Auto-da-Barca-do-Inferno 2.pdf

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1 AUTO DA BARCA DO INFERNO GIL VICENTE A presente obra encontra-se sob domínio público ao abrigo do art.º 31 do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (70 anos após a morte do autor) e é distribuída de modo a proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício da sua leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. Foi a generosidade que motivou a sua distribuição e, sob o mesmo princípio, é livre para a difundir. Auto de moralidade criado por Gil Vicente em dedicação à sereníssima e muito católica rainha Leonor, nossa senhora, e representado, por sua ordem, ao poderoso príncipe e muito alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome. Começa a declaração e argumento da obra: Primeiramente, no presente auto, pressupõem-se que, no momento em que acabamos de morrer, chegamos subitamente a um rio, o qual, por força, teremos de passar num dos dois batéis que estão atracados num porto. Um deles vai em direção ao paraíso e o outro para o inferno. Os tais batéis têm, cada um, os seus comandantes na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um comandante infernal e um companheiro. O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Pajem, que lhe segura um manto muito comprido com uma mão e uma cadeira de espaldas com a outra. O comandante do Inferno começa o seu pregão mesmo antes do Fidalgo se aproximar.

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    AUTO DA BARCA DO INFERNO

    GIL VICENTE

    A presente obra encontra-se sob domnio pblico ao abrigo do art. 31 do Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (70 anos aps a morte do autor) e distribuda de modo a proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefcio da sua leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou at mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia. Foi a generosidade que motivou a sua distribuio e, sob o mesmo princpio, livre para a difundir. Auto de moralidade criado por Gil Vicente em dedicao serenssima e muito catlica rainha Leonor, nossa senhora, e representado, por sua ordem, ao poderoso prncipe e muito alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome. Comea a declarao e argumento da obra: Primeiramente, no presente auto, pressupem-se que, no momento em que acabamos de morrer, chegamos subitamente a um rio, o qual, por fora, teremos de passar num dos dois batis que esto atracados num porto. Um deles vai em direo ao paraso e o outro para o inferno. Os tais batis tm, cada um, os seus comandantes na proa: o do paraso um anjo, e o do inferno um comandante infernal e um companheiro. O primeiro interlocutor um Fidalgo que chega com um Pajem, que lhe segura um manto muito comprido com uma mo e uma cadeira de espaldas com a outra. O comandante do Inferno comea o seu prego mesmo antes do Fidalgo se aproximar.

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    DIABO barca, barca, venham l! Que temos gentil mar! dirigindo-se ao companheiro Ora pe o barco r! (vira a traseira do barco) COMPANHEIRO DO DIABO Est feito, est feito! DIABO Bem feito est! Vai agora, em m hora, Esticar aquele palanco (corda) E desocupar aquele banco, Para a gente que vir. falando para o ar barca, barca, hu-u! Depressinha, que se quer ir! Oh, que tempo para partir, Louvores a Belzebu! dirigindo-se ao companheiro Mas ento! Que fazes tu? Limpa todo aquele leito! (espao entre o Mastro e a Popa do barco) COMPANHEIRO Em boa hora! Feito, feito! DIABO Abaixa-me esse cu! Liberta aquela poja (corda com que se vira a vela) E afrouxa aquela dria. (corda com que se levanta a vela) COMPANHEIRO Oh-oh, caa! Oh-oh, ia, ia! DIABO Oh, que caravela esta! Pe bandeiras, que festa. Vela ao alto! ncora a pique! poderoso Dom Henrique, C vindes vs? Que coisa essa?... Aproxima-se o Fidalgo e, chegando ao barco infernal, diz: FIDALGO Esta barca para onde vai,

    Que assim est apercebida? (preparada) DIABO Vai para a ilha perdida, E h de partir daqui a nada. FIDALGO E para l vai a senhora? DIABO Sou um senhor, Ao vosso servio. FIDALGO Parece-me isto um cortio... (uma embarcao reles) DIABO Porque a vedes da de fora. FIDALGO Pois sim, e por que terra passais? DIABO Para o inferno, senhor. FIDALGO Uma terra sem-sabor... (sem piada nenhuma) DIABO O qu?... Mas tambm disso zombais? FIDALGO E que passageiros achais Para tal embarcao? DIABO Vejo-vos eu em feio, Para ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assim!... DIABO Em que esperas ter guarida? (salvao) FIDALGO Que deixo na outra vida, Quem reze sempre por mim. DIABO Quem reze sempre por ti?!...

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    Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!... Tu que viveste a teu prazer, Pensando c guarnecer (salvares-te) Por aqueles que l rezam por ti?!... Embarcai agora, embarcai! Que haveis de ir s traseiras Mandai meter a cadeira, como tambm passou o vosso pai. FIDALGO O qu!? O qu!? O qu!? l que ele est?! DIABO Vai ou vem! Embarcai depressa! Pelo que em vida escolheste, assim c vos contentais E como pela morte passastes, Tereis que passar o rio. FIDALGO No h aqui outro navio? DIABO No, senhor, que este preparaste, E assim que expiraste (morreste) Me deste logo sinal. FIDALGO E que sinal foi esse tal? DIABO De que vs vos contentastes. (que estava condenado) FIDALGO Para a outra barca me vou. J ao p da outra barca Oh da barca! Para onde s? Oh, barqueiros! No me ouvis? Respondei-me! Ol! !... O Anjo ignora-o Por deus, aviado estou! (perdido) Quanto a isto j pior... Que jericocins, salvanor! (Mas que burro, com o devido respeito) Pensam que eu sou um grou? (um corvo, ou uma ave que diz coisas sem sentido) ANJO Que quereis?

    FIDALGO Que me digais, Pois morri to sem aviso, Se a barca do Paraso esta em que navegais. ANJO Esta . Que desejais? FIDALGO Que me deixeis embarcar. Sou fidalgo de solar, bom que me recolhais. ANJO No se embarca tirania, Neste batel divinal. FIDALGO No sei por que negais entrada minha senhoria... ANJO Para a vossa fantasia (vaidade) Muito pequena esta barca. FIDALGO Para senhor de bom nome, No h aqui mais cortesia? Venha a prancha e atavio! (a prancha e apetrechos para se subir para o barco) Levai-me desta ribeira! ANJO No vindes c a pensar De entrar neste navio. Aquele ali vai mais vazio. Ali a cadeira entrar, O rabo caber E todo vosso senhorio. Ireis ali mais espaoso, Vossa fumosa senhoria, (arrogante) A pensar na vossa tirania Contra o pobre povo queixoso. E porque, de generoso, Desprezaste os pequenos, Achar-vos-ei tanto menos (*) Quanto mais foste fumoso. (arrogante) [(*) Quer o Anjo dizer com isto que quer que o Fidalgo reflita e perceba que quanto mais ele era arrogante e mau, mais ele perdia o valor da sua prpria pessoa]

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    Grita o Diabo da sua barca DIABO barca, barca, senhores! Oh! Que mar to de prata! Um ventozinho que mata E valentes remadores! Diz a cantar: "Vs me vireis mo, mo me vireis. FIDALGO Para o Inferno, ento! O inferno ser para mim? Oh triste! Enquanto vivi no pensei que seria: Pensei que era fantasia! Pensava ser adorado, Confiei no meu estado E no vi que me perdia. Venha essa prancha! Veremos esta barca de tristura. (tristeza) DIABO Embarque vossa doura, Que c nos entenderemos... Tomareis um par de remos, Veremos como remais, E, chegando ao nosso cais, Ver como bem vos serviremos. FIDALGO Esperai-me vs aqui, Voltarei outra vida, Para ver a minha dama querida, Que se quer matar por mim. DIABO Que se quer matar por ti?!... FIDALGO Isto bem certo o sei eu. DIABO namorado sandeu, (atraioado, cornudo) O maior que j vi!... FIDALGO Como poder isso ser, Ela que me escrevia todos os dias? DIABO Quantas mentiras que lias! E tu... doido de prazer!...

    FIDALGO Para que est a escarnecer, Se no havia quem me quisesse mais bem? DIABO Assim deverias viver, amm, Como ela te havia de querer! (*)

    [(*) O Diabo goza com o Fidalgo, dizendolhe que ele deveria viver tanto quanto a namorada o amava, ou seja, nem mais um segundo de vida.] FIDALGO Isso quanto ao que eu conheo... DIABO Pois estando tu a morrer, Estava ela a requebrar-se, (a ter relaes sexuais) Com outro de menos preo. FIDALGO D-me licena, te peo, Que v ver a minha mulher. DIABO E ela, se te voltar a ver, Despenhar-se- de um cabeo! Tudo quanto ela hoje rezou, Entre os seus gritos e gritas, Foi a dar graas infinitas A quem a desassombrou. (a libertou) FIDALGO Quanto ela bem chorou! DIABO E no h choro de alegria? FIDALGO E as lstimas que dizia? DIABO A sua me lhas ensinou... Entrai, meu senhor, entrai: Aqui est a prancha! Ponha o p... FIDALGO Entremos, pois se assim . DIABO

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    Ora, senhor, descansai, passeai e suspirai. Que, entretanto vir mais gente. FIDALGO barca, como s ardente! Maldito quem em ti vai! Diz o Diabo ao rapaz da cadeira: DIABO Tu no entras c! Vai-te daqui! Essa cadeira est c a mais! Coisa que esteve na igreja No se h de embarcar aqui. Aqui dar-lhe-o outras de marfim, Mais chicotadas de dores, Dadas com tais lavores, Que ficar fora de si... Falando novamente para o ar barca, barca, boa gente, Que queremos dar vela! chegar a ela! chegar a ela! (Aproximai-vos, aproximai-vos) Muitos e de boa mente! Oh! Que barca to valente! Aparece um Onzeneiro, (*) e pergunta ao barqueiro do Inferno, dizendo: [(*) Indivduo que vive a emprestar dinheiro aos outros e a cobrar depois juros altos. Eram os banqueiros da altura.] ONZENEIRO Para onde navegais? DIABO Oh! Em que m hora chegais, Onzeneiro, meu parente! Porque tardastes vs tanto? ONZENEIRO Mais ainda eu quisera tardar... Na safra do apanhar, (Na tarefa de ganhar dinheiro) Deu-me Saturno (*) o quebranto. (a morte) [(*) Saturno era o deus romano do Tempo.] DIABO Ora muito me espanto por ver No vos salvar o dinheiro!... ONZENEIRO

    Nem para o barqueiro Me deixaram ficar com algo(*) [(*) O Onzeneiro refere-se novamente as mitologia grega, segundo a qual os mortos teriam que atravessar o rio Aqueronte, pagando uma moeda ao barqueiro, de nome Caronte, pela passagem. Queixa-se ele de que no o deixaram levar nenhum do seu dinheiro consigo, quando morreu, nem para pagar ao tal barqueiro da lenda.] DIABO Ora ento entrai, entrai aqui! ONZENEIRO No hei eu de a embarcar! DIABO Oh! Que gentil recear, E que divertido para mim!... ONZENEIRO Ainda agora faleci! Deixa-me escolher um batel! DIABO Oh So Pimentel! Porque no irs aqui?... ONZENEIRO E para onde a viagem? DIABO para onde tu hs de ir. ONZENEIRO E vamos j partir? DIABO No penses em mais linguagem. (Deixa-te de mais conversas) ONZENEIRO Mas para onde a passagem? DIABO Para a infernal comarca. ONZENEIRO Dix! No vou eu em tal barca. (uma interjeio de espanto) Aquela outra tem a vantagem (melhor aspeto)

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    Dirige-se barca do Anjo, e diz: ONZENEIRO Oh da barca! Ol! ! Haveis j de partir? ANJO E onde queres tu ir? ONZENEIRO Eu, para o Paraso vou. ANJO Pois quanto a mim, muito fora estou (no contes comigo) De te levar para l, Aquela outra barca te aceitar; Ali vai quem enganou! ONZENEIRO Por qu? ANJO Porque esse bolso Ocuparia todo o navio. ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio! ANJO No no teu corao. ONZENEIRO L me ficou de roldo (perdida) A minha fazenda e alheia (riqueza) ANJO onzena, como s feia (ozena = usura, avareza) E filha da maldio! Torna o Onzeneiro barca do Inferno e diz: ONZENEIRO Oh da barca! Oh Demo barqueiro! Sabeis vs no que me fundo? (penso) Quero l voltar ao mundo E trazer o meu dinheiro. Aquele outro marinheiro, Porque me viu vir sem nada, Deu-me tanta borregada, (insultos) Como os barqueiros l do Barreiro. DIABO Entra, entra! E remars!

    No percamos mais a mar! ONZENEIRO Todavia... DIABO Por fora assim ! Como fizeste, c entrars! Irs servir Satans, Porque sempre ele te ajudou. ONZENEIRO Oh triste de mim... Quem me cegou? DIABO Cala-te que depois chorars. Ao entrar o Onzeneiro no batel, encontra o Fidalgo embarcado e diz tirando o barrete: ONZENEIRO Santa Joana de Valds! Tambm est c vossa senhoria? FIDALGO D ao demo a cortesia! DIABO Que ouvi? Falai vs em ser corts! Vs, fidalgo, que penseis? Que estais na vossa pousada? Dar-vos-ei tanta pancada Como a um remo que renegueis! Vem Joane, o Parvo, e diz ao barqueiro do Inferno: PARVO Oh desta! DIABO Quem ? PARVO Eu sou. esta a nossa naviarra? DIABO De quem? PARVO Dos tolos.

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    DIABO Ah! Vossa. Entra! PARVO De pulo ou de voo? Oh! Pelo pesar do meu av! (dor, choro) Resumindo: Vim a adoecer E em m hora fui morrer, E nela, para mim s. (E numa altura em que estava s) DIABO E de que morreste? PARVO De qu? Acho que de caganeira. DIABO De qu?! PARVO De caga merdeira! Que m rabugem que te d! (um insulto) DIABO Entra! Pe aqui o p! PARVO p! Que no tombe o zambuco!(*) (a barcaa.) [(*) Expresso do Parvo que quer dizer que o Diabo est a apress-lo. Ou seja, com tanta pressa, no v a barcaa vira-se] DIABO Entra, tolo eunuco, Que nos vai embora a mar! PARVO Aguardai, aguardai um pouco! E aonde havemos ns de ir ter? DIABO Ao porto de Lucifer. PARVO Ha-a-a...? DIABO Ao Inferno! Entra c!

    PARVO Ao Inferno?... Espera l.... Ui! Ui! a Barca do cornudo!!! Pro de Vinagre! Beiudo, Lenhador de Alverca, uh, uh! SAPATEIRO da Candosa! Entrecosto de carrapato! Ui! Ui! Caga no sapato, Filho de uma grande aleivosa! (prostituta) A tua mulher tinhosa E h de parir um sapo, Achatado num guardanapo! Neto de uma cagosa! Ladro de cebolas! Ui! Ui! Excomungado das igrejas! Burrelas, cornudo sejas! Toma o po que te caiu!(*) A mulher que te fugiu, Para Ilha da Madeira! [(*) toma aquilo que mereces] Cornudo at mangueira, Toma o po que te caiu! Uh! Uh! Lano-te uma pulha! (um manguito) Toma, toma! Pica naquela! Hump! Hump! Caga na vela! Cabea de grulha! Perna de cigarra velha, Caganita de coelha, Pelourinho da Pampulha! Mija na agulha, mija na agulha! Chega o Parvo ao batel do Anjo diz: PARVO Oh da barca! ANJO Que me queres? PARVO Queres-me passar alm? ANJO Quem s tu? PARVO Talvez algum. ANJO Tu passars, se quiseres; Porque em todas os teus afazeres, Por malcia no erraste. Da tua simpleza te bastastes, Para gozar dos prazeres. Espera no entanto a, Veremos se vem mais algum, Merecedor de tal bem,

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    Que deva entrar aqui. Vem Sapateiro com o seu avental e carregado de formas de sapatos. Chega ao batel infernal, e diz: SAPATEIRO da barca! DIABO Quem vem a? Oh! Santo sapateiro honrado, Como vens to carregado!... SAPATEIRO Mandaram-me vir assim... (*) E para onde a viagem? [(*) Os objetos que as personagem carregam representam os pecados que cometeram em vida.] DIABO Para o lago dos danados. SAPATEIRO E os que morrem confessados, Onde tm a sua passagem? DIABO No digas tais linguagem! Esta a tua barca, esta! SAPATEIRO Renegaria eu da festa, (*) E da puta dessa barcagem! Como poder isso ser, Sendo eu confessado e comungado?!... [(*) Expresso que dizer, no quero esse convite para nada, mesmo que fosse para uma festa] DIABO Tu morreste excomungado! Mesmo sem o saberes. O que esperavas depois de viver, Fazendo dois mil engano Tu roubaste em trinta anos, O povo com a tua mestria. (com o teu oficio) Embarca, esta barca para ti, Que h j muito que te espero! SAPATEIRO

    Pois digo-te que no quero! DIABO Mas hs de ir, sim, sim! SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi... No me ho elas de agora prestar? (valer) DIABO Ouvir missa, depois roubar... caminho para aqui. SAPATEIRO E as ofertas que serviro? (as esmolas) E as horas dos finados? (as rezas e os velrios que se faziam quando algum estava a morrer para essa pessoa ir para o cu) DIABO E os dinheiros mal cobrados, Que foi da tua satisfao? SAPATEIRO Oh! No brinques oh cordovo! (mentiroso) Nem puta da badana, (da velha, ou seja, da tua me ou da tua av) Se esta traquitana Para ir o Joo Anto! Ora juro a Deus que mete graa! Dirige-se barca do Anjo, e diz: SAPATEIRO Oh da santa caravela! Poders levar-me nela? ANJO A tua carga te embaraa. SAPATEIRO No h caridade que Deus me faa? Isto em qualquer lugar ir? ANJO Aquela barca que ali est Leva quem rouba de praa. (descaradamente) Oh almas embaraadas! (desavergonhadas) SAPATEIRO Ora muito eu me maravilho, (me espanto)

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    Por terdes por gro peguilho, (por incmodo) Quatro forminhas cagadas, (*) Que podem bem ir a aconchegadas A num cantinho dessa barca! [(*) umas coisas insignificantes, referindo-se s formas dos sapatos que trazia consigo, ou seja, os seus pecados.] ANJO Se tivesses vivido direito, Elas eram c escusadas. (*) [(*) Diz o Anjo, que se o Sapateiro vivido com retido, no trazia agora nada carregado consigo] SAPATEIRO Ento determinais que eu v cozer ao Inferno? ANJO Escrito ests no caderno Das ementas infernais. O sapateiro volta barca dos danados, e diz: SAPATEIRO Oh barqueiros! Que aguardais? Vamos, venha prancha logo E levai-me quele fogo! No nos detenhamos mais! Vem um Frade com uma rapariga pela mo, um escudo e uma espada na outra e um capacete debaixo do capuz. E ele mesmo fazendo uma vnia, comea a danar, cantando: FRADE Tai-rai-rai-ra-r; ta-ri-ri-r; ta-rai-rai-rai-r; tai-ri-ri-r: t-t; ta-ri-rim-rim-r. Huh! DIABO Que isso, padre?! Quem vem l? FRADE Deo gratias! Sou corteso. (*) [(*) Graas a Deus! Sou homem da corte. De todos os personagens usados por Gil Vicente nesta pea, o Frade o mais criticado. Certamente era o que mais fazia rir ao pblico da poca, pois era em si gozado por todas as camadas sociais.]

    DIABO Sabes tambm o tordio?(*) [(*) Canto que uma pessoa trauteia quando faz uma dana improvisada. Tambm pode significar um tipo de dana feita sem ordem nem compasso certo.] FRADE Pois ento! Ora, se no sei! DIABO Pois entrai! Eu tocarei E faremos um sero. (uma festa) Essa dama vossa? FRADE Por minha, eu a tenho, E sempre a tive como minha. DIABO Fizestes bem, que formosa! Mas no vos punham l grossa (censuravam) No vosso convento santo? FRADE Eles l fazem outro tanto!(*) [(*) Diz o Frade perante a admirao do Diabo de que os outros frades tambm tinham amantes como a dele.] DIABO Que coisa to preciosa... Entrai, padre reverendo! FRADE E para onde levais a gente? DIABO Para aquele fogo ardente, Que no temestes vivendo. FRADE Juro a Deus que no te entendo! E este hbito, de nada vale? (as veste religiosas) DIABO Gentil padre mundanal, A Belzebu vos encomendo! FRADE

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    Corpo de Deus consagrado! Pela f de Jesus Cristo, Que eu no posso entender isto! Hei de eu ser condenado?!... Um padre to enamorado E tanto dado virtude? Assim Deus me d sade, Que eu estou muito admirado! DIABO No penses em mais detena. (demora) Embarcai e partiremos: Tomareis um par de ramos. FRADE No ficou isso em avena. (em acordo) DIABO Pois dada est j a sentena! FRADE Por Deus! Essa que era ela! No vai em tal caravela A minha senhora Florena. Como assim? S por ser namorado, E folgar com uma mulher, H de um frade de se perder, Com tanto salmo rezado?!... DIABO Ora ests bem aviado! (*) [(*) Ests bem aviado, ou por outras palavras ests bem servido uma expresso que quer dizer que essa determinada pessoa est numa m situao] FRADE Direi eu, bem corrigido! DIABO Devoto padre marido, Haveis de c pingado... (haveis c lugar guardado) O Frade descobre a cabea, tirando o capuz, apareceu-lhe o capacete (*), e diz o Frade: [(*)] Muitas ordens religiosas da idade mdia foram fundadas por monges guerreiros. Os monges guerreiros, por exemplo, das ordens militares do Templo, dos Hospitalrios, de Calatrava (mais tarde Ordem de Avis) e de Santiago de Espada desempenharam um papel muito importante nas lutas das Cruzadas.] FRADE

    Mantenha Deus esta coroa! DIABO padre Frei Capacete! Isso mais parece um barrete... FRADE Sabeis da ordem! A espada roloa (*) (ordinria) E este escudo rolo (reles) [(*) Advm de ral, algo que comum] DIABO D Vossa Reverencia lio De esgrima, que coisa boa! Comeou o frade a dar lio de esgrima com a espada e o escudo e diz desta maneira: FRADE Deo gratias! Damos caada! Para sempre, contra uns! Um fendente!(*), ora pois! [(*) Golpe de esgrima normalmente feito de cima para baixo com o punho] Esta a primeira levada. (o primeiro ataque) Alto! Levantai a espada! Uma estocada, e um revs! E depressa recolher os ps, Que todo o cuidado pouco! Quando o recolher se tarda O ferir no prudente. Ora, ento! Muito depressa, Cortai na segunda guarda! Guarde-me Deus da espingarda(*) [(*) Entende-se por aqui por "espingarda" um tipo de arma como um "mosquete" ou a uma "besta" que existiam no sculo XVI. No a concepo de espingarda que surgiu um sculo depois] E do homem ousado. Aqui estou to bem guardado Como uma palha na albarda. (a sela dos cavalos) Fico com meia espada... h l! Protegei as queixadas! (as caras)

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    DIABO Oh que valentes levadas! (ataques) FRADE Isto ainda no nada... Damos outra vez caada! Contra uns mais um fendente, E, cortando com destreza, Eis aqui a sexto feitada. (golpe) Daqui saio com uma guia (reviravolta) E um revs da primeira: Esta o quinta verdadeira. Oh! Quantos assim eu feria!... Um padre que tal aprendia, No Inferno h de ter pingos?!... (lugar) Ah! No se preza a So Domingos Com tanta descortesia! Voltou a tomar a rapariga pela mo, dizendo: Vamos barca da Glria! Comeou o Frade a fazer o tordio e foram os dois a danar at o batel do Anjo desta maneira: FRADE Ta-ra-ra-rai-r; ta-ri-ri-ri-r; rai-rai-r; ta-ri-ri-r; ta-ri-ri-r. Huh! Deo gratias! H lugar c Para minha reverncia? E a senhora Florena Tambm entrar c! PARVO Andor daqui para fora! Roubaste o trincho, frade?(*) (pedao de carne) [(*) referindo-se rapariga que o frade trazia] FRADE Senhora, d-me a vontade (quer-me parecer) Que este feito mal est. Vamos para onde havemos de ir! No se praza Deus com a ribeira! E no vejo aqui maneira Seno, enfim,. concrudir. (de aceitar as coisas tm de ser) DIABO Haveis, padre, de vir. FRADE Agasalhai-me l a Florena, E cumpra-se essa sentena.

    Apressemo-nos a partir. Assim que o Frade foi embarcado, veio uma Alcoviteira (*), de nome Brzida Vaz, a qual, chegando barca infernal, diz desta maneira: [(*) Uma alcoviteira era uma mulher de m fama, ligada ao negcio da prostituio (do qual ela era gerente) e a tudo o que lhe estava ligado, ou tambm a negcios fraudulentos de crendices pags, como as mezinhas e remdios de cura. O povo tomava-as como feiticeiras] BRZIDA da barca, l! DIABO Quem chama? BRZIDA BrzidaVaz. DIABO dirigindo-se ao companheiro Mas o que espera ela, rapaz? Porque no entra ela j? COMPANHEIRO Diz que no h de entrar c Sem a Joana de Valds.(*) [Jona de Valds j tinha sido anteriormente mencionada pelo Onzeneiro. Devia ter sido uma personagem conhecida na poca. H quem aponte que poderia ter sido uma amante do Bispo de A. Valds que tinha uma amante com a alcunha de Lucrcia no confundir com a infame Lucrcia Brgia, filha do Papa Alexandre VI, a quem certamente o nome foi imitado] DIABO Entrai vs e remai. BRZIDA Eu no quero a entrar. DIABO Que saboroso recear! BRZIDA

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    No essa barca que eu cato. (procuro) DIABO No trazes vs muitos fatos? BRZIDA O que me convm levar. DIABO E o que tens para embarcar? BRZIDA Seiscentos virgos postios (*) E trs arcas de feitios Que no podem mais levar. [(*) hmens postios, usado pelas prostitutas para passarem por virgens] Trs armrios de mentir, E cinco cofres de enleios. (sedues) E alguns furtos alheios, Como joias de vestir, Guarda-roupa de encobrir, Enfim... casa movedia; E um estrado de cortia Com dois coxins de cobrir. (almofadas) A maior carga era, Essas moas que vendia. Dessa mercadoria, Trago eu muita boa f! (*) [(*) Brzida Vaz traz consigo todos os apetrechos inerentes aos seus pecados que consistia em criar e fornecer meninas para os homens da poca, em particular para os fidalgos e autoridades eclesisticas.] DIABO Ora ponde aqui o p... BRZIDA Ui! E vou para o Paraso! DIABO E quem te disse a ti isso? BRZIDA Hei de l ir nessa mar! Eu sou uma mrtir tal!... Aoites tenho levado, (*)

    E tormentos suportado, Que ningum me foi igual. Se eu fosse para o fogo infernal, L iria todo o mundo! outra barca, l ao fundo, Me vou, que mais real. (relativo realeza) [(*) As prostitutas e as suas madames recebiam efetivamente chicotadas como castigo da justia quando era apanhadas e sentenciadas pelos tribunais] Chegando Barca da Glria diz ao Anjo: BRZIDA Barqueiro, mano dos meus olhos, Deita a prancha a Brzida Vaz. ANJO Eu no sei quem te c traz... BRZIDA Peo-o de joelhos! Pensais que trago piolhos, Anjo de Deus, minha rosa? Eu sou aquela preciosa Que dava as moas aos molhos, (em grandes quantidades) A que criava as meninas Para os cnegos da S... (padres e bispos) Passai-me, por vossa f, Meu amor, minhas boninas, (margaridas, malmequeres) Olho de perlinha fina! (prola) Eu sou apostolada, Angelada e maritizada E fiz coisas muito divinas. Santa rsula no converteu Tantas raparigas como eu! Todas salvas pelo meu (por mim) E nenhuma se perdeu. E graas "quele do Cu" Que todas acharam dono. Pensais que dormia sono? Nem ponto se me perdeu! (Nada me escapou ateno) ANJO Ora, vai alm embarcar, Ali no estars a importunar. BRZIDA Pois estou-vos eu contar O porqu me haveis de levar.

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    ANJO No penses em importunar, Que no podes vir aqui. BRZIDA E que m hora eu servi, Pois no me h de aproveitar!... Volta Brzida Vaz Barca do Inferno, dizendo: barqueiros da m hora, Venha a prancha, pois aqui me vou. J h muito que aqui estou, E pareo mal estar c fora. DIABO Ora entrai, minha senhora, E sereis bem recebida; Se vivestes santa vida, Vs o sentireis agora... Assim que Brzida Vaz embarcou, veio um Judeu, com um bode s costas; e, chegando ao batel dos danados, diz: JUDEU Quem a vai? marinheiro! DIABO Oh! Em que m hora vieste!... JUDEU De quem esta barca que preste? DIABO Esta barca do barqueiro. JUDEU Passai-me que vos pago em dinheiro. DIABO E o bode h c vir? JUDEU Pois tambm o bode h de ir. DIABO Que escusado passageiro! JUDEU Sem bode, como passarei?(*)

    [(*) O bode era o animal de sacrifcio da religio judaica] DIABO Eu no passo cabres. JUDEU Eis aqui quatro tostes, E mais vos pagarei. Pela vida do Semifar (*) Peo-vos me passeis o cabro! Quereis mais outro tosto? [(*) Nome Judeu, possivelmente o da prpria personagem] DIABO Nem tu nem ele ho de vir c. JUDEU Porque no ir o judeu Onde vai Brzida Vaz? E o senhor meirinho (*) consente? senhor meirinho, no irei eu? [(*)Meirinho, era uma expresso para uma figura autoritria ligado aos oficiais da justia e por conseguinte, fidalguia. O Judeu apela pois autoridade do Fidalgo que est na barca. H aqui uma crtica velada, pois predominava a ideia, naquela altura, de que os Judeus, ricos, controlavam a justia e escavam assim muitas vezes justia.] DIABO E o fidalgo, que lhe importa... JUDEU No manda ele este batel? CORREGEDOR (coronel) Castigai este sandeu! (tolo) Azar, pedra mida, (desgraado) Lodo, charco, fogo, lenha, Caganeira que te venha! M correna que te acuda! (diarreia) Por Deus, que te sacuda Com a beca (*) nos focinhos! Fazes gozo dos meirinhos? Diz, filho da cornuda! [(*) A beca um tipo de veste, de uso caracterstico dos juzes, tm sua origem nos trajes sacerdotais dos romanos]

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    PARVO Roubaste a cabra, cabro? Parece-me vs, a mim, Um gafanhoto de Almeirim Chacinado num seiro. (morto numa festa) (*) [(*) Gil Vicente trata esta figura com um grande anti-semitismo (dio ao povo Judeu), sendo at repudiado pelo prprio Diabo, mas poca, tal como em muitas situaes ao longa da histria mundial, havia efetivamente um grande dio contra o povo Judeu, incitado sobretudo pela igreja catlica. O Judeu era sempre visto como uma pessoa de mau carter, ganancioso, rico por ser corrupto e fraudulento. O fato de um Judeu ter sido morto por uma multido, em determinado sitio, seria algo possvel de ter ocorrido] DIABO Judeu, ali te passaro, Porque vo mais despejados. (mais vazios, referindo-se barca do paraso) PARVO Ele mijou nos finados (nos mortos) Na igreja de So Gio! (*1) E comia a carne da panela No dia de Nosso Senhor! (*2) Goza com o salvador, E mija na caravela! (*3) [(*) 1- Antigamente os mortos eram enterrados debaixo das lajes da igreja. 2 Quer dizer que comia carne na sexta-feira santa em que diz a tradio se deve fazer jejum ou no comer carne, no respeitando assim a doutrina catlica. 3 A caravela a prpria a igreja catlica. J na bblica se diz que a igreja um barco.] DIABO Vamos, vamos! Demos vela! E vs, Judeu, ireis toa, (*) Que sois muito ruim pessoa. Levai o cabro na trela! [(*) Esta frase do Diabo tem dado azo a muito tipo de interpretao, porque Gil Vicente no deixou explicito o que queria dizer efetivamente. Diz o consenso geral que com isto o Diabo est a dizer que o Judeu to mau que vai para o inferno toa, ou seja, no na barca, mas a

    reboque: ou num outro barco mais pequeno, ou puxado por uma corda, conforme queiram transpor essa ideia para o palco. Outra interpretao diz que ele efetivamente entra dentro da barca j que ir toa pode significar ir de qualquer maneira e a prpria Brizida Vaz usa essa mesma expresso, num dilogo seu mais frente, referindo-se a entrar mais algum dentro da barca toa. Pode, no entanto significar que o Judeu to mau que nem direito tem a entrar na barca e que, tal como o rapaz da cadeira do Fidalgo, ter que ir toa, ou seja, ter que andar a errar (a vaguear) por ali. Esta ltima ideia no assim to descabida j que est associada ao mito do Judeu Errante, aquele que por castigo foi negada a morte e a entrada, tanto no cu como no inferno e que anda a vaguear pelo mundo at ao fim dos tempos.] Vem um Corregedor (*), carregado de manuscritos, e, chegando barca do Inferno, com sua vara na mo, diz: [(*) O corregedor era o magistrado (um juiz) administrativo e judicial que representava a Coroa em cada uma das comarcas de Portugal.] CORREGEDOR da barca! DIABO Que quereis? CORREGEDOR Est aqui o senhor juiz? DIABO Oh amante de perdiz, (*) Que gentil carga trazeis! [(*) O Diabo goza com o corredor, pois perdiz uma ave que se dizia usar como pagamento para subornar algum, pedindo-lhe favores. Ao dizer que o corregedor um apreciador de perdizes est a dizer que ele era um juiz que aceitava subornos] CORREGEDOR Pela minha aparncia percebereis Que no ela do meu jeito. (que no costumo levar carga) DIABO Como vai l o direito? CORREGEDOR Nestes autos, o vereis.

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    DIABO Ora, pois, entrai. Veremos, O que diz a nesse papel... CORREGEDOR E onde vai o batel? DIABO No Inferno vos poremos. CORREGEDOR Como? terra dos demos, H de ir um corregedor? DIABO Santo descorregedor, Embarcai, e remaremos! Ora, entrai, j que viestes! CORREGEDOR Non est de regulae juris, no!(*) (No isso est prescrito nas leis) [(*) Era costume as pessoas ligadas justia estudarem o latim, pois as primeiras leis fundaram-se no direito romano e como tal o domnio do latim estava ligado erudio. O povo da altura no tinha, no entanto o latim como algo que lhes fosse completamente desconhecido, pois as missas, a que se impunha que todos assistissem aos domingos, eram todas ditas em latim um fato que s em meados de 1900 que se abandonou. Por outro lado, o portugus arcaico da poca era por si tambm ainda muito prximo do latim romano, por isso que as frases e expresses latinas utilizadas entre o corregedor e o Diabo eram, altura, compreendidas, mais ou menos bem, pelo pblico geral.] DIABO Ita, Ita! Dai c a mo! (sim, sim, em latim) Remaremos um remo destes. Fazei conta que nascestes Para ser nosso companheiro. dirigindo-se ao companheiro diabrete Que fazes tu, barzoneiro? (preguioso) Estende essa prancha. Prestes! (despacha-te) CORREGEDOR Oh! Renego da viagem

    E de quem me h de levar! H aqui meirinho do mar? (Juiz ou magistrado) DIABO No h tal costumagem. (costume) CORREGEDOR No entendo esta barcagem, Nem hoc nom potest esse. (E isso no pode ser.) DIABO Ora se vos parecesse, (se vs pensais) Que no sei mais dessa linguagem... Entrai, entrai, corregedor! CORREGEDOR Oh! Videtis qui petatis (Vede que pedis) Super jure magestatis (algo acima do direito de majestade) Tem o vosso mando vigor? DIABO Quando reis ouvidor Nonne accepistis rapina? (no aceitaste suborno?) Pois ireis agora bolina ( vela) Onde a nossa pessoa for... Oh! E que isca esse papel Para um fogo que eu c sei! CORREGEDOR Domine, memento mei! (Senhor, (Deus) lembrai-vos de mim) DIABO Non es tempus, bacharel(*)! (No h tempo, bacharel) Imbarquemini in batel (embarcai no batel) Quia Judicastis malitia. (que a justia maldita) [(*) Bacharel" um grau acadmico] CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit. (Eu sempre agi com justia) DIABO E as peitas dos judeus (peitas = peitos das aves; subornos) Que a vossa mulher levava? CORREGEDOR Isso eu no o tomava. (no era comigo) Eram l percalos seus. Nom som pecatus meus, (no so meus pecados)

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    Peccavit uxore mea. (quem pecou foi a minha esposa) DIABO Et vobis quoque cum ea, (E vs tambm com ela) A Deus no temeste. E de grande modo enriqueceste Sanguinis laboratorum, (com o sangue dos que trabalham) Ignorantis peccatorum. (Pecaste, ignorando-os) Ut quid eos non audistis? (E porque no os atendeste?) CORREGEDOR Vs, barqueiros, nonne legistis (no lestes) Que o dinheiro quebra os penedos? (as montanhas) E que os direitos ficam quedos, (parados; suspensos) Sed aliquid tradidistis... (Se algo dado em troca...) DIABO Ora entrai, nestes negros fados! Ireis para ao lago dos ces E vereis os escrives Como esto to prosperados. (ricos) CORREGEDOR E na terra dos danados Esto os Evangelistas? DIABO Os mestres das burlas vistas Esto l bem fragoados. (martelados como era o metal na forja) Estando o Corregedor nesta conversa com o Arrais infernal chegou um Procurador (*), carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador: [(*) O procurador um mandatrio da Justia, aqui a representar a classe dos advogados] CORREGEDOR senhor Procurador! PROCURADOR Beijo-vos as mos, Juiz! Que diz este barqueiro? Que diz? DIABO Que sereis bom remador. Entrai, bacharel doutor, E ireis a dar bomba. (*)

    [(*) bomba de bombear, um mecanismo que retirava a gua que entrava nos barcos] PROCURADOR Este barqueiro zomba... Gostais de ser gozador? Essa gente que a est, para onde a levais? DIABO Para as penas infernais. PROCURADOR Dix! Eu que no vou para l! (uma interjeio de espanto) Outro navio ali est Muito melhor assombrado. (de melhor aspecto) DIABO Ora ests bem aviado! Entra, em muito m hora! CORREGEDOR Confessastes-vos, doutor? PROCURADOR Bacharel sou. No tive tempo! No pensei que era preciso, Nem de morte a minha dor. E vs, senhor Corregedor? CORREGEDOR Eu muito bem me confessei, Mas tudo quanto roubei Encobri ao confessor... PROCURADOR ...Porque, se o no tornais, (devolveres) No vos querem absolver, E muito mau devolver Depois que o apanhais. (de ter roubado) DIABO Pois porque no embarcais? PROCURADOR Quia speramus in Deo. (Porque esperamos por Deus) DIABO Imbarquemini in barco meo... (Embarcai no meu barco) Para qu esperais mais? Vo-se ambos ao batel da Glria, e, chegando, diz o Corregedor ao Anjo:

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    CORREGEDOR barqueiro dos gloriosos, Passai-nos neste batel! ANJO Oh! Pragas para papel, E para as almas odiosos! Como vindes preciosos, Sendo filhos da cincia! CORREGEDOR Oh! habeatis clemncia (tende clemncia) E passai-nos como vossos! PARVO , homens dos brevirio, (livros) Rapinastis coelhorum (vs rapinaste coelho) Et pernis perdigotorum (e pernas de perdiz) Para alm de mijar nos campanrios! CORREGEDOR Oh! No nos sejais contrrios, (no seja mau, ou no nos complique mais a situao) Pois no temos outra ponte! PARVO Beleguinis ubi sunt?(*1) (onde esto os carcereiros) Ego latinus macairos!(*2) (o meu latim macarrnico/maravilhoso!) [(*) 1- Beleguins eram os oficiais da Justia. Juane, o Parvo, est a reivindicar que algum venha prender aqueles dois. 2 - Frase cmica, dirigida provavelmente ao pblico porque o seu latim uma grande trapalhada.] ANJO A justia divinal Manda-vos vir carregados Porque tm de ser embarcados Naquele batel infernal. CORREGEDOR Oh! No atende So Maral! Com a ribeira, nem com o rio! (*) Penso que desvario Fazer-nos tamanho mal! [(*) Diz o corregedor que So Maral no encontra aquele sitio para lhes atender as preces e os salvar]

    PROCURADOR Que ribeira esta tal! PARVO Pareces-me vs a mim Como um cagado nebri, (*1) Mandado no Sardoal. Embarquetis in zambuquis! (*2) (embarcai na m barcaa - traduo provvel) [(*) 1 O Parvo continua a fazer o seu papel de denunciador daqueles que aparecem junto barca do paraso, chegando inclusive a dizer de onde que eles vm e ofendendo-os com isso. "nebri" uma palavra da falcoaria, que se refere ao falco-nebri. "cagado nebri" pois um insulto. "uma ave de rapina cagada, ou seja, mal feita" que vinha das terras do Sardoal. 2 - mais uma frase humorstica, a tentar imitar o latim, mas sem o conseguir.)] CORREGEDOR Venha a negra prancha para c! Vamos ver esse segredo. PROCURADOR Diz um texto do Degredo... DIABO Entrai, que c se dir! E assim que os dois entraram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor para a Brzida Vaz, porque a conhecia: CORREGEDOR Oh! Em m hora vos vejo, Senhora Brzida Vaz! BRZIDA J nem aqui estou em paz, Pois nem aqui me deixais. Cada hora a mim sentenciada: Foi justia que vs mandastes fazer... (*) [(*) Brzida com estas palavras queixa-se de que em vida fartava-se de ser perseguida pela lei e que fora sentenciada muitas vezes pelo Corregedor] CORREGEDOR E vs... volta a tecer E a urdir outra meada. (*)

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    [(*) E responde o corregedor que Brizida voltava sempre a fazer o mesmo, apesar das sentenas que lhe eram dadas] BRZIDA Diz , juiz da alada: Vem l o Pro de Lisboa? (*) Lev-lo-emos toa E ir tambm nesta barcada. [(*) O Pro de Lisboa, dizem os historiadores que era um escrivo muito conhecido na altura em Lisboa pela m fama. , pois uma pardia dirigida a uma figura da poca que j lhe apontava o inferno como destino final] Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos mal- aventurados, diz o barqueiro ao que chega: DIABO Vamos embora, enforcado! Que diz l o Garcia Moniz? (*) [(*) Figura provavelmente conhecida poca, cuja identidade hoje desconhecida e dada a muita suposio. Seria algum importante na corte portuguesa] ENFORCADO Eu te direi que ele diz: Que fui bem-aventurado Em morrer dependurado (pendurado) Como o tordo na buiz, (armadilha) E diz que os feitos que eu fiz Me fazem canonizado. (me fazem santo) DIABO Entra c, e governars (guiars o barco) At s portas do Inferno. ENFORCADO No essa a nau que eu quero. DIABO Digo-te eu que aqui irs. ENFORCADO Oh! Isso no, por Barrabs! (*) Ento se Garcia Moniz dizia Que os que morrem como eu Ficam livres de Satans... [(*) O criminoso que foi libertado no lugar de Cristo a pedido

    da populao enraivecida] E disse que Deus quisera De ser eu enforcado; E que fosse Deus louvado Pois em boa hora eu nascera; E que o Senhor me escolhera; E que por bem vi os beleguins. (pelo seu bem, foi levado aos oficiais da justia) E com isto mil latins, Muito lindos, feitos de cera. (*) [(*) Mil latins sero os discursos jurdicos e religiosos, de cera sero as velas. Para o enforcado, um condenado simplrio, faz tudo parte da mesma coisa] E, no passo derradeiro, Disse-me nos meus ouvidos Que o lugar dos escolhidos Era a forca e o Limoeiro; (*) [(*) O Limoeiro era uma priso da altura em Lisboa com a reputao de ser muito dura.] Nem guardio do mosteiro Tinha to santa gente Como o Afonso Valente Que agora carcereiro. DIABO Dava-te consolao isso, Ou algum esforo? (*) [(*) Pergunta o Diabo ao Enforcado se aqueles suplcios que passara na priso, mais as rezas de penitncia, lhe valeram de alguma coisa. O Diabo pergunta isto, como j se ver, para saber se o enforcado morreu arrependido dos seus pecados e se o seu sofrimento lhe serviu de expiao dos males que antes cometera e se encontrou salvao da sua alma atravs das palavras das rezas.] ENFORCADO Aquele com a corda ao pescoo, De muito pouco serve a pregao... E apenas leva a devoo De que h de voltar a jantar... Mas quem h de estar no ar (h de ser pendurado pela forca) Aborrece-se com o sermo. DIABO

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    Entra, entra no batel, Que ao Inferno hs de ir! ENFORCADO O Moniz esteve a mentir? Disse-me que com So Miguel Eu jantaria po e mel Assim que fosse enforcado. Ora, eu j passei o meu fado, E j feito o burel. (*) (e j passei o que tinha a passar) [(*) Burel era um tecido de artesanal feito de l. "J feito o burel" era uma expresso utilizada para dizer que "o trabalho j est feito ou cumprido" ou "j se fez o que se tinha a fazer"] Agora no sei o que isto: Ele no me falou ele em ribeira, Nem em barqueiro, nem em barqueira, Apenas no Paraso. Isto muito no seu juzo. E que era santo o meu barao... (era abenoada a minha corda) Eu no sei que aqui fao: Que desta glria improviso? (que espcie de glria esta?) DIABO Falou-te no Purgatrio? ENFORCADO Disse que era a Limoeiro, (que o purgatrio era a priso) E com ele o saltiro (o livro de salmos) E o prego vitatrio; (o discurso que se dizia antes de se enforcar algum) E que era muito notrio Que aqueles disciplinados (aqueles castigos) Eram horas dos finados (eram bnos para os condenados) E missas de So Gregrio. DIABO Quero-te desenganar: Se o que tivesses aceitado, Certo era que te salvavas. Mas no o quiseste aceitar... (*) [(*) Diz o Diabo que se os tormentos e as rezas, que o Enforcado levou na priso, lhe tivessem servido como expiao dos seus pecados, ter-se-ia salvado. Mas como

    no levou os castigos as rezas a srio para pedir perdo pelos erros do passado, vai para o inferno.] Diz o Diabo para todos os que esto dentro do seu barco Alto! Todos a alevantar, Que est em seco o batel! Alevante-se, Frei Babriel! Ajudai ali a apanhar! (*) [(*) O Diabo repara que a mar est a abaixar e quer pr todos a trabalhar para se ir embora, d ordens em especifico ao Frade] Vm Quatro Cavaleiros a cantar, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrescentamento de Sua santa f catlica morreram a lutar contra os mouros. Absoltos a culpa e pena como privilgio que os que assim morrem tm dos mistrios da Paixo d'Aquele por Quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontfices da Madre Santa Igreja. E a cantiga que assim cantavam a seguinte: CAVALEIROS barca, barca segura, Barca bem guarnecida, barca, barca da vida! Senhores que trabalhais Pela vida transitria, Memria, por Deus, memria (lembrai-vos, por Deus, lembrai-vos) Deste temeroso cais! barca, barca, mortais, Barca bem guarnecida, barca, barca da vida! Cuidado, pecadores, que, Depois da sepultura, Neste rio est a ventura (o destino) De prazeres ou de dores! barca, barca, senhores, Barca muito nobrecida, (nobre) barca, barca da vida! E passando frente da proa do batel dos danados, assim a cantar, com suas espadas e escudos, disse o barqueiro da perdio desta maneira: DIABO Cavaleiros, vs passais E no perguntais para onde ireis?

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    1 CAVALEIRO Vs, Satans, que presumis? Cuidado com quem falais! 2 CAVALEIRO Vs que nos querereis? Vejo que no nos conhece bem: Ns morremos nas Partes d'Alm, E no queirais saber mais. DIABO Entrai c! Que coisa essa? Que eu no consigo entender isso! CAVALEIROS Quem morre por Jesus Cristo No vai em tal barca como essa! Voltam a prosseguir, cantando, no seu caminho direitos barca da Glria, e, assim que chegam, diz o Anjo: ANJO cavaleiros de Deus, Por vs estou a esperar, Que morrestes a lutar Por Cristo, Senhor dos Cus! Sois livres de todo mal, Mrtires da Santa Igreja, Que quem morre em tal peleja (luta) Merece a paz eternal. E assim embarcam. FIM