacan reenvia agrave posiccedilatildeo freudiana de que no encontro com o

objeto haveraacute sempre a marca da incompletude ldquopor sua natureza a repeticcedilatildeo se opotildee

agrave reminiscecircnciardquo (p14)

Ao partir da demarcaccedilatildeo realizada por Freud em que a genitalidade da adolescecircncia fala

do feminino e da certeza do desencontro com o objeto Lacan postula que a experiecircn-

cia entre um homem e uma mulher que eacute uma das questotildees da puberdade contradiz

a possibilidade de encontro com um objeto harmocircnico Haacute sempre uma hiacircncia algo

que natildeo funciona

359Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

Diferente da fase faacutelica que natildeo deixa de ter a marca da genitalidade o que estaacute em jogo

eacute o falo e o sujeito fica como um pecircndulo entre a ldquoimagem viril ou a castraccedilatildeordquo (p49)

Apesar do falo ser trabalhado no Seminaacuterio IV enquanto imaginaacuterio ele introduz no

niacutevel da genitalidade o dom simboacutelico O que estaacute em jogo eacute a presenccedila ou ausecircncia do

falo que imerge o sujeito numa dialeacutetica simboacutelica Se pensarmos com Freud trata-se

da fase faacutelica com o seu referencial masculino A genitalidade na adolescecircncia introduz

algo de outra ordem que escapa a ordem simboacutelica A fantasia do falo natildeo possui sua

correspondecircncia na relaccedilatildeo sexual A maturaccedilatildeo genital comportaria a ilusatildeo de uma

harmonia entre homens e mulheres natildeo entanto essa complexa relaccedilatildeo ldquonatildeo passa de

um perpeacutetuo fracassordquo (p384) A puberdade eacute marcada pelo encontro com a feminilida-

de que diferente do par de opostos do falo natildeo encontra na linguagem um lugar

Ouvry (2010) retoma proposiccedilotildees freudianas para dizer com Lacan que a novidade da

puberdade eacute o Feminino Apesar da concepccedilatildeo de genitalidade comportar uma mudan-

ccedila radical entre 1905 e 1923 desde os Trecircs Ensaios sobre a Teoria da sexualidade Freud jaacute

aponta para a natureza masculina da libido e a fixaccedilatildeo da menina no clitoacuteris enquanto

zona eroacutegena Elementos retomados na Organizaccedilatildeo Genital Infantil a partir da pers-

pectiva faacutelica e do feminino Se na infacircncia a referecircncia para os dois sexos eacute a mesma o

falo o oacutergatildeo genital feminino natildeo possui referecircncia na infacircncia A estrutura da lingua-

gem soacute comporta um sexo enquanto ausecircncia ou presenccedila mas o real pubertaacuterio vem

escancarar uma diferenccedila Eacute dado o nome de real por natildeo encontrar uma referecircncia na

linguagem

Lacan no Prefaacutecio a O Despertar da Primavera (1974) aborda a dificuldade encontrada

pelos jovens com o desejo e o ato de fazer amor com as moccedilas demarcando a impos-

sibilidade da relaccedilatildeo amorosa e a insuficiecircncia do gozo faacutelico ldquoJustamente de que o

puacutebis soacute faccedila passar ao puacuteblico onde se exibe como objeto de uma levantada de veacuteu

Que o veacuteu levantado natildeo mostre nada eis o princiacutepio da iniciaccedilatildeo (nas boas maneiras

da sociedade pelo menos)rdquo (p558)

Alberti (1996) comenta o prefaacutecio de Lacan afirmando que ldquoO despertar da primavera

eacute o despertar das fantasias que Freud dizia ficam adormecidas durante a latecircncia e

reaparecem na puberdaderdquo (p 57) Eacute somente a partir desse despertar que o ato sexual

pode ocorrer e o consequente choque com o real da natildeo existecircncia da relaccedilatildeo sexual

Levantou-se o veacuteu do gozo prometido e nada foi encontrado postergou-se para a morte

360

a possibilidade de gozo completo O conceito de adolescecircncia proposto por Melman

(1999) assenta sobre essa vacilaccedilatildeo do gozo Seria uma crise psiacutequica entendida como

um natildeo lugar no momento em que o sujeito natildeo sabe como se posicionar com relaccedilatildeo

ao seu gozo Como um mal-estar devido agrave constataccedilatildeo de que o gozo eacute sempre insatis-

fatoacuterio Este lugar estremece pelo adolescente estar olhando a partir de um lugar ideal

ainda natildeo castrado ndash mas sim privado em que a promessa edipiana ainda natildeo se cons-

tituiu como um logro

Para Lesourd (2004) a sexualidade genital puacutebere se lanccedila em um modelo sexual cons-

tituiacutedo a partir dos moldes do infantil faacutelico Para tratar desse tema o autor traz a con-

cepccedilatildeo freudiana de Das Ding remete a um tempo da carne que em funccedilatildeo da lingua-

gem foi irremediavelmente perdido pelo sujeito Das Ding ou a Coisa eacute o objeto-carne

fonte do gozo originaacuterio da excitaccedilatildeo satisfaccedilatildeo primaacuteria O pubertaacuterio faz retorno a

esse gozo para sempre perdido e afastado pelo significante O gozo genital prometido

e enquadrado na infacircncia pela promessa edipiana perde sua garantia Para a crianccedila a

completude possiacutevel estaacute no mundo adulto O adolescente se depara com o mal-estar da

castraccedilatildeo simboacutelica especialmente no encontro da inadequaccedilatildeo da carne com o corpo

no ato sexual A adolescecircncia eacute o encontro da posiccedilatildeo feminina para todo sujeito no

confronto com o natildeo todo com a descrenccedila faacutelica O feminino eacute entendido por Lesourd

como um dos nomes do real aquilo que resiste psiquicamente agrave sexualidade libidinal

faacutelica A conceituaccedilatildeo do Outro sexo independente do sexo bioloacutegico do sujeito eacute com

o feminino A concepccedilatildeo de adolescecircncia envolve o trabalho psiacutequico em segundo tem-

po que deve ser realizado frente agrave invasatildeo pubertaacuteria ou seja a descoberta da ilusatildeo do

veacuteu faacutelico e do significante da falta no Outro Esse trabalho envolve a reconstruccedilatildeo dos

veacuteus faacutelicos a partir dos elementos preestabelecidos na construccedilatildeo subjetiva infantil

O corpo puacutebere a partir do encontro com o outro sexo leva a busca de novos objetos ao

desligamento da autoridade parental revela o fracasso da promessa edipiana e faz com

que o olhar do outro sobre esse corpo mude

O corpo imposto pela puberdade fisioloacutegica perturba a imagem do corpo construiacuteda na

infacircncia e inevitavelmente faz sobressair agrave diferenccedila entre os sexos O sujeito percorre

o caminho do autoerotismo agrave escolha de objeto (Rassial 1999) Para Matheus (2007) a

puberdade do ponto de vista da sexualidade eacute o encontro com a faceta impossiacutevel da re-

laccedilatildeo amorosa e com a sua dimensatildeo enigmaacutetica O acesso agrave sexualidade puacutebere marca-

361Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

do pelo excesso do corpo vira inevitavelmente uma reivindicaccedilatildeo Afinal o adolescente

identifica em seu proacuteprio corpo os objetos parciais atribuiacutedos ao genitor do mesmo

sexo O que sustenta a interrogaccedilatildeo sobre a sua proacutepria posiccedilatildeo quanto agrave sexuaccedilatildeo

O engodo da reediccedilatildeo do Complexo de Eacutedipo eacute apontado por Freud em 1905 na ado-

lescecircncia existe uma maturaccedilatildeo fiacutesica que permite que aquilo que estava somente na

fantasia edipiana se torne possiacutevel Poreacutem natildeo eacute possiacutevel uma realizaccedilatildeo sexual nos

moldes da primeira infacircncia Quando o corpo infantil se iguala ao corpo adulto a pro-

messa do Eacutedipo se mostra enganadora (Rassial 1997a) Melman (1999) afirma que

a enganaccedilatildeo constatada na adolescecircncia estaacute no movimento de sair do registro da pri-

vaccedilatildeo para o da castraccedilatildeo A crianccedila aceita a promessa do Eacutedipo porque ela estaacute no

momento privada e natildeo castrada do instrumento necessaacuterio (o corpo crescido) para a

satisfaccedilatildeo sexual Mas quando seu corpo se desenvolver ela o teraacute Descobre-se que natildeo

basta um instrumento para que tudo se resolva

O acesso agrave sexualidade eacute mais complexo e natildeo traz a completude esperada A crianccedila

soacute aceita a renuacutencia que perpassa a metaacutefora paterna (interdiccedilatildeo de incesto e assassina-

to) ou seja do gozo do Outro ndash materno- e o limite imposto pelo Nome-do-pai por ela

conter uma promessa O acesso ao prazer final citado por Freud em 1905 eacute o juramento

de que a adolescecircncia permite o acesso a esse gozo quando crescer O sujeito descobre

que o gozo genital eacute tambeacutem parcial e natildeo garante nenhuma relaccedilatildeo sexual possiacutevel

com o outro nos moldes que poderia ter sido a relaccedilatildeo com a matildee Acontece o primeiro

encontro com a constataccedilatildeo de que qualquer promessa de um gozo outro promete so-

mente a morte (Rassial 1999 1997b) Todo gozo possiacutevel eacute parcial Portanto a questatildeo

do acesso a genitalidade puacutebere natildeo eacute soacute o seu excesso mas tambeacutem a inaptidatildeo para

relaccedilatildeo sexual No ato sexual aparece agrave incompetecircncia do significante faacutelico e portanto

da pulsatildeo genital para fundar uma relaccedilatildeo sexual

De acordo com Rassial (1999) a mudanccedila do estatuto do corpo ocorre porque a genita-

lidade passa a ocupar uma posiccedilatildeo dominante no sujeito A puberdade muda o valor do

corpo agora genitalmente maduro e coloca o olhar do semelhante -natildeo dos pais- em

jogo no desejo Nesse sentido Rassial sustenta que haacute uma centralidade das questotildees da

identidade na adolescecircncia e utiliza a perspectiva lacaniana do estaacutedio do espelho para

trabalhar esse tema

362

O estaacutedio do espelho elaborado por Lacan (1949) demonstra a formaccedilatildeo do primeiro

delineamento do eu por meio de uma imagem virtual O bebecirc ainda imaturo no cam-

po motor e imerso no autoerotismo eacute pego de surpresa pelo juacutebilo de uma imagem

refletida no espelho A vivecircncia de um corpo unificado e da imagem como totalidade eacute

confirmada pelo olhar do Outro Trata-se de uma ldquoidentificaccedilatildeo no sentido pleno que a

anaacutelise atribui a esse termo ou seja a transformaccedilatildeo produzida no sujeito quando ele

assume uma imagemrdquo (p97) O estaacutedio do espelho eacute responsaacutevel pela constituiccedilatildeo do

eu ao mesmo tempo em que eacute alienante O bebecirc parte de uma imagem despedaccedilada do

corpo para uma identidade alienante de uma totalidade corporal que natildeo condiz com

a realidade Nesse momento a vertente da imagem especular e do Outro se unem na

estruturaccedilatildeo do sujeito enquanto clivado pelo significante O Outro diraacute marcando a

identificaccedilatildeo ldquoEste eacute vocecircrdquo

Eacute sob esse olhar do outro que o sujeito adolescente em um soacute depois do estaacutedio do

espelho vai realizar o trabalho de se reapropriar de uma imagem do corpo transforma-

da Haacute uma repeticcedilatildeo das primeiras identificaccedilotildees em um segundo tempo mas natildeo

eacute somente uma realizaccedilatildeo (identificar-se com genitor do mesmo sexo) eacute tambeacutem uma

confrontaccedilatildeo com as fixaccedilotildees (buscar novas identificaccedilotildees) A autonomia alcanccedilada pela

crianccedila soacute ocorre agrave custa de um Outro a matildee primordial que agora se tornara imaginaacute-

ria e deixa atraacutes de si alguns restos Ora o corpo acabado produto do estaacutedio do espelho

natildeo passa de uma arrumaccedilatildeo imaginaacuteria A puberdade faz a imagem do corpo infantil

bascular exigindo uma reconstruccedilatildeo genitalizada (Rassial 1997b)

A vacilaccedilatildeo da imagem especular traz como consequecircncia o desmoronamento da con-

sistecircncia parental imaginaacuteria do Outro (Rassial 1999) Para embasar essa posiccedilatildeo o

autor utiliza outro conceito o de Nome do Pai Eacute preciso que a matildee tenha sustentado o

lugar imaginaacuterio do pai permitindo o funcionamento da metaacutefora paterna e a atribui-

ccedilatildeo de um saber e um poder ao pai Assim o sujeito se introduz na loacutegica edipiana e

possibilita que depois de um Nome do Pai fundador outros nomes-do-pai se inscrevam

simbolicamente na sua histoacuteria Rassial (1997a) escolhe usar os nomes do pai no plural

para sustentar a ideia de que na relaccedilatildeo com o semelhante do Outro sexo os signifi-

cantes possam deslizar para aleacutem da metaacutefora paterna Eacute um trabalho da adolescecircncia

o de realizar uma ldquooperaccedilatildeo inventiva em que o sujeito deveraacute autorizar-se a si mesmordquo

(p42)

363Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais

Nesse sentido a adolescecircncia eacute um momento de um novo trabalho psiacutequico marcado

pela insuficiecircncia no Nome do Pai e das identificaccedilotildees Para se desligar da famiacutelia de

origem e realizar suas proacuteprias escolhas o adolescente se esforccedila para questionar a au-

toridade parental e fundar outro laccedilo social (deslocamentos do pai) Trata-se de inventar

um novo lugar fora da famiacutelia tendo em vista que o nome do pai sustentado ndashimagi-

nariamente- pela famiacutelia na infacircncia se mostra escasso na adolescecircncia Enfim Rassial

(1997b) propotildee conceituar a adolescecircncia atraveacutes do conceito de breakdown de pane

Como falamos anteriormente eacute a ldquopane na consistecircncia imaginaacuteria do Outrordquo que faz

com que os pais do adolescente despenquem de uma posiccedilatildeo ideal Eacute um momento de-

finitivo em que se renova no a posteriori as marcas da experiecircncia infantil em funccedilatildeo

de objetos que vatildeo ter um estatuto diferente na economia do sujeito (Melman 1999)

O trabalho adolescente se centra na produccedilatildeo de novos significantes reconhecendo a

filiaccedilatildeo mas desenlaccedilada da continuidade imaginaacuteria

Conclusatildeo

Ao abordar alguns autores com perspectiva teoacutericas diferentes sobre o tema da adoles-

cecircncia e psicanaacutelise constata-se que esta eacute compreendida como um trabalho psiacutequico

um movimento de elaboraccedilatildeo que natildeo trata dos efeitos da natureza e dos hormocircnios

mas da subjetividade A adolescecircncia eacute um tempo loacutegico um momento de re-signi-

ficaccedilatildeo e re-invenccedilatildeo da infacircncia marcada essencialmente pelas mudanccedilas corporais

pubertaacuterias e pelo desligamento das autoridades parentais Nesse encontro com o femi-

nino e com a incompletude da sexualidade o adolescente eacute intimado a buscar no mundo

novos investimentos libidinais e tomar uma posiccedilatildeo no sexual Ao ser convocado a ocu-

par esse novo lugar eacute feito ao adolescente uma exigecircncia de trabalho frente ao reencon-

tro (que jaacute fora encontrada mas adiada com a promessa edipiana) com a incompletude

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366

Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional

MariaIzabelTafuri

DioneLulaZavaroni

MariadoRosaacuterioDiasVarela

MariaCiciliadeCarvalhoRibas

ClaudeSchauder

JanaiacutenaFranccedila

A paternidade tem uma longa histoacuteria mas quase nenhum historiador

J Demos (1986)

367Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional

Introduccedilatildeo

O presente trabalho eacute parte integrante dos estudos desenvolvidos no acircmbito da pesquisa

internacional ldquoPrevenccedilatildeo em Perinatalidaderdquo coordenaccedilatildeo internacional de Dr Claude

Schauder da Universidade de Strasbourg-Franccedila em cooperaccedilatildeo cientiacutefica com o Brasil

China Canadaacute e Ruacutessia

A equipe de Brasiacutelia eacute coordenada pelas Professoras Dras Maria Izabel Tafuri e Dione

Lula Zavaroni do Departamento de Psicologia Cliacutenica da Universidade de Brasiacutelia e

pela Prof Dra Maria do Rosaacuterio Dias Varella da Universidade Paulista (UNIP) Em Re-

cife a equipe estaacute sendo dirigia pelas Professoras Dras Maria Cicilia de Carvalho Ribas

e Paulina Rocha da Universidade Federal de Recife e do CPPL (Centro de Pesquisa em

Psicanaacutelise e Linguagem)

O objetivo aqui eacute o de expor de forma sinteacutetica as diretrizes da pesquisa e discutir os

dados parciais obtidos com os homens durante o primeiro trimestre de gestaccedilatildeo do

futuro filho

DiretrizesdaPesquisaInternacional

O objetivo geral eacute o de conhecer as expectativas e as demandas das mulheres e dos ho-

mens durante o periacuteodo perinatal ateacute o primeiro ano de vida da crianccedila Tanto as mulhe-

res quanto os homens passam por transformaccedilotildees diversas segundo os eventos objeti-

vos e subjetivos durante o tempo da gravidez e apoacutes o parto As histoacuterias pessoais as de

suas famiacutelias o contexto do nascimento marcam sobremaneira o processo do tornar-se

matildee e do tornar-se pai (Merg 2001 Theacutevenot 2003 2006a Lesourd 2003 Willerval-

-Chevaleacuterias 1999 Schauder 2007) Leva-se em conta a evoluccedilatildeo das representaccedilotildees

de identidade sexual e de identidade de gecircnero das uacuteltimas deacutecadas durante o periacuteodo

gestacional (Dufour et Lesourd 2007) E ainda as representaccedilotildees de novas formas de

organizaccedilotildees das famiacutelias (Hurstel 1996 2001 Schauder 2000 2006 Casper et al

2006 Theacutevenot 2005 2006a)

Os resultados esperados podem ser situados em dois niacuteveis o teoacuterico que visa aprofun-

dar os conhecimentos sobre o trabalho psiacutequico singular das mulheres e dos homens

durante o periacuteodo perinatal quanto agraves representaccedilotildees do ldquotornarem-se paisrdquo O outro

368

niacutevel o operacional objetiva melhorar as ferramentas de avaliaccedilatildeo das demandas en-

contradas pelos homens e mulheres durante este periacuteodo elaborar proposiccedilotildees de pre-

venccedilatildeo e promoccedilatildeo em sauacutede mental em perinatalidade e na primeira infacircncia

Em relaccedilatildeo agrave amostra durante o periacuteodo da gravidez as entrevistas semi dirigidas estatildeo

sendo realizadas em trecircs momentos antes da 12ordf semana entre 4ordm e 6ordm mecircs e no fim da

gravidez entre o 8ordm e o 9ordm mecircs Em seguida a quarta entrevista apoacutes o nascimento da

crianccedila e a uacuteltima no primeiro ano de vida da crianccedila para observarmos os efeitos da

parentalidade sobre o desenvolvimento da crianccedila e dos pais

Quanto agrave metodologia iremos analisar os dados por meio de anaacutelise de conteuacutedo em

dois eixos de pesquisa o diacrocircnico e o sincrocircnico O primeiro para analisar a dimen-

satildeo do tempo e de seus efeitos sobre o sujeito a dimensatildeo singular ligada agrave constituiccedilatildeo

subjetiva tanto da mulher quanto do homem O sincrocircnico objetiva aproximar a di-

mensatildeo coletiva das representaccedilotildees das mulheres e dos homens comparadas segundo

os aspectos culturais dos paiacuteses envolvidos no projeto (Franccedila Canadaacute Brasil China e

Ruacutessia) classes sociais e meios soacutecio-econocircmicos

Terminologiaalgumasconsideraccedilotildees

Segundo Maria Ceciacutelia Pereira da Silva tradutora de uma importante obra de Solis-Pon-

ton (2006) o termo parentalidade foi criado no Brasil assim como na Franccedila (parentali-

teacute) e nos Estados Unidos (parenthood) por se tratar de um neologismo fundamental para

o entendimento do complexo processo do tornar-se pai e tornar-se matildee O neologismo foi

descrito pela primeira vez em 1956 por Therese Benedek nos Estados Unidos e poste-

riormente por Paul-Claude Racamier (1961) na Franccedila Paralelamente agrave criaccedilatildeo do neo-

logismo parentalidade o de paternalidade tambeacutem comeccedilou a ser utilizado para evocar

especificamente o aspecto dinacircmico e processual da vivecircncia do homem em tornar-se

pai O processo da paternalidade caracteriza-se pelo confronto vivenciado pelo homem

diante das transformaccedilotildees profundas de identidade e da revivecircncia de conflitos arcaicos

caracterizando-se como uma nova fase evolutiva da personalidade (Benedek1959)

Vale considerar que na pesquisa em curso os termos tornar-se pai e tornar-se matildee seratildeo

utilizados em detrimento do neologismo criado parentalidade por denotarem de forma

369Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional

mais sensiacutevel e individualizada o complexo processo de transformaccedilotildees pessoais dos

homens e das mulheres no periacuteodo perinatal

Tornar-se pai umdesafioparaamodernidade

Estudos empiacutericos sobre a famiacutelia e o casamento na contemporaneidade revelam que

apesar da diversidade e flexibilidade de modelos conjugais e arranjos familiares propos-

tos na atualidade existe um descompasso entre velhos e novos modelos de conjugali-

dade de vida familiar e de exerciacutecio da parentalidade (Diniz 2009 Jablonski 2009)

Com um nuacutemero cada vez maior de mulheres ingressando no mercado de trabalho e

conquistando a independecircncia econocircmica ocorreram novos arranjos familiares com

significativa mudanccedila nas relaccedilotildees entre homens e mulheres como a separaccedilatildeo entre

papeacuteis conjugais e papeacuteis parentais (Moraes 2001) Se de um lado o homem ainda

guarda consigo a imagem do pai provedor de outro as famiacutelias buscam se organizar

formando casais de dupla renda ou de dupla carreira Emerge entatildeo uma nova figura

paterna natildeo ancorada apenas no poder econocircmico (Souza 1994)

Muraro (1996) realizou um importante estudo de campo com 1269 homens e mulhe-

res do Rio de Janeiro Satildeo Paulo e Pernambuco Considerou que haacute uma forte tendecircncia

da mulher para trabalhar fora Segundo a autora 50 das mulheres estatildeo no domiacutenio

puacuteblico e reivindicam o compartilhamento do trabalho domeacutestico A autora tambeacutem

considerou que essa eacute uma tendecircncia que leva a uma modificaccedilatildeo na estrutura psiacutequica

da crianccedila futuro adulto transforma as organizaccedilotildees familiares e em uacuteltima instacircncia

a organizaccedilatildeo social

Ramires (1997) realizou um estudo sobre o exerciacutecio da paternidade em famiacutelias de

classe meacutedia urbana nucleares e monoparentais no estado do Rio Grande do Sul Den-

tre os dados apresentados pela autora o que mais chamou a atenccedilatildeo foi a queixa dos

homens sobre o monopoacutelio da matildee com a crianccedila e o sentimento de exclusatildeo deles nos

cuidados com os filhos Para o autor ainda permanece na cultura dessas famiacutelias o pa-

pel predominante do exerciacutecio da maternagem na criaccedilatildeo das crianccedilas

Dib (1997) identificou uma necessidade premente dos pais em se diferenciarem dos

proacuteprios pais no sentido de natildeo repetirem erros do passado em especial o distancia-

370

mento afetivo dos filhos e o papel secundaacuterio na educaccedilatildeo Segundo Jablonski (1999)

os papeacuteis de pai e de matildee natildeo fugiram muito ao convencional o pai interage de uma

forma fiacutesica em relaccedilatildeo aos cuidados materiais E interage menos intimamente falan-

do como nos jogos nas brincadeiras e na diversatildeo Os assuntos relacionados agrave educa-

ccedilatildeo proteccedilatildeo e afetividade caberiam exclusivamente agrave matildee

Para Diehl (2002) os homens demonstraram vontade em participar mais diretamente

da educaccedilatildeo e dos cuidados com os filhos e consideraram as necessidades da mulher

em natildeo viver apenas em funccedilatildeo da guarda dos filhos Outro estudo realizado em Porto

Alegre por Piccinini e al (2004) sobre as crenccedilas e as expectativas do papel paterno

na criaccedilatildeo dos filhos em idade preacute-escolar revelou a importacircncia para os pais contem-

poracircneos em participarem de forma mais ativa na vida dos filhos e se mostrarem mais

satisfeitos com a paternidade

Em um importante estudo realizado por Bornholdt Wagner e Staedt (2007) sobre a vi-

vecircncia da gravidez do primeiro filho na perspectiva paterna populaccedilatildeo do Rio de Janei-

ro constatou-se que na representaccedilatildeo dos papeacuteis masculinos e femininos prevaleceram

os estereoacutetipos de gecircnero que reforccedilam a dicotomia entre casais Muitos pais tiveram

maior necessidade de serem os principais provedores financeiros no nuacutecleo familiar

principalmente com a chegada dos filhos e tenderam a trabalhar mais para dar seguran-

ccedila financeira agrave famiacutelia Segundo este estudo os pais desejaram uma maior proximidade

e participaccedilatildeo durante a gestaccedilatildeo e no desenvolvimento dos filhos Dar suporte agrave com-

panheira em relaccedilatildeo ao atendimento das necessidades delas colocando muitas vezes

em segundo plano as suas proacuteprias foi uma das formas mais usuais encontradas pelos

homens para se sentirem mais proacuteximos da gravidez e do futuro filho

Um dado importante no estudo de Bornholdt et al (2007 ) que vem reforccedilar os achados

de Ramires (1997) foi o sentimento de exclusatildeo expresso pelos homens no periacuteodo da

gravidez com distintas variaccedilotildees de intensidade Alguns pais justificaram o sentimento

de exclusatildeo a partir das diferenccedilas de gecircnero e atribuiram agraves mulheres uma maior faci-

lidade no cuidado dos filhos como uma espeacutecie de habilidade natural feminina

371Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional

Amostraeanaacutelisedosdados

Caracteriacutesticas da Amostra para o presente estudo foram considerados os sujeitos do

sexo masculino (n = 17) cujas companheiras estavam no primeiro trimestre de gravidez

Estes sujeitos representam 4359 da amostra total da pesquisa que considera homens

e mulheres graacutevidas Os participantes foram recrutados em consultoacuterios privados de

ginecologistas e obstetras da regiatildeo e em hospitais puacuteblicos da cidade de Brasiacutelia e en-

torno e satildeo oriundos das classes sociais A B C e D A maioria da amostra tem mais de

12 anos de escolaridade

Em relaccedilatildeo ao estado civil 7059 dos participantes satildeo casados enquanto 2941 vi-

vem em uniatildeo estaacutevel Relativamente ao planejamento da gravidez 8235 dos sujeitos

relata o pla nejamento da gravidez e 1765 natildeo fizeram planejamentos Verificou-se

que 7058 da amostra afirmam que desejaram a gravidez enquanto 2942 dos su-

jeitos afirmam que aceitaram a gravidez porque aconteceu ou Deus mandou

Anaacutelise Diacrocircnica verificou-se que 94 dos homens tecircm expectativas em relaccedilatildeo aos

profissionais da sauacutede quanto os cuidados agrave gestante agraves condiccedilotildees para o parto (hos-

pital equipe de enfermagem etc) e agrave sauacutede do receacutem-nascido Esperam ter confianccedila

nos profissionais da sauacutede e para isso consideram importante a competecircncia e o co-

nhecimento teacutecnico a afetividade do profissional a continuidade dos cuidados desde a

gestaccedilatildeo ateacute o parto a atenccedilatildeo e a disponibilidade irrestrita Tais expectativas podem ser

evidenciadas nas seguintes falas

ldquoem relaccedilatildeo aos profissionais que vatildeo cuidar dela () espero que tenha atenccedilatildeo que a gente tenha um trabalho contiacutenuo principalmente do bebecirc Eu natildeo sei ateacute quando quando se desvincula do pediatra realmente eu natildeo seirdquo (P1)

ldquoeu acho que o mais importante eacute o suporte cientiacutefico neacute assim tranquumlilizar a matildee algumas vezessatildeo os mesmos profissionais que nos acompanham a S jaacute conhece a meacutedica dela haacute uns quinze anosrdquo (P5)

ldquoeu acompanhei jaacute todas as ecografias eu achei a profissional muito de confianccedila achei ela muito simpaacutetica muito receptiva () minha esposa escolheu a meacutedica porque jaacute conhecia ela do hospital e ela queria parto normal e sabia que essa meacutedica fazia parto normal () ela jaacute sabe quem vai ser o pediatra do bebecirc tambeacutemrdquo (P7)

372

Em relaccedilatildeo agrave categoria ldquoExpectativas em relaccedilatildeo ao si mesmordquo mais da metade dos

homens se colocou como coadjuvante (58) um terccedilo deles se sente pai desde o iniacutecio da

gestaccedilatildeo (30) e uma pequena percentagem se diz pai provedor (12)

No papel de coadjuvante o homem se vecirc como aquele que necessita acompanhar com-

preender e satisfazer as necessidades e desejos da mulher graacutevida Surgiram sentimen-

tos tanto positivos quanto negativos em relaccedilatildeo agrave funccedilatildeo de coadjuvante desempenhada

pelo homem Ora ele se mostrou contente e feliz por estar acompanhando a mulher

nas consultas meacutedicas ajudando-a a desempenhar tarefas como tambeacutem indicou certo

mal estar por ter que compreender e satisfazer as necessidades da graacutevida Mostrou-se

tambeacutem confuso em discernir as verdadeiras necessidades de uma mulher graacutevida

Muitas vezes a mulher apresenta queixas excessivas e lsquogravidez natildeo eacute doenccedilarsquo como

disse um dos sujeitos entrevistados Para alguns homens as queixas de preguiccedila sono

e cansaccedilo da mulher natildeo satildeo necessariamente da gravidez como se pode verificar nas

falas apresentadas a seguir

ldquota muito difiacutecil natildeo sei se foi por causa da gravidez comeccedilou ficar mais chata a coisa tem que saber entender o lado dela Eu nunca tive filho mas me falaram que mulher quando ta nessa fase realmenteah a gente tem que saber entender Eu to entendendo ela devagarrdquo (P6)

ldquonatildeo eacute todo dia que a gente tem a mesma paciecircncia a gente tambeacutem fica estressado sai cedo de casa passa duas horas dentro do ocircnibus com monte de gente barulhos essas coisas toda chega em casa agraves vezes ela quer conversar e sempre o estresse da gente natildeo tem coragem de chegar para conversar Pocirc o fulano ta cansado aiacute do mesmo jeito eu me sinto () Depois dessa gravidez parece que a gente taacute se afastandordquo(P 17)

ldquoo comportamento dela assim todo mundo sabe que a mulher quando engravida muda o comportamento neacute () o que me incomoda eacute a falta de paciecircncia dela em natildeo aceitar os enjocircos gravidez natildeo eacute doenccedila () os profissionais tinham que aconselhar mais nissordquo(P17)

Entre os homens que se sentiram pai desde o iniacutecio da gestaccedilatildeo surgiram referecircncias

quanto agrave filiaccedilatildeo agraves lembranccedilas da infacircncia em torno da figura paterna e questotildees sobre

a maneira como foram criados A maioria destes homens apresentou uma identifica-

ccedilatildeo positiva com o seu proacuteprio pai mas natildeo quer repetir os erros do passado como no

exemplo

373Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional

ldquoeu vou ser pai natildeo eu jaacute sou pai eacute natildeo tinha esse eu vou ser natildeo eu jaacute sou pai entatildeo eu jaacute sou pai neacute porque ali dentro jaacute bate jaacute tem uma vida jaacute eacute meu filho eacute um sentimento assim mais aprofundado Na minha ausecircncia ele fica agitado na minha presenccedila ele se acalma entatildeo acho que eacute assim uma base de seguranccedila de tranquumlilidade acho que eacute algo assim algo que vai te amadurecendo e hoje eu sei que haacute diferenccedila de ser pai o peso de ser pairdquo (P11)

ldquoesse sentimento eacute uma emoccedilatildeo inexplicaacutevel assim como meu pai falava natildeo tem como eacute um filho eacute um filhonatildeo eacute um objeto que vocecirc ganhouOacute ganhei uma bicicleta natildeo eacute isso eacute algo muito maiseacute igual matemaacutetica eacute infinitonatildeo tem como explicar natildeo tem caacutelculo natildeo tem peso neacute (P11)

Cramer e Palaacutecio-Espasa (1993) entendem que as projeccedilotildees e as expectativas de pais e

matildees em relaccedilatildeo ao filho satildeo muito semelhantes apesar de as mulheres vivenciarem

mais intensamente as transformaccedilotildees fisioloacutegicas da gestaccedilatildeo Poder-se-ia pensar en-

tatildeo que o conceito tradicional de bebecirc imaginaacuterio (Souleacute 1987) inicialmente formu-

lado para explicar as expectativas e representaccedilotildees que a matildee constroacutei acerca do bebecirc

mesmo antes de seu nascimento e ateacute de sua concepccedilatildeo (Szejer amp Stewart 1997) esteja

tambeacutem presente no psiquismo do pai

Em relaccedilatildeo aos homens classificados como pais provedores apareceu a necessidade de

atender agraves demandas mais concretas como por exemplo o caacutelculo financeiro do custo

de um filho a reforma da casa os moacuteveis a serem comprados etc Como se pode veri-

ficar nas falas a seguir

ldquoTudo taacute sendo novo Natildeo passa pela minha cabeccedila natildeo caiu a ficha que ela ta graacutevida () De vez em quando eu fico revoltado porque eu to desempregado aiacute eu comeccedilo a pensar que daqui uns dias a crianccedila vem e vai ter que comprar algumas coisasrdquo (P6)

ldquoE o que vocecirc faz Vocecirc deixa em creche deixa com babaacute (hellip) mas (hellip) haacute e quanto custa o bebecirc por mecircs rdquo (P7)

ldquoEu tenho trabalhado muito e agraves vezes quando eu paro em casa e penso eacute que tenho a noccedilatildeo exata do que eacute assim ser pairdquo (P9)

Anaacutelise Sincrocircnica O dado mais significativo encontrado foi a ausecircncia de expectativas

dos homens em relaccedilatildeo a eles mesmos diante da equipe de sauacutede no periacuteodo perinatal Ou

seja as expectativas dos homens foram direcionadas para a sauacutede da mulher e do bebecirc

Eles natildeo se colocaram para a equipe de sauacutede como sujeitos queixosos inseguros em

374

busca de informaccedilatildeo e aprendizagem quanto ao processo do tornar-se pai Aleacutem disso

natildeo se mostraram desejosos em obter orientaccedilotildees quanto agraves futuras accedilotildees parentais

Para os homens os profissionais da sauacutede cuidam da gestante e do bebecirc eles apenas

observam acompanham e datildeo suporte agrave gestante Em suma os homens natildeo se viram

como sujeitos a serem escutados cuidados eou educados a tornar-se pai Por outro lado

demonstram interesse nas orientaccedilotildees que os profissionais da sauacutede possam dar para

as graacutevidas

Nos centros puacuteblicos de sauacutede onde satildeo realizados os exames preacute-natais como tam-

beacutem nos consultoacuterios dos ginecologistas haacute uma carecircncia de redes de escuta para os

homens corroborada pelos estudos de Bornholdt et al (2007) Seria necessaacuterio sensibi-

lizar os profissionais de sauacutede para ver o homem como sujeito a ser escutado tratado e

acompanhado em suas especificidades

No Brasil foi realizado um interessante estudo sobre as causas possiacuteveis dos homens

procurarem menos os serviccedilos de sauacutede do que as mulheres (Gomes e Resende 2004)

Os autores reforccedilaram estudos que apontam as diferenccedilas de papeacuteis segundo o gecircnero

presentes no imaginaacuterio social Os cuidados com a sauacutede estatildeo muito mais voltados

para a mulher O sentimento de invulnerabilidade foi visto como um dos eixos da cons-

truccedilatildeo da masculinidade Esse mesmo estudo apontou para a falta de rede de unidades

de sauacutede especiacuteficas para o acolhimento do homem Os serviccedilos de sauacutede foram con-

siderados pouco aptos em absorver a demanda apresentada por esse segmento e as

campanhas de sauacutede puacuteblica natildeo se voltam para o puacuteblico masculino Tem havido uma

preocupaccedilatildeo maior do Ministeacuterio da Sauacutede no sentido de sensibilizar o homem a pro-

curar os centros de sauacutede para fazerem exames de rotina receberem vacinas fazerem

controle de doenccedilas crocircnicas como as de pressatildeo alta diabetes etc

Outro dado evidenciado pela anaacutelise sincrocircnica eacute o mal estar do homem face agrave vivecircncia do

ser coadjuvante O homem pareceu estar exposto a um fator de risco psicossocial por natildeo

encontrar escuta agraves suas inquietaccedilotildees pessoais no periacuteodo gestacional Ele se mostrou

em alguns casos ansioso e estressado sem vontade de conversar irritado cansado e in-

compreendido durante o periacuteodo gestacional Reclamou de forma sutil da necessidade

em ser mais compreensivo calmo flexiacutevel e companheiro da sua mulher entretanto

quem o compreende

375Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional

Foi possiacutevel visualizar o esforccedilo do homem em desenvolver capacidades psiacutequicas espe-

ciacuteficas aquelas referentes agrave repressatildeo de suas proacuteprias necessidades e desejos em fun-

ccedilatildeo do bem estar do outro no caso a graacutevida e o bebecirc O homem pareceu natildeo encontrar

espaccedilo entre os profissionais de sauacutede e nem mesmo entre os amigos familiares para

se queixar desse mal estar Parece faltar ao homem uma rede de escuta tanto dos pro-

fissionais da sauacutede como tambeacutem da famiacutelia e do grupo social no qual estaacute incluiacutedo o

que tambeacutem foi evidenciado nos trabalhos cirtados de Ramires 1997 Dib 1997 e Bor-

nholdt et al 2007 Por outro lado assim como apontado por Bornholdt et al (1997) os

dados da presente pesquisa tambeacutem apontaram para o contentamento e satisfaccedilatildeo dos

homens em desempenhar as funccedilotildees de companheiros e provedores

Segundo Vasconcellos (2003) face agraves importantes transformaccedilotildees contemporacircneas dos

papeacuteis de gecircnero observa-se ainda uma demanda cultural de maior implicaccedilatildeo do pai

no cenaacuterio puerperal A submissatildeo dos homens a esta nova ordem cultural suscita an-

guacutestias especificas ligadas agrave identidade de gecircnero masculino Um paradoxo se instala-

ria ao se adequar agrave demanda de ser sensiacutevel agrave experiecircncia da mulher o homem deve

recalcar seu proacuteprio conflito a perda de autonomia e a imersatildeo numa identidade femi-

nina primaacuteria (Ferreira Leal amp Maroco 2010 Budur Mathews amp Mathews 2005 Go-

mes e Resende 2004 Piccinini et al 2004) E mais recentemente Martini Piccinini e

Gonccedilalves (1999) descrevem a inveja inconsciente dos homens em relaccedilatildeo ao poder de

procriaccedilatildeo das mulheres como uma forma de identificaccedilatildeo com a gravidez eou com

o papel materno Trabalhos esses que nos ajudam a pensar no mal estar do homem ao

cumprir o papel de coadjuvante

A ambivalecircncia em relaccedilatildeo ao tornar-se pai surgiu tambeacutem em relaccedilatildeo agraves demandas

sociais sobre a eles sobre a escolha do nome a forma como a famiacutelia iraacute se organizar

sobre o sexo do bebecirc quando o bebecirc iraacute nascer etc Alguns homens se mostraram as-

sustados e ansiosos face agraves exigecircncias sociais desde o momento em que datildeo a notiacutecia da

gravidez As queixas mais frequentes em torno dessa ansiedade foram ldquofoi tudo muito

raacutepidordquo ldquoa ficha ainda natildeo caiu que eu vou ter um filhordquo ldquoeu tenho medo de contar pras

pessoas da gravidez ainda ta tudo muito recenterdquo ldquoeu tou assustado fica todo mundo

perguntando e aiacutejaacute escolheu o nome como eacute que vai serrdquo

376

Consideraccedilotildeesfinais

As pesquisas sobre os possiacuteveis transtornos psicoloacutegicas passiacuteveis de ocorrerem nos

homens durante o periacuteodo perinatal e poacutes-nascimento do bebecirc satildeo ainda escassas se

comparadas aos estudos existentes sobre os quadros psicopatoloacutegicos jaacute descritos em

relaccedilatildeo agraves mulheres As representaccedilotildees psicossociais de pai ausente excluiacutedo e pouco par-

ticipativo presentes na nossa amostra precisam ser mais refletidas no contexto cultural

social e meacutedico psicoloacutegico da realidade atual brasileira Entretanto os dados aponta-

ram para uma demanda reprimida dos homens em relaccedilatildeo agrave funccedilatildeo paterna a de serem

mais participativos mais envolvidos na educaccedilatildeo dos filhos Em relaccedilatildeo aos profissio-

nais de sauacutede os homens demandaram uma atenccedilatildeo mais individualizada e um espaccedilo

cliacutenico para serem escutados e tratados

Em suma a criaccedilatildeo de programas de sauacutede em perinatalidade e primeira infacircncia pre-

cisa levar em conta as expectativas queixas e demandas dos homens em relaccedilatildeo aos

profissionais da sauacutede agraves famiacutelias agraves mulheres em fim ao contexto social nos dias

de hoje As referecircncias passadas tanto para os profissionais da sauacutede quanto para os

pais natildeo satildeo mais suficientes para dar conta das demandas do tornar-se pai nos dias de

hoje Refletir o complexo processo do ser pai e ser matildee assim como o de ser profissional

da sauacutede em perinatalidade eacute certamente um dos grandes desafios dos homens e das

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380

Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

IlenoIziacutediodaCosta

NeriacuteciaReginadeCarvalho

Introduccedilatildeo

Os serviccedilos de psiquiatria ateacute a deacutecada de 90 trabalhavam acreditando ser cliacutenica e eti-

camente correto retardar o tratamento em situaccedilotildees de crise psicoacutetica ateacute a definiccedilatildeo de

um diagnoacutestico a ser estabelecido (McGlashan amp Cols 2001) Contrariamente evidecircn-

cias que apontam a intervenccedilatildeo precoce como novo paradigma de tratamento em vez

de um simples paliativo vecircm questionando e alterando esse panorama (Amminger amp

Cols 2002) o que contribui para o aumento de estudos sobre o iniacutecio da manifestaccedilatildeo

da ldquopsicoserdquo criando-se divisotildees didaacuteticas natildeo necessariamente sindrocircmicas sobre seu

desenvolvimento como primeiro episoacutedio primeira crise e proacutedromos Todas aliaacutes

381Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

pontos centrais da discussatildeo que ora empreenderemos sobre intervenccedilatildeo precoce e iniacute-

cio do ldquoadoecimento mentalrdquo37

A psicose eacute em geral definida como uma perturbaccedilatildeo grave da realidade o que eacute evi-

denciado pela falta de discernimento na natureza patoloacutegica de alucinaccedilotildees ou deliacuterios

ou pela desorganizaccedilatildeo cognitiva e comportamental fazendo parte das siacutendromes de

transtornos psicoacuteticos como esquizofrenia e transtorno esquizoafetivo pondendo sur-

gir tambeacutem em outros transtornos psiquiaacutetricos em especial os transtornos afetivos

(APA 1994)

Ao se fazer uma revisatildeo histoacuterica do que se teoriza e se pesquisa sobre psicose e esqui-

zofrenia observa-se que esta aponta para dois subgupos principais os que apresentam

ldquocaracteriacutesticas preacute-moacuterbidas precoces e bem delineadas desde a mais tenra infacircnciardquo e

os que seguem ldquodesenvolvimento normal durante a infacircnciardquo e apenas posteriormente

apresentam as primeiras alteraccedilotildees no comportamento (Foller Torrey e cols 1994 Mur-

ray e cols 1992 Neumann e cols 1995 Rossi e cols 2000)

Estudos retrospectivos tecircm demonstrado que a maioria das pessoas com esquizofrenia

ou em crise psicoacutetica experienciaram uma fase prodrocircmica antes da primeira crise

(McGorry e cols 2001) independente do subgrupo ao qual pertenccedilam Os proacutedromos

satildeo portanto nesta perspectiva como veremos adiante ldquoos primeiros sinais e sintomas

que antecedem uma crise psicoacuteticardquo A maior parte dos transtornos psicoacuteticos manifes-

ta-se inicialmente na adolescecircncia eou idade adulta jovem e se relaciona diretamente agrave

vulnerabilidade para recaiacutedas e decliacutenio do funcionamento social (Lincoln amp McGorry

1995)

Para muitos autores a adolescecircncia e a idade adulta jovem constituem o intervalo do

ciclo de vida em que se manifestam mais frequumlentemente os primeiros indiacutecios de

transtornos psicoacuteticos e particularmente da esquizofrenia (Cooper amp Cols 1987 Mari

2001 Mueser amp McGurk 2004 OMS 2001 Kosky amp Hardy 1992) Aberastury (1991)

37 Trabalho resultante de financiamentos de pesquisa MCTCNPqMS (20082010) e CNPq (20102012)

382

dentro da perspectiva psicanaliacutetica descreveu-as como luto e Marcelli e Braconnier

(2007) como alteraccedilotildees intrapsiacutequicas na adolescecircncia evidenciando trecircs principais

dimensotildees que se operam nessa fase a corporal (o corpo infantil perdido) a imagem

idealizada dos pais (a questatildeo da identidade) e os recursos fantasmaacuteticos proacuteprios da

infacircncia (o equiliacutebrio entre o investimento narciacutesico e o investimento objetal)

Portanto nessa fase eacute comum se apresentar comportamentos e queixas semelhantes

agravequeles descritos como sendo de proacutedromos (Huber amp Cols 1980 Eiguer 1985) Nem

sempre eacute claro distinguir entre um ldquoquadro psicoacuteticordquo ou uma ldquocrise da adolescecircnciardquo

podendo um transtorno inicial dar lugar a um dinamismo psiacutequico saudaacutevel que foi

interrompido momentaneamente ou em outros contextos tais situaccedilotildees levam o ado-

lescente a mergulhar progressivamente numa inquietaccedilatildeo e anguacutestia desestruturantes

(Marcelli amp Braconnier 2007)

Desta feita se os proacutedromos natildeo satildeo apenas marcadores mas estaacutegios em que se per-

cebe retro ou prospectivamente antes de seu iniacutecio ser identificado o paradigma interna-

cional da intervenccedilatildeo precoce defende que mais precoce e eficaz deve ser a intervenccedilatildeo

Seguindo esse raciociacutenio Eaton e Cols (1995) argumentaram que se tais sinais e sinto-

mas fossem tomados indubitavelmente como preditores de um transtorno natildeo seriam

proacutedromos e sim a manifestaccedilatildeo precoce daquele transtorno especiacutefico e enquanto

possiacuteveis preditores com certo grau de confiabilidade

O presente trabalho tem como objetivo problematizar o conceito de proacutedromos enquan-

to preditor de crise psicoacutetica dentro deste paradigma e (re)apresentar esta problemati-

zaccedilatildeo a partir da discussatildeo do construto ou de uma possiacutevel fenomenologia da crise

psiacutequica grave pelo que argumentamos Uma vez que os proacutedromos constituem uma

ldquoporta de acessordquo ao comportamento eou agrave vivecircncia de pessoas em crise podemos

antecipar nossa posiccedilatildeo de que eles estatildeo em nossa experiecircncia na entrada ldquosala de

entradardquo da ldquopossiacutevel casa da doenccedila mentalrdquo de forma latente e volaacutetil quanto a possi-

bilidades de desenvolvimentos e desfechos Contudo a maior parte da literatura da aacuterea

aqui coligida restringe-se a seu aparecimento e tratamento com pouca ou nenhuma

atenccedilatildeo aos aspectos subjetivos relacionais e afirmamos fenomenologicamente de

sua manifestaccedilatildeo

383Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

Assim faz-se necessaacuterio problematizar natildeo soacute o uso das intervenccedilotildees ateacute entatildeo de-

senvolvidas mas tambeacutem dos termos e conceitos que as embasam assim como seus

diversos contextos de significaccedilatildeo uma vez que existe uma grande quantidade de es-

tudos com descriccedilotildees e classificaccedilotildees prodrocircmicas em sua maioria pautada somente

no teor psicopatoloacutegico nosograacutefico tradicional em detrimento dos aspectos subjeti-

vos relacionais sistecircmicos ou mesmo fenomenoloacutegicos dessa experiecircncia positivos e

carregado de dimensotildees e potencialidades saudaacuteveis Procuraremos entatildeo apresentar

uma primeira aproximaccedilatildeo sobre a experiecircncia do Grupo de Intervenccedilatildeo Precoce em

Primeiras Crises do Tipo Psicoacutetica (GIPSI) do Laboratoacuterio de Psicopatologia e Lingua-

gem do Departamento de Psicologia Cliacutenica do Instituto de Psicologia da Universidade

de Brasiacutelia (UnB) com os estudos e serviccedilos em intervenccedilatildeo precoce nas psicoses evi-

denciadas nos estudos da aacuterea para apontar um campo de reflexatildeo estudo e pesquisa

necessariamente fenomenoloacutegico conclamando ldquopor uma experiecircncia fenomenoloacutegica

genuiacutena da crise psiacutequica graverdquo mais que da ldquodoenccedila mental a priorirdquo Desde 2001 o

grupo vem desenvolvendo estrateacutegias nas modalidades de acolhimento e atendimento

individuais familiares e atualmente psicossociais38 em situaccedilotildees de primeiras crises

psiacutequicas graves como apresentamos a seguir

ProacutedromosoldquogritodealertardquodoSofrimentoPsiacutequicoGrave

Segundo a perspectiva da Intervenccedilatildeo Precoce internacional o conceito de proacutedromos

se refere ao periacuteodo de tempo que antecede uma crise psicoacutetica ou a uma esquizofre-

nia manifestada atraveacutes de sinais e sintomas Contudo os proacutedromos enquanto sinal

semioloacutegico39 tambeacutem podem ser observados em outros momentos do ciclo de vida

que natildeo necessariamente vatildeo levar sintomatologicamente agrave ldquodoenccedila mentalrdquo Por isso

faz-se urgente uma discussatildeo que retome os vaacuterios contextos em que o conceito e a

vivecircncia se encontram e as consideraccedilotildees aos mesmos Neste trabalho indicamos ini-

cialmente a anaacutelise de alguns elementos conceituais da psicopatologia e da psiquiatria

38 Como define a Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira e o campo da Sauacutede Mental atual no Brasil

39 Tomamos aqui a posiccedilatildeo semioloacutegica de que os sinais assim como os sintomas satildeo signos ou fenocircmenos com muacuteltiplas possibilidades de significaccedilatildeo Desta feita quando falamos em sinais semioloacutegicos estamos defendendo esta qualidade do signo anterior agrave da sintomatologia

384

objetivando do ponto de vida da filosofia e da psicologia cliacutenica ampliar sua definiccedilatildeo

e os elementos que soacute aparecem no discurso ou na praacutetica cliacutenica

O termo vem do grego prodromos (pro antes em frente de para adiante dromos accedilatildeo de

correr lugar de corrida curso) e quer dizer ldquoaquilo que antecede um eventordquo ou aquilo

que leva a ele (Fava amp Kellner 1991 Carvalho e Costa 2006) Eacute derivado da medicina

(Yung amp Stanley 1989) e se refere aos primeiros sinais e sintomas que antecedem as

manifestaccedilotildees caracteriacutesticas de um quadro agudo e bem delineado de uma doenccedila

(Yung amp McGorry 1996) Eacute um conceito em sua essecircncia retrospectivo isto eacute validado

quando do diagnoacutestico ou manifestaccedilatildeo - de sinais e sintomas inequiacutevocos - de uma

patologia (Yung e McGgorry 1996 Yung e Cols 2004 Neubeck 2008)

Nesta discussatildeo os proacutedromos definem dois momentos da psicose aquele que antece-

de a primeira crise propriamente dita e as situaccedilotildees anteriores a cada recidiva (McGorry

amp Edwards 2002 Carvalho e Costa 2006) Para Keith e Mathews (1991) seria um

grupo de comportamentos heterogecircneos relacionados com o iniacutecio da psicose Yung e

McGorry (1996) empreenderam a mais vasta revisatildeo de literatura ateacute o momento (73

artigos e trecircs manuais) sobre identificaccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo de proacutedromos defendendo

a tese corroborada pelos autores pesquisados Trata-se de um processo que envolve al-

teraccedilotildees da experiecircncia e do comportamento muito mais do que uma lista de sinais e

sintomas (Huber e Cols 1980 Hafner e Cols 1992 Hambrecht e Cols 1994)

CaracterizaccedilatildeoeCurso

Segundo Jackson (1994) a confiabilidade de alguns itens da fase prodromica depende

do instrumento a ser utilizado bem como do julgamento de quem observa Aleacutem disso

quando esses criteacuterios satildeo utilizados em populaccedilotildees de primeiro episoacutedio psicoacutetico eles

natildeo parecem ser especiacuteficos para esquizofrenia mas tambeacutem para outros transtornos

(Jackson 1995) Jackson e Cols (1995) propuseram que pacientes com diagnoacutestico de

esquizofrenia tecircm mais probabilidade de apresentar proacutedromos do que os pacientes

diagnosticados com outros transtornos ainda que esses sintomas natildeo fossem exclu-

sivos da esquizofrenia daiacute o fato de se reconhecer ldquoproacutedromos de psicoserdquo e natildeo de

esquizofrenia

385Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

Outro fator que torna o uso de criteacuterios bastante problemaacutetico eacute que sintomas atenua-

dos de psicose ou experiecircncias tidas como tal satildeo vivenciados pela populaccedilatildeo em geral

em taxas superiores agravequelas encontradas em pacientes e participantes de pesquisas (Pe-

ters e Cols 1999 Van Os e Cols 2000 2001 Peters 2001)

O iniacutecio da doenccedila seria quando o paciente vivencia pela primeira vez os proacutedromos e

o iniacutecio do episoacutedio quando dos primeiros sintomas psicoacuteticos (Keshavan amp Schooler

1992) A identificaccedilatildeo de um iniacutecio passa pela sobreposiccedilatildeo das informaccedilotildees do relato

do proacuteprio sujeito de seus familiares e amigos e do julgamento do profissional que os

atendeu sobre a crise Como satildeo em sua maioria tomados em retrospectiva se baseiam

na maneira como satildeo relembrados e relatados Assim aqueles aspectos que foram mais

marcantes tendem a ficar na memoacuteria de forma mais viacutevida indicando que os fatores

e fatos processuais correntes que natildeo da ordem da crise satildeo em geral negligenciados

ou parcamente abordados Essas condiccedilotildees tem implicaccedilatildeo direta no prognoacutestico sobre

a situaccedilatildeo Contudo eacute sempre um momento fecundo para se acessar o conteuacutedo afetivo

e existencial do indiviacuteduo

A tabela a seguir proposta por Yung e McGorry (1996) nos daacute uma ideia da quantidade

de sinais e sintomas que podem ser tomados enquanto proacutedromos E tem caraacuteter ilus-

trativo pois haacute uma grande quantidade de artigos cientiacuteficos atuais que trazem outras

listas e quadros demonstrativos de sinais e sintomas prodrocircmicos Esses mesmos arti-

gos apresentam outras delimitaccedilotildees de proacutedromos muitas mais do que seratildeo aborda-

das nesse trabalho contudo a ideia central permanece

386

Tabela 1 Resumo da Revisatildeo da Literatura (Yung e McGorry 1996)

Estudos de sinais e sintomas prodrocircmicos observada em ampla revisatildeo de literatura

Sintomas ldquoneuroacuteticosrdquo ansiedade intranquilidade raiva irritabilidade

Sintomas relacionados ao humor depressatildeo anedonia culpa ideias suicidas oscilaccedilotildees de humor

Mudanccedila na voliccedilatildeo apatia perda de desejo aborrecimento perda de interesse fadiga perda de energia

Mudanccedilas cognitivas distuacuterbios da atenccedilatildeo dificuldade para concentraccedilatildeo preocupaccedilatildeo devaneio bloqueio do pensamento abstraccedilatildeo reduzida

Sintomas fiacutesicos queixas somaacuteticas perda de peso perda do apetite distuacuterbios do sono

Outros sintomas manifestaccedilotildees obsessivo compulsivas manifestaccedilotildees dissociativas sensibilidade interpessoal aumentada mudanccedilas no sentido do eu dos outros ou do mundo mudanccedilas na mobilidade anormalidades da fala anormalidades perceptuais desconfianccedila mudanccedila no afeto

Mudanccedilas comportamentais deterioraccedilatildeo no funcionamento na escola no trabalho ou em outros papeacuteis isolamento social impulsividade comportamento estranho agressividade comportamento perturbador

Loebel e Cols (1992) consideram os proacutedromos como o intervalo de tempo que vai do

iniacutecio de qualquer conduta atiacutepica ateacute o iniacutecio de sintomas propriamente psicoacuteticos

Conduta atiacutepica enquanto qualquer alteraccedilatildeo percebida como diferente ou incomum

agravequele indiviacuteduo e sintomas positivos como as manifestaccedilotildees disfuncionais ou exces-

sivas que se percebe Essas duas concepccedilotildees apontam para outro grande desafio do

conceito sua delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal Todavia grande parte dos autores divide o

curso do transtorno psicoacutetico mormente a esquizofrenia em trecircs fases 1) periacuteodo preacute-

-moacuterbido 2) fase prodrocircmica e 3) psicose aguda (Haas amp Sweeney 1992 Keshavan amp

Schooler 1992 Loebel amp Cols 1992)

O periacuteodo preacute-moacuterbido eacute identificado como o funcionamento psicossocial individual

antes do iniacutecio da doenccedila Tal concepccedilatildeo eacute recente e baseada em estudos utilizando a

Escala de Ajustamento Preacute-moacuterbido (Premorbid Ajustment Scale - PAS Cannon-Spoor

amp Cols 1982) que avalia o funcionamento social sexual e instrumental durante os

387Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

diferentes periacuteodos de seu desenvolvimento Os uacuteltimos periacuteodos satildeo descritos por Abe-

rastury (1991) como tiacutepicos de manifestaccedilotildees prodrocircmicas pois apontam mudanccedilas no

ciclo de vida

O termo preacute-moacuterbido pode se referir a um estado normal ou natildeo patoloacutegico o que pode

dar margens a imprecisatildeo e enganos porque essa identificaccedilatildeo costuma se referir ao

que eacute observado no comportamento e na funcionalidade o que natildeo necessariamente

reflete a disposiccedilatildeo subjetiva do indiviacuteduo Um subtipo de ldquodeterioraccedilatildeo preacute-moacuterbidardquo

tem sido descrito como a primeira manifestaccedilatildeo da psicose em que caberia a utilizaccedilatildeo

dos termos preacute-iniacutecio ou preacute-proacutedromo (Larsen amp Cols 1996) Apontaremos aqui para

uma anterioridade aos primeiros episoacutedios que caminham no sentido do vislumbra-

mento da estruturaccedilatildeo do proacuteprio sofrimento psiacutequico que em sua exarcebaccedilatildeo como

defenderemos a seguir estruturam o sofrimento psiacutequico grave e sua subsequente ma-

nifestaccedilatildeo na forma de crise

Essa dificuldade de delimitaccedilatildeo eacute mais um aspecto a ser considerado na operacionaliza-

ccedilatildeo do conceito pois se pensarmos que os proacutedromos se referem a um periacuteodo anterior

agrave primeira crise psicoacutetica e tambeacutem a cada recidiva entatildeo o conceito comporta um teor

tanto de aumento da vulnerabilidade quanto um caraacuteter de preacute-psicose

Yung e McGorry (1996) identificam ainda dois outros padrotildees de caracterizaccedilatildeo prodrocirc-

mica como outpost syndromes e the hybridinteractive model O primeiro foi descrito por

Huber e cols (1980) e Koehler e Sauer (1984) e deu origem ao termo Sintomas Baacutesicos

ndash a ser abordado no proacuteximo capiacutetulo ndash primeiramente descrito por Docherty e cols

(1978) como um estado residual observado em pacientes esquizofrecircnicos crocircnicos com

teor predominante de queixas subjetivas O segundo como a proacutepria definiccedilatildeo jaacute deixa

antever seria uma variaccedilatildeo interativa entre os dois padrotildees jaacute descritos combinado com

sintomas baacutesicos resultando em um modelo hiacutebrido que nos daacute uma variaccedilatildeo dos

possiacuteveis desfechos para uma situaccedilatildeo de crise em que haacute proacutedromos e reforccedila ainda

mais o caraacuteter de abrangecircncia de aspectos a serem considerados em tais casos Uma

configuraccedilatildeo do curso dos prodroacutemos mais didaacutetica e linear que a anterior foi proposta

por Larsen e Cols (1996) Eacute adequada para visualizarmos uma linha do tempo sobre as

modificaccedilotildees na vivencia e no comportamento contudo obedece a um modelo sauacutede

doenccedila natildeo dialeacutetico

388

Figura 2 Curso precoce da esquizofrenia (Larsen e Cols 1996)

No entanto Yung e McGorry (1996) descreveram na linha do tempo quatro marcos

importantes geralmente percebidos no relato retrospectivo da crise 1) momento em

que o proacuteprio sujeito percebe alguma alteraccedilatildeo em si mesmo que ainda natildeo eacute sintoma

psicoacutetico 2) momento em que um familiar ou amigo percebe alguma alteraccedilatildeo tambeacutem

natildeo psicoacutetica 3) quando o proacuteprio sujeito percebe alguma alteraccedilatildeo que jaacute se considera

sintoma psicoacutetico 4) quando familiares ou amigos percebem alteraccedilatildeo consideradas jaacute

como sintomas psicoacuteticos

Keshavan e Schooler (1992) em sua revisatildeo de artigos publicados sobre primeiro episoacute-

dio psicoacutetico referem-se agrave psicose enquanto uma siacutendrome uma vez que seus sintomas

satildeo diversos e variam ao longo do tempo com iniacutecio de definiccedilatildeo incerta e diagnoacutestico

que requer subsequentes revisotildees O periacuteodo da siacutendrome abrangeria todos os sintomas

que a caracterizariam (sintomas positivos e negativos) incluindo todos os episoacutedios e

sua relativa duraccedilatildeo de sintomas (fase prodrocircmica e residual) As fases prodrocircmica e

residual satildeo definidas em relaccedilatildeo temporal do primeiro episoacutedio psicoacutetico prodrocircmica

eacute a que antecede o episoacutedio propriamente dito e a residual a que se segue natildeo sendo

esclarecido se num segundo episoacutedio a fase prodrocircmica pode coincidir ou natildeo com a

fase residual

Uma vez que nem toda fase prodrocircmica identificada culmina em crise psicoacutetica como

eacute a nossa posiccedilatildeo alguns autores utilizam a expressatildeo ldquoestado mental de riscordquo (at-risk

mental state) para identificar esse momento que merece atenccedilatildeo para a necessidade de

se intervir o que implica que essa variaacutevel cliacutenica natildeo vai necessariamente se tornar um

transtorno (McGorry amp Singh 1995)

Segundo Yung e McGorry (1996) apesar de os primeiros estudos sistematizados sobre

a duraccedilatildeo prodrocircmica investigar indistintamente pacientes em diferentes momentos

389Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

do adoecimento mental - o que implica amostras bastante heterogecircneas - um aspecto

se fez constante no histoacuterico desses sujeitos a duraccedilatildeo do periacuteodo prodrocircmico antes do

primeiro episoacutedio mostrou-se mais longa de meses a anos quando comparada com

o tempo das recidivas algumas semanas raramente ultrapassando um mecircs (Herz amp

Melville 1980 Birchwood amp Cols 1989 Tarrier amp Cols 1991)

Alguns outros autores enfatizaram que assim como sinais e sintomas podem ser des-

critos e padronizados em escalas de avaliaccedilatildeo indiviacuteduos em estado preacute-psicoacutetico fre-

quentemente jaacute tecircm - sob um ponto de vista fenomenoloacutegico - alteraccedilotildees nas experi-

ecircncias subjetivas natildeo descritas pela psicopatologia (Lidz 1973 Parnas amp Cols 1998

Moller amp Husby 2000) Esse estado de autorreferecircncia foi estudado por vaacuterios autores

e caracterizado tambeacutem por alteraccedilotildees de cogniccedilatildeo afeto consciecircncia e atos motores

(Berrios 1996)

Nesse artigo dividimos as principais frentes que discutem proacutedromos em dois eixos 1)

caracteriza a perspectiva que utiliza criteacuterios advindos dos manuais diagnoacutesticos DSM

e CID aleacutem de pesquisas e centros que buscam identificar populaccedilotildees vulneraacuteveis a

partir de marcadores geneacuteticos e ldquosinais e sintomasrdquo mais proacuteximos da classificaccedilatildeo in-

dicial e 2) utiliza a perspectiva advinda das experiecircncias subjetivas e sintomas baacutesicos

Eixo1EstadoMentaldeRisco

Alguns autores utilizam a expressatildeo ldquoestado mental de riscordquo para identificar pessoas ou

grupos vulneraacuteveis segundo criteacuterios dinacircmicos ou estruturais para intervir pois entre

as ressalvas agrave utilizaccedilatildeo do conceito de proacutedromos eacute que ele natildeo sustenta justamente

um caraacuteter interventivo (Cullberg 2006 Moller 2001 Neubeck 2007) Para contornar

essa questatildeo alguns centros de intervenccedilatildeo precoce em psicose criaram outros termos

tais como clinical high risk (CHR) ou schizophrenia like psychosis (SLP) mas que manteacutem

a mesma essecircncia e objetivo dos termos escolhidos

Os criteacuterios que definem os grupos de alto risco e os de altiacutessimo risco satildeo uma tenta-

tiva de oferecer paracircmetros alternativos de identificaccedilatildeo de populaccedilotildees que podem vir

a desenvolver psicose com o cuidado de natildeo tratar-se indistintamente aqueles que natildeo

precisariam de intervenccedilatildeo

390

Grupo de Alto-riscoModelo Geneacutetico Tradicional - High Risk GroupTradicional Genetic Model

Essa frente de trabalho se baseia em estudos tipo follow-up envolvendo pessoas com his-

toacuterico de doenccedila mental na famiacutelia em regra esquizofrenia de preferecircncia um parente

em primeiro grau - acompanhado desde o iniacutecio da adolescecircncia (Nagler 1985 Fish

amp Cols 1992 Johnstone amp Cols 2001) O meacutetodo propotildee um estudo etioloacutegico para

identificar preacute-morbidade direcionando-as para serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (Olin amp

Mednick 1996)

Pode-se caracterizar o HR (high risk) como grupo de sujeitos (em pesquisa) ou usuaacuterios

(de serviccedilos psicossociais) que apresentem fatores de risco tipo traccedilo (trait risk factors)

e fatores de risco tipo estado mental (state risk factors) ou seja sobrepotildeem aspectos

estruturais (personalidade soacutecio-econocircmicos meacutedicos etc) e dinacircmicos (aspectos fun-

cionais do sujeito no periacuteodo de tempo de investigaccedilatildeo) No primeiro caso verifica-se

histoacuterico de transtorno psicoacutetico na famiacutelia e traccedilos de personalidade esquizotiacutepica No

segundo presenccedila de sinais e sintomas psicopatoloacutegicos ou seja proacutedromos (Gottes-

man amp Shields 1982 Claridge 1987 Meehl 1989)

Um dos maiores desafios desse estudo satildeo os casos de identificaccedilatildeo de indiviacuteduos que

se preenchem os requisitos mas natildeo manifestam posteriormente crise psicoacutetica As-

sim eacute necessaacuterio considerar a possibilidade de se identificar casos falso-positivos ou fal-

sos falso-positivos que podem progredir para uma psicose por duas razotildees 1) as mudan-

ccedilas no estado mental representam vulnerabilidade mas para outra patologia subjacente

(ansiedade depressatildeo ou crise situacional) 2) reforccedilo nas situaccedilotildees de enfrentamento

aumento de apoio social e outras circunstacircncias podem prevenir retardar ou modificar

as alteraccedilotildees que indicam um estado mental de risco O fato de esses grupos natildeo se

distinguirem transversalmente tem implicaccedilotildees na mediccedilatildeo de seus marcadores (Yung

amp Cols 1996) Esse tipo de estudo tem se mostrado fraacutegil no que tange o alto niacutevel de

identificaccedilotildees de falso-positivos e pouco uacuteteis para a estrateacutegia da intervenccedilatildeo preco-

ce sendo mais adequado para identificaccedilatildeo psicopatoloacutegica de esquizofrenia e outros

transtornos psicoacuteticos

Grupo de Altiacutessimo Risco Estrateacutegias de Especificaccedilatildeo - Ultra High Risk Group (UHR)Close-in Strategies

391Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

Essa abordagem eacute clinicamente orientada na problemaacutetica dos jovens que estatildeo enfrentan-

do sinais e sintomas precursores de crise (Eaton amp Cols 1995) Essa terminologia segundo

seus precursores pretende causar menos impacto negativo comparado com o uso do termo

proacutedromo que eacute tradicionalmente aplicado em retrospecto e quando o transtorno em ques-

tatildeo emerge plenamente (Phillips amp Cols 2000) Uma vez que haacute pessoas que manifes-

tam quadros sindrocircmicos que se assemelham agravequeles da psicose mas que natildeo parecem

precisar de cuidados (Van Oslen amp Cols 2001) e outras que vatildeo desenvolver o trans-

torno e apresentam sintomas leves anguacutestia e decliacutenio do funcionamento eacute necessaacuterio

diferenciar esses dois grupos e oferecer tratamento a uns sem descartar os outros (Yung

amp McGorry 1996) Sob essa perspectiva um indiviacuteduo deve apresentar um nuacutemero de

condiccedilotildees para ser incluiacutedo nesse grupo que natildeo apenas fatores geneacuteticos

Essa frente de trabalho cliacutenico em sauacutede mental foi desenvolvida pela Avaliaccedilatildeo Pessoal

e Avaliaccedilatildeo de Crise (The Personal Assessment and Crisis Evaluation - PACE) que combina

fatores de risco para psicose com sinais e sintomas de fases prodrocircmicas de transtornos

psicoacutetico Os criteacuterios para URH (ultra high risk) abordam uma pessoa jovem entre 14

e 29 anos encaminhada a um serviccedilo cliacutenico e que se enquadre em um ou mais criteacute-

rios dos seguintes grupos

Grupo 1 - Sintomas Psicoacuteticos Atenuados (Attenuated Psychosis Group)

Jovens que apresentaram sintomas psicoacuteticos em intensidade e frequecircncia insuficiente para uma identificaccedilatildeo positiva e possiacutevel intervenccedilatildeo

Grupo 2 - Sintomas Psicoacuteticos Breves Limitados ou Intermitentes (Brief Limited Inter-

mittent Psychotic Symptoms - BLIPS Group)

Jovens em risco de psicose devido a um histoacuterico recente de sintomatologia franca com remissatildeo espontacircnea (sem uso de antipsicoacutetico) em uma semana

Grupo 3 - Vulnerabilidade (Vulnerability Group)

Jovens em risco de psicose devido a uma combinaccedilatildeo de fatores de risco e

deterioraccedilatildeo significativa funcional

A diferenccedila entre os dois grupos seriam um tecircnue limiar em que o HR identifica pes-

soas com risco para esquizofrenia com vieacutes mais geneacutetico enquanto que o UHR indiviacute-

duos com risco iminente de crise psicoacutetica (Yung amp McGorry 1996) Esses serviccedilos de

intervenccedilatildeo indicam que jovens usuaacuterios sob tais criteacuterios de admissatildeo tecircm ateacute 40 de

392

chance de apresentar episoacutedios psicoacuteticos nos 12 meses seguintes ao ingresso apesar

de terapia de apoio administraccedilatildeo da situaccedilatildeo e uso de medicamento antidepressivo se

necessaacuterio Essa porcentagem significativa de transiccedilatildeo para a psicose fornece suporte

para validar os criteacuterios de altiacutessimo risco como identificadores de populaccedilotildees em fase

prodrocircmica

Entrevista Estruturada para Siacutendromes Prodrocircmicas (Strutuctured Interview for Prodromal Syndromes - SIPS)

O grupo de pesquisa em proacutedromos da Universidade de Yale desenvolveu dois instrumen-

tos para avaliar e monitorar esses fenocircmenos transversalmente e ao longo do tempo a

Entrevista Estruturada para Siacutendromes Prodrocircmicas (Structured Interview for Prodromal

Syndromes - SIPS McGlashan amp Cols 2001 Miller amp Cols 2002 Rosen amp Cols 2002) e

a Escala de Sintomas Prodrocircmicos (Scale of Prodromal Symptoms - SOPS Miller amp Cols

1999 McGlasahn amp Cols 2001) Esses instrumentos tecircm por objetivo fornecer medi-

ccedilatildeo sistemaacutetica da presenccedilaausecircncia de estados prodrocircmicos avaliar a gravidade dos

sintomas prodrocircmicos transversal e longitudinalmente e definir o limite operacional da

psicose (Miller amp Cols 1999)

A SIPS inclui a SOPS um questionaacuterio de histoacuterico familiar (Andreasen amp Cols 1977)

a Escala Global de Avaliaccedilatildeo de Funcionamento - GAF (Hall 1995) e um checklist para

Transtorno de Personalidade Esquizotiacutepica (APA 1994) Inclui ainda definiccedilotildees ope-

racionais para trecircs siacutendromes prodrocircmicas - apresentadas na seccedilatildeo anterior Criteacuterios

de Siacutendromes Prodrocircmicas (Criteria of Prodromal Syndromes - COPS) e uma definiccedilatildeo

operacional para o iniacutecio da psicose Eacute um dos mais amplos instrumentos para pesquisa

de pacientes em crise atual que tiveram uma crise recente ou que estatildeo em risco de

entrar em crise ou seja o instrumento abrange um percurso de proacutedromos de crise

e de recidivas Consiste em um roteiro de entrevista semi-estruturada destinada a avaliar

prospectivamente os sintomas e sinais sugestivos de proacutedromos para psicose Uma vez

que houve identificaccedilatildeo de siacutendrome prodrocircmica utiliza-se a SOPS para avaliaacute-la ao longo

do tempo observando quanto tempo transcorreu desde a aplicaccedilatildeo e qual a evoluccedilatildeo dos

sintomas

A SOPS eacute utilizada quando atraveacutes da utilizaccedilatildeo da SIPS identifica-se uma situaccedilatildeo de crise

e eacute composta por cinco itens para sintomas positivos sintomas negativos sintomas de de-

393Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

sorganizaccedilatildeo e itens para sintomas gerais Avalia ainda intensidade e grau de desorganiza-

ccedilatildeo desses sintomas A grande contribuiccedilatildeo desse instrumento se deve ao fato de combinar

vaacuterios pequenos roteiros para ancorarem uma contextualizaccedilatildeo mais fidedigna da realidade

em que o sujeito estaacute inserido Apesar de se tratar de um instrumento de semiologia meacute-

dica a maneira como a utilizaccedilatildeo desses instrumentos eacute feita possibilita avaliar aspectos

subjetivos alteraccedilotildees da vivecircncia e outros aspectos de cunho fenomenoloacutegico

Vale enfatizar que as conceituaccedilotildees e instrumentos aqui apresentados se pautam em

intervenccedilotildees bem ao modelo psiquiaacutetrico tradicional baseado em iacutendices e tabelas em

que aspectos dinacircmicos do comportamento satildeo contemplados quando da manifestaccedilatildeo

inequiacutevoca de uma crise psicoacutetica Dessa feita da forma como esta discussatildeo tem sido

apresentada percebe-se que o conceito de proacutedromos tem seu universo de definiccedilatildeo

circunscrito agrave doenccedila mental ou aos serviccedilos de assistecircncia jaacute bem delimitados Nes-

se contexto os sintomas seriam as manifestaccedilotildees inespeciacuteficas e os sinais os iacutendices

que cumprem a funccedilatildeo classificatoacuteria com ecircnfase nas siacutendromes com o intuito de se

identificar indiviacuteduos com transtornos mentais Isso reforccedila o teor de causalidade do

conceito Ainda que se utilizem termos como estado mental de risco sintomas prodrocirc-

micos fase prodrocircmica essa diversidade natildeo reflete a abrangecircncia do fenocircmeno aleacutem

de provocar duacutevidas e ambiguidades de compreensatildeo

Igualmente a reduccedilatildeo do fenocircmeno em sintomas e criteacuterios reforccedila a ideia defendi-

da por aqueles que trabalham com o conceito num vieacutes psiquiaacutetrico tradicional se os

proacutedromos por definiccedilatildeo satildeo tomados em retrospectiva sendo sua concepccedilatildeo enquan-

to tal vinculada agrave manifestaccedilatildeo de uma crise sua funccedilatildeo de detecccedilatildeo eacute circunscrita a

um momento miacutenimo de intervenccedilatildeo Nessa perspectiva o atendimento psicoloacutegico

ou de psicoterapia se delineia dentro das accedilotildees acessoacuterias de minimizaccedilatildeo de danos e

funcionalidade privilegiando-se a psicoeducaccedilatildeo e a terapia cognitivo-comportamental

sendo a intervenccedilatildeo eacute primordialmente medicamentosa Alguns autores satildeo enfaacuteticos

em afirmar que essas estrateacutegias satildeo paliativas e apenas retardariam o curso da psicose

com o que concordamos

394

Eixo2ProacutedromoseFenomenologia

A abordagem dessa frente de estudos foi se delineando agrave medida que o estudo em

psicopatologia das entidades nosoloacutegicas enquanto iacutendices excluiu as discussotildees do ca-

raacuteter subjetivo das experiecircncias dos indiviacuteduos Contudo o aumento da quantidade de

estudos em intervenccedilatildeo precoce nas psicoses nas uacuteltimas quatro deacutecadas reabriu esse

debate Desde o iniacutecio da teorizaccedilatildeo sobre esquizofrenia a literatura refere alteraccedilotildees

na vivecircncia e no comportamento com teor subjetivo marcante Contudo estudos mais

recentes mostraram que tais caracteriacutesticas tambeacutem satildeo encontradas em outros trans-

tornos psicoacuteticos ou natildeo e em pessoas normais (sic) conforme Andreasen e Cols (1985)

e Harrow e Cols (1985) posiccedilatildeo predominante que adotaremos apoacutes a apresentaccedilatildeo de

nossos dados

A psicopatologia fenomenoloacutegica nessa perspectiva eacute tambeacutem chamada de Psicopato-

logia da Primeira e Segunda Pessoa (Monti e Stanghellini 1996 Parnas e Cols 1998

e Parnas e Zahavi 2002 Parnas e cols 1998 2000 Moller e Husby 2000 Moller e

Husby 2000 Klosterkotter e col 2001 Parnas e Handest 2003 Sass e Parnas 2003

Parnas e Handest 2003 2005) Da primeira pessoa uma vez que se trata da experi-

ecircncia preacute-reflexiva experiecircncia pura dos estados mentais e corporais Um sentimento

de imersatildeo no mundo circundante que Merleau-Ponty chamou de presenccedila objeto e

sujeito enquanto dois momentos abstratos de uma uacutenica estrutura Essa subjetividade eacute

corporificada (embodied) pois emerge da relaccedilatildeo de um tipo particular de organismo em

interaccedilatildeo com o meio em que vive - humano e fiacutesico - e nesse sentido eacute localizada em

um contexto (embeded) situada no mundo A totalidade a qual remete essa perspectiva eacute

a totalidade do corpo vivido (Lieb) animado subjetivo experienciado no ciclo accedilatildeoper-

cepccedilatildeo da exploraccedilatildeo do meio pelo organismo vivo que tambeacutem remete ao corpo como

objeto (koumlrper) corpo fiacutesico espacial (Parnas amp Handest 2003 Serpa Jr 2007) Eacute tam-

beacutem perspectiva de segunda pessoa porque se ficaacutessemos apenas na ideia da primeira

pessoa seria impossiacutevel a comunicaccedilatildeo o que colocaria em xeque sua aplicabilidade

Eacute por meio dela que tomamos conhecimento da experiecircncia por isso ela eacute reflexiva e

395Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

intersubjetiva Nessa perspectiva a corporeidade eacute apreendida numa zona de mediaccedilatildeo

entre o corpo vivido (ipseidade40) e o corpo objetivo (alteridade)

A aproximaccedilatildeo fenomenoloacutegica no presente trabalho dirige-se inevitavelmente agrave bus-

ca em Husserl (2006) da atitude esperada para compreender a experiecircncia do vivido

Husserl abandona a atitude natural e a tese da realidade dada imediatamente Esse

movimento obedece ao terceiro sentido do termo fenomenologia o primeiro seria da

psicopatologia descritiva e o segundo da psicopatologia descritiva dos estados de cons-

ciecircncia O salto qualitativo que opera no terceiro momento em relaccedilatildeo aos outros dois

eacute a intencionalidade da consciecircncia sendo sempre consciecircncia de alguma coisa natildeo haacute

consciecircncia no vazio da mesma forma que a consciecircncia se debruccedila sobre si mesmo

ou seja eacute sempre consciecircncia de si antes de ser de algo Essa possibilidade de mediaccedilatildeo

eacute feita pela intersubjetividade (Serpa Jr 2007)

ExperiecircnciasAnocircmalasSubjetivasTranstornodoEuedoSensoComum

Segundo Spitzer (1988) a maneira fundamental de se identificar proacutedromos para es-

quizofrenia seria atraveacutes do transtorno do Eu e do Senso comum Esses transtornos se

sobrepotildeem mais ou menos aos conceitos de despersonalizaccedilatildeo desrealizaccedilatildeo deliacuterio

de referecircncia entre outros categorizados por Bleuler como ldquoautismordquo Bleuler contudo

natildeo conseguiu fornecer uma descriccedilatildeo satisfatoacuteria da sintomatologia de autismo e por-

tanto classificou como um sintoma complexo fundamental Para a fenomenologia o

autismo natildeo eacute um sintoma no sentido do modelo meacutedico mas sim um fenocircmeno que eacute

reconhecido no espaccedilo intersubjetivo (Tatossian 2006) Tafuri (2003) reforccedila e amplia

esta discussatildeo ao demonstrar psicanaliacuteticamente que Bleuler ao criar o termo autismo

subtraiu do termo freudiano auto-erotismo o essencial da constituiccedilatildeo primordial da es-

trutura subjetiva do ser humano qual seja o erotismo constitutivo da psicossexualidade

do sujeito humano leia-se da afetividade e da subjetividade humana

40 A caracteriacutestica da ipseidade eacute que o homem se acha sempre separado do que eacute por toda espessura do ser que ele natildeo eacute O homem se anuncia a si do outro lado do mundo e volta a se interiorizar a partir do horizonte o homem eacute um lsquoser das lonjurasrsquo A ipseidade faz parte da filosofia eacutetica de Ricoeur (1990)

396

Essa questatildeo de autoevidecircncia do senso comum se relaciona diretamente agrave questatildeo

da intersubjetividade Uma vez que natildeo existe sujeito fora da linguagem e de uma co-

munidade o senso comum consiste em uma marca social possibilitando situaccedilotildees de

confianccedila e pertencimento dentro do grupo Tanto que quando algum fenocircmeno natildeo se

encaixa no esquema de senso comum natildeo se questiona o esquema e sim o fenocircmeno

O senso comum eacute a habilidade de ver as coisas numa perspectiva adequada distinguir

entre o que eacute relevante ou natildeo provaacutevel ou natildeo e principalmente distinguir entre o que

eacute verdadeiro ou falso A falha no senso comum pode se manifestar por meio de uma

falta de vitalidade (suchness) e sentimento do mundo do que eacute adequado e em falta de

sentido das ldquoregras do jogordquo no comportamento humano

Gadamer (2009) apresenta o conceito de senso comum sob as seguintes condiccedilotildees 1)

em sua relaccedilatildeo entre cogniccedilatildeo e praacutexis sendo a praacutexis em sentido lato natildeo em oposiccedilatildeo

agrave de cogniccedilatildeo mas como forma de lidar com o mundo na relaccedilatildeo entre mediaccedilatildeo e

imediaccedilatildeo 2) enquanto questionamento do que eacute oacutebvio e do que parece oacutebvio e 3) na

constituiccedilatildeo da intersubjetividade do mundo

Sass (2004 citado por Leal 2007) afirma que o senso comum ou evidecircncia natural tem

trecircs aspectos entrelaccedilados um senso de Eu preacute-reflexivo (ipseidade) uma imersatildeo preacute-

-reflexiva no mundo e uma ligaccedilatildeo com os outros de forma igualmente natildeo reflexiva

Esses fenocircmenos se datildeo na perspectiva da primeira pessoa daquilo que se revela como

nosso Quando a experiecircncia assim se apresenta consideramos como manifestaccedilatildeo do

proacuteprio eu

EscaladeAvaliaccedilatildeodeSintomasBaacutesicosdeBonn(TheBonnScalefortheAssessmentofBasicSymptoms-BSABS)

Estas pesquisas surgiram na deacutecada de 1960 na Alemanha e focalizaram-se nas expe-

riecircncias natildeo psicoacuteticas de alteraccedilatildeo afetiva cognitiva perceptiva e corporal enfatizando

que para a detecccedilatildeo precoce e intervenccedilatildeo na esquizofrenia trabalha com a observa-

ccedilatildeo de que alteraccedilotildees cognitivas afetivas e sociais ocorrem muitos anos antes de um

primeiro episoacutedio psicoacutetico e podem ser reconhecidos pela pessoa afetada nesta fase

inicial (Phillips amp Cols 2000) Essas alteraccedilotildees vivenciadas pelo sujeito satildeo denomina-

das ldquosintomas baacutesicosrdquo e descritos em grande detalhe por Gerd Huber e colaboradores

397Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

(Klosterkotter 1997 2001) com base em estudos em longo prazo de acompanhamento

o que influenciou significativamente os conceitos de esquizofrenia nos paiacuteses de liacutengua

alematilde

O BSABS representa medidas de distuacuterbios do pensamento linguagem percepccedilatildeo es-

tresse afeto energia concentraccedilatildeo memoacuteria reatividade emocional relaccedilotildees sociais e

expressotildees natildeo verbais Por meio da utilizaccedilatildeo da BSABS afirma-se que eacute possiacutevel na

ausecircncia de proacutedromos excluir um caso subsequente de esquizofrenia em 96 e na

sua presenccedila predizecirc-lo em 70 (Larsen amp Cols 2001) Alguns dos sintomas que su-

gerem proacutedromos para esquizofrenia satildeo incapacidade de dividir atenccedilatildeo interferecircncia

e bloqueio de pensamento distuacuterbios da fala receptiva distuacuterbio da fala expressiva

distuacuterbios do pensamento abstrato ideias de referecircncia instaacuteveis e captaccedilatildeo da atenccedilatildeo

por detalhes do campo visual (Klosterkoumltter amp Cols 1997)

Em outra pesquisa utilizando a BSABS para verificar a prevalecircncia de alteraccedilotildees da

experiecircncia subjetiva em pacientes com esquizofrenia residual e transtorno bipolar em

remissatildeo (DSM-IV) em ambos os grupos o transtorno de experiecircncia do Eu foram

os de maior significado (Parnas amp Handest 2003 Parnas amp Cols 1991) Essas e ou-

tras evidecircncias levam os pesquisadores dessa vertente a afirmar que transtornos do Eu

satildeo especiacuteficos do espectrum da esquizofrenia (Parnas e Bovet 2001 Parnas e Handest

2003 Stanghellini 2000) e acabam por sugerir que os sintomas baacutesicos se encaixam

na discussatildeo fenomenoloacutegica e de transtorno do senso comum

AvaliaccedilatildeodeExperienciasAnocircmalasSubjetivas(EASE-ExaminationofAnomalousSelf-Experience)

Trata-se de um roteiro de entrevista contendo uma lista de sintomas que abrange 57

itens com cinco dimensotildees principais (1) cogniccedilatildeo e fluxo de consciecircncia (2) consciecircn-

cia de eu e presenccedila (3) experiecircncias corporais (4) transitivismodemarcaccedilatildeo (5) reo-

rientaccedilatildeo existencial Uma parte significativa dos itens coincide com a BSABS Alguns

itens da EASE satildeo parecidos aos da SIPS

A EASE natildeo possui perguntas preacute-estipuladas para investigaccedilatildeo dos fenocircmenos ao

contraacuterio segue o mesmo princiacutepio da SIPS de descriccedilatildeo detalhada de cada sintoma

398

mediante exemplos ilustrativos operando uma pontuaccedilatildeo gradual de sintomas de acor-

do com a frequecircncia e severidade Esses itens refletem alteraccedilatildeo na experiecircncia de eu

caracterizada por distanciamento ou hiper-reflexividade em relaccedilatildeo aos proacuteprios pen-

samentos e experiecircncias corporais No entanto ao contraacuterio da SIPS a EASE tem um

foco exclusivo nas anomalias da experiecircncia de eu e conteacutem uma gama de fenocircmenos

que natildeo satildeo contemplados pelos instrumentos anteriores O objetivo do instrumento eacute

operacionalizar sintomas que estatildeo relacionados com o fenocircmeno da ipseidade

Goldenstein (2007) atenta para a grande dificuldade de se ter os sintomas subjetivos

descritos de forma espontacircnea na cliacutenica e aponta em princiacutepio um sentimento de

vergonha e desmoralizaccedilatildeo habitualmente relatado o que exige investigaccedilatildeo expliacutecita

Haveria tambeacutem segundo o autor uma limitaccedilatildeo semacircntica para expressar fenocircmenos

que do ponto de vista fenomenoloacutegico satildeo preacute-reflexivos Contudo quando tal tipo

de aproximaccedilatildeo se torna possiacutevel eles seriam facilmente verbalizados e reconhecidos

internamente (insight) salvo quando se tratar de sintomas psicoacuteticos Essa ressalva eacute

justamente o que pretendemos questionar neste trabalho

Davidsen (2009) semelhantemente afirma que por a EASE se tratar de um instru-

mento de avaliaccedilatildeo qualitativa a profundidade da investigaccedilatildeo depende da interaccedilatildeo

entre sujeito da vivecircncia e o cliacutenicopesquisador da capacidade de se ouvir e fazer os

questionamentos pertinentes dependendo tambeacutem da capacidade do sujeito e intros-

pecccedilatildeo para verbalizar suas experiecircncias principalmente se levarmos em conta que eacute

justamente essa capacidade que se encontra bloqueada Uma queixa aparentemente su-

perficial de fadiga dificuldade de concentraccedilatildeo humor deprimido por exemplo pode

na verdade ser um relato de sintomas subjetivos

Eacute importante frisar que um conflito entre o sujeito e a sociedade por si soacute natildeo eacute o bas-

tante para constituir um distuacuterbio mental Reconhecer que qualquer classificaccedilatildeo diz

respeito aos transtornos e natildeo aos indiviacuteduos que os manifestam implica em acreditar

que os indiviacuteduos que compartilham um mesmo transtorno se comportam de modo

idecircntico

399Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

OConstrutodeSofrimentoPsiacutequicoeaantecedecircnciadacrisepsiacutequicagrave

Sofrimento deriva etimologicamente do grego pherein e do latim suferro significa ldquore-

signaccedilatildeo toleracircnciardquo mas tambeacutem a accedilatildeo de ldquosuportar permitir por toleracircnciardquo A palavra

dor por sua vez designa ldquosofrimento fiacutesico ou moralrdquo e o verbo do qual deriva (dolore)

significa ldquosofrerrdquo (Marty 2004 citado por Costa 2010) permitindo-nos falar de crises in-

tensas com a mesma consideraccedilatildeo essencial de ser um fenocircmeno existencial humano

com peculiaridades e contextos proacuteprios que pode ser manifesto em indiviacuteduos ou nas

relaccedilotildees (Costa 2003 2007)

O sofrimento psiacutequico grave se reporta a toda manifestaccedilatildeo aguda da anguacutestia huma-

na (seja pela linguagem seja pelo comportamento) que natildeo eacute - ou natildeo tem sido - bem

compreendida Natildeo se trata de negar que exista esta diferenccedila radical mas antes tentar

resgatar pela criacutetica analiacutetica da linguagem e da fenomenologia o espaccedilo necessaacuterio

para que esta diferenccedila como tal se revele e permaneccedila passiacutevel de muacuteltiplas aborda-

gens (Costa 2010a) Assim entendemos o sofrimento psiacutequico como sendo a) algo

essencial e inerente a todo ser humano b) que se constroacutei e eacute expresso nas relaccedilotildees

(afetivas sociais e culturais) c) que demanda delimitaccedilatildeo em cada particularidade d) eacute

simbolizado de forma diferente em cada sujeito e e) que portanto no caso do sujeito

ldquotido como psicoacuteticordquo existe um particularidade a ser entendida estudada e respeitada

aleacutem de demandar o desenvolvimento de formas de dar continecircncia apoio e cuidado

Antes de se atender ao apelo aristoteacutelico ldquocategorizadordiagnosticanteclassificadorrdquo

da complexidade das manifestaccedilotildees afetivas humanas (Costa 2010b)

ExperiecircnciadeProacutedromosnoGIPSIdossintomasaossinaisdesofrimentopsiacutequico

O Grupo de Pesquisa e Intervenccedilatildeo Precoce nas Primeiras Crises do Tipo Psicoacutetica

(GIPSI) foi criado em 2001 no Centro de Atendimento e Estudos Psicoloacutegicos (CAEP)

do Instituto de Psicologia da UnB pelo autor principal deste trabalho objetivando es-

truturar um espaccedilo de atendimento de serviccedilos psicoloacutegicos especialmente psicotera-

pia para ldquoos pacientes psiquiaacutetricosrdquo ou ldquoos indiviacuteduos em crise psiacutequica agudardquo (Ma-

nual GIPSI 2010) Hoje o GIPSI eacute composto por uma equipe inter e multidisciplinar

em Psicologia Psiquiatria Serviccedilo Social Enfermagem Sauacutede Coletiva e Terapia Ocu-

400

pacional dentre outros que desenvolvem pesquisas e serviccedilos de avaliaccedilatildeo acompanha-

mento e intervenccedilatildeo junto a indiviacuteduos em primeiras crises do tipo psicoacuteticas por noacutes

denominada de ldquosofrimento psiacutequico graverdquo

O grupo atende indiviacuteduos em primeira crise psicoloacutegica grave seja como primeiro

episoacutedio (significando estaacutegio inicial) seja como primeira internaccedilatildeo (primeira inter-

venccedilatildeo) que revele manifestaccedilotildees psicoloacutegicas de profunda repercussatildeo (afetiva emo-

cional relacional) em si proacuteprio na famiacutelia ou no seu contexto relacional imediato que

procura a rede de sauacutede mental em BrasiacuteliaDF que se encaixem nas seguintes condi-

ccedilotildees idade entre 13-55 anos de idade com sintomas ou manifestaccedilotildees prodrocircmicas pela

primeira vez hospitalizados pela primeira vez ou seja sem histoacuteria de internaccedilatildeo ante-

rior ter famiacutelia disponiacutevel para acompanhar o cliente identificado e com compromisso

de comparecer aos atendimentos solicitados e crise natildeo ter causa orgacircnica detectada

(por abuso de drogas lesotildees traumatismo etc)

Apoacutes a fase de acolhimento na qual natildeo haacute um tempo preacute-estabelecido o viacutenculo tera-

pecircutico pode ser iniciado e as primeiras estrateacutegias de cuidado satildeo desenvolvidas Pas-

sa-se para a fase de acompanhamento objetivando a compreensatildeo da complexidade do

primeiro episoacutedio psicoacutetico Nesta fase satildeo utilizados quando necessaacuterio instrumentos

de avaliaccedilatildeo do quadro psiacutequico e psicopatoloacutegico relacional da dinacircmica familiar e o

mapeamento social para possibilitar a estruturaccedilatildeo de estrateacutegias de sauacutede para o cui-

dado acabando por se constituir num plano terapecircutico individualizado como demanda

a poliacutetica nacional brasileira

O GIPSI atua na precocidade em muacuteltiplas dimensotildees pois acredita que o circuito psi-

quiaacutetrico atual a carecircncia de rede de serviccedilo em sauacutede mental o paradigma biomeacutedico

satildeo prevalentes no cuidado dos profissionais de sauacutede mental em especial no Distri-

to Federal evidenciando aspectos em nosso entendimento fomentam complicadores

como a primeira crise psicoacutetica sendo atendida prioritariamente nas emergecircncias psi-

quiaacutetricas apenas com o recurso meacutedico e medicamentoso os sintomas psicoacuteticos das

primeiras crises sendo avaliados de forma estaacutetica desconsiderando a complexidade do

sofrimento psiacutequico o cuidado estar reduzido apenas no sujeito em si o uacutenico recurso

de cuidado na crise ser a internaccedilatildeo psiquiaacutetrica a produccedilatildeo de um mito social da crise

como perigoso produzindo distanciamento do sujeito em sofrimento com sua dinacircmi-

ca de vida social

401Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

SobreumacaracterizaccedilatildeoinicialdeproacutedromosecrisespsiacutequicasatendidasnoGIPSI

A seguir apresentamos resumidamente alguns dados de pesquisas recentes do grupo

A primeira resultou no relatoacuterio teacutecnico encaminhado ao CNPq (GIPSI 20082010)

analisadas as entrevistas de acolhimento os atendimentos (individual e familiar) e a

aplicaccedilatildeo de instrumentos citados acima que restou por traccedilar um perfil soacutecio-demo-

graacutefico e descrever aspectos relevantes sobre as crises vivenciadas Nossa clientela ateacute a

presente data se configura como sendo de jovens adultos (ateacute 30 anos no caso dos ho-

mens e acima deste no caso das mulheres) de cor branca ou parda com predominacircn-

cia de orientaccedilatildeo religiosa cristatilde em sua maioria nascidos no Distrito Federal (Brasiacutelia

e Cidades Sateacutelites) no caso dos homens e nas cidades do entorno do DF no caso das

mulheres solteiros a maioria residentes no Distrito Federal de escolaridade entre os

ensinos fundamental e meacutedio com uma certa prevalecircncia de estudantes com rendas

entre baixa e meacutedia

No que tange a caracterizaccedilatildeo da crise em si ela foi em geral referida com um tempo

maior que dois anos sendo na sua maioria referida como a primeira sem nenhuma

internaccedilatildeo psiquiaacutetrica natildeo sabendo as pessoas diretamente envolvidas (cliente e pa-

rentes) referir ou especificar suas causas com um maciccedilo apoio ou preocupaccedilatildeo fami-

liar e quando buscou tratamento em sua maciccedila maioria este foi do tipo psiquiaacutetrico

Na maioria dos proacutedromos referidos prevaleceram os distuacuterbios do sono anguacutestia rai-

vairritabilidade retraimento social desconfianccedila atenccedilatildeo e concentraccedilatildeo reduzidas e

humor depressivo Quanto aos sintomas prodromicos a maioria referiu deliacuterios mania

de perseguiccedilatildeo comportamento e discurso desorganizados alucinaccedilotildees (sintomas po-

sitivos) e isolamento social abulia embotamento afetivo e falta de interesse geral como

sintomas negativos Uma anaacutelise resumida de nossos dados evidencia que a despeito

dos sinais e sintomas prodrocircmicos tiacutepicos das crises do tipo psicoacutetica as condiccedilotildees

pessoais familiares e psicossociais se apresentam dentro da ldquonormalidade tiacutepicardquo das

demais pessoas Quanto ao exame psiacutequico observamos que as manifestaccedilotildees mais

tiacutepicas ou correntes se apresentam em consonacircncia ou em decorrecircncia com os prodro-

mos (sinais e sintomas) referidos e experenciados

Parte de nossos estatildeo em consonacircncia no que tange aos prodromos em geral com

aqueles encontrados na literatura internacional nos levando a pensar em um vieacutes miacuteni-

402

mo na comparaccedilatildeo do sofrimento psiacutequico grave no Brasil em relaccedilatildeo agravequele que nos

tem servido de referecircncia internacional ateacute o presente momento Poreacutem os contextos

familiares e psicossociais assim como suas formas de manejo relacionais apontam

para como ateacute certo ponto era esperado do ponto de vista cultural para uma especifici-

dade relacional de nossa clientela especiacutefica quando combinamos com dados os demo-

graacuteficos e efetivo-emocionais antes descritos

A segunda pesquisa se refere a uma dissertaccedilatildeo de mestrado (Costa 2011) que atraveacutes

do meacutetodo de Rorschach no Sistema Compreensivo avaliou os clientes do grupo que

haviam sido diagnosticados anteriormente como psicoacuteticos e que apresentavam qua-

dros caracteriacutesticos de primeiras crises do tipo psicoacutetica e apontaram para afetividade

adequada aos padrotildees esperados no Brasil (dados normativos do Rorschach) baixo iacuten-

dice de agressividade percepccedilotildees peculiares mas sem graves distorccedilotildees que possam

comprometer o funcionamento adequado - mais que isso oferecendo possibilidade de

desenvolvimento de seus potenciais criativos bom niacutevel de cooperaccedilatildeo ausecircncia de

traccedilos obsessivos ou hipervigilantes (paranoacuteia) baixo iacutendice de ideaccedilatildeo suicida (Costa

2011)

Apontaram ainda para heterogeneidade dos perfis analisados e ausecircncia de criteacuterios

suficientes para o estabelecimento de suspeita de traccedilos do tipo psicoacutetico significativos

na maioria dos sujeitos Foi observada a existecircncia de uma seacuterie de traccedilos indicativos

de sofrimento psiacutequico grave que poderiam ou natildeo evoluir para um quadro de maior

gravidade devido agrave falta de recursos internos que esses indiviacuteduos apresentam caso

os sujeitos natildeo recebam atendimento adequado Uma possibilidade para que esses

sujeitos tenham sido erroneamente diagnosticados como psicoacuteticos eacute que possa ter

ocorrido uma anaacutelise raacutepida da lista de sinais e sintomas que foram agrupados num

eixo diagnoacutestico por similaridade

Diante de tais dados mesmo que preliminares e a serem aprofundados com a experiecircn-

cia acumulada e o aumento do quantitativo de clientes atendidos pelo grupo apontam

para questionamentos conceituais de acolhimento da crise ou do sofrimento psiacutequico

e mesmo de apontamento para a construccedilatildeo de um modelo possiacutevel de abordagem pe-

culiar da crise ou do sofrimento psiacutequico grave

403Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

Porumafenomenologiadacrisepsiacutequicagravecuidadodiferenccedilaresponsabilidadeealteridade(maisque-ouantes-daldquopreacute-psicoserdquoldquoprimeiroepisoacutediordquooudaldquodoenccedilamentalrdquo)

A partir das ideias de Husserl (2006) Heidegger (1977 ldquoo cuidado com o simplesrdquo)

Levinas (2009a) e filoacutesofos da diferenccedila41 como Foucault (2010) e Derrida (2011) po-

demos apontar para a necessidade de se problematizar a forma e a concepccedilatildeo da ldquocrise

psiacutequica graverdquo como um fenocircmeno a ser mais bem esclarecido e estudado retirando-a

da escuridatildeo dos conceitos e praacuteticas imprecisas ou do domiacutenio das violaccedilotildees dos direi-

tos humanos mais essenciais quais sejam a de ser tratada dentro da sua humanidade

inerente e efetivamente como uma praacutetica de cuidado e natildeo de violaccedilotildees Neste sentido

tem ajudado as reflexotildees do grupo as posturas destes autores no que tange agraves eacuteticas da

diferenccedila da responsabilidade da alteridade e do cuidado

Ao considerar o cuidado como um lsquomodo de fazer na vida cotidianarsquo que se caracteriza

pela lsquoatenccedilatildeorsquo responsabilidadersquo lsquozelorsquo e lsquodesvelorsquo lsquocom pessoas e coisasrsquo em lugares e tempos

distintos de sua realizaccedilatildeo a importacircncia da vida cotidiana na produccedilatildeo do lsquocuidadorsquo

estaacute na oferta de muacuteltiplas questotildees especiacuteficas que circulam no espaccedilo da vida social

e nos conteuacutedos histoacutericos que carregam (Pinheiro 2005) O cotidiano eacute produzido

social e historicamente sob dois acircngulos primeiro porque se trata - como noccedilatildeo geral e

dimensatildeo do conhecimento - do lsquovividorsquo quer dizer do repetitivo-singular do conjuntu-

ral-estrutural no cotidiano lsquoas coisas acontecem semprersquo Segundo porque essa noccedilatildeo

se constroacutei e se identifica com o dia-apoacutes-dia em que tudo eacute igual e tudo muda ou seja

analisar um dia apoacutes o outro

lsquoCuidado em sauacutedersquo continua Pinheiro (2005) eacute o tratar o respeitar o acolher o atender

o ser humano em seu sofrimento mas com qualidade e resolutividade de seus problemas Eacute

uma accedilatildeo integral fruto do lsquoentre-relaccedilotildeesrsquo de pessoas ou seja accedilatildeo integral como efeitos

e repercussotildees de interaccedilotildees positivas entre usuaacuterios profissionais e instituiccedilotildees que

41 Os filoacutesofos da Diferenccedila como Foucault Deleuze Guattari e Derrida entre outros fazem parte de uma linha filosoacutefica que tem como expoentes Espinosa Bergson e Nietzsche uma filosofia que se interessa pela diversidade pluralidade e singularidade ao inveacutes de uma filosofia baseada numa ideia universal e numa totalidade que conteacutem partes singulares Ou seja a filosofia da Diferenccedila se interessa menos pelas semelhanccedilas e identidades e muito mais pela singularidade e particularidade

404

satildeo traduzidas em atitudes tais como tratamento digno e respeitoso com qualidade

acolhimento e viacutenculo

Por outro lado em geral ouvimos as pessoas utilizarem o termo ldquodiferenccedilardquo como se ela

fosse apenas respeito pelas opiniotildees contraacuterias ou pelas ideias contraditoacuterias A Filoso-

fia da Diferenccedila no entanto enquadra-se no pensamento complexo que entende que

pensamento (ou consciecircncia) linguagem verdade razatildeo sujeito objeto satildeo inseparaacute-

veis e natildeo partes separadas que possuem uma existecircncia em si Elas satildeo partes que se

inter-relacionam e se confrontam para poder existir Dessa forma a linguagem mistu-

ra-se com o pensamento e com o conceito de sujeito e passa a ser encarada como uma

rede de significaccedilotildees e atribuiccedilotildees e natildeo apenas uma representaccedilatildeo do real Como bem

afirmam os filoacutesofos da linguagem natildeo existe mundo ou seres fora da linguagem

Neste sentido conforme Jonas (1995) a responsabilidade para com o outro na qualidade

de ser humano guarda na sua existecircncia uma exigecircncia radical de respeito pois deteacutem

um mandato de vida que por si soacute fala eloquumlentemente da necessidade de manutenccedilatildeo

de sua integridade A responsabilidade eacute portanto na eacutetica a articulaccedilatildeo entre as reali-

dades subjetiva e objetiva Eacute forjada por essa fusatildeo entre o sujeito e a accedilatildeo Ao mesmo

tempo haacute tambeacutem um aspecto de descoberta que se revela na accedilatildeo propriamente dita

e suas consequecircncias A ordem eacutetica estaacute presente para Jonas natildeo como realidade visiacute-

vel mas como um apelo previdente que pede calma prudecircncia e equiliacutebrio Agrave esta nova

ordem ela daacute o nome de Princiacutepio da Responsabilidade

Por fim cabe falar da alteridade (ou outridade) eacute a concepccedilatildeo que parte do pressupos-

to baacutesico de que todo o homem social interage e interdepende do outro Assim como

muitos antropoacutelogos e cientistas sociais afirmam a existecircncia do ldquoeu-individualrdquo soacute eacute

permitida mediante um contato com o outro (que em uma visatildeo expandida se torna o

Outro - a proacutepria sociedade diferente do indiviacuteduo) Levinas (1997 2007 2009 a b)

por certo eacute um profiacutecuo autor filosoacutefico pouco explorado no nosso paiacutes e na aacuterea que

pode nos guiar na compreensatildeo da alteridade como aspecto fundamental da eacutetica que

diferentemente de Heidegger (cuidado do ser-no-mundo) eacute preacute-ontoloacutegica levando-

-nos a considerar qualquer ser humano sua condiccedilatildeo ou seu sofrimento (psiacutequico

pex) como uma condiccedilatildeo a priori a ser respeitada e soacute depois de nos responsabilizar-

mos por este outro eacute que podemos de fato consideramos a possibilidade de cuidar com

405Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves

a inerecircncia e propriedade de cada ser em sofrimento Mas esta discussatildeo seraacute objeto de

outras publicaccedilotildees

Assim se pudeacutessemos concluir - ou se possiacutevel fosse - esta complexa discussatildeo em ape-

nas uma frase a partir da consideraccedilatildeo da crise psiacutequica grave podemos afirmar que

precisamos considerar a diferenccedila dos seres neste tipo de crise responsabilizarmo-nos

por uma outra abordagem de cuidado que respeite a alteridade ou seja o sofrimento

psiacutequico do outro como o a priori a ser considerado antes mesmo de sua encarnaccedilatildeo

numa manifestaccedilatildeo tida psiacutequica grave ou doentia

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Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores 42

JuacuteliaSursisNobreFerroBucher-Maluschke

CamiladeAquinoMorais

DeiseMatosdoAmparo

MariaAparecidaPenso

KarlChristophKaumlppler

Introduccedilatildeo

A adolescecircncia como passagem obrigatoacuteria entre a infacircncia e a idade adulta abre um le-

que de situaccedilotildees novas e desconhecidas Trata-se de uma travessia incerta onde o jovem

procura uma afirmaccedilatildeo de si mesmo vivencia transformaccedilotildees do seu corpo descobre a

sexualidade procura sua autonomia afetiva e relacional e sua renuacutencia da infacircncia tam-

42 Projeto de Pesquisa realizado com Apoio CNPq e FAP-DF A versatildeo suiacuteccedila do Projeto Access to Mental Health Care to Children ndash (AMHC) foi financiada pela Swiss National Science Foundation

415Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

beacutem provocaraacute um gradual distanciamento dos pais e uma maior aproximaccedilatildeo de seus

pares que vivem situaccedilotildees semelhantes Portanto a adolescecircncia de um filho traz sem-

pre profundas modificaccedilotildees na forma como a famiacutelia se organiza no que diz respeito agraves

regras comunicaccedilatildeo papeacuteis crenccedilas e valores Mesmo numa perspectiva psicanalista

Erikson (1976) em sua obra claacutessica sobre a construccedilatildeo da identidade coloca que a co-

nhecida ldquocrise da adolescecircnciardquo precisa ser compreendida em seu aspecto psicossocial

pois a identidade nunca eacute estabelecida na forma de uma armadura de personalidade

estaacutetica e imutaacutevel Ao contraacuterio eacute um processo contiacutenuo de busca que se inicia no ldquoen-

contrordquo da matildee com o bebecirc e soacute termina quando dissipa o poder de afirmaccedilatildeo muacutetua

do homem O autor ressalta que esse processo tem sua crise normativa na adolescecircncia

sendo que tal crise eacute determinada de muacuteltiplas maneiras pelo que ocorreu antes e de-

termina grande parte do que ocorreraacute depois Assim quando o adolescente for confron-

tado com a crise de identidade reagiraacute de acordo com a maneira pela qual na infacircncia

integrou os diferentes elementos da identidade

Portanto para Erikson (1976) a identidade precisa ser considerada como um proces-

so complexo simultaneamente individual e cultural sendo necessaacuterio compreender o

meio no qual o sujeito vive para compreender a sua identidade A esse respeito o autor

coloca ldquo() pois estamos tratando de um processo localizado no acircmago do indiviacuteduo

e entretanto tambeacutem no nuacutecleo central da sua cultura coletiva um processo que es-

tabelece de fato a identidade destas duas identidadesrdquo (p 21) Sendo essa fase da vida

marcada por inuacutemeras transformaccedilotildees seraacute tambeacutem um momento de crise entendido

aqui como possibilidades de mudanccedilas de reorganizaccedilatildeo das relaccedilotildees e natildeo de estag-

naccedilatildeo Marcelli amp Braconnier (19841989) preferem o termo ldquorupturardquo para denominar

tais momentos de crise que segundo os autores satildeo configurados em fases de instabi-

lidade e conflitos que avanccedilam para novos estados de estabilidade Outros autores tam-

beacutem afirmam que eacute na adolescecircncia que ocorrem as maiores modificaccedilotildees no processo

vital aleacutem de uma intensa experimentaccedilatildeo de papeacuteis e situaccedilotildees sociais (Coslin 1999

Tiba 1985) Como afirma Vieytes-Shmitt (1991) ldquoIdade de paixotildees por excelecircncia de

sofrimento e ecircxtase de criatividade de explosatildeo de energia e de consciecircncia da morterdquo

(p 122)

Na perspectiva da teoria sistecircmica das relaccedilotildees familiares a adolescecircncia dos filhos

envolveraacute toda a famiacutelia e a crise de identidade seraacute tambeacutem familiar e natildeo apenas do

adolescente envolvendo questotildees de pertencimento e de separaccedilatildeo em um movimento

416

dialeacutetico (Bowen 19791991 Fishman 19881996 Minuchin 19801982 Minuchin

amp Fishman 1990) Trata-se nesta perspectiva de uma dimensatildeo interrelacional na qual

todos deveratildeo buscar um novo equiliacutebrio (Colle 19962001 De Vos Isebaert Vanaer-

de amp Van Der Auwera 1984) Isto significa que para poder se diferenciar e separar-se da

famiacutelia eacute preciso saber pertencer e eacute nesse processo que muitas vezes o adolescente

e sua famiacutelia se confundem Segundo Labaki (1997) ldquoA famiacutelia esquece que o adoles-

cente deveraacute partir e se diferenciar Mas natildeo eacute jamais pela janela que ele deveraacute sairrdquo (p

325) Nesse sentido eacute portanto na famiacutelia que o adolescente estrutura a sua persona-

lidade dentro da individuaccedilatildeo progressiva das suas diferenccedilas e da elaboraccedilatildeo da sua

identidade (Segond 1992)

Sendo a adolescecircncia uma fase crucial no processo de socializaccedilatildeo e de construccedilatildeo iden-

titaacuteria (Miermont e cols 19871994) a famiacutelia iraacute desempenhar um papel primordial

jaacute que ela eacute responsaacutevel pela transmissatildeo de regras valores e modelos de agir pensar e

sentir (Coslin 1999 Sobre o processo de ldquoadolescerrdquo familiar Outeiral (1994) escreve

O surgimento de algueacutem cronologicamente adolescente no grupo familiar faz com que todo o grupo ldquoadolesccedilardquo os pais tecircm seus aspectos adolescentes despertados e os irmatildeos mais moccedilos tambeacutem Todos identificados com o adolescente comeccedilaratildeo a apresentar ndash em maior ou menor grau ndash sentimentos e condutas adolescente (p 73)

A adolescecircncia enquanto fase da crise de identidade colocaraacute toda a famiacutelia frente aos

questionamentos sobre a sua forma de funcionamento em razatildeo da expansatildeo das rela-

ccedilotildees do adolescente gerando uma crise na famiacutelia que afeta e gera mudanccedilas em todos

os seus membros (Ausloos 1982a 1983 Colle 19962001 Cuendet 1991 Fishman

19881996 Miermont e cols 19871994 Vieytes ndash Schmitt 1991) Como fase do Ci-

clo de Vida Familiar a adolescecircncia possui algumas tarefas especiacuteficas que envolvem

todos os membros da famiacutelia pois o crescimento dos filhos pressupotildee a evoluccedilatildeo dos

pais frente a essa nova realidade Os pais satildeo confrontados com uma seacuterie de tarefas

devendo passar progressivamente de uma relaccedilatildeo filho-pais para uma relaccedilatildeo adulto-

-adulto mas que permanece marcada por um laccedilo de filiaccedilatildeo (Marcelli amp Braconnier

19841989)

Para Preto (19891995) a flexibilidade eacute que vai definir o sucesso nesse estaacutegio De

acordo com a referida autora a condiccedilatildeo para maior independecircncia e desenvolvimento

dos adolescentes nesta fase eacute o aumento da flexibilidade das fronteiras familiares e uma

417Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

nova modulaccedilatildeo da autoridade paterna Nessa mesma linha de pensamento Carter amp

McGoldrick (19891995) colocam que as famiacutelias com filhos adolescentes devem es-

tabelecer fronteiras (compreendidas aqui como o conjunto de regras que organizam

o sistema familiar) mais permeaacuteveis que as famiacutelias com filhos mais jovens e que os

pais natildeo podem mais impor uma autoridade completa Minuchin amp Fishman (1990)

enfatizam a mudanccedila na forma de negociaccedilatildeo como o fator mais relevante nesta fase

Mas lidar com essa perspectiva soacute eacute possiacutevel quando a possibilidade de diferenciaccedilatildeo

pressupotildee a existecircncia da coesatildeo e da manutenccedilatildeo da unidade do grupo familiar Caso

contraacuterio a fantasia da destruiccedilatildeo familiar iraacute dificultar a possibilidade de individuaccedilatildeo

de seus membros (Andolfi Angelo Mengh amp Corigliano 19831984) Isto significa que

a possibilidade de separaccedilatildeo precisa estar ancorada na seguranccedila da manutenccedilatildeo dos

viacutenculos familiares na famiacutelia atual

Segundo Marcelli amp Braconnier (19841989) algumas famiacutelias satildeo fraacutegeis natildeo supor-

tando os esforccedilos de separaccedilatildeo do adolescente porque estatildeo organizadas em torno de

ldquocrenccedilas fundamentaisrdquo que fazem dela um grupo unido e defensivo e dilui os limites

interindividuais e intergeracionais Nessas famiacutelias os desejos de vida autocircnoma os

questionamentos e as escolhas do adolescente satildeo percebidos como um perigo e uma

ameaccedila ao grupo familiar cujos membros reagiratildeo de forma defensiva tornando con-

fusa a individualidade e em consequumlecircncia a identidade de cada um

Por outro lado a adolescecircncia dos filhos quase sempre coincide com a meia idade

dos pais Esse fato traz agrave cena dois processos paralelos e difiacuteceis de serem enfrentados

pela famiacutelia de um lado estaacute a adolescecircncia dos filhos com todos os seus conflitos e

do outro a crise dos pais que confrontados com um decliacutenio de suas vidas precisam

assumir a natildeo realizaccedilatildeo de certos desejos amorosos e sentimentais e as limitaccedilotildees de

suas possibilidades psiacutequicas e intelectuais (Colle 19962001 Marcelli amp Braconnier

19841989 Vieytes-Schmitt 1991)

A transformaccedilatildeo que ocorre com o adolescente e as novas necessidades que despontam

nele provocaraacute tambeacutem uma transformaccedilatildeo nos papeis parentais que devem abandonar

a forma de lidar com os filhos crianccedilas para lidar com o filho que sai da infacircncia para

uma nova fase do ciclo vital que o prepararaacute para a vida adulta Muitas satildeo as famiacutelias

que natildeo conseguem assumir essas transformaccedilotildees necessaacuterias o que pode acarretar

418

inuacutemeras dificuldades nas interaccedilotildees pais e filhos e que a sociedade o Estado tem que

ir ao auxiacutelio da micro instituiccedilatildeo que eacute a famiacutelia

Egrave nesse contexto que podem surgir muitos problemas afetando a sauacutede dos adolescen-

tes entre eles apontamos para as disfunccedilotildees nos comportamentos alimentares obesi-

dade suiciacutedio e tentativas de suiciacutedio consumo de drogas consumo de tabaco proble-

mas na aacuterea sexual violecircncia e outros

Diante deste contexto foi realizada uma pesquisa com adolescentes todos frequumlentando

a escola no ensino meacutedio e seus paiscuidadores sobre a sauacutede mental dos adolescentes

e os serviccedilos de sauacutede e neste artigo apresentaremos as variaacuteveis voltadas a percepccedilatildeo

do que eacute necessaacuterio e do papel da famiacutelia para promover a sauacutede mental do adolescente

tanto na perspectiva dele quanto na perspectiva dos paiscuidadores

Meacutetodo

Participantes

Participaram dessa etapa da pesquisa 147 jovens estudantes do Ensino Meacutedio de uma

escola particular do Distrito Federal suas matildees (n = 51) e seus pais (n = 30) Para a

anaacutelise dos dados as matildees e os pais foram organizados em uma categoria denominada

cuidadores

Em relaccedilatildeo aos jovens havia 48 (327) no primeiro ano 48 (327) no segundo ano e

45 (306) no terceiro ano sendo que 6 (34) jovens natildeo informaram sua escolarida-

de Em relaccedilatildeo ao sexo 76 (517) afirmaram ser do sexo feminino 67 (456) do sexo

masculino e 4 (27) natildeo responderam A idade dos jovens variou de 14 a 18 anos um

jovem tinha 14 anos 24 (18) tinham 15 anos 49 (368) tinham 16 anos e 52 (39)

tinham mais de 16 anos e 5 (53) jovens natildeo informaram a idade Em relaccedilatildeo agrave raccedila 85

(578) afirmaram serem brancos 48 (327) serem pardos 6 (41) serem negros 2

(14) de outra cor e 6 (41) natildeo responderam Da configuraccedilatildeo familiar 95 (646)

tem pais casados ou que vivem juntos 40 jovens (272) tecircm pais separados ou divor-

ciados apenas 3 (2) tecircm pais que nunca viveram juntos e 3 (2) satildeo oacuterfatildeos de um dos

pais A questatildeo natildeo foi respondida por 6 (41) jovens

419Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

Em relaccedilatildeo aos cuidadores a amostra foi composta por 51 matildees e 30 pais que represen-

ta a participaccedilatildeo de 551 dos pais dos jovens pesquisados Em relaccedilatildeo agrave escolaridade

deles verificou-se que 58 (716) tinham niacutevel superior completo 11 (136) mestrado

ou doutorado 5 (62) niacutevel superior incompleto e 6 (74) escolaridade igual ou in-

ferior ao Ensino Meacutedio Apenas um cuidador natildeo informou a escolaridade Referente agrave

cor 60 (741) consideravam-se brancos 18 (222) pardos apenas um (12) negro e

dois (25) natildeo responderam A maioria dos cuidadores afirmou possuir renda familiar

acima de cinco mil reais 64 (79) 15 (185) afirmaram possuir renda familiar entre

quatrocentos e cinco mil reais e apenas dois cuidadores natildeo informaram a renda de sua

famiacutelia

Instrumentos

Foram utilizados dois modelos de questionaacuterios sobre sauacutede doenccedila mental e serviccedilos

de sauacutede que investigavam a visatildeo dos adolescentes e seus respectivos cuidadores Os

questionaacuterios aplicados no Brasil foram adaptados do estudo realizado anteriormente

na Suiacuteccedila por Kaumlppler Moumlhler-Kuo Gonccedilalves Gianella Peng Zehnder e Anastasi Fo-

ram elaborados a partir de um estudo qualitativo suiacuteccedilo com grupos focais de familia-

res e profissionais relacionados ao cuidado infanto-juvenil como pediatra educador

e recreacionista Os questionaacuterios aplicados no Distrito Federal e nos demais estados

que compotildee a pesquisa nacional foram traduzidos a partir de uma versatildeo lusitana do

instrumento passando por uma validaccedilatildeo semacircntica atraveacutes de estudo piloto para uma

melhor adaptaccedilatildeo da linguagem e da cultura

Os questionaacuterios contecircm questotildees qualitativas e quantitativas Estatildeo divididos em qua-

tro partes 1- investiga a visatildeo de sauacutede e doenccedila mental e de onde advecircm as ideacuteias de

sauacutede e doenccedila 2- refere-se agrave famiacutelia e investiga a dinacircmica familiar para a manutenccedilatildeo

da sauacutede mental de seus membros e como o adolescente se sente na proacutepria famiacutelia

3- aborda o bem-estar do adolescente atraveacutes de uma auto-avaliaccedilatildeo global da sauacutede 4-

avalia as condiccedilotildees de vida como sexo idade seacuterie escolar trabalho e condiccedilotildees fiacutesicas

de onde reside No questionaacuterio dos cuidadores todos os itens solicitam que estes se

refiram ao seu (sua) filho (a) que estava participando do mesmo estudo

Satildeo apresentados com o auxilio do programa SPSS18 dados das estatiacutesticas descritivas

dos itens ldquoIrdquo dos questionaacuterios dos jovens e itens ldquoI Jrdquo dos cuidadores Posterior satildeo

420

categorizadas as respostas da questatildeo 126 adolescentes e questatildeo 141 cuidadores com

o auxilio do programa estatiacutestico Alceste

Resultados e Discussatildeo

Os resultados seratildeo apresentados considerando a perspectiva de jovens e cuidadores sobre sauacutede mental buscando responder algumas perguntas O que eacute preciso para que o jovem se mantenha saudaacutevel mentalmente na famiacutelia O que o cuidador faz

para manter a sauacutede mental do jovem Como na famiacutelia do jovem se manteacutem a sauacutede

mentalemocional

Tabela 1 Manter-se saudaacutevel mentalmente na famiacutelia

Para manter-se saudaacutevel mental-mentefrasl emocio-nalmente na sua famiacutelia eacute preciso

Natildeo Em parte Bastante Totalmente

Adol

esce

nte

Cuid

ador

Adol

esce

nte

Cuid

ador

Adol

esce

nte

Cuid

ador

Adol

esce

nte

Cuid

ador

poder confiar uns nos outros

- - 3 (2) 1 (12) 28 (19) 14(173) 111(755) 66(815)

sentir-se aceito amado como se eacute

2 (14) - 7 (48) 2 (25) 32(218) 16(198) 102(694) 61(753)

ter pais que orientamensinam

- - 9 (61) 2 (25) 38(259) 15(185) 95(646) 63(778)

haver comuni caccedilatildeo agradaacutevel entre

os membros- - 6 (41) 2 (25) 40(272) 20(247) 96(656) 59(728)

ter compreensatildeo muacutetua - - 24(163) 2 (25) 39(265) 22(272) 78(531) 57(704)saber ouvir e falar entre

si estar disponiacutevel para o diaacutelogo

2 (14) 2 (25) 10(68) 1 (12) 49(333) 23(284) 82 (558) 55(679)

poder partilhar experiecircncias carregar

problemas em conjunto10 (68) 1 (12) 28 (19) 6 (74) 41(279) 23(284) 64(435) 51 (63)

421Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

Para manter-se saudaacutevel mental-mentefrasl emocio-nalmente na sua famiacutelia eacute preciso

Natildeo Em parte Bastante Totalmente

Adol

esce

nte

Cuid

ador

Adol

esce

nte

Cuid

ador

Adol

esce

nte

Cuid

ador

Adol

esce

nte

Cuid

ador

estar satisfeito e satisfazer os outros

na famiacutelia5 (34) 2 (25) 19(129) 19(235) 44(299) 35(432) 74(503) 24(296)

haver consenso acordo entre os pais

2 (14) - 13(88) 8 (99) 58(395) 27(333) 70(476) 46(568)

ter tempo livre lazer em comum

2 (14) - 21(143) 8 (99) 65(442) 30 (37) 54(367) 43(531)

ter relaccedilotildees proacuteximas com os outros

membros da famiacutelia5 (34) - 22 (15) 12(148) 64(435) 32(395) 51(347) 37(457)

chamar a atenccedilatildeo dos outros para o

lado bom das coisas3 (2) - 28 (19) 18(222) 65(442) 31(383) 46(313) 32(395)

ter as refeiccedilotildees em conjunto na famiacutelia

13 (88) 1 (12) 50(34) 14(173) 43(293) 30 (37) 37(252) 35(432)

ter uma orientaccedilatildeo religiosa

6(313) 5 (62) 41(279) 15(185) 35(238) 30 (37) 21(143) 31(383)

equiliacutebrio entre a vida profissional e privada (famiacutelia e trabalho)

- - - 3 (37) - 29(358) - 49(605)

Tabela 1 Manter-se saudaacutevel mentalmente na famiacutelia (Continuaccedilatildeo)

A tabela 1 apresenta inicialmente o que os jovens pensam sobre o que eacute necessaacuterio

para que uma pessoa possa manter-se saudaacutevel mentalmente emocionalmente na sua

famiacutelia Os resultados obtidos para a grande maioria dos jovens (973) que na famiacutelia

poder confiar uns nos outros contribui bastante ou totalmente para a sauacutede mental Em

seguida a outra condiccedilatildeo indicada para 945 dos jovens eacute a de ter uma comunicaccedilatildeo

agradaacutevel na famiacutelia e para 912 sentir-se aceito pela famiacutelia completa os fatores que

contribuem bastante ou totalmente para a sauacutede mental dos jovens

422

Esses resultados indicam que os jovens consideram a famiacutelia como uma referecircncia im-

portante para sua sauacutede mental quando ela transmite confianccedila eacute capaz de manter uma

boa comunicaccedilatildeo entre os seus membros e transmite seguranccedila ao aceitar o jovem A

literatura tem apontado que a famiacutelia eacute um esteio importante para o desenvolvimento

dos filhos quando ela assume seu papel de protetora Entre esses fatores de proteccedilatildeo

que a famiacutelia deve assumir estatildeo agrave boa qualidade dos viacutenculos familiares e a manuten-

ccedilatildeo de uma relaccedilatildeo afetiva entre pais e filhos (Minuchin 1982 Fishman19881996

Ambert 1997)

A tabela 1 apresenta tambeacutem as respostas dos paiscuidadores quando se perguntou

qual a importacircncia do significado das frases abaixo para manutenccedilatildeo da sauacutede mental

emocional na famiacutelia Os pais concordaram bastante ou totalmente com todos os itens

Estar satisfeito e satisfazer os outros na famiacutelia (728) sentir-se aceitoamado como se

eacute (951) haver comunicaccedilatildeo agradaacutevel entre os membros da famiacutelia (975) chamar a

atenccedilatildeo dos outros para o lado bom das coisas (778) saber ouvir e falar entre si estar

disponiacutevel para o diaacutelogo (963) haver consensoacordo entre os pais (901) ter pais

que orientamensinam (963) ter compreensatildeo muacutetua (976) poder partilhar na

famiacutelia experiecircncias e carregar problemas em conjunto (914) poder confiar uns nos

outros (988) terem as refeiccedilotildees em conjunto na famiacutelia (802) ter relaccedilotildees proacutexi-

mas com os outros membros da famiacutelia (852) ter uma orientaccedilatildeo religiosa (753)

ter tempo livrelazer em comum (901) ter um equiliacutebrio entre a vida profissional e a

vida privada entre famiacutelia e trabalho (955)

As respostas dos paiscuidadores indo no mesmo sentido das obtidas dos filhos adoles-

centes satildeo indicadores de que pais e filhos tecircm uma concepccedilatildeo ideal de famiacutelia e que

esta concepccedilatildeo eacute promotora de sauacutede mental e emocional Os paiscuidadores consi-

deram importante ter um tempo livre e lazer com os filhos ter refeiccedilotildees em conjunto

sendo dois aspectos indicados o que nos indica que estes aspectos satildeo considerados

importantes e que valem a pena ser investigados em que medida os paiscuidadores

dispotildees de tempo para se dedicar aos filhos Embora se constate que em Brasiacutelia muitas

famiacutelias almocem juntas a vida moderna estaacute cada vez mais transformando esta praacutetica

em funccedilatildeo da distancia do trabalho para casa e do transito cada vez mais difiacutecil levando

muito mais tempo no deslocamento

423Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

As respostas voltadas para a comunicaccedilatildeo entre paiscuidadores e adolescentes tam-

beacutem bastante enfatizada como muito importante sugerindo uma percepccedilatildeo do papel da

comunicaccedilatildeo como fator de proteccedilatildeo para os jovens A literatura tem apontado para a

relaccedilatildeo entre a maacute comunicaccedilatildeo seja ela verbal ou natildeo verbal com o surgimento de con-

flitos que podem degenerar ao ponto de se transformar numa briga explicita podendo

ateacute romper a relaccedilatildeo entre pais e filhos Uma boa comunicaccedilatildeo entre os membros da fa-

miacutelia permite a expressatildeo dos sentimentos de compartilhar as alegrias as tristezas e os

medos que assolam os adolescentes nessa fase de tantas incertezas e tantos desafios A

falta de diaacutelogo com os pais leva os adolescentes a procurar colegas que tambeacutem vivem

suas incertezas para desabafar pedir conselhos e nem sempre satildeo as pessoas adequa-

das podendo levar a situaccedilotildees inesperadas e desastrosas Neste contexto a comunicaccedilatildeo

tem um papel importante na prevenccedilatildeo dos riscos que o adolescente tem em sua vida

Nesta pesquisa adolescente e paiscuidadores reconhecem a importacircncia da comunica-

ccedilatildeo o que implica tambeacutem na importacircncia da relaccedilatildeo entre eles

Tabela 2 O que o cuidador faz para manter a sauacutede mental do jovem

O que faz para manter a sauacute-de mental do jovem

Natildeoconcordo

Concordoem parte

Concordobastante

Concordo to-talmente

dar aos meus filhos amor e seguranccedila ______ ______ 12 (148) 68 (84)

aceitar cada filho como ele eacute e natildeo preferir um em especial 1 (12) 5 (62) 8 (99) 64 (79)

conhecer os amigos dos meus filhos e incentivaacute-los a boas companhias

______ _______ 18 (222) 62 (765)

ensinar os meus filhos a ver a vida de forma positiva ______ 3 (37) 21 (259) 55 (679)

tentar perceber os meus filhos com as suas necessidades ______ 1 (12) 23 (284) 55 (679)

estar sempre disponiacutevel para ouvir e manter um diaacutelogo aberto com os meus filhos

______ 1 (12) 25 (309) 53 (654)

transmitir aos meus filhos calma e paz ______ 4 (49) 25 (309) 50 (617)

mostrar total confianccedila 1 (12) 9 (111) 21 (259) 49 (605)transmitir valorestradiccedilotildees religiosas 2 (25) 9 (111) 21 (259) 48 (593)

incentivar algumas atividades que melhor se adaptem aos seus talentos (ler jogar)

______ 6 (74) 27 (333) 47 (58)

424

O que faz para manter a sauacute-de mental do jovem

Natildeoconcordo

Concordoem parte

Concordobastante

Concordo to-talmente

incentivar a vida familiar por exemplo o estar junto ou passeios aos fins de semana

______ 3 (37) 34 (42) 42 (519)

estar feliz e alegre e tentar fazer os meus filhos felizes 1 (12) 6 (74) 33 (407) 40 (494)

motivar os meus filhos para o esporte 1 (12) 12 (148) 27 (333) 38 (469)

estar disponiacutevel para ajudar os outros ______ 9 (111) 35 (432) 36 (444)

A Tabela 2 expotildee os resultados do que os paiscuidadores fazem para manter a sauacutede mental emocional dos jovens Estes responderam concordar bastante e totalmente com todos os itens Ao detalharmos obtivemos os seguintes resultados estar feliz e ale-gre e tentar fazer os meus filhos felizes (901) aceitar cada filho como ele eacute e natildeo preferir um em especial (889) motivar os meus filhos para o esporte (802) transmitir aos

meus filhos calma e paz (926) incentivar a vida familiar por exemplo estar junto

ou passeios aos fins de semana (939) ensinar os meus filhos a ver a vida de forma

positiva (938) estar sempre disponiacutevel para ouvir e manter um diaacutelogo aberto com

os meus filhos (963) dar aos meus filhos amor e seguranccedila (988) estar disponiacute-

vel para ajudar os outros (876) mostrar total confianccedila (864) tentar perceber os

meus filhos com as suas necessidades (963) conhecer os amigos dos meus filhos e

incentivaacute-los a boas companhias (987) incentivar algumas atividades que melhor se

adaptem aos seus talentos como por exemplo tocar um instrumento ler fazer teatro

(913) transmitir valorestradiccedilotildees religiosas (852)

Observa-se nestas respostas que haacute uma compreensatildeo de que atitudes e comportamen-

tos satildeo necessaacuterios para o bom desenvolvimento da sauacutede mental e emocional dos seus

filhos adolescentes Pelas respostas dadas sobre a transmissatildeo de valores religiosos

(825 ) sugerem que os paiscuidadores tecircm uma vinculaccedilatildeo religiosa e que este pode

ser um aspecto importante de valorizaccedilatildeo da famiacutelia e do seu papel junto para o desen-

volvimento dos filhos

A anaacutelise de conteuacutedo das respostas dos adolescentes e pais cuidadores referente agrave

pergunta ldquoescreva uma frase ou palavra que represente como na sua famiacutelia se manteacutem

a sauacutede mentalemocionalrdquo mostrou diferenccedila entre esses dois grupos estatildeo os adoles-

centes representados em quadrantes opostos aos dos cuidadores

425Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

A Tabela 3 apresenta classe de resposta dos adolescentes que foram subcategorizadas

em duas e a dos paiscuidadores em trecircs

Tabela 3 Categorizaccedilatildeo das respostas que representam a manutenccedilatildeo da sauacutede na famiacutelia

Categorias - Descriccedilatildeo Adolescentes Cuidadores

Classe 1

INTERACcedilAtildeO DIALOacuteGICA COM BEM ESTAR

Interaccedilatildeo que caracterize diaacutelogo colaboraccedilatildeo e sentimento de felicidade alegria e bem estar

Rir - Confianccedila - Se amar Dialogo - HarmoniaResponsabilidade Estar presente no dia-a-dia

Diversatildeo ndash Carinho - Elogiando Acompanhando momentos de alegria e dificuldade

Colaborando uns com os outros Buscando ser melhor a cada dia

Atenccedilatildeo as necessidades do outro Nos corrigindoPaz nas refeiccedilotildees - Forca Minimizar desigualdades

Mostrar o certo e o errado Orientando sobre diversos temas

Resolver problemas e conflitos Respeito muacutetuoAconselham -Me fazem felizes Amor ndash Afeto - CarinhoAjudam - Almoccedilos em famiacutelia Consenso - Apoio muacutetuo

Uniatildeo - Solidariedade Estudar para depois conseguir o que gosta

Dialogo - CompreensatildeoAjudando a cada membroSer amigo uns dos outros

Ser autocircnomaSer amigo de si mesmo

Manter e incentivar o bem-estarHarmonia ndash Respeito - Amor

Classe 2

INTERACcedilAtildeO COMPREENSIVA E INTEGRATIVA

Interaccedilatildeo que caracterize aceitaccedilatildeo compreensatildeo

e respeito muacutetuo

Praticar atividades juntos Amizade ndash Humor ndash Harmonia - Incentivo

Conversar - Compreender Comunicaccedilatildeo constante

Igreja ndash Uniatildeo - Ajudar Ver diferenccedila entre o essencial e ocasional

Aceitar diferenccedilas respeito muacutetuoQueremos o bem de todos Visatildeo positiva da vida

Sentir aceito - Sentir amado InteresseManter dialogo - Somos

uma equipe Buscar a felicidade

Sempre juntos natildeo importa o que ocorra Paciecircncia

Almoccedilos juntos - Saber ouvirMostrar preocupaccedilatildeo com o outro

426

Categorias - Descriccedilatildeo Adolescentes Cuidadores

Classe 3

INTERACcedilAtildeO DE CONFIANCcedilA ORIENTACcedilAtildeO E HARMONIA

Interaccedilatildeo caracterizada pela orientaccedilatildeo confianccedila harmonia

e apoio muacutetuo e lazer

Orientaccedilatildeo - comunicaccedilatildeoUniatildeo- Amor- Harmonia-

SinceridadeConfianccedila ndash Conversar

- Lazer juntosFinais de semana juntosTomar decisotildees juntosEnfrentar dificuldades

juntosTirar feacuterias juntos

Forca Confiar em Deus

Importar uns com os outros

Os dados obtidos na questatildeo abertas para os dois grupos corroboraram o que indicaram

nas questotildees apresentadas na tabela 1 e na tabela 2 Ou seja ambos os grupos indicam

o que pode ser importante para o desenvolvimento da sauacutede mental dos adolescentes

Ambos os grupos apontam para alguns aspectos que consideram importante para a

sauacutede mental A maior parte dos aspectos enfatizados tem relaccedilatildeo com as categorias de

integraccedilatildeo confianccedila manutenccedilatildeo do diaacutelogo e do bem estar no contexto familiar Os

aspectos enfatizados revelam tambeacutem o enfoque na necessidade de realizarem tarefas

juntos de lazer e de finais de semana o que sugere uma percepccedilatildeo da necessidade de

momentos de aproximaccedilatildeo Outro aspecto que consideramos relevante e que confir-

mam os dados indicados nas tabelas anteriores eacute a ecircnfase dada agrave necessidade e a impor-

tacircncia de considerar o outro e ao se sentir aceito pelo outro sugerindo uma percepccedilatildeo

da importacircncia dos aspectos relacionais base para uma comunicaccedilatildeo saudaacutevel como jaacute

mencionamos anteriormente

Podemos concluir que tanto os adolescentes quanto os paiscuidadores tecircm uma niacutetida

percepccedilatildeo dos fatores importantes para serem realizados nas famiacutelias para o desenvol-

vimento de uma boa sauacutede mental

427Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores

Consideraccedilotildeesfinais

Os resultados apresentados neste artigo sugerem que haacute muita clareza na percepccedilatildeo

tanto dos jovens quanto de seus paiscuidadores dos fatores que contribuem para a

sauacutede mental desses jovens Podemos considerar que indicaram fatores de proteccedilatildeo agrave

vulnerabilidade proacutepria da etapa de vida do jovem

Diante desta percepccedilatildeo bem ideal esperada da famiacutelia vemos a necessidade de estudar-

mos a famiacutelia real ou aquela em que esses fatores conhecidos por ambos os grupos satildeo

ou natildeo vivenciados na famiacutelia e a partir daiacute conhecermos o que estaacute ocorrendo de fato

na preservaccedilatildeo da sauacutede mental dos adolescentes

Sabe-se que nem sempre o conhecimento as atitudes e os comportamentos ou praacuteticas

andam de matildeos dadas e esta eacute a nossa proacutexima tarefa que permitiraacute dar um melhor

suporte agraves poliacuteticas publicas tanto no campo da sauacutede mental quanto dos cuidados em

sauacutede mental para as famiacutelias e os adolescentes

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430

Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

GlaacuteuciaDiniz

TerezinhaFeacuteres-Carneiro

Relaccedilotildees interpessoais constituem uma das questotildees fundamentais para os psicoacutelogos

Dentre as vaacuterias formas de relacionamento o casamento tem sido uma aacuterea que des-

perta o interesse de pesquisadores teoacutericos e cliacutenicos O comportamento e a interaccedilatildeo

entre os esposos quando vistos como um sistema satildeo influenciados por dois eixos

fundamentais O primeiro diz respeito agraves caracteriacutesticas de cada parceiro e agrave dinacircmica

interacional que existe entre eles O segundo estaacute relacionado ao impacto que fatores do

ambiente exercem sobre o relacionamento Inclui-se aqui a presenccedila ou natildeo de filhos a

influecircncia da famiacutelia de origem de ambos na conjugalidade o tipo de inserccedilatildeo no mun-

do do trabalho a rede de apoio social a filiaccedilatildeo religiosa como alguns de muitos ele-

mentos que podem afetar a relaccedilatildeo Esta definiccedilatildeo do comportamento de um casal leva

em consideraccedilatildeo portanto a influecircncia de variaacuteveis pessoais interacionais e sociais

431Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

A experiecircncia conjugal e familiar ocorre em um contexto multisistecircmico A interaccedilatildeo

entre estes vaacuterios niacuteveis eacute importante e afeta todas as diacuteades independentemente do

modelo de conjugalidade e de vida familiar escolhido Feacuteres-Carneiro (1998) sintetiza

bem um dos dilemas cruciais da experiecircncia conjugal

ldquoCostumo dizer que todo fasciacutenio e toda dificuldade de ser casal reside no fato de o casal encerrar ao mesmo tempo na sua dinacircmica duas individualidades e uma conjugalidade ou seja de o casal conter dois sujeitos dois desejos duas inserccedilotildees no mundo duas percepccedilotildees do mundo duas histoacuterias de vida dois projetos de vida duas identidades individuais que na relaccedilatildeo amorosa convivem com uma conjugalidade um desejo conjunto uma histoacuteria de vida conjugal um projeto de vida de casal uma identidade conjugal Como ser dois sendo um Com ser um sendo doisrdquo (p 379)

Questotildees em torno da definiccedilatildeo do que eacute uma famiacutelia do que eacute um casamento e de

quais satildeo os papeacuteis do homem e da mulher tanto no acircmbito familiar quanto social

marcam a cena social e acadecircmica a partir da segunda metade do seacuteculo XX O fato

eacute que passamos de uma visatildeo estaacutetica da vida familiar para uma ideacuteia da famiacutelia em

processo de desenvolvimento e movimento ao longo de um ciclo vital Saiacutemos de uma

definiccedilatildeo riacutegida de papeacuteis para o homem e a mulher para um contexto onde estes pa-

peacuteis estatildeo sendo questionados e ampliados O determinismo bioloacutegico que impregnava

esta divisatildeo de papeacuteis foi sendo substituiacutedo por uma noccedilatildeo da influecircncia dos fatores

histoacutericos sociais econocircmicos e culturais sobre o desenvolvimento individual e conse-

quumlentemente sobre as expectativas em relaccedilatildeo ao desempenho de homens e mulheres

nos vaacuterios contextos e de modo especial no casamento e na famiacutelia

A ideacuteia de crise associada agrave identidade da famiacutelia e agrave identidade de seus membros e aos

papeacuteis que eles devem desempenhar ganhou popularidade Fala-se muitas vezes com

saudosismo de certo tempo em que a vida os papeacuteis familiares e os valores associados

agraves funccedilotildees de ambos os esposos eram claros e bem definidos A ideacuteia da existecircncia de

uma crise eacute ancorada por um pressuposto raramente desvelado a mitificaccedilatildeo de um

modelo de relacionamento Este modelo ao ser associado a adjetivos como normal me-

lhor natural passou a ser visto como aquele que atende agrave natureza do homem e da mu-

lher e agraves necessidades de procriaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da ordem social Ganhou portanto

um status atemporal

432

Grupos sociais que idealizam a chamada ldquofamiacutelia tradicionalrdquo muitas vezes esquecem

que ela tambeacutem foi produto de um momento histoacuterico e social especiacutefico e que as

contingecircncias que produziram este arranjo familiar que durante muito tempo foi visto

como a norma e o modelo ideal jaacute natildeo existem mais O intrincado conjunto de fatores

e circunstacircncias que compotildeem o momento histoacuterico atual estaacute exigindo novas reorga-

nizaccedilotildees conjugais e familiares Ousaremos propor entatildeo que a ideacuteia de crise como

falecircncia social seja substituiacuteda pela ideacuteia de crise como momento de transiccedilatildeo no con-

texto social

Transiccedilatildeo eacute sinocircnimo de oportunidade Carter e McGoldrick (1995) ao trabalharem

com famiacutelias numa perspectiva sistecircmica e do ciclo de vida familiar chamam a atenccedilatildeo

para a complexidade presente nos momentos de transiccedilatildeo que satildeo etapas de passagem

de um estaacutegio para outro do processo de desenvolvimento familiar Nesses momentos

a famiacutelia pode se apegar agrave sua forma de funcionar e enrijecer ou pode se flexibilizar

para incorporar novas estrateacutegias de funcionamento e assim crescer Da mesma for-

ma que a famiacutelia a sociedade precisa se reorganizar para que seus membros possam

prosseguir em seu desenvolvimento levando em conta novos processos que afetam a

dinacircmica social

Compreender os fenocircmenos que estatildeo provocando esta reorganizaccedilatildeo dos casamentos

e das famiacutelias constitui um desafio importante Jablonski (19911998) ao longo da deacute-

cada de 1990 explorou vaacuterias mudanccedilas sociais que estavam produzindo impactos nas

relaccedilotildees interpessoais sobretudo no casamento e na vida familiar Por entendermos

que mudanccedilas sociais satildeo processos que demoram a se sedimentar e por acreditarmos

que a anaacutelise continua relevante apresentamos brevemente as questotildees levantadas pelo

autor

1 A passagem da obediecircncia cega aos valores religiosos para uma situaccedilatildeo de reli-

giosidade e cultivo da espiritualidade promove uma resignificaccedilatildeo do juramento

de amor eterno uma vez que nesse contexto ganham preponderacircncia os valores

pessoais

2 A transformaccedilatildeo social gerada pela modernizaccedilatildeo e pela urbanizaccedilatildeo produziu um

isolamento relacional da famiacutelia que se torna a fam-ilha afastada de suas origens

e apegada agrave sua intimidade e privacidade Este isolamento gera ocircnus para os mem-

433Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

bros da diacuteade conjugal que passa a ter a funccedilatildeo de suprir a maior parte das neces-

sidades emocionais um do outro O peso dessa tarefa gera demandas e conflitos agraves

vezes identificados como insuperaacuteveis pelos cocircnjuges

3 A ecircnfase no amor-paixatildeo como condiccedilatildeo sine qua non para a manutenccedilatildeo e equi-

liacutebrio do relacionamento e a dificuldade que os casais encontram de lidar com a

transformaccedilatildeo desse amor em um sentimento mais maduro que possa resistir aos

desafios do dia a dia tem sido uma alegaccedilatildeo constante para a dissoluccedilatildeo da vida a

dois

4 O aumento na taxa de longevidade estaacute tornando o ateacute que a morte nos separe em um

momento distante demais Homens e mulheres ao viverem mais tecircm espaccedilo para

questionarem e reavaliarem suas necessidades ao longo do ciclo vital se permitin-

do eventualmente a escolha de uma outroa parceiroa

5 Os meios de comunicaccedilatildeo de massa ganharam um papel preponderante na vida

contemporacircnea Passaram a atuar como questionadores divulgadores e ateacute for-

madores de valores Em um momento de transiccedilatildeo social como este eacute importante

estarmos atentos ao papel que esses meios tecircm sobre as pessoas ao retratarem e

questionarem as relaccedilotildees homem e mulher o casamento e a famiacutelia

6 O movimento feminista constitui outro fator apontado tanto Jablonski (19911998)

quanto por outros autores (Castells 1999 Diniz 1999b Giddens 2004 Narvaz e

Koller 2006 2007) como accedilatildeo poliacutetica e social que teve um papel fundamental na

mudanccedila das relaccedilotildees entre homens e mulheres

Os feminismos em suas diversas vertentes ao questionarem os direitos tantos pes-

soais quanto sociais da mulher abriram espaccedilo para novas ideacuteias e novos padrotildees de

comportamento Um exemplo marcante do reflexo dessas ideacuteias eacute a liberaccedilatildeo sexual

A concepccedilatildeo de igualdade entre homens e mulheres associada ao surgimento de meacute-

todos contraceptivos eficazes redimensionou a vivecircncia da sexualidade para as mulhe-

res A consequumlente valorizaccedilatildeo da sexualidade e do erotismo ao se contrapor a valores

herdados de uma visatildeo do casamento como monogacircmico e duradouro gera conflitos e

dilemas para os parceiros atuais

434

A emancipaccedilatildeo feminina foi outro subproduto importante dos feminismos Este fe-

nocircmeno da emancipaccedilatildeo contribuiu para o aumento da necessidade de mulheres de

desenvolverem uma identidade proacutepria e as impulsionou a ampliar sua participaccedilatildeo

social especialmente no mercado de trabalho Vale ressaltar que mulheres principal-

mente as de classes menos favorecidas sempre participaram da forccedila de trabalho atra-

veacutes da histoacuteria Um exemplo foi a revoluccedilatildeo industrial que contou com a matildeo de obra

de mulheres solteiras e crianccedilas Durante o seacuteculo XX um contingente de mulheres

das classes meacutedias casadas e com filhos ingressou no mundo do trabalho Esta entrada

maciccedila de mulheres casadas na forccedila de trabalho eacute considerada o fator que mudou fun-

damentalmente as relaccedilotildees familiares ao longo do seacuteculo passado (Perlin e Diniz 2005

Diniz 2004 1999 1996 Hare-Mustin 1988)

A participaccedilatildeo da mulher casada no mercado de trabalho provoca alteraccedilotildees no arranjo

previamente estabelecido no seio da famiacutelia tradicional e promove um questionamento

dos papeacuteis e estereoacutetipos de gecircnero que o justificaram (Diniz 2004 Narvaz e Koller

2006) Gecircnero diz respeito ao coacutedigo de conduta que rege a organizaccedilatildeo social das rela-

ccedilotildees entre homens e mulheres O conceito de gecircnero passou a ser engendrado a partir

daquilo que se convencionou denominar de ldquosegunda ondardquo do movimento feminista

que ocorreu durante a deacutecada de 1960 O movimento feminista americano usou o ter-

mo gecircnero para distinguir a condiccedilatildeo bioloacutegica de ser homem e ser mulher da heran-

ccedila soacutecio-cultural que se agrega agrave noccedilatildeo de masculino e feminino (Diniz 1999 2003

2004 Narvaz e Koller 2007)

As discussotildees em torno do conceito evidenciaram a construccedilatildeo relacional e a organiza-

ccedilatildeo social das diferenccedilas entre os sexos colocando em questatildeo o determinismo bioloacute-

gico e econocircmico e as muacuteltiplas relaccedilotildees de poder que perpassam o ser homem e o ser

mulher no mundo Nesse contexto fica claro o caraacuteter social da vivecircncia da masculini-

dade e da feminilidade O fato eacute que toda cultura em cada momento histoacuterico propotildee

paracircmetros que organizam as relaccedilotildees entre os sexos (Scott 1995 Meyer1999 Diniz

1999 2003 Narvaz e Koller 2007)

A interaccedilatildeo entre gecircnero e as vaacuterias dimensotildees da experiecircncia de homens e mulheres

precisa ser levada em conta Narvaz e Koller (2007) ressaltam a importacircncia de identifi-

carmos ldquoproduccedilotildees discursivas que legitimam desigualdades de gecircnero e normatizam

papeacuteis e lugares de gecircnero nas relaccedilotildees afetivas sexuais e familiaresrdquo (p216)

435Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

O arranjo relacional tradicional estava baseado em uma divisatildeo clara de papeacuteis entre

homens e mulheres O investimento no trabalho e no mundo externo ou seja a in-

serccedilatildeo profissional com o intuito de garantir a sobrevivecircncia e a manutenccedilatildeo da famiacutelia

constituiacutea a funccedilatildeo primordial dos homens Cabia agraves mulheres lidar com o mundo in-

terno ou seja cuidar da administraccedilatildeo da casa da educaccedilatildeo dos filhos e da vida social

e emocional da famiacutelia garantindo dessa forma o seu bem-estar

No contexto atual mulheres estatildeo lidando com demandas que limitam sua participaccedilatildeo

na famiacutelia ao passo que os homens estatildeo desenvolvendo outras prioridades aleacutem do

trabalho e estatildeo ampliando seu envolvimento com a vida familiar (Diniz 2004) Essa

mudanccedila exige que homens e mulheres tenham flexibilidade para ampliar os padrotildees

de comportamento aprendidos na infacircncia incorporando ao seu repertoacuterio qualidades

e competecircncias atribuiacutedas anteriormente ao outro sexo Feacuteres-Carneiro Ponciano e

Magalhatildees (2007) chamam atenccedilatildeo para os desafios gerados por essa flexibilizaccedilatildeo de

papeacuteis As autoras apontam que essa nova forma de funcionar como casal e como famiacute-

lia estaacute pautada em uma ideologia individualista mas que ao mesmo tempo preconiza

a igualdade entre os membros da famiacutelia

O fato eacute que o casamento tradicional deixou de ser a norma social Prevalece hoje uma

multiplicidade de modelos e arranjos conjugais e familiares Feacuteres-Carneiro Ponciano e

Magalhatildees (2007) propotildeem que a transiccedilatildeo da famiacutelia tradicional hieraacuterquica e patriar-

cal para a famiacutelia moderna pautada na renegociaccedilatildeo dos papeacuteis e na democratizaccedilatildeo

das relaccedilotildees familiares seja analisada a partir de dois paracircmetros ndash a retraccedilatildeo e a inti-

midade A retraccedilatildeo diz respeito agrave diminuiccedilatildeo do tamanho da famiacutelia o que implica em

uma saturaccedilatildeo emocional e no aumento da responsabilidade dos pais como modelos

para os filhos A intimidade gera desafios para a negociaccedilatildeo das identidades pessoais

uma vez que paralelo ao oferecimento de paracircmetros de conduta eacute funccedilatildeo dos pais

propiciarem um espaccedilo para a liberdade de escolhas de modo a criar pessoas livres e

autocircnomas

O objetivo desse texto eacute promover uma reflexatildeo sobre mudanccedilas que estatildeo ocorrendo

nas relaccedilotildees interpessoais em especial no casamento e na famiacutelia no Brasil a partir de

resultados do Censo 2010 (IBGE 2012) Tomamos como ponto de partida uma breve

contextualizaccedilatildeo histoacuterica das muacuteltiplas configuraccedilotildees das famiacutelias brasileiras Em se-

guida apresentamos e problematizamos dados do Censo 2010 agrave luz de resultados de

436

pesquisas Concluiacutemos com reflexotildees sobre os desafios gerados pela tensatildeo entre ve-

lhos e novos modelos de conjugalidade e de famiacutelia

BreveContextualizaccedilatildeoHistoacutericadasConfiguraccedilotildeesdasFamiacuteliasBrasileiras

A histoacuteria do Brasil da colonizaccedilatildeo aos dias atuais nos fornece os paracircmetros para en-

tendermos a diversidade de arranjos conjugais e as muacuteltiplas configuraccedilotildees das famiacutelias

brasileiras Diniz e Coelho (2005) ressaltam que essa contextualizaccedilatildeo histoacuterica social

e cultural eacute fundamental para compreendermos a intricada teia que une o passado e o

presente

ldquo a compreensatildeo da vida conjugal e familiar de hoje pressupotildee uma visatildeo criacutetica acerca dos modelos naturalizantes de famiacutelia que surgiram ao longo do tempo Tal postura criacutetica eacute fundamental para o reconhecimento da riqueza e diversidade da vida familiar brasileirardquo (p 139)

A colonizaccedilatildeo europeacuteia deixou marcas em nossa sociedade A sociedade brasileira foi e

eacute no entanto produto da interaccedilatildeo entre diversos grupos eacutetnicos e sociais com formas

de organizaccedilatildeo proacuteprias Os processos de miscigenaccedilatildeo de raccedilas costumes e valores es-

tatildeo presentes e datildeo caracteriacutesticas proacuteprias agrave nossa sociedade ateacute os dias de hoje (Diniz

e Coelho 2005)

O modelo de famiacutelia extensa do tipo patriarcal predominou durante muito tempo em al-

gumas regiotildees do Brasil Nesse modelo de famiacutelia havia uma expectativa clara em torno

do papel da mulher - ela devia ser doce passiva e obediente para com os pais irmatildeos e

maridos Neder (1994) ressalta no entanto que mesmo dentro das famiacutelias patriarcais

de origem ibeacuterica e tradicional havia diferenccedilas A autora aponta que a famiacutelia patriarcal

dos engenhos nordestinos era diferente das famiacutelias patriarcais do sudeste do Brasil

Essas famiacutelias tinham em comum o caraacuteter repressivo conservador disciplinador e

controlador Entretanto o papel da mulher divergia nos dois contextos nos engenhos

elas tinham suas vidas circunscritas agrave casa grande e marcadas por atitudes de subalter-

nidade e subserviecircncia no sudeste elas tinham uma vida mais ativa pois cabia a elas

administrar as fazendas durante os periacuteodos de ausecircncia dos homens em funccedilatildeo dos

processos de colonizaccedilatildeo das ldquoentradas e bandeirasrdquo

437Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

As famiacutelias de indiacutegenas e negros tambeacutem eram caracterizadas pela mesma diversidade

presente nas famiacutelias brancas Pessoas de culturas diferentes e de diversas regiotildees do

continente africano foram trazidas para o Brasil e vivenciaram processos de acultura-

ccedilatildeo distintos em funccedilatildeo da regiatildeo do paiacutes em que foram alocadas De forma similar as

tribos indiacutegenas possuiacuteam costumes diversificados e passaram por processos de acul-

turaccedilatildeo diversos Esses grupos familiares compartilhavam entretanto a precariedade

das condiccedilotildees de vida marcadas pela presenccedila constante de depreciaccedilatildeo descaso pre-

conceito e exclusatildeo social mesmo apoacutes a independecircncia e o fim da escravidatildeo (Diniz e

Coelho 2005 Neder 1994 Bruschini 1981)

Levar em conta toda essa diversidade cultural implica em refletir tambeacutem sobre o lu-

gar do casamento para esses grupos sociais O casamento legal era uma prerrogativa

da parcela da populaccedilatildeo de raccedila branca e economicamente privilegiada Entre negros

e migrantes das demais classes sociais predominavam as uniotildees consensuais apesar

das ameaccedilas de puniccedilatildeo da Igreja Esse processo demarcava a existecircncia de contradiccedilatildeo

entre a moral vigente e as praacuteticas sociais O casamento formal era importante para as

camadas abastadas que tinham preocupaccedilatildeo com a legitimidade da prole e com a heran-

ccedila (Diniz e Coelho 2005 Samara 1987)

Mulheres de raccedila negra raramente contraiam o matrimonio oficialmente Falci (2001)

aponta que tal comportamento natildeo pode ser confundido com falta de compromisso com

a vida conjugal e familiar Da mesma forma que elas podiam ter companheiros tempo-

raacuterios tambeacutem podiam ter relacionamentos estaacuteveis e duradouros Essas diferenccedilas em

torno da vivecircncia da conjugalidade satildeo vaacutelidas para mulheres de descendecircncia indiacutegena

e de outras origens eacutetnicas Essas famiacutelias das classes populares construiacutedas com base

na informalidade eram caracterizadas por forte dependecircncia da rede de parentesco

para garantir o cuidado dos filhos assim como o suprimento de necessidades econocirc-

micas Elas eram e ainda costumam ser olhadas e avaliadas de forma preconceituosa

(Diniz e Coelho 2005 Praciano 2011)

Essa breve reflexatildeo histoacuterica eacute importante por dar sentido e colocar em perspectiva re-

sultados do Censo 2010 (IBGE 2012) Os resultados divulgados estabelecem uma com-

paraccedilatildeo entre a realidade brasileira do ano 2000 ou seja no iniacutecio da deacutecada com a

realidade do ano de 2010 final da primeira deacutecada do seacuteculo Esses dados precisam e

devem ser objeto de anaacutelise e reflexatildeo

438

As Mudanccedilas nos Casamentos e nas Famiacutelias Brasileiras

A vida conjugal e familiar no Brasil sofreu mudanccedilas profundas nas duas uacuteltimas deacute-

cadas Dados do Censo 2010 divulgados recentemente pelo Instituto Brasileiro de Ge-

ografia e Estatiacutestica (IBGE 2012) mostram tendecircncias que estatildeo reconfigurando casa-

mentos e famiacutelias de todas as classes sociais e em todas as regiotildees do paiacutes Os resultados

apontam que mudanccedilas nas formas de viver e de se relacionar satildeo afetadas por fatores

econocircmicos ambientais culturais

Os dados do Censo 2010 evidenciam que o nuacutemero de pessoas unidas por casamen-

tos civis e religiosos diminuiu ao longo da deacutecada 2000-2010 passou de 49 4 para

429 A adesatildeo a uma crenccedila religiosa apareceu com um fator relevante para a forma-

lizaccedilatildeo da uniatildeo que acontece com maior frequumlecircncia entre pessoas que se declararam

catoacutelicas ndash 375 ou evangeacutelicas ndash 265 Acompanhando tendecircncia similar o nuacutemero

de pessoas casadas caiu de 370 para 348 Homens tendem a se casar em torno dos

259 anos e as mulheres em torno dos 23 anos Na regiatildeo Sudeste homens e mulheres

tendem a se casar mais tarde do que nas demais regiotildees

Uma constataccedilatildeo importante eacute que 693 das pessoas no Brasil escolhem parceiras

os da mesma corraccedila Esse comportamento eacute mais marcante entre brancos (745)

pardos (685) e indiacutegenas (65) Entre osas respondentes de raccedila negra os homens

tenderam a escolher mulheres negras em menor percentual (399) do que as mulhe-

res negras (503) escolhem homens do mesmo grupo

A escolaridade eacute outra dimensatildeo importante ligada agrave escolha de parceirosas Em 2010

682 das pessoas estavam unidas a parceirosas do mesmo niacutevel de instruccedilatildeo enquan-

to que em 2000 eram 63 O niacutevel educacional parece ser mais relevante para mulhe-

res ndash 512 das mulheres com niacutevel superior completo tecircm como parceiro homens do

mesmo niacutevel educacional Entre os homens essa proporccedilatildeo eacute de 47 Feacuteres-Carneiro

(1997) referindo-se ao estudo de Kenrich Sadala Groth e Trost (1990) ressalta dados

importantes para entendermos essa diferenciaccedilatildeo entre homens e mulheres Segundo

a autora

ldquomulheres satildeo mais criteriosas ao escolherem parceiros para qualquer niacutevel de envolvimento enquanto os homens o satildeo apenas quando escolhem parceiras para fins de casamento Atributos como compreensatildeo gentileza e inteligecircncia satildeo avaliados pelos homens como pouco importantes na parceria

439Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

potencial quando se trata de um envolvimento para fins sexuais o mesmo natildeo ocorrendo com as mulheres em relaccedilatildeo agraves suas escolhasrdquo (p 352)

Os dados do censo mostraram que o niacutevel educacional tem relaccedilatildeo direta com a taxa de

fecundidade Mulheres sem instruccedilatildeo e com ensino fundamental incompleto chegam a

ter trecircs (3) filhos ao passo que mulheres com niacutevel de ensino superior completo tendem

a ter uma taxa de fecundidade de um (1) filho

Chama atenccedilatildeo o fato de que a taxa de fecundidade definida como o nuacutemero meacutedio de

filhos que uma mulher teria ao final de seu periacuteodo feacutertil vem caindo no paiacutes nos uacutelti-

mos setenta anos ndash passou de 616 em 1940 para 190 em 2010 O IBGE (2012) aponta

que a taxa atual estaacute abaixo do niacutevel de reposiccedilatildeo que eacute de 2 filhos por mulher Apenas

a regiatildeo norte do paiacutes ainda manteacutem uma taxa de reposiccedilatildeo acima desse niacutevel desejado

Importante ressaltar tambeacutem a relaccedilatildeo entre renda e fecundidade ndash a taxa de fecundida-

de de mulheres com rendimento domiciliar per capita acima de um (1) salaacuterio miacutenimo

tambeacutem fica abaixo do niacutevel de reposiccedilatildeo (IBGE 2012)

Mudanccedilas na taxa de fecundidade vecircm alterando a estrutura das famiacutelias hoje 202

das famiacutelias satildeo formadas por casais sem filhos esse percentual era de 149 no iniacutecio

da deacutecada Famiacutelias compostas por casais com filhos residem predominantemente nas

aacutereas rurais local onde historicamente as taxas de fecundidade satildeo mais elevadas e o

apego a valores tradicionais eacute maior Processos de migraccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo vecircm afetando

a configuraccedilatildeo das famiacutelias brasileiras

Os dados do IBGE (2012) revelaram que no grupo formado por pessoas entre 20 a 29

anos de idade 536 dos homens e 385 das mulheres nunca viveram e nem viviam

em uniatildeo quando responderam ao censo Jablonski fez uma pesquisa longitudinal nos

anos 1988 1993 2003 e 2009 sobre as expectativas de jovens solteiros em relaccedilatildeo ao

casamento O objetivo da pesquisa foi identificar como pessoas jovens de ambos os se-

xos lidam com os dilemas provocados pela presenccedila de velhos e novos modelos de con-

jugalidade A uacuteltima pesquisa contou com 436 participantes (200 do sexo masculino e

236 do sexo feminino) com idade entre 18 e 25 Todos eram estudantes em faculdades

puacuteblicas e particulares da cidade do Rio de Janeiro e de outras localidades do estado

Dados das coletas realizadas mostraram que a maioria dos jovens - 91 86 86 e

82 respectivamente - afirmou ter a intenccedilatildeo de casar Eacute fato que houve uma diminui-

440

ccedilatildeo dos iacutendices ao longo do periacuteodo mas o percentual encontrado mostra que a ideacuteia de

casamento natildeo encontra rejeiccedilatildeo entre jovens (Jablonski 2011)

A intenccedilatildeo de casar natildeo implica necessariamente em contrair uma uniatildeo formal A

vida a dois pode assumir diversos formatos tais como a coabitaccedilatildeo definida como vi-

ver junto sem papel assinado Outro modelo de vida a dois possiacutevel eacute o ldquoviver junto de

forma separadardquo ou seja as pessoas se definem como casal mas vivem em residecircncias

distintas preservando assim um espaccedilo para suas individualidades

Outra pergunta formulada aos jovens foi se eles acreditam que passaratildeo ldquoo resto da vida

com uma soacute pessoardquo Paradoxalmente os iacutendices de resposta encontrados ndash 49 66

756 e 714 satildeo elevados e mostram um aumento seguido de um pequeno recuo

Apesar das dificuldades para manter um relacionamento o autor entende que esse dado

reflete o fato de que as pessoas desejam que suas relaccedilotildees sejam bem sucedidas inde-

pendentemente da realidade que os cerca ndash aumento das taxas de divoacutercio e separaccedilatildeo

Jablonski (2011)

Houve um aumento nas uniotildees consensuais na sociedade brasileira ndash essas uniotildees su-

biram de 286 para 364 entre 2000 e 2010 Elas continuam mais frequumlentes entre

pessoas com rendimentos menores e com idade inferior a 39 anos A distribuiccedilatildeo tam-

beacutem eacute marcada pela categoria raccedilacor ndash 466 de pretos e 426 de pardos disseram

viver nesse tipo de uniatildeo

As diferenccedilas regionais tambeacutem permanecem evidentes ndash enquanto o Amapaacute apre-

sentou o maior percentual de uniotildees consensuais (635) Minas Gerais apresentou o

menor (259) (IBGE 2012) Esse dado revela a permanecircncia de dimensotildees histoacutericas

Apesar da melhoria da condiccedilatildeo econocircmica de grande parte da populaccedilatildeo em funccedilatildeo do

desenvolvimento de poliacuteticas sociais ainda prevalece uma grande discrepacircncia econocirc-

mica e de acesso a bens e serviccedilos entre as diversas camadas da sociedade e as regiotildees

brasileiras De acordo com anaacutelise do IBGE (2012) a experiecircncia de uniatildeo estaacutevel eacute

maior entre pessoas que tecircm rendimento de ateacute ― salaacuterio miacutenimo que vivem portanto

em condiccedilotildees socioeconocircmicas precaacuterias

O nuacutemero de pessoas divorciadas praticamente dobrou ndash foi de 17 em 2000 para

31 em 2010 O Distrito Federal apresentou o maior iacutendice de pessoas divorciadas

441Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

(42) seguido dos estados do Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul ambos com 41 O

Maranhatildeo foi o estado brasileiro com menor percentual de pessoas divorciadas ndash 12

O percentual de pessoas separadas tambeacutem aumentou ndash foi de 119 em 2000 para

146 em 2010 O Rio de Janeiro foi o estado brasileiro que apresentou o maior percen-

tual de separaccedilotildees ndash 175

Mais pessoas estatildeo vivendo sozinhas no paiacutes De acordo com o IBGE (2012) as denomi-

nadas unidades domeacutesticas unipessoais ou seja domiciacutelios com apenas um moradora

passaram de 92 em 2000 para 121 em 2010 Fatores como a centralidade do

trabalho o estresse a falta de tempo a presenccedila de maior sentimento de liberdade a

necessidade de experimentar muacuteltiplos relacionamentos podem explicar o crescimento

desse tipo experiecircncia ldquofamiliarrdquo

A constataccedilatildeo do aumento da chefia feminina foi outro resultado marcante do Censo de

2010 (IBGE 2012) A proporccedilatildeo de famiacutelias sob a responsabilidade de mulheres passou

de 222 no ano 2000 para 373 em 2010 Um dado interessante eacute que mesmo em

lares que contam com a presenccedila de cocircnjuge a chefia feminina cresceu de 195 para

464 nessa deacutecada O IBGE (2012) aponta que processos como o ingresso maciccedilo de

mulheres no mercado de trabalho o aumento da escolaridade superior entre o con-

tingente feminino da populaccedilatildeo e a mudanccedila de postura em relaccedilatildeo ao papel social de

mulheres estatildeo relacionados com essa mudanccedila

Famiacutelias reconstituiacutedas formadas em funccedilatildeo de separaccedilatildeo ou morte dos cocircnjuges re-

presentam hoje 163 entre os casais Wagner e Feacuteres-Carneiro (2000) chamam aten-

ccedilatildeo para a importacircncia de se conhecer as caracteriacutesticas e dinacircmicas das famiacutelias re-

constituiacutedas O luto pela perda da famiacutelia intacta precisa ser feito As autoras apontam

que o movimento de saiacuteda e de entrada dc novos membros no grupo familiar afeta a

dinacircmica de funcionamento da famiacutelia Ocorre alteraccedilatildeo nas figuras e nos padrotildees de

autoridade no uso de estrateacutegias educativas no exerciacutecio de papeacuteis nos processos de

comunicaccedilatildeo e de trocas afetivas

As relaccedilotildees homoafetivas constituem uma nova configuraccedilatildeo conjugal e familiar A pro-

porccedilatildeo de uniotildees entre pessoas do mesmo sexo tambeacutem foi objeto de anaacutelise Os dados

mostraram que mais da metade de casais do mesmo sexo - 526 residem na regiatildeo

Sudeste Algumas caracteriacutesticas das pessoas envolvidas nesse modelo de relaccedilatildeo cha-

442

maram atenccedilatildeo 258 possuem niacutevel educacional superior completo 816 declara-

ram como estado civil ldquosolteiroardquo

A informalidade marca tambeacutem as uniotildees homoafetivas - 996 declararam que vivem

em uniatildeo consensual Tal fato pode parecer paradoxal se for levado em conta outro

dado relativo agrave filiaccedilatildeo religiosa 474 dosas respondentes se disseram catoacutelicos en-

quanto 204 afirmaram natildeo ter religiatildeo Essa situaccedilatildeo revela o lugar de exclusatildeo e

preconceito com que essas uniotildees ainda satildeo vistas e a falta de legislaccedilatildeo pertinente por

parte do estado brasileiro

Os dados do Censo 20010 (IBGE 2012) revelam as transformaccedilotildees e as tendecircncias

que estatildeo produzindo novas configuraccedilotildees de famiacutelia e de vivecircncia da conjugalidade

Deixam antever tambeacutem os fatores histoacutericos e sociais que estatildeo levando a essas trans-

formaccedilotildees Feacuteres-Carneiro (1998) aponta a importacircncia desse tipo de dado ser objeto de

estudos aprofundados

ldquoAs transformaccedilotildees sociais que vecircm afetando a vivecircncia da conjugalidade tanto em casais heterossexuais como em casais homossexuais tecircm relevante influecircncia na formulaccedilatildeo das teorias psicoloacutegicas e consequumlentemente na praacutetica cliacutenica Eacute importante portanto verificar a extensatildeo e a natureza das diferenccedilas que se estabelecem nos diversos tipos de conjugalidade para a partir daiacute podermos construir modelos mais adequados de atendimento ao casal seja ele heterossexual gay ou de leacutesbicasrdquo (p 393)

Eacute nosso entendimento que a diversidade de modelos de vida conjugal e familiar aponta-

dos pelo Censo 2010 (IBGE 2012) revela a forccedila dos processos de transformaccedilatildeo social

e de seus impactos sobre as relaccedilotildees interpessoais A complexidade desses processos

e suas implicaccedilotildees na vida pessoal conjugal familiar e social merecem atenccedilatildeo e pes-

quisa

Reflexotildees

Fala-se em crise nas relaccedilotildees homem- mulher na famiacutelia e no casamento Como identi-

ficar essa crise Pela alardeada perda de valores Pelo aumento do nuacutemero de divoacutercios

ou pelo aumento da diversidade de formas de ser casal e famiacutelia como apontam os

dados do Censo 2010 O fato eacute que a estrutura das famiacutelias brasileiras mudou Hoje eacute

443Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea

grande o nuacutemero de casais sem filhos de famiacutelias monoparentais e de famiacutelias recons-

tituiacutedas As uniotildees estatildeo acontecendo mais tarde e o nuacutemero de filhos estaacute diminuindo

A aceitaccedilatildeo do divoacutercio e do recasamento tem gerado novas experiecircncias de vivecircncia da

afetividade e do parentesco A uniatildeo entre pessoas do mesmo sexo eacute um tema tratado

cada vez mais com naturalidade (Diniz 2009)

Vimos que fatores econocircmicos sociais e culturais contribuiacuteram para essas mudanccedilas

Bernardo Jablonski (19911998) jaacute ao longo da uacuteltima deacutecada do seacuteculo XX chamava

atenccedilatildeo com suas pesquisas para os impactos de distintos processos sobre o casamento

e a famiacutelia O autor destacou o papel dos movimentos sociais em especial os feminis-

mos assim como das consequumlecircncias de processos como a modernizaccedilatildeo a urbaniza-

ccedilatildeo a influecircncia dos meios de comunicaccedilatildeo de massa as mudanccedilas em relaccedilatildeo agrave reli-

giosidade o acirramento do individualismo e a diminuiccedilatildeo dos viacutenculos com a famiacutelia

extensa na produccedilatildeo de uma demanda por novos modelos familiares

Carter e Peters (1996) chamaram atenccedilatildeo ao final da mesma deacutecada para outro fator

igualmente relevante - a velocidade das transformaccedilotildees na funccedilatildeo do casamento Na

primeira metade do seacuteculo a funccedilatildeo do casar era para ter filhos e constituir famiacutelia

Para a mulher o casamento significava a uacutenica forma de ter sexo No rol das expectati-

vas contemporacircneas para o casamento as pessoas querem aleacutem de ter filhos encontrar

felicidade realizaccedilatildeo pessoal amor o exerciacutecio de uma sexualidade satisfatoacuteria e com-

panheirismo

O movimento feminista trouxe para a mulher a possibilidade de questionar a materni-

dade como a uacutenica ou a principal fonte de realizaccedilatildeo ou o casamento como o local de

exerciacutecio de sua sexualidade Hoje uma mulher pode optar por viver plenamente sua

sexualidade dentro ou fora de um relacionamento estaacutevel Pode ter ou natildeo ter filhos E

pode tambeacutem optar por investir em sua proacutepria carreira e natildeo em ser uma potencializa-

dora da carreira e do sucesso do marido Nesse contexto homens estatildeo sendo convida-

dos a rever seu papel no casamento na famiacutelia no trabalho e na sociedade

Fica evidente que homens e mulheres seja em relacionamentos hetero ou homoafeti-

vos estatildeo sendo desafiados a lidar com vaacuterios dilemas Questotildees de gecircnero como a divi-

satildeo de poder a reorganizaccedilatildeo dos papeacuteis e funccedilotildees na famiacutelia demandam flexibilidade e

negociaccedilatildeo Casais precisam encontrar espaccedilo para a individualidade e a conjugalidade

444

As demandas decorrentes da vida familiar e da inserccedilatildeo no mundo do trabalho tornam

o tempo um bem precioso A interaccedilatildeo famiacutelia-trabalho acaba por gerar conflitos em

torno de questotildees como a divisatildeo do trabalho domeacutestico o ter ou natildeo ter filhos e quem

assume responsabilidade pelo cuidado dos filhos Todos esses fatores carregam o poten-

cial de produzir estresse e de afetar a qualidade das relaccedilotildees O desgaste pode resultar

em conflitos que venham a por em risco a duraccedilatildeo do casamento

A efemeridade cada vez maior dos relacionamentos - namoros casamentos - eacute uma

caracteriacutestica da sociedade de hoje Pesquisa de Feacuteres-Carneiro Ziviani e Magalhatildees

(2011) aponta para o desafio que eacute compreender a diversidade de arranjos conjugais vi-

gentes na sociedade atual A satisfaccedilatildeo conjugal resulta da combinaccedilatildeo complexa entre

fatores internos e externos e essa interaccedilatildeo cria muitas possibilidades de relaccedilatildeo Cliacute-

nicos e pesquisadores enfrentam portanto o desafio de compreender dimensotildees que

afetam a vida conjugal e familiar no mundo contemporacircneo

Vivemos um momento de re-significaccedilatildeo dos viacutenculos afetivos e sociais Em tempos de

transiccedilatildeo indiviacuteduos famiacutelia e sociedade enfrentam desafios Em texto de 1994 Brus-

chini e Ridenti jaacute apontavam que um desafio fundamental estaacute relacionado agrave capacidade

de questionarmos a existecircncia de um uacutenico modelo adequado de casamento e de famiacutelia

para que possamos considerar as novas formas de relaccedilotildees interpessoais e de estruturas

familiares que estatildeo surgindo como modelos possiacuteveis O importante eacute ficar claro que

toda sociedade em diferentes momentos histoacutericos eacute confrontada com novas constru-

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448

Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

SheilaGiardiniMurta

ZildaAPDelPrette

AlmirDelPrette

ValeskaZanello

Introduccedilatildeo43

A concepccedilatildeo socialmente construiacuteda de que mulheres satildeo inferiores aos homens ou

sexismo e de que indiviacuteduos natildeo heterossexuais satildeo inferiores aos heterossexuais ou

heterossexismo tecircm se mostrado frequentemente associada agrave violaccedilotildees de direitos hu-

manos (Mattar 2008 Mott 2006) A violecircncia contra a mulher (Heise 1994 Bandei-

43 Este trabalho foi desenvolvido durante Poacutes-Doutorado da primeira autora (Bolsa CNPq Processo 1500912009-5) junto ao grupo de pesquisa do segundo e terceiro autores na Universidade Federal de Satildeo Carlos (httpwwwrihsufscarbr)

449Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

ra 2009) e a homofobia entendida como a aversatildeo a hostilidade e violecircncia dirigida

a homossexuais (Borges amp Meyer 2008 Borrilo 2009 Mott 2006) estatildeo entre as

consequecircncias mais diretas do sexismo e do heterossexismo respectivamente A discri-

minaccedilatildeo44 contra estes grupos natildeo se baseia apenas das diferenccedilas de gecircnero e de orien-

taccedilatildeo sexual mas tambeacutem em outros marcadores sociais como raccedila e classe Assim

mulheres e homossexuais pobres negros e de baixa instruccedilatildeo no Brasil tendem a ser

ainda mais estigmatizados do que mulheres e homossexuais brancos ricos e mais ins-

truiacutedos (Carrara amp Vianna 2006) A valoraccedilatildeo da sexualidade a partir do modelo hete-

ronormativo estaacute entre os determinantes do sexismo e heterossexismo Neste modelo

os papeacuteis de gecircnero e as orientaccedilotildees sexuais satildeo atrelados agraves categorias macho e fecircmea

vistas como distintas e complementares O exerciacutecio da sexualidade para outros fins

que natildeo a reproduccedilatildeo a sexualidade vivenciada por pessoas do mesmo sexo e os papeacuteis

de gecircnero que fogem do binocircmio masculino-feminino representam nesta oacutetica uma

anormalidade Seguindo o modelo heteronormativo as praacuteticas culturais promovem

um processo de ldquovigilacircncia de gecircnerordquo que estigmatiza e impede o acesso aos direitos

de todos os que se desviam da orientaccedilatildeo sexual normativa (heterossexual) do modelo

familiar (homem e mulher como nuacutecleo inicial) e dos papeacuteis de gecircnero considerados

ldquocertosrdquo ou seja masculino e feminino com diferenccedilas rigidamente demarcadas (Bor-

rilo 2009) Os resultados nocivos do modelo heteronormativo recaem portanto sobre

todos desviantes ou natildeo

Este capiacutetulo tem por objetivo abordar o impacto do sexismo e heterossexismo sobre a

sauacutede e as possibilidades de prevenccedilatildeo a tais fatores de risco para a sauacutede mental O tex-

to estaacute organizado em quatro partes Na primeira parte discute-se a construccedilatildeo cultural

de gecircnero Na segunda satildeo tratadas as relaccedilotildees entre sexismo heterossexismo e sauacutede

Na terceira satildeo abordadas propostas de accedilotildees preventivas normativassociais e educa-

cionaispessoais segundo as poliacuteticas puacuteblicas atuais brasileiras e a literatura nacional

e de outros paiacuteses especializada em prevenccedilatildeo em sauacutede mental gecircnero e sauacutede Na

quarta satildeo considerados os desafios para a pesquisa e a formaccedilatildeo profissional na aacuterea

44 No mecircs de novembro de 2010 ocorreram em Satildeo Paulo lastimaacuteveis manifestaccedilotildees homofoacutebicas com assassinatos de vaacuterias pessoas Os fatos envolvendo a participaccedilatildeo de esquadrotildees policiais foram amplamente noticiados pela miacutedia

450

GecircnerocomoConstruccedilatildeoCultural

O termo ldquosexismordquo pode ser definido como a discriminaccedilatildeo e a desqualificaccedilatildeo de um

sujeito em funccedilatildeo do seu sexo (Houaiss amp Villar 2001) No entanto para entender o

sexismo eacute necessaacuterio retornar agrave histoacuteria da sociedade ocidental no que tange agraves rela-

ccedilotildees de gecircnero Gecircnero natildeo eacute apenas uma representaccedilatildeo social da diferenccedila sexual

mas antes eacute uma construccedilatildeo cultural que valora de maneira desigual hieraacuterquica a

proacutepria diferenccedila sexual que ela produz (Butler 2003) Butler afirma que ldquoos limites da

anaacutelise discursiva do gecircnero pressupotildeem e definem por antecipaccedilatildeo as possibilidades

das configuraccedilotildees imaginaacuteveis e realizaacuteveis do gecircnero na culturardquo (Butler 2003 p 29)

Com esta afirmaccedilatildeo a autora enfatiza a ideacuteia de que eacute impossiacutevel o acesso agrave diferenccedila

ldquonaturalrdquo sexual pois o que daacute acesso jaacute sempre de forma interpretada eacute a proacutepria

linguagem Segundo Butler natildeo eacute o sexo que cria o gecircnero mas antes o gecircnero quem

cria o sexo Nossa cultura eacute marcada por um discurso hegemocircnico binaacuterio o qual nos

faz ver o mundo em uma dicotomia (Derrida 1999a Derrida 1999b) Este binarismo

se reflete tambeacutem na categorizaccedilatildeo de toda a diversidade humana sob a chancela de

ldquohomemrdquo e ldquomulherrdquo (Butler 2003)

Para Butler (2003) a base da concepccedilatildeo binaacuteria de gecircnero tem como background a

crenccedila numa metafiacutesica do sujeito a qual pressupotildee uma noccedilatildeo de identidade substan-

tivada Ou seja seria da proacutepria noccedilatildeo metafiacutesica de ldquosubstacircnciardquo marca da histoacuteria do

pensamento ocidental que deriva a noccedilatildeo de identidade como algo permanente

Nicholson (2000) aponta que a noccedilatildeo de identidade sexual se firma no seacuteculo XVIII

no bojo de uma novidade interpretativa em relaccedilatildeo ao conhecimento do corpo Se ateacute

o seacuteculo XVII a diversidade de corpos era compreendida de modo unitaacuterio (o corpo da

mulher como um corpo masculino em falta menos desenvolvido) a partir de entatildeo

firma-se o binarismo isto eacute a ideacuteia de que corpos femininos e masculinos satildeo essencial-

mente diferentes Tais diferenccedilas levariam a expressotildees de comportamentos e sentimen-

tos diferenciados Ou seja natildeo eacute que diferenccedilas corporais natildeo fossem percebidas antes

do seacuteculo XVII mas houve uma crescente compreensatildeo da natureza dos seres huma-

nos em termos das configuraccedilotildees especiacuteficas da mateacuteria ldquoAssim os aspectos fiacutesicos ou

materiais do corpo cada vez mais assumiram o papel de testemunhas da natureza do

eu que esse corpo abrigavardquo (Nicholson 2000 p 7) A metafiacutesica materialista caracte-

riacutestica da eacutepoca natildeo significou a construccedilatildeo de novas distinccedilotildees sociais ex-nihilo mas

a elaboraccedilatildeo das distinccedilotildees previamente existentes por novos meios O sexo deixou de

451Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

ser categoria socioloacutegica para ser uma categoria ontoloacutegica (Casares 2008) O sentido

das caracteriacutesticas fiacutesicas antes compreendidas como marca sinal passam a ser com-

preendidas como o que daacute origem Trata-se de um determinismo bioloacutegico noccedilatildeo esta

face agrave qual o feminismo reagiu seacuteculos depois

Segundo Nicholson (2000) o conceito de gecircnero surge no seacuteculo XX como uma con-

testaccedilatildeo agrave determinaccedilatildeo social a partir das marcas e diferenccedilas corporais Em um pri-

meiro momento a reaccedilatildeo se deu atraveacutes de uma discordacircncia e de uma concordacircncia

parciais com o determinismo bioloacutegico A discordacircncia diz respeito agrave compreensatildeo da

influecircncia dos fatores sociais no comportamento humano E a concordacircncia diz acerca

da existecircncia de um corpo bioloacutegico a priori Isto eacute neste momento o gecircnero foi com-

preendido como uma modelaccedilatildeo social a partir de diferenccedilas corporais existentes em si

mesmas Gecircnero neste sentido eacute tomado como noccedilatildeo oposta agrave ideacuteia de sexo Deacutecadas

mais tarde sobretudo com a contribuiccedilatildeo de Butler a proacutepria ideacuteia de uma diferenccedila

corporal a priori foi questionada O que se colocou em evidecircncia foi a impossibilidade

de se ter acesso ao corpo fora de uma cultura que jaacute de antematildeo natildeo o interpretasse e

categorizasse Neste vieacutes compreende-se que eacute o gecircnero quem constroacutei o modelo binaacute-

rio sexual- corporal mas tambeacutem social

Aleacutem disto Butler (2003) aponta ldquocomo fenocircmeno inconstante e contextual o gecircnero

natildeo denota um ser substantivo mas um ponto relativo de convergecircncia entre conjuntos

especiacuteficos de relaccedilotildees cultural e historicamente convergentesrdquo (Butler 2003 p 29)

Isto eacute a noccedilatildeo de gecircnero natildeo deve ser entendida como unidade e identidade pressupos-

tamente estaacutevel Eacute justamente neste pressuposto (de estabilidade e unidade) que repou-

sa a ldquoexigecircnciardquo a naturalizaccedilatildeo da existecircncia de um desejo pelo sexo oposto Ou seja a

heterossexualidade compulsoacuteria O sexo procriador eacute o modelo cuja suposta naturalida-

de daacute forccedila a este pensamento Corpos ldquonaturaisrdquo sexo ldquonaturalrdquo diferenccedilas ldquoincontes-

taacuteveisrdquo (fiacutesicas) desejos naturais e ldquosaudaacuteveisrdquo Como se qualquer coisa relacionada ao

ser humano pudesse ser compreendida de forma a-simboacutelica simplesmente ldquonaturalrdquo

Com Butler (2003) trata-se de apontar que natildeo eacute a diferenccedila fiacutesica que sustenta a de-

sigualdade social mas antes eacute a desigualdade construiacuteda soacutecio e historicamente que

classifica os corpos a partir de uma diferenccedila criada valorada e hierarquizada As re-

laccedilotildees de gecircnero satildeo portanto antes de mais nada relaccedilotildees de poder No ocidente

caracterizou-se por uma desvalorizaccedilatildeo das mulheres e uma afirmaccedilatildeo de uma heteros-

452

sexualidade naturalizada que foi potencializada ainda mais na afirmaccedilatildeo do casamento

como um ideal lugar onde o sexo e suas forccedilas subjacentes poderiam ser controlados

Principalmente a afirmaccedilatildeo da monogamia para as mulheres (Del Priore 2005) Se-

gundo Casares (2008) com a assunccedilatildeo da burguesia tratava-se sobretudo de garantir

que os herdeiros fossem mesmo filhos do marido Eacute esta matriz binaacuteria heterossexual

com posiccedilotildees assimeacutetricas de poder e direitos para homens e mulheres que se cons-

tituiu como paracircmetro a partir do qual outras formas de sexualidade passaram a ser

compreendidas interpretadas e desqualificadas

Nela a mulher tomou o lugar relacionado agrave passividade agrave emotividade agrave fraqueza O

homem foi associado agrave virilidade sexual e laborativa (Nicholson 2000 Zanello amp Go-

mes 2010) E mais o feminino foi qualificado como inferior assim como tudo aquilo

que dele se aproxima Algumas das formas de ser humanas julgadas a partir destes

ideais passaram a ser perseguidas e excluiacutedas tanto de forma clara e aberta (assassina-

tos julgamentos banimentos) como de forma mais invisiacutevel atraveacutes do controle social

(como o xingamento a piada a exclusatildeo) caracterizando o que Foucault denomina de

microfiacutesica do poder Enquanto valor apregoado na cultura fez-se presente natildeo mais

apenas fora dos sujeitos mas constituindo-os Isto eacute passou-se de um poder repressivo

para o que Focault (1977) denomina de poder constitutivo

Isto se evidencia sobretudo na afirmaccedilatildeo da masculinidade Badinter (1992) aponta

o quanto ser homem eacute uma construccedilatildeo que se daacute no imperativo mais do que no indi-

cativo Para ela a frase ldquoseja homemrdquo repetida frequentemente aos meninos aponta

que a virilidade natildeo seria algo ldquonaturalrdquo Ser ldquohomemrdquo implica um trabalho que parece

natildeo ser exigido das mulheres pois ningueacutem diz a elas ldquoseja mulherrdquo A virilidade deve

ser provada construiacuteda ldquofabricadardquo Welzer-Lang (2004) destaca que o drama desta

virilidade eacute ser posta agrave prova a todo o momento devendo ser ldquonegativardquo construiacuteda

reativamente como um ldquonatildeo ser mulherrdquo Nas palavras de Joan Scott (1990 p 15) ldquoA

ideacuteia de masculinidade repousa sobre a repressatildeo necessaacuteria de aspectos femininos -

do potencial bissexual do sujeito - e introduz o conflito na oposiccedilatildeo do masculino e do

femininordquo Isto eacute a homofobia teria em seu fulcro uma misoginia Esta estaacute portanto

presente tanto no sexismo quanto no heterossexismo

453Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

SexismoHeterossexismoeSauacutede

As praacuteticas excludentes e opressoras derivadas do sexismo e do heterossexismo tecircm

impedido ou dificultado o pleno desenvolvimento das potencialidades das mulheres e

das pessoas LGBT (leacutesbicas gays bissexuais travestis transexuais e transgecircneros) por

meio da restriccedilatildeo de oportunidades educacionais e de trabalho com repercussatildeo ne-

gativa na sociedade e na economia em diferentes lugares do mundo (Bandeira 2009

Heise 1994 Mattews amp Adams 2009 Roberts 1998 Schwartz amp Lindley 2009) Do

ponto de vista social o impacto pode ser visto em suiciacutedios e assassinatos (Borrillo

2009 Carrara amp Vianna 2006 Mott 2006 Sieben amp Wallowitz 2009) violecircncia pelo

parceiro iacutentimo (Anacona 2008 Cordeiro Heilborn Cabral amp Moraes 2009 Hernan-

dez amp Mendoza 2009 Schraiber DrsquoOliveira amp Franccedila Jr 2005) e transmissatildeo da vio-

lecircncia entre geraccedilotildees (Williams Maldonado amp Padovani 2008)

No caso das pessoas LGBT a homofobia se revela na forma de piadas aparentemen-

te inocentes injuacuterias depreciaccedilatildeo compaixatildeo negaccedilatildeo de direitos e rotulaccedilatildeo da ho-

mossexualidade como doentia e anormal Esta discriminaccedilatildeo disfarccedilada ou manifes-

ta contribui para a autoestigmatizaccedilatildeo ou violecircncia interiorizada (Mathews amp Adams

2009) Os sentimentos de inadequaccedilatildeo pessoal culpa ansiedade e vergonha aleacutem de

transtornos como depressatildeo e abuso de substacircncias psicoativas satildeo alguns dos efeitos

perversos do heterossexismo (Borges amp Meyer 2008 Borrilo 2009) Em se tratando

das mulheres um dos custos do sexismo eacute a maior incidecircncia de transtornos mentais

na mulher do que nos homens especialmente os de ansiedade e depressatildeo conforme

estudos com amostra brasileira (Andrade Viana amp Silveira 2006) e estrangeira (Le

Munoz Ippen amp Stoddard 2003) Entre os determinantes destes transtornos encon-

tram-se a dificuldade em controlar a proacutepria vida e a exposiccedilatildeo a condiccedilotildees coercitivas

de vida caracteriacutesticas das interaccedilotildees marcadas pelo sexismo no acircmbito da famiacutelia do

casamento e do trabalho (Albee 1981)

Estudos sobre a depressatildeo no ciclo de vida da mulher consideram as mulheres ado-

lescentes gestantes e fumantes como particularmente vulneraacuteveis (Le e cols 2003)

Segundo estes estudos a depressatildeo pode ser acompanhada por estrateacutegias de enfrenta-

mento nocivas agrave sauacutede como o uso de aacutelcool e tabaco o abuso de drogas e o sexo sem

proteccedilatildeo Em resposta a isto a gravidez na adolescecircncia o suiciacutedio ou as tentativas de

suiciacutedio com suas sequumlelas e a depressatildeo poacutes-parto constituem alguns dos principais

454

problemas de sauacutede enfrentados pelas mulheres aleacutem da reduccedilatildeo de sua capacidade

produtiva ou mesmo sua incapacitaccedilatildeo (Andrade e cols 2006)

Como resultado do sexismo mulheres e homens tornam-se mutilados por esse tipo de

praacutetica cultural (Lima Bucheli amp Cliacutemico 2008) A mutilaccedilatildeo natildeo eacute apenas metafoacuteri-

ca mas tambeacutem literal nos paiacuteses que praticam a extirpaccedilatildeo de partes da genitaacutelia da

mulher (clitoacuteris pequenos laacutebios e grandes laacutebios) ou quando a violecircncia fiacutesica deixa

sequumlelas Enquanto para as mulheres em tantos grupos sociais ou culturais eacute estabele-

cido um amplo controle sobre seus corpos e sexualidade (Louro 2007) para os homens

a ldquovigilacircncia de gecircnerordquo cerceia a expressatildeo de emoccedilotildees e de qualquer comportamento

aparentado com o que eacute culturalmente considerado feminino (Borrilo 2009)

Os custos desta mutilaccedilatildeo se fazem presentes tanto sobre a sauacutede da mulher quanto do

homem como evidenciado pela anaacutelise das causas de morbidade e mortalidade entre

mulheres e homens As mulheres utilizam com mais frequumlecircncia os serviccedilos de sauacutede

do que os homens e estes de acordo com dados de Laurenti Jorge e Gotlieb (2005)

morrem mais cedo do que as mulheres possivelmente por serem elas culturalmente

ldquoautorizadasrdquo a sentir dor e eles natildeo Assim o homem ignora sinais precoces da doenccedila

(seja ela qual for) e se envolve em comportamentos de risco agrave sauacutede tais como demons-

trar poder por meio da violecircncia e beber abusivo o que dificulta ainda mais o trata-

mento levando-o a estaacutegios avanccedilados e aumentando o risco da morte precoce (Lima e

cols 2008) No Brasil conforme dados do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) apresentados

por Laurenti e cols (2005) as principais causas de morte para o homem satildeo causas

externas (exemplo homiciacutedios e acidentes de tracircnsito) transtornos mentais e compor-

tamentais (exemplo psicose alcooacutelica) doenccedilas do aparelho digestivo (exemplo cirrose

hepaacutetica associada ou natildeo ao uso do aacutelcool) e neoplasias (como cacircncer de pulmatildeo

proacutestata e estocircmago) Eacute evidente tambeacutem a contribuiccedilatildeo de fatores comportamentais

associados ao gecircnero masculino para estas causas de morte como o uso da violecircncia

para resolver conflitos desencadeando mortes precoces e o consumo excessivo do aacutelcool

levando agrave cirrose hepaacutetica e psicose alcooacutelica

Dada a gravidade deste cenaacuterio natildeo eacute de se estranhar que os grupos de pesquisa em

gecircnero e sauacutede no Brasil tenham na violecircncia de gecircnero um de seus principais temas

de investigaccedilatildeo conforme levantamento feito por Aquino (2006) junto a 51 grupos de

pesquisa nacionais Ao lado de outros temas como reproduccedilatildeo e contracepccedilatildeo sexu-

455Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

alidade e sauacutede trabalho e sauacutede a violecircncia de gecircnero aparece como um dos temas

mais frequumlentemente tratados em teses dissertaccedilotildees e artigos publicados em revistas

especializadas em sauacutede puacuteblica no Brasil

Dentre as formas de violecircncia de gecircnero destacam-se as cometidas pelo parceiro iacutenti-

mo em relaccedilotildees homo ou heterossexuais Um estudo de Schraiber e cols (2005) com

5040 participantes de ambos os sexos provenientes de contextos urbanos brasileiros

mostrou que existe uma maior prevalecircncia de violecircncia por parceiro iacutentimo entre mu-

lheres do que entre homens entre homobissexuais do que entre heterossexuais entre

pessoas negras do que outras e entre os de menor escolaridade e menor renda Outro

estudo (DrsquoOliveira e cols 2009) com 940 mulheres de Satildeo Paulo e 1188 de Pernam-

buco confirmou a associaccedilatildeo entre violecircncia por parceiro iacutentimo e baixa escolaridade

e identificou alguns outros fatores correlacionados como ter testemunhado violecircncia

entre os pais ter sido viacutetima de violecircncia na infacircncia ter muitas gestaccedilotildees (cinco ou

mais) e uso abusivo de aacutelcool Estes autores ao analisarem a literatura da aacuterea tambeacutem

mencionam a subserviecircncia pessoal e a aceitaccedilatildeo da violecircncia como comportamentos

presentes nesta populaccedilatildeo

Estes uacuteltimos aspectos remetem agraves dificuldades de relacionamento em geral associa-

do a um repertoacuterio deficitaacuterio de habilidades sociais necessaacuterias na negociaccedilatildeo com o

parceiro defesa de direitos expressatildeo de desagrado e pedido de mudanccedila de comporta-

mento denominadas habilidades sociais assertivas (Del Prette amp Del Prette 2001 sobre

a negociaccedilatildeo como classe de habilidades sociais no relacionamento ver por exemplo

Kelly Fincham amp Beach 2003) De fato diferentes autores tecircm salientado que a cons-

truccedilatildeo social dos papeacuteis de gecircnero afeta as habilidades de negociaccedilatildeo com o parceiro o

que por sua vez resulta em comportamentos de risco agrave sauacutede sexual e reprodutiva em

especial da mulher

O campo teoacuterico praacutetico das habilidades sociais jaacute possui uma tradiccedilatildeo de estudos com

a populaccedilatildeo feminina enfocando em geral as dificuldades sociais culturais impostas

agrave mulher como um dos fatores que podem comprometer seu repertoacuterio de habilidades

sociais (ver entre outros Jakubowski-Spector 1973 Osborn amp Harris 1975 MacDonald

1982) Em outras palavras a cultura ocidental ainda premia a submissatildeo da mulher

mais do que a ousadia Por exemplo a dificuldade em assertividade na negociaccedilatildeo com

parceiros tem sido apontada (ainda que com outras denominaccedilotildees) como um dos fa-

456

tores de risco para se contaminar pelo HIV e outras doenccedilas sexualmente transmissiacute-

veis (Asinelli-Luz amp Fernandes Jr 2008) engravidar precocemente (Nogueira e cols

2008 Aquino e cols 2003) e fazer sexo sob coerccedilatildeo (Cordeiro e cols 2009 DrsquoOliveira

e cols 2009)

A violecircncia de gecircnero como um problema de sauacutede puacuteblica embora presente em to-

dos os continentes natildeo se aplica a todas as culturas Segundo Heise (1994) culturas

que adotam papeacuteis de gecircnero mais flexiacuteveis e leis que condenam veementemente a

violecircncia de gecircnero apresentam menor incidecircncia deste fenocircmeno Na mesma linha a

ocorrecircncia de praacuteticas homofoacutebicas pode estar diretamente relacionada a crenccedilas sobre

homossexualidade como antinatural e agrave natildeo concessatildeo de direitos sociais baacutesicos a pes-

soas LGBT como o direito ao casamento agrave adoccedilatildeo agrave reproduccedilatildeo assistida e agrave igualdade

patrimonial entre casais (Borrilo 2009 Mott 2006)

Assim como enfatizado jaacute haacute algumas deacutecadas por Albee (1981) um dos pioneiros

da psicologia preventiva o sexismo eacute aprendido A violecircncia de gecircnero e a homofobia

como demonstraccedilotildees sexistas e heterossexistas resultam da interrelaccedilatildeo entre fatores

pessoais familiares econocircmicos sociais religiosos e culturais Testemunhar violecircncia

entre os pais ser exposto a modelos sexistas e heterossexistas na famiacutelia na escola e

nos meios de comunicaccedilatildeo baixa instruccedilatildeo dependecircncia econocircmica crenccedilas religiosas

de que a submissatildeo feminina eacute desejaacutevel de que a homossexualidade eacute antinatural e a

toleracircncia legal frente agrave homofobia e agrave violecircncia contra a mulher satildeo alguns dos fatores

de risco para a violecircncia de gecircnero (Carvalho-Barreto Bucher-Maluschke Almeida amp

DeSouza 2009) e para a hostilidade contra homossexuais (Borrilo 2009) Se a origem

do sexismo e do heterossexismo eacute multideterminada abordagens ecoloacutegicas satildeo neces-

saacuterias para a compreensatildeo deste problema bem como para sua prevenccedilatildeo e reduccedilatildeo

AccedilotildeesdePrevenccedilatildeoaoSexismoeaoHeterossexismo

Uma implicaccedilatildeo direta da multicausalidade destes fenocircmenos para o campo da sauacutede

mental e para os programas de prevenccedilatildeo ao sexismo e ao heterossexismo eacute a possibi-

lidade de estrateacutegias de intervenccedilatildeo preventivas de menor ou maior abrangecircncia desde

os contextos microssociais ateacute os macrossociais (Schwartz amp Lindley 2009 Mathews

amp Adams 2009) Os programas de prevenccedilatildeo ao sexismo e heterossexismo podem ser

classificados em dois grupos os sociaisnormativos e os educacionaispessoais

457Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

Os programas sociaisnormativos compreendem estrateacutegias relativas a poliacuteticas puacutebli-

cas e legislaccedilatildeo No Brasil exemplos recentes satildeo a Lei Maria da Penha que visa o

combate agrave violecircncia contra a mulher o II Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres

que propotildee diferentes accedilotildees visando agrave promoccedilatildeo da equidade de gecircnero (Secretaria Es-

pecial de Poliacuteticas para as Mulheres 2008) e o Programa Brasil sem Homofobia que

busca reduzir praacuteticas de violecircncia e hostilidade contra pessoas GLBT (Ministeacuterio da

Sauacutede 2004) Deve ser salientado ainda um investimento recente em pesquisas nas

temaacuteticas de gecircnero gecircnero e ciecircncia sauacutede da mulher e sauacutede do homem com editais

especiacuteficos de apoio agrave pesquisa concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento

Cientiacutefico e Tecnoloacutegico (Narvaz amp Koller 2007) As Tabelas 1 e 2 apresentam uma siacuten-

tese de diferentes estrateacutegias de prevenccedilatildeo ao sexismo e heterossexismo

Os programas educacionaispessoais almejam transformar por meio de intervenccedilotildees

educacionais crenccedilas e comportamentos de um grupo menor de pessoas que contudo

podem se tornar multiplicadoras e tambeacutem influenciar mudanccedilas culturais Ainda que

os programas sociaisnormativos e educacionaispessoais sejam diferentes eles natildeo

satildeo excludentes e poderiam ser utilizados simultacircnea e complementarmente em alguns

casos Natildeo raro os programas educacionaispessoais constituem as vias pelas quais as

poliacuteticas puacuteblicas satildeo executadas Os programas educacionaispessoais descritos na lite-

ratura tecircm sido conduzidos principalmente em escolas e universidades e satildeo dirigidos

ou a problemas especiacuteficos como AIDS e violecircncia no namoro ou agrave educaccedilatildeo afetivo-

-sexual e conscientizaccedilatildeo sobre os direitos sexuais e reprodutivos juntamente com a

e a promoccedilatildeo de competecircncias especiacuteficas para exercitar e disseminar esses direitos

Alguns dos estudos identificados focalizaram a promoccedilatildeo dos direitos sexuais e repro-

dutivos e a equidade de gecircnero em adolescentes (Andrade e cols 2009 Murta e cols

2012) e homens adultos (Verma e cols 2006) bem como o desenvolvimento afetivo-

-sexual em adolescentes e seus pais (Fernaacutendez Fernaacutendez amp Castro 2007 Fernaacutendez

Fernaacutendez Mangana amp Castro 2006) Outros focalizaram a prevenccedilatildeo da violecircncia no

namoro em universitaacuterios (Schwartz Magee Griffin amp Dupuis 2004) e em adolescen-

tes (Matos Machado Caridade amp Silva 2006 Murta e cols 2011) da AIDS em ado-

lescentes (Antunes e cols 2002) e da homofobia entre professores (Borges amp Meyer

2008 Sieben amp Wallowitz 2009) Alguns destes temas tecircm sido mais pesquisados e

apresentam uma maior produccedilatildeo cientiacutefica como os programas de prevenccedilatildeo agrave AIDS

enquanto outros tecircm produccedilatildeo escassa como programas de prevenccedilatildeo agrave homofobia

458

Tabela 1 Estrateacutegias de enfrentamento e prevenccedilatildeo ao sexismo

Estrateacutegias sociaisnormativas Estrateacutegias educacionaispessoais

Plano Nacional de Poliacuteticas para as Mulheres (Secretaria Especial de Poliacuteticas para as Mulheres 2005)

Programas de prevenccedilatildeo ao abuso sexual e agrave coerccedilatildeo sexual fundamentados

na perspectiva de gecircnero

Apoio de agecircncias de fomento agrave pesquisa com abertura de editais de incentivo agraves pesquisas nos temas de gecircnero saudade

da mulher e sauacutede do homem

Programas de prevenccedilatildeo agrave AIDS e gravidez precoce fundamentados na perspectiva de gecircnero

Lei Maria da Penha Programas de educaccedilatildeo sexual na escola fundamentados na perspectiva de gecircnero

Contenccedilatildeo de conteuacutedos divulgados pela miacutedia que faccedilam apologia ao

abuso dos direitos da mulher

Programas de prevenccedilatildeo agrave violecircncia no namoro no ensino meacutedio e universitaacuterio

Remoccedilatildeo por parte dos oacutergatildeos gestores de conteuacutedos sexistas e inclusatildeo da

temaacutetica de gecircnero em livros didaacuteticos distribuiacutedos em escolas puacuteblicas

Programas de promoccedilatildeo de equidade de gecircnero para trabalhadores

Programas de promoccedilatildeo de sauacutede da mulher nas unidades de atenccedilatildeo baacutesica em sauacutede

Ensino de disciplinas relacionadas a gecircnero em cursos de graduaccedilatildeo em especial para profissionais de sauacutede educaccedilatildeo e direito

Simpoacutesios acerca de gecircnero e produccedilatildeo cientiacutefica para redirecionamento das

poliacuteticas de fomento agrave pesquisa

Campanhas educativas na miacutedia que mostrem que a violecircncia e a discriminaccedilatildeo

contra a mulher satildeo inaceitaacuteveis

Programas de habilidades de vida e promoccedilatildeo de direitos sexuais e reprodutivos

para adolescentes e adultos

Programas de habilidades sociais promoccedilatildeo de direitos interpessoais e prevenccedilatildeo agrave violecircncia de

gecircnero para crianccedilas adolescentes e adultos

No Brasil a literatura em Psicologia mostra que programas preventivos em geral e

particularmente os de prevenccedilatildeo ao sexismo e ao heterossexismo focados na pessoa

satildeo relativamente pouco pesquisados (Abreu 2012 Lacerda Jr amp Guzzo 2005 Murta

2007) Os escassos estudos brasileiros tecircm sido conduzidos em sua maioria em con-

texto escolar (Antunes e cols 2002 Borges amp Meyer 2008 Andrade e cols 2009)

Quanto agrave educaccedilatildeo sexual nas escolas diversos autores (Borges amp Meyer 2008 Diniz amp

459Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

Asinelli-Luz 2007 Louro 2007 Nogueira Saavedra amp Costa 2008 Rosistolato 2009)

tecircm apontado os desafios de se conduzir accedilotildees educativas com este foco Estes desafios

giram em torno da ldquoclandestinidaderdquo do tema da sexualidade e dos direitos sexuais e

reprodutivos (Aquino 2006 Borges amp Meyer 2008) Eacute como se falar de sexualidade e

de direitos sexuais fosse proibido em especial quando se questiona o poder socialmente

atribuiacutedo ao homem e ao heterossexual

Tabela 2 Estrateacutegias de enfrentamento e prevenccedilatildeo ao heterossexismo

Estrateacutegias sociaisnormativas Estrateacutegias educacionaispessoais

Regulamentaccedilatildeo da atuaccedilatildeo profissional anti-heterosexista por conselhos

profissionais tais como a Resoluccedilatildeo 00199 do Conselho Federal de Psicologia

Palestras proferidas por pessoas LGBT acerca da proacutepria experiecircncia para grupos de

alunos universitaacuterios e para jovens LGBT

Programa Brasil Sem Homofobia programa de combate agrave violecircncia agrave discriminaccedilatildeo

contra GLBT e de promoccedilatildeo de cidadania homossexual (Brasil 2004)

Foacuteruns de discussatildeo na comunidade com participaccedilatildeo de profissionais de sauacutede mental

Contenccedilatildeo de conteuacutedos divulgados pela miacutedia que faccedilam apologia ao abuso

dos direitos das pessoas LGBT

Capacitaccedilatildeo para professores focada em gecircnero e diversidade sexual (Borges amp Meyer 2008)

Editais de apoio agrave pesquisa nas temaacuteticas de sauacutede da mulher gecircnero e sauacutede do homem

Fortalecimento da rede de apoio social e senso de pertencimento por meio da

inserccedilatildeo em comunidades LGBT

Leis que permitam a adoccedilatildeo e o casamento entre parceiros do mesmo sexo

Informaccedilatildeo para familiares de adolescentes LGBT e pais em geral na escola

Leis que impeccedilam a discriminaccedilatildeo por preconceito por orientaccedilatildeo sexual

Encaminhamentos de pessoas LGBT para orientaccedilatildeo especializada sempre que necessaacuterio

Remoccedilatildeo por parte dos oacutergatildeos gestores de conteuacutedos heterossexistas e inclusatildeo da temaacutetica

da diversidade sexual em livros didaacuteticos e dicionaacuterios distribuiacutedos em escolas puacuteblicas

Programas de valores direitos humanos multiculturalismo e

respeito agrave diversidade na escola

Campanhas educativas na miacutedia que mostrem que a violecircncia e a discriminaccedilatildeo

contra homossexuais satildeo inaceitaacuteveis

Ensino de disciplinas relacionadas a gecircnero em cursos de graduaccedilatildeo em especial para profissionais de sauacutede educaccedilatildeo e direito

460

Estrateacutegias sociaisnormativas Estrateacutegias educacionaispessoais

Programas de promoccedilatildeo de habilidades sociais empaacuteticas e prevenccedilatildeo agrave homofobia

na escola para crianccedilas e adolescentes

Programas de habilidades de vida e promoccedilatildeo de direitos sexuais e reprodutivos

para adolescentes e adultos

Uma das evidecircncias destes obstaacuteculos culturais eacute a ausecircncia desses conteuacutedos dos livros

didaacuteticos distribuiacutedos em escolas puacuteblicas brasileiras acerca do tema da diversidade se-

xual Uma anaacutelise de livros didaacuteticos e dicionaacuterios distribuiacutedos em escolas puacuteblicas no

Brasil nos anos de 2007 e 2008 feita por Lionccedilo e Diniz (2009) mostrou que os livros

didaacuteticos natildeo contecircm conteuacutedos homofoacutebicos mas tambeacutem natildeo apresentam famiacutelias e

relaccedilotildees afetivas homossexuais Aleacutem disto tratam a sexualidade unicamente na pers-

pectiva bioloacutegica e de prevenccedilatildeo de doenccedilas omitindo suas dimensotildees social e afetiva

Constataram ainda que os dicionaacuterios analisados conceituam praacuteticas sexuais e afetivas

natildeo-heterossexuais como patoloacutegicas e antinaturais Na mesma linha eacute pertinente su-

por que a escassez de estudos sobre programas preventivos da homofobia eacute um sinal

adicional destes mesmos obstaacuteculos culturais (Borges amp Meyer 2008)

Exatamente pelo desafio impliacutecito na construccedilatildeo de programas preventivos ao sexis-

mo e ao heterossexismo em escolas brasileiras uma das tarefas do pesquisador nesta

aacuterea eacute a definiccedilatildeo do conteuacutedo e do formato de programas que contemplem os ingre-

dientes criacuteticos para se promover a mudanccedila sem gerar rejeiccedilatildeo e hostilidade ao pro-

grama Uma experiecircncia bem sucedida foi apresentada por Fernaacutendez e cols (2007)

que descrevem um programa de educaccedilatildeo afetivo-sexual para adolescentes e pais de

uma escola de ensino meacutedio na Espanha com o seguinte conteuacutedo identidade corporal

(mudanccedilas fiacutesicas e psicoloacutegicas da puberdade pressatildeo dos meios de comunicaccedilatildeo para

com a beleza) identidade de gecircnero (atitudes sexistas e respeito agrave diversidade sexual)

identidade e autoestima (autoconceito condicionantes sociais da autoimagem corpo-

ral e gecircnero) emoccedilotildees (desenvolvimento da empatia e da assertividade na expressatildeo

das emoccedilotildees) relaccedilotildees socioafetivas (respeito e toleracircncia nas relaccedilotildees interpessoais e

amizade na adolescecircncia) comportamento sexual (crenccedilas errocircneas sobre sexualidade

e desenvolvimento de uma visatildeo positiva sobre a sexualidade) e sauacutede sexual (meacutetodos

anticonceptivos)

461Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

Os resultados do programa conduzido por Fernandez e cols (2007) apontaram um

incremento em informaccedilatildeo sobre o comportamento sexual satisfaccedilatildeo corporal auto-

conceito autoestima e atitudes favoraacuteveis agrave equidade de gecircnero entre os adolescentes

Foi constatado ainda que os participantes adolescentes e pais demonstraram satisfaccedilatildeo

para com o programa Uma anaacutelise do conteuacutedo deste e de outros programas preven-

tivos voltados para temas correlatos como AIDS violecircncia no namoro e equidade de

gecircnero mostra que eacute comum nestes programas a inclusatildeo de habilidades sociais asser-

tivas de negociaccedilatildeo com o parceiro de manejo de emoccedilotildees e habilidades interpessoais

em geral De fato as habilidades sociais possuem uma estreita relaccedilatildeo com a temaacutetica

dos direitos humanos (Braz 2010) e com a toleracircncia agrave diversidade (Del Prette amp Del

Prette 2008) podendo consistir em um importante objeto de pesquisa preventiva nesta

aacuterea

O conjunto das propostas de accedilotildees de intervenccedilatildeo sugere um caminho a ser construiacutedo

que requer o envolvimento de gestores puacuteblicos e da sociedade em geral mas tambeacutem

a formaccedilatildeo de recursos humanos para a prevenccedilatildeo e o aperfeiccediloamento de propostas e

programas para isso Esses temas constituem desafios a serem progressivamente assu-

midos pelas ciecircncias da sauacutede em geral e pela Psicologia em particular

DesafiosdaPesquisaedaFormaccedilatildeoProfissional

Enquanto campo de investigaccedilatildeo o desenvolvimento efetivo de accedilotildees preventivas ao

sexismo e ao heterossexismo premite mapear uma agenda de pesquisa extensa natildeo

apenas na produccedilatildeo cientiacutefica no Paiacutes mas tambeacutem na busca de cooperaccedilatildeo com pes-

quisadores do exterior Dentre as tarefas de investigaccedilatildeo podem ser destacadas a cons-

truccedilatildeo de programas com conteuacutedo e formato viaacuteveis para diferentes populaccedilotildees (ex

crianccedilas adolescentes e universitaacuterios) e contextos (ex escola universidade e empre-

sas) o desenvolvimento de instrumentos de medida quantitativos e qualitativos para

avaliaccedilatildeo dos efeitos desses programas a conduccedilatildeo de pesquisas de avaliaccedilatildeo de pro-

gramas preventivos para verificaccedilatildeo da efetividade destas intervenccedilotildees com amostra e

delineamentos adequados e sobretudo o enfrentamento aos obstaacuteculos culturais para

discussatildeo dos direitos sexuais e reprodutivos nos vaacuterios espaccedilos sociais

462

Associado agrave pesquisa em geral no Brasil conduzida em contexto universitaacuterio entende-

-se que o investimento em prevenccedilatildeo requer de um lado programas preventivos edu-

cacionaispessoais com universitaacuterios e de outro um maior investimento no ensino

de prevenccedilatildeo em cursos de graduaccedilatildeo particularmente os de sauacutede e Psicologia A

ecircnfase na remediaccedilatildeo e a negligecircncia ao ensino de prevenccedilatildeo na graduaccedilatildeo em Psicolo-

gia (Conyne Newmeyer Kenny Romano amp Matthews 2008) tanto no Brasil como em

paiacuteses da Ameacuterica do Norte se revela por meio da ausecircncia de disciplinas focadas em

prevenccedilatildeo disciplinas que incluem o tema apenas de modo perifeacuterico disciplinas que

tratam de prevenccedilatildeo poreacutem satildeo ministradas em poucos creacuteditos e disciplinas optativas

(ao inveacutes de obrigatoacuterias) sobre o tema Conforme proposto por Britner e OrsquoNeil (2008)

o ensino de prevenccedilatildeo deve ser feito a partir dos eixos teoacuterico-conceituais praacutetico e

eacutetico Isto suscita a discussatildeo sobre o que deve ser ensinado e como deve ser ensinado

O ensino de prevenccedilatildeo ao sexismo ao heterossexismo e a outros toacutepicos que remetem a

exclusotildees e discriminaccedilotildees historicamente assimiladas eacute uma tarefa complexa (Russel

Soysa Wagoner amp Dawson 2008) que deve ir aleacutem da discussatildeo de teorias e conceitos

Isto requer disciplinas e estrateacutegias de ensino que extrapolem o desenvolvimento das

capacidades analiacutetica e instrumental e incluam tambeacutem o desenvolvimento da com-

petecircncia social (Del Prette amp Del Prette 2003) Promover competecircncia social supotildee

dentre outros objetivos ensinar habilidades para a adoccedilatildeo da perspectiva do outro o

respeito ao diferente a defesa dos proacuteprios direitos e o reconhecimento do direito do

outro Isto eacute crucial na formaccedilatildeo de profissionais sensiacuteveis e preparados para atuar pre-

ventivamente nas temaacuteticas da equidade de gecircnero e da diversidade sexual

ConsideraccedilotildeesFinais

Pelo exposto pode-se concluir que a prevenccedilatildeo ao sexismo e ao heterossexismo eacute uma

tarefa urgente necessaacuteria e desafiadora A promoccedilatildeo da equidade de gecircnero e o fortale-

cimento de uma cultura inclusiva do ponto de vista (tambeacutem) da diversidade de gecircnero

e sexual podem favorecer a reduccedilatildeo da incidecircncia de diferentes problemas em sauacutede

mental e de sauacutede fiacutesica com impacto final na longevidade e na qualidade de vida das

pessoas inclusive independentemente da identidade sexual e de gecircnero

O desenvolvimento de accedilotildees preventivas sejam elas sociaisnormativas ou educacio-

naispessoais esbarra em obstaacuteculos culturais que representam possivelmente o seu

463Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo

maior desafio Contudo a criaccedilatildeo na uacuteltima deacutecada em nosso paiacutes de poliacuteticas puacuteblicas

que prevecircem a coibiccedilatildeo e prevenccedilatildeo da violecircncia de gecircnero (Secretaria Especial de Po-

liacuteticas para as Mulheres 2008) e da homofobia (Ministeacuterio da Sauacutede 2004) anuncia

novas perspectivas na aacuterea

A consecuccedilatildeo e consolidaccedilatildeo dos objetivos destas poliacuteticas iraacute certamente requerer em

meacutedio e longo prazo novos e diferentes esforccedilos poliacuteticos e tambeacutem o investimento

na produccedilatildeo de novos conhecimentos Uma das tarefas mais relevantes seja para in-

tegrantes de movimentos sociais gestores puacuteblicos e pesquisadores eacute a avaliaccedilatildeo da

implementaccedilatildeo dos programas derivados de tais poliacuteticas puacuteblicas e de seus resultados

e impactos Como afirmado por Junqueira (2009 p 161) ldquonatildeo eacute qualquer modelo edu-

cacional que se presta ao desenvolvimento social e () tampouco a elevaccedilatildeo da escola-

ridade se faz acompanhar do aprimoramento eacutetico dos indiviacuteduosrdquo Logo eacute pertinente

defender uma avaliaccedilatildeo das accedilotildees preventivas normativassociais e educacionaispes-

soais aqui apresentadas em termos do seu impacto sobre o desenvolvimento social e

eacutetico das pessoas a elas expostas no que tange ao respeito aos direitos de mulheres e

pessoas LGBT Eacute eacute certamente importante reconhecer e avaliar avanccedilos e tensotildees ecircxitos

e insucessos benefiacutecios e custos na implementaccedilatildeo dessas accedilotildees sociais normativas e

educacionais promotoras da diversidade de gecircnero e sexual no Brasil Responder a estas

questotildees seraacute vital para a tomada de decisatildeo por parte de gestores puacuteblicos movimen-

tos sociais e pesquisadores para o planejamento dos proacuteximos passos e estrateacutegias para

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470

O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

MarceloTavares

BlancaSusanaGuevaraWerlang

Este trabalho pretende apresentar uma visatildeo psicodinacircmica da crise A relevacircncia da

Intervenccedilatildeo em Crise (IC) foi amplamente reconhecida a partir dos trabalhos de Linde-

mann (1944) cuja concepccedilatildeo surge historicamente atrelada agrave ocorrecircncia de um trau-

ma ou cataacutestrofe Esta concepccedilatildeo toma um fator externo de relativa magnitude como

determinante do estado de crise ou seja trata a crise como uma resposta induzida pela

emergecircncia de situaccedilotildees externas Um desastre ou cataacutestrofe como um incecircndio pode

ser vivido por muitas pessoas Uma situaccedilatildeo de violecircncia urbana como um sequestro

pode ter grande impacto em uma uacutenica pessoa Independente da natureza pessoal ou

social do trauma esta visatildeo reconhece que alguns eventos de vida satildeo suficientemente

impactantes para afetarem via de regra a vida da maioria das pessoas Desde entatildeo

a IC como resposta a situaccedilotildees de emergecircncia tem se consolidado progressivamente

(Roberts 2005)

Esta tradiccedilatildeo assim como a maioria das concepccedilotildees de crise enfatiza o periacuteodo de rup-

tura com reaccedilotildees afetivas dolorosas diminuiccedilatildeo da capacidade cognitiva e funcional

471O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

comportamento desadaptativo e a emergecircncia de sintomas (Aguiar 1998 Saacute Werlang

Paranhos 2008) A visatildeo psiquiaacutetrica tradicional utiliza a mesma concepccedilatildeo poreacutem

coloca o foco na disfunccedilatildeo e no sintoma Tende a diminuir a relevacircncia de fatores his-

toacutericos e contextuais a tratar a disfunccedilatildeo ou emergecircncia de sintomas como um evento

ldquoendoacutegenordquo e utilizar a medicalizaccedilatildeo como forma prioritaacuteria de tratamento (Sadock amp

Sadock 2007)

Outro uso dessa concepccedilatildeo de crise prosperou na deacutecada de 1980 e 90 com o amadu-

recimento das propostas de psicoterapia breve Esta modalidade terapecircutica se aplica a

pessoas com relativa estabilidade e qualidade de funcionamento preacute-moacuterbido que entra-

ram em crise precipitada por questotildees subjetivas ou por eventos de vida (Sifneos 1993)

Portanto presume-se a capacidade para o enfrentamento das situaccedilotildees cotidianas da

vida e a ausecircncia de traccedilos moacuterbidos de personalidade Nesta modalidade o foco tera-

pecircutico ainda privilegia o sintoma como algo que emerge a partir da situaccedilatildeo atual sem

negar mas prescindindo-se assim de uma visatildeo evolutiva e processual da crise

Este texto parte das concepccedilotildees de Caplan (1980) e Erikson (1976 1987 1998) com o

objetivo de expor e discutir um conceito de crise coerente com uma compreensatildeo da ex-

periecircncia da crise necessaacuteria para o trabalho de IC com pessoas com comprometimen-

to estrutural significativo em estado de sofrimento psiacutequico grave e em situaccedilotildees de

risco Estes autores reconheciam o impacto dos eventos traumaacuteticos mas enfatizaram

os aspectos evolutivos processuais e psicossociais que predispotildeem as pessoas agrave crise

Caplan (1980) definiu fases do processo de iniacutecio exacerbaccedilatildeo e resoluccedilatildeo de uma crise

Erikson (1987) colocou a crise no centro do processo evolutivo de formaccedilatildeo da persona-

lidade e consolidaccedilatildeo da identidade a partir do nascimento e excedendo-se ateacute os anos

de maturidade e envelhecimento A crise passa a ser vista como normativa e necessaacuteria

numa concepccedilatildeo psicossocial do desenvolvimento e se vincula agraves tarefas impostas pelo

processo de amadurecimento e agraves competecircncias adquiridas pela experiecircncia

Este conceito aqui explorado apresenta uma visatildeo ampliada de processo incluindo

aspectos psicodinacircmicos de desenvolvimento que contribuem para a constituiccedilatildeo de

vulnerabilidades na estrutura da personalidade que levam aos transtornos de personali-

dade (McWilliams 2011 Stolorow amp Lachmann 1983) Este conceito eacute tambeacutem influen-

ciado por uma visatildeo psicossocial e sistecircmica (Bowen 1981 Framo 1970 1981 Pittman

DeYoung Flomenhaft Kaplan amp Langsley 1981) Essa visatildeo integrada eacute fundamental

472

no acolhimento na avaliaccedilatildeo e no planejamento de uma intervenccedilatildeo com pessoas com

vulnerabilidades estruturais e sofrimento psiacutequico grave tanto para compreensatildeo do

processo que leva a esta disposiccedilatildeo agrave crise e aos comportamentos de risco quanto para

a superaccedilatildeo destes

CrisepsicoloacutegicamdashUmadefiniccedilatildeo

A crise psicoloacutegica eacute um processo subjetivo determinado pelo contexto e pela histoacuteria

de vida de vivecircncia ou experimentaccedilatildeo de situaccedilotildees nas quais condiccedilotildees da realidade

interna e externa mobilizam uma pessoa e demandam novas respostas para as quais ela

perdeu ou ainda natildeo acessou natildeo adquiriu natildeo desenvolveu ou natildeo domina a capaci-

dade o repertoacuterio ou os recursos necessaacuterios para dar soluccedilatildeo agrave complexidade da tarefa

em questatildeo

Essa definiccedilatildeo tem oito caracteriacutesticas fundamentais Estas satildeo demanda (mobilizado-

ra) condiccedilotildees da realidade interna e externa resposta recursos complexidade (histoacute-

rica e contextualmente determinada) processo subjetividade e soluccedilatildeo Agora vamos

examinar cada uma delas

Demanda

O primeiro elemento crucial nessa definiccedilatildeo refere-se agrave demanda condiccedilatildeo necessaacuteria

ao desenvolvimento de um processo de crise Se natildeo haacute uma exigecircncia necessidade ou

desejo que se imponha ao sujeito ele permanece em seu estado de adaptaccedilatildeo inalterado

estado em que as condiccedilotildees agraves quais estaacute submetido lhe parecem satisfatoacuterias Portanto

se natildeo haacute demanda natildeo haacute crise Uma das caracteriacutesticas da demanda eacute o potencial que

tem para exercer uma pressatildeo e criar um estado de tensatildeo transtorno ou perturbaccedilatildeo

que manteacutem o sujeito mobilizado Posto de outro modo a demanda eacute revelada pela si-

tuaccedilatildeo ou contexto mobilizador Paradoxalmente uma aparente desmobilizaccedilatildeo frente a

uma situaccedilatildeo criacutetica que demanda uma reaccedilatildeo ou resposta pode ser uma defesa contra a

anguacutestia de uma determinada situaccedilatildeo de crise podendo ateacute mesmo fazer parecer que

natildeo haacute um estado de crise Por este motivo seria limitado definir crise como um estado

de desorganizaccedilatildeo e sofrimento aparente

473O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

Condiccedilotildeesinternaseexternas

Forccedilas internas e externas atuam sobre um organismo continuamente Na medida em

que este consegue organizar suas forccedilas para manter ou restabelecer um determinado

estado de adaptaccedilatildeo seu funcionamento continua em niacuteveis oacutetimos ou adequados A

accedilatildeo de condiccedilotildees de realidade interna e externa eacute a segunda caracteriacutestica a ser desta-

cada na configuraccedilatildeo da demanda que instaura a crise Ou seja a demanda eacute resultante

de determinantes de um interjogo constante de fatores internos e externos Distinguir

matizes internos e externos das crises psicoloacutegicas aleacutem de favorecer a compreensatildeo

de seus fatores determinantes permite a definiccedilatildeo de estrateacutegias de intervenccedilatildeo e pre-

venccedilatildeo diferenciadas de modo que estas possam ser dirigidas ao sujeito e ao ambiente

Ainda que algumas crises possam ser referidas a fatores bioloacutegicos natildeo podemos pen-

saacute-las fora do trinocircmio biopsicossocial pois mesmo nas situaccedilotildees em que fatores bioloacute-

gicos satildeo comprovados a vivecircncia de crise eacute crivada de sentidos subjetivos e comparti-

lhados (pela famiacutelia e rede social) e pode ser alterada a partir de intervenccedilotildees de sentido

(interpretaccedilatildeo modificaccedilotildees ambientais) que interagem com estes aspectos subjetivos

e compartilhados (portanto psicossociais)

Nos fatores externos da demanda incluiacutemos os aspectos relacionais e sistecircmicos e todos

os tipos de interaccedilotildees do sujeito com seu meio Natildeo soacute as demandas relacionam-se com

o meio mas tambeacutem as respostas que seratildeo empregadas pelo sujeito O meio tambeacutem

natildeo eacute inerte e iraacute reagir e interagir com o sujeito criando dificuldades apoiando facili-

tando ou bloqueando acesso a recursos do ambiente Mesmo numa crise que possa ser

pensada como resultante de determinantes bioloacutegicos de uma etapa de desenvolvimen-

to como aprender a andar coexiste nela a interaccedilatildeo de outros fatores internos aleacutem de

externos Internamente o aparelho psicomotor estaacute progressivamente se fortalecendo

e adquirindo maior domiacutenio de suas funccedilotildees mas a crianccedila tambeacutem se vecirc confrontada

subjetivamente pelos desejos e temores que esta nova e maior autonomia lhe apresenta

Por outro lado o mundo externo tambeacutem apresenta exigecircncias nessa fase pode promo-

ver (dando apoio e sustentaccedilatildeo) ou dificultar (exigindo autonomia precoce antes que o

aparelho psiacutequico esteja capaz de responder agrave demanda ou coibindo a iniciativa) pode

estabelecer condiccedilotildees ou restringir a possibilidade de realizaccedilatildeo de desejos e de exerciacute-

cio de novas habilidades

474

Frequentemente muacuteltiplos fatores estatildeo em contraposiccedilatildeo criando um arranjo com-

plexo de tensotildees e conflitos internos e externos A participaccedilatildeo de fatores internos e

externos em uma perspectiva biopsicossocial integrada fica mais clara e dramaacutetica na

puberdade e adolescecircncia e sua complexidade aumenta progressivamente ao longo dos

anos de maturidade Assim aspectos internos e externos participam continuamente da

configuraccedilatildeo da crise que se instala bem como delimitam as possibilidades de resposta

ou resoluccedilatildeo da situaccedilatildeo

Reaccedilatildeoouresposta

Outra caracteriacutestica da crise decorre da demanda Uma vez que uma demanda estaacute pos-

ta ela deixaraacute o sujeito mobilizado e iraacute exigir o envolvimento dele na forma de uma

reaccedilatildeo ou resposta Uma resoluccedilatildeo dificilmente poderaacute ser encontrada apenas com a

modificaccedilatildeo de fatores do meio O sujeito deveraacute envolver-se para atender agrave demanda e

dar destino a seu estado de mobilizaccedilatildeo Se uma reaccedilatildeo ou resposta do sujeito natildeo for

necessaacuteria natildeo haveraacute um processo de crise Reaccedilatildeo eacute um termo mais abrangente que

se aplica a todo o organismo ou ao self tomando este conceito como representaccedilatildeo total

do sujeito Por exemplo assim entendemos as reaccedilotildees afetivas somaacuteticas e sintomaacute-

ticas Resposta eacute um termo mais restrito referindo-se a uma accedilatildeo dirigida (ainda que

natildeo consciente) mas formada a partir do ego portanto dirigida a fins estruturantes

ou adaptativos como satildeo os mecanismos de defesas por exemplo mesmo quando as

reaccedilotildees e respostas sinalizam um estado de desorganizaccedilatildeo do ego O mais importante

eacute que a situaccedilatildeo mobiliza o sujeito criando tensotildees que o afetam e por isso modificam

seu estado subjetivo e influenciam o comportamento concorrendo para uma situaccedilatildeo

favoraacutevel de resoluccedilatildeo da crise ou dando sinais de fracasso na soluccedilatildeo das dificuldades

Uma das estrateacutegias da Intervenccedilatildeo em Crise (IC) eacute a modificaccedilatildeo ou remoccedilatildeo de fa-

tores externos associados agrave demanda por manipulaccedilatildeo do meio ambiente como tirar

uma licenccedila de trabalho evitar contato com certas pessoas ou mudar de residecircncia

Tais remoccedilotildees de estressores ambientais podem afetar favoravelmente a necessidade

de dar uma resposta imediata agrave situaccedilatildeo dando ao sujeito tempo para elaborar suas

dificuldades e encontrar alternativas A transformaccedilatildeo do significado subjetivamente

associado agrave demanda (um fator interno) tambeacutem pode exercer o mesmo efeito Poreacutem

eacute impossiacutevel natildeo responder a uma demanda colocada Em alguns casos a resposta pode

475O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

ser uma omissatildeo ou uma recusa Por exemplo natildeo reconhecer a necessidade de autono-

mia eacute uma soluccedilatildeo que conduz a um estilo de personalidade dependente recusar uma

proposta de promoccedilatildeo pode para algumas pessoas resolver ou abortar uma situaccedilatildeo de

crise Apesar do risco de estagnaccedilatildeo o estilo dependente e a recusa satildeo respostas que

ldquoresolvemrdquo a crise por estancar a anguacutestia que a mobilizou

Entre a demanda e a resposta haacute a mobilizaccedilatildeo do sujeito A desmobilizaccedilatildeo negaccedilatildeo

evitaccedilatildeo o isolamento do afeto como outras respostas defensivas frente agrave crise impe-

dem a elaboraccedilatildeo na consciecircncia dos fatores relacionados agrave anguacutestia que mobiliza a

crise Subjetivamente (e defensivamente) contribuem para uma sensaccedilatildeo de aliacutevio que

se traduz pelo natildeo envolvimento com a situaccedilatildeo Ainda que o uso desses mecanismos

possa contribuir para conter o impacto da crise seu uso sistemaacutetico resulta em soluccedilotildees

parciais ou de compromisso e podem natildeo atender satisfatoriamente quesitos importan-

tes da demanda Esta condiccedilatildeo pode ser precaacuteria e dependeraacute do sujeito ser capaz de

manter estas demandas e anguacutestias fora de sua vida consciente continuamente Por-

tanto ainda que ele mantenha a sensaccedilatildeo de ajuste ele estaraacute afetado por ter limitado

sua capacidade de funcionamento com possiacuteveis restriccedilotildees de autonomia e liberdade

Eacute a essa troca ndash o preccedilo que se paga por este arranjo de receber um aparente benefiacutecio

a um custo ndash que chamamos de soluccedilatildeo de compromisso Soluccedilotildees parciais ou de com-

promisso podem induzir a uma situaccedilatildeo crocircnica (e recursiva) de vulnerabilidade que

pode ser testada por experiecircncias de vida futura na medida em que a situaccedilatildeo evocar

aquilo que foi evitado No entanto se a resposta atende agrave demanda ou natildeo parcial ou

plenamente natildeo altera o fato de que um processo de crise instalado mobiliza e requer

atenccedilatildeo

Tomemos o seguinte exemplo D Ceacutelia era considerada uma professora excelente e

tinha a admiraccedilatildeo dos alunos o respeito dos colegas e a apreciaccedilatildeo dos pais Quando a

diretora de sua escola aposentou-se todos tinham a certeza de que ela seria a sucessora

natural para a funccedilatildeo o que ela aceitou Era matildee de famiacutelia reputava ter um bom ca-

samento e considerava nunca ter tido dificuldades psicoloacutegicas Suas dificuldades em

assumir o cargo ficaram aparentes logo de iniacutecio e poucos meses apoacutes ela jaacute estava

em profunda crise depressiva A sua solicitaccedilatildeo para ser substituiacuteda no cargo provocou

uma melhora notaacutevel na maioria de seus sintomas embora natildeo de modo suficiente

para a remissatildeo do quadro de Transtorno Depressivo Maior O que a colocou em crise

foi precisamente a mesma dificuldade que a fez se sentir obrigada a aceitar o cargo a

476

sua dificuldade de dizer ldquonatildeordquo No processo de IC que se seguiu ela veio a reconhecer

uma dinacircmica predominante que tivera desde cedo a necessidade de agradar e ob-

ter a aprovaccedilatildeo de todos Sentir-se amada era mais importante do que ser eficiente ou

promover-se na carreira Como diretora de repente viu-se obrigada a administrar con-

flitos tomar decisotildees e colocar limites que desagradavam pessoas o que a colocava em

confronto com pessoas ou grupos de quem antes ela tinha admiraccedilatildeo respeito estima

enfim Nestes confrontos uma decisatildeo a favor de algueacutem era simultaneamente uma

decisatildeo contra outra Com a falta de recursos para lidar com sentimentos agressivos dos

outros e a dificuldade para estabelecer limites eficazes nestas relaccedilotildees este contexto a

colocou diante de um conflito que nunca fora capaz de elaborar satisfatoriamente A

exacerbaccedilatildeo desse conflito lhe trouxe de uma vez intensos sentimentos e propiciaram

uma crise depressiva grave medo da perda de amor do outro sensaccedilatildeo de rejeiccedilatildeo e

abandono sentimentos de culpa e menosprezo paralelos a uma raiva inconsciente e

inaceitaacutevel nunca antes reconhecida muito menos elaborada

Naturezaequalidadedarepostafrenteasituaccedilotildeesdecrise

Evitamos propositalmente na definiccedilatildeo o condicionamento da qualidade da resposta

do sujeito agrave situaccedilatildeo de crise ndash a demanda exige do sujeito respostas novas ou diferen-

ciadas e iraacute cobrar dele a competecircncia ou capacidade para buscar e emitir estas respos-

tas independente das que ele efetivamente eacute capaz de dar Por este motivo natildeo nos refe-

rimos na definiccedilatildeo nem agrave resposta subjetiva de fracasso diante de situaccedilotildees relevantes

nem agrave superaccedilatildeo das mesmas ou seja natildeo nos baseamos na qualidade da resposta para

definir se haacute ou natildeo uma crise em processo

Deste modo a existecircncia da crise independe da natureza ou da qualidade da resposta

que o sujeito procura dar agrave demanda Consequentemente consideramos que tanto o

investimento e a experimentaccedilatildeo quanto a omissatildeo a inaccedilatildeo e a permanecircncia em es-

tado de paralisia ou impasse satildeo formas de resposta agrave crise Eacute comum que o sujeito em

crise inicialmente intensifique as respostas que tem utilizado anteriormente ateacute que

estas entrem em falecircncia segundo sua concepccedilatildeo subjetiva Por esse motivo uma pes-

soa agressiva que recorre a meacutetodos de aliacutevio de tensatildeo e ansiedade na bebida estaacute em

risco de tornar-se violenta ou alcooacutelatra a menos que perceba a escalada desses com-

portamentos como respostas inadequadas agrave situaccedilatildeo ou como respostas contraacuterias a

477O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

sua identidade ou a seus valores Neste caso tenderaacute a procurar respostas mais adequa-

das ou satisfatoacuterias Uma estrateacutegia para facilitar a mudanccedila satildeo intervenccedilotildees propiacutecias

para transformar aquilo que eacute egosintocircnico em egodistocircnico No entanto na dificuldade

de encontrar uma resposta adequada para a situaccedilatildeo frente a uma demanda inevitaacutevel

o sujeito daraacute a resposta que for possiacutevel mesmo que indesejada ou inadequada Natildeo

adianta querer que uma pessoa decirc uma resposta eficaz mesmo quando esta parece

faacutecil ou oacutebvia sem que ela tenha as condiccedilotildees subjetivas e suportes adequados do meio

para fazecirc-lo Sem a compreensatildeo das relaccedilotildees complexas entre a demanda o quadro

subjetivo e as condiccedilotildees de suportes do meio uma sugestatildeo aparentemente viaacutevel seria

ineficaz

Recursos

Natildeo eacute qualquer demanda que iraacute instaurar uma crise Eacute necessaacuterio que o sujeito a quem

essa demanda se aplica natildeo tenha adquirido natildeo tenha desenvolvido natildeo domine natildeo

tenha condiccedilotildees de acessar ou tenha perdido capacidade repertoacuterio ou recursos ne-

cessaacuterios para enfrentaacute-la Entendemos recursos de modo bem abrangente incluindo

tanto as habilidades capacidades e competecircncias de uma pessoa quanto o acesso a bens

e meios pessoais interpessoais familiares e sociais de alcanccedilar seus fins Neste sentido

acesso a pessoas e a redes sociais como forma de alcance a suportes pessoalmente signi-

ficativos constitui um dos mais importantes recursos que contribuem para a qualidade

de vida e adaptaccedilatildeo da pessoa Portanto a necessidade de desenvolver ou recuperar

meios de acessar recursos internos e externos eacute a quarta caracteriacutestica da crise se o

sujeito possui os recursos necessaacuterios frente agrave situaccedilatildeo natildeo haveraacute crise ou em outras

palavras ela jaacute teraacute sido resolvida

Uma pessoa pode ateacute estar vivendo uma situaccedilatildeo criacutetica externa como um conflito na

famiacutelia ou na relaccedilatildeo de trabalho mas ela pode estar em plenas condiccedilotildees de lidar com

a situaccedilatildeo por mais desagradaacutevel que seja Neste caso haveraacute uma crise no contexto

familiar ou de trabalho mas poderiacuteamos supor que natildeo seraacute uma crise psicoloacutegica pelo

menos para esta pessoa Portanto a crise psicoloacutegica em geral refere-se a uma nova

experiecircncia na vida do sujeito acompanhada de uma necessidade ou exigecircncia do con-

texto como um fato interno (como a emergecircncia de uma consciecircncia) ou externo (como

o rompimento de uma relaccedilatildeo ou um evento traumaacutetico) Tambeacutem pode se referir a

478

uma experiecircncia antiga quando o sujeito perde a condiccedilatildeo ou capacidade para lidar com

a situaccedilatildeo como acontece com o avanccedilar da idade na medida em que o curso natural

da vida resulta em perdas evolutivas Eacute tambeacutem comum nos casos cliacutenicos de IC que as

pessoas dizem que ldquonatildeo aguentam maisrdquo referindo-se a ter ultrapassado seus limites

pessoais no trato com as anguacutestias relacionadas a algum tipo de experiecircncia como ocor-

re nos casos de estresse ou burnout

Criseecomplexidade

O quinto aspecto a ser destacado em nosso conceito refere-se agrave complexidade da tare-

fa e jaacute vem sendo indicado na discussatildeo acima Um exame adequado e detalhado do

contexto (subjetivo interpessoal e ambiental) eacute fundamental para a compreensatildeo da

complexidade dos elementos que sustentam uma crise

Vejamos o caso da professora D Ceacutelia anteriormente citado Consideramos que o

desenvolvimento da capacidade dessa professora de dizer ldquonatildeordquo era necessaacuterio para o

exerciacutecio do cargo de diretora Consideramos tambeacutem que foi adequada a sua recusa

posterior de continuar no cargo pois originalmente ela natildeo o desejava o aceitara ape-

nas como resposta afetiva para atender agraves inuacutemeras solicitaccedilotildees de terceiros e ela natildeo

tinha os recursos pessoais requeridos para o seu exerciacutecio Poreacutem entendemos que ela

natildeo deveria ter-se deixado colocar nessa posiccedilatildeo ndash a de sentir-se obrigada a atender a

todos em um contexto de impossibilidade de fazecirc-lo ndash sem que estivesse motivada e em

condiccedilotildees de confrontar-se com situaccedilotildees que exigiriam dela desenvolver a habilidade

de enfrentamento necessaacuteria para o exerciacutecio da funccedilatildeo

Em nossa avaliaccedilatildeo aceitamos a sua recusa do cargo como o primeiro passo em sua

recuperaccedilatildeo uma estrateacutegia de IC era esperado um impacto positivo do afastamento

desse estressor na crise depressiva que havia-se instalado Contudo apesar do aliacutevio

imediato esse afastamento natildeo solucionou a crise natildeo totalmente Tal experiecircncia dei-

xa resquiacutecios e sequelas importantes torna consciente uma falha que provoca uma rup-

tura na identidade e no modo de funcionamento aceitaacuteveis ou ateacute mesmo ideais em sua

organizaccedilatildeo anterior a seus olhos e aos das pessoas proacuteximas a ela A recusa tambeacutem

significa natildeo ter atendido agrave expectativa das pessoas e por isso suscita o temor de natildeo

ser mais amada ndash fica comprometida sua estima social sua autoestima projetada nos

479O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

olhos dos outros Dinamicamente o esforccedilo de D Ceacutelia por fazer-se querida por todos

era uma estrateacutegia defensiva funcional que mantinha toleraacutevel sua anguacutestia de ter que

lidar com impulsos agressivos nas relaccedilotildees e correr o risco de perder o amor do outro

Essa dinacircmica esconde o seu problema de autoestima que antecedia a crise e foi um de

seus fatores determinantes

Passada a fase criacutetica da depressatildeo permaneceram abaladas sua identidade autoi-

magem e autoestima Com o receio de enfrentamento de novas situaccedilotildees e pessoas

tambeacutem ficou afetada a sua capacidade de interaccedilatildeo e relacionamento Daiacute resulta seu

pedido precoce de aposentadoria e seu afastamento de sua rede social de apoio ndash o

isolamento que eacute um dos sintomas da depressatildeo Se qualificarmos como crise apenas

a manifestaccedilatildeo sintomaacutetica ndash a depressatildeo neste caso ndash falharemos em perceber que a

psicodinacircmica envolvida em seu funcionamento anterior que comeccedilara em sua tenra

idade eacute a mesma que produz a crise em seus anos de maturidade Havia portanto uma

vulnerabilidade que natildeo fora testada ateacute aquele momento Ou seja havia desde cedo

um processo subjetivo cuja dinacircmica vivida em intensidade intoleraacutevel e sem a possibi-

lidade de utilizar os mesmos recursos anteriormente disponiacuteveis provoca uma mudan-

ccedila qualitativa de funcionamento no qual a presenccedila exacerbada de reaccedilotildees sintomaacuteticas

e respostas desadaptativas tornam evidentes uma situaccedilatildeo de ruptura na capacidade de

funcionamento

Ainda que medicada meses depois sintomas depressivos importantes permaneciam

Este desfecho traz um quadro crocircnico que indica um novo niacutevel ou patamar de funcio-

namento uma resoluccedilatildeo precaacuteria com restriccedilatildeo significativa de autonomia e liberdade

Portanto uma crise relativamente objetiva (dominar a funccedilatildeo profissional) reativa uma

crise antiga (a necessidade de se sentir amada versus de colocar limites a terceiros) e re-

sulta em outra que se instala (crise depressiva com impacto na autoestima e identidade

e com a reclusatildeo e retraimento progressivos) Poreacutem eacute mais adequado dizer que se trata

de um uacutenico processo no qual participam muacuteltiplos elementos em interaccedilatildeo complexa

A participaccedilatildeo de fatores relacionais sistecircmicos e sociais neste exemplo estaacute clara evi-

denciando que uma crise natildeo pode ser adequadamente avaliada sem a consideraccedilatildeo da

complexidade que inclui elementos do contexto associados aos subjetivos

Aleacutem da participaccedilatildeo de elementos do contexto fica evidente aqui que esta complexida-

de eacute histoacuterica- e dinamicamente determinada as crises satildeo epigeneticamente definidas

480

Aspectos da histoacuteria de vida vulnerabilidades importantes que foram se constituindo

ao longo do desenvolvimento outros aspectos do contexto e das relaccedilotildees atuais crises

passadas e suas formas de enfrentamento entre outros elementos acham-se associa-

dos a situaccedilotildees de ruptura que observamos na fase criacutetica da crise Portanto o exame

adequado de uma crise instalada exige consideraccedilotildees acerca de sua complexidade Por

outro lado este exame nos leva a concluir algo sobre a natureza dessa complexidade as

crises apresentam demandas que satildeo muacuteltiplas sobrepostas sucessivas circulares e re-

cursivas elas interagem entre si e se potencializam A possibilidade de emergecircncia de

situaccedilotildees de crise eacute contiacutenua de modo que podemos com frequecircncia identificar muacutelti-

plas demandas que se sobrepotildeem e se sucedem Demandas distintas podem estar em

conflito de modo que o sujeito pode ver-se obrigado a uma renuacutencia para poder atender

a outra demanda que se faz presente Dizemos tambeacutem que as crises satildeo circulares

pois as condiccedilotildees de resoluccedilatildeo de uma contribuem com fatores (de proteccedilatildeo e de risco)

que afetam crises sucessivas Elas tambeacutem satildeo recursivas porque situaccedilotildees de vida futu-

ra podem reeditar crises passadas quando a resoluccedilatildeo anterior natildeo foi adequadamente

satisfatoacuteria quando a situaccedilatildeo se reapresenta de forma exacerbada ou quando haacute uma

perda de condiccedilatildeo de enfrentamento de uma situaccedilatildeo

As crises tambeacutem comportam elementos transgeracionais e sistecircmicos Vejamos o

exemplo da famiacutelia cujo filho entra em crise O pai eacute um homem de negoacutecios bem suce-

dido e a matildee eacute domeacutestica Quando se casaram com a primeira gravidez o pai desenvol-

veu a seguinte teoria sua matildee nunca havia lhe colocado limites sempre fora respeitosa

e acolhedora das iniciativas dos filhos a matildee de sua esposa era severa e controladora o

que segundo sua interpretaccedilatildeo teria sido a causa do fracasso dos irmatildeos de sua esposa

Como sua esposa tinha dificuldades de autoestima uma certa tendecircncia agrave dependecircncia

e submissatildeo aleacutem de dificuldades natildeo resolvidas com sua proacutepria matildee controladora

aceitou a diretiva do marido a qual ela implementou Sentia-se culpada quando se via

obrigada a colocar algum limite a seu filho Dinamicamente ela se sentia proibida de

fazecirc-lo mesmo quando achava que deveria mas derivava disso um certo aliacutevio de sen-

timentos de culpa e inadequaccedilatildeo enquanto matildee pois estava seguindo as decisotildees do

marido baseados em um modelo por ele idealizado

Dezessete anos mais tarde em pleno surto maniacuteaco o filho mais velho tem acesso agrave

senha bancaacuteria do pai e faz verdadeira orgia financeira abalando a economia domeacutestica

Fez inuacutemeras despesas quebrando os limites de vaacuterios cartotildees de creacutedito com compras

481O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

pela internet Como os pais estavam acostumados a ldquorespeitar e acolherrdquo as decisotildees de

reclusatildeo e isolamento do filho o quadro cliacutenico e o dano financeiro foram percebidos

apenas dias depois Neste exemplo podemos ver os efeitos no filho da dificuldade dos

pais de desenvolverem um modo parental eficaz a partir de uma elaboraccedilatildeo de experi-

ecircncias de vida em suas famiacutelias de origem Apenas repetiram as dinacircmicas das famiacutelias

de origem o pai era severo e controlador (como seu pai e tambeacutem como sua sogra) e a

matildee continuava dependente e submissa Deixaram este filho crescer sem limites que

proveem suporte no trato com a realidade com prejuiacutezos na capacidade de julgamento

toleracircncia agrave frustraccedilatildeo controle de impulsos capacidade de relacionamento e intimida-

de desenvolvimento da autoestima de uma identidade palpaacutevel que pudesse alicerccedilar

um projeto de vida sustentaacutevel Parte do choque dos pais e da dificuldade deles em acei-

tar o problema e as recomendaccedilotildees terapecircuticas era que as estrateacutegias propostas contra-

diziam as concepccedilotildees originais de suas dinacircmicas pessoais relacionais e sistecircmicas O

pai natildeo podia ceder a seus meios e a matildee natildeo podia colocar limites nem ao esposo nem

a seu filho Disso resulta apoacutes longa seacuterie de eventos uma crise maniacuteaca aguda em um

jovem que a esta altura jaacute acumulava seacuterios prejuiacutezos de desenvolvimento

Para contemplar outros exemplos da complexidade das crises e a diversidade dos as-

pectos nelas envolvidos devemos considerar nas histoacuterias cliacutenicas os desafios e as difi-

culdades ao longo do desenvolvimento da autonomia progressiva da infacircncia e adoles-

cecircncia passando pela consolidaccedilatildeo da identidade no adulto jovem ateacute as tribulaccedilotildees da

maturidade (Erikson 1987 Carter amp McGoldrick 1988) Na maioria dos casos cliacutenicos

de IC observa-se uma sucessatildeo de crises mal resolvidas e impactadas por eventos de

vida adversos que criam vulnerabilidades significativas e levam o sujeito a muacuteltiplas

rupturas (fase criacutetica da crise) ao longo da vida

Crisecomoprocesso

A sexta caracteriacutestica da crise que enfatizamos eacute fundamental embora seja frequente-

mente negligenciada tanto clinicamente quanto na cultura trata-se de destacar que a

crise eacute um processo Ao enfatizar a qualidade processual das crises estamos indicando

que ela tem uma dinacircmica (com antecedentes precursores e vulnerabilidades adquiri-

das) que tem iniacutecio e se desenvolve e se transforma pela experimentaccedilatildeo e que tem um

482

desfecho que anuncia e interage com situaccedilotildees futuras deixando novas vulnerabilida-

des ou promovendo a capacidade de enfrentamento

Enquanto processo a crise envolve elaboraccedilatildeo experimentaccedilatildeo transformaccedilatildeo e reso-

luccedilatildeo (para melhor ou para pior) ou seja ela tem histoacuteria e entre seus elementos mais

importantes os fatores de risco e de proteccedilatildeo que iratildeo dificultar ou favorecer a supera-

ccedilatildeo Apesar de algum desconforto ansiedade ou anguacutestia a crise tende agrave superaccedilatildeo na

medida em que alternativas de se lidar com a situaccedilatildeo vatildeo emergindo que recursos do

ambiente ou da rede vatildeo sendo acessados e que os recursos capacidades e o repertoacuterio

do sujeito vatildeo se expandindo Mas a crise tambeacutem pode ter desfechos menos desejaacuteveis

e pode ser acompanhada de dor psiacutequica (Shneidman 1996) de formaccedilatildeo de sintomas

de atuaccedilotildees patoloacutegicas e de cronificaccedilatildeo de padrotildees desadaptativos na estrutura de per-

sonalidade Como resultado o desfecho da crise pode favorecer a estruturaccedilatildeo de novos

fatores de proteccedilatildeo ou acumular dificuldades que provocam sofrimento operam como

fatores de risco e aumentam a predisposiccedilatildeo a dificuldades de superaccedilatildeo novos desa-

fios A superaccedilatildeo de uma crise natildeo implica em maior desenvolvimento ou autonomia

necessariamente muitas vezes implica em aceitaccedilatildeo de limites pessoais ou significa

adaptaccedilatildeo a perdas evolutivas e restriccedilotildees progressivas como por exemplo as impostas

pela idade

Frequentemente deixa-se de considerar a crise como um processo para dirigir o foco da

atenccedilatildeo para o que eacute apenas uma de suas etapas a fase criacutetica da crise ou seja o periacuteodo

de sofrimento psiacutequico grave e formaccedilatildeo de sintomas agudos ou atuaccedilotildees inadequadas

que opera como uma ruptura na qualidade e capacidade de funcionamento usuais do

sujeito Esta eacute a visatildeo comum do conceito de crise que reduz a concepccedilatildeo do processo

entendendo-o apenas como produccedilatildeo ou exacerbaccedilatildeo de sintomas psiquiaacutetricos agudos

Tal limitaccedilatildeo tem consequecircncias graves inscritas na cultura Ao natildeo se valorizar a dinacirc-

mica que leva ao risco de ruptura deixa-se de perceber elementos que podem nos for-

necer alternativas de prevenccedilatildeo pela atuaccedilatildeo precoce no desenvolvimento da capacidade

de enfrentamento Deixa-se tambeacutem de perceber os elementos que podem nos fornecer

alternativas de intervenccedilatildeo em crise ndash pontos de intervenccedilatildeo terapecircutica que guardam

o potencial de modificar a experiecircncia do sujeito da crise e mudar o curso e desfecho da

situaccedilatildeo (Tavares 2004)

483O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

Caracteriacutesticas de nossa cultura alinham-se a concepccedilotildees parciais ou reducionistas da

crise expliacutecitas e impliacutecitas sem a devida ecircnfase em seus aspectos processuais ou em

sua complexidade atendo-se apenas aos aspectos mais concretos da fase criacutetica ou de

ruptura Tal atitude contribui para uma concepccedilatildeo preconceituosa que eacute mantida em

relaccedilatildeo agraves pessoas ldquoem criserdquo e em relaccedilatildeo agrave experiecircncia na fase aguda da crise tanto

nos meios profissionais na aacuterea de sauacutede em geral quanto nas instituiccedilotildees e na cultura

Este preconceito opera como uma forma de exclusatildeo e violecircncia concreta e simboacutelica

que ainda natildeo recebeu a atenccedilatildeo que merece Por exemplo um jovem em crise na

escola sofre a crise e sofre os maus tratos das pessoas que o percebem em crise como

se fosse culpa ou desejo dele estar em crise Os aspectos sistecircmicos transgeracionais

contextuais e histoacutericos de sua experiecircncia satildeo negligenciados e ele eacute identificado como

ator diretor e produtor de seu sofrimento (uma projeccedilatildeo) Professores e profissionais de

sauacutede frequentemente acreditam que as provocando ou seja aumentando o sofrimento

subjetivo dessas pessoas estaratildeo criando condiccedilotildees de motivaccedilatildeo para a mudanccedila Na

verdade atuam sua aversatildeo e oacutedio pelo que a crise representa neles mesmos mas que

natildeo pode ser concebido na consciecircncia Acabam com isso atuando sua aversatildeo e oacutedio

contra a pessoa que sofre a crise (Maltsberger amp Buie 1996 Winnicott 1978)

Enfatizar crise como um processo complexo eacute tomaacute-la como fenocircmeno que se inicia

muito antes e tem repercussotildees muito depois de sua fase criacutetica ateacute mesmo depois do

que se pode entender como seu desfecho como as influecircncias que ultrapassam bar-

reiras pessoais e geracionais Um processo de crise se entrelaccedila com crises passadas e

pode fazer seus efeitos presentes em crises que ainda estatildeo por vir Por exemplo uma

crianccedila que teve dificuldades de desenvolver seu senso de autonomia na infacircncia pode

parecer crescer sem muitos problemas e mais tarde ter dificuldades seacuterias para enfren-

tar separaccedilotildees na vida adulta Elementos histoacutericos das crises que vivemos que supe-

ramos bem ou mal acabam se relacionando de forma que um sucesso anterior poderaacute

apoiar a superaccedilatildeo de situaccedilotildees posteriores e uma dificuldade anterior poderaacute aumentar

a carga de dificuldade em situaccedilotildees futuras

Subjetividadeecrise

A crise psicoloacutegica eacute um processo experiencial ndash logo subjetivo ndash de uma pessoa a par-

tir do uso de funccedilotildees psicoloacutegicas e da interaccedilatildeo com seu meio para atualizaccedilatildeo de suas

necessidades em seu contexto pessoal relacional familiar social histoacuterico e cultural

484

A subjetividade inerente ao processo eacute o seacutetimo aspecto que desejamos destacar nes-

sa concepccedilatildeo de crise psicoloacutegica Caso natildeo fosse subjetiva teriacuteamos que consideraacute-la

como crise relacional (conjugal familiar etc) crise social ou econocircmica Por exemplo

a violecircncia domeacutestica e o desemprego permitem anaacutelises por vaacuterias oacuteticas subjetiva

relacional social e econocircmica Tais crises de outras ordens podem estar e frequente-

mente estatildeo relacionadas agraves crises de natureza subjetiva ou psicoloacutegica Fatores sociais

ou ambientais como o desemprego ou uma aposentadoria compulsoacuteria podem estar

e muitas vezes estatildeo associadas a crises subjetivamente experimentadas pelas pessoas

Fatores concretos como a vida em situaccedilatildeo de pobreza contribuem como fatores de ris-

co determinantes que podem iniciar ou agravar um processo de crise Tais fatores que

podem ser objetivamente observados satildeo considerados na literatura como estressores

fatores de risco fatores desencadeantes (triggers) mudanccedilas eventos de vida eventos

adversos ou eventos traumaacuteticos (Montenegro amp Tavares 2005 Paykel 2003) O papel

destes fatores na crise estaacute no fato deles favorecerem ou induzirem um processo de

crise ou ateacute mesmo atuar como fator determinante de uma ruptura No entanto a in-

teraccedilatildeo desses elementos externos ou objetivos com a crise psicoloacutegica natildeo retira dela o

seu caraacuteter subjetivo uma pessoa diante de sua realidade

ResoluccedilatildeoouestabilidadedesoluccedilatildeomdashAfunccedilatildeodacrise

Segundo Erikson (1987) a tarefa da crise eacute possibilitar a aquisiccedilatildeo de competecircncias O

desenvolvimento de meios para a resoluccedilatildeo satisfatoacuteria da mesma amplia o repertoacuterio

pessoal Assim a vivecircncia da crise estaacute ou deveria estar associada agraves modificaccedilotildees do

repertoacuterio de respostas e das competecircncias do sujeito processo que leva ao que chama-

mos capacidade ou forccedila de ego para lidar com a realidade Estas mudanccedilas significam

tambeacutem a capacidade de fazer ajustes nos anos de maturidade e na velhice Lidar com

mudanccedilas no contexto e com perdas evolutivas representa capacidade de ajustamento a

aspectos inevitaacuteveis da realidade Essa progressatildeo adaptativa ajustada agrave realidade pesso-

al e situacional de cada nova fase eacute a funccedilatildeo ideal da crise ao longo da vida Poreacutem toda

crise chega a um desfecho que representa um periacuteodo de acomodaccedilatildeo mesmo quando

as respostas do sujeito satildeo inadequadas ou desadaptativas Portanto eacute necessaacuterio for-

mular a funccedilatildeo da crise em termos mais amplos e generalizaacuteveis Segundo essa visatildeo a

funccedilatildeo da crise eacute a de promover o desenvolvimento de um novo contexto de estabilidade

485O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

ou equiliacutebrio dinacircmico independente da qualidade da resoluccedilatildeo alcanccedilada Esta eacute a oi-

tava e uacuteltima caracteriacutestica da crise que indicamos no conceito apresentado

O equiliacutebrio proacuteprio dos seres vivos eacute o equiliacutebrio dinacircmico autocircnomo pois eles estatildeo

em constante transformaccedilatildeo em busca de adaptaccedilatildeo agraves circunstacircncias e a suas proacuteprias

necessidades Na crise a manutenccedilatildeo desse equiliacutebrio dinacircmico iraacute exigir uma mudan-

ccedila de estado ou seja seraacute necessaacuterio investimento de nova energia e modificaccedilatildeo das

condiccedilotildees anteriores de sustentaccedilatildeo e autonomia A funccedilatildeo da crise de promover um

novo contexto de equiliacutebrio dinacircmico tem desdobramentos importantes pois a crise eacute

uma experiecircncia subjetiva de um estado alterado de difiacutecil sustentaccedilatildeo por vezes into-

leraacutevel que exige alto dispecircndio de energia e constante investimento Uma pessoa que

passa por uma situaccedilatildeo de crise seraacute modificada por ela Uma demanda num processo

de crise desestabiliza o sujeito e exige a constituiccedilatildeo de um novo contexto de equiliacutebrio

Distinguimos trecircs possibilidades ou tipos de resoluccedilatildeo de uma situaccedilatildeo de crise supe-

raccedilatildeo estagnaccedilatildeo ou interrupccedilatildeo Cada uma se refere a um tipo desfecho ou resoluccedilatildeo

da crise a condiccedilotildees qualitativamente distintas de equiliacutebrio alcanccedilado Os trecircs se re-

ferem ao processo de acomodaccedilatildeo apoacutes a experiecircncia de crise Superaccedilatildeo e estagnaccedilatildeo

podem ser estados alcanccedilados com ou sem a emergecircncia de uma fase criacutetica da crise

Interrupccedilatildeo refere-se ao periacuteodo de acomodaccedilatildeo que sucede agrave fase criacutetica da crise e en-

volve geralmente a cronificaccedilatildeo de sintomas ou dificuldades Quando crises evolutivas

com desfecho problemaacutetico acontecem muito precocemente na vida de uma crianccedila

dificuldades podem ser configuradas na estrutura da personalidade da crianccedila muitas

vezes sem serem percebidas pelos pais ou cuidadores Estas situaccedilotildees conhecidas como

paradas de desenvolvimento (developmental arrest Stolorow amp Lachmann 1983) repre-

sentam vulnerabilidades que aumentam o risco de crise futura e estatildeo com frequecircncia

associados a estados de estagnaccedilatildeo ou interrupccedilatildeo no adulto Agora comentaremos

cada um desses trecircs tipos de desfecho

Superaccedilatildeo A situaccedilatildeo de crise pode ser considerada um desafio uma experiecircncia que

apresenta riscos e oportunidades Na superaccedilatildeo a crise tende a ser tomada como opor-

tunidade na qual a necessidade de superaccedilatildeo aponta a direccedilatildeo ou sentido do desenvol-

vimento da aquisiccedilatildeo de competecircncias da expansatildeo do repertoacuterio pessoal do aumento

da autoestima da consolidaccedilatildeo da identidade da maior inserccedilatildeo social da ampliaccedilatildeo

da autonomia da responsabilidade da liberdade e da maturidade A postura geral do

486

sujeito tende a ser de aceitaccedilatildeo do desafio de toleracircncia flexibilidade curiosidade in-

vestimento experimentaccedilatildeo e enfrentamento Esta postura eacute mantida mesmo e apesar

da vivecircncia de algum sofrimento ansiedade medo e outras reaccedilotildees afetivas ou com-

portamentos inadequados transitoacuterios que venham a ser superados Portanto algueacutem

pode estar ansioso ou deprimido e ainda assim ter investimento suficiente para a supe-

raccedilatildeo Outros podem vencer resistecircncias importantes com apoio de um psicoterapeuta

eficiente Procurar ajuda profissional eacute um importante indicador de investimento de

busca de motivaccedilatildeo para a superaccedilatildeo Uma das funccedilotildees importantes da IC eacute avaliar e

favorecer a dissoluccedilatildeo de resistecircncias iniciais ao processo e fortalecer a alianccedila terapecircu-

tica para a mudanccedila

Estagnaccedilatildeo A crise tambeacutem nos apresenta o risco de fracassarmos de nos sentirmos

incapazes de corresponder de recorrermos a meios de organizaccedilatildeo e relacionamento

menos eficazes adaptativos ou satisfatoacuterios gerando sequelas para a autoestima au-

toimagem graus de liberdade e participaccedilatildeo social Distinguimos este fracasso qua-

litativamente em estagnaccedilatildeo ou interrupccedilatildeo conforme o arranjo adaptativo resultan-

te A estagnaccedilatildeo eacute um estado de acomodaccedilatildeo em um contexto de equiliacutebrio dinacircmico

funcional mas qualitativamente inferior do que o niacutevel adaptativo anterior ou daquele

que poderia ter sido alcanccedilado caso fosse possiacutevel mobilizar recursos do sujeito e do

ambiente (como buscar uma psicoterapia por exemplo) Na estagnaccedilatildeo o sujeito busca

ajustar-se agrave situaccedilatildeo por meio de mecanismos de evitaccedilatildeo o que o deixa vulneraacutevel

ao risco de ruptura em situaccedilotildees propiacutecias Por exemplo diante da anguacutestia gerada

pela autonomia uma pessoa pode ajustar-se mantendo viacutenculos de dependecircncia uma

pessoa com dificuldade de enfrentamento de situaccedilotildees sociais pode retrair-se progres-

sivamente uma pessoa com receio de decepcionar-se em relaccedilotildees amorosas estaacuteveis

pode evitar envolver-se afetivamente ou pode firmar relacionamentos seguros poreacutem

pouco satisfatoacuterios uma pessoa com medo de errar e assumir responsabilidades pode

evitar tarefas que poderiam avanccedilar sua carreira Haacute diferenccedila entre uma pessoa que se

aposenta como gerente de loja satisfeito com seu percurso daquele que se aposenta na

mesma condiccedilatildeo amargurado por natildeo ter feito outras opccedilotildees Neste uacuteltimo caso parece

haver um estado de estagnaccedilatildeo onde a pessoa deixou de investir em outros sonhos ou

possibilidades

Interrupccedilatildeo Chamamos de interrupccedilatildeo o periacuteodo de acomodaccedilatildeo que sucede uma rup-

tura Ruptura refere-se agrave situaccedilatildeo de sofrimento psiacutequico grave concomitante agrave vivecircncia

487O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

da fase criacutetica da crise e coincide com o periacuteodo de produccedilatildeo de sintomas agudos ou

de exacerbaccedilatildeo aguda de sintomas crocircnicos com comprometimento da capacidade de

adaptaccedilatildeo e restriccedilatildeo significativa da autonomia e da liberdade A interrupccedilatildeo constitui

um tipo especial de resoluccedilatildeo da crise pela assimilaccedilatildeo de modos de estruturaccedilatildeo am-

plamente ineficazes ou pouco adaptativos Mecanismos de defesa regredidos ou primi-

tivos tendem a ser usados em demasia levando agrave cristalizaccedilatildeo de dificuldades e vulne-

rabilidades na estrutura Isso implica em cronificaccedilatildeo progressiva de alguns sintomas

e comportamentos inadequados e aumenta consideravelmente o risco de novas crises

frente a situaccedilotildees futuras

Temos um exemplo de interrupccedilatildeo no caso da professora que se torna diretora e se vecirc

obrigada a se afastar de sua profissatildeo apoacutes afastar-se do cargo ela acaba tambeacutem se iso-

lando por natildeo conseguir mais encarar as pessoas Sintomas depressivos residuais per-

maneceram apoacutes a ruptura ou fase criacutetica da crise Uma vez que se tornou consciente

de sua dificuldade de enfrentamento que nunca tinha sido posta em cheque de forma

tatildeo decisiva ela busca no retraimento e no isolamento a soluccedilatildeo para esta dificuldade

Neste caso ela adotou uma postura que resolveu a tensatildeo imediata do confronto mas a

esquiva manteve ou prolongou a sensaccedilatildeo de inseguranccedila que passou a acompanhaacute-la

interferindo negativamente na superaccedilatildeo de dificuldades que estariam por vir e resul-

tou numa aposentadoria precoce e em dificuldades de lidar com os relacionamentos

em situaccedilotildees sociais que passaram a ser vividos como demandas difiacuteceis de serem

toleradas

A condiccedilatildeo de ruptura que se trata de uma manifestaccedilatildeo sintomaacutetica aguda e transitoacute-

ria precisa ser distinguida da condiccedilatildeo de interrupccedilatildeo que eacute um tipo de resoluccedilatildeo de

crise que alcanccedila uma estabilidade caracterizada por uma situaccedilatildeo crocircnica que inclui

sintomas A crise se resolve quando se recupera ou se atinge um contexto de equiliacutebrio

dinacircmico ou seja quando se encontra uma condiccedilatildeo de gerenciamento estaacutevel e sus-

tentaacutevel dos niacuteveis de tensatildeo (mesmo que seja desadaptativo ou inclua sintomas) Na

situaccedilatildeo cliacutenica encontramos com frequecircncia a fase criacutetica da crise ndash momentos de

ruptura acompanhados de sintomas agudos onde os modos de resposta do sujeito clara-

mente natildeo atendem agraves demandas da situaccedilatildeo Contudo o sujeito ainda pode demons-

trar condiccedilotildees de superaccedilatildeo suficientes especialmente quando haacute suporte terapecircutico

eficiente Jaacute na interrupccedilatildeo periacuteodo de acomodaccedilatildeo que sucede agrave fase criacutetica e aguda da

crise haacute estabilidade de respostas regredidas ou inadequadas apesar da existecircncia de

488

sintomas residuais de dor ou sofrimento elevado ou de perda importante da liberdade

da autonomia e da capacidade de enfrentamento das situaccedilotildees cotidianas Estes casos

incluem pessoas com transtornos de personalidade grave e pessoas com niacutevel de funcio-

namento psicoacutetico crocircnico entre outros quadros psicopatoloacutegicos crocircnicos

Muitas pessoas chegam agrave interrupccedilatildeo ou passam por um longo periacuteodo de estagnaccedilatildeo

antes de decidirem buscar ajuda profissional e investir na superaccedilatildeo Eacute preciso reconhe-

cer e trabalhar para superar as dificuldades de aceitaccedilatildeo da crise impostas pela cultura

pelas famiacutelias e pelas proacuteprias pessoas que estatildeo passando por periacuteodos de dificuldade

e sofrimento Em geral a fase criacutetica da crise exige a intervenccedilatildeo de terceiros por trecircs

motivos que envolvem a necessidade de cuidado Primeiro porque o sujeito pode se

encontrar em situaccedilatildeo de risco suficiente para mobilizar as pessoas a intercederem para

sua proteccedilatildeo Segundo porque a crise pode colocar outras pessoas em situaccedilatildeo de risco

(como nos casos que envolvem violecircncia ou a seguranccedila financeira da famiacutelia) Terceiro

porque a conduta do sujeito cria dificuldades na interaccedilatildeo com pessoas na famiacutelia na

escola ou no trabalho (mobilizaccedilatildeo de sentimentos de culpa irritaccedilatildeo necessidade de

assumir certas responsabilidades do e pelo sujeito) Poreacutem a situaccedilatildeo aguda na fase criacute-

tica da crise eacute insustentaacutevel por um longo periacuteodo e uma nova fase de estabilidade pode

ser prevista algum tempo apoacutes o iniacutecio da fase criacutetica da crise mesmo quando haacute sin-

tomas e psicopatologias graves Neste caso os indicadores psicodinacircmicos de crise satildeo

assimilados na estrutura e os sintomas tendem a se cronificar Natildeo eacute somente porque

uma pessoa daacute respostas claramente desadaptativas que ele estaacute na fase aguda da crise

aquilo pode representar o seu modo usual de ser ou o seu melhor niacutevel de adaptaccedilatildeo

possiacutevel Em consequecircncia o sintoma natildeo eacute a melhor maneira de caracterizar a crise

Tratamento humanitaacuterio e respeito satildeo necessaacuterios para com essas pessoas conside-

rando que seu comportamento natildeo resulta de uma maacute vontade ou ato conscientemente

voluntaacuterio e que para a maioria delas haacute prejuiacutezo de julgamento podendo incluir dano

cognitivo ou orgacircnico

CriseseudesfechoeopapeldaIntervenccedilatildeoemCrise

A fase de estabilidade posterior agrave fase criacutetica ou aguda da crise pode ser um patamar su-

perior semelhante inferior ou muito inferior ao niacutevel de funcionamento do sujeito an-

tes da fase criacutetica da crise (linha de base) Para os propoacutesitos da avaliaccedilatildeo na Intervenccedilatildeo

489O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

em Crise (IC) consideramos a qualidade de ajustamento adaptaccedilatildeo ou funcionamento

durante o ano anterior ao iniacutecio da fase criacutetica da crise ou seja procuramos avaliar a

qualidade de funcionamento em periacuteodo de estabilidade O objetivo da intervenccedilatildeo eacute

ajudar a pessoa a retornar a este niacutevel anterior de funcionamento e idealmente ajudar

a pessoa a se mobilizar para investir em um processo mais longo de transformaccedilatildeo das

condiccedilotildees que o tornaram predisposto agravequela crise preferencialmente em uma psico-

terapia que se sucederia agrave IC Em outras palavras a IC tem por meta a superaccedilatildeo da

fase criacutetica da crise enquanto a psicoterapia eacute dirigida agrave transformaccedilatildeo das condiccedilotildees de

vulnerabilidade que favoreceram a emergecircncia da fase criacutetica da crise

A Figura 1 mostra diferentes possibilidades de desfecho da crise ndash pela superaccedilatildeo estag-

naccedilatildeo ou interrupccedilatildeo Para efeito de exemplo os trecircs casos representados na figura se

iniciam com uma fase de adaptaccedilatildeo estaacutevel e retornam a um patamar de ajustamento

(a linha de base representada pela linha horizontal em torno da qual o niacutevel de ajusta-

mento tem variaccedilotildees naturais) O contexto de estabilidade inicial e o final delimitam o

periacuteodo de duraccedilatildeo de uma crise As trecircs alternativas representadas mostram desfechos

qualitativamente diferentes Das trecircs a crise mais severa termina com a interrupccedilatildeo

marcada pela cronicidade sofrimento e perdas significativas Contudo a severidade da

crise natildeo determina necessariamente a condiccedilatildeo posterior de estagnaccedilatildeo ou interrup-

ccedilatildeo Existem situaccedilotildees nas quais muitas pequenas crises deixam marcas duradouras e

outras nas quais crises seacuterias levam a investimentos que produzem superaccedilotildees surpre-

endentes Outra alternativa representada na figura mostra a estagnaccedilatildeo cujo desfecho

eacute marcado por uma fase de estabilidade adaptativa posterior mas com algum prejuiacutezo

relativo agrave qualidade do funcionamento anterior agrave crise

490

Figura 1 O processo de crise

A IC eacute uma estrateacutegia terapecircutica breve que almeja retirar o sujeito da fase criacutetica da

crise o mais raacutepido possiacutevel para evitar o iniacutecio ou o agravamento do processo de acomo-

daccedilatildeo e cronificaccedilatildeo de respostas desadaptativas e para criar condiccedilotildees favoraacuteveis para

uma psicoterapia subsequente Uma pessoa em crise aguda sem apoio para superaacute-la

estaacute em grave risco de assimilar alguma dificuldade em sua estrutura Para evitar este

processo de cronificaccedilatildeo progressiva o objetivo da IC como intervenccedilatildeo breve eacute o re-

torno ao niacutevel de funcionamento anterior agrave crise Esperamos ganhos para o sujeito na

IC em relaccedilatildeo ao reconhecimento dos precursores da crise e agrave formaccedilatildeo de um viacutenculo

terapecircutico Este viacutenculo no caso dos serviccedilos de Sauacutede Mental deve fortalecer a relaccedilatildeo

do sujeito com a equipe e a instituiccedilatildeo projetando uma imagem de um ldquoobjeto insti-

tucional bomrdquo visto que as modalidades terapecircuticas institucionais podem requerer

o contato com outros profissionais num processo de longo prazo em que se projeta o

trabalho de elaboraccedilatildeo para superaccedilatildeo da vulnerabilidade que favoreceu a emergecircncia

da crise Esta superaccedilatildeo eacute a terceira alternativa representada na Figura 1 Portanto a

Intervenccedilatildeo em Crise eacute a estrateacutegia terapecircutica de ldquotracircnsitordquo destinada a levar o sujeito

da fase aguda da crise em direccedilatildeo ao processo de assimilaccedilatildeo estrutural que lhe permita

superaccedilatildeo qualitativa das vulnerabilidades do seu funcionamento anterior pela elabora-

ccedilatildeo no processo psicoterapecircutico

491O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise

Conclusatildeo

Apresentamos uma definiccedilatildeo de crise e discutimos suas caracteriacutesticas ndash demanda (mo-

bilizadora) condiccedilotildees da realidade interna e externa resposta recursos complexidade

(histoacuterica e contextualmente determinada) processo subjetividade e soluccedilatildeo Discu-

timos e exemplificamos o conceito de crise como um conceito dinacircmico contextual e

sistecircmico A vivecircncia de uma crise atual estaacute atrelada ao desenvolvimento e a eventos

na histoacuteria de vida e nela tem um sentido e uma funccedilatildeo Depende simultaneamente

da realidade subjetiva e externa vinculada ao contexto em que se insere Ela se rela-

ciona de modo complexo com os mais diversos elementos dessa realidade interna e

externa articulando histoacuteria pessoal medos desejos e necessidades dando sentido agraves

mais diversas manifestaccedilotildees sintomaacuteticas O sintoma natildeo eacute uma manifestaccedilatildeo pontual

Comunica processos e tecircm neles sua funccedilatildeo Nos exemplos discutidos pretendemos

registrar a importacircncia dessa concepccedilatildeo na formulaccedilatildeo dinacircmica do caso e sua relaccedilatildeo

ao desenvolvimento de uma estrateacutegia terapecircutica no trabalho de Intervenccedilatildeo em Crise

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494

Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

MauricioSNeubern

Neste trabalho a hipnose eacute pensada como dispositivo metodoloacutegico em contextos cliacuteni-

cos onde as pessoas apresentam temaacuteticas de cunho espiritual Trata-se de uma reflexatildeo

criacutetica quanto agraves perspectivas unilaterais de produccedilatildeo de conhecimento nas quais os

pesquisadores se referem aos outros sem que nada os constranja em suas considera-

ccedilotildees teorias e meacutetodos (daiacute a ideacuteia segundo a qual ldquopodemos afirmar poucas coisas

sobre os outrosrdquo) que tambeacutem efetiva uma proposta ainda bastante incipiente de inves-

tigaccedilatildeo amplamente inspirada pela etnopsiquiatria (Nathan 2001 2007) uma proposta

que busca resgatar a aventura moderna de produccedilatildeo de ciecircncia (Stengers 2001) a partir

da relaccedilatildeo e da reflexividade conjuntas sobre o contexto cliacutenico (ldquomas podemos falar

com eles e fazermos um noacutesrdquo) O trabalho destaca ainda a partir de algumas situaccedilotildees

495Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

cliacutenicas45 certas especificidades das culturas brasileiras nas quais a hipnose ganha sen-

tido enquanto dispositivo compartilhado por experts locais e acadecircmicos

PodemosAfirmarPoucasCoisasSobreosOutros

Naquela sessatildeo Dona Amanda 55 anos espiacuterita e dona de casa vivia uma experiecircn-

cia de transe bastante tranquumlila Sua presenccedila na terapia se dava em funccedilatildeo de dores

terriacuteveis referentes a um luacutepus e a um preocupante estado de depressatildeo Na induccedilatildeo

que desenvolvi com ela cada parte do corpo era uma parte de seu jardim na qual ela

caminhava e plantava suas flores de preferecircncia Relatou posteriormente que a despei-

to do que eu dissesse via as peacutetalas de flores se aproximarem e tamparem verdadeiros

buracos que havia em seu corpo trazendo-lhe uma sensaccedilatildeo de frescor e muito aliacutevio

No entanto quando Dona Amanda comeccedilou a focar seu rosto entrou numa forte crise

relatando ver naquele momento as cenas de maus-tratos que sofreu de seu pai ainda

na infacircncia com agressotildees fiacutesicas e xingamentos racistas Disse-lhe entatildeo que essas

cenas talvez aparecessem por algum motivo mas que ela poderia aprender a se afastar

dali e observaacute-las de mais longe Em seguida disse-lhe que ela poderia perceber quem

estava para entrar em nossa sala de modo a ajudaacute-la naquele momento Amanda rela-

tou sua experiecircncia naquele momento deste modo

ldquoVejo um homem vestido de branco Eacute um enfermeiro Ele anda ateacute aqui e paacutera atraacutes de mim Ele taacute colocando uma coisa parece uma esponja branca dentro da minha cabeccedila eacute refrescante estranho taacute sugando uma coisa viscosa e preta Nossa Minha cabeccedila estaacute aliviando taacute bem mais leve estou me sentindo bem melhor rdquo

Esse tipo de vivecircncia remete a um processo terapecircutico largamente perpassado por ex-

periecircncias de transe hipnoacutetico que durou pouco mais de um ano Ao final do processo

tanto seu preocupante estado de depressatildeo quanto seu diagnoacutestico de luacutepus haviam

desaparecido e Amanda relatava estar muito melhor como se ldquoas reacutedeas de sua vida

45 As pessoas aqui citadas como pacientes foram participantes da pesquisa institucional ldquoHipnose dores crocircnicas e subjetividade construindo o contexto terapecircuticordquo por mim conduzida no Centro de Atendimento e Estudos Psicoloacutegicos (CAEP) do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de Brasiacutelia (UnB) Tal pesquisa foi aprovada pelo Comitecirc de Eacutetica da UnB e todos os participantes assinaram o termo de consentimento livro e esclarecido (TCLE)

496

houvessem voltado para suas matildeosrdquo Embora natildeo seja prudente considerar que a hipno-

se a tenha curado do luacutepus sob a pena de me tornar leviano experiecircncias desse tipo tra-

zem agrave tona um problema que acompanhou intensamente a histoacuteria da hipnose como

razatildeo importante na busca de cientificidade o problema da eficaacutecia (Stengers 2002)

Nomes como Puyseacutegur Eisdalle e Delboeuf no passado e Milton Erickson Chertok e

Franccedilois Roustang mais recentemente oferecem inuacutemeras evidecircncias do poderio das

teacutecnicas hipnoacuteticas de maneira que criacuteticas como as levantadas por Freud (1905) sobre

a superficialidade da sugestatildeo caem por terra quando se analisa o problema da eficaacutecia

da proacutepria psicanaacutelise no cruel dilema de associar ciecircncia e cura (Chertok amp Stengers

1989) ou quando se atesta na atualidade a eficaacutecia da hipnose em diferentes campos

de aplicaccedilatildeo (Jensen 2009 Yapko 2001) Desse modo face a tatildeo rica quantidade de

estudos e exemplos cliacutenicos natildeo seria em nada prudente para um pesquisador negar o

impacto de transformaccedilatildeo que as teacutecnicas hipnoacuteticas possuem embora natildeo seja possiacute-

vel explicar com clareza as maneiras pelas quais atuam

Entretanto o problema da eficaacutecia torna-se por demais traiccediloeiro caso se queira colocaacute-

-lo como apanaacutegio de cientificidade ou como aquilo que pode decidir sobre o que eacute ou

natildeo de domiacutenio da ciecircncia Grande parte das pesquisas sobre eficaacutecia terapecircutica des-

tronam a pretensatildeo de antigas propostas de psicoterapia agrave medida que asseveram que

natildeo existe um modelo teoacuterico superior ao outro e que segundo os proacuteprios usuaacuterios

e terapeutas a eficaacutecia parece estar muito mais associada a problemas como o engaja-

mento e a motivaccedilatildeo do usuaacuterio e a qualidade da relaccedilatildeo terapecircutica (Seligman 1995)

O problema se torna ainda mais encarniccedilado quando alguns estudos apontam para a

eficaacutecia contundente de outras praacuteticas como a oraccedilatildeo (Tosta 2004) e certos rituais de

cura (Csordas 2009 Nathan 2007) que em suas origens e propostas teacutecnicas natildeo

possuem qualquer parentesco com os contextos teoacutericos e de pesquisa que tanto ins-

piraram e ainda fazem sonhar certos cliacutenicos com o desenvolvimento de um modelo

teoacuterico e psicoteraacutepico capaz de suplantar os outros por ser mais cientiacutefico

Ora se diferentes abordagens terapecircuticas natildeo apresentam resultados significativamen-

te distintos em termos de ciecircncia como ficaria o ideal moderno de ciecircncia segundo o

qual a melhor explicaccedilatildeo faz calar as demais (Stengers 1995) Se natildeo satildeo diferentes em

seus resultados o que faz de suas explicaccedilotildees propostas dignas ou natildeo de confianccedila

Mais ainda se benzeduras oraccedilotildees exorcismos e rituais de desfazimento de trabalho

possuem tambeacutem uma eficaacutecia constataacutevel em que as explicaccedilotildees teoacutericas dos psico-

497Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

terapeutas pode ser superior a elas em termos modernos A viagem por semelhante

caminho pode desembocar num confuso labirinto cujas falsas saiacutedas leva os espiacuteritos

desbravadores a desenvolver praacuteticas mais proacuteximas a golpes de forccedila nos quais as afir-

maccedilotildees remetem a uma relaccedilatildeo de poder ao inveacutes de um meacutetier de legiacutetima inspiraccedilatildeo

cientiacutefica (Stengers 2002) Nesse sentido o instrumentalismo como o apelo gratuito

e vazio agrave autoridade de quem fala comuns em muitas propostas de pesquisa em psi-

cologia natildeo satildeo capazes de esconder as inconsistecircncias em que assentam de modo a

trabalharem mais pelo distanciamento do que pela coerecircncia quanto ao ideal cientiacutefico

que buscam trazer a esta disciplina

No entanto a singularidade de uma experiecircncia como a de Amanda pode se constituir

como um caminho promissor em termos da aventura cientiacutefica Quando se lanccedila um

olhar mais atento a obras de autores como Chertok (1998) Roustang (1991) e prin-

cipalmente Milton Erickson (1958) torna-se possiacutevel conceber que suas dificuldades

e mesmo recusas em construir uma teoria consistem num apelo radical para que o

terapeuta aprenda a estabelecer uma relaccedilatildeo com a singularidade do acontecimento

vivido pelo sujeito em transe Ao inveacutes de buscar enquadrar a pessoa em uma estrutura

geral que mais tende a se referir superficialmente ao sujeito do que a interagir com ele

o terapeuta se sente e se percebe na relaccedilatildeo de maneira a se fixar sobre os diferentes

dispositivos dos quais pode lanccedilar matildeo para produzir com seu interlocutor aquilo que

denomina transe Amanda natildeo eacute portanto ldquoa negrardquo ldquoa mulherrdquo ldquoa viacutetima de abuso

intra-familiarrdquo ou ldquoa paciente auto-imunerdquo mas uma pessoa que integra em sua sub-

jetividade diferentes dimensotildees de experiecircncias individuais e coletivas que ningueacutem eacute

capaz de conhecer de antematildeo Natildeo se pode portanto falar quem ela seja ou em que

consistem suas vivecircncias mas apenas se dispor a uma abertura relacional em que o

conhecimento do outro se torne possiacutevel em algum niacutevel o que implica numa conse-

quumlecircncia fundamental em termos de pesquisa cliacutenica

Agrave princiacutepio o terapeuta passa a se deparar a cada instante com novas facetas de um

conjunto de articulaccedilotildees de consideraacutevel complexidade que ganham visibilidade a par-

tir do transe Embora o terapeuta possua um conjunto de sugestotildees e metaacuteforas das

quais lanccedila matildeo para promover o transe eacute a pessoa quem reconstroacutei a experiecircncia em

sua subjetividade por meio de um universo de processos que possuem um caraacuteter de

novidade novidade quanto ao que emerge no transe novidade quanto aos sentidos

que produz novidade quanto aos processos que ali se articulam compondo complexas

498

configuraccedilotildees novidade em suma quanto a personagens praacuteticas e pertencimentos

que remetem a seu proacuteprio ethos A experiecircncia de Amanda aqui relatada eacute bastante

ilustrativa nesse sentido uma vez que minha intenccedilatildeo era a de promover um contexto

de re-conexatildeo com seu proacuteprio nicho cultural mas natildeo tinha a menor ideacuteia do que po-

deria surgir a partir de semelhante mergulho Assim enquanto eu lhe relatava cenaacuterios

que a ela pareciam ser bastante familiares algo cuidadosamente coletado de nossas

entrevistas era seu mundo quem produzia as peacutetalas que remendavam buracos em seu

corpo algo prazeroso e refrescante Segundo ela aconteceu algo muito importante nes-

te momento que lhe trouxe uma profunda alegria De igual modo ao me referir a seu

rosto como parte do jardim natildeo imaginava que brotariam dali as cenas de maus-tratos

e suas dolorosas crises nem que a figura de um ldquoenfermeiro espiritualrdquo seria o ser que

apareceria para lhe prestar uma ajuda altamente inusitada para mim e para ela (enfian-

do esponjas em seu ceacuterebro e sugando uma substacircncia escura e viscosa) O caraacuteter ativo

desse tipo de experiecircncia por vezes indoacutecil espontacircneo e inesperado consiste numa

condiccedilatildeo importante de pesquisa cliacutenica uma vez que eacute por meio desta condiccedilatildeo que o

terapeuta pode sair do mesmo para avanccedilar na direccedilatildeo do novo

Eacute a partir de quando a experiecircncia se mostra jamais antes dela que o terapeuta pode

proceder a um trabalho artesanal de articulaccedilotildees entre os processos que dali emergem

um trabalho que privilegie a produccedilatildeo de sentidos subjetivos proacuteprios das pessoas e

natildeo se subordine a qualquer tendecircncia universalista comum das teorias modernas Daiacute

o porquecirc de ideacuteias como configuraccedilotildees (Gonzalez Rey 2011 Merleau-Ponty 2005) ou

narrativas (White 2007) ou seja categorias a bem dizer quase vazias que remetem a

propostas nas quais o escopo eacute a construccedilatildeo de sentidos proacuteprios dos sujeitos Logo a

partir dessa atitude cuidadosa e qualitativa na qual o terapeuta tece com paciecircncia a ar-

ticulaccedilatildeo complexa do tecido subjetivo tem-se uma primeira etapa da pesquisa cliacutenica

a construccedilatildeo de um conhecer que eacute orgacircnico quanto ao contexto relacional que natildeo eacute

absoluto no sentido moderno do termo e se constitui apenas como uma perspectiva le-

giacutetima e possiacutevel de compreensatildeo do que se passa com o outro Como uma boa pesquisa

necessita do vazio daquilo que natildeo foi mostrado e conhecido daiacute seu caraacuteter aberto e

aventureiro o terapeuta desliza num passo a passo integrando as diferentes expressotildees

que emergem da troca relacional em seu processo de interpretar de modo a produzir

articulaccedilotildees possiacuteveis (e natildeo exclusivas) de um conjunto de sistemas presentes nesse

contexto

499Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

Tendo como base uma oacutetica cliacutenica e qualitativa (Neubern 2010) seria possiacutevel con-

siderar no exemplo de Amanda que as cenas do jardim significavam para ela uma

reconciliaccedilatildeo com algo que lhe era familiar seu ethos o que coincidia com importantes

mudanccedilas de vida daquele momento que as peacutetalas das flores consistiam num modo

de reconstruir sua imagem corporal nesse processo muito comprometida pelos maus-

-tratos (ali simbolizados pelos buracos) que a imagem das agressotildees de seu pai que

emergiu a partir da fixaccedilatildeo no rosto tambeacutem significava um comprometimento de sua

identidade e que a abertura de espaccedilo para que emergisse um personagem espiritual

capaz de dar outro rumo agrave situaccedilatildeo significando o acionamento de recursos culturais

como modo de proteger e facilitar esse processo de reconciliaccedilatildeo Sem duacutevidas aqui a te-

oria desempenha um papel importante na medida em que favorece caminhos flexiacuteveis

para a articulaccedilatildeo de diferentes dimensotildees (Morin 1990) O terapeuta poderia nesse

sentido conceber o corpo como espaccedilo privilegiado de sua existecircncia (Merleau-Ponty

2008) capaz de organizar configuracionalmente (Gonzalez Rey 2007) dimensotildees de

gecircnero eacutetnicas econocircmicas familiares espirituais micro-sociais e culturais As ima-

gens das agressotildees do pai por exemplo a bem dizer ancoradas em seu rosto podem ser

concebidas em termos de configuraccedilotildees negativas a respeito de sua identidade uma vez

que esta parte do corpo se mostra como um dos principais representantes vividos dessa

produccedilatildeo subjetiva Nessas configuraccedilotildees podem ser concebidas dimensotildees de segre-

dos familiares (ldquonatildeo sei porque ele me trata tatildeo mal se eacute uma pessoa tatildeo boa na cidaderdquo) de

racismo (ldquovocecirc natildeo presta pra nada negardquo) de gecircnero (ldquoseu destino eacute ser uma putardquo) e de

espiritualidade (como a substancia escura em seu ceacuterebro) Em suma numa soacute parte do

corpo num dado momento do processo terapecircutico a complexidade se faz presente in-

tegrando dimensotildees diversas e produzindo processo subjetivos de consideraacutevel riqueza

que exigem paciecircncia e refino teoacuterico do terapeuta para concebecirc-los como integrantes

dessa experiecircncia

No entanto caso a pesquisa pare por aqui ela fica irremediavelmente capenga De

fato ela permite uma traduccedilatildeo que faccedila inteligiacutevel ao pesquisador a riqueza dos proces-

sos vividos pelo sujeito uma inteligibilidade que permita e necessite da discussatildeo com

seus colegas com aqueles de sua comunidade que natildeo devem perseguir o consenso a

qualquer custo mas satildeo reconhecidos como competentes para problematizar tais in-

terpretaccedilotildees De fato eacute tambeacutem uma forma de se referir o miacutenimo possiacutevel aos outros

buscando-se evitar de alguma forma os riscos do universalismo Todavia eacute tambeacutem

um modo de se referir aos outros sem que nada do mundo deles possa questionar

500

aquilo que o pesquisador afirma o que abre a perspectiva de que nessa forma de pes-

quisa o poder possa facilmente sobrepor-se ao saber Ateacute que ponto poderiacuteamos noacutes

pesquisadores referirmo-nos ao mundo de experiecircncia dessas pessoas nos termos que

utilizamos como configuraccedilotildees subjetividade ou narrativas Essas categorias e suas

respectivas leituras teoacutericas fazem frente agrave riqueza de processos do mundo do outro

quando num transe hipnoacutetico ou religioso por exemplo Natildeo seria esta leitura um

processo unidirecional que contraria o proacuteprio caraacuteter de matildeo dupla da influecircncia hip-

noacutetica uma vez que apenas falamos sobre eles sem que nada nos questione ou como

diria Isabelle Stengers (2001) coloque nossas proposiccedilotildees em risco Natildeo correriacuteamos

o seacuterio risco de repetir as armadilhas associadas ao universalismo como os arroubos

etnocecircntricos e a pretensa superioridade de nossos saberes ldquobrancosrdquo46

Essa noccedilatildeo de aventura da pesquisa escapa portanto agrave construccedilatildeo de categorias que

noacutes representantes do saber dos brancos isto eacute do saber cientiacutefico ocidental julgamos

ser as mais adequadas aos outros Natildeo eacute sem razotildees que termos como ldquoeficaacutecia simboacuteli-

cardquo ldquoimaginaccedilatildeordquo ldquoestruturardquo ou mesmo ldquoconfiguraccedilotildeesrdquo e ldquonarrativasrdquo natildeo deixam de

inspirar certo universalismo porque satildeo qualificados apenas no mundo desencantado

dos pesquisadores Dentro das devidas proporccedilotildees natildeo seria exagero afirmar que tais

propostas correm em uacuteltima anaacutelise um risco similar de colonizaccedilatildeo47 de noccedilotildees como

o Eacutedipo psicanaliacutetico ou os tatildeo criticados diagnoacutesticos psiquiaacutetricos cuja legitimidade

eacute atestada mais pela autoridade acadecircmica do que por uma praacutetica laboratorial onde

algo constranja o pesquisador a pensar melhor sobre o que afirma a reformular suas

concepccedilotildees por oposiccedilatildeo da experiecircncia Assim considero que a questatildeo natildeo deve se

restringir agrave adoccedilatildeo de categorias abertas mas sobretudo a uma nova forma de qualifi-

car a relaccedilatildeo como produtora de conhecimento

46 Branco aqui refere-se ao conhecimento moderno cientiacutefico e ocidental formado no primeiro mundo que se coloca numa condiccedilatildeo superior coloniza e desqualifica as demais formas de saber Considero que a adesatildeo integral de um sujeito a ldquotornar-se brancordquo consiste em um grande problema principalmente em paiacuteses como o Brasil tanto pela insuficiecircncia desse saber para as necessidades humanas como no tocante a diversidade de saberes existentes no mundo

47 Agrave medida que natildeo reconhecem particularidades culturais do mundo das pessoas como os seres espirituais e as regras de relaccedilatildeo com eles rituais iniciaccedilotildees objetos sagrados e experts tais perspectivas tambeacutem acabam exercendo um papel colonialista Isto porque noccedilotildees como narrativas configuraccedilotildees ou ateacute imaginaccedilatildeo deixam de fora importantes processos do ethos das pessoas reduzindo suas leituras em termos de sentidos significados e imagens

501Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

Mas Podemos Falar Com Eles e Formarmos um ldquoNoacutesrdquo

Em certa ocasiatildeo procedia a um trabalho de transe com D Maria Clara 57 anos bioacute-

loga de formaccedilatildeo que jaacute estava habituada a manifestar seres espirituais durante seus

transes hipnoacuteticos Aleacutem de vir de uma separaccedilatildeo traumaacutetica que lhe ocasionou seacuterios

riscos de desorganizaccedilatildeo psiacutequica Maria Clara apresentava muitas dores em funccedilatildeo de

uma artrite reumatoacuteide que se expressavam sobretudo nos joelhos tornozelos e pul-

sos Sua histoacuteria de vida era perpassada por intensa violecircncia familiar (inclusive com

episoacutedios de abuso sexual) e por uma adoccedilatildeo mal explicada que a tirou de sua famiacutelia de

origem quando ainda contava com dois anos de idade Durante aquela sessatildeo sempre

me utilizava de sugestotildees que pudessem lhe trazer uma experiecircncia protegida e segura

apelando para os aspectos saacutebios do inconsciente dentro de uma linguagem metafoacuterica

especiacutefica (Erickson 1983) Sua sessatildeo ocorria sempre em conjunto com nosso grupo

de pesquisa Quando seu mestre espiritual apareceu um monge chinecircs de uma ordem

budista anterior agrave era cristatilde ele nos trouxe a seguinte comunicaccedilatildeo expressa sempre

sobre forte sotaque

ldquoQuando vocecircs estiverem nesse evento procurem mentalizar bem Isto porque haveraacute uma pessoa eacute uma professora ela vai se sentar na 2a fila cabelos loiros ateacute os ombros meia idade vocecirc (para mim) vai reconhecer faacutecil Ficaraacute quase na sua frente Ela iraacute ateacute laacute pra perturbar a energia Eacute instrumento das sombras eacute algueacutem que desagrega Energia ruim Tentaraacute inclusive fazer alguma parceria com vocecirc natildeo aceite Os outros precisam mentalizar bem para que o ambiente tenha uma energia de proteccedilatildeordquo

Sem duacutevida um acontecimento dessa ordem eacute de grande importacircncia natildeo soacute pela sua

surpreendente capacidade de predizer (tudo foi confirmado com muita precisatildeo) mas

pelo que pode levar a pensar no tocante ao problema da aventura de conhecimento aqui

destacado em termos da construccedilatildeo de um verdadeiro laboratoacuterio etnopsy48 (Nathan

2001 2007 Stengers 2001) O que seraacute destacado aqui satildeo alguns caminhos possiacuteveis

para se pensar essa proposta nos contextos de pesquisa com os quais me deparo con-

textos tipicamente brasileiros perpassados por diferentes saberes que natildeo se rendem ao

48 Utilizei o termo etnopsy para natildeo restringi-lo a uma disciplina como pode sugerir o termo original ethopsychiatrie (Nathan 2001) Trata-se de uma proposta de cliacutenica que considera a cultura natildeo como algo que noacutes ldquobrancosrdquo designamos sobre os outros mas como algo que convida esses outros mundos a um diaacutelogo profundo de produtivo

502

saber acadecircmico que trazem questotildees significativas em termos de atualidade (Csordas

2009)

A primeira questatildeo de pesquisa cliacutenica a ser discutida eacute a questatildeo da relaccedilatildeo hipnoacutetica

enquanto dispositivo de produccedilatildeo de saber um dispositivo cuja caracteriacutestica principal eacute

a de se constituir como um processo de influecircncia (Erickson amp Rossi 1979 Roustang

1991) Na perspectiva aqui adotada a influecircncia eacute uma forma de transmissatildeo da teoria

do terapeuta um veiacuteculo que transmite suas questotildees ontoloacutegicas e mobiliza os inte-

resses do paciente convidando-o a pertencer a um mundo preacutevio onde haacute o reconhe-

cimento cientiacutefico uma visatildeo de mundo as histoacuterias heroacuteicas relativas a seus protago-

nistas e eventualmente missotildees coletivas para esse pensamento Assim malgrado os

problemas conceituais tiacutepicos da hipnose (Stengers 2002) existe nela uma perspectiva

pragmaacutetica marcante que faz apelo agraves possibilidades de superaccedilatildeo e transformaccedilatildeo a

partir de uma sabedoria inconsciente (Erickson 1983) O inconsciente enquanto fonte

explicativa da cosmovisatildeo teoacuterica do terapeuta afigura-se aqui como algo embora natildeo

totalmente conhecido e muito aleacutem de capacidade racional de apreensatildeo com o qual

terapeuta e paciente devem entrar num processo de negociaccedilatildeo para que a partir dele

a cura possa acontecer

Eacute a partir desse ponto que se torna possiacutevel aproximar a noccedilatildeo de inconsciente de Eri-

ckson (Erickson amp Rossi 1979) de um dos princiacutepios mais importantes da aventura

moderna de conhecimento em termos etnopsy uma aventura capaz de romper com

o problema da complacecircncia e oferecer testemunhos confiaacuteveis enquanto prova (Na-

than 2001 2007) a noccedilatildeo de coisa Isso porque embora natildeo possua objetos materiais

que o encarnem no mundo fiacutesico concretizando a teoria do terapeuta (como amuletos

das terapias de outras culturas ou medicamentos da farmaacutecia meacutedica) o inconsciente

hipnoacutetico nasce de um contexto relacional especiacutefico no qual um expert o terapeuta

utiliza-se de teacutecnicas particulares junto ao paciente por meio do qual ele mostra seus

efeitos Natildeo consiste num produto individual mas numa fabricaccedilatildeo coletiva que remete

a uma tradiccedilatildeo no caso remetendo aos proacuteprios magnetizadores dos seacuteculos XVIII e

XIX (Neubern 2009) e se apresenta como algo que em larga medida possui uma accedilatildeo

aleacutem das intenccedilotildees deliberadas dos humanos algo que pode explicar a origem dos pro-

blemas e com o qual se pode negociar com o intuito de se conseguir uma cura Eacute assim

que o terapeuta se endereccedila a ele por meio de teacutecnicas sugestivas especiacuteficas como as

metaacuteforas jogos de linguagem movimentos corporais e alteraccedilotildees de voz particulares e

503Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

mesmo a construccedilatildeo de certos papeacuteis (Geary amp Zeig 2000) que permitem a formaccedilatildeo

de um par junto com o paciente que proporciona a emergecircncia do inconsciente com o

qual buscam uma nova forma de relaccedilatildeo

Contudo tal perspectiva apresenta problemas no sentido de situar a hipnose em ter-

mos de sua proximidade com a noccedilatildeo de psique sem alma dos modernos (Neubern

2004) ao mesmo tempo em que situa a relaccedilatildeo entre sujeitos individuais como o foco

de produccedilatildeo de conhecimento Nesse sentido seja por meio de uma anaacutelise contra-

-transferencial (Devereux 1980) seja por meio de uma reflexividade da comunicaccedilatildeo e

do contexto (Gonzalez Rey 2011 Neubern 2010) natildeo haacute como transpor por exemplo

a diferenccedila entre ldquoquantitativosrdquo e ldquoqualitativosrdquo em termos de se buscar a proposta

dessa aventura moderna Se a anaacutelise da contra-transferecircncia natildeo proporciona um dado

confiaacutevel uma vez que o inconsciente do cliacutenico natildeo eacute estaacutevel como pretendia Devereux

(1980) as propostas interpretativas e hermenecircuticas apresentam a virtude de buscarem

uma fidelidade ao campo de estudos mas tambeacutem natildeo apresentam uma alternativa

convincente de que suas reflexotildees e seus argumentos sejam colocados agrave prova subme-

tidos ao jogo de forccedilas que constrange o pensamento ao risco por aqueles a quem se

referem Daiacute porque um psicanalista um antropoacutelogo um socioacutelogo ou um psicoacutelogo

podem se referir ao outro e decidir sobre suas vidas (por meio de um relatoacuterio levado

ao juiz por exemplo) sem que isso implique num questionamento mais profundo em

termos de saber e natildeo apenas de poder sobre aquilo que afirmam Haveria aqui tama-

nho teor de verdade sobre o que afirmam de modo a natildeo se questionar sobre como um

conhecimento pretensamente vaacutelido se refere a eles Em suma ateacute que ponto eacute liacutecito a

noacutes acadecircmicos fazermos referecircncias sobre os outros sobre quem eles satildeo e como satildeo

sem que nossos dispositivos sejam colocados agrave prova de alguma forma

No entanto o que as pesquisas tem me apresentado permite-me situar o problema de

outra forma (Neubern no prelo) O contexto relacional proporcionado pela hipnose nas

situaccedilotildees aqui discutidas favorecem de alguma forma a emergecircncia do mundo espi-

ritual de pessoas como D Maria Clara um mundo que eacute individual mas que tambeacutem

a situa como representante de uma coletividade Esse mundo seria a verdadeira coisa

neste processo algo anterior e superior ao proacuteprio inconsciente Tal processo eacute fun-

damental para a caracterizaccedilatildeo da coisa isto eacute como algo que situe o sujeito enquanto

recalcitrante capaz de trazer desorganizaccedilatildeo a meu pensamento e minhas afirmaccedilotildees

sobre sua experiecircncia Dito de outro modo natildeo eacute a pessoa individual de Maria Clara

504

quem se torna questionadora de meu pensar (uma vez que ela eacute uma parceira do pro-

cesso natildeo uma recalcitrante) mas sua inserccedilatildeo num mundo proacuteprio com suas regras

seres e experts e sobre o qual nada posso afirmar um mundo que remete a um saber

distinto do meu e que pode cooperar contradizer recusar em suma estabelecer um

verdadeiro comeacutercio com o saber acadecircmico que represento enquanto pesquisador e

cliacutenico O contexto terapecircutico se transforma como diria Bruno Latour (1991) num ver-

dadeiro parlamento no qual natildeo haacute hierarquia de saberes mas um espaccedilo possiacutevel para

que diferentes saberes e deuses tomem assento na negociaccedilatildeo daquilo que faz sentido

pode ser terapecircutico para aquela pessoa em particular (Nathan 2007)

Tal consideraccedilatildeo traz agrave tona uma questatildeo da mais alta importacircncia que eacute o problema

dos dispositivos que possuem o poder de convocar determinadas dimensotildees de estudo

para um campo de negociaccedilatildeo com o pesquisador de maneira a poderem responder a

suas questotildees e instigaacute-lo agrave problematizaccedilatildeo A proposta etnopsy natildeo eacute a de estabelecer

um paralelo linear e simplista entre os dispositivos da ciecircncia moderna e a consequumlente

fabricaccedilatildeo de seres e o de outras formas de saber como os de teor espiritual Isto porque

os seres e coisas da ciecircncia pertencem a um outro mundo que resistiu ao materialismo

e ao ceticismo a despeito da verdadeira histoacuteria de guerra envolvendo as experiecircncias

metapsiacutequicas e o nascimento da parapsicologia (Meacuteheust 1999 2011) A questatildeo que

se coloca eacute muito mais a relaccedilatildeo indissociaacutevel que existe entre o fenocircmeno enquanto

acontecimento (e daiacute a importacircncia central do singular jaacute destacado) e os dispositivos

que o evocam de maneira a tornar inconcebiacutevel a ideacuteia de um dado bruto que exista por

si mesmo e seja independente de qualquer processo que o anteceda tal como supotildeem

as perspectivas instrumentalistas ainda hoje dominantes na psicologia (Gonzalez Rey

2007)

No que concerne contudo a este trabalho e especificamente ao caso aqui discutido

deve-se destacar que a hipnose enquanto dispositivo remete a uma relaccedilatildeo de parentes-

co a bem dizer sanguumliacuteneo entre a psicologia e algumas religiotildees espiritualistas do Brasil

que se utilizam do transe como o espiritismo a umbanda e alguns grupos esoteacutericos

(Carvalho 1994) Tal proximidade possui enraizamentos histoacutericos de longa data en-

contrando na antiga proposta do magnetismo animal de Mesmer e Puyseacutegur as raiacutezes

comuns da metapsiacutequica do espiritismo da hipnose e da psicologia numa eacutepoca em

505Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

que o tracircnsito de estudos entre ciecircncia e religiatildeo era bastante comum49 (Bergeacute 1995

Blum 2006 Meacuteheust 1999 2011 Monroe 2008 Neubern 2009 Sharp 2006 Trei-

tel 2004) Todavia o que os acontecimentos da pesquisa parecem me mostrar de for-

mas por vezes surpreendentes eacute que tal parentesco natildeo permaneceu restrito aos livros

de histoacuteria uma vez que a hipnose ocupa hoje um lugar importante no mundo espiri-

tual das pessoas e seres espirituais que participam de nossos encontros cliacutenicos Natildeo soacute

afirmam como os mestres de Maria Clara que a hipnose eacute uma teacutecnica amplamente

utilizada no mundo espiritual como em mais de uma ocasiatildeo demonstraram possuir

grandes habilidades de induccedilatildeo hipnoacutetica com seus pupilos ou mesmo com as pessoas

de nossa equipe de pesquisa Tem-se aqui portanto um problema de pesquisa da mais

alta relevacircncia na medida em que o mesmo dispositivo pode ser compartilhado pelo

pesquisador que representa o saber acadecircmico e a pessoa ou ainda seus protetores

espirituais que representam ali o saber espiritual A essa altura seria possiacutevel questio-

nar se um tal dispositivo nebuloso e traiccediloeiro natildeo poderia engajar o pesquisador e o

participante num ciclo viciante e vicioso de informaccedilotildees de legitimidade suspeita por

natildeo proporcionar o jogo de forccedilas que caracteriza as ciecircncias modernas (Stengers 1995)

ou ainda se as informaccedilotildees produzidas num tal contexto natildeo seriam mais que uma es-

peacutecie de ldquovale-tudordquo teoacuterico uma proposta descompromissada com qualquer senso de

responsabilidade e rigor de meacutetodo

Sou da opiniatildeo nesse sentido de que o compartilhamento do mesmo dispositivo natildeo

consiste por si mesmo num caminho fadado ao fracasso e natildeo apenas pelo uso muito

distinto que pesquisador e participantes atribuem agrave hipnose Na perspectiva que defen-

do (Neubern no prelo) esse compartilhamento proporciona duas condiccedilotildees fundamen-

tais para a emergecircncia da coisa no contexto terapecircutico a) a inserccedilatildeo do sujeito numa

coletividade b) a condiccedilatildeo ativa e portanto recalcitrante desse saber com respeito ao

pensamento do pesquisador No primeiro ponto a condiccedilatildeo de Maria Clara eacute bastan-

te ilustrativa pois quando sua terapia teve iniacutecio ainda sem qualquer manifestaccedilatildeo

temaacutetica ou interesse de cunho espiritual ela se descrevia como algueacutem que natildeo se

sentia bem no corpo de mulher nem com a liacutengua portuguesa que o Brasil natildeo pa-

recia ser paiacutes nem sua famiacutelia o seu verdadeiro grupo de origem ldquoSou um peixe fora

49 Nesse sentido natildeo eacute por acaso que as obras de grandes metapsiquistas como Cesare Lombroso Charles Richet William Crookes Alexandre Aksakof tornaram-se conhecidos do puacuteblico brasileiro graccedilas agraves traduccedilotildees realizadas pela Federaccedilatildeo Espiacuterita Brasileira (FEB)

506

drsquoaacuteguardquo dizia ela Foi apenas a partir dos transes hipnoacuteticos (ou seja dos dispositivos

que funcionaram para ela como forma de convocar os espiacuteritos) em que manifestava se-

res masculinos de outra liacutengua tempo e cultura e que diziam ser sua verdadeira famiacutelia

espiritual que tais queixas deram lugar a uma sensaccedilatildeo de leveza tranquumlilidade e bem

estar consigo mesma ou em suas proacuteprias palavras ldquocomo se sua vida passasse a fazer

sentidordquo Ela se tornou portanto algueacutem que re-encontrou seu nicho de pertencimento

espiritual algueacutem que deveria desempenhar um papel importante na missatildeo de divul-

gar conhecimentos espirituais para serem discutidos e pesquisados pela ciecircncia terrena

algueacutem que falava a pesquisadores e estudantes preocupando-se ativamente com sua

capacidade de problematizar as situaccedilotildees de pesquisa50

No entanto as accedilotildees levadas a cabo pelos mestres natildeo se restringiram apenas a uma

questatildeo cliacutenica em termos de um plano terapecircutico para sua protegida mas voltaram-

-se sobretudo para um aspecto de missatildeo coletiva o que introduz tambeacutem o segundo

item acima levantado Ela se tornava ali uma representante do mundo espiritual al-

gueacutem encarregado de transmitir sua sabedoria ao mundo ldquoEra necessaacuteriordquo diziam eles

ldquoque as experiecircncias de Maria Clara fossem divulgadas na academiardquo com o intuito de

promover o encontro entre ciecircncia e espiritualidade por meio da hipnose Era dentro

das devidas proporccedilotildees de tempo e cultura a mesma proposta europeacuteia do seacuteculo XIX

como acima ressaltado que animou as diferentes tentativas de diaacutelogo entre ciecircncia e

religiatildeo Tal proposta trazia muitos sentidos e possibilidades para sua vida tanto por lhe

proporcionar um papel de educadora que foi interrompido em sua trajetoacuteria como por

promover uma perspectiva positiva de futuro o que antes estava completamente blo-

queado por um paralisante e intenso sofrimento Desse modo agrave medida que sua terapia

se esgotava em termos de demandas pessoais o aspecto coletivo de sua missatildeo tomava

uma posiccedilatildeo central em seu mundo de maneira que natildeo tardou o momento em que

ela mesma se assumisse como parte integrante de um projeto maior da espiritualidade

superior51

50 Haacute tambeacutem repercussotildees importantes no que diz respeito a sua famiacutelia de origem que natildeo cabem nos limites deste trabalho mas podem ser apreciadas em outra referecircncia (Neubern no prelo)

51 Vale destacar que quando voltava agrave vigiacutelia Maria Clara em nada se lembrava do que ocorria em seus transes

507Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

Entretanto foi exatamente a partir desse ponto que se tornou possiacutevel conceber o caraacute-

ter ativo dos mestres espirituais que trouxeram o aspecto missionaacuterio de sua proposta

e trabalharam atentamente para que isso se constituiacutesse Nesse sentido eacute possiacutevel des-

tacar alguns momentos importantes dessa accedilatildeo que natildeo apenas mostrou autonomia

consideraacutevel quanto a meu pensamento mas tambeacutem impocircs importantes perturbaccedilotildees

sobre ele de maneira a implicar modificaccedilotildees significativas nos rumos da pesquisa e

em minha atitude como pesquisador

1 Caraacuteter de surpresa ndash A emergecircncia da manifestaccedilatildeo dos mestres com todo esse

teor de espiritualidade foi algo inesperado tanto para mim como para Maria Clara

A forma de negociaccedilatildeo as atitudes e medidas que tomaram como o rumo que im-

pingiram ao processo (uma grandiosa missatildeo espiritual da paciente) foi algo que

natildeo constava em minhas expectativas e remeteram a uma capacidade de autono-

mia consideraacutevel de outros seres sobre os quais ela parecia natildeo ter controle algum

2 Escolha ndash Questionei-me muitas vezes porque tais acontecimentos natildeo ocorriam

em algum grupo religioso onde talvez pudessem ser melhor acolhidos do que

ali numa situaccedilatildeo de psicoterapia e pesquisa As respostas trazidas pelos mestres

sempre coincidiam que era necessaacuterio que tais conhecimentos fossem discutidos

por teoacutericos e pesquisadores e natildeo se restringissem a uma reorganizaccedilatildeo da vida

daquela pessoa Na medida em que as negociaccedilotildees ocorriam percebi ser impor-

tante que as escolhas deles pudessem ser estendidas a outros momentos da orga-

nizaccedilatildeo daquele contexto tal como ilustrado na citaccedilatildeo do iniacutecio desta parte Quem

deveria integrar o grupo o incenso que ascendiam em cada sessatildeo as oraccedilotildees dos

quais participaacutevamos as teacutecnicas de proteccedilatildeo espiritual para o equiliacutebrio do grupo

e seus palpites no planejamento dos diferentes niacuteveis da pesquisa que dissessem

respeito agravequele caso Certamente havia espaccedilo para negociaccedilotildees e nem sempre

acataacutevamos o que era ali colocado uma vez que era ponto comum a necessidade

de que permanecesse como pesquisador No entanto consideramos que a partici-

paccedilatildeo efetiva deles deveria ser condiccedilatildeo fundamental para que o contexto fosse de

fato democraacutetico (Nathan amp Zajde 2012)

3 Expertise ndash Em mais de uma ocasiatildeo demonstraram consideraacutevel expertise na con-

duccedilatildeo de dilemas e situaccedilotildees de crise Houve mesmo momentos em que sua sabe-

doria pocircde acolher e cuidar com muita discriccedilatildeo e bom-senso de alguns membros

508

de nossa equipe em funccedilatildeo de demandas particulares Havia toda uma transmis-

satildeo de conhecimento (uma verdadeira cosmovisatildeo que se estendia de questotildees de

sauacutede a temaacuteticas globais e espirituais) que encontravam uma aplicaccedilatildeo praacutetica

muito niacutetida e eficaz e incentivava o interesse dos pesquisadores Tratava-se de

uma forma de saber que em diferentes momentos servia de paracircmetro para o

questionamento do saber acadecircmico sobretudo psicoloacutegico apontando suas li-

mitaccedilotildees contradiccedilotildees e virtudes Essa autonomia de saber fazia com que eu me

colocasse nas sessotildees de um modo muito distinto do habitual a partir do mo-

mento em que se manifestavam eram os mestres quem conduziam o processo de

transe e assumiam a funccedilatildeo de determinar o que deveria ser trabalhado Naquele

momento tambeacutem me tornava disciacutepulo sem abrir matildeo de minha condiccedilatildeo de

pesquisador e coordenador do grupo jaacute que nada era imposto da parte deles Meu

papel de conduccedilatildeo se dava apenas antes e apoacutes suas manifestaccedilotildees uma vez que

Maria Clara afirmava que possuiacutea confianccedila apenas em minha conduccedilatildeo para que

natildeo houvesse problemas na saiacuteda e entrada dos transes Formaacutevamos ali um par

muito semelhante ao magnetizador e o sonacircmbulo da eacutepoca de Puyseacutegur52

4 Poder ndash Natildeo raro os mestres demonstravam habilidades psiacutequicas muito impres-

sionantes fosse pela telepatia fosse por premoniccedilotildees como destacado na citaccedilatildeo

inicial A questatildeo para nossa equipe natildeo era a de explicar os mecanismos de tais

processos como numa perspectiva parapsicoloacutegica (Meacuteheust 2011) mas apenas

conceber como se tornavam elementos importantes na pauta de negociaccedilatildeo do

pequeno grupo Em nosso entender era uma forma que encontraram para que

fossem levados a seacuterio de modo a compreendermos que estaacutevamos ali diante de

alguma coisa que apresentava capacidades aleacutem das condiccedilotildees humanas comuns

poderes que nos impactavam com muito respeito eacute certo mas que poderiam faacutecil

e literalmente nos colocar em risco sob o olhar criacutetico de um outro saber53 De fato

em mais de uma ocasiatildeo os membros da equipe relataram a incocircmoda e estranha

52 Essa forma de relaccedilatildeo encontra grande proximidade com os transes sonambuacutelicos dos pacientes do Marques de Puyseacutegur (Meacuteheust 1999 Neubern 2009)

53 Questiono se natildeo seria essa a sensaccedilatildeo que muitos pacientes relatam diante de noacutes a de serem lidos por algueacutem que possui uma autoridade e um pensamento que pode saber o que realmente ocorre com eles (Grandsard 2006)

509Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

sensaccedilatildeo de terem seus pensamentos perscrutados conhecidos e adivinhados pe-

los mestres

Esse conjunto de acontecimentos mobilizados pelo mundo espiritual do qual os mes-

tres e a paciente eram representantes traz de antematildeo o problema da explicaccedilatildeo sobre

a experiecircncia dos outros Caso tivesse insistido em me restringir a uma leitura confi-

guracional ou narrativa sobre tais perspectivas jamais teria adentrado este mundo e

estabelecido uma relaccedilatildeo tatildeo estreita com ele De certo modo entendo ter sido nesse

sentido a advertecircncia de Maria Clara logo ao iniacutecio de nosso processo ldquonatildeo me julguerdquo e

o agradecimento dos mestres por eu haver parado para escutar o que queriam dizer A

questatildeo natildeo foi portanto restrita a conceber a singularidade de seus sentidos subjetivos

(Gonzalez Rey 2011) pois era eu quem determinava o que era sentido e como se posiciona-

va num corpo de pensamento numa rede de conceitos e numa forma de ver o mundo em

suma numa ontologia da subjetividade54 Caso seguisse essa linha talvez pudesse apelar

para consideraacute-la como algueacutem que sofria as dores de muitos maus-tratos e do vazio

quanto a sua famiacutelia de origem que ldquoalegavardquo estar em contato com seres imaginaacuterios

para suprir essas necessidades subjetivas ou seja um recurso soacutecio-cultural Nada de

mestres nada de compromissos caacutermicos nada de missotildees espirituais Logo o que eu

denominava sentido nada tinha a ver com o que de fato parecia fazer sentido para ela

Para que meu laboratoacuterio ficasse completo ou seja com melhores condiccedilotildees de atender

as exigecircncias de tais acontecimentos era necessaacuterio que os elementos de seu mundo es-

piritual fossem tomados como ela os apresentava e natildeo como ldquoalegaccedilotildeesrdquo ou ldquoprocessos

imaginaacuteriosrdquo E daiacute por natildeo consistirem em abstraccedilotildees (creio que as proacuteprias demons-

traccedilotildees de poderes psiacutequicos foi uma estrateacutegia para que dissipaacutessemos essa ideacuteia) mas

em seres e processos que vinham ateacute nossa equipe apresentando-se concretamente a

ela mostravam um saber proacuteprio e profundo poderes impactantes expertises diversas

de maneira a se tornar possiacutevel para mim compreender melhor o que queriam dizer

por missatildeo espiritual que natildeo se restringia a um processo configurado em sua subjeti-

vidade mas abrangia um tecido complexo dos diferentes elementos de seu mundo espiritual

com uma cosmovisatildeo ontologia e visatildeo de homem proacuteprias Assim ao inveacutes de pensar

54 Isso natildeo significa o abandono das preocupaccedilotildees teoacutericas em termos de noccedilotildees como subjetividade e configuraccedilotildees (Gonzalez Rey 2011) Em outro trabalho (Neubern no prelo) desenvolvi algumas possibilidades de articulaccedilatildeo entre a proposta etnopsy e as reflexotildees sobre a subjetividade

510

sua vida por meio do que minha influecircncia cliacutenica poderia supor ldquoseu sofrimento se

organizando a partir da adoccedilatildeo e da violecircncia familiarrdquo Maria Clara compreendeu sua

proacutepria trajetoacuteria de vida na famiacutelia adotiva em funccedilatildeo do que o mundo espiritual lhe

havia ensinado ndash tamanho sofrimento remetia a parte de sua missatildeo na Terra na qual

deveria buscar sensibilizar espiacuteritos endurecidos de sua famiacutelia adotiva A accedilatildeo dos

mestres portanto em toda sua riqueza e exuberacircncia ofereciam uma oacutetima ilustraccedilatildeo

de recalcitracircncia com respeito a meu saber inicialmente distante e empobrecido dian-

te de tamanha complexidade e grandeza Assim ao inveacutes de uma explicaccedilatildeo sobre os

outros que comumente eacute utilizada pelo psicoacutelogo como forma de se isolar proteger e

distanciar das contradiccedilotildees desse encontro tornou-se possiacutevel a mim uma forma de

explicaccedilatildeo fundamentada na singularidade da relaccedilatildeo numa atitude que qualificasse o

acontecimento levando-o a seacuterio naquilo que o proacuteprio acontecimento pudesse mostrar

a meus olhos e numa reflexatildeo mais apurada sobre os dispositivos que permitissem sua

emergecircncia Em uma palavra para que eu pudesse explicar algo sobre eles deveria

primeiramente ouvir a fundo como suas explicaccedilotildees e demonstraccedilotildees sobre tudo aquilo

impactavam minha forma de pensar em seus procedimentos teoacutericos e metodoloacutegicos

Tais processos trouxeram ainda outro problema central de pesquisa o sujeito Natildeo no

sentido de um sujeito estabilizado em seu inconsciente como diria Devereux (1980)

mas no sentido de um sujeito que eacute levado a se perguntar sobre seu pertencimento

quanto ao meacutetier de pesquisador que vez por outra entra em conflito com suas proacuteprias

raiacutezes em funccedilatildeo de suas heranccedilas culturais Eacute como se para se tornar um pesquisador

algueacutem reconhecido no mundo da ciecircncia ele devesse se tornar branco esquecendo-se

de que na verdade eacute mesticcedilo Ele entatildeo se pergunta ateacute que ponto possui condiccedilotildees de

promover um contexto democraacutetico na cliacutenica sem considerar a opressatildeo que ele mes-

mo vive ou viveu para se construir como pesquisador Isto porque um pesquisador que

se implica a fundo em experiecircncias como as aqui relatadas natildeo tem como permanecer

indiferente nem mesmo buscar refuacutegio no jaleco jaacute amarelado e roto da neutralidade

Entatildeo ele passa a fazer perguntas que precisa fazer por serem inevitaacuteveis para sua inte-

gridade como pessoa pois remetem a seu pertencimento e por serem necessaacuterias para

a coerecircncia de sua pesquisa ateacute que ponto poderia o Brasil ser considerado um paiacutes

ocidental jaacute que o prozac a novalgina e o viagra convivem tatildeo de perto com as benze-

duras as sessotildees de descarrego e as curas espirituais Como pode um brasileiro querer

se tornar branco identificando-se com o sujeito transcendental e a-cultural da ciecircncia

moderna ao mesmo tempo em que se esquece de suas proacuteprias raiacutezes Como pode ele

511Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica

querer se identificar com os saberes produzidos no primeiro mundo e ignorar o que

viveram e contaram seus pais avoacutes tios e parentes sobre orixaacutes mestres pretos-velhos

curupiras espiacuteritos e deuses Como pode ele acreditar que a reconciliaccedilatildeo do sujeito com

seu proacuteprio ethos eacute uma condiccedilatildeo cliacutenica importante para seus pacientes se isso lhe eacute

por vezes proibido em sua trajetoacuteria de formaccedilatildeo acadecircmica Resta saber porque tais

reflexotildees inquietantes e centrais raramente satildeo desenvolvidas a fundo pelos psicoacutelo-

gos Talvez um dia possamos considerar melhor que a linha que nos divide quanto aos

outros que faz a divisatildeo ilusoacuteria entre os brancos e os outros eacute muito mais tecircnue do

que costumamos imaginar

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514

Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

MeirilaneNaves

MarceloTavares

AlexandreDomanico

AnnaElisadeVillemor-Amaral

A proposta deste trabalho eacute caracterizar as funccedilotildees e os benefiacutecios do uso do registro

para a praacutetica cliacutenica Para alcanccedilarmos esse objetivo discutiremos sobre o papel do

registro nessa praacutetica e apresentaremos um novo olhar sobre esse procedimento o qual

seraacute caracterizado e definido enquanto uma accedilatildeo cliacutenica Depois delimitaremos nossa

compreensatildeo sobre o registro apresentando suas vicissitudes Tambeacutem seratildeo apresen-

tados o posicionamento e a regulamentaccedilatildeo do Conselho Federal de Psicologia acerca

da documentaccedilatildeo das informaccedilotildees cliacutenicas Por uacuteltimo teceremos nossas considera-

ccedilotildees a respeito dessa temaacutetica

Opapeldoregistrocliacuteniconapraacuteticacliacutenica

Estar numa relaccedilatildeo como a que caracteriza o trabalho do psicoacutelogo cliacutenico suscita e gera

um conjunto de informaccedilotildees e dados que constituem o material cliacutenico que deveraacute ser

recolhido analisado e armazenado podendo ser transmitido e comunicado No entan-

515Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

to para poder trabalhar esse material o cliacutenico deve fixaacute-lo utilizando-se de vaacuterias teacutecni-

cas Nesse sentido poderaacute por exemplo gravar uma sessatildeo para depois transformar o

material acuacutestico em transcriccedilatildeo escrita ou fazer um registro escrito da sessatildeo ocorrida

Por sua vez esse registro constituiacutedo pelo procedimento de fixaccedilatildeo por meio da escrita

conduz a uma materializaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo do material cliacutenico (Plaza 2004) ou agrave escrita

da cliacutenica (Mezan 1998)

Freud jaacute se preocupava com a questatildeo do registro cliacutenico escrito e com as questotildees liga-

das agrave eacutetica profissional principalmente no que tange agrave publicaccedilatildeo de uma histoacuteria cliacute-

nica e agrave preservaccedilatildeo da identidade de um paciente Todos sabem do haacutebito freudiano de

destruir todas as anotaccedilotildees utilizadas na compreensatildeo de um caso apoacutes sua publicaccedilatildeo

Entretanto o material utilizado para a escrita de O Homem dos ratos foi preservado Nes-

se caso Freud fazia anotaccedilotildees apoacutes cada sessatildeo agrave medida que o processo se desenvolvia

(Freud 1980a [1909]) Sua publicaccedilatildeo foi efetuada com a autorizaccedilatildeo do paciente

Em Recomendaccedilotildees aos meacutedicos que exercem a psicanaacutelise Freud (1980b [1912]) apresenta

as regras teacutecnicas para o exerciacutecio dessa praacutetica cliacutenica No item a aponta as dificulda-

des que o analista possa vir a ter em relaccedilatildeo agrave proacutepria memoacuteria frente agrave abundacircncia de

material cliacutenico obtido na anaacutelise simultacircnea de vaacuterios pacientes Nos itens b e c aborda a

questatildeo referente agraves anotaccedilotildees cliacutenicas recomendando que a tomada de notas integrais

ou a manutenccedilatildeo de um registro estenograacutefico natildeo seja realizada durante as sessotildees

analiacuteticas podendo ser prejudiciais ao processo Esclarece que faz suas anotaccedilotildees de

memoacuteria agrave noite apoacutes encerrar seu trabalho de atendimento

Nas Notas preliminares do fragmento de anaacutelise de um caso de histeria (Freud 1980c [1905])

tambeacutem aborda o tema das anotaccedilotildees esclarecendo que os enunciados do paciente fo-

ram registrados de memoacuteria apoacutes o teacutermino das sessotildees Em relaccedilatildeo agrave escrita da histoacute-

ria cliacutenica evidencia que a escreveu tambeacutem de memoacuteria apoacutes o encerramento do caso

ressaltando que embora esse registro natildeo seja fonograficamente fiel possui alto grau

de fidedignidade por natildeo conter alteraccedilotildees no que lhe eacute essencial Nesse momento sua

preocupaccedilatildeo era alertar sobre os possiacuteveis efeitos que o ato de escrever e a necessidade

de comunicaccedilatildeo com a sociedade cientiacutefica pudessem ter sobre o curso do tratamento

O foco estava na reflexatildeo sobre o melhor momento para se registrar sendo indiscutiacutevel

a necessidade de fazecirc-lo

516

Por outro lado em Notas sobre o bloco maacutegico Freud faz uma analogia entre o funciona-

mento mental e o bloco maacutegico (no Brasil conhecido como ldquolousa maacutegicardquo) enfatizando

a questatildeo da memoacuteria A esse respeito anuncia que ldquoquando natildeo confio em minha me-

moacuteria [] posso suplementar e garantir seu funcionamento tomando nota por escrito

Nesse caso a superfiacutecie sobre a qual essa nota eacute preservada a caderneta ou folha de

papel eacute como se fosse uma parte materializada de meu aparelho mnecircmico que sob ou-

tros aspectos levo invisiacutevel dentro de mimrdquo (Freud 1980d [1925] sp) Acrescenta que

a memoacuteria assim materializada permanece inalterada escapando agraves possiacuteveis deforma-

ccedilotildees proacuteprias da nossa memoacuteria gerando um traccedilo permanente Em outras palavras a

materializaccedilatildeo da memoacuteria pela escrita torna-a permanente protegida dos processos de

esquecimentos reelaboraccedilotildees e deformaccedilotildees

Nessa perspectiva a fixaccedilatildeo do material cliacutenico em forma de um registro escrito torna-o

um traccedilo permanente de memoacuteria diminuindo as deformaccedilotildees proacuteprias ao processo

mnecircmico humano O registro escrito possibilita-nos revisitar o material cliacutenico mini-

mizando os prejuiacutezos que a passagem do tempo naturalmente traz sem o recurso da

memoacuteria objetivada ou materializada Certamente essa memoacuteria materializada esse

registro cliacutenico escrito natildeo corresponde agrave transcriccedilatildeo idecircntica dos acontecimentos ou

agrave visatildeo integral da realidade referida mas sim se fundamenta no ponto de vista do

cliacutenico circunscrito pelos limites da capacidade de apreensatildeo Natildeo significa a descriccedilatildeo

objetiva e concreta da experiecircncia de um encontro mas a tentativa de relatar aquilo que

foi vivido e assimilado Significa uma construccedilatildeo um recorte (Nogueira 2004) No re-

gistro escrito sobre um momento da relaccedilatildeo entre pessoas intervecircm a formaccedilatildeo a per-

sonalidade e os pontos cegos do cliacutenico o seu procedimento de elaboraccedilatildeo e o contexto e

lugar institucional do registro (Giami e Plaza 2004) Assim esse recorte que eacute o regis-

tro representa uma interpretaccedilatildeo do cliacutenico sobre o momento referenciado representa

a sua significaccedilatildeo sobre as questotildees ou temas selecionados na sua escuta do paciente

Costuma-se destacar a relaccedilatildeo privilegiada do cliacutenico com o procedimento de registro

escrito no contexto de pesquisa e de psicodiagnoacutestico em contraste com sua relaccedilatildeo

com o registro no contexto de psicoterapia no qual tradicionalmente eacute a atividade

psiacutequica da memoacuteria que prevalece (Plaza 2004) Parece haver um desconforto por

parte do cliacutenico no que tange ao uso desse registro em se tratando do processo psico-

terapecircutico Desconforto talvez referenciado pelo sentido atribuiacutedo agraves recomendaccedilotildees

freudianas sobre o exerciacutecio da psicanaacutelise (Freud 1980a 1980b 1980c 1980d) e agrave

517Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

constituiccedilatildeo de uma cultura de que a anaacutelise deve ser feita apenas a partir da memoacuteria

e natildeo de registros escritos Este texto propotildee que essa cultura deve ser questionada e

transformada Com efeito a concepccedilatildeo de que a anaacutelise ou a psicoterapia fundamenta-

-se essencialmente sobre a memoacuteria pode interromper o trabalho de registro escrito e

gerar duas consequecircncias graves 1) pode interromper ou dificultar o desenvolvimento

de pesquisas sobre o processo psicoterapecircutico visto que o trabalho de pesquisa eacute de-

pendente do trabalho de registro e 2) pode interferir de modo indesejado na praacutetica

cliacutenica quando informaccedilotildees relevantes a respeito do paciente que precisariam ser consi-

deradas possam ser ignoradas ou perdidas Esse fato ainda torna-se mais niacutetido e grave

no contexto da sauacutede mental e intervenccedilatildeo em crise e nas situaccedilotildees em que o paciente

entra em contato com muacuteltiplos provedores de serviccedilos de sauacutede se pensarmos na

necessidade de conhecer o histoacuterico dos acompanhamentos anteriores do paciente nas

situaccedilotildees de risco de encaminhamento de substituiccedilatildeo de profissionais durante o pro-

cesso ou de retorno de um paciente a esse processo tempos depois com o mesmo ou

com um novo psicoterapeuta

A esse respeito Plaza (2004) corrobora esses questionamentos ao evidenciar que ldquotodo

avanccedilo teoacuterico praacutetico e cientiacutefico necessita de uma tomada de distacircncia de um proce-

dimento reflexivo as situaccedilotildees subjetivas o quadro relacional terapeuta-indiviacuteduo as

intervenccedilotildees do terapeuta devem portanto ser objeto de uma fixaccedilatildeo para que possam

ser transmitidas compartilhadasrdquo (p 55 grifo nosso) Com efeito a autora evidencia

a necessidade de uma fixaccedilatildeo de um registro dos acontecimentos e fenocircmenos que

acontecem em situaccedilotildees e contextos diversos (teoacuterico praacutetico e cientiacutefico) incluindo a

relaccedilatildeo entre pessoas para que o exerciacutecio de reflexatildeo possa ser realizado com maior

eficiecircncia Sem duacutevida o quadro relacional o conteuacutedo subjetivo relatado e as inter-

venccedilotildees cliacutenicas que caracterizam o contexto de um processo cliacutenico eacute o material a ser

fixado O registro das situaccedilotildees inerentes a esse contexto favorece o engajamento em

um processo reflexivo que possibilita melhor compreensatildeo transmissatildeo e compartilha-

mento dessas situaccedilotildees e informaccedilotildees

Em consonacircncia a sistematizaccedilatildeo de uma praacutetica de registros escritos responde a essa

necessidade favorecendo tanto a tomada de distacircncia para o procedimento reflexivo

quanto sua transmissatildeo e compartilhamento de informaccedilotildees pelo terapeuta pela equi-

pe ou no processo de supervisatildeo o que possibilita a melhor compreensatildeo do processo

bem como o norteamento das estrateacutegias e intervenccedilotildees a serem tomadas Em outras

518

palavras o registro sistematizado de informaccedilotildees decorrentes do processo psicotera-

pecircutico fornece informaccedilotildees especiacuteficas sobre este processo orienta o terapeuta no seu

acompanhamento e evidencia alguns aspectos que possam ter contribuiacutedo para as mu-

danccedilas ocorridas na vida do paciente Alguns trabalhos (Naves e Tavares 2007 Doma-

nico e Tavares 2005 Giami e Plaza 2004 e Tanner 2003) sugerem que a sistematiza-

ccedilatildeo de uma praacutetica de registros escritos possibilita uma melhor organizaccedilatildeo do material

cliacutenico o que contribui para a maior eficiecircncia da praacutetica de supervisatildeo de casos bem

como da psicoterapia em si O trabalho de Tanner (2003) evidencia que a organizaccedilatildeo

do material cliacutenico contribui para uma reduccedilatildeo significativa no tempo de trabalho em-

preendido para a elaboraccedilatildeo do psicodiagnoacutestico e o planejamento da psicoterapia Essa

reduccedilatildeo ocorre pois o material organizado oferece uma clara orientaccedilatildeo sobre quais

informaccedilotildees satildeo necessaacuterias para a realizaccedilatildeo do procedimento mais adequado

Numa outra perspectiva a sistematizaccedilatildeo de uma praacutetica de registros cliacutenicos escritos

torna-se fundamentalmente importante por oferecer proteccedilatildeo e seguranccedila ao cliacutenico

no exerciacutecio de sua profissatildeo Eacute de conhecimento geral que todo profissional de sauacutede

possui responsabilidades eacuteticas e legais em relaccedilatildeo agraves pessoas que atende acompanha

ou realiza algum tipo de tratamento Essa responsabilidade tambeacutem inclui proteger a

vida humana da autodestruiccedilatildeo (suiciacutedio) ou da destruiccedilatildeo de outrem (homiciacutedio) Uma

pesquisa realizada pela American Psychological Association (APA) no periacuteodo de 1976 a

1986 (Fremouw Perczel e Ellis 1990) aponta que as causas mais comuns de processos

legais contra psicoterapeutas satildeo asseacutedio sexual tratamento incorreto e morte por cau-

sa de uma avaliaccedilatildeo incorreta A morte de clientes representa 105 dos processos To-

dos esses processos podem ser incluiacutedos na categoria de ldquomau exerciacutecio da profissatildeordquo A

responsabilidade pela informaccedilatildeo formaccedilatildeo capacitaccedilatildeo apreensatildeo de conhecimento

teacutecnico e o registro adequado dos julgamentos cliacutenicos dos procedimentos adotados e

das sessotildees ocorridas constituem algumas das recomendaccedilotildees feitas para o cliacutenico re-

duzir o risco de acusaccedilotildees de mau exerciacutecio de sua profissatildeo (Fremouw Perczel e Ellis

1990) Aleacutem dessas recomendaccedilotildees com o intuito de aumentar a proteccedilatildeo e seguranccedila

no exerciacutecio da cliacutenica haacute a recomendaccedilatildeo de que tambeacutem sejam registradas as supervi-

sotildees ocorridas e todas as ocorrecircncias ou contatos que aconteceram entre o terapeuta e o

cliente (contatos telefocircnicos por exemplo) e outras pessoas que possam estar envolvidas

no processo (profissionais familiares e amigos por exemplo)

519Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

Nesse sentido eacute papel do registro escrito oferecer benefiacutecios ao profissional no exerciacutecio

de sua praacutetica cliacutenica e ao processo psicoterapecircutico por meio das funccedilotildees que o carac-

terizam e o constituem Assim satildeo funccedilotildees cliacutenicas do registro (Naves amp Tavares 2007

e Domanico amp Tavares 2005)

bull Criar um traccedilo permanente de memoacuteria objetivada uma fixaccedilatildeo escrita que docu-

menta recortes de situaccedilotildees e acontecimentos do processo psicoterapecircutico

bull Minimizar as deformaccedilotildees e esquecimentos inerentes agrave memoacuteria subjetiva no

transcorrer do tempo

bull Manter e possibilitar o acesso e retomada da memoacuteria objetivada

bull Facilitar a organizaccedilatildeo e siacutentese do material cliacutenico de forma otimizada

bull Promover maior efetividade da reflexatildeo cliacutenica

bull Favorecer uma melhor compreensatildeo dos aspectos relacionais do processo (transfe-

recircncia e contratransferecircncia identificaccedilotildees etc)

bull Permitir melhor compreensatildeo do indiviacuteduo (diagnoacutestico estrutural dinacircmico e

psicopatoloacutegico)

bull Proporcionar melhor norteamento para a conduccedilatildeo do caso (planejamento do tra-

tamento e condutas terapecircuticas)

bull Possibilitar melhor transmissatildeo e compartilhamento das situaccedilotildees e informaccedilotildees

cliacutenicas nos contextos da psicoterapia do trabalho de equipes da supervisatildeo da

pesquisa e da comunicaccedilatildeo cientiacutefica

bull Oferecer proteccedilatildeo e seguranccedila ao profissional considerando-se as responsabilida-

des eacuteticas e legais implicadas no exerciacutecio dessa cliacutenica

bull Promover a sauacutede mental do psicoacutelogo ao proporcionar a reflexatildeo cliacutenica e suporte

para a anguacutestia e ansiedades presentes na conduccedilatildeo do processo

bull Auxiliar na formaccedilatildeo cliacutenica do terapeuta e

bull Contribuir para o sucesso da psicoterapia

Em siacutentese a organizaccedilatildeo otimizada do material cliacutenico promove maior efetividade da

reflexatildeo e assim possibilita melhor compreensatildeo do processo e do cliente aleacutem me-

lhor conduccedilatildeo da psicoterapia e das supervisotildees cliacutenicas A elaboraccedilatildeo do registro cliacute-

520

nico tambeacutem oferece proteccedilatildeo e seguranccedila ao profissional promove sua sauacutede mental

e contribui para a formaccedilatildeo cliacutenica Essas funccedilotildees permitem ao terapeuta desenvolver

competecircncias e habilidades que iratildeo repercutir diretamente no setting terapecircutico pro-

porcionando maior efetividade e eficaacutecia nas intervenccedilotildees e contribuindo para o sucesso

da psicoterapia

No entanto para se chegar a esses benefiacutecios para uma efetiva transformaccedilatildeo na con-

duta dos profissionais eacute necessaacuteria uma mudanccedila de postura no que se refere agrave im-

portacircncia do registro e agrave sua compreensatildeo e caracterizaccedilatildeo natildeo mais como uma mera

atividade burocraacutetica mas enquanto um procedimento cliacutenico legiacutetimo e indispensaacutevel

para a praacutetica cliacutenica Eacute sobre esse novo olhar ndash o registro enquanto um procedimento

cliacutenico ndash que discorreremos a seguir

ORegistroCliacutenicoenquantoumprocedimentocliacutenicoumnovoolhar

Na literatura especializada sobre o procedimento cliacutenico encontramos a sua qualificaccedilatildeo

descriccedilatildeo caracterizaccedilatildeo e importacircncia mas natildeo a operacionalizaccedilatildeo do seu conceito

Com efeito os autores que exploram o termo descrevem-no qualificam-no mas natildeo o

definem (Giami e Plaza 2004 Revault-DrsquoAllonnes 2004 Giami 2004 Plaza 2004 e

Giami e Samalin-Amboise 2004) A definiccedilatildeo de um conceito eacute necessaacuteria para poder-

mos exploraacute-lo qualificaacute-lo compreendecirc-lo aplicaacute-lo em diferentes contextos e verificar

sua relaccedilatildeo com outros fatores e conceitos Frente a essa questatildeo haacute a necessidade de se

desenvolver um conceito de procedimento cliacutenico para a elaboraccedilatildeo do presente traba-

lho Essa necessidade se evidenciou no ensino de um modelo padronizado de registro

cliacutenico baseado na Teoria das Relaccedilotildees Objetais As reflexotildees direcionaram-se entatildeo

para esse objetivo gerando uma definiccedilatildeo preliminar

Na praacutetica profissional do psicoacutelogo cliacutenico muitos procedimentos podem se fazer ne-

cessaacuterios e natildeo serem considerados propriamente cliacutenicos como por exemplo os tracirc-

mites administrativos necessaacuterios para o atendimento Procedimento cliacutenico eacute o conjunto

de accedilotildees direcionado para a praacutetica cliacutenica pautado num referencial teoacuterico envolvendo

recursos teacutecnicas e meacutetodos com os objetivos cliacutenicos de promover manter ou recupe-

rar a sauacutede mental de prevenir o sofrimento psiacutequico ou ainda de desenvolver o conhe-

cimento teoacuterico e as praacuteticas em Psicologia Cliacutenica (Naves e Tavares 2007)

521Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

A praacutetica cliacutenica compreende intervenccedilotildees que transcendem os contextos tradicionais

da psicoterapia Nesse sentido este conceito de procedimento cliacutenico aplica-se agraves ativi-

dades de prevenccedilatildeo e de intervenccedilatildeo natildeo se limitando agrave psicoterapia Desse modo a en-

trevista por exemplo eacute um procedimento cliacutenico que pode ser realizado para atividades

de prevenccedilatildeo de intervenccedilatildeo de psicoterapia e de pesquisa As diferenccedilas em termos de

objetivos ou forma de realizaccedilatildeo do procedimento seratildeo marcadas pelo tipo de demanda

exigida pela situaccedilatildeo do procedimento cliacutenico Tambeacutem podem ser considerados proce-

dimentos cliacutenicos as atitudes ou atividades mentais do psicoterapeuta que resultem em

accedilotildees cliacutenicas tangiacuteveis como por exemplo processo de elaboraccedilatildeo ou de reflexatildeo das

reaccedilotildees contratransferenciais

O procedimento cliacutenico deve ser pautado em um referencial teoacuterico e este precisa man-

ter uma relaccedilatildeo de intercacircmbio com outros referenciais Sem um referencial teoacuterico

definido natildeo temos como justificar o procedimento como diferente de outras praacuteticas

do senso comum O procedimento cliacutenico tambeacutem natildeo pode abster-se de uma praacutetica

pautada pela eacutetica ele tem um compromisso com o bem-estar e visa uma efetividade

em relaccedilatildeo ao sofrimento humano O procedimento cliacutenico justifica-se por este com-

promisso O referencial teoacuterico eacute o modo pelo qual a profissatildeo articula esta justificativa

de suas accedilotildees

Assim feitas as devidas consideraccedilotildees sobre o papel do registro na praacutetica cliacutenica sobre

suas funccedilotildees e benefiacutecios para o exerciacutecio profissional e para os consumidores ou usu-

aacuterios de serviccedilos psicoloacutegicos e sobre a sua compreensatildeo enquanto um procedimento

cliacutenico legiacutetimo eacute necessaacuterio definir e caracterizar o procedimento cliacutenico de registro

Caracterizaccedilatildeoedefiniccedilatildeodoprocedimentocliacutenicoderegistro

O termo documento deriva do latim documentu e tambeacutem de docere (ensinar mostrar) e

significa ldquoqualquer base de conhecimento fixada materialmente e disposta de maneira

que se possa utilizar para consulta estudo prova etcrdquo (Aureacutelio 2004) Nesse senti-

do serve para se consultar instruir e provar Significa tambeacutem ldquoescritura destinada a

comprovar um fato declaraccedilatildeo escrita revestida de forma padronizada sobre fato(s) ou

acontecimento(s) de natureza juriacutedicardquo (ibid 2004) Nessa concepccedilatildeo tambeacutem encon-

tramos o sentido de provar e de instruir aleacutem do sentido de declaraccedilatildeo de depoimento

522

e de comunicaccedilatildeo Por sua vez o termo registro (do latim registru) eacute o ldquoconjunto organi-

zado de um ou mais dados relacionados entre si e tratado como uma uacutenica unidaderdquo

(Aureacutelio 2004) Nessa perspectiva o documento ou o registro relaciona-se com instru-

ccedilatildeo ensino prova organizaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo Relaciona-se com registro organizado

com informaccedilatildeo materialmente fixada com padronizaccedilatildeo e memoacuteria Relaciona-se com

o armazenamento de informaccedilotildees diferenciadas como a fala do indiviacuteduo a inferecircncia

do cliacutenico ou sua descriccedilatildeo do processo (Tavares 2000) mas que estatildeo presentes ao

mesmo tempo num determinado contexto Estaacute portanto ldquoligado ao registro e agrave me-

moacuteria agrave escuta e ao olhar agrave transmissatildeo e agrave comunicaccedilatildeordquo ao mesmo tempo ldquonatildeo eacute

um objeto material mas constitui o produto de uma relaccedilatildeo entre materiais e um certo

tipo de leitura e de interpretaccedilatildeordquo (Plaza 2004 p53) Em outras palavras o documento

de registro eacute uma construccedilatildeo dinacircmica e viva na qual estatildeo implicados diversos fatores

relacionados ao profissional (sua formaccedilatildeo sua histoacuteria de vida seu referencial teoacuterico

sua personalidade e aptidotildees por exemplo) e agrave situaccedilatildeo social na qual este profissional

e a atividade realizada se inserem (restriccedilotildees institucionais de demanda atividades

praacuteticas ou de pesquisa entre outros)

De acordo com Plaza (2004) o problema do documento coloca-se justamente pelo fato

de o cliacutenico ter de inscrever de registrar alguma coisa referente agrave realidade na qual ele

confrontou-se com pessoas elaborou as questotildees a serem tratadas objetivos e meacutedoto

e construiu uma situaccedilatildeo para poder colocaacute-la em perspectiva e a comunicar Enfim o

problema do registro estaacute em ter de lidar com o material cliacutenico obtido atraveacutes desses

confrontos e fixaacute-los pela escrita Isso porque o registro de uma situaccedilatildeo a inscriccedilatildeo

dessa realidade fundamenta-se no ponto de vista daquele que registra representa aque-

la realidade que foi possiacutevel ser apreendida naquele momento pelo seu olhar e pela

sua escuta Representa um recorte (Nogueira 2004) pois nenhum registro consegue

cobrir ou esgotar o conjunto de todas as dimensotildees e paracircmetros de uma situaccedilatildeo Sig-

nifica que sempre subsistiratildeo dimensotildees e paracircmetros desconhecidos entre a experiecircn-

cia vivida e o registro realizado Significa tambeacutem que esses paracircmetros e dimensotildees

remanescentes devem ser tomados em consideraccedilatildeo podem e devem ser tratados por

outros olhares de outros leitores O registro entatildeo implica o cliacutenico e o pesquisador na

realizaccedilatildeo dos procedimentos cliacutenicos envolvidos no seu trabalho Implica-os tambeacutem

na proacutepria realizaccedilatildeo do procedimento cliacutenico de registro O registro evoca a reflexatildeo

cliacutenica sobre essa implicaccedilatildeo sobre suas suposiccedilotildees preacutevias e seus ldquopontos cegosrdquo ou

523Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

desconhecimentos acerca da situaccedilatildeo Essa implicaccedilatildeo pode estar no centro da dificul-

dade frequentemente experimentada na realizaccedilatildeo de registros

Na definiccedilatildeo proposta o registro como procedimento cliacutenico eacute um documento que

apresenta um conjunto de informaccedilotildees relacionadas entre si sobre determinados fenocirc-

menos ocorridos numa relaccedilatildeo cliacutenica organizadas elaboradas e registradas de acordo

com a percepccedilatildeo e interpretaccedilatildeo a partir do recorte do registrador O registro cliacutenico

portanto trata de um documento assim constituiacutedo e caracterizado enquanto um pro-

cedimento cliacutenico utilizado nas pesquisas e praacuteticas em Psicologia Cliacutenica (Naves e

Tavares 2007)

Com efeito esta compreensatildeo do registro enquanto um documento elaborado a partir

das percepccedilotildees interpretaccedilotildees e organizaccedilotildees de um registrador acerca de um fenocirc-

meno observado numa situaccedilatildeo de relacionamento evidencia a condiccedilatildeo de ser um

ldquoponto de vistardquo um recorte bem como sua condiccedilatildeo de dinamicidade Por um lado

ao evidenciar um ldquoponto de vistardquo ou seja a percepccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do registrador

o registro acaba denunciando as preferecircncias os desconhecimentos os ldquopontos cegosrdquo

daquele que o elabora Ao mesmo tempo possibilita novas percepccedilotildees interpretaccedilotildees e

elaboraccedilotildees novos olhares ou pontos de vista para aleacutem do registro da escuta ou visatildeo

do registrador Indagaccedilotildees e novas interpretaccedilotildees podem vir daqueles que acessam ou

consultam esse registro E eacute justamente essa possibilidade de novas elaboraccedilotildees e in-

terpretaccedilotildees por outro lado que traz a condiccedilatildeo de dinamicidade pois evidencia que o

registro eacute um documento constituiacutedo por material ldquovivordquo que poderaacute ser reinterpretado

e reelaborado a partir de cada nova consulta ou acesso a este documento Nessa perspec-

tiva o registro pode ser considerado enquanto um documento de construccedilatildeo dinacircmica

podendo ser ressignificado na medida em que representa um objeto vivo de construccedilatildeo

de conhecimento acerca de uma situaccedilatildeo ou fenocircmeno pois haacute que se considerar que

o proacuteprio olhar do registrador natildeo eacute mais o mesmo num momento posterior de leitura

Como elemento vivo a escritura dessas informaccedilotildees nos permite localizaacute-las do decor-

rer do tempo identificar fases no processo evidenciar repeticcedilotildees mapear a evoluccedilatildeo de

fenocircmenos (por exemplo a transferecircncia) identificar eventos precipitadores e clarificar

a incidecircncia dos processos psiacutequicos passo a passo ou melhor sessatildeo por sessatildeo

524

Delimitaccedilatildeoevicissitudesdoregistrocliacutenico

O cliacutenico deve inscrever deve registrar suas percepccedilotildees interpretaccedilotildees e elaboraccedilotildees

dos fenocircmenos ocorridos na situaccedilatildeo ou realidade na qual ele se confrontou com pesso-

as definiu objetivos e procedimentos a serem utilizados Deve construir uma situaccedilatildeo

colocaacute-la em perspectiva e a comunicar Deve registrar o material cliacutenico obtido nesses

confrontos Por sua vez o registro desse material pode ocorrer atraveacutes de diferentes

modos de inscriccedilatildeo por filmagem por fotografia por gravaccedilatildeo de aacuteudio e por escrita

O foco cliacutenico usualmente recai sobre o registro escrito que pode ser livre ou ter um

modelo padronizado cuja elaboraccedilatildeo eacute feita em geral apoacutes o procedimento cliacutenico

A delimitaccedilatildeo do procedimento de registro cliacutenico escrito evoca algumas vicissitudes

que podem ser explicitadas recorrendo a uma alusatildeo feita por Assouly-Piquet (2004)

Com efeito a autora enuncia que o procedimento cliacutenico registrado eacute semelhante agrave

estoacuteria do homem que viu o homem que viu o urso O homem que viu o urso ldquo() teraacute

colhido traccedilos trabalhado sobre esses traccedilos brincado com traccedilos e deixado traccedilos para

esse homem que lhe vem perguntarrdquo (p189) Assim o homem que viu o urso torna-se

o mediador e o transmissor das informaccedilotildees acerca do urso e o outro homem mesmo

natildeo tendo visto o urso sempre saberaacute alguma coisa a seu respeito graccedilas aos traccedilos dei-

xados pelo homem que o viu Nesse sentido a funccedilatildeo do traccedilo seria justamente permitir

a mediaccedilatildeo e a transmissatildeo dessas informaccedilotildees no caso da estoacuteria obtidas pelo contato

com o urso

Fazendo alusatildeo a essa estoacuteria apontada podemos pensar no psicoterapeuta enquanto o

homem que viu o urso Ele colhe material cliacutenico e os utiliza para o desenvolvimento da

psicoterapia Colhe trabalha sobre traccedilos e tambeacutem deixa traccedilos O psicoterapeuta tem

contato com o ldquoursordquo mas soacute pode transmitir traccedilos desse contato E o outro a quem

esses traccedilos podem se destinar (outros terapeutas e profissionais supervisor enfim

ldquoleitoresrdquo do registro) soacute teraacute contato com o ldquoursordquo na situaccedilatildeo cliacutenica por via dos traccedilos

do psicoterapeuta por via de sua mediaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo Desse modo o registro cliacute-

nico escrito torna-se o veiacuteculo de mediaccedilatildeo e transmissatildeo desses traccedilos percebidos pelo

psicoterapeuta

Feitas as devidas consideraccedilotildees sobre a praacutetica do registro cliacutenico escrito torna-se ne-

cessaacuterio evidenciar o posicionamento e regulamentaccedilotildees sobre a realizaccedilatildeo do registro

525Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

escrito de informaccedilotildees cliacutenicas aprovados pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP)

oacutergatildeo que rege e regulamenta a praacutetica do psicoacutelogo brasileiro

PosicionamentoeregulamentaccedilotildeesdoConselhoFederaldePsicologiaarespeitodoregistrodasinformaccedilotildeescliacutenicas

Diversas mudanccedilas ocorridas na sociedade acarretaram em novas e diferentes deman-

das junto aos profissionais de psicologia cliacutenicos e pesquisadores e aos usuaacuterios dos

serviccedilos psicoloacutegicos Respondendo aos anseios da sociedade civil profissional e acadecirc-

mica o Conselho Federal de Psicologia publicou em 30 de marccedilo de 2009 a Resoluccedilatildeo

CFP Nordm 0012009 que tornou obrigatoacuterio o registro documental decorrente da presta-

ccedilatildeo de serviccedilos psicoloacutegicos Sabe-se que a falta de registros cliacutenicos que comprovem e

caracterizem os atendimentos realizados representa o maior problema nos processos

eacuteticos nos Conselhos Regionais (CFP 2007) Com efeito a atual Resoluccedilatildeo surge em

consideraccedilatildeo agraves urgecircncias impostas a) pelo exerciacutecio profissional do psicoacutelogo b) pelo

reconhecimento dos consumidores usuaacuterios dos serviccedilos psicoloacutegicos acerca de seus

direitos levando-os agraves reivindicaccedilotildees eacuteticas junto aos Conselhos c) pela necessidade

dos Conselhos de orientar e fiscalizar os serviccedilos prestados e a responsabilidade teacutecnica

adotada d) pelos anseios das comunidades acadecircmicas no que se refere agrave importacircncia

do registro para as pesquisas e e) pela possibilidade do registro se constituir enquanto

prova nos processos disciplinares e nas defesas legais dos psicoacutelogos

A Resoluccedilatildeo CFP Nordm 0012009 traz dois capiacutetulos que orientam a elaboraccedilatildeo dos re-

gistros Este trabalho natildeo tem por objetivo discutir a Resoluccedilatildeo apontando duacutevidas que

porventura possam surgir da sua interpretaccedilatildeo lacunas em relaccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo para

elaboraccedilatildeo dos registros entre outras especificidades Para o momento eacute importante

descrever sinteticamente os dois capiacutetulos que estruturam a Resoluccedilatildeo O Capiacutetulo I

Dos Registros Documentais trata da obrigatoriedade desses registros dos serviccedilos psico-

loacutegicos prestados que natildeo puderem ser mantidos prioritariamente em prontuaacuterios psi-

coloacutegicos Tambeacutem satildeo oferecidas orientaccedilotildees sobre quais informaccedilotildees devem constar

nesses registros que seratildeo compartilhados por outros profissionais e pelos usuaacuterios

consumidores O Capiacutetulo II Dos Prontuaacuterios traz orientaccedilotildees especiacuteficas sobre o re-

gistro documental na forma de prontuaacuterios cujas informaccedilotildees poderatildeo ser compartilha-

das com os usuaacuterios e outros profissionais garantindo o direito do usuaacuterio ao acesso

526

integral agraves informaccedilotildees contidas nesses documentos Tambeacutem orienta sobre o registro

dos atendimentos em grupo sobre a guarda desses documentos e sobre o registro em

serviccedilos multiprofissionais

Anteriormente agrave Resoluccedilatildeo CFP Nordm 0012009 o Conselho Federal de Psicologia publi-

cou outras Resoluccedilotildees (2005b 2003 2000) que determinam a realizaccedilatildeo do registro de

informaccedilotildees cliacutenicas a Resoluccedilatildeo CFP Nordm 0102005 publicada em 21 de julho de 2005

que aprova o Coacutedigo de Eacutetica Profissional do Psicoacutelogo a Resoluccedilatildeo CFP Nordm 0072003

publicada em 14 de junho de 2003 que institui o manual de elaboraccedilatildeo de documentos

escritos produzidos pelo psicoacutelogo decorrentes de avaliaccedilatildeo psicoloacutegica e a Resoluccedilatildeo

CFP Nordm 0102000 publicada em 20 de dezembro de 2000 que especifica e qualifica a

psicoterapia como praacutetica do psicoacutelogo

O Coacutedigo de Eacutetica Profissional natildeo traz uma referecircncia especiacutefica de que o psicoacutelogo

cliacutenico deva registrar as informaccedilotildees obtidas na praacutetica entretanto aponta accedilotildees que

pressupotildeem que os registros sejam realizados (Domanico e Tavares 2005) Com efeito

a versatildeo do Coacutedigo publicada em agosto de 2005 referencia mais accedilotildees que implicam

em registros que os Coacutedigos anteriores e apresenta recomendaccedilotildees de cuidado com

relaccedilatildeo a essa praacutetica e compartilhamento das informaccedilotildees registradas

A anaacutelise do Coacutedigo de 2005 nos permite elencar quatro recomendaccedilotildees que corrobo-

ram o posicionamento expresso neste texto O Art 1ordm (CFP 2005 p8) que trata dos

deveres fundamentais dos psicoacutelogos apresenta duas recomendaccedilotildees sobre os regis-

tros ldquoInformar a quem de direito os resultados decorrentes da prestaccedilatildeo de serviccedilos

psicoloacutegicos transmitindo somente o que for necessaacuterio para a tomada de decisotildees

que afetem o usuaacuterio ou beneficiaacuteriordquo (Aliacutenea ldquogrdquo) e ldquoOrientar a quem de direito sobre

os encaminhamentos apropriados a partir da prestaccedilatildeo de serviccedilos psicoloacutegicos e for-

necer sempre que solicitado os documentos pertinentes ao bom termo do trabalhordquo

(Aliacutenea ldquohrdquo) Encontramos a terceira recomendaccedilatildeo no Art 12 ldquoNos documentos que

embasam as atividades em equipe multiprofissional o psicoacutelogo registraraacute apenas as

informaccedilotildees necessaacuterias para o cumprimento dos objetivos do trabalhordquo (CFP 2005

p13) Finalmente a quarta recomendaccedilatildeo encontra-se no Art 14 ldquoA utilizaccedilatildeo de quais-

quer meios de registro e observaccedilatildeo da praacutetica psicoloacutegica obedeceraacute agraves normas deste

Coacutedigo e a legislaccedilatildeo profissional vigente devendo o usuaacuterio ou beneficiaacuterio desde o

iniacutecio ser informadordquo (CFP 2005 p13)

527Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

Sem duacutevida se nos atentarmos agraves quatro recomendaccedilotildees apontadas verificamos que

estas sugerem accedilotildees de registros da praacutetica cliacutenica bem como o cuidado com as infor-

maccedilotildees referentes aos beneficiaacuterios da prestaccedilatildeo de serviccedilos psicoloacutegicos Assim nas

aliacuteneas ldquogrdquo e ldquohrdquo do Art 1ordm do Coacutedigo satildeo feitas referecircncias agrave informaccedilatildeo e transmissatildeo

de resultados e fornecimento de documentos o que implica na accedilatildeo de realizar algum

tipo de registro No Art 12 novamente eacute feita referecircncia agrave elaboraccedilatildeo de documentos

com recomendaccedilotildees sobre quais informaccedilotildees devem ser registradas e compartilhadas

Por fim o Art 14 trata diretamente da regulamentaccedilatildeo da elaboraccedilatildeo e utilizaccedilatildeo desses

registros

A Resoluccedilatildeo CFP Nordm 0072003 trata especificamente do registro das informaccedilotildees ge-

radas pela avaliaccedilatildeo psicoloacutegica apresentando definiccedilotildees acerca dos tipos possiacuteveis de

documentos e os quesitos necessaacuterios para a elaboraccedilatildeo destes Por sua vez a Resoluccedilatildeo

CFP Nordm 01000 que especifica e qualifica a praacutetica da psicoterapia apresenta uma orien-

taccedilatildeo mais especiacutefica e pontual sobre a realizaccedilatildeo dos registros de informaccedilotildees cliacutenicas

advindas do processo psicoterapecircutico Essa Resoluccedilatildeo determina que os atendimentos

realizados devem ser registrados Por certo o item II disposto no Art 2ordm que trata dos

princiacutepios e procedimentos que qualificam a praacutetica da psicoterapia aponta que o psicoacute-

logo deveraacute ldquopautar-se em avaliaccedilatildeo diagnoacutestica fundamentada devendo ainda manter

registro referente ao atendimento realizado indicando o meio utilizado para diagnoacutesti-

co ou motivo inicial atualizaccedilatildeo registro de interrupccedilatildeo e altardquo

Seguindo essa perspectiva verificamos que tanto o Coacutedigo de Eacutetica quanto a Resolu-

ccedilatildeo CFP Nordm 0102000 indicam a importacircncia e necessidade da praacutetica do registro a

determinam e a regulamentam No entanto natildeo especificam nem orientam como esse

registro deve ser feito isto eacute natildeo apontam um modelo nem paracircmetros para a sua

elaboraccedilatildeo como por exemplo os conteuacutedos a serem registrados (Domanico e Tavares

2005) Quanto a essa questatildeo considera-se adequado o posicionamento do Conselho

por um lado dada a complexidade da tarefa na medida em que a Psicologia Cliacutenica

apresenta uma diversidade de praacuteticas que impossibilita o delineamento de um modelo

uacutenico a ser adotado pelos profissionais de um modo geral Esse posicionamento do

Conselho tambeacutem respeita e subsidia a demanda advinda do contexto dessa profissatildeo

que se sustenta numa diversidade de praacuteticas ndash a demanda de liberdade para escolher

e construir um modelo em consonacircncia com a praacutetica pautada por um referencial te-

oacuterico especiacutefico que cada profissional adota e assume enquanto cliacutenico Sem duacutevida

528

ambos ndash o posicionamento do Conselho e a demanda do contexto profissional ndash possi-

bilitam o desenvolvimento de pesquisas Em conformidade com essas reflexotildees Doma-

nico e Tavares (2005) realizaram uma pesquisa sobre o desenvolvimento de um modelo

padronizado de registro cliacutenico escrito fundamentado na Teoria das Relaccedilotildees Objetais

e direcionado para a psicoterapia psicodinacircmica individual Dando prosseguimento a

essa pesquisa Naves e Tavares (2007) testaram esse modelo ressaltando a importacircncia

de sua construccedilatildeo por responder agraves necessidades da cliacutenica aleacutem da determinaccedilatildeo do

Conselho Federal de Psicologia Eacute importante continuar desenvolvendo modelos desse

tipo aperfeiccediloando-os com as reflexotildees suscitadas pela pesquisa pela sua utilizaccedilatildeo na

praacutetica cliacutenica e pelas interlocuccedilotildees teoacutericas

Em siacutentese essas quatro Resoluccedilotildees do Conselho Federal de Psicologia formam um

marco decisivo no reconhecimento da necessidade da realizaccedilatildeo do registro escrito dos

serviccedilos prestados pelos psicoacutelogos A publicaccedilatildeo dessas Resoluccedilotildees aponta para a pre-

ocupaccedilatildeo do Conselho Federal em oferecer medidas e orientaccedilotildees aos cliacutenicos para o

exerciacutecio eacutetico responsaacutevel e efetivo da Psicologia Cliacutenica Cabe ao psicoacutelogo a respon-

sabilidade de se capacitar e de seguir tais recomendaccedilotildees incorporando agrave sua praacutexis o

haacutebito de registrar as informaccedilotildees cliacutenicas geradas nas suas intervenccedilotildees e de utilizar o

registro enquanto um procedimento cliacutenico para potencializar o efeito de suas proacuteprias

intervenccedilotildees para benefiacutecios de seus pacientes seja em seu atendimento direto a eles

ou por intermeacutedio de sua equipe ou de outros profissionais

ConsideraccedilotildeesFinais

As novas transformaccedilotildees da sociedade e o reconhecimento dos usuaacuterios consumidores

acerca de seus direitos estatildeo modificando a forma e a frequecircncia de reivindicaccedilotildees eacuteticas

junto aos Conselhos Este cenaacuterio atual exige atualizaccedilotildees e reformulaccedilotildees de condutas

do profissional referentes ao registro e ao seu entendimento natildeo mais como uma mera

atividade burocraacutetica mas como um procedimento cliacutenico legiacutetimo Esse profissional

deve tambeacutem refletir sobre os efeitos beneacuteficos do registro Por outro lado deve estar

consciente dos riscos e consequecircncias de natildeo fazer o registro

As responsabilidades eacuteticas e legais que o profissional de sauacutede possui em relaccedilatildeo agraves

pessoas que atende acompanha ou realiza algum tipo de tratamento por exemplo de

529Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios

proteger (em risco de suiciacutedio) ou de proteger a terceiros envolvidos (em risco de homi-

ciacutedio) pode resultar em um chamamento para que ele se explique junto ao Conselho

e agrave sociedade nos casos de desfechos traacutegicos com seus pacientes O registro bem ela-

borado configura-se como uma proteccedilatildeo ao profissional contra possiacuteveis processos que

possam ser caracterizados como mau exerciacutecio da profissatildeo O Conselho natildeo considera

legiacutetimos registros realizados apoacutes tais eventos na defesa do profissional

Por outro lado a compreensatildeo do registro enquanto um procedimento cliacutenico leva-

-nos a perceber que este se direciona agraves pesquisas e agraves praacuteticas cliacutenicas por se tratar

de um documento que organiza e fixa informaccedilotildees a serem elaboradas transmitidas e

compartilhadas Ao mesmo tempo o registro se apresenta enquanto um documento no

qual convergem as treze funccedilotildees cliacutenicas ou atributos fundamentais agrave praacutexis cliacutenica e

ao desenvolvimento dessa aacuterea do conhecimento como discutido anteriormente Essas

funccedilotildees cliacutenicas do registro trazem benefiacutecios para a psicoterapia e acompanhamen-

to do paciente Assim apontam para a importacircncia e a necessidade de construccedilatildeo de

uma cultura de sistematizaccedilatildeo e uso do registro cliacutenico escrito e dos estudos sobre esse

tema Tambeacutem permitem ao terapeuta desenvolver competecircncias e habilidades que iratildeo

repercutir diretamente no setting terapecircutico favorecendo o processo de elaboraccedilatildeo cliacute-

nica do psicoacutelogo e proporcionando maior eficaacutecia e efetividade em suas intervenccedilotildees

psicoterapecircuticas

Referecircncias

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532

Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

RoqueGui

VeraLuciaDecnopCoelho

O Tempo do Sonho eacute um termo usado para descrever o periacuteodo

anterior agrave memoacuteria viva quando os Espiacuteritos emergiram do interior

da terra e a partir do ceacuteu para criar as formas e todas as coisas

vivas As histoacuterias do Tempo do Sonho inspiram as leis para a ordem

moral e social e estabelecem os padrotildees e costumes culturais55

55 httpwwwaboriginalartstorescomau

533Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

Todo mundo sonha Estamos diante de um fenocircmeno humano universal Desde tempos

imemoriais os sonhos tecircm sido objeto de interesse dos seres humanos preocupados

em classificaacute-los narraacute-los e interpretaacute-los No entanto apesar de familiares os sonhos

sempre parecem estar um tanto aleacutem da nossa capacidade de compreendecirc-los O misteacute-

rio deste processo psiacutequico ndash o sonhar ndash e a estranheza de seu produto ndash o sonho ndash nos

desconcerta ldquoSonhordquo e ldquosonharrdquo satildeo duas palavras que usamos rotineiramente e para

as quais atribuiacutemos diferentes significados aleacutem daquela mais imediata que se refere

ao fenocircmeno que habita nosso sono noturno56

Temos uma atitude ambivalente em relaccedilatildeo ao sonhar e aos sonhos talvez porque essa

atividade neuroloacutegica insoacutelita que ocorre ao ceacuterebro adormecido reveste-se de aspectos

estranhos muitas vezes bizarros incompreensiacuteveis ldquoSonharrdquo quando natildeo se refere

especificamente agrave atividade notiacutevaga adquire em nosso linguajar cotidiano o sentido de

fantasia imaginaccedilatildeo evasiva agrave realidade desejos utoacutepicos e natildeo realizaacuteveis Frequente-

mente eacute desqualificado como algo ilusoacuterio sem consequecircncias praacuteticas para o dia a dia

reduzindo-se agrave proacutepria estranheza

Em muitas culturas poreacutem os sonhos satildeo considerados importantes fontes de in-

formaccedilotildees sobre o futuro sobre o mundo espiritual ou sobre a pessoa Estudos antro-

poloacutegicos tecircm demonstrado que os sonhos conectam-se com o sistema cosmoloacutegico

teoloacutegico meacutedico esteacutetico e filosoacutefico das culturas nos quais eles ocorrem aleacutem de

referirem-se agraves concepccedilotildees sobre individualidade e linguagem agraves praacuteticas individuais

terapecircuticas e ritualiacutesticas (Shamdasani 2005) Certas culturas atribuem tal importacircn-

cia aos sonhos a ponto de serem chamadas de ldquoculturas oniacutericasrdquo designaccedilatildeo dada por

Alfred Kroeber [1876-1960] antropoacutelogo cultural estadunidense da Universidade de

Berkeley (Kracke sd)

56 Este texto eacute baseado em Gui R T (2010) Matriz do sonhar social um dispositivo de intervenccedilatildeo em psicologia cliacutenica Tese de Doutorado em Psicologia Cliacutenica e Cultura Universidade de Brasiacutelia Orientadora Vera Luacutecia Decnop Coelho

534

O sonho ocorre em um espaccedilo subjetivo diferente do espaccedilo da vida viacutegil O relacio-

namento entre esses espaccedilos tecircm sido problemaacutetica as relaccedilotildees entre o imaginaacuterio e o

real Em certas culturas ambos os espaccedilos satildeo considerados reais embora possam ou

natildeo se sobrepor A partir da obra pioneira de Sigmund Freud (1859-1939) ldquoA Interpre-

taccedilatildeo dos Sonhosrdquo o sonho tem sido abordado na cultura das sociedades industria-

lizadas segundo a perspectiva cientiacutefica do conhecimento psicoloacutegico A ecircnfase nos

aspectos da dinacircmica intra-subjetiva tem colocado em segundo plano aspectos da vida

social refletidos nos sonhos e que agem sobre a subjetividade individual aspectos que

estudos recentes buscam resgatar para o acircmbito das intervenccedilotildees psicossociais (Gui

2010 Lawrence 1998 2003 2005 2007 Neri 2003) O presente texto discute as re-

laccedilotildees muitas vezes difiacuteceis entre a psicologia antropologia e sociologia apontando a

necessidade de um trabalho interdisciplinar sobre o sonho e o sonhar

UmOlharEstrangeirosobreoSonhoeoSonhar

Nos anos 1960 Roger Bastide (1898ndash1974) socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs pergunta-

va-se se a psicanaacutelise poderia vir a ldquoinstitucionalizarrdquo o sonho o que para ele significava

atribuir um lugar e papel social ao sonhar Com a secularizaccedilatildeo da cultura e a crescente

importacircncia atribuiacuteda agrave produccedilatildeo agrave praacutexis ao trabalho e agrave organizaccedilatildeo estratificada de

classes centros sociais de comunicaccedilatildeo dos sonhos deixaram de existir As socieda-

des ocidentais contemporacircneas que valorizam a accedilatildeo a produtividade e os resultados

identificam-se com o fazer e desqualificam o sonhar deixando-o entregue agrave pura subje-

tividade ou agrave natureza O sonho perdeu entatildeo uma existecircncia objetiva institucionali-

zada e deixando de ser miacutetico passou a ocupar um espaccedilo imaginaacuterio Natildeo sendo mais

considerado sagrado pela maioria das pessoas o sonho se tornou estranho a ponto de

nos inspirar temor (Bastide 2001)

O autor conclui entatildeo que tanto entre noacutes como nas sociedades tradicionais o sonho se

inscreve nos quadros sociais com a diferenccedila de que no caso dos chamados ldquoprimiti-

vosrdquo o etnoacutelogo pode ler diretamente os sonhos graccedilas agraves suas observaccedilotildees do mundo de vigiacutelia

posto que dormindo ou acordado o homem eacute sempre o mesmo e nunca se afasta de

um mesmo mundo assentado no mito Nas sociedades contemporacircneas eacute exigido que

o socioacutelogo pratique uma leitura invertida porque a estrutura socioloacutegica inscrita nas

imagens oniacutericas o faz de certa maneira na forma de figura em espelho exigindo um

535Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

esforccedilo para decifrar as estruturas sociais Por outro lado essa mesma sociedade per-

meaacutevel agrave loacutegica cientiacutefica nos traz por meio dos estudos da psicologia profunda noccedilotildees

cientiacuteficas sobre o sonhar ldquoInterpretar sonhosrdquo passa a ser uma tarefa especializada

reservada a profissionais bem treinados os psicanalistas e seus afins (Edgar 1994)

A abordagem cientiacutefica dos sonhos ela tambeacutem explicita sua sintonia com os valores

produtivistas da sociedade capitalista industrial Bastide (2001) considera que a concep-

ccedilatildeo freudiana dos sonhos natildeo escapa a essa perspectiva ou seja o sonho eacute visto como

um dispositivo de seguranccedila para o eu que protege o sono possibilitando a descarga

das emoccedilotildees reprimidas e zelando por fim pela continuidade funcional do eu O mes-

mo se aplicaria agrave visatildeo de Adler ainda segundo Bastide pois nela o sonho eacute visto como

um instrumento de reconstruccedilatildeo da personalidade servindo ao processo adaptativo do

indiviacuteduo ao ambiente social Para o socioacutelogo os primitivos tambeacutem concebem o so-

nho como produtor Poreacutem produtor de novas caracteriacutesticas culturais e natildeo de um ser

humano melhor adaptado E o criador dos sonhos natildeo eacute o homem que sonha mas os

Antepassados ou os Demiurgos Saiacutemos assim da civilizaccedilatildeo da produtividade para a

civilizaccedilatildeo da criaccedilatildeo contiacutenua Talvez as consideraccedilotildees de Carl Gustav Jung (1875-1961)

estivessem mais ao gosto do socioacutelogo francecircs embora natildeo o saibamos porque natildeo haacute

referecircncias a respeito

Jung observou que certos povos ancestrais distinguem ldquograndes sonhosrdquo e ldquopequenos

sonhosrdquo Em linguagem contemporacircnea falar-se-ia de sonhos ldquosignificativosrdquo e sonhos

ldquobanaisrdquo (Jung 19281981 p 298) Os ldquopequenos sonhosrdquo satildeo aqueles que se referem

ao acircmbito subjetivo pessoal e seu significado situa-se na esfera da vida pessoal do so-

nhador Promovem ajustes no equiliacutebrio psiacutequico quase sempre passam desapercebi-

dos e satildeo esquecidos com facilidade

Ao longo de anos de anaacutelise de milhares de sonhos Jung constatou o aparecimento

de sonhos que continham motivos mitoloacutegicos ou seja uma combinaccedilatildeo peculiar de

ideias e imagens encontradas igualmente em mitologias de diferentes povos Cogitava

que esses sonhos detinham um caraacuteter coletivo indicando um sentido comum (incons-

cientemente compartilhado portanto) a toda a humanidade (Jung 19341993 p 148)

Em seu contato com povos da Aacutefrica Oriental Jung constatou que os chamados ldquogran-

des sonhosrdquo soacute podiam ser sonhados por pessoas notaacuteveis como por exemplo feiticei-

536

ros e chefes Para os elgonyi que vivem nas florestas do Elgon por exemplo os peque-

nos sonhos natildeo tecircm importacircncia alguma Poreacutem quando algueacutem sonha um ldquogrande

sonhordquo convoca a tribo para contaacute-los (Jung 19281981 p 168)

E como saber se o sonho eacute ldquogranderdquo ou ldquopequenordquo Um sentimento intuitivo de sua im-

portacircncia significativa convence o indiviacuteduo que natildeo deve guardaacute-lo para si Sente que

precisa contaacute-lo supondo de um modo psicologicamente correto que o sonho eacute im-

portante para todos ldquoOs processos do inconsciente coletivo natildeo dizem respeito apenas

agraves relaccedilotildees mais ou menos pessoais do indiviacuteduo com sua famiacutelia ou com um grupo

social dizem respeito agrave comunidade humana em geralrdquo (Jung 19281981 p 168)

A existecircncia desses ldquograndes sonhosrdquo natildeo representa a negaccedilatildeo de que as pessoas so-

nham a partir de si mesmas A originalidade individual dos seres humanos repousa so-

bre uma base de semelhanccedila universal ldquoUm sonho com sentido coletivo vale em primeiro

lugar para o sonhador mas exprime tambeacutem que seu problema momentacircneo pode ser o de

outrosrdquo (Jung 19341993 p 148 destaques dos autores) Jung via nessa particularidade

a importacircncia praacutetica para inuacutemeras pessoas que se sentem isoladas das demais acre-

ditando que os outros natildeo tecircm os problemas que elas tecircm Reconhecia ainda que os

problemas individuais relacionam-se com o problema da eacutepoca de modo que questotildees

subjetivas podem ser vistas sob a perspectiva das questotildees gerais da humanidade Jung

fazia a ressalva de que isso eacute vaacutelido apenas quando o sonho apresenta inequiacutevoco sim-

bolismo mitoloacutegico (Jung 19341993 p 148)

Retornemos agraves representaccedilotildees cotidianas do sonhar O homem e a mulher comuns

que natildeo estatildeo engajados nesse tipo particular de investigaccedilatildeo subjetiva em que con-

siste a praacutetica psicoterapecircutica ou analiacutetica olham para seus sonhos com um misto de

admiraccedilatildeo e desdeacutem Agraves vezes preocupam-se quando as imagens oniacutericas sugerem

algo de premonitoacuterio uma espeacutecie de alerta sobre eventos futuros Mas excetuando-se

tais situaccedilotildees os sonhos se vatildeo da mesma maneira como surgiram quase sem serem

percebidos

Pensemos por um momento nas ocasiotildees em que narramos nossos sonhos Contar

sonhos natildeo eacute uma comunicaccedilatildeo ordinaacuteria em nossa sociedade Enfrentamos entatildeo a

dificuldade de escolhermos uma audiecircncia e contexto adequados para fazecirc-lo Talvez o

faccedilamos entre amigos sempre que o sonho em questatildeo apresente algo de curioso e natildeo

537Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

pareccedila comprometer nossa autoimagem Afinal agraves vezes nossos sonhos nos colocam

em situaccedilotildees embaraccedilosas Um enquadre mais formal eacute representado pela hora de

50 minutos da sessatildeo analiacutetica ou psicoterapecircutica Nesta situaccedilatildeo constatamos rapi-

damente que o compartilhamento do sonho natildeo eacute uma tarefa tatildeo simples assim O

sonho ldquomanifestordquo deveraacute passar pelo processo de associaccedilatildeo livre a fim de que sejam

expostos os pensamentos latentes que foram transformados pelos processos primaacuterios

de trabalho do sonho - condensaccedilatildeo deslocamento simbolismo e revisatildeo secundaacuteria ndash

conforme nos lembra Freud (19001999)

Compartilhar sonhos em uma sessatildeo psicanaliacutetica ou numa reuniatildeo social seja em

nossa sociedade industrial contemporacircnea seja no conselho de uma comunidade tribal

pode assumir significados completamente diferentes O contexto no qual um sonho eacute

compartilhado pode ele mesmo agregar algo a seu significado o qual pode ser conscien-

te e intencional (pensemos num homem que conta a uma mulher que ele sonhou com

ela conferindo a essa narrativa certo caraacuteter de seduccedilatildeohellip) ou pode ser inconsciente

(como eacute o caso da mensagem transferencial de um sonho ao ser contado na sessatildeo ana-

liacutetica) Em algumas culturas os sonhos fornecem importantes argumentos poliacuteticos por

exemplo entre os Sambia da Nova Guineacute o modo como um sonho eacute contado em um

contexto puacuteblico pode ser muito diferente daquele como eacute contado em privado e pode

ter um significado diferente apontando para questotildees sociais ou poliacuteticas (Herdt 1987)

As culturas tambeacutem diferem no grau de responsabilidade atribuiacutedo aos sonhadores por

suas atividades durante o sonho Um sonho eroacutetico entre os Arapesh pode ser conside-

rado um ato aduacuteltero os Sambia somente consideram o sonhador imputaacutevel se o sonho

for contado publicamente Sonhos em algumas culturas contribuem para a identidade

da pessoa por exemplo nas culturas dos Iacutendios das Planiacutecies ndash povos indiacutegenas das

planiacutecies norte-americanas ndash algueacutem pode ser visitado em sonho ou numa visatildeo por

um espiacuterito guardiatildeo e receber informaccedilotildees sobre um caminho de vida a ser trilhado

(Kracke sd)

Haacute um contexto no qual o compartilhamento do ldquosonhordquo ndash natildeo propriamente o sonho

que sonhamos dormindo ndash se torna amplamente desejaacutevel Trata-se do sonho em sua

forma mais estilizada e digeriacutevel para os haacutebitos de nossa sociedade industrial o sonho

como ldquovisatildeo de futurordquo Grandes liacutederes empresariais notabilizam-se pela sua capaci-

dade de ldquoanteverrdquo o futuro construindo imagens inspiradoras para seus subordinados

538

e suas organizaccedilotildees Satildeo os ldquovidentesrdquo da era tecnoloacutegica os executivos de ldquovisatildeo estra-

teacutegicardquo os construtores de impeacuterios empresariais Aqueles que ousaram enxergar aleacutem

e deram certo Nas sociedades industrializadas contemporacircneas enquanto o sonho

noturno reduz-se a ser ldquoapenas um sonhordquo uma ldquovisatildeordquo traz a promessa de realizaccedilatildeo

de um futuro almejado

A poesia a educaccedilatildeo e a poliacutetica tambeacutem se apropriam do linguajar dos sonhos ldquoUm

sonho que se sonha soacute eacute apenas um sonho mas um sonho que se sonha junto eacute reali-

daderdquo canta Raul Seixas ldquoI have a dreamrdquo diz Martin Luther King em seu ceacutelebre dis-

curso para expressar suas esperanccedilas de transformaccedilatildeo poliacutetica na Ameacuterica dos anos

1960 Aqui temos o sonho na sua positividade nos seus anseios libertaacuterios embora natildeo

se trate do sonho noturno Este em nossa sociedade permanece aguilhoado no reduto

da subjetividade individual Mas nem sempre foi assim

Nas civilizaccedilotildees ancestrais e em muitas culturas tribais os sonhos assim como os mi-

tos eram costumeiramente narrados e discutidos em encontros coletivos organizados

para esse fim Nessas sociedades o compartilhamento de numerosos elementos sim-

boacutelicos e linguiacutesticos tornava os membros do grupo aptos a ldquolerrdquo os significados dos

sonhos ou de uma narrativa miacutetica tradicional Frequentemente entravam em cena

ldquoespecialistasrdquo ndash mas que eram sobretudo especialistas em rituais ndash que agiam no

sentido de ldquoacentuar clarificar completar e elaborar a narrativa dos sonhos por meio da

ressonacircncia poeacutetica em vez de lsquodesencantarrsquo essa narrativa por meio de interpretaccedilotildees

e profeciasrdquo (Neri 2003 p 26)57

Nas sociedades urbanas do Mediterracircneo claacutessico ndash Mesopotacircmia Egito Israel Greacutecia

ndash o trabalho com os sonhos orientou-se progressivamente para outros objetivos Os so-

nhos tornaram-se mensagens imageacuteticas A linguagem oniacuterica que antes era percebida

como transparente e capaz de influenciar a vida comunitaacuteria tornou-se mais obscura

O sonho passa a ser portador de uma comunicaccedilatildeo rica em significados e para ser com-

preendido necessita de interpretaccedilatildeo ldquoOs sonhos natildeo satildeo mais um instrumento de har-

monizaccedilatildeo inconsciente no interior de um grupo mas sobretudo lanccedilam luz sobre o

57 No original ldquo emphasizing clarifying integrating and elaborating on the dreams by means of poetic resonance rather than lsquodis-enchantingrsquo the story by offering interpretations and propheciesrdquo (Neri 2003 p 26)

539Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

destino de um sonhador determinadordquo (Neri 2003 p 27)58 O sonho estaacute a caminho de

se tornar uma operaccedilatildeo psiacutequica proacutepria do sonhador como nos diraacute Freud (19011977)

Assim os sonhos que se referiam agrave vida social e que se revestiam de importacircncia para a

sobrevivecircncia do grupo nas sociedades caccediladoras e nocircmades passaram a ter um caraacuteter

individual vinculando-se a significados biograacuteficos do sonhador A modernidade por

meio de um de seus arautos culturais ndash a psicanaacutelise ndash finalizaraacute o projeto de individu-

alizaccedilatildeo do sonho Os sonhos a partir de entatildeo natildeo se deixaratildeo conhecer em primeira

matildeo pois seratildeo vistos como produtos de um ardiloso processo de disfarce ndash o chamado

ldquotrabalho do sonhordquo ndash requerendo a intervenccedilatildeo de um especialista-inteacuterprete Quando

longe dos consultoacuterios analiacuteticos os sonhos prescindiratildeo de uma atenccedilatildeo mais cuida-

dosa

Como vimos mais acima o projeto hegemocircnico de interpretaccedilatildeo cientiacutefica dos sonhos

sofreu questionamento a partir de um campo do saber ndash a Antropologia Cultural ndash que

a despeito do entusiasmo inicial com a possibilidade de aplicaccedilatildeo universal dos acha-

dos psicanaliacuteticos problematizou as teorias psicoloacutegicas sobre o sonhar Bastide (2001)

criticou o caraacuteter etnocecircntrico das chamadas abordagens cientiacuteficas dos sonhos caraacuteter

este decorrente da tendecircncia a julgar ou interpretar outras culturas com base nos criteacute-

rios da proacutepria cultura do pesquisador Tais abordagens seriam portanto parciais Com

a criacutetica surgiu tambeacutem a necessidade de uma investigaccedilatildeo a partir da antropologia

cultural que por meio do meacutetodo comparativo tem procurado abarcar as diversas expli-

caccedilotildees que os homens atribuem ao seu mundo oniacuterico Um novo olhar sobre os sonhos

foi entatildeo lanccedilado pela Antropologia Cultural uma espeacutecie de ldquoolhar estrangeirordquo que

tem ajudado a descentrar a perspectiva psicoloacutegica e tecnocientiacutefica sobre o sonhar

OVeacuterticeAntropoloacutegicoBreveincursatildeonaAntropologiadoSonhar Em tempo que podemos chamar de preacute-cientiacuteficos os homens natildeo se embaraccedilavam para explicar o sonho Quando se lembravam dele ao acordar tomavam-no por uma informaccedilatildeo benevolente ou hostil de poderes

58 No original ldquoDreams are no longer a tool for unconscious harmonization within the group rather they shed some light on the fate of the dreamerrdquo (Neri 2003 p 27)

540

superiores deuses e democircnios Com a eclosatildeo do modo de pensar cientiacutefico toda essa mitologia rica em muacuteltiplos sentidos transpocircs-se para a psicologia e atualmente entre as pessoas cultas resta apenas uma iacutenfima minoria que duvida que o sonho seja uma operaccedilatildeo psiacutequica proacutepria do sonhadorrdquo

(Freud em Sobre os sonhos 1901 ESB V 671-751)

O tiacutetulo da seccedilatildeo anterior alude ao interesse por um ldquoolhar de forardquo Algo como um

deslocamento de perspectiva ndash um outro veacutertice ndash que gere certo estranhamento em

relaccedilatildeo agraves ldquoverdadesrdquo de nossa cultura psicoloacutegica Usamos ldquoveacuterticerdquo na acepccedilatildeo utili-

zada por Bion com o sentido de ldquovariaccedilotildees da configuraccedilatildeo perceptiva de um mesmo

fenocircmeno ou de uma mesma pessoa a partir do veacutertice de observaccedilatildeo que o indiviacuteduo

adotardquo (Zimerman 2004 p 246) O ldquoveacuterticerdquo eacute um ponto a partir do qual concebemos

o fenocircmeno E como nos diz Maroni (2008) ldquoAo usar os diferentes veacutertices frustramo-

-nos pois que tentamos apreender atraveacutes deles o objeto total sendo isso impossiacutevel

uma vez que por meio dos veacutertices natildeo fazemos senatildeo parcializaacute-lordquo (p 87)

Agrave luz dessa advertecircncia o veacutertice antropoloacutegico natildeo visa substituir a validade do veacuterti-

ce psicoloacutegico muito menos esgotar a amplitude dos estudos antropoloacutegicos sobre os

sonhos mas sobretudo apresentar um acircngulo de apreensatildeo (e aqui tambeacutem a noccedilatildeo

de ldquoveacuterticerdquo enquanto abertura faz sentido) acircngulo que delimita um acircmbito de fenocirc-

menos culturais que nos ajudam a relativizar a perspectiva psicoloacutegica dos sonhos tatildeo

usual entre noacutes psicoacutelogos

O trabalho de Freud no iniacutecio do seacuteculo XX estimulou a primeira fase da investigaccedilatildeo

antropoloacutegica dos sonhos (Edgar 1994) Alguns antropoacutelogos procuravam testar a hipoacute-

tese freudiana de que os significados latentes dos sonhos satildeo universais nas culturas Os

trabalhadores das colocircnias eram convidados a relatar materiais oniacutericos oriundos dos

nativos e que eram analisados com o intuito de descobrir os assim chamados ldquosonhos-

-tiposrdquo (Seligman citado por Edgar 1994) A anaacutelise fundamentada nos pressupostos

psicanaliacuteticos era conduzida sem levar em consideraccedilatildeo o contexto cultural e comuni-

cativo Stewart Lincoln antropoacutelogo estadunidense autor da obra claacutessica The Dream in

Primitive Culture (1935) tentou aplicar os conceitos psicanaliacuteticos em seu estudo sobre

os iacutendios norte-americanos desenvolveu uma distinccedilatildeo entre os sonhos ldquoindividuaisrdquo

desprovidos de importacircncia e os ldquosonhos com padratildeo culturalrdquo (culture pattern dreams)

541Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

os quais eram significativos para o grupo e por isso altamente valorizados (Shamdasani

2005) Lincoln natildeo concordava com a utilizaccedilatildeo que Jung fazia do conceito de incons-

ciente coletivo para explicar a distinccedilatildeo entre sonhos individuais e os ldquograndes sonhosrdquo

Segundo Shamdasani (2005) ldquoo fato de que essas visotildees desapareciam quando uma

cultura se desintegrava demonstrava que sua existecircncia dependia de tradiccedilotildees cultu-

rais e natildeo de uma memoacuteria racialrdquo (p 178) Embora seja dado a Lincoln o creacutedito pelo

desenvolvimento de uma tipologia do sonhar baseada na pesquisa etnograacutefica os seus

resultados tecircm sido agora considerados etnocecircntricos (Tedlock 1987a)

Nos anos 1940 e 1950 a teoria de anaacutelise de conteuacutedo dos sonhos tornou-se muito di-

fundida O grande volume de simbolismo oniacuterico descrito pelos antropoacutelogos permitiu

uma abundante compilaccedilatildeo de relatos de sonhos manifestos e sua anaacutelise transcultural

com variaacuteveis culturais e de personalidade Embora essa abordagem valorizasse o so-

nho positivamente como significativo do ponto de vista psicodinacircmico e cultural ela

eacute como nos aponta Edgar (1994) uma abordagem que descontextualiza os sonhos A

importacircncia da narrativa o discurso do sonho e a teoria autoacutectone do sonho ou seja

aquela concebida pela cultura em questatildeo foi quase que inteiramente ignorada Segun-

do o autor o etnocentrismo da escola de anaacutelise de conteuacutedo eacute baseado em uma episte-

mologia que reduz a linguagem agrave sua funccedilatildeo meramente referencial

O desenvolvimento da etnopsiquiatria nos anos 1950 pelo antropoacutelogo e psicanalista

huacutengaro Georges Devereux (1908-1985) eacute outro marco antropoloacutegico na anaacutelise do so-

nhar Devereux em seu trabalho com os iacutendios norte-americanos procurou integrar a

abordagem freudiana no campo antropoloacutegico Ele aplicou os conceitos freudianos de

transferecircncia e teste de realidade para relatos de sonhos fazendo uma anaacutelise criacutetica do

conceito de sonho patogecircnico Em um estudo de um iacutendio Crow Devereux foi capaz de

utilizar as crenccedilas culturais do paciente de que o acontecimento no mundo do sonho

antecipava o comportamento bem sucedido do ldquopacienterdquo na realidade viacutegil ele mos-

trou como o iacutendio Crow o aceitou como terapeuta na identidade de um Espiacuterito Crow

Embora tenha facilitado a orientaccedilatildeo do paciente agrave realidade atraveacutes do uso terapecircutico

do sonhar culturalmente sancionado Devereux enfatizou que a manipulaccedilatildeo dos siacutem-

bolos eacutetnicos (siacutembolos pessoais) pode oferecer ajustamento mas natildeo autoconsciecircncia

introspectiva ou insight curativo com base no pressuposto de que ldquoverdadeiro insightrdquo

pode ocorrer somente na sessatildeo analiacutetica nos moldes preconizados pela psicanaacutelise

Natildeo obstante Obeyesekere (1990) argumentou que cada cultura possui sua proacutepria

542

reflexividade o insight que emerge na psicanaacutelise eacute apenas uma das formas possiacuteveis

abrindo espaccedilo para outros modos culturais de produccedilatildeo de subjetividade

Com a perda de espaccedilo da Escola de Cultura e Personalidade que florescera na Ameacuterica

durante os anos 1950 e a despeito do fato de que os sonhos continuassem a ser objeto

de estudo dos psicoacutelogos o sonhar foi marginalizado no acircmbito da antropologia (Tedlo-

ck 1987a) Somente nos anos 1970 criou-se um clima intelectual mais aberto possibi-

litando que os sonhos pudessem ser considerados como tema no acircmbito dos estudos

antropoloacutegicos A partir de entatildeo os sonhos passaram a ser estudados no contexto dos

sistemas culturais dos quais eles faziam parte (Edgar 1994 Tedlock 1987a 1991)

De laacute para caacute os antropoacutelogos continuam a desenvolver o conceito de relato de sonhos

como um ato comunicativo Tedlock (1987a) sugere que o conceito de ldquoconteuacutedo mani-

festordquo do sonho deveria ser ampliado para incluir mais do que o mero relato Deveria

incluir a teoria do sonho ou as teorias e modos de compartilhamento os enquadres

discursivos relevantes e o coacutedigo cultural para a interpretaccedilatildeo dos sonhos A autora des-

creve essa perspectiva como uma ldquoteoria comunicativa do sonharrdquo Esta teoria considera

a narrativa do sonho como um evento comunicativo que envolve trecircs aspectos superpos-

tos o ato e criaccedilatildeo da narrativa a psicodinacircmica da narrativa e o enquadre interpretativo

ldquoemicrdquo Lembremos que ldquoemicrdquo refere-se ao paradigma metodoloacutegico que trata de re-

produzir os conteuacutedos culturais tal como parecem agraves pessoas ou agrave cultura de referecircncia

em contraste com ldquoeticrdquo que trata de reproduzir ou fixar coordenadas desses conteuacutedos

culturais a partir de fatores que natildeo satildeo percebidos como internos pelos membros dessa

cultura (Diccionario Filosoacutefico httpwwwfilosofiaorgfilomatdf237htm) A anaacutelise do

sonho eacute considerada assim como mais do que um texto hermenecircutico Ela eacute tambeacutem

um processo social e cultural ou uma atividade com resultados expressivos e instru-

mentais Quando isso acontece podemos compreender a proposiccedilatildeo de Herdt (1987) de

que a cultura pode alterar a experiecircncia dos sonhos ou que a produccedilatildeo do sonho pode

ser absorvida e transformada em cultura

A teoria comunicativa do sonhar alerta-nos para a importacircncia da psicodinacircmica do

contexto social e do quadro de referecircncia interpretativo dos participantes Este quadro

estrutura necessariamente tanto a narrativa quanto a interpretaccedilatildeo do sonho Nessa

perspectiva os antropoacutelogos natildeo fazem mais relatoacuterios sobre sonhos como se eles fos-

sem objetos etnograacuteficos que deveriam ser arranjados manipulados e quantificados

543Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

como itens pertencentes agrave cultura material Mais do que fazer comparaccedilotildees tipoloacutegi-

cas ou estatiacutesticas entre os sonhos das assim chamadas sociedades ldquoocidentaisrdquo e ldquonatildeo

ocidentaisrdquo os antropoacutelogos culturais tecircm dirigido sua atenccedilatildeo para estudar as teorias

dos sonhos e os sistemas de interpretaccedilatildeo como complexos eventos psicodinacircmicos

comunicativos Estudando o compartilhamento dos sonhos e a transmissatildeo das teorias

sobre sonhos no contexto total das sociedades onde eles ocorrem os antropoacutelogos tecircm

constatado que ambos o pesquisador e o sujeito de pesquisa criam uma realidade so-

cial que os conecta de maneiras importantes (Tedlock 1991)

OEncontrodosVeacutertices

Mas ainda que noacutes antropoacutelogos tenhamos subscrito o meacutetodo da observaccedilatildeo partici-

pante choca-nos quando descobrimos o quatildeo importante eacute nossa participaccedilatildeo na cria-

ccedilatildeo daquilo que estamos estudando (Tedlock 1987a p 23)59

Em extensatildeo ao conceito bioniano de ldquoveacuterticerdquo evocamos a ideia de Bion sobre ldquovisatildeo

binocularrdquo uacutetil para a compreensatildeo da articulaccedilatildeo dos veacutertices antropoloacutegico e psicoloacute-

gico sobre o sonhar Bion nos explica que na experiecircncia psicanaliacutetica paciente e analista

assumem cada qual o veacutertice que lhe eacute proacuteprio Estes veacutertices precisam manter certa

distacircncia uacutetil e adequada ou seja que natildeo sejam nem tatildeo distantes a ponto de impe-

direm a correlaccedilatildeo entre os respectivos veacutertices nem tatildeo proacuteximos que impeccedilam uma

diferenciaccedilatildeo e causem uma consequente estagnaccedilatildeo na investigaccedilatildeo do objeto psicana-

liacutetico Eacute somente a partir de uma distacircncia adequada que seraacute possiacutevel que ambos faccedilam

correlaccedilotildees e confrontaccedilotildees entre os reciacuteprocos veacutertices assim atingindo o que Bion

chama de lsquovisatildeo binocularrsquo (Zimerman 2004 p 246)

A possibilidade de estabelecer correlaccedilotildees binoculares entre veacutertices distintos de per-

cepccedilatildeo natildeo se restringe a duas pessoas tal como eacute o caso da relaccedilatildeo analiacutetica mas

59 No original ldquoBut even though we antropologists have long subscribed to the method of participant observation it still comes as a shock to us when we discover how important our participation is in helping to create what we are studyingrdquo (Tedlock 1987a p 23)

544

aplica-se igualmente a uma mesma pessoa ldquona qual conforme a distacircncia dos veacutertices

intrapessoais tanto pode gerar nela um estado confusional como uma eficaz visatildeo bino-

cularrdquo (Zimerman 2004 p 247) Aplica-se tambeacutem e de modo bastante oportuno agraves

diferentes perspectivas sobre o sonhar como se pretende neste estudo

Bastide (2001) ao apontar a necessidade de se desenvolver uma sociologia dos sonhos

critica seu proacuteprio campo de estudo dizendo que ldquoa sociologia somente se interessa

pelo homem desperto como se o homem adormecido fosse um cadaacuteverrdquo60 Para ele haacute

motivos para se crer que uma forte influecircncia das condiccedilotildees sociais atua sobre o incons-

ciente e sobre a vida afetiva Em um estudo intitulado ldquoMateriais para uma Sociologia

do Sonhordquo publicado originalmente em 1932 lembrava que para Freud a influecircncia da

sociedade sobre os sonhos assumiria um duplo caraacuteter Por um lado a sociedade teria

uma influecircncia negativa impondo uma seleccedilatildeo das imagens que surgem do incons-

ciente de modo que somente passariam aquelas aceitas pela moral coletiva ou seja

tratar-se-ia-se da censura social Em outro sentido a sociedade atuaria de modo positivo

como fabricante de siacutembolos A libido conseguiria burlar a censura travestindo-se de

siacutembolos Esses siacutembolos seriam tributaacuterios da coletividade de velhas praacuteticas maacutegicas

de antigas mitologias e cultos Aleacutem disso na versatildeo junguiana haveria um inconscien-

te coletivo e o sonho seria uma exploraccedilatildeo dessas profundezas que se acumulam em

nossa psique atraveacutes dos milecircnios

Confirmadas essas concepccedilotildees poder-se-ia criar uma verdadeira ldquosociologia dos so-

nhosrdquo jaacute que os sonhos suporiam a expressatildeo ativa de materiais coletivos constituiacutedos

por siacutembolos de antigas culturas Haveria contudo uma dificuldade como conceber

a persistecircncia de formas de pensamentos desaparecidas e o modo como as herdariacute-

amos questatildeo discutida sobretudo nos estudos de C G Jung (Bastide 2001 Jung

19362000)

Embora adotando a distinccedilatildeo freudiana entre ldquoconteuacutedo manifestordquo e ldquoconteuacutedo laten-

terdquo Bastide acreditava que a influecircncia social seria encontrada sobretudo nas tendecircncias

inconscientes que regulam a estrutura iacutentima das imagens oniacutericas Estabelecer-se-ia

entatildeo uma tipologia decorrente de sua funccedilatildeo social que seria diferente daquela uti-

60 Traduccedilatildeo livre do autor No original ldquola sociologiacutea solo se interessa en el hombre despierto como se el hombre dormido fuese un cadaacuteverrdquo (Bastide 2001)

545Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

lizada pela Psicanaacutelise Para ele trecircs circunstacircncias deveriam ser consideradas para a

sociologia do sonho Em primeiro lugar o papel do sonho seria funccedilatildeo da vida social

Para esse argumento Bastide citando Leacutevy-Bruhl utiliza as observaccedilotildees de que entre

povos tradicionais natildeo existe uma separaccedilatildeo estanque entre o estado de sonho e o es-

tado de lucidez Ao contraacuterio as fantasias noturnas se inserem na trama da existecircncia

diurna e se entrecruzam com as percepccedilotildees do mundo exterior Nessa perspectiva o

sonho permitiria ao membro dessa sociedade uma melhor adaptaccedilatildeo Em nossos dias

existe uma ruptura entre o estado de sonho e o estado de vigiacutelia Nosso estado de vigiacutelia

eacute povoado de pequenos e muacuteltiplos problemas em nuacutemero tanto maior quanto perten-

cemos a inuacutemeros grupos sociais restando ao sonho o papel de reduto de afastamento

desses estiacutemulos O sonho se constitui entatildeo em um instrumento de evasatildeo sua fun-

ccedilatildeo transforma-se de acordo com a transformaccedilatildeo geral da cultura (Bastide 2001)

Em segundo lugar o tipo do sonho eacute funccedilatildeo da densidade social A pressatildeo social eacute

tanto mais forte quanto mais reduzido o meio social Consequentemente eacute mais forte

em uma aldeia do que em uma grande cidade Assim nos pequenos agrupamentos as

tendecircncias individuais seriam reprimidas com maior severidade pela opiniatildeo puacuteblica

As asserccedilotildees de Freud seriam mais acertadas quando aplicadas a pessoas pertencentes

a meios de baixa densidade social O tipo de sonhos que poderiacuteamos denominar ldquotipo

freudianordquo eacute um produto de ordem socioloacutegica (Bastide 2001)

Em terceiro lugar o conteuacutedo do sonho parece depender em certa medida do grau

de integraccedilatildeo alcanccedilado pelo indiviacuteduo na sociedade As imagens do sonho ainda que

providas pela memoacuteria individual satildeo preferentemente escolhidas entre aquelas que

interessam ao meio social que mais nos importa Tambeacutem eacute possiacutevel que isto deixe de

ser certo em tempo de crise os sonhos dos desempregados por exemplo poderiam

trazer conteuacutedos relacionados com as circunstacircncias criacuteticas do desemprego (Bastide

2001) Aqui os estudos de Bastide conferem com as anaacutelises de Beradt (19662002) a

respeito dos sonhos de pessoas sob o domiacutenio do III Reich na Alemanha Nazista e as

formulaccedilotildees de Lawrence e colaboradores (Lawrence 1998 2003 2005 2007) a res-

peito do sonhar social (social dreaming matrix) Conferem igualmente com achados

de pesquisa baseada no constructo do sonhar social por noacutes empreendida no contexto

brasileiro (Gui 2010)

546

Para o socioacutelogo francecircs os estados crepusculares oniacutericos prolongam o social da mes-

ma forma como o social se nutre dos nossos sonhos Eacute o que possibilita e exige uma

sociologia do sonho que estuda o assunto sob duas perspectivas a funccedilatildeo do sonho na

sociedade e os marcos sociais do pensamento oniacuterico

A necessidade de uma sociologia dos sonhos defendida por Bastide conduz a uma

exigecircncia de articulaccedilatildeo entre os campos da antropologia e da psicologia De fato psi-

coacutelogos e antropoacutelogos tecircm se dado conta do caraacuteter complementar de seus estudos no

que se refere aos sonhos Os psicoacutelogos jaacute natildeo podem ignorar que seus estudos sobre a

experiecircncia do sonhar dependem parcialmente da comunicaccedilatildeo de tais experiecircncias por

meios determinados culturalmente os antropoacutelogos por sua vez jaacute natildeo podem ignorar

o fato de que a comunicaccedilatildeo dos sonhos em determinada cultura depende parcialmente

das teorias nativas sobre a experiecircncia oniacuterica (Tedlock 1987a)

Um seminaacuterio ndash Dreams in Cross-Cultural Perspective ndash organizado por Baacuterbara Tedlock

e realizado em 15 de novembro de 1982 na School of American Research (SAR) Santa Feacute

Novo Meacutexico inaugurou novo momento nas relaccedilotildees entre a psicologia e a antropolo-

gia dos sonhos Somente outra conferecircncia realizada em 1964 tivera uma consistente

participaccedilatildeo de antropoacutelogos na discussatildeo sobre o sonhar por meio de George Deve-

reux Dorothy Eggan e A I Hallowell todos da Escola de Cultura e Personalidade (Te-

dlock 1987a) A pesquisadora decidiu que sua conferecircncia deveria ampliar o leque das

abordagens teoacutericas que tinham sido apresentadas naquela conferecircncia dos anos 1960

incluindo pontos de vista sociais psicoloacutegicos e culturais oriundos da semioacutetica herme-

necircutica sociolinguiacutestica estruturalismo anaacutelise cognitiva performativa e simboacutelica

Os participantes do seminaacuterio eram pesquisadores com forte repertoacuterio psicanaliacutetico

mas que tinham tambeacutem conduzido trabalhos etnograacuteficos de campo Aleacutem disso Te-

dlock procurou incluir antropoacutelogos linguistas que estavam interessados em discutir

questotildees psicodinacircmicas Dos trabalhos expostos nesse seminaacuterio Tedlock (1987a) or-

ganizou um livro - Dreaming Anthropological and psychological interpretations ndash que se

tornou referecircncia sobre a articulaccedilatildeo dos dois veacutertices de estudo sobre os sonhos

Nessa obra a autora enfatiza que natildeo eacute suficiente conhecer a respeito do que as pessoas

sonham eacute necessaacuterio saber como e que partes de suas experiecircncias oniacutericas elas co-

municam aos outros bem como o sentido desse processo de compartilhamento Como

vimos em nossa cultura ndash chamada ldquoindustrialrdquo ou ldquoocidentalrdquo ndash os espaccedilos de com-

547Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

partilhamento de sonhos ficaram quase que exclusivamente sob custoacutedia da instituiccedilatildeo

da psicoterapia Pouco ou quase nada se constata do ponto de vista de processos de

compartilhamento e significaccedilatildeo social dos sonhos

A autora nos informa ainda que os antropoacutelogos abandonaram as tradicionais cate-

gorizaccedilotildees dos sonhos de pessoas ldquopreacute-literaacuteriasrdquo ldquotribaisrdquo ldquotradicionaisrdquo ou ldquocampo-

nesasrdquo em contraste com os sonhos de pessoas ldquoliteratasrdquo ldquourbanasrdquo ldquomodernasrdquo ou

ldquoindustriaisrdquo Hoje compreende-se que essa maneira tipoloacutegica de classificar sonhos

desqualifica a experiecircncia de pessoas de outras culturas que vivem na mesma contem-

poraneidade dos pesquisadores O uso do tempo tipoloacutegico que ficcionalmente coloca

algumas pessoas em um quadro temporal anterior ao nosso funciona como um ins-

trumento de distanciamento tal como se faz por exemplo quando se diz que existem

sociedades que praticam uma economia da idade meacutedia Os antropoacutelogos culturais hoje

estatildeo interessados no tempo intersubjetivo no qual todos os participantes envolvidos

satildeo coetacircneos ou seja compartilham o mesmo tempo O foco corrente nos proces-

sos comunicativos na antropologia cultural demanda que a coetaneidade seja criada e

mantida natildeo somente no campo mas tambeacutem no processo de escrita do relatoacuterio de

pesquisa Assim por exemplo o antropoacutelogo Robert Dentan (citado por Tedlock 1991)

ao discutir o ldquoprinciacutepio dos contraacuteriosrdquo segundo o qual os sonhos indicam o oposto do

que eles aparentam notou que os praticantes deste tipo de interpretaccedilatildeo dos sonhos in-

cluiacuteam pessoas tatildeo distantes quanto aquelas pertencentes agraves comunidades dos Ashanti

Malays Maori Buffalo (do Estado de New York) dos polacos-americanos de moccedilas de

escolas paroquiais de psicanalistas dos Semai e Zulu O autor conclui entatildeo que pelo

menos alguns americanos compartilham um mesmo princiacutepio de interpretaccedilatildeo dos

sonhos com pessoas que vivem em locais distantes e exoacuteticos

Em muitos sistemas interpretativos de sonhos acredita-se que a experiecircncia do sonhar

tenha uma conexatildeo iacutentima ateacute mesmo causal com a vida futura do sonhador Contudo

eacute importante lembrar que tais interpretaccedilotildees satildeo frequentemente provisoacuterias que nem

todas as pessoas em uma dada sociedade colocam seu destino em tais interpretaccedilotildees

e que em algumas sociedades somente certos indiviacuteduos satildeo credenciados para a ex-

periecircncia profeacutetica ou sonhos preacute-cognitivos Deve-se observar que sistemas de inter-

pretaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos natildeo satildeo uma caracteriacutestica de sociedades ldquotribaisrdquo ldquonatildeo

ocidentaisrdquo ou ldquonatildeo industriaisrdquo Antropoacutelogos culturais que tecircm estudado a sociedade

americana encontraram em sonhadores da classe meacutedia a crenccedila de que tiveram so-

548

nhos profeacuteticos ou preacute-cognitivos obtendo informaccedilatildeo sobre eventos futuros o que

demonstra que essa forma de interpretar sonhos natildeo eacute rara nas sociedades ocidentais

(Tedlock 1991)

A mudanccedila na estrateacutegia de pesquisa no sentido de dirigir a atenccedilatildeo agrave problemaacutetica da

representaccedilatildeo comunicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dos sonhos assim chamados ldquonatildeo ociden-

taisrdquo ocorreu na antropologia por diversas razotildees Em primeiro lugar os antropoacutelogos

culturais tecircm criticado as pesquisas realizadas por meio de questionaacuterios nas quais os

dados satildeo obtidos com o propoacutesito de testar teorias ocidentais concernentes a universais

na psicologia humana Perde-se de vista por exemplo o fato de que amostras de ques-

tionaacuterios agregam respondentes que satildeo profundamente desconfiados do pesquisador

com aqueles que natildeo o satildeo como se a suspeita natildeo fizesse diferenccedila alguma na validade

de suas respostas (Tedlock 1991) Aleacutem disso o propoacutesito de comparar conteuacutedos extra-

iacutedos de um relato oniacuterico deixa de considerar importantes fenocircmenos tais como ritmo

tons de voz gestos e respostas da audiecircncia que acompanham as narrativas oniacutericas

Rotular certas experiecircncias oniacutericas de ldquoprofeacuteticasrdquo ou ldquopreacute-cognitivasrdquo por exemplo

natildeo explica como essas e outras experiecircncias oniacutericas satildeo usadas individualmente e

culturalmente numa sociedade

Dentan (citado por Tedlock 1991) indica ainda uma outra razatildeo para o abandono das

anaacutelises de conteuacutedo pelos antropoacutelogos o treinamento formal em linguiacutestica os enco-

raja a rejeitar o suposto baacutesico da pesquisa estatiacutestica ou seja que o significado reside

mais nas palavras do que nos contextos A criacutetica repousa no axioma baacutesico da semacircnti-

ca conhecido como a ldquopremissa da natildeo-identidaderdquo que declara que a palavra natildeo eacute um

objeto Narrativas de sonhos natildeo satildeo sonhos assim narrar ou dramatizar sonhos natildeo

significam recuperar experiecircncias oniacutericas Aleacutem disso siacutembolos oniacutericos tomados iso-

ladamente podem ser desorientadores se o pesquisador natildeo despender certo tempo de

observaccedilatildeo e interaccedilatildeo dentro da cultura a fim de obter suficientes detalhes contextuais

tomar peacute do conhecimento local e produzir uma descriccedilatildeo precisa daquela cultura for-

mulando significados que sejam dependentes do contexto Experiecircncias com o sonhar

social (social dreaming) consideram para o processo de significaccedilatildeo dos sonhos e de

suas associaccedilotildees o contexto e circunstacircncias nas quais os participantes estatildeo inseridos

(conforme Gui 2010 Lawrence 1998 2003 2005 2007 Neri 2003)

549Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

Em face do exposto antropoacutelogos natildeo tratam relatos de sonhos apenas como objetos

etnograacuteficos a serem usados como dados brutos para hipoacuteteses comparativas Eles vatildeo

a campo por longos periacuteodos de tempo e com amplos interesses de pesquisa por exem-

plo interessam-lhes a religiatildeo e a visatildeo de mundo de uma dada sociedade a performance

de cura ou a construccedilatildeo do eu e da personalidade Vivendo na comunidade os antro-

poacutelogos aprendem natildeo apenas a linguagem mas tambeacutem como interagir apropriada-

mente e talvez mais importante do que tudo acabam por participar de vaacuterios dramas

sociais formais e informais Eventualmente encontram-se compartilhando o cotidiano

de uma famiacutelia ou se deparam com um xamatilde ou algum outro inteacuterprete de sonhos

Caso um evento ou drama social desperte a atenccedilatildeo do antropoacutelogo ele seraacute registrado

em cadernos de campo poderaacute eventualmente ser registrado em aacuteudio ou em viacutedeo

Uma vez transcritos tais registros o pesquisador poderaacute questionar o narrador de so-

nhos que pode ou natildeo ser o proacuteprio sonhador sobre o significado a significacircncia e o

uso do sonho contado (Tedlock 1991)

Pode-se observar entatildeo que essa mudanccedila na estrateacutegia de pesquisa ou seja deixar de

considerar os sonhos como objetos fixos e passar a estudar naturalmente as situaccedilotildees

que os envolvem - compartilhamento representaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo de sonhos - eacute parte

de um amplo movimento dentro da antropologia no qual tem havido um raacutepido cresci-

mento de interesse em anaacutelises centradas na praacutetica interaccedilatildeo diaacutelogo experiecircncia e

performance em parceria com os agentes individuais de todas essas atividades

Tedlock (1987a 1087b 1991) conclui que estudando o compartilhamento dos sonhos

e a transmissatildeo das teorias sobre o sonhar em seu contexto social pleno como eventos

comunicativos incluindo as interaccedilotildees dialoacutegicas naturais que ocorrem nesses eventos

pesquisador e pesquisados engajam-se na criaccedilatildeo de uma realidade social que os impli-

ca igualmente

Outro desenvolvimento da deacutecada de 1990 foi o uso de sonhos de pesquisadores e in-

formantes para propoacutesitos de pesquisas etnograacuteficas Os sonhos passaram a ser vistos

como informaccedilotildees sobre a orientaccedilatildeo subjetiva e a posiccedilatildeo cultural do antropoacutelogo as-

sim como sobre o encontro subjetivo entre antropoacutelogo e informante Os pesquisadores

de campo aleacutem de participarem dos contextos nativos aprendem natildeo somente sobre

o uso cultural local das experiecircncias oniacutericas mas tambeacutem prestam atenccedilatildeo em seus

proacuteprios sonhos Esta praacutetica mais recente os tem ajudado a tornarem-se conscientes

550

de suas respostas inconscientes agraves pessoas e agrave cultura que eles estatildeo tentando com-

preender e descrever (Tedlock 1991) Diriacuteamos em linguagem psicanaliacutetica que os

antropoacutelogos estatildeo aprendendo a fazer uso da contratransferecircncia como instrumento

de compreensatildeo do fenocircmeno estudado De fato Devereux publicou em 1967 um im-

portante livro sobre os aspectos contratransferenciais implicados na pesquisa social A

obra intitulada ldquoFrom anxiety to method in the behavioural sciencesrdquo trouxe agrave luz o reco-

nhecimento da importacircncia dos interesses de classe e da nacionalidade do pesquisador

que incidem nas dimensotildees inconscientes do trabalho de construccedilatildeo do conhecimento

(Giami 2001)

Muitos antropoacutelogos tecircm se apercebido da importacircncia de sua subjetividade na criaccedilatildeo

da realidade que estatildeo estudando Por exemplo Waud Kracke antropoacutelogo americano

durante seu trabalho de campo no Brasil durante os anos de 1967-1968 com os iacutendios

Kagwahiv manteve um diaacuterio contendo suas reaccedilotildees pessoais sonhos e associaccedilotildees

Depois analisou sua transferecircncia pessoal de seus relacionamentos familiares para cer-

tos indiviacuteduos Kagwahiv Outros antropoacutelogos natildeo somente registram seus sonhos e

associaccedilotildees mas tecircm contado tambeacutem seus sonhos para membros da sociedade na qual

eles estatildeo trabalhando com o propoacutesito de que os interpretem segundo seus referenciais

culturais (Tedlock 1991)

Quando os antropoacutelogos prestam atenccedilatildeo para seus proacuteprios sonhos durante seu traba-

lho de campo eles se deparam com experiecircncias oniacutericas que os ajudam a integrar seus

inconscientes com o senso consciente de continuidade pessoal em uma situaccedilatildeo total-

mente nova e ateacute mesmo ameaccediladora Laura Nadar antropoacuteloga americana (citada por

Tedlock 1991) reportou que durante sua pesquisa entre os iacutendios Zapotec no Meacutexico o

volume de seus sonhos e sua habilidade de lembraacute-los aumentaram significativamente

Aleacutem disso seus sonhos referiam-se quase que exclusivamente agraves suas experiecircncias

como crianccedila e jovem adulta de volta aos EEUU A pesquisadora observou ainda que

seu estado emocional geral parecia estar mais relacionado agraves experiecircncias anteriores ao

seu campo com os Zapotec Nadar interpretou seus sonhos como se eles lhe estivessem

lembrando para natildeo perder a sua individualidade completamente e natildeo ser possuiacuteda

pela alteridade Zapotec Seus sonhos lhe resseguravam que ela ainda era a mesma pes-

soa que quando crianccedila

551Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia

Outro exemplo citado ainda por Tedlock (1991) refere-se a Malinowski ldquopai da obser-

vaccedilatildeo participanterdquo metodologia chave da antropologia cultural contemporacircnea e am-

plamente utilizada em estudos psicoloacutegicos Em seus diaacuterios de campo do periacuteodo de

1914 a 1915 e 1917 a 1918 ele menciona cerca de 20 sonhos O conjunto desses sonhos

situa-se usualmente na Polocircnia e as pessoas que aparecem mais frequentemente satildeo

sua matildee e seus amigos de infacircncia incluindo uma namorada sobre a qual expressou

culpa por tecirc-la abandonado Nenhum dos sonhos referia-se agrave cultura Trobiandesa na

qual trabalhou durante esses periacuteodos Aparentemente segundo a autora Malinowski

natildeo estabeleceu com sucesso uma ldquosegunda identidaderdquo no campo

Em contraste Roger Bastide ilustra perfeitamente a implicaccedilatildeo do pesquisador com

seu campo de estudo O autor nos daacute um depoimento sobre suas vivecircncias oniacutericas

ocorridas entre Brasil e Franccedila uma circunstacircncia externa a distacircncia de sua paacutetria

ocasionada pela guerra faz com que em seus sonhos surja a ldquoFranccedila noturnardquo carac-

terizada por lembranccedilas da infacircncia da famiacutelia das amizades de conviacutevio e formaccedilatildeo

No retorno agrave paacutetria o inverso se daacute o surgimento de imagens dos deuses dos cultos

afro-brasileiros deixados para traacutes (deixados mesmo) No Brasil o socioacutelogo natildeo podia

esquecer-se de suas origens a trama de sua proacutepria constituiccedilatildeo enquanto sujeito mas

na Franccedila tambeacutem jaacute natildeo poderia esquecer-se das profundas influecircncias emocionais

oriundas do seu conviacutevio com os participantes de sua pesquisa no Brasil Influecircncias

essas que frutificariam em suas ideias e trabalhos posteriores

Conclusatildeo

Os trabalhos da antropologia social nos comunicam a necessidade de que nosso conhe-

cimento psicoloacutegico a respeito dos sonhos seja complementado por uma ldquosociologia dos

sonhosrdquo fazendo-nos lembrar de algo que frequentemente esquecemos ou que natildeo te-

mos na devida conta que os seres humanos ao serem afetados por suas circunstacircncias

histoacuterico-sociais produzem figuraccedilotildees oniacutericas ndash imagens e enredos simboacutelicos ndash que

falam natildeo somente dos dramas biograacuteficos individuais mas tambeacutem das tramas sociais

e culturais das quais esses indiviacuteduos participam A perspectiva de que os sonhos par-

tem de nossa subjetividade individual mas que apontam para aspectos das contingecircn-

cias sociais em que estamos imersos pode ser enriquecida por meio de estudos que bus-

quem capturar esse pano de fundo de nossas vivecircncias pessoais tal como fazem outras

552

sociedades natildeo aderentes ao paradigma teacutecnico-cientiacutefico de nossa cultura ocidental

ao enfatizar o caraacuteter social e cultural das produccedilotildees oniacutericas Estudos empreendidos

a partir da deacutecada de 1980 com o constructo do ldquosonhar socialrdquo apontam nessa direccedilatildeo

(por ex Gui 2010 Lawrence 1998 2003 2005 2007 Neri 2003)

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Coleccedilatildeo Psicologia Cliacutenica e Cultura UnB

Organizadoras

Terezinha de Camargo VianaGlaacuteucia Starling DinizLiana Fortunato Costa

Valeska Zanello

Psicologia Cliacutenica eCultura Contemporacircnea

Volum

e I C

oleccedilatildeo Psicologia C

liacutenica e C

ultu

ra Un

BP

sicologia Cliacuten

ica e Cultura C

ontem

poracircnea

wwwpsiccunbbr

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo emPsicologia Cliacutenica e Cultura

Instituto de Psicologia

Volume I

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  • Sobre os autores
  • Apresentaccedilatildeo
  • Vidas fazendo histoacuteria e construindo histoacuterias de vida
    • Teresa Cristina O Carreteiro
      • Grupo multifamiliar com adolescentes que cometeram abuso sexual
        • Bruno Nogueira
        • Liana Fortunato Costa
          • A proteccedilatildeo integral no sistema de garantia de direitos agrave crianccedila e ao adolescente no Brasil
            • Maria Inecircs Gandolfo
            • Raquel Cairus
              • Investigacioacuten-intervencioacuten sobre la vida en la calle desde una perspectiva socio-cliacutenica
                • Elvia Taracena
                  • Trabalho e juventude em Acari criando dispositivos de reflexatildeo e intervenccedilatildeo
                    • Teresa Cristina O C Carreteiro
                    • Alan Teixeira Lima
                    • Bianca Cauper Bohnert
                    • Claacuteudia Valente Lopes
                    • Daniela Serrina de Lima Rodrigues
                    • Leticia de Luna Freire
                    • Luciana Ribeiro Barbosa
                    • Marcos Ceacutesar da Rocha Salema
                      • De escravo a herdeiro o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento
                        • Luiz Felipe Castelo Branco da Silva
                        • Maria Faacutetima Olivier Sudbrack
                          • Do sujeito a lei da lei ao sujeito acolhimento psicossocial de usuaacuterios de drogas no contexto da Justiccedila
                            • Adriana Barbosa Soacutecrates
                            • Maria Faacutetima Olivier Sudbrack
                              • Qursquoest lrsquoamour devenu dans les socieacuteteacutes libeacuterales avanceacutees
                                • Eugene Enriquez
                                  • Linhas do desenvolvimento da psicanaacutelise contemporacircnea
                                    • Luiz Augusto Monnerat Celes
                                      • Novos tipos cliacutenicos na psicanaacutelise dos anos 2010
                                        • Christian Ingo Lenz Dunker
                                          • Corpo em psicanaacutelise e obesidade
                                            • Eliana Rigotto Lazzarini
                                            • Carolina Franccedila Batista
                                            • Terezinha de Camargo Viana
                                              • Corpo e dor na cliacutenica contemporacircnea
                                                • Maacutercia Cristina Maesso
                                                • Daniela Scheinkman Chatelard
                                                • Andrea Horteacutelio Fernandes
                                                  • Narcisismo e estados limites
                                                    • Maacutercia Teresa Portela de Carvalho
                                                    • Eliana Rigotto Lazzarini
                                                    • Terezinha de Camargo Viana
                                                      • O Aleph a condensaccedilatildeo e o umbigo do sonho
                                                        • Tainaacute Pinto
                                                        • Tania Rivera
                                                          • A interaccedilatildeo alimentar matildee-bebecirc em crianccedilas com transtornos da alimentaccedilatildeo
                                                            • Dione de Medeiros Lula Zavaroni
                                                            • Terezinha de Camargo Viana
                                                            • Massimo Ammaniti
                                                              • O lugar do psicanalista com uma crianccedila autista estar laacute para ser encontrado
                                                                • Maria Izabel Tafuri
                                                                • Gilberto Safra
                                                                  • Algumas contribuiccedilotildees da teoria dos atos de fala para a pesquisa e avaliaccedilatildeo das (psico)terapias
                                                                    • Valeska Zanello
                                                                    • Francisco Martins
                                                                      • Adolescecircncia na psicanaacutelise nascimento do conceito e perspectivas teoacutericas atuais
                                                                        • Laiacutes Macecircdo Vilas Boas
                                                                        • Deise Matos do Amparo
                                                                          • Prevenccedilatildeo em perinatalidade uma pesquisa internacional
                                                                            • Maria Izabel Tafuri
                                                                            • Dione Lula Zavaroni
                                                                            • Maria do Rosaacuterio Dias Varela
                                                                            • Maria Cicilia de Carvalho Ribas
                                                                            • Claude Schauder
                                                                            • Janaiacutena Franccedila
                                                                              • Dos proacutedromos da intervenccedilatildeo precoce nas psicoses agrave fenomenologia das primeiras crises psiacutequicas graves
                                                                                • Ileno Iziacutedio da Costa
                                                                                • Neriacutecia Regina de Carvalho
                                                                                  • Famiacutelia e sauacutede mental a percepccedilatildeo dos adolescentes e de seus paiscuidadores
                                                                                    • Juacutelia Sursis Nobre Ferro Bucher-Maluschke
                                                                                    • Camila de Aquino Morais
                                                                                    • Deise Matos do Amparo
                                                                                    • Maria Aparecida Penso
                                                                                    • Karl Christoph Kaumlppler
                                                                                      • Casamento e famiacutelia uma reflexatildeo sobre desafios da conjugalidade contemporacircnea
                                                                                        • Glaacuteucia Diniz
                                                                                        • Terezinha Feacuteres-Carneiro
                                                                                          • Sexismo e heterossexismo do impacto sobre a sauacutede agraves possibilidades de prevenccedilatildeo
                                                                                            • Sheila Giardini Murta
                                                                                            • Zilda A P Del Prette
                                                                                            • Almir Del Prette
                                                                                            • Valeska Zanello
                                                                                              • O conceito de crise na Cliacutenica da Intervenccedilatildeo em Crise
                                                                                                • Marcelo Tavares
                                                                                                • Blanca Susana Guevara Werlang
                                                                                                  • Hipnose espiritualidade amp cultura problemas de pesquisa cliacutenica
                                                                                                    • Mauricio S Neubern
                                                                                                      • Registro Cliacutenico funccedilotildees e benefiacutecios
                                                                                                        • Meirilane Naves
                                                                                                        • Marcelo Tavares
                                                                                                        • Alexandre Domanico
                                                                                                        • Anna Elisa de Villemor-Amaral
                                                                                                          • Uma visatildeo binocular sobre o sonho e o sonhar o encontro entre psicologia e antropologia
                                                                                                            • Roque Gui
                                                                                                            • Vera Lucia Decnop Coelho
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