Auto Narrativas

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 Rio de Janeiro: Ed. FGV; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2009. 278p. O entusiasmo dos historiadores pela pesquisa no campo das narrativas biográficas e autobiográficas vem ganhando destaque nas publicações recentes no Brasil e no mundo. Um breve passar de olhos em catálogos de editoras e em estantes de livrarias atesta que o país experimenta grande aumento  de publicações de caráter biográfico e autobiográfico – a título de exemplo cite- mos apenas O retorno de Martin Guerre , de Natalie Z. Davis (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987) e D. Pedro II , de José Murilo de Carvalho (São Paulo: Com- panhia das Letras, 2007). Esse entusiasmo dos pesquisadores do campo das ciências sociais se deve ao fato de que o contato com fontes primárias, documentos, papéis, cartas, bilhetes e fotografias é capaz de revelar parcelas desconhecidas ou até então invisíveis da história e do mundo social vivenciado tanto por homens e mu- lheres ‘comuns’ quanto por personagens de maior relevo na história. Essa sen- sação é fortalecida quando o material foge aos rigores institucionais da produ- ção documental, às características seriais e ao formato burocrático, e tem uma origem privada, um caráter pessoal, conferindo a impressão de que se está tomando contato com aspectos muito íntimos da história de seus person agens. O acesso a tais fontes tem a força de simular o transporte no tempo, a imersão na experiência diretamente vivida, sem mediações. 1  Paralelamente a esse mo-  vimento, é importante ressaltar que é cada vez maior o interesse do leitor por certo gênero de escritos – uma escrita de si – que inclui diários, cartas, biogra- fias e autobiografias, independentemente de serem memórias ou entrevistas de trajetórias de vida, por exemplo. Como apontou Giovanni Levi, nosso fascínio de arquivistas pelas descri- ções impossíveis de corroborar por falta de registros documentais alimenta *Doutorando em História Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Largo de São Francisco de Paula, nº 1, sala 205. Centro. 20051-070 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. wedhistoria@ yahoo.com.br Gomes, Ângela M. de Castro; Schmidt, Benito Bisso (Org.). Memórias e narrativas (auto) biográficas Weder Ferreira da Silva* Revista Brasileira de História . São Paulo, v. 31, nº 61, p. 341-344 - 2011

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Auto Narrativas

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  • Rio de Janeiro: Ed. FGV; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2009. 278p.

    O entusiasmo dos historiadores pela pesquisa no campo das narrativas biogrficas e autobiogrficas vem ganhando destaque nas publicaes recentes no Brasil e no mundo. Um breve passar de olhos em catlogos de editoras e em estantes de livrarias atesta que o pas experimenta grande aumento de publicaes de carter biogrfico e autobiogrfico a ttulo de exemplo cite-mos apenas O retorno de Martin Guerre, de Natalie Z. Davis (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987) e D. Pedro II, de Jos Murilo de Carvalho (So Paulo: Com-panhia das Letras, 2007).

    Esse entusiasmo dos pesquisadores do campo das cincias sociais se deve ao fato de que o contato com fontes primrias, documentos, papis, cartas, bilhetes e fotografias capaz de revelar parcelas desconhecidas ou at ento invisveis da histria e do mundo social vivenciado tanto por homens e mu-lheres comuns quanto por personagens de maior relevo na histria. Essa sen-sao fortalecida quando o material foge aos rigores institucionais da produ-o documental, s caractersticas seriais e ao formato burocrtico, e tem uma origem privada, um carter pessoal, conferindo a impresso de que se est tomando contato com aspectos muito ntimos da histria de seus personagens. O acesso a tais fontes tem a fora de simular o transporte no tempo, a imerso na experincia diretamente vivida, sem mediaes.1 Paralelamente a esse mo-vimento, importante ressaltar que cada vez maior o interesse do leitor por certo gnero de escritos uma escrita de si que inclui dirios, cartas, biogra-fias e autobiografias, independentemente de serem memrias ou entrevistas de trajetrias de vida, por exemplo.

    Como apontou Giovanni Levi, nosso fascnio de arquivistas pelas descri-es impossveis de corroborar por falta de registros documentais alimenta

    *Doutorando em Histria Social pelo Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da UFRJ. Largo de So Francisco de Paula, n 1, sala 205. Centro. 20051-070 Rio de Janeiro RJ Brasil. [email protected]

    Gomes, ngela M. de Castro; Schmidt, Benito Bisso (Org.).

    Memrias e narrativas (auto) biogrficasWeder Ferreira da Silva*

    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 31, n 61, p. 341-344 - 2011

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    no s a renovao da histria narrativa, como tambm o interesse por novos tipos de fontes nas quais se poderiam descobrir indcios esparsos dos atos e das palavras da vida cotidiana dos atores sociais.2 nesse mesmo movimento historiogrfico que se enquadra a publicao do livro Memrias e narrativas (auto)biogrficas, organizado por ngela de Castro Gomes e por Benito Bisso Schmidt.

    O conjunto de textos apresentado no livro constitui significativo exemplo de como os chamados escritos de si ou autorreferenciais vm ganhando terre-no no campo da historiografia, ilustrando, assim, as vrias possibilidades e os resultados de pesquisas que utilizam tais escritos como fonte de investigao histrica. Nesse sentido, o livro Memrias e narrativas (auto)biogrficas apre-senta ao leitor uma nova possibilidade heurstica para os arquivos privados. De acordo com os organizadores do livro, a ateno de muitos historiadores voltou-se para os arquivos privados, nos quais passaram a procurar no apenas rastros das aes e ideias de seus personagens, mas tambm a forma pela qual eles constituram a si mesmos, medida que selecionavam e guardavam seus documentos e, assim, propunham um sentido para suas vidas (p.7).

    Na esteira das transformaes pelas quais a historiografia passou desde a dcada de 1980, a biografia, isto , o indivduo, emerge como tema relevante para a compreenso no apenas do social, mas tambm de questes ligadas inveno de si. Essas novas abordagens passam a ocupar espao privilegiado no conhecimento histrico, suscitando, com isso, reflexes sobre o espao pri-vado e o pblico, sobre o individual e o coletivo e sobre as formas narrativas e analticas da escrita da histria. Da a importncia dos acervos pessoais como elementos para a compreenso da superfcie social em que age o indivduo numa multiplicidade de campos, a cada momento. Nos textos que compem o livro possvel observar que as narrativas autobiogrficas evidenciam de forma clara como a trajetria de um indivduo varia no tempo, o que atesta, mais uma vez, aquilo que Pierre Bourdieu chamou de iluso biogrfica a iluso de uma linearidade e coerncia do indivduo.3 Dito isto, cabe ainda ressaltar a proposio de Paul Ricoeur, para quem a histria de vida de indi-vduo no cessa de ser refigurada por todas as histrias verdicas ou fictcias que um sujeito conta de si mesmo. Essa refigurao faz da prpria vida um tecido de histrias narradas.4

    Os textos que integram o livro em questo esto dispostos em quatro partes. A primeira O historiador entre a histria e a memria compe-se de um artigo de Sabina Loriga em que a autora aborda as porosas fronteiras entre histria e memria. Com base na obra A memria, a histria, o esqueci-

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    Memrias e narrativas (auto)biogrficas

    mento, de Paul Ricoeur (Campinas: Ed. Unicamp, 2007), a historiadora tece consideraes sobre as mltiplas relaes estabelecidas entre a histria e a memria. Nesse sentido, o texto de Loriga antecipa o contexto historiogrfico em que se situam os artigos subsequentes da obra.

    Na segunda parte do livro, ngela de Castro Gomes, Haike Roselane Kle-ber da Silva, Yonissa Marmitt Wadi e Keila Rodrigues de Souza abordam fa-cetas das trajetrias de indivduos com base nas correspondncias que troca-ram. Ao leitor, ficar evidente que a documentao epistolar permite decompor a vida de indivduos aproximando-se da sua esfera privada de atuao. Ao investigarem a troca de correspondncia entre figuras de relevo da poltica e da intelectualidade da Primeira Repblica, as cartas de germanis-tas no Brasil e bilhetes de pessoas que cometeram autoviolncia, os autores tecem reflexes sobre a construo do Eu, demonstrando que as escritas de si tambm se constituem em lugares de memria.

    Na sequncia, Joseli Maria Nunes Mendona, Benito Bisso Schmidt e Gi-sele Venncio ocupam-se em investigar como determinados atores sociais construram suas imagens por meio de narrativas autobiogrficas. Essas an-lises so reveladoras para pensar as estratgias utilizadas de forma consciente ou no no processo de construo de si mesmo. Nesse espectro de anlise possvel notar as disputas, os silncios, as hiprboles, enfim, as oscilaes das narrativas que pretendem forjar uma imagem de si projetadas para a poste-ridade.

    Por fim, os artigos de Mrcia de Almeida Gonalves, Bruno Barreto Go-mide, Marcelo Timotheo da Costa e Maria Elena Bernardes tm como objeto de anlise as produes biogrficas e autobiogrficas que pretenderam traar um sentido social e existencial para as trajetrias de notveis intelectuais e polticos brasileiros dos sculos XIX e XX. No captulo que encerra o livro, Maria Elena Bernardes faz uma incurso instigante trajetria de vida da es-critora e militante comunista Laura Brando. Nessa biografia, como que em um jogo de escalas, a autora articula aspectos da vida da militante com elemen-tos mais amplos da histria do Brasil e mundial, revelando, assim, as poten-cialidades que a biografia pode oferecer ao campo do ofcio do historiador.

    No obstante a diversidade dos objetos e de enfoques, os artigos que com-pem a obra Memrias e narrativas (auto)biogrficas podem ser conectados um ao outro formando, assim, um hipertexto que se constitui em importan-te contribuio para o campo da historiografia que se ocupa em investigar a multiplicidade de temas relacionados aos fenmenos da lembrana, do esque-cimento e da produo do eu.

  • Weder Ferreira da Silva

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    NOTAS

    1 HEYMANN, Luciana Quillet. Indivduo, memria e resduo histrico: uma reflexo so-bre arquivos pessoais e o caso Filinto Muller. Estudos Histricos, Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, v.19, p.41, 1997.2 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Jana-na. Usos e abusos da histria oral. 8.ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006. p.169.3 BOURDIEU, Pierre. A iluso biogrfica. In: FERREIRA; AMADO, 2006, p.183-191.4 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas (SP): Papirus, 1997. t 3. p.425.

    Resenha recebida em agosto de 2010. Aprovada em dezembro de 2010.