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1 1 A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956 A Música Popular Brasileira na época de ouro Da era Vargas aos anos JK - Périodo de 1930-1956 Ricardo Monteiro Para que se compreenda a música produzida comercialmente no Brasil durante a chamada “Época de Ouro” - a qual coincidiu inicialmente com aquilo que se convencionou chamar de “Era do Rádio” -, devemos considerar o formidável peso das circunstâncias históricas que a contextualizam. Isso porque fatores de ordem econômica, política e tecnológica tiveram, nesse momento, peso determinante para a rápida construção, não só no Brasil como também em praticamente cada país da América Latina, de uma identidade nacional confeccionada sob medida para a era dos meios de comunicação de massa que então iniciava sua ascensão inexorável. (Ricardo Monteiro)

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MPB - Teoria musical

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inicialmente com aquilo que se convencionou chamar de “Era doRádio” -, devemos considerar o formidável peso das

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nesse momento, peso determinante para a rápida construção,não só no Brasil como também em praticamente cada país da

América Latina, de uma identidade nacional confeccionada sobmedida para a era dos meios de comunicação de massa que

então iniciava sua ascensão inexorável.

(Ricardo Monteiro)

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Para que se compreenda a música produzidacomercialmente no Brasil durante a chamada “Épocade Ouro” - a qual coincidiu inicialmente com aquiloque se convencionou chamar de “Era do Rádio” -,devemos considerar o formidável peso dascircunstâncias históricas que a contextualizam. Isso porquefatores de ordem econômica, política e tecnológica tiveram,nesse momento, peso determinante para a rápidaconstrução, não só no Brasil como também em praticamentecada país da América Latina, de uma identidade nacionalconfeccionada sob medida para a era dos meios decomunicação de massa que então iniciava sua ascensãoinexorável.

Ao final da I Guerra Mundial, o mundo havia se transformadoprofundamente, instaurando-se uma ruptura estruturaldefinitiva com relação à velha ordem que predominara aolongo de quase todo o século XIX. O chamado equilíbriopluripolar das potências ocidentais do século XIX - osimpérios britânico, austro-húngaro, russo, otomano e alemão- foi radicalmente desestabilizado, pois, ao final da guerra,os impérios austríaco e turco haviam sido dilacerados,decompondo-se em uma série de pequenos novos países,o império alemão havia sido derrotado e humilhado, e oimpério russo deixara de existir, abrindo espaço para aprimeira nação comunista do planeta - a futura União dasRepúblicas Socialistas Soviéticas. Os Estados Unidos, atéentão uma nação em franco crescimento, mas ainda muitoabaixo do peso político e militar dos impérios europeus,com a queda daqueles e com a continuidade de suaescalada, conquista definitivamente uma posição entre ospaíses mais poderosos do planeta. O crescimento de suaeconomia e sua vitória na guerra levam aquele país a umadécada de 1920 de aparente prosperidade e confirmaçãode seu inovador modelo político e econômico. No entanto,tal situação foi bastante superestimada, levando osinvestidores a uma confiança com relação ao futuro dosnegócios que a má distribuição de renda, o desemprego e a difícil reacomodação daeconomia e da sociedade à crescente automatização dos meios de produção desautorizavapor completo.

A defasagem entre as expectativas e as fragilidades da estrutura econômica reverteu-seem uma especulação desenfreada na bolsa de valores, que assistiu a valorizaçõesextraordinárias - e completamente inconsistentes - de seus papéis. Tal euforia levou osEstados Unidos a cometerem, entre outros tantos, um erro da maior gravidade, que ilustroua inexperiência daquele país com relação à sua nova posição de superpotência econômicamundial. Tal erro foi insistir em medidas protecionistas que, ao restringirem a lucratividadedos produtos de seus competidores internacionais e protegerem seus produtores internos,

leitura recomendada

Livro: História Socialdo Jazz

Autor: HOBSBAWM,Eric J.

Eric J. Hobsbawm é umintelectual que evita ecritica as duasprincipais tendênciasdos intelectuais quandotratam do jazz: a detentar impor os limitesda sua autenticidade oude reclamar para o jazza respeitabilidade damúsica erudita.

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em contrapartida dificultou enormemente a situação dos muitos países, seus devedores,que tiveram a geração de recursos para saldar seus débitos comprometida pelaintransigência e fechamento do mercado norte-americano. O somatório desses erros, emúltima análise, atraiu a onda que arrasou o belo castelo de areia da prosperidade norte-americana, levando à chamada “Terça-feira Negra”, 29 de outubro de 1929 - em outraspalavras, ao famoso “crack” da Bolsa de 1929.

Tal colapso levou os Estados Unidos a enfrentarem a pior crise econômica de toda a suahistória, a qual, ao contrário do otimismo das previsões iniciais, não foi de curta duração.Muito pelo contrário, arrastou-se e propagou aos poucos seu veneno de desestruturação,conduzindo a índices de pobreza e desemprego não vistos desde a Guerra da Secessão, eprolongando-se de 1929 até a entrada do país na II Grande Guerra, em 1941 - quando, sóentão, cedeu ante ao boom industrial que consolidaria os Estados Unidos na posição desuperpotência mundial.

O impacto do desastre financeiro norte-americano sobre as nações latino-americanas foide dimensões sem dúvida maiores do que as que lhe são tradicionalmente atribuídas.Tomemos o caso do Brasil. Ainda que a República Velha estivesse já de há muito defasadacom relação às transformações da estrutura sócio-econômica e das forças políticas ematuação no país, o que qualificaria o crack da Bolsa como um mero golpe de misericórdiaem uma estrutura já caduca, o regime getulista que a seguiu têm várias de suascaracterísticas definidas pelo processo macroeconômico que teve, em 1929, uma de suasbalizas mais evidentes. Tal comportamento torna-se tão mais evidente quanto mais nosdistanciamos do caso específico do Brasil e voltamos nosso olhar para uma perspectivamais ampla de âmbito regional. Basta, de fato, que se constate a comoção causada pelocrack da Bolsa por meio da verdadeira reação em cadeia que se sucedeu a ela no que dizrespeito à desestabilização política. Isso porque, entre 1930 e 1933, abandonaram oconstitucionalismo e a democracia (ainda que de fachada, legitimados por eleiçõesfraudulentas e a serviço dos interesses das oligarquias) nada menos do que Argentina,Brasil, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Peru, República Dominicana e Venezuela -9 países, desde que, generosamente, excluamos a instabilidade chilena após 1931, emque nove presidentes se revezaram no poder ao longo de apenas quinze meses, além doHaiti e da Nicarágua, ambos sob ocupação norte-americana, entre outros tantos casos deirregularidades que mereceriam somar-se à lista anterior.

O caminho por excelência seguido para a saída da crise foi, nos Estados Unidos como naAmérica Latina, o do intervencionismo do Estado na economia nacional, tanto no que tangeà produção em si quanto no que concerne ao trato das questões trabalhistas. Todavia, aversão latina do New Deal norte-americano assumiu contornos bastante peculiares, quelhe valeram, merecidamente, uma denominação própria: o chamado populismo.

No entanto, a mais drástica diferença entre o New Deal e o populismo está no fato de queo primeiro manteve a ordem constitucional e democrática, ao passo que o segundo deuorigem a regimes de exceção em que seus líderes não raro tenderam a permanecerindefinidamente no poder. Assim, o populismo procurou impor de cima para baixo uma“conciliação” nacional com a multidão de desempregados gerada pela crise pós-1929,com os órfãos da agricultura de exportação que, em um êxodo colossal, incharam asmetrópoles latino-americanas, com a esquerda em ascensão e com os furiosos movimentossindicais que lutavam por direitos e garantias para o trabalhador urbano.

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Some-se, agora, a esse caótico cenário político e social as inovações tecnológicasrelacionadas à ascensão dos meios de comunicação de massa. A primeira delas foi atransição, na indústria fonográfica, do sistema de gravação mecânico para o sistema elétrico.Longe de se tratar de um mero detalhe técnico, a mudança de sistema teve conseqüênciasbastante significativas. Devido à relativa deficiência do sistema mecânico no que tange ànitidez e qualidade do canto popular, em contraste com os resultados satisfatórios queoferecia no que concerne à gravação de música instrumental e do canto de tradição lírica, osistema elétrico e seu novo padrão de qualidade vem abrir espaço para a canção e para as

sutilezas de interpretação de cantores distantes da tradiçãodo canto erudito. A ascensão da popularidade da cançãodá-se de maneira vertiginosa, caminhando lado a lado comas transformações técnicas e estéticas, que conduzirão àcriação e/ou consolidação de padrões estilísticos própriospara o canto popular, os quais começarão a se definir já apartir da década de 1930.

A segunda delas foi o advento do rádio. Chegando ao Brasilem 1922, por ocasião das celebrações do Centenário daIndependência - ou, com maior rigor, a partir da fundaçãoda Rádio Clube de Pernambuco ainda em 1919 -, o rádioiniciou a partir da transmissão ao vivo de um discurso doentão presidente Epitácio Pessoa a sua escalada nacionalcomo o primeiro dos grandes veículos de comunicação demassa. Em 1923, Roquete Pinto (1884-1954) e HenriqueMorize fundaram a primeira emissora de rádio do Brasil, aRádio Sociedade do Rio de Janeiro, com prefixo PRA-2 -apenas um ano mais tarde do que a WEAF de Nova Iorque,a primeira rádio comercial do mundo. A década de 1930

iniciaria a chamada “Era do Rádio” no Brasil, merecendo destaque a fundação, a 12 desetembro de 1936, da Rádio Nacional, bem como do primeiro programa regular em cadeianacional do país - até hoje em atividade -, a “Hora do Brasil”.

A última, mas não em importância, é o advento do cinema falado, o qual chega ao país em1929 e que, apesar do desenvolvimento do cinema nacional com os estúdios da Atlântidae da Vera Cruz, não pôde (como também não puderam os mais bem estruturados cinemasargentinos e, sobretudo, mexicano) fazer face ao milionário e mais bem equipado cinemade Hollywood, o qual ajudou substancialmente a incutir a dominação cultural norte-americanano país, na região e, mais tarde, no mundo.

Roquete Pinto (1884-1954),o grande pioneiro do Rádio

no Brasil

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mais repertórioIndústria Cultural e Identidade Nacional - o projeto getulista

Uma característica do populismo em suas diversas manifestações - tanto no Brasil deVargas como na Argentina de Perón, no México de Cárdenas ou no Equador de Ibarra - foiuma paradoxal tendência a resguardar o poder das oligarquias econômicas e políticas pormeio do atendimento a certas reivindicações das camadas populares, preservando, assim,as elites do mal maior de uma revolução popular e ao mesmo tempo parecendo ampararos setores majoritários da sociedade, sem contudo implementar reformas que, de fato,alterassem o equilíbrio do poder dentro da sociedade. Dentro dessa dinâmica, a mobilizaçãodo imaginário por meio da construção e preservação de símbolos culturais tendeu a acobertaro imobilismo no que tange a reformas de peso na estrutura política nacional. Em suma, naspalavras de Olivier Dabène, em seu América Latina no século XX: “o discurso substituiucom freqüência a ação”.

Além disso, outros fatores contribuíram grandemente para a implementação de uma arrojadapolítica cultural na Era Vargas. Um deles foi que, diante do projeto de centralização políticade Getúlio, fez-se mister legitimá-lo por meio da afirmação de uma “unidade nacional” -conceito bastante discutível em uma nação semi-milenar e de dimensões continentaiscomo o Brasil, que abarca uma série de culturas distintas solidamente amadurecidas aolongo de séculos de gestação. A cultura do Recôncavo Baiano, por exemplo, apresentandoforte herança afro-brasileira, pouco tem a ver com a cultura tradicional Gaúcha, fortementeinfluenciada pela civilização platina, ou com a cultura dos colonos de ascendência italianae alemã da vizinha Serra Gaúcha, e muito menos com as centenas de tribos indígenas quesobrevivem mantendo sua língua e seus costumes, notadamente no Norte e Centro-Oestedo país - apenas para ficar em alguns poucos exemplos. Diante de um quadro de tamanhaheterogeneidade, como propor uma unidade cultural para esse país?

O caminho seguido pelo Brasil foi propor, comosíntese e padrão de brasilidade, a culturacarioca. Tal solução era natural, à medida quesegue a eterna tendência de propor, comopadrão de universalidade, o regionalismo dacultura hegemônica. Além disso, o Rio deJaneiro foi, no final do século XIX e princípio doXX, um dos grandes pólos de atração demassas de migrantes e imigrantes no Brasil.Conforme discutido no capítulo anterior, suaabsorção de uma importante leva de migrantesprovinda da Bahia após a Guerra de Canudosfoi um dos mais importantes fatores a seconsiderar no processo de gestação do sambacarioca. Atraindo, até por sua condição de CapitalFederal, elementos de todo o país - muitos dosquais na condição de formadores de opiniãoem suas regiões de origem -, o Rio de Janeiroe sua cultura passaram, desde o advento daRádio Nacional, a influenciar diretamente oscostumes, a maneira de falar, de se vestir, dese divertir, de viver e ver o mundo em todo oâmbito nacional. Samba, sol, praia, carnaval,

Cartaz anunciando a inauguração daRádio Nacional (1936)

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mulatas, malandragem, uma série de conceitos locaiscariocas passaram a povoar o imaginário de regiõesinterioranas, por vezes com forte presença étnica européiaou mesmo asiática, em que nenhum daqueles ideaispermitiria uma identificação imediata. Era o início damassificação e da estereotipagem cultural, processos quepromoveram e promovem até hoje uma difícil dialética emque o relativo enriquecimento do regional pela“modernidade” do “universal” tem não raro comocontrapartida o massacre e o sufocamento da indentidadecultural local, desvalorizada e desprestigiada pela chegadade um “novo” abalizado pela pujança do poder tecnológico,econômico e político da grande mídia.

Consciente do poder que o Estado tem de utilizar suamáquina para promover a construção da identidade culturalde um povo, Getúlio, como Hitler, Mussolini, Goebells, Stalinou tantos outros seus contemporâneos, procurou cooptara elite intelectual de seu tempo para, por meio de umagenerosa distribuição de cargos e de poderes, garantir aexcelência e a legitimidade de sua política cultural, e aomesmo tempo atrair para um grandioso projeto deconstrução nacional justamente a intelectualidade quemais recursos teria para questionar suas implicaçõespolíticas e filosóficas. Assim, enquanto o grande escritorGraciliano Ramos padecia a tortura do cárcere, umintelectual como Mário de Andrade era chamado paraorganizar o Instituto do Patrimônio Histórico e ArtísticoNacional, e para lá levava os poetas Manuel Bandeira eCarlos Drummond de Andrade, além do arquiteto LúcioCosta, que mais tarde, ao lado de Oscar Niemeyer, viria aassinar o projeto da nova capital, Brasília. Pela mesmalógica, enquanto a comunista Olga Benário era enviadapelo anti-comunismo de Getúlio para os campos deconcentração nazistas, onde ela viria a falecer, CândidoPortinari, um dos mais notáveis artistas plásticos brasileiros do século XX, recebia totalapoio de Getúlio, a ele devendo inúmeras oportunidades de demonstrar seu extraordináriotalento em murais e grandes obras de forte temática social (Portinari viria a se filiaroficialmente ao Partido Comunista.em 1945, logo após a queda de Getúlio, chegando acandidatar-se a deputado e, em 1947, a senador). Nessa plêiade de luminares domodernismo brasileiro, não poderia faltar a música. Na área erudita, Villa-Lobos foi convidadopara a Superintendência de Educação Musical e Artística, realizando seu sonho de implantarum ensino musical público, universal, gratuito e de qualidade no Brasil - antecipando-se,assim, a seu colega húngaro Zoltan Kodály (1882-1967), que se celebrizaria por implantar,no ensino de seu país, um notável método de aprendizado musical que leva seu nome.

mais repertório

“Café” (1935), deCândido Portinari(1903-1962). Portinarifoi um dos muitosintelectuais brasileiroscooptados peloGoverno de GetúlioVargas. Mesmo sendode esquerda, seutalento e prestígio lhevaleram funçõesimportantes nogoverno, bem comocondições adequadaspara dar continuidade àsua extraordinária obraartística.

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A música popular na Era Vargas

Embora a intromissão da máquina getulista sobre a música popular nem sempre se dessede forma direta, sua presença e influência nem por isso deixaram de se fazer sentir demaneira marcante. Quer pela intimidação de Revistas que apresentassem críticasconsideradas virulentas demais à figura de Getúlio, quer pela escolha dos artistas queganhariam notoriedade instantânea em todo o país por meio da Rádio Nacional, a ideologiae o poder na Era Vargas terminaram por deixar tantas marcas na música popular quantodeixaria nos demais setores da vida cultural nacional.

As questões geopolíticas dessa era fizeram-se sentir sobremaneira, por exemplo, na carreirade uma das mais queridas e conhecidas cantoras que o Brasil já produziu: a portuguesa denascimento (chegada ao Brasil aos 18 meses de idade) Maria do Carmo Miranda da Cunha,mais conhecida como a “pequena notável” Carmem Miranda (1909-1955). Carmem, quecomeçara a trabalhar ajudando na pensão de sua mãe na região da Praça XV, no Rio deJaneiro, e depois se tornaria balconista de loja de roupas, aos 20 anos de idade, transformar-se-ia em um fenômeno comercial, ao interpretar, em 1930, a marcha “Pra você gostar demim”, mais tarde conhecida como “Ta-Hi”, de Joubert de Carvalho (1900-1977). A inicianteCarmem venderia cerca de 36.000 discos com essa canção, em uma época em que umgrande sucesso representava uma tiragem de cerca de 1.000 cópias. Dois anos depois,estrearia no cinema - que se sonorizara havia apenas três anos - com o filme O CarnavalCantado no Rio, de Adhemar Gonzaga (1901-1978) e do grande cineasta Humberto Mauro(1897-1893), considerado por muitos como o pai do cinema brasileiro. O filme foi produzidopela Cinédia, o primeiro grande estúdio de cinema do país, estabelecido em 1930 e,surpreendentemente, até hoje em atividade. No ano seguinte, Carmem estrelaria, com os

mesmos diretores, A Voz doCarnaval. A partir disso, a cantorafreqüentaria as telas de cinemanacionais, seguindo uma médiade um filme por ano, até rodarseu último produzido no Brasil,Banana da Terra, de 1939,dirigido por João de Barro, omultifacetado compositor, diretore roteirista Braguinha (1907-).Esse filme, em que Carmemcanta o clássico “O que é que abaiana tem?”, de Dorival Caymmi(1914-), reúne alguns dos maissignificativos nomes da cena damúsica popular brasileira daépoca, como sua irmã AuroraMiranda (1915), Dircinha Batista(1922-) e a irmã Linda Batista(1919-1988), Emilinha Borba(1923-), Almirante (1908-1980),Orlando Silva (1915-1978),Carlos Galhardo (1913-1985),Alvarenga (1912-1978) eBentinho (1914-), e o Bando daLua (1929-1955).

Carmem Miranda (1909-1955), no papel de “CarmemNavarro”, contracena com Groucho Marx no filme

americano “Copacabana”, de 1947.

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Com o desgaste político dos Estados Unidos ao longo da década de 1920 devido a suasintervenções na América Central, sentidas como iniciativas imperialistas por vários setoresda sociedade latino-americana, a América de Hoover e Roosevelt inicia aquilo que ficouconhecido como “Política da Boa Vizinhança”. Seu princípio era evitar, ao máximo, o enormedesgaste de novas intervenções, procurando passar uma imagem positiva e amistosa dopaís dentro do âmbito latino-americano e buscando exercer sua influência por meio dasvias econômica e diplomática, e não pela militar. O intervencionismo norte-americano haviasido fundamentado com base no corolário Roosevelt (de Theodore Roosevelt) da DoutrinaMonroe (da célebre e ambígua frase “A América para os Americanos”), pregando que osEstados Unidos teriam o “dever” de intervir nas nações “menos civilizadas”, cujo governodemonstrasse “incapacidade permanente” e “comportamento errôneo”. Mais tarde, WoodrowWilson lançaria sua “Doutrina Wilson”, pela qual os Estados Unidos se reservariam odireito de não reconhecerem governos que não proviessem de eleições. Tal Doutrina foisuspensa pela Política da Boa Vizinhança, priorizando-se a estabilidade em detrimento dademocracia e livrando os Estados Unidos da embaraçosa situação de eventualmente nãopoderem reconhecer como legítimas ditaduras implantadas com seu auxílio direto ouindireto.

A Política da Boa Vizinhança foi uma das grandes responsáveis pela promoção, dentro damídia americana, de artistas latino-americanos que, estilizando do delicado ao caricaturala cultura de seus países de origem, passaram a ter seus trabalhos projetados em âmbitomundial. Um pioneiro dessa constelação latina foi o inigualável Carlos Gardel (1890-1935)- que, segundo um dito popularargentino, mesmo após sua morte,“canta cada vez melhor”. Cantorbrilhante, Gardel encarnou o idealtanguero como nenhum outro artistaantes ou depois dele. Representoutambém como ninguém a Argentinaem sua época áurea, em que BuenosAires, a “Paris Austral”, era a capitalde um país que figurava no estreitohall dos mais ricos e avançados domundo - façanha até hoje inigualadapor qualquer outro país latino-americano, e que lhe foi mais tardelamentavelmente usurpada por umasucessão de governos golpistasoportunistas e canhestros, muitoaquém da tarefa de dirigir os destinosde uma grande nação. O CinemaArgentino, que dominou, inicialmente,o mercado latino-americano, viu-sepouco mais tarde tambémprejudicado pelas decisões políticasde seus governantes. Recusando-sea cortar relações com o Eixo durante aII Guerra Mundial, a Argentina teve emrepresália seu cinema boicotado detodas as maneiras possíveis pelopoderio americano, o que terminoufazendo o México ocupar a lacunadeixada pela nação platina.

Carlos Gardel (1890-1935) e Mona Maris emcena antológica do filme “Cuesta Abajo” (1934),

seu primeiro rodado nos Estados Unidos.

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Outro fator da maior relevância foi o fato de que a II Grande Guerra limitou o mercado deexportação dos filmes norte-americanos ao âmbito latino-americano. Com isso, e de olhono mercado regional, Hollywood passou a interessar-se por astros latinos como LupeVélez, Desi Arnaz, César Romero e nossa Carmem Miranda.

É assim que a pequena notável estréia, em 1940, em Hollywood, na 20th Century Fox, comDown Argentine Way (traduzido para o português como Serenata Tropical), filme colorido (oprimeiro filme comercial em cores, Vaidade e Beleza, foi rodado em 1935) dirigido por IrvingCummings, em que interpreta, entre outras canções, “South American Way”, de Jimmy MacHugh e Al Dubin, o clássico “Mamãe eu Quero”, do violonista e comediante Jararaca (1896-1977) e de Vicente Paiva (1908-1964), marcha que fez história no carnaval de 1937, e“Touradas em Madri” (1938), divertida marchinha que Braguinha e Alberto Ribeiro (1902-1971) escreveram inspirados por um tema trágico: a Guerra Civil Espanhola, que representoua ante-sala da II Guerra Mundial. Nos treze filmes de Hollywood de que ainda viria a participaraté 1953, Carmem daria visibilidade mundial a clássicos da música popular brasileiracomo “O Tique-taque do meu coração”, composta em 1935 por Alcyr Pires Vermelho (1906-1994) e Walfrido Silva (1904-1972), “Aquarela do Brasil”, paradigma do gênero “samba-exaltação” criado em 1939 pelo genial Ary Barroso(1903-1964), “O Que é que a baiana tem?”, “Tico-tico no Fubá”, a obra-prima de Zequinha de Abreu(1880-1935) composta ainda em 1917, que setornaria, a partir daí, uma das músicas brasileirasmais conhecidas internacionalmente.

Com o advento do rádio - e, por conseguinte, doprimeiro dos meios de comunicação de massa -surge no Brasil, ainda que de maneira embrionária,aquilo que hoje conhecemos como “culto àscelebridades”. A visibilidade em âmbito nacional -e mesmo internacional - de artistas que se faziamouvir em todo o Brasil pela voz da Rádio Nacional,e cujas imagens se tornavam igualmentedifundidas pela popularização do cinema, aliando-se à impessoalidade e ao anonimato crescentedo indivíduo nas grandes cidades, foi gerando umtipo de carência potencializada pela aura míticacriada em torno daqueles que eram contempladospela fama. Embora esse processo fosse sedesenvolver lentamente ao longo de décadas,seus primeiros efeitos se fizeram sentir não nageração de pioneiros como Baiano e MárioPinheiro, mas na fase seguinte, em que um artistacomo Orlando Silva receberia, merecidamente, aalcunha de “Cantor das Multidões”, e fazendo de Linda Batista, durante onze anos, uma daschamadas “Rainhas do Rádio”. No entanto, é bom frisar que tais artistas, embora fizessemfama, raramente faziam fortuna. A sazonalidade da profissão, a remuneração nem semprecondizente com os lucros que traziam a seus empresários e gravadoras, uma posturaprofissional pautada mais pela paixão pelo palco do que pela racionalidade da viabilidadefinanceira, o comprometimento da saúde física e financeira por vidas não raro desregradas,um mercado ainda limitado em termos de volume de negócios: esses foram os principaisfatores que levaram ao por vezes descomunal descompasso entre prestígio e situaçãofinanceira dos artistas da segunda geração de nossa indústria fonográfica.

Zequinha de Abreu (1880-1935),autor do clássico brasileiro “Tico-

Tico no Fubá”, divulgadomundialmente por Carmem Miranda.

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Orlando Silva (1915-1978), “O Cantor dasMultidões”. Um acidenteaos 16 anos mutilou o péesquerdo do cantor, oque lhe valeu o andarlevemente trôpego e apropensão ao vício damorfina (utilizada notratamento do ferimentopara lhe aliviar a dor), oqual lhe destruiu acarreira.

mais repertório

De qualquer forma, na inauguração do Hall da Fama daindústria cultural brasileira, vale mencionar ao menos doisgrupos de cantores: a chamada “quadra de ases” e as“cantoras do rádio”.

A “Quadra de Ases” era uma maneira de se referir aos quatrocantores de maior popularidade da década de 1930:Francisco Alves (1898-1952), o “Rei da Voz”, Carlos Galhardo,Orlando Silva e Sílvio Caldas (1908-1998), o CaboclinhoQuerido.

Francisco Alves (também conhecido pelo pseudônimo“Chico Viola”) foi um dos músicos mais influentes de seutempo. Consagrando-se ainda na década de 1920 e dirigindo,desde 1934, um programa de rádio, tornou-se um contatofundamental para diversos compositores desejosos degravar suas canções, o que ele tratava de providenciar comgrande empenho, pedindo em troca que seu nome fosseadicionado, como parceiro, pelos autores da canção -segundo alguns, como forma de dar mais visibilidade àcanção a ser gravada; segundo outros, por merooportunismo.

Francisco Alves (1898-1952), o“Rei da Voz”, cantor de

importância fundamental nasduas primeiras fases da história

da música popular brasileira.

Carlos Galhardo, argentino, filho de pais italianos eradicado no Brasil, lançou sucessos como Boas Festas(1932), de Assis Valente (1911-1958), uma bela e tristemúsica natalina que praticamente se folclorizou aolongo do século XX, como alguns sucessos de Caymmi,sendo o melhor exemplo sua célebre Suíte dosPescadores. Além desse, há que se mencionar tambémseu grande êxito de 1941, a impagável marchinha Ala-la-ô, dos mestres do gênero Haroldo Lobo (1910-1965)e Nássara (1910-1995), gravada com um célebre eimortal arranjo de Pixinguinha.

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Carlos Galhardo, argentino, filho de pais italianos e radicadono Brasil, lançou sucessos como Boas Festas (1932), deAssis Valente (1911-1958), uma bela e triste música natalinaque praticamente se folclorizou ao longo do século XX, comoalguns sucessos de Caymmi, sendo o melhor exemplo suacélebre Suíte dos Pescadores. Além desse, há que semencionar também seu grande êxito de 1941, a impagávelmarchinha Ala-la-ô, dos mestres do gênero Haroldo Lobo(1910-1965) e Nássara (1910-1995), gravada com umcélebre e imortal arranjo de Pixinguinha.

Orlando Silva, considerado um dos maiores cantores damúsica brasileira de todos os tempos, foi descoberto porFrancisco Alves em seu programa de rádio, e logo se tornariaum de seus poucos rivais em termos de sucesso epopularidade. Integrando o casting inicial da Rádio Nacional,lançou sucessos como Lábios que Beijei (1937), de LeonelAzevedo (1905-1980) e J. Cascata (1912-1961), o clássicoCarinhoso (1937), com letra de Braguinha sobre música de1928 composta por Pixinguinha, Rosa (1937), com letra deOtávio de Souza sobre uma valsa composta em 1917 porPixinguinha, A Jardineira, de Benedito Lacerda (1903-1958)- músico surpreendentemente pouco estudado para quemteve um papel tão fundamental na fixação musical do sambae do choro - e de Humberto Porto, o qual recolheu essetema folclórico na Bahia.

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Carlos Galhardo(1913-1985), grandecantor brasileiro,realizou gravações degrande importânciahistórica, notadamenteno que tange ao Frevopernambucano, de quefoi intérprete magistralna década de 1950.

mais repertório

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Regional de Benedito Lacerda (1903-1958),em foto de 1947 (Lacerda está ao centro,

empunhando a flauta que tocavamagistralmente).

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Por “Cantoras do Rádio” compreende-se uma constelaçãode nomes da música popular brasileira encabeçada pelasjá citadas Carmem e Aurora Miranda, Linda e Dircinha Batista,e ainda por personalidades como Emilinha Borba (1923-),Marlene (1924-), entre outras.

Aurora Miranda começou sua carreira no início da décadade 1930, lançando, em 1933, o sucesso Você só...mente,de Hélio Rosa e Noel Rosa para, no ano seguinte, deixardefinitivamente seu nome marcado na história da músicabrasileira com o lançamento do clássico Cidade Maravilhosa(1934), que André Filho (1906-1974) compôs a partir docélebre epíteto que o escritor Coelho Neto (1864-1934) deuao Rio de Janeiro com seu livro de contos “A CidadeMaravilhosa” (1928), em uma época em que o Rio sereestruturava urbanamente visando passar pela mesmametamorfose que a Paris do Barão Haussmann. Em 1936,Aurora e sua irmã aparecem no filme “Alô, Alô Carnaval”, deAdhemar Gonzaga, cantando o imortal sucesso Cantoresdo Rádio, de João de Barro, Lamartine Babo e Alberto Ribeiro(1902-1971). Em 1940, casa-se com Gabriel Richaid emuda-se para os Estados Unidos, abandonando, aos 25anos, sua carreira meteórica.

Entre os muitos sucessos de Linda Batista, merecemespecial destaque os clássicos Nega Maluca (1948), de Fernando Lobo (1915-1996), paido compositor Edu Lobo (1943-), e de Evaldo Rui (1913-1954), e Vingança (1951), do

mestre do samba-canção e da dor-de-cotovelo LupicínioRodrigues (1914-1974). Já a Dircinha devemos o PiriquitinhoVerde (1938), de Nássara e Sá Roris, e Nunca (1951), deLupicínio. Emilinha gravou Chiquita Bacana (1949), deBraquinha e Alberto Ribeiro, e Tomara que Chova (1950), dagenial dupla Paquito (1915-1975) e Romeu Gentil (1911-1983) - aos quais devemos também Daqui não saio (1950)e Jacarepaguá (1949). A rivalidade entre Emilinha e Marleneexistiu mais na mídia que no coração dessas duas grandescantoras, e devemos à última a gravação de Lata D’Água(1952), de Jota Júnior (1923-) e Luiz Antônio, Qui Nem Jiló(1950), dos reis do baião Luiz Gonzaga (1912-1989) eHumberto Teixeira (1916-1979) e Nasci para Bailar (1949),de Fernando Lobo e Joel Almeida.

Aurora Miranda (1915-),irmã de Carmem Miranda,

lançou o estrondososucesso “Cidade

Maravilhosa” (1934), quedécadas mais tarde se

tornaria o hino da cidadedo Rio de Janeiro.

Linda Batista (1919-1988), uma das imortais

Rainhas do Rádio

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Ary Barroso (1903-1964),um dos maisimportantescompositores brasileirosde todos os tempos, como comediante Macalé nogongo que marcava adesclassificação doscalouros de seu célebreprograma de Rádio“Calouros em Desfile”.Ary tornou folclórico seuhorror ao ouvir oscandidatos anunciaremque iriam cantar um“sambinha” -principalmente, comonão raro acontecia,quando o samba eradele...

Note-se, aqui, que a escala industrial de produçãodemandada pelo rádio, sempre à procura de um novosucesso, foi um estímulo extraordinário para a produçãonão de uma cultura pautada por uma massificaçãorepetitiva, conservadora e medíocre, mas pela,criatividade de compositores como Noel Rosa, AryBarroso e Dorival Caymmi que beira - ou mesmo atinge- a genialidade, apresentando todas elas o dificílimoequilíbrio entre inovação e compromisso com a tradição.

Noel de Medeiros Rosa (1910-1937), apesar de suacurta vida, produziu uma obra que lhe garantiu um lugarpermanente no panteon dos maiores compositoresbrasileiros de todos os tempos. Com apenas 19 anos,junta-se a seu amigo da Vila Isabel, João de Barro (violãoe vocal), para formar o Bando dos Tangarás (1929-1931), ao lado dos também “vizinhos” Almirante(pandeiro e vocal), Henrique Brito (1908-1935) no violãoe Alvinho (1909-), no violão e vocal. Os Tangarás inovarama paisagem da música brasileira ao gravarem NaPavuna (Almirante e Homero Dornelas), em 1929,utilizando, pela primeira vez na indústria fonográfica, umacompanhamento de percussão em forma de batucadacom tamborim, cuíca, surdo e pandeiro.

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ais Segundo Luiz Tatit, em sua célebre obra “O Cancionista”,

as quase 300 canções que Noel Rosa (1910-1937)compôs, em cerca de sete anos de carreira, equivalemà produção de quase 40 anos de trabalho de umcompositor mediano.

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“Roda de Samba”(1957), pintura deHeitor dos Prazeres(1898-1966). Além degrande compositor, ohumilde Heitor,seguindo seu estilo“naïf”, foi também umdos pintoresbrasileiros maisimportantes do séculoXX.

No entanto, não seria como arranjador, ou mesmo comomelodista, que Noel inscreveria seu nome na história. Abeleza musical do conjunto de sua obra deve-se, em muito,a suas parcerias com melodistas prodigiosos como IsmaelSilva (1905-1978), Vadico (1910-1962), Cartola (1908-1980)e Heitor dos Prazeres (1898-1966), entre outros. É, sobretudocomo letrista, que Noel Rosa apresenta o difícil equilíbrioentre ousadia criativa e domínio da tradição, que definemsua genialidade. Nesse aspecto, um dos grandes méritosde Noel é trazer para o universo da música brasileira umacaracterística que, há muito, já marcava a lírica da músicaArgentina (na época, a nação mais moderna da AméricaLatina): a utilização refinada e artesanal do registro coloquialda fala urbana - principalmente aquele utilizado pelamarginalidade. Enquanto tal fenômeno na Argentina foi detal forma marcante para a cultura daquele país que chegoua legitimar um jargão quase que dialetal, conhecido comolunfardo, sobre o qual muitas pesquisas e discussões forame são travadas, o léxico e as construções lingüísticas damalandragem carioca não chegaram a uma sistematizaçãode uso de tamanho porte.

Além disso, e do prodigioso volume da obra que Noelconseguiu criar em apenas sete anos de atividade, o poetada Vila apresentou, em sua obra, uma fenomenalsensibilidade às grandes questões de seu tempo. Noel foium cronista que registrou, em suas canções, como ninguém,o impacto social que a queda da Bolsa teve sobre as classesmédia e baixa do Rio de Janeiro. O guarda civil que não viu o seu salário em O Orvalho VemCaindo (1933), o Seu Jacinto (1932,) que aperta o cinto pra botar as calças no lugar, ohomem que está Sem Tostão (1932) para pagar o aluguel, o malandro que se perguntaCom Que Roupa Eu Vou? (1930), já que seu paletó virara estopa e o dinheiro não estavafácil de ganhar mesmo para um cabra trapaceiro, essas canções e mais muitas outrasformam um grande mosaico que retrata a tentativa de se manter uma certa distinção eelegância - o charm do malandro - mesmo diante de graves adversidades financeiras esociais.

Nesse aspecto, cabe uma interrogação. Por que o humor? Por que não uma música pregandoa mobilização social, ou pelo menos lamentando a penúria da vida com dramaticidade oucinismo, como tão bem o faz o tango? Por que, como já comentamos, Braguinha utilizou ohumor para tratar, no calor da hora, de um tema trágico como a Guerra Civil Espanhola? Seum tal humor fosse algo intrínseco à brasilidade, onde estaria ele agora, em que osproblemas sociais das grandes cidades inspiram formas cancionais de grandeagressividade como o RAP?

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Para discutirmos essa questão, vale abandonar um poucoa linha do samba para nos atermos ao outro grande gêneroda Era Vargas: a marchinha.

Se o samba se servia esporadicamente do humor comorecurso para enriquecer estilisticamente suas letras, apresença desse recurso estilístico na marchinha, se bemque não fosse obrigatória, era, todavia, extremamentecomum, quase que constituindo uma das característicasessenciais do gênero. Dentre os diversos compositores quese destacaram no gênero, vale comentar os dois grandesgigantes do gênero. O primeiro deles é e Lamartine Babo(1904-1963), que gravou sua parceria com Noel, A-E-I-O-U,em 1932, mesmo ano em que lança a imortal O Teu CabeloNão Nega. São marchinhas suas ainda os clássicos LindaMorena (1933), Aí, Hein? (1933), e Joujoux et Balangandans(1939). O segundo é Braguinha, autor de clássicos comoLinda Lourinha (1934), Touradas em Madri (1938), a parceriacom Noel que gerou a belíssima As Pastorinhas (1938), Yes!Nós Temos Bananas (1938), China Pau (1943), ChiquitaBacana (1949), Vai com jeito (1950).

O tom humorístico das marchinhas, de maneira geral, advémnão da maestria e sabedoria de um malandro que sabeevitar ou escapar de situações difíceis, mas de um olharaparentemente ingênuo que tem na falsa ocultação desentimentos cuja exposição era moralmentedesaconselhável, como o desejo ou a covardia, a essênciade sua malícia. Desta forma, a marchinha e o samba eramopostos que se complementavam.

O que poderia haver por trás dessa graça que permeava oolhar do brasileiro sobre o mundo?

Duas possibilidades nos chamam a atenção. Uma, de cunho mais romântico e saudosista,aponta para uma habilidade hoje perdida de se rir e fazer graça da própria desgraça, eassim reunir forças para seguir enfrentando as vicissitudes da vida. Ao invés da depressão,da revolta, das drogas ilícitas, elementos marcantes da vida urbana contemporânea, obom-humor, o charme, a comunhão propiciada pelo consumo público das drogaslegalizadas, como a cachaça, o whisky, a cerveja, o chopp, o charuto, o cachimbo e o cigarro.Um mundo em que se contava com a cumplicidade do outro para ridicularizar a dor, ao invésde um mundo hostil em que não se pode ou deve confiar no outro para nada, muito menospara se expor a vulnerabilidade causada pela dor existencial que aflige intensamente atodos. Um tempo em que se lidava com as adversidades ou com a maestria da malandragemou com uma falsa inocência brejeira, igualmente eficaz, contrapondo-se a um presente emque as grandes questões parecem não oferecer saída.

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Lamartine Babo, umdos grandes mestresda marchinha, foitambém o autor doshinos de alguns dosmais importantestimes do futebolcarioca, tais comoAmérica, Botafogo,Flamengo,Fluminense e Vascoda Gama.

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Uma outra possibilidade, porém, mais pragmática e pós-moderna, questiona esse humor, procurando a máscara dotrágico por sob a do riso. Não seria esse humor umaestratégia de enfrentamento que não se assume como tal,escondendo sua agressividade sob a máscara do cômico?Por detrás da malícia, um jogo de intenções que não seassume, que poderia ser lido como metáfora de conflitossociais que não se ousa expor e muito menos enfrentar.Assim, a espanhola que queria ver o brasileiro tocandocastanhola e pegando touro a unha - missão da qual elefoge - teria cobrado uma definição de um país que, na época,hostilizava tanto a esquerda comunista de Luís CarlosPrestes quanto a direita integralista de Plínio Salgado. Opaís que tinha bananas pra dar e vender pro mundo inteiro,homem ou mulher,dava com suas bananas uma respostacategórica aos que viam ou queriam ver o Brasil como umaRepública das Bananas, ou seja, um país subjugado peloimperialismo e controlado pelas multinacionais. Da mesmaforma, a menina que chega em casa às 4 da manhã e,enquanto a escada vai subindo, na boca dos vizinhos vaicaindo, representa não só a opressão de uma mulher urbanaque não cabe mais nos modelos de submissão patriarcalpré-industriais, mas de toda uma sociedade que não cabemais em tais parâmetros. Note-se que tais leituras,independentemente de terem ou não sido legitimadas pelasdeclarações ou pela biografia de seus autores, estãopatentes nas canções a que se referem, não substituindoseu sentido mais óbvio, mas se somando a ele e ocontaminando da mesma forma em que as grandesquestões objetivas de uma época contaminam,inequivocamente, o pretenso subjetivismo até das obrasaparentemente mais pessoais de um artista.

Seja qual for a razão, o fato é que esse bom humor quepredominaria durante o período totalitário de Vargas (1930-1945) cairia lentamente junto com ele, e à alegriacaracterística desse período se sucederia uma fase divididaentre a profunda tristeza da fossa ou dor-de-cotovelo e abrejeirice da música da grande diáspora nordestina.

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Braguinha (1907-), emmarchas bonitas,bem-humoradas eaparentementeingênuas como“Touradas em Madri”(1938) e “Yes! NósTemos Bananas”(1938), abordavametaforicamentetemas delicados comoa Guerra CivilEspanhola e oimperialismo norte-americano.

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A Música no final da Era Vargas: de 1945 a 1958

O Samba-canção

O final da II Grande Guerra e a participação de tropasbrasileiras no confronto a partir de 1944 foram alguns dosfatores que tornaram insustentável a permanência doEstado Novo - regime próximo ao Fascismo contra o qualos exércitos aliados diziam lutar. No panorama geral daAmérica Latina, o processo de democratização do pós-guerra revela toda sua dimensão se considerarmos que,entre 1944 e 1946, Brasil, Argentina, Bolívia, Peru, Venezuela,Guatemala e Haiti, passaram de regimes ditatoriais parademocracias. A recuperação econômica tanto dos EstadosUnidos como de países latino-americanos como o Brasil,Argentina e México, que viveram, durante a guerra, umprocesso de substituição de importações industriais e deexportação de matérias-primas, alavancou um período deprosperidade e de aceleração do desenvolvimentoeconômico, político e social em praticamente todo ocontinente.

Ora, se considerarmos a vitória na guerra, a democratizaçãoe o boom econômico que afetou o Brasil como toda aAmérica Latina, surge uma questão das mais intrigantes:

Por que a fossa?

De onde viria a tristeza profunda, o vazio, a sensação deabandono e de angústia descrita nessas canções?

Por um lado, podemos cogitar que o existencialismo quetomou conta da Europa do Pós-Guerra possa ter sido emparte responsável por uma visão angustiada do mundo, davida, de suas contradições e das duras escolhas a que nosobrigam as circunstâncias, como propagam as obras deJean-Paul Sartre (1905-1980) e Albert Camus (1913-1960).No entanto, o trajeto entre o humor de Braguinha, Noel eLamartine e o universo de Antônio Maria (1921-1964) eDolores Duran (1930-1958) parece nos cobrar umaexplicação mais consistente para uma tão radicaltransformação. Uma possibilidade seria retomar a linha deraciocínio pela qual o humor apenas mascararia tensõessociais mais profundas que o ambiente autoritário daRepública Velha, e pior ainda do Estado Novo, nãopropiciariam expor de maneira direta.

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O grande cronista ecompositor AntônioMaria (1921-1964), umdos maiores mestresdo samba-canção,viveu como poucos aatmosfera boêmia doRio de Janeiro dadécada de 1950.

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Por outro lado, podemos simplesmente considerar que talestado de espírito já estava nas entranhas de grandesgêneros latino-americanos como o tango e o bolero, e que ocontato maior com esses gêneros, nos anos da guerra,simplesmente contagiou nossa música com uma outravisão de mundo - a qual, por sinal, não tardaríamos aabandonar. Essa visão, menos especulativa e mais presa àsolidez dos fatos, todavia não resolve o problema, masapenas o transfere para uma outra instância. O contato como tango e sua tragicidade, por exemplo, estava longe de seruma novidade.

Mas o problema maior é ainda pior do que esse: o fato é queum exame em profundidade, comparando o samba-cançãoao bolero aponta, no que tange à questão de seu universoemocional, para a sensação de que suas diferenças podemser mais significativas que suas semelhanças. Tomemos,por exemplo, a abordagem da temática amorosa em ambosos estilos. Enquanto o tango e o bolero tendem a falar depaixões arrebatadoras, provindo a dor dos impedimentos àconsumação ou continuidade desse amor, Esses moços(1948), de Lupicínio Rodrigues, e Ninguém me Ama (1952),de Antônio Maria, questionam o amor, e da fragilidade e docaráter ilusório desse sentimento é que nasce a dor do poeta.Trata-se, como se vê, de uma grande aproximação com ocredo existencialista, à medida que se questiona o amorcomo essência, mas não como existência, e precisamentedessa contradição entre o idealismo e a realidade, bem comoda necessidade de escolhas daí decorrente, nascem ossentimentos de vazio e de angústia.

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O gaúcho LupicícnioRodrigues (1914-1974), mestre dosamba-canção, traz,em sua obra, algunselementos poéticos emusicais bastantepróximos do universotanguero da vizinhaArgentina. Provainconteste disso foi atrajetória de sucessode sua cançãoVingança (1951), quevoltou a fazer sucessoem 1980 ao serregravada em BuenosAires por AlbertoMarino como tango,com o nome de“Venganza”.

1919A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956

Essas observações, concernentes ao universo lírico dascanções, tornam-se ainda mais perturbadoras seconsiderarmos também questões musicais. Embora hajasignificativas aproximações rítmicas entre certos tipos deboleros e de sambas-canções, bem como afinidades deestruturas harmônicas e melódicas, ao considerarmos não oscasos isolados - ainda que possivelmente majoritários - mas opercurso seguido pela linguagem do samba-canção,verificaremos diferenças profundas que não podem serdesconsideradas. A primeira diz respeito à enormecomplexificação harmônica que, aos poucos, foi tomando contada canção brasileira da década de 1950, a qual, como seobserva na surpreendente Duas Contas (1953), única cançãodo genial multi-instrumentista Garoto (1915-1955), finalmentese apropriou dos acordes alterados, das cadências cromáticase das sétimas e nonas que, desde a década de 1930, jáimperavam na música norte-americana - fenômeno esse quenem de longe se deu com a mesma intensidade no bolero ouno tango pré-Piazzolla. No entanto, esse ceticismo com relaçãoao amor não parece poder prover do universo lírico da músicaamericana, nem na época de The Man I Love (1935), de George(1898-1937) e Ira Gershwin (1896-1983), nem na de Laura(1944), de Johnny Mercer (1909-1976) e David Raksin (1912-2004).

No entanto, há mais hipóteses a serem investigadas de maneiraprodutiva.

No que tange à música e à gradual complexificação harmônica - a qual terminaria porconduzir aos grandes avanços da Bossa Nova e da MPB dos anos 1970 -, pode-se indagarse o cromatismo e a assimilação das dissonâncias não tenderia a corresponder à tentativade construção de um simulacro da estrutura social em que a polarização entre as diversascamadas sociais visse as divisões entre elas se tornarem menos marcadas. Ao invés daconcentração da riqueza de um lado e da pobreza de outro, da consonância de um lado e dadissonância de outro, configurou-se um universo de matizes mais contínuos. A tendência àpresença de acordes de repouso com elementos de dissonância representaria, por exemplo,uma sociedade em que um bairro ainda de classe média como a Ipanema dos anos 1950pudesse desfrutar de um padrão de vida em que a cultura e o lazer tinham um espaçoprivilegiado, em um país em que a franca democratização por fim parecia querer dar voz aosmais diversos segmentos sociais. Segundo essa lógica, o aumento gradativo dadesigualdade social, que culminou com o grande desequilíbrio em que vivemos nasociedade brasileira contemporânea, poderia, portanto, tender à produção de simulacrosharmônicos novamente polarizados, em um impensável retrocesso e empobrecimento dalinguagem musical. Todavia, esse quadro aparentemente absurdo parece oferecer umaresposta bastante coerente para os caminhos seguidos pela linguagem musical brasileirada década de 1950 até a de 2000.

Aníbal AugustoSardinha, o “Garoto”

(1915-1955), antecipouesteticamente aBossa-Nova ao

compor sua obra-prima “Duas Contas”

(1953) cinco anosantes de o disco

“Chega de Saudade”marcar oficialmente oinício da Bossa Nova.

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Já no que tange à lírica, uma explicação que também parece bastante produtiva é a de queos invariáveis desencontros amorosos e a profunda solidão deles resultante responderiaà construção de um simulacro que procurava representar um dos processos sociais quemais marcaram o século XX: o fim do patriarcalismo e a ascensão da mulher rumo àigualdade de direitos e poderes para com o homem. A desigualdade entre os gêneros,fundamental em certas estruturas sociais cujas instituições são baseadas na caça, naagricultura ou na guerra, esvazia-se de sentido nas sociedades industriais, em que otrabalho intelectual, e não o físico, é preponderante. O crescimento da industrialização e daurbanização ocorreu no Brasil pari passu com um processo em que, se, no alvorecer dosanos 1900, o quadro de cantores era predominantemente masculino e as poucas cantoras

eram vistas com bastante suspeita moral, os anos 1950 jáapresentariam um cenário bem mais equilibrado entre osgêneros. Por outro lado, as cantoras passarampaulatinamente a cantar o universo e a condição da mulher,dando voz a uma visão de mundo diferente da do homem(mesmo quando os autores eram homens assumindo umavisão feminina). Ao mesmo tempo, essa visão foi deixando apassividade da mulher que apenas observa, ainda queperplexa, as atitudes do homem, como as enunciadoras deCamisa Listada, canção de Assis Valente gravada em 1937por Carmem Miranda, ou de Camisa Amarela, canção de AryBarroso gravada em 1939 por Aracy de Almeida (1914-1988).No lugar dela, surge, como na canção Saia do Caminho(1945), de Evaldo Rui e de Custódio Mesquita (1910-1945),uma outra Aracy de Almeida, que, dessa vez, toma umaatitude radical com relação aos desatinos do parceiro,tomando a dolorosa decisão de mandá-lo embora, junto comseus próprios sonhos de construção de uma vida familiar.Assim, o vazio existencial e a solidão da fossa e da dor-de-cotovelo poderiam ter uma componente importante naformação de seu repertório emocional no grandedesencontro de expectativas entre o homem e a mulherrecém-saídos de uma sociedade patriarcal e aindainadaptados à nova condição da mulher na sociedademoderna.

Procuremos, agora, discutir o outro gênero dominante noperíodo entre o Estado Novo e o advento da Bossa-Nova: aascensão da música nordestina.

Custódio Mesquita (1910-1945), como Garoto e NoelRosa, foi mais um grandeautor da música brasileira,cuja morte prematura levouconsigo as promessas deampliação de uma obra de

qualidade primorosa.

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O Reinado do Baião

Ao contrário do caso anterior, a presença crescente da música nordestina nas rádios evitrolas brasileiras dos anos 1950 é extremamente fácil de ser compreendida e justificada.A década de 1950 foi uma daquelas em que mais se acentuou a migração nordestina paraas maiores metrópoles do Sudeste - Rio de Janeiro e,sobretudo, São Paulo -, devido ao eterno flagelo dassecas no Nordeste e à atração dos pólos industriaispor mão-de-obra barata. A enorme população migrantenão tinha grande identificação cultural com o repertórioe a visão de mundo representada nas canções da Erado Rádio, provindo, por outro lado, da região do paísque mais cedo desenvolveu uma vida e uma identidadecultural própria, ainda nos remotos tempos coloniais.Assim, era questão de tempo para que a vigorosacultura popular nordestina encontrasse seusrepresentantes no mercado fonográfico, dado que ademanda para tal já era considerável e tendia ainda ase expandir.

Tal demanda foi atendida, principalmente, por trêsgrandes artistas: o cantor, compositor e sanfoneiro LuizGonzaga (1912-1989), o compositor Humberto Teixeira(1916-1979), e Jackson do Pandeiro (1919-1982).Baseando-se inteiramente na cultura popularnordestina para o desenvolvimento de um idiomamusical próprio, cada um desses artistas teve um papeldistinto, mas complementar com relação ao de seuscolegas. Luiz Gonzaga foi a própria personificação donordestino, encarnando em sua imagem pública oestereótipo do vaqueiro desde que, em 1943,impressionou-se com as vestimentas gaúchas dosanfoneiro Pedro Raimundo (1906-1973). Seu primeirosucesso, sua composição Dezessete e Setecentos(1945), apresenta já as características de sua obra: alírica enraizada na coloquialidade da fala nordestina, amúsica a se valer de ritmos característicos - no caso, oxote -, e a figura do intérprete vestida a caráter, comchapéu de cangaceiro, tocando sua sanfona e cantandocom sua voz abaritonada levemente anasalada, emuma colocação vocal que já surgira em Caymmi e que,ainda hoje, faz escola com Dominguinhos.

O Baile dos Reis: LuizGonzaga (1912-1989), o“Rei do Baião”, ensina a

“Rainha do Rádio”Emilinha Borba (1923-) a

dançar o Baião.

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O compositor e advogado Humberto Teixeira inscreveria seunome na história da música brasileira ao formar sua parceriacom Luiz Gonzaga, produzindo obras-primas que hoje estãopraticamente incorporadas à cultura popular que as inspirou,como Baião (1946), No Meu Pé de Serra (1946), Asa Branca(1947), Juazeiro (1948), Paraíba (1950), Qui Nem Jiló (1950)e Assum Preto (1950).

Chegando um pouco mais tarde do que a primorosa duplaque o antecedeu, o genial Jackson do Pandeiro, não teve,como não tem até hoje, o reconhecimento pelas grandescontribuições que deixou para o aprimoramento da riquezarítmica da música brasileira. Filho de uma puxadora de côco,Jackson tinha em suas raízes o domínio intuitivo de todo umjogo de acentuações e sutis deslocamentos de tempo quetornam sua música até hoje insuperável em termos de swing,em uma contribuição tão colossal e desconhecida como aque o grupo Gente do Morro, sob a direção de BeneditoLacerda, dera à fixação do swing do samba carioca no inícioda década de 1930. Entre seus muitos sucessos, destacam-se Sebastiana (1953), de Rosil Cavalcanti (1915-1968), Uma Uma (1953) e Forró em Limoeiro (1954), de Edgar Ferreira(1922-1995) e O Canto da Ema (1957), de João do Vale(1933-1996), Aires Viana e Alventino Cavalcanti.

Interessante observar que, justo na música da diásporanordestina, que poderia perfeitamente estar marcada pelador da saudade e da perda das referências da terra natal,encontramos uma música alegre, bem humorada,extremamente dinâmica e que impele o ouvinte à dança ouà leve e inconsciente marcação do ritmo com pés ou mãosde uma maneira quase irresistível. Uma possível explicaçãopara isso seria a euforia desenvolvimentista que contaminavaesses migrantes com o sentimento de otimismo de quemviera ao Sul para conquistar uma vida de mais conforto parasi e para todos os seus. O estado desesperador de atraso ede miséria que certas regiões do Nordeste apresentaramnas piores épocas de seca e abandono governamental,contrastando com o esplendor da Cidade Maravilhosa dadécada de 1950 ou com o vigor e pujança da metrópolepaulista na mesma época são razões mais do quesuficientes para justificar um tal estado de ânimo, em umaépoca em que era ainda pouco visível que daquela euforianasceriam algumas das sementes da tragédia social que,meio século mais tarde, tornariam essas cidades reféns deum estado de criminalidade e insegurança na épocaimpensável.

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Com talento,humildade e muitaluta, Jackson doPandeiro (1919-1982)conquistou o público eum lugar ao lado dosgrandes mestres damúsica brasileira.Freqüentementeinjustiçado em seutempo, mesmo porseus próprioscolegas, a obra deJackson tem sidopermanentementeredescoberta décadaa década, mantendosempre uma aura denovidade e uma forteimpressão deabsoluta atualidade epertinência. Entre osmuitos artistas que arevisitaram, vale citaraqui Gal Costa,Gilberto Gil, ChicoBuarque, ElbaRamalho, Paralamasdo Sucesso, Lenine,Fernanda Abreu,Gabriel o Pensador eO Rappa.

2323A Música Popular Brasileira na época de ouro | Da era Vargas aos anos JK - Período de 1930-1956

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Anotações:

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