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Universidade Federal da Bahia Faculdade de Odontologia Programa de Pós Graduação em Odontologia e Saúde Mestrado em Odontologia Anderson Santos Carvalho Associação entre as manifestações clínicas em crianças com anemia falciforme e a ocorrência de cárie dentária. Salvador 2014

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Universidade Federal da Bahia

Faculdade de Odontologia

Programa de Ps Graduao em Odontologia e Sade

Mestrado em Odontologia

Anderson Santos Carvalho

Associao entre as manifestaes clnicas em crianas com

anemia falciforme e a ocorrncia de crie dentria.

Salvador

2014

Anderson Santos Carvalho

Associao entre as manifestaes clnicas em crianas com

anemia falciforme e a ocorrncia de crie dentria.

Dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduao em Odontologia e Sade, Faculdade de Odontologia, Universidade Federal da Bahia, para obteno do grau de Mestre em Odontologia.

Orientadora: Profa Dra Maria Cristina Teixeira Cangussu

Salvador

2014

Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Universitria de Sade,

SIBI - UFBA.

C331c Carvalho, Anderson Santos

Associao entre as manifestaes clnicas em crianas com anemia falciforme e a

ocorrncia de crie dentria / Anderson Santos Carvalho ._ Salvador, 2014.

88 f.: Il.; 30 cm.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Cristina Teixeira Cangussu.

Dissertao (Mestrado) Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Odontologia,

2014.

1. Cries dentrias em crianas. 2. Odontologia - Anemia falciforme. I. Cangussu, Maria

Cristina Teixeira. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Odontologia. III. Ttulo.

CDU: 616.314

Aos meus pais, que me ensinaram que a trilha

do conhecimento sempre o melhor caminho.

Agradecimentos

A Deus, por estar sempre iluminando a minha vida, e permitir que, mesmo com

alguns momentos de fraqueza, permanecesse com f para alcanar todos os meus

objetivos traados.

Aos meus pais, Hlio e Maria Lcia, por inserirem em mim desde cedo a vontade de

buscar um futuro melhor e me apoiarem em todas as minhas decises.

Aos meus irmos, Luciene, Lucimeire e Hlio Jnior, por desempenharem muito

bem o papel de irmos mais velhos, repassando suas experincias j vividas,

servindo como bons exemplos e servindo de espelho para mim.

A minha orientadora Maria Cristina Teixeira Cangussu, carinhosamente tratada

como Tininha, por ser essa pessoa maravilhosa e pela pacincia, compreendendo

desde o incio as minhas dificuldades e estando disponvel sempre que necessitei,

sendo, de fato, uma orientadora.

Ao Cnpq, pela bolsa de mestrado, auxiliando, estimulando e facilitando o

desenvolvimento das atividades.

A UFBA, representada pelo Magnfica Reitora Profa. Dora Leal Rosa, Faculdade

de Odontologia, representada pela seu Diretor Marcel Lautenschlager Arriaga e

Profa. Dra. Luciana Maria Pedreira Ramalho, responsvel pelo Programa de Ps

Graduao em Odontologia e Sade, pela oportunidade dada para ampliao de

meus conhecimentos.

Aos docentes da Ps graduao, por transmitir seus ensinamentos da melhor forma

possvel, de modo a contribuir para minha capacitao profissional, e aos

professores Antnio Fernando Pereira Falco, pela ateno, disponibilidade e

evidente carinho e Slvio Jos Albergaria da Silva, por incitar em mim o interesse

cientfico.

Aos queridos amigos, Clcia e Giovanna, por serem verdadeiras companheiras e

sempre torcerem por mim, e em especial a Raimundo Luiz, por me incentivar e

acreditar no meu potencial.

Aos colegas Tiago Souza Novais e Geovanne Mattos da Silva, por compreenderem

minhas necessidades, perceberem que o desenvolvimento pessoal e cientfico

importante para o crescimento profissional e colaborarem para que conseguisse

chegar at o final.

Aos colegas de mestrado, pelo convvio sadio e por contriburem para o meu

aperfeioamento, dando dicas e estimulando sempre a melhorar.

Aos pacientes voluntrios, que colaboraram para a realizao dessa pesquisa e sem

os quais o xito no seria alcanado.

Enfim, a todos que contriburam de alguma forma, seja emitindo pensamentos

positivos, seja por um simples gesto ou palavra que ajudou na concretizao desse

objetivo. Muito obrigado!

Na vida, no vale tanto o que temos, nem tanto importa o que somos.

Vale o que realizamos com aquilo que possumos e, acima de tudo, importa o que

fazemos de ns. (Chico Xavier)

Resumo

A anemia falciforme faz parte das hemoglobinopatias hereditrias, sendo que no

Brasil h uma grande prevalncia da doena e na Bahia tem uma incidncia de

1:650. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho identificar os eventos da

manifestao falciforme, considerando a internao por crise falcmica e ocorrncia

de crise de dor, associados ocorrncia de crie dentria em crianas com anemia

falciforme no estado da Bahia. O desenho de estudo foi de corte transversal tendo

como populao crianas com idade entre 6 e 96 meses acompanhadas pela APAE

no perodo de agosto de 2007 a julho de 2008 (N = 686). Foram aplicadas

entrevistas para identificao do perfil sociodemogrfico e conduzido o exame bucal

para identificar a presena de crie dentria segundo critrios da OMS, por 3

equipes previamente treinadas e calibradas (kappa = 0,82). Foi realizada a anlise

de regresso logstica para anlise confirmatria e estimados os IC pelo teste Wald.

Observou-se que alguns fatores podem agir como determinantes nas condies de

sade, visto que a idade da criana, grau de instruo da me, renda familiar, dieta

e acesso aos servios de sade estiveram associados crie dentria no grupo

investigado. O valor de ceo-d encontrado foi de 0,89 (DP = 2,22) e a prevalncia

de crie foi de 21,72%, sendo que esses valores aumentaram com o avano da

idade. Os resultados mostraram que a crise de dor e a internao estiveram

associados positivamente crie no grupo investigado (OR bruta = 2,11 e ajustada

= 1,24 e OR bruta = 2,50 e ajustada = 1,46 respectivamente), porm sem

significncia estatstica.

Palavras-chave: anemia falciforme; crie dentria, epidemiologia.

Abstract

Sickle cell anemia is part of the hereditary hemoglobinopathies. In Brazil there is a

high prevalence of the disease and in Bahia has an incidence of 1:650. Accordingly,

the aim of this work is to identify the events of manifestation of sickle cell, considering

hospitalization for sickle cell crisis and occurrence of pain crisis associated with

dental caries in children with sickle cell anemia in the state of Bahia. The study

design was cross-sectional population as having children aged between 6 and 96

months accompanied by APAE from August 2007 to July 2008 (N = 686). Interviews

were carried out to identify the sociodemographic profile and conducted the oral

examination to identify the presence of dental caries according to WHO criteria, by

three teams previously trained and calibrated (kappa = 0,82). It was performed a

logistic regression analysis for confirmatory analysis and estimate of the IC by Wald

test. It was observed that some factors may act as determinants of health, seeing

that the child's age, level of education of the mother, family income, diet, and access

to health services were associated with caries in the group investigated. The values

of mean dmft found were 0.89 (SD = 2.22) and caries prevalence was 21.72 %,

and these values increased with advancing age. The results showed that the crisis of

pain and hospitalization were positively associated with caries in the investigated

group (rawride OR = 2,11 and adjusted OR = 1,24 and rawride OR = 2,50 and

adjusted OR = 1,46 respectively), but not statistically significant.

Keywords: sickle cell anemia, dental caries, epidemiology.

Lista de Quadros e Tabelas

Quadro 1 Resultados dos estudos epidemiolgicos realizados no Brasil relativos prevalncia de

doena falciforme. 26

Quadro 2 Resultados dos estudos de crie realizados em crianas no Brasil no perodo

compreendido entre os anos 2000 e 2012. 32

Tabela 1. Frequncias absoluta e relativa da caracterizao da amostra de crianas de 6 a 96 meses

portadoras de anemia falciforme no estado da Bahia. 51

Tabela 2. Prevalncia de crie e fatores associados em crianas com anemia falciforme no estado da

Bahia. 53

Tabela 3. Anlise multivariada da prevalncia de crie e fatores associados em crianas com

anemia falciforme no estado da Bahia. 55

Lista de Figuras

Figura 1. Aspectos fisiopatolgicos da anemia falciforme. 17

Figura 2. Transmisso gentica da anemia falciforme. 18

11

Lista de Abreviaturas e Siglas

APAE Associao dos pais e amigos dos excepcionais

ceo-d ndice de dentes decduos cariados, com extrao indicada e obturados

CPO-D ndice de dentes permanentes cariados, perdidos e obturados

DF Doena falciforme

DP Desvio padro

EUA Estados Unidos da Amrica

HbA - Hemoglobina A

HbC Hemoglobina C

HbF Hemoglobina fetal

HbSC Hemoglobinopatia SC

HbS Hemoglobina S

HbSS - Hemoglobina SS

Hib - Haemophilus influenzae tipo b

kg quilo

mg miligrama

OMS Organizao mundial da sade

OR Odds ratios

SB Sade bucal

SEA Sequestro esplnico agudo

SM Salrio mnimo

SUS Sistema nico de sade

UTI Unidade de terapia intensiva

Sumrio

1. INTRODUO 13

2. REVISO DA LITERATURA 17

2.1 ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA DA ANEMIA FALCIFORME 17

2.2 A ANEMIA FALCIFORME NA CRIANA 20

2.3 EPIDEMIOLOGIA DA ANEMIA FALCIFORME NO BRASIL 25

2.4 POLTICAS PBLICAS NO BRASIL PARA O ENFRENTAMENTO DA DOENA 28

2.5 TERAPUTICA EM CRIANAS COM ANEMIA FALCIFORME 29

2.6 CRIE DENTRIA NA POPULAO INFANTIL BRASILEIRA 31

2.6.1 Fatores associados ocorrncia de crie em crianas 35

2.7 ANEMIA FALCIFORME E SADE BUCAL INFANTIL 42

3. OBJETIVOS 45

4. METODOLOGIA 46

4.1 TIPO DE ESTUDO 46

4.2 CARACTERIZAO DA POPULAO 46

4.3 OBTENO DOS DADOS 47

5. RESULTADOS 50

6. DISCUSSO 57

7. CONSIDERAES FINAIS 63

8. REFERNCIAS 64

ANEXO I Termo de consentimento livre e esclarecido 81

ANEXO II Ficha de avaliao 82

ANEXO III Folha de aprovao do comit de tica e pesquisa 87

ANEXO IV Modelo preditivo emprico 88

13

1. Introduo

A anemia falciforme uma doena de carter gentico, descrita pela primeira vez

em 1910 por Herrick, que observou o aspecto anmalo e alongado das hemcias.

Ela frequente, mas no exclusiva, em indivduos de origem africana, sendo

prevalente no Brasil devido grande miscigenao tnica, que se deu inicialmente

pelo trfico de escravos principalmente na regio nordeste e posteriormente, aps a

abolio da escravatura, pelo fluxo migratrio que se expandiu para vrias regies

do pas (Gmez-chiari et al, 2003; Ruiz, 2007; Wambier et al, 2007).

Apesar do grande avano j alcanado, ainda no se conseguiu a cura dessa

enfermidade. Assim, os cuidados prestados so paliativos, caracterizando-a como

uma doena crnica. Neste sentido, a qualidade de vida surge ento como um

desafio essencial a ser alcanado por pacientes, familiares e profissionais da sade

(Pereira et al, 2008).

Nesse contexto, estudo de Platt et al (1994) na dcada de noventa, mostrou

expectativa de vida de 42 anos para homens e 48 anos para mulheres com

hemoglobina SS (anemia falciforme). Para pacientes com a hemoglobina SC

(doena falciforme), a expectativa de vida foi de 60 e 68 anos, para homem e

mulher, respectivamente. Embora esses dados j estejam completando 2 dcadas e

sejam muito superiores mdia de 14,3 anos registrados h 4 dcadas, sabe-se

que foram obtidos avanos no sculo XXI, embora ainda se registre uma expectativa

de vida aqum da apresentada pela populao em geral, ainda na atualidade

(Hokama et al, 2002).

14

Alguns sintomas sistmicos podem ser observados em portadores da doena

falciforme. Muitos destes, como hipxia local e isquemia, so derivados da ocluso

vascular, fenmeno primrio da doena, gerando anemia hemoltica, lceras nas

pernas, insuficincia de mltiplos rgos e crise de dor (Ballas e Mohandas, 1996;

Zago e Pinto, 2007). Tal evento leva muitas vezes necessidade de internaes

hospitalares (Brasil, 2005), o que gera desconforto a esses pacientes e seus

familiares e acompanhantes, sugerindo uma necessidade de ateno psicolgica

para superar esses infortnios. Alm das alteraes sistmicas, h diversas

manifestaes bucais que podem estar associadas, dentre elas hipoplasia dentria

(Brasil, 2005), m ocluso (Brasil, 2005; Carvalho et al, 2010), doena periodontal

(Brasil, 2005; Fukuda et al, 2005; Carvalho et al, 2010) e a crie dentria (Fukuda et

al, 2005; Carvalho et al, 2010; Luna et al, 2012).

A crie dentria uma doena crnica resultante da dissoluo mineral dos tecidos

dentrios proveniente da eliminao de cidos produzidos por bactrias quando

estas metabolizam carboidratos, em especial a sacarose, oriundos da dieta

(Horowitz, 1998).

A partir do modelo originalmente microbiano surge a proposta de Keyes,

denominada de Trade de Keyes, em 1960. Esse modelo explicava a etiologia da

crie exclusivamente pela interseco dos fatores primrios: hospedeiro susceptvel,

microbiota e substratos cariognicos. A Trade de Keyes, modelo explicativo para a

crie dentria, foi modificada por Newbrun, em 1983, que inclui no diagrama de

15

Keyes um quarto crculo representando o tempo como fator etiolgico, que deve agir

simultaneamente com os outros fatores para desenvolver a crie (Costa et al, 2012).

Porm, o modelo explicativo da crie dentria sofreu modificaes ao longo do

tempo, do unicausal para o multicausal e do individual para o populacional. Neste

contexto, a crie passou a ser compreendida, tambm, pelas interaes entre

condies gerais das estruturas sociais e as condies individuais e particulares.

Sendo assim, a doena um problema complexo e multifatorial e com determinao

social (Costa et al, 2012).

Isto , dentre a multiplicidade de fatores envolvidos no estabelecimento e

progresso da doena crie esto tambm causas sociais, culturais,

comportamentais e econmicas. Portanto, ao se analisar tais aspectos, devem-se

considerar as desigualdades socioeconmicas, representadas pelas diferenas no

grau de instruo dos pais, na atitude, nos valores, na renda, no estilo de vida e no

acesso sade, entre outras variveis j exploradas em estudos empricos

(Marcenes e Bonecker, 2000).

Sabendo-se que a anemia falciforme uma doena que pode gerar um

comprometimento sistmico no seu portador e que isso traz complicaes que

usualmente necessitam de cuidados adicionais, como internaes e uso constante

de medicaes, faz-se necessrio dar uma maior ateno a esses indivduos que se

encontram numa posio de vulnerabilidade fsica e social.

16

Diante do exposto, surge a importncia de se estudar a influncia de fatores

relacionados com a severidade da manifestao da doena em questo, incluindo a

ocorrncia de internao e manifestaes de crises de dor, e a ocorrncia de

alterao dentria, j que muitas vezes a preocupao com o sofrimento ocasionado

pelos sintomas clnicos faz com que haja uma desateno em relao aos cuidados

bucais, levando ao maior risco e susceptibilidade carie dentria.

17

2. Reviso da Literatura

2.1 Etiologia e Fisiopatologia da anemia falciforme

A hemoglobina a protena respiratria presente no interior dos eritrcitos dos

mamferos que tem como principal funo o transporte de oxignio (O2) por todo o

organismo (Galiza Neto e Pitombeiras, 2003).

A etiologia da anemia falciforme decorre da mutao no gene da globina beta,

alterando a hemoblogina normal (HbA) e produzindo uma hemoglobina anormal

(HbS) (Pinheiro et al, 2006). A substituio da base nitrogenada adenina (A) por

timina (T) ocasiona a substituio do cido glutmico por valina na posio 6 da

cadeia , cuja alterao estrutural responsvel por modificaes da estabilidade e

solubilidade moleculares e consequente falcizao dos eritrcitos quando expostos

baixa tenso de oxignio, acidose ou desidratao. Isto , nestas condies

desencadeia-se a formao de polmeros, degradao oxidativa da HbS com

precipitao de corpos de Heinz e gerao de radicais livres (Naoum, 2000) (Figura

1).

Figura 1. Aspectos fisiopatolgicos da anemia falciforme.

Fonte: Lobo, Marra e Silva (2007)

18

Assim, as hemoglobinopatias so alteraes genticas ocasionadas pela reduo ou

ausncia completa da sntese das globinas (Adorno et al, 2005). A denominao

anemia falciforme reservada para a forma recessiva da doena que ocorre nos

homozigotos SS. Em portadores do trao falciforme (HbAS), portanto na forma

heterozigtica, existe produo tanto de HbA quanto de HbS, o que resulta em um

fentipo normal.

Alm disso, o gene da HbS pode combinar-se com outras anormalidades

hereditrias das hemoglobinas, como hemoglobina C (HbC), hemoglobina D (HbD),

beta-talassemia, entre outros, gerando combinaes que tambm so sintomticas,

denominadas, respectivamente, hemoglobinopatia SC, hemoblobinopatia SD,

S/beta-talassemia. No conjunto, todas essas formas sintomticas do gene da HbS,

em homozigose ou em combinao, so conhecidas como doenas falciformes (DF).

(Brasil, 2002; Loureiro e Rozenfeld, 2005) (Figura 2).

Figura 2. Transmisso gentica da anemia falciforme.

Fonte: www.desvendandoadoencafalciforme.blogspot.com

Indivduo

normal

(AA)

Indivduo com

trao falciforme

(AS)

Indivduo com

anemia falciforme

(SS)

http://1.bp.blogspot.com/_5w7Fz_h2xQg/TBFgI4Ois_I/AAAAAAAAE2s/Ymc04SuT9a0/s1600/Consenso+Brasileiro+sobre+atividades+esportivas+e+militares+e+heran%C3%A7a+falciforme+no+Brasil.jpg

19

A anemia falciforme uma doena crnica, incurvel, embora tratvel, e que

geralmente traz alto grau de sofrimento aos seus portadores e familiares, alm

merecer especial ateno do ponto de vista da sade e do acompanhamento

psicossocial, pelo impacto provocado no indivduo afetado (Paiva et al, 1993;

Guimares et al, 2009).

Seu mecanismo fisiolgico de ao inicia-se no nvel circulatrio: ocorre a alterao

de plasticidade das hemcias em funo da extensa polimerizao, o que dificulta a

transposio do dimetro dos capilares na microcirculao, passando a existir uma

maior adeso do eritrcito s clulas endoteliais e favorecendo a formao de

trombos. Esses fenmenos podem ocasionar encurtamento da vida mdia dos

glbulos vermelhos, episdios de dor e leso de rgos (Brasil, 2007) e, em funo

disso, os tecidos mal perfundidos sofrem infartos com necrose e formao de

fibrose, principalmente bao, medula ssea e placenta (Naoum, 2000; Galiza Neto e

Pitombeira, 2003; Pinheiro et al, 2006).

Assim, a ocorrncia da ocluso vascular representa o evento fisiopatolgico

determinante da grande maioria dos sinais e sintomas presentes no quadro clnico

dos pacientes com anemia falciforme, tais como: crises de dor, aumento da

susceptibilidade a infeces, crises hemolticas ou aplsticas, lceras de membros

inferiores, sndrome torcica aguda, necrose assptica do fmur, sequestro

esplnico, priapismo, retinopatia, insuficincia renal crnica, auto-esplenectomia,

acidente vascular cerebral e alteraes de crescimento e desenvolvimento (Galiza

Neto e Pitombeira, 2003; Di Nuzzo e Fonseca, 2004; Costa et al, 2006).

20

Esta tambm o principal motivo de internaes hospitalares nesses pacientes

(Canado e Jesus, 2007). Num estudo realizado em um hospital pblico no Rio de

Janeiro foi verificado que a crise vaso oclusiva ocorreu em mais de 70% das

internaes em pacientes com anemia falciforme, sendo o evento clnico mais

frequente. Alm disso, mais de 70% do total de internaes ocorreram em pacientes

abaixo dos 20 anos de idade (Loureiro e Rozenfeld, 2005). Num outro estudo

realizado em Minas Gerais, utilizando os pronturios de pacientes internados em

dois hospitais no perodo de 1998 a 2007, verificou-se que a crise dolorosa foi a

causa mais frequente de internao (36,7%) e que a faixa etria predominante dos

pacientes atendidos era de at 19 anos (60,2%) (Martins et al, 2010), o que refora a

gravidade da doena em jovens e consequente reduo de sobrevida dos mesmos.

Percebe-se ento que, do ponto de vista clnico, a crise dolorosa a manifestao

mais caracterstica. Estudo realizado em pacientes com anemia falciforme com

finalidade de observar as caractersticas clnicas da doena, foi encontrado que

37,5% j haviam sido submetidos a vrias transfuses sanguneas e 75% relataram

crises dolorosas frequentes (Franco et al, 2010).

2.2 A anemia falciforme na criana

Observa-se que durante a vida fetal e incio da vida ps-neonatal, a falta de

expresso do fentipo HbSS explicada pela produo de hemoglobina fetal (HbF),

suficiente para limitar a falcizao clinicamente importante. Como os eritrcitos que

emergem da medula ssea aumentam gradativamente sua circulao no sangue,

com a reduo da HbF, as crianas comeam a manifestar os primeiros sintomas

21

por volta dos seis meses de idade (Galiza Neto e Pitombeira, 2003; Di Nuzzo e

Fonseca, 2004; Costa et al, 2006; Pinheiro et al, 2006).

Dessa forma, a maneira pela qual os nveis aumentados de HbF estariam

relacionados com a melhora das crises lgicas nos pacientes falcmicos e,

consequentemente, com sua melhor evoluo clnica atribuda ao fato de que a

HbF dilui a HbS nos eritrcitos e inibe a polimerizao dessas durante o processo de

desoxigenao (Goldberg et al, 1997).

A primeira manifestao na maioria das crianas a dactilite (ou sndrome mo-p),

caracterizada por dor e edema nas extremidades. Podem recorrer uma ou mais

vezes at os trs anos de idade e, se ocorrer antes do primeiro ano de vida, pode

conferir um risco 2,67 vezes maior de doena grave em relao quelas crianas

que no a tiveram no primeiro ano de vida (Miller et al, 2000).

Numa coorte de crianas realizada em Minas Gerais durante o perodo de

maro/1998 a fevereiro/2005) com a finalidade de caracterizar os bitos das crianas

com doena falciforme, constatou-se que a infeco (incluindo pneumonia e

septicemia) foi a principal causa mortis registrada no documento de bito (38,5%),

seguida pelo sequestro esplnico agudo (16,6%) (Fernandes et al, 2010).

O sequestro esplnico agudo (SEA) tambm um evento comum nas crianas com

anemia falciforme, principalmente nos 2 primeiros anos de vida, com recidiva em

mais da metade dos casos. Representa a segunda causa de bito na primeira

dcada de vida, vindo logo aps aos episdios infecciosos. Caracteriza-se pelo

22

aprisionamento de hemcias no bao, com consequente aumento de tamanho do

rgo e queda dos nveis de hemoglobina. Os eventos apresentam prevalncia de

7,5 a 30%, ocorrendo com maior frequncia entre 3 meses e 5 anos de idade (76%

antes dos 2 anos) (Topley et al, 1981; Emond et al, 1985; Rezende et al, 2009), e a

recomendao de que pacientes que apresentaram um primeiro evento de

sequestro esplnico sejam mantidos em esquema transfusional ou esplenectomia

(Bruniera, 2007).

comum tambm a presena de crises aplsticas transitrias provocadas pelo

parvovrus B19 ou outros similares (2 a 10% em menores de 5 anos e 40 a 60% em

jovens), geralmente de transmisso oral. Isto porque pacientes portadores de

anemias hemolticas crnicas costumam ter uma hiperplasia compensatria da srie

eritride e a infeco viral promove a destruio das clulas sanguneas imaturas,

com consequente parada de produo dos glbulos vermelhos e acentuao da

anemia. Nestes casos, o nico tratamento possvel a transfuso de hemcias

(Serjeant, 1997; Costa et al, 2006). Para os pacientes infantis, considera-se que o

maior e mais permanente risco a septicemia, devido reduo ou ausncia de

funo esplnica, sendo a principal causa de morte entre lactentes, as infeces por

Pneumococo, Hib, Salmonella sp, Escherichia coli e Enterobacter sp (Serjeant,

1997; Di Nuzzo e Fonseca, 2004).

Em menores de 5 anos Di Nuzzo e Fonseca (2004) relataram uma mortalidade de 25

a 30%, provocada principalmente por infeces, sequestro esplnico ou crises

aplsticas. Nesta faixa etria tem-se uma maior susceptibilidade a infeces por

organismos encapsulados - Haemophilus influenzae tipo b (Hib) e pneumococo -, de

23

30 a 100 vezes maior do que em crianas normais. Essas infeces, acompanhadas

de acidose, hipxia e desidratao, desencadeiam ou intensificam as crises de

falcizao, criando um ciclo vicioso neste grupo vulnervel.

Moreira (2007) destaca que em crianas e adolescentes frequente o

desenvolvimento de doenas respiratrias das vias areas superiores e inferiores,

que podem levar a reduo de oferta de oxignio e quadros de hipxia temporria,

principalmente noturna, podendo desencadear uma crise falciforme.

Nesse contexto, num estudo realizado por Miller et al (2000) nos EUA onde 392

recm-nascidos com anemia falciforme foram acompanhados por 10 anos, verificou-

se que 18% tiveram m evoluo da doena, dentre elas: infeces frequentes

(56%), bitos (26%) e crises dolorosas frequentes (24%). Observou-se tambm,

num estudo realizado no mesmo pas no ano de 2006, que 44.188 crianas (com

mdia de 8 anos) fizeram visitas emergenciais a hospitais e destas 54% foram

devido a crises dolorosas e 43,5% foram internadas (Naoum, 2000).

Alm dos aspectos orgnicos inerentes prpria doena de carter crnico, a

influncia de fatores raciais, culturais e socioeconmicos faz-se presente, de

maneira significativa, nos pacientes com anemia falciforme. Assim como em outras

doenas crnicas, aspectos psicossociais afetam o controle emocional, a relao

social e a situao acadmica dos pacientes durante toda a sua vida. Existe um

nmero substancial de problemas relacionados doena crnica, como dificuldade

no relacionamento familiar, na interao com colegas, no rendimento escolar e no

desenvolvimento de uma autoestima positiva. Comportamentos como ansiedade,

24

depresso e medo, relacionados natureza crnica e fatal da doena, so

manifestaes frequentes e se intensificam frente s repetidas crises de dor e

internaes (Santos e Miyazaki, 1999; Felix et al, 2010).

Percebe-se ento que ter anemia falciforme uma vivncia triste para a criana,

porque, ela se sente impotente frente ao sofrimento, reconhece seu estigma familiar

e compreende a necessidade do tratamento, mas o considera apenas paliativo para

o alvio da dor. Diante disso, a famlia deve ser reforada como um importante

suporte para que esses efeitos negativos da doena sejam superados com menos

dificuldades (Souza et al, 2011).

Alm dos aspectos clnicos e psicolgicos, ressalta-se que muitas vezes estas

famlias tambm se encontram em condio de vulnerabilidade social. Quanto

situao socioeconmica das famlias com doena falciforme, Fernandes et al

(2010) num estudo realizado atravs do programa de triagem neonatal do estado de

Minas Gerais, encontraram os seguintes resultados: 58% das famlias tinham renda

per capita mensal de at R$ 100,00 e, em 20% dos casos, de at R$ 50,00. O valor

mnimo da renda per capita foi 0 e o mximo foi de R$ 380,00. O valor do salrio-

mnimo na ocasio da pesquisa era de R$ 350,00 e a mdia do nmero de pessoas

por famlia foi de 5,6 pessoas.

Numa pesquisa realizada com famlias de portadores de anemia falciforme, oito

genitoras (dentre 10 entrevistadas) relataram no exercerem atividade fora do lar

pela impossibilidade de sair para trabalhar, devido ao tempo dispensado no cuidado

dirio ao filho com doena crnica. De modo semelhante, sete mes responderam

25

serem as principais responsveis pelo cuidado em todas as situaes. Os autores

concluram que as crianas e adolescentes doentes, muitas vezes, determinam a

exclusividade do cuidado materno. Do mesmo modo, a dependncia reforada

pelo vnculo me-filho. Para eles, terem a me cuidadora primria aumenta-lhes a

sensao de segurana e confiana, a ponto de haver superproteo pelo cuidador

(Guimares et al, 1999).

2.3 Epidemiologia da anemia falciforme no Brasil

A anemia falciforme , dentre as doenas falciformes, a mais conhecida no homem

e a mais prevalente no Brasil (Pinheiro et al, 2006; Moreira, 2007; Diniz et al, 2009).

A doena originou-se na regio ocidental da frica e foi trazida s Amricas pela

imigrao forada dos escravos. Alm da frica e Amricas, hoje encontrada em

toda a Europa e em grandes regies da sia. No Brasil, distribui-se

heterogeneamente, sendo mais frequente onde a proporo de antepassados

negros da populao maior (nordeste), porm tambm ocorrendo entre brancos,

em funo da intensa miscigenao tnica. Na regio sudeste, a prevalncia mdia

de heterozigotos (portadores) de 2%, valor que sobe a cerca de 6-10% entre

negros. Estimativas, com base na prevalncia, permitem estimar a existncia de

mais de 2 milhes de portadores do gene da HbS no Brasil, e mais de 8.000

afetados com a forma homozigtica (HbSS). Estima-se o nascimento de 700-1.000

novos casos anuais de doenas falciformes no pas (Brasil, 2002).

26

Alguns estudos realizados no pas no perodo de 1980 a 2009 foram encontrados

relatando dados inerentes prevalncia de doena falciforme, como pode ser

observado no quadro 1.

Quadro 1 Resultados dos estudos epidemiolgicos realizados no Brasil relativos

prevalncia de doena falciforme.

Autor, ano Local Populao Resultados

Azevedo et al, 1980 Bahia 1200 crianas 7,4 a 15,7% de trao

falciforme

Fleury e Lima, 1989 Rio de Janeiro 3345 pacientes 2,86% (HbS)

0,24% portadores de

anemia falciforme

Bandeira et al, 1999 Pernambuco 1998 recm-nascidos 5,3% (HbS)

0,2 % com doena

falciforme (HbSC)

Naoum, 2000 Brasil 101 mil amostras 2,1% (HbS)

Ducatti et al, 2001 Minas Gerais 913 recm-nascidos 3,41% (HbS)

Daudt et al, 2002 Rio Grande do Sul 1615 recm-nascidos 1,2% (HbS)

Viana et al, 2003 Maranho 6 famlias autctones

(aborgenes)

45,76% (HbS)

15,79% com doena

falciforme

Adorno et al, 2005 Bahia 590 recm-nascidos 9,8% (HbS)

0,2% com anemia

falciforme

Pinheiro et al, 2006 Cear 389 recm-nascidos 3,8% (HbS)

0,2% com anemia

falciforme

27

Diniz et al, 2009 Distrito Federal 116.271 recm-

nascidos

3,23% (HbS)

0,09% com anemia

falciforme

Esses resultados podem sugerir a grande diferena entre os estados e regies

devido variabilidade da miscigenao tnica e fatores relacionados ao diagnstico.

Percebe-se maiores resultados da doena nos locais onde se tem maior

concentrao de negros e pardos, como na regio nordeste e principalmente no

estado da Bahia.

Nesse estado, dados oriundos da triagem neonatal mostram que entre os nascidos

vivos, a incidncia de trao falciforme de 1:17 e, da doena, de 1:650. J no Rio de

Janeiro, a incidncia de 1:21, para o trao falciforme, e de 1:1200, para a doena

falciforme, enquanto que em Minas Gerais a incidncia alcana a proporo de 1:23,

para o trao, e de 1:1400, para a doena (Brasil, 2007). Segundo dados da APAE,

foram diagnosticados 1.724 casos de anemia falciforme na Bahia entre os anos de

2001 a 2008 e destes, 511 (29,64%) foram de Salvador e regio metropolitana.

Com base nesses dados, calcula-se que nasam, por ano, no pas, cerca de 3.500

crianas com anemia falciforme e 200.000 portadores de trao. Tal cenrio permite

tratar essa patologia como problema de sade pblica (Brasil, 2007).

Ainda com relao ao estado da Bahia, Botelho et al (2009) relata que h um foco

endmico da anemia falciforme, com estimativa de frequncia de portadores do

trao falcmico de 5,5% na populao geral e 6,3% na populao de

afrodescendentes. Azevedo et al (1980) observou em seu estudo que uma

28

peculiaridade do estado a ocorrncia de 2,2% a 5,2% da heterozigose da

hemoglobina C (HbC), diferente de outros estados como Minas Gerais, que

encontrou 1,3% da heterozigose C (Serjeant, 1997).

Considerando uma maior abrangncia, no maior estudo populacional realizado no

Brasil, pelo Centro de Referncia de Hemoglobinas, envolvendo mais de 100 mil

amostras de sangue de inmeros estados e cidades, constatou-se que para uma

populao estimada de 140 milhes, 10 milhes apresentavam hemoglobinas

anormais. Estimou-se que para cada 3 milhes de crianas nascidas, cerca de 63

mil seriam portadoras do trao e 1500 da anemia falciforme (Siqueira et al, 2002).

2.4 Polticas pblicas no Brasil para o enfrentamento da doena

O primeiro passo rumo construo do programa de ateno integral s pessoas

com doena falciforme foi dado com a institucionalizao da Triagem Neonatal no

Sistema nico de Sade do Brasil, por meio da Portaria do Ministrio da Sade de

15 de janeiro de 1992, que trata do Programa de Diagnstico Precoce do

Hipotireoidismo Congnito e Fenilcetonria. (Cangussu, 2009).

Somente em 2001, a Portaria 822/2001 do Ministrio da Sade assumiu um passo

importante no reconhecimento das hemoglobinopatias em sade pblica, quando

incluiu a mesma no Programa Nacional de Triagem Neonatal (Ramalho et al, 2003).

Diversos autores (Fry, 2005; Costa et al, 2006; Laguardia, 2006; Diniz et al, 2009)

consideram esta uma medida essencial, permitindo no s o diagnstico neonatal,

29

mas tambm a implantao de programa regular de acompanhamento familiar

multiprofissional e acompanhamento ambulatorial.

Entretanto, a mesma criou uma situao de impasse, visto que em muitos estados a

oferta destes servios no est disponvel na sua totalidade, incluindo a Bahia.

Refora-se ento o debate sobre a desigualdade social, acesso e vulnerabilidade da

populao tanto no diagnstico, no acompanhamento do tratamento e na severidade

da doena, com grande impacto na qualidade de vida dos doentes (Guimares et al,

1999; Gillis e West, 2004; Fry, 2005).

Ao incluir a deteco das hemoglobinopatias no Programa Nacional de Triagem

Neonatal, essa portaria corrigiu antigas distores e trouxe vrios benefcios,

sobretudo a restaurao de um dos princpios fundamentais da tica mdica, que

o da igualdade, garantindo acesso igual aos testes de triagem a todos os recm-

nascidos brasileiros, independentemente da origem geogrfica, etnia e classe

socioeconmica (Cangussu, 2009).

Em continuidade, configurando uma fase de consolidao dessa iniciativa, em 16 de

agosto de 2005 foi publicada a Portaria de n 1.391, que institui, no mbito do SUS,

as diretrizes para a Poltica Nacional de Ateno Integral s Pessoas com Doena

Falciforme e outras Hemoglobinopatias (Cangussu, 2009).

2.5 Teraputica em crianas com anemia falciforme

Nos ltimos anos, a mortalidade por doena falciforme tem diminudo drasticamente,

principalmente por causa do diagnstico precoce (atravs do teste do pezinho) e

30

outras medidas teraputicas (Ashley-koch et al, 2000). Dentre os elementos

fundamentais para uma evoluo menos desfavorvel tm-se: a profilaxia

medicamentosa com penicilina at os 4 (Silva et al, 1999) ou 5 anos de idade

(Bitares et al, 2008), vacinao especfica contra pneumococos e Hib nas idades

apropriadas e a identificao precoce e manejo apropriado dos processos febris,

considerando-os sempre como eventos sentinela de processos spticos (Serjeant,

1997; Silva et al, 1999; Di Nuzzo e Fonseca, 2004; Bitares et al, 2008) Destaca-se

que, a profilaxia antibitica, embora imprescindvel, pode no ser suficiente para o

controle de infeces em funo das dificuldades na adeso ao tratamento,

principalmente naqueles pacientes assintomticos que tem como consequncia o

surgimento de resistncia pneumoccica penicilina (Di Nuzzo e Fonseca, 2004).

A transfuso de hemcias tem sido recurso teraputico cada vez mais utilizado, em

parte por ter se tornado procedimento mais seguro, mas, sobretudo, porque capaz

de prevenir complicaes graves nos casos agudos. Estima-se que cerca de 20% a

30% dos pacientes com doena falciforme so mantidos em regime crnico de

transfuso de hemcias (Cangussu, 2009; Silva et al, 2009). Entretanto, os pacientes

com doena falciforme em transfuso crnica, normalmente desenvolvem

sobrecarga de ferro aps a transfuso de 10 a 20 unidades de concentrado de

hemcias e atingem, em poucos meses, valores elevados de concentrao heptica

de ferro que lhes conferem maior risco de complicaes, como doena cardaca e

morte precoce (Canado e Jesus, 2007).

Tambm como medida teraputica, o uso de hidroxiureia com dose variando entre

10 a 25mg/kg/dia por um perodo mdio de dois anos em crianas portadoras de

31

anemia falciforme tem proporcionado reduo de suas complicaes clnicas e

aumento significativo na expectativa de vida destes pacientes. A terapia tem

garantido eficcia clnica durante alguns anos de tratamento em populao

peditrica, reduzindo o nmero de internaes e dias de hospitalizao, atravs da

elevao dos nveis de hemoglobina fetal, reduzindo hemlises e crises vasoclusivas

(Silva e Shimauti, 2006).

Assim, algumas medidas teraputicas tem sido estudadas e utilizadas no intuito de

tentar controlar a evoluo da doena e ao menos aliviar os sintomas, j que no h

cura para a mesma.

2.6 Crie dentria na populao infantil brasileira

Apesar de se observar uma tendncia de declnio da crie no pr-escolar, as metas

estabelecidas pela OMS para o ano 2000 (50% das crianas de 5 a 6 anos livres de

crie) e 2010 (90% das crianas de 5 anos livres de crie) no foram alcanadas

nas cidades brasileiras no respectivos perodos, sendo atingidas com atraso e, ainda

assim, em algumas delas.

Os dados mais recentes encontrados de estudos nacionais e locais representativos

relativos presena de crie em crianas so abordados no quadro 2.

32

Quadro 2 Resultados dos estudos de crie realizados em crianas no Brasil no perodo

compreendido entre os anos 2000 e 2012.

Autor, ano Local Idade (n) Resultados

Leite e Ribeiro, 2000 Minas Gerais 2 a 6 anos (338) 2 anos ceo-d = 0,7

(23,8%)

3 anos ceo-d = 1,4

(35,3%)

4 anos ceo-d = 1,9

(54,3%)

5 anos ceo-d = 2,4

(56,0%)

6 anos ceo-d = 2,9

(60,0%)

Traebert et al, 2001 Santa Catarina 6 anos (825) ceo-d = 2,42 (58,3%)

Barros et al, 2001 Bahia 0 a 30 meses (340) 0 a 12 meses ceo-d

= 0,35 (25%)

13 a 24 meses ceo-d

= 1.32 (51,18%)

25 a 30 meses ceo-d

= 2,38 (71,03%)

Batista e Sousa, 2002 Rio de Janeiro 6 anos (186) ceo-d = 3,2 (72%)

SB Brasil, 2003 Brasil 18 a 36 meses

(12.117)

5 anos (26.641)

ceo-d = 1,1 (26,85%)

ceo-d = 2,8 (59,37%)

Gomes et al, 2004 So Paulo 5 anos (96) ceo-d = 1,90 (45,8%)

Lopes et al, 2005 Bahia 1 a 5 anos (415) Prevalncia = 27,95%

1 ano ceo-d = 0

2 anos ceo-d = 0,49

33

3 anos ceo-d = 0,85

4 anos ceo-d = 1,55

5 anos ceo-d = 1,87

Moura et al, 2006 Piau 3 a 6 anos (343) 3 anos ceo-d = 1,86

(41,18%)

4 anos ceo-d = 1,94

(42,40%)

5 anos ceo-d = 1,98

(43,14%)

6 anos ceo-d = 2,42

(57,45%)

Souza et al, 2006 Bahia 2 e 3 anos (74) ceo-d = 0,72

2 anos = 1,3%

3 anos = 18,9%

Scavuzzi et al, 2007 Bahia 12 a 30 meses (136) Prevalncia = 5,9%

Almeida et al, 2008 Bahia 18 a 48 meses (472) ceo-d = 0,54 (16,53%)

Almeida et al, 2008 Bahia 24 a 60 meses (472) ceo-d = 1,15 (38,02%)

Almeida et al, 2009 Bahia 5 anos (1374) ceo-d = 1,97 (49,6%)

Rigo et al, 2009 Rio Grande do Sul 5 e 6 anos (432) ceo-d = 4,1 (75,5%)

SB Brasil, 2010 Brasil 5 anos (1706) ceo-d = 2,43 (53,4%)

Azevedo et al, 2012 Paraba 5 anos (277) ceo-d = 2,86 (67,9%)

Ao analisar os resultados dos estudos encontrados, pode-se verificar que h uma

tendncia de crescimento do ceo-d com o avano da idade nas crianas na faixa

etria de 0 a 6 anos e que a prevalncia de crie maior a partir dos 2 anos de

idade.

34

Alm disso, nos estudos de Moura et al (2006) e Souza et al (2006), ambos datados

de 2006, em relao prevalncia de crie na idade de 3 anos, o primeiro encontrou

uma prevalncia de crie de 41,18% em crianas de Teresina-PI enquanto que o

segundo encontrou valores de 18,9% em crianas de Salvador-BA para o mesmo

indicador. Isso pode explicitar as disparidades locais, atravs da influncia dos

fatores socioeconmicos e outros fatores associados ocorrncia de crie.

O incio de um estudo epidemiolgico nacional sistemtico na faixa etria infantil

onde todos os estados brasileiros foram includos foi dado pelo projeto denominado

SB Brasil, realizado em 2003. Nesse estudo quase 27% das crianas de 18 a 36

meses apresentaram pelo menos um dente decduo com experincia de crie

dentria, sendo que a proporo chegou a quase 60% das crianas de 5 anos de

idade. Aos 3 anos o ceo-d foi de 1,1 enquanto que aos 5 anos foi de 2,8 (Brasil,

2004).

Observa-se novamente nesse estudo nacional que h uma tendncia de

crescimento na prevalncia de crie em funo da idade, corroborando com os

estudos encontrados (quadro 2). Portanto, esse um fenmeno comum

considerando o carter cumulativo do ceo-d e o no controle efetivo da doena

nesta idade. Grandes diversidades regionais tambm so percebidas em todas as

idades. Os percentuais de CPO-D/ceo-d = 0 so sempre inferiores nas regies

Norte, Nordeste e Centro-oeste quando comparados com os das regies Sul e

Sudeste, com ntida superioridade da regio Sudeste.

35

No segundo SB Brasil realizado em 2010, verificou-se que aos 5 anos de idade

46,6% das crianas brasileiras estavam livres de crie na dentio decdua,

melhorando o ndice observado anteriormente. Aos cinco anos de idade o ceo-d foi

de 2,43, com predomnio do componente cariado, que responsvel por mais de

80% do ndice (Brasil, 2010). Vale salientar que a proporo de dentes cariados foi

sensivelmente maior nas regies Norte e Nordeste, enquanto a de dentes

restaurados maior nas regies Sudeste e Sul, configurando as diferenas

regionais.

2.6.1 Fatores associados ocorrncia de crie em crianas

A crie dentria compreendida como uma doena multifatorial, portanto, torna-se

necessrio para o seu estudo mais aprofundado o reconhecimento dos fatores

associados com a manifestao clnica.

A idade da criana um desses fatores a serem considerados na ocorrncia de

crie. Num estudo realizado por Freire et al (2009) com crianas da educao infantil

de Goinia-GO, verificou-se que a necessidade de tratamento de crie foi altamente

associada idade. As crianas mais velhas (5 a 6 anos) apresentaram maior chance

de apresentar necessidade de tratamento quando comparadas s mais jovens (3 a 4

anos) e tambm de apresentar dentes restaurados. O mesmo foi relatado por outros

autores (Tomita et al, 1996; Leite e Ribeiro, 2000; Barros et al, 2001; Moura et al,

2006; Souza et al, 2006; Lopes et al, 2009; Azevedo et al 2012), que verificaram

uma tendncia de crescimento da prevalncia e gravidade da crie com o avanar

da idade. Uma justificativa plausvel para esses resultados poderia ser dada pelo

36

fato de quanto mais velha a criana, mais tempo os dentes ficaram expostos aos

fatores de risco.

Historicamente, as principais temticas abordadas nos estudos sobre condies de

sade geral e bucal foram aspectos biolgicos e comportamentais (Souza et al,

2006). Porm, h algum tempo vem se destacando uma viso mais ampla na

etiologia das doenas que ocorrem na infncia. Trata-se de um forte envolvimento

da me, como a principal multiplicadora de modelos, hbitos, valores e atitudes

perante o seu filho. Alm disso, a me exerce um papel central quanto s questes

de sade na famlia (Van Everdingent et al, 1996). Isso pde ser verificado no estudo

de Fadel et al (2008), onde percebeu-se que mes com necessidade de tratamento

odontolgico por crie tambm tinham filhos com experincia de crie dentria.

Souza et al (2006) sugerem que existe associao entre disfuno familiar,

resultante da presena de sintomas de depresso na me e/ou de caso de

alcoolismo na famlia, e a ocorrncia de crie dentria em crianas de dois e trs

anos de idade na populao em que seu estudo foi realizado. A condio da me

como chefe da famlia e o fato dessa no trabalhar fora nos ltimos dois anos foram

atributos que, aps o ajuste, aumentaram a fora da associao observada. Todos

esses fatores podem estar relacionados ao fato de que dessa forma a me no teria

condies de dar a ateno suficiente para seus filhos, que nessa idade

extremamente necessrio por serem mais dependentes e terem na me o exemplo

de atitudes e valores.

37

H tambm relatos de influncia do nvel educacional materno, onde um melhor

nvel contribui para uma menor ocorrncia de crie nas crianas (Grindefjord et al,

1995; Oliveira et al, 2008). Sustentando essa ideia, alguns autores (Fraiz e Walter,

2001; Peres et al, 2003) descrevem como um dos fatores associados com a

presena de crie o perodo de educao formal do pai, da me ou de ambos os

pais igual ou inferior a 8 anos. Essa associao est provavelmente relacionada com

um maior conhecimento sobre higiene nesse grupo.

Em adio, a idade da me pode influenciar no desenvolvimento de crie do filho.

Mes com mais idade podem ter filhos com menor experincia de crie que as mes

mais novas (Kinget, 1983). Isso pode ser justificado pela maior negligncia das

mes mais novas com a escovao dos filhos (Paunio et al, 1993).

Outro fator relacionado com o envolvimento materno e experincia de crie em

crianas o nmero de filhos sob os cuidados destas mes. A existncia de mais

filhos para cuidar, de mais tarefas domsticas para realizar, na ausncia de uma

rede de suporte, so situaes do cotidiano que criam obstculos para a superviso

da limpeza dos dentes das crianas, podendo explicar a associao diretamente

proporcional entre a crie e o nmero de filhos com at 12 anos de idade morando

no mesmo domiclio. possvel que a dependncia das crianas menores explique o

significativo crescimento dos valores do ceo-d medida que aumenta o nmero de

filhos desse grupo de idade (6 a 12 anos) (Galindo et al, 2005).

Dentre os fatores econmicos, h uma associao significativa entre renda familiar e

presena de crie infantil, onde mes com baixa renda possuem filhos com

38

experincia de crie mais alta e mes pertencentes a uma classe social mais

elevada tem mais chances de ter filhos livres de crie (Tomita et al, 1996; Traebert

et al, 2001; Peres et al, 2003; Freire et al 2007; Meneghim et al, 2007; Fadel et al,

2008; Oliveira et al, 2008; Catani et al 2009). Isso se deve ao fato de famlias com

maior poder aquisitivo terem mais acesso aos servios de sade e

consequentemente maior contato com formas de preveno da doena.

Segundo Galindo et al (2005) existe uma relao inversa entre renda familiar e CPO-

D, com as crianas cujas famlias tm renda total igual ou maior do que cinco

salrios mnimos apresentando ndice significativamente menor (0,44), em

comparao com aquelas com renda menor do que um salrio mnimo (1,70). Eles

encontraram tambm como resultado de seu estudo que 95,2% das crianas com

CPO-D entre quatro e oito tem renda familiar de at dois salrios mnimos e que a

renda familiar no modifica o ceo-d mdio. Resultados similares foram encontrados

por Peres et al (2003), onde crianas cuja renda familiar foi menor que 6 salrios

mnimos tiveram maior risco de apresentar crie, e por Peres et al (2000), onde

crianas com renda familiar menor do que cinco salrios-mnimos tiveram 4,18

vezes mais chances de apresentar alta severidade de crie quando comparadas

com crianas cuja renda familiar foi superior a quinze salrios mnimos.

Avaliando o tipo de escola como uma varivel socioeconmica, Traebert et al (2001)

relatou que os resultados de prevalncia e severidade da doena mostram-se

diferentes entre crianas de escolas pblicas e privadas. Na dentio decdua, aos 6

anos de idade, a prevalncia de crie foi de 60,9% em escolas pblicas e de 34,9%

39

em escolas privadas. Os ndices ceo-d encontrados foram de 2,98 em escolas

pblicas e de 1,32 em escolas privadas.

O estudo comparativo entre os diferentes grupos escolares mostra que a populao

de 6 anos de idade de escolas privadas menos acometida pela crie que a das

escolas pblicas. A diferena nos indicadores segundo o tipo de escola, encontrada

neste estudo, hipoteticamente revela o peso de fatores sociais e econmicos que

atuam na determinao das doenas, j que estudar em escola pblica ou privada

pode ser considerado um indicador socioeconmico. Isso devido primeira ser

frequentada, em sua grande maioria, por crianas de famlias com renda mais baixa

e a segunda, por crianas de famlias com renda mais alta. O mesmo foi evidenciado

por Rihs et al (2005) que relataram em seu estudo que os ndices de crie, ceo-d e

CPO-D, foram menores estatisticamente em crianas de escolas particulares.

Quanto a fatores comportamentais, a importncia dos fatores da dieta evidente a

partir da longa lista de fatores de risco que tm sido encontrados significativamente

relacionados crie (Harris et al, 2004). Segundo Moura et al (2006), no que diz

respeito ingesto diria de carboidratos fermentveis, os resultados encontrados

em seu estudo mostraram que o consumo dirio de carboidratos fermentveis e

amamentao em livre demanda so fatores que aumentam a atividade de crie de

maneira significativa. Corroborando para esses dados, Fraiz e Walter (2001)

identificam o alto consumo de acar como um dos fatores associados com a

presena de crie em crianas.

O fato de que as prticas dietticas so fortemente influenciadas pelo contexto

familiar, o qual determina a formao de hbitos positivos ou nocivos no que se

40

refere sade bucal, reitera a afirmativa de que questes socioeconmicas e

culturais participam indiretamente dos processos de cura e adoecer, amplificando ou

minimizando os efeitos dos determinantes primrios (Fadel et al, 2008).

Dessa forma, a avaliao simultnea das variveis sociais sugere a frequncia de

consultas odontolgicas como fator que influencia com significncia a prevalncia de

crie em crianas menores de 6 anos, sendo que com o aumento da frequncia de

consultas odontolgicas ocorre a reduo da experincia de crie (Tomita et al,

1996).

Nesse sentido, Moura et al (2006) perceberam que o acompanhamento odontolgico

atravs de um programa preventivo para gestantes e bebs provocou impacto

positivo no controle da doena crie, uma vez que o nmero de consultas

frequentadas influenciou nos valores do ndice ceo-d de maneira estatisticamente

significativa. Portanto, quanto maior a frequncia de participao no programa

citado, menor foi o ndice de dentes cariados observado nas crianas assistidas.

Isso confirma a importncia da orientao de sade educacional e acesso aos

servios de sade.

Associado a esses fatores na influncia do surgimento da crie, resultados dos

ensaios clnicos controlados publicados na literatura cientfica e includos na reviso

sistemtica realizada por Carvalho et al ( 2010) sugerem que o verniz fluoretado

capaz de reduzir a incidncia de crie na dentio decdua de crianas com seis

anos de idade ou menos.

41

Ainda com relao dentio decdua, Catani et al (2010) concluiu que crianas que

consomem outro tipo de gua que no a de abastecimento pblico de gua tm

maior prevalncia de leses de crie, confirmando a importncia desta ingesto na

preveno da carie dental. Assim, a gua de abastecimento pblico considerada

como um dos melhores meios de uso de fluoreto para o controle da crie dentria.

Um estudo transversal foi realizado com amostra composta por 200 crianas de 3 a

5 anos, com boa sade geral, pertencentes a baixos estratos sociais, de quatro

creches da Regio Metropolitana de Santiago do Chile, duas do municpio de Maip,

sem fluoretao da gua de abastecimento pblico, e duas do municpio de

Pealoln, com fluoretao desde 1996 e com concentrao de flor de 0,6 mg/L. A

porcentagem de crianas livres de crie encontrada foi de 24% em Maip e 55% em

Pealoln, com ndice CPO-D de 3,38 e 1,84, respectivamente. Ou seja, a

prevalncia e severidade da crie dentria em pr-escolares de 3 a 5 anos em

Maip (gua no fluoretada) foram superiores aos observados em Pealoln (gua

fluoretada) (Lopez et al, 2010).

Aps observao desses diversos aspectos, verifica-se que o estudo da ocorrncia

da doena crie requer evidenciar os fatores sociais e culturais relacionados aos

agentes primrios. Ao analisar o risco individual de crie em uma criana

necessrio avaliar os dados relacionados ao seu convvio social e sua insero

ambiental. de fundamental importncia a incluso de dados da me, uma vez que

ela referncia para o filho em questes de sade. Dados como a idade da me na

poca de nascimento do filho, grau de instruo, estado civil, nmero de filhos, entre

outros, necessitam ser coletados e avaliados, pois interferem na qualidade do

estado bucal da criana (Fadel et al, 2008).

42

2.7 Anemia falciforme e sade bucal infantil

As manifestaes orais da anemia falciforme podem no ser especficas da doena,

podendo estar presentes tambm em outras desordens sistmicas (Ducatti et al,

2001). Como manifestaes mais comuns em crianas tem-se a palidez da mucosa

como resultado da anemia crnica, erupo dental tardia, m ocluso, doena

periodontal atpica (Brasil, 2005; Carvalho et al, 2010) e hipoplasia dentria (Brasil,

2005). Algumas crianas apresentam glossite, caracterizada pela lngua lisa,

descorada e despapilada (Serjeant, 1997; Brasil, 2005).

As condies que podem ocorrer esto diretamente relacionadas anemia

hemoltica, infeces bacterianas e crises vasoclusivas. Alm disso, a necrose

pulpar assintomtica e calcificaes podem ocorrer em dentes hgidos, mesmo sem

histria de trauma, como consequncia da interrupo do fluxo sanguneo da rea.

comum osteomielite mandibular e parestesia do nervo mandibular, devido ao menor

suprimento sanguneo dessa regio (Brasil, 2005).

Os estudos realizados por Carvalho et al (2010) e Fukuda et al (2005) referentes

crie e doena periodontal demonstram maiores ndices dessas doenas em

pacientes com doena falciforme, com raros registros para a populao infantil, e a

maior histria de adoecimento apontada pelos autores em funo do acesso tardio

a servios de sade e preocupaes mais srias que as condies orais (Fukuda et

al, 2005; Carvalho et al, 2010). Um exemplo desses raros registros citados

anteriormente um estudo realizado em crianas com anemia falciforme de Recife,

43

que encontrou alta prevalncia de crie (55% de crianas com cries no tratadas)

em crianas de 3 a 12 anos (Luna et al, 2012).

Entretanto, segundo Maia et al (2011), as caractersticas faciais de pacientes com

anemia falciforme so semelhantes s caractersticas dos pacientes sem a doena.

No h traos faciais caractersticos de pacientes com anemia falciforme. No seu

estudo a maioria dos pacientes no mostrou nenhuma expanso maxilar

compensatria.

Dentre os riscos possveis para a ocorrncia de crie em crianas com anemia

falciforme pode-se citar a higiene bucal deficiente. Este um achado caracterstico

nos pacientes de UTI, o que faz com que a quantidade de biofilme nesses pacientes

aumente com o tempo de internao (Sannapieco, 2002). Segundo Amaral et al

(2006), a partir de trs dias, crianas hospitalizadas apresentavam um ndice de

placa mdio de 67,7% e a partir de quatro dias, o valor chegava a 100%.

Alm disso, a presena de sacarose e possvel diminuio do fluxo salivar

provocados pela medicao peditrica, acrescida ao seu tempo de uso, tem

potencial para aumentar a prevalncia de crie dentria neste grupo (Silva et al,

2009).

Assim, diante do risco e situao de vulnerabilidade em que se encontram os

portadores de anemia falciforme, percebeu-se a necessidade de estudar a

interferncia de manifestaes clnicas graves da doena na ocorrncia de crie

44

dentria em crianas, a fim de identificar possveis associaes e subsidiar a

promoo de sade bucal nesses indivduos de forma mais eficiente.

45

3. Objetivos

Identificar a associao entre a prevalncia das manifestaes clnicas da

anemia falciforme definidas pelos eventos de internao e crise de dor e a

crie dentria em crianas com doena falciforme no servio de referncia-

APAE- Salvador.

Identificar essa associao ajustada por variveis sociodemogrficas e de

cuidado sade.

Hiptese:

H associao positiva entre o agravamento da condio clnica e a crie dentria

em portadores de doena falciforme.

46

4. Metodologia

4.1 Tipo de estudo

O tipo de estudo desenvolvido o de corte transversal (observacional, individuado)

descritivo e analtico.

4.2 Caracterizao da populao

A populao do estudo foi constituda pelo universo de crianas que foram

regularmente atendidas pelo Servio de Hematologia do Setor de Triagem Neonatal

da APAE- Associao dos Pais e Amigos dos Excepcionais em Salvador-BA de

agosto de 2007 at julho de 2008, de forma censitria (n = 704).

O Servio de Referncia e Triagem Neonatal (SRTN) da APAE Salvador o nico

credenciado pelo Ministrio da Sade e Secretaria Estadual de Sade da Bahia

(SESAB) como referncia para realizao de triagem neonatal no Estado na rede

SUS. Na maioria dos municpios a coleta feita pelo servio de sade municipal ou

por profissional da APAE no municpio ou ento por voluntrio treinado, no primeiro

ms de vida. Entretanto, em muitos municpios ainda difcil garantir a cobertura

universal, como por exemplo, Cachoeira- BA, com cobertura de 46,4% e

Maragogipe- BA, de 56,2% em 2003 (Moura et al, 2006).

Desta forma, na realizao do presente estudo, considerou-se como critrio de

incluso ter idade mnima de 6 meses, confirmao diagnstica para doena

47

falciforme e consentimento pelos pais ou responsveis da participao no estudo a

partir da assinatura do termo de consentimento (anexo I).

4.3 Obteno dos dados

Para este estudo foi utilizado o banco de dados do projeto intitulado Promoo de

sade bucal em crianas atendidas pelo Setor de Triagem Neonatal da APAE-

Salvador.

As informaes do mesmo foram obtidas de fontes primrias - a partir de

questionrio aplicado s famlias da criana com a doena. Foram coletados dados

sobre a condio sociodemogrfica da famlia, condio de sade da criana,

condio comportamental e eventos graves de sade da criana. Foi realizado, logo

a seguir, exame clnico com utilizao de esptula de madeira e em ambiente de luz

natural, em maca, para avaliao das condies de crie dentria das crianas

segundo critrio da OMS 1997 (anexo II). Neste momento, tambm foi distribuda

escova dentria para a criana e membros da famlia e realizada ao educativa em

sade bucal. Participaram da coleta 03 equipes, incluindo examinadores e

anotadores, previamente treinados e calibrados para todas as condies avaliadas.

A verificao da concordncia interexaminador e intraexaminador foi atravs do

teste de concordncia geral e kappa (0,79 e 0,82 respectivamente).

48

As variveis analisadas foram:

Variveis Independentes principais (2 modelos):

- Prevalncia de manifestaes clnicas graves na criana

episdios de dor nos ltimos 6 meses (0- no; 1- sim)

internaes nos ltimos 6 meses (0- no; 1- sim)

Varivel Dependente:

- Condies de crie dentria da criana prevalncia da doena (0- livre de crie;

1- presena de pelo menos 1 dente acometido pela doena)

As seguintes covariveis foram dicotomizadas e analisadas: sciodemogrficas -

idade da criana (0- de 6 a 36 meses, 1- maior que 36 meses), idade da me (0- 26

anos ou mais, 1- menos de 26 anos), grau de instruo da me (0- segundo grau

incompleto ou mais, 1- at primeiro grau completo), gnero (0- masculino, 1-

feminino), cor da pele (0- outros, 1- negro), renda familiar (0- 1 salrio mnimo ou

mais, 1- < 1 salrio mnimo), nmero de irmos (0- 1, 1- 2), nmero de pessoas no

domiclio (0- < 4, 1- 5), nmero de cmodos (0- 6, 1- < 5) , de acesso servios

de sade consulta com dentista (0- sim ou 1- no), uso de medicamentos (0- sim

ou 1- no) e cobertura vacinal (0- sim ou 1- no), e comportamentais - dieta com

acar (0- no ou 1- sim).

49

A anlise estatstica foi feita atravs do Minitab verso 14.0. Procedeu-se anlises

descritivas com obteno das medidas de tendncia central e variabilidade para as

variveis contnuas e a frequncia absoluta e relativa para as categoriais.

Foi realizada a anlise da associao principal relacionada com a varivel de

desfecho (ocorrncia de crie dentria) e a seguir foram realizadas anlises

estratificadas atravs do teste qui-quadrado (x2) adotando nvel de significncia de

5%, para uma avaliao preliminar de potenciais variveis de confuso, na medida

em que fossem estimadas associaes brutas entre as variveis de interesse.

Posteriormente, foi realizada anlise bivariada com as variveis que tiveram

significncia e foram selecionadas as que tiveram valor de p 0,20.

Na anlise confirmatria foi utilizada regresso logstica multivariada inserindo essas

variveis no modelo para se chegar ao modelo final atravs do procedimento

backward. Para inferncia estatstica utilizou-se as razes de probabilidade e

Intervalo de Confiana a 95%. Assim, o modelo foi saturado com a incluso de todas

as variveis e em seguida testou-se a significncia estatstica da retirada de cada

uma delas, a partir da que tinha menor significncia, utilizando como ponto de corte

p < 0,05. Desse modo, foram construdos os melhores modelos para estimar as

medidas de associao entre a varivel dependente e independente principal,

ajustadas pelas confundidoras.

O projeto foi submetido ao Comit de tica do Complexo HUPES, aprovado sob o

nmero de protocolo 03/2008. (anexo III)

50

5. Resultados

Foram analisadas 686 crianas - houve perda de 18 crianas (aproximadamente

2,5%) devido identificao da falta de registro das idades dessas crianas nas

fichas - com idades que variaram de 6 a 96 meses, sendo que 50,44% pertenciam

ao gnero masculino. A mdia de idade das crianas foi de 37,8 meses e a grande

maioria tinha cor da pele negra (80,61%).

As crianas tinham mes com mdia de idade de 27,09 anos (DP = 6,20) e a maior

parte delas cursou at o 1o grau (58,45%) e possuam renda familiar menor que um

salrio mnimo (73,91%). A maioria possua apenas um irmo (64,58%) e moravam

em locais com at cinco cmodos (72,01%) (Tabela 1).

51

Tabela 1. Frequncias absoluta e relativa da caracterizao da amostra de crianas de 6 a

96 meses portadoras de anemia falciforme no estado da Bahia.

N %

Gnero Masculino Feminino

346 340

50,44 49,56

Idade 6 a 36 meses 37 a 96 meses

429 257

62,54 37,46

Cor da pele Negro Outros

553 133

80,61 19,39

Grau de Instruo da me

At 1o Grau completo

2o Grau incompleto

ou mais

401 285

58,45 41,55

Renda familiar < 1 salrio mnimo 1 salrio mnimo

507 179

73,91 26,09

Idade me < 26 anos 26 anos

304 382

44,31 55,66

Nmero de irmos 1 2

443 243

64,58 35,42

Nmero de pessoas no domiclio

4 5

426 260

62,10 37,90

Nmero de cmodos

5 6

441 245

72,01 27,99

Crise de dor

Sim No

320 366

46,65 53,35

Internao Sim No

238 448

34,69 65,31

Utilizao de medicao

Sim No

661 25

96,35 3,65

Vacinao Sim No

675 11

98,40 1,60

Consumo de doces Sim No

396 290

57,79 42,27

Consulta com dentista

Sim No

323 363

47,08 52,92

Prevalncia de crie Sim (ceo-d 1) No (ceo-d = 0)

149 537

21,72 78,28

52

Com relao condio clnica associada anemia falciforme, foi verificado que

46,65% das crianas analisadas apresentaram crises de dor e 34,69% tiveram

episdios de internao.

A populao estudada apresentou um ceo-d mdio de 0,89 (DP = 2,22) e uma

prevalncia de crie de 21,72%. Ao analisar por faixa etria, no grupo de crianas de

6 a 36 meses o ceo-d foi de 0,31 (DP = 1,35) e a prevalncia de crie foi de 9,09%

enquanto no grupo de 37 a 96 meses esse valor subiu para 1,86 (DP = 2,94) e

42,80 %, respectivamente.

Com a finalidade de identificar os fatores relacionados presena ou no de crie

dentria, foi realizada a associao entre a varivel dependente dicotmica (ceo-d =

0/ceo-d 1) e as variveis de desfecho e covariveis e foram apresentados os

dados na tabela 2.

53

Tabela 2. Prevalncia de crie e fatores associados em crianas com anemia falciforme no

estado da Bahia.

Varivel

Prevalncia de crie x2

p valor

*

No (ceo-d = 0) Sim (ceo-d 1)

n % N %

Crise de dor

Sim 58 38,98 91 61,07 15,91 0,000

No 308 57,36 229 42,64

Internao

Sim 72 48,32 77 51,68 24,23 0,000

No 376 70,02 161 29,98

Sexo

Masculino 267 77,17 79 22,83 0,50 0,476

Feminino 270 79,41 70 20,59

Idade

6 a 36 meses 390 90,91 39 9,09 107,42 0,000

37 a 96 meses 147 57,20 110 42,80

Cor da pele

Negro 434 78,48 119 21,52 0,06 0,794

Outros 103 77,44 30 22,56

Instruo da me

1 291 72,57 110 27,43 18,51 0,000

2 246 86,32 39 13,68

Renda familiar

< 1 SM 381 75,15 126 24,85 11,21 0,001

1 SM 156 87,15 23 12,85

Idade da me

< 26 anos 238 78,29 66 21,71 0,00 0,996

26 anos 299 78,27 83 21,73

Nmero de irmos

1 361 81,49 82 18,51 7,57 0,006

2 176 72,43 67 27,57

Nmero de pessoas no domiclio

< 4 337 79,11 89 20,89 0,45 0,501

5 200 76,92 60 23,08

Nmero de cmodos

< 5 344 78,00 97 22,00 0,05 0,814

6 193 78,78 52 21,22

Uso de medicao

Sim 517 78,21 144 21,79 0,04 0,832

No 20 80,00 05 20,00

Vacinao

Sim 530 78,52 145 21,48 1,41 0,235

No 07 63,64 04 36,36

Dieta cariognica

Sim 282 71,21 114 28,79 27,52 0,000

No 255 87,93 35 12,07

Consulta com dentista

Sim 302 83,20 61 16,80 10,95 0,001 No 235 72,76 88 27,24

54

Nessa avaliao preliminar foi possvel verificar que alm das variveis de desfecho,

as covariveis idade da criana, grau de instruo da me, renda familiar, nmero

de irmos, dieta cariognica e consulta com dentista estiveram associadas de forma

bruta ocorrncia da doena crie.

Aps a realizao da anlise multivariada observou-se que as variveis idade da

criana, grau de instruo da me, renda familiar, dieta cariognica e acesso a

servios de sade bucal mantiveram-se significativas (Tabela 3). Dessa forma,

verificou-se que crianas mais velhas (de 37 a 96 meses), com dieta cariognica e

sem acesso a dentista tinham mais chances de apresentar crie, apresentando

valores estatisticamente significantes. J escolaridade materna com segundo grau

incompleto ou mais e renda familiar maior ou igual a um salrio mnimo foram

considerados fatores de proteo.

55

Tabela 3. Anlise multivariada da prevalncia de crie e fatores associados em crianas

com anemia falciforme no estado da Bahia.

Varivel

Prevalncia de crie

OR bruta (IC 95%)

p valor OR ajustada (IC 95%)

p valor*

Internao

Sim 2,50 (1,72-3,62) 0,000 1,46 (0,96-2,23) 0,079

No 1 1

Crise de dor

Sim 2,11 (1,46-3,06) 0,000 1,24 (0,81-1,90) 0,332

No 1 1

Idade

6 a 36 meses 1 0,000

37 a 96 meses 7,48 (4,96-1,29)

Instruo da me

At 1o grau completo 1 0,000

2o grau incompleto ou mais 0,42 (0,28-,63)

Consulta com dentista

Sim 1 0,001

No 1,85 (1,28-,68)

Renda familiar

< 1 SM 1 0,001

1 SM 0,45 (0,28-0,72)

Dieta cariognica

Sim 2,95 (1,95-4,46) 0,000

No 1 * (Ajustado por idade, grau de instruo da me, consulta com dentista, renda familiar e dieta cariognica).

Para a elaborao do modelo de regresso logstica mltipla, inseriram-se as

variveis com maior significncia estatstica (p 0,20) nas duas associaes

investigadas (crise de dor e internao/crie).

Os resultados relativos ao modelo final encontrado aps a anlise mostram que a

crise de dor um fator que est associado ocorrncia de crie dentria em

crianas com anemia falciforme na associao bruta (2,11 vezes mais) porm, aps

os ajustes, essa associao diminuiu para 1,24 vezes e no foi estatisticamente

significativo. Em relao internao, os resultados mostram que houve associao

56

positiva com a ocorrncia de crie dentria em crianas com anemia falciforme na

associao bruta (2,5 vezes), porm, aps os ajustes, a associao diminuiu (1,46

vezes), apesar de ficar num valor muito prximo da significncia estatstica (Tabela

3).

57

6. Discusso

No presente estudo, observou-se que a severidade da condio falciforme por si s

no foi capaz de agravar a prevalncia de crie (crise de dor OR=1,24 95%IC:0,81

- 1,90; internao OR=1,46 95%IC:0,96 - 2,23), assim como no estudo de

Laurence et al (2006), onde a severidade da doena falciforme, analisada pelo

nmero de episdios de crise vasoclusiva, tambm no demonstrou influenciar a

prevalncia de crie.

Dessa forma, na populao estudada a ocorrncia de crise de dor e internao

devido doena falciforme no apresentou associao estatisticamente significante

para a crie aps os ajustes das demais variveis. Na anlise bivariada a crise de

dor e a internao foram apontadas como fatores associados ocorrncia de crie

(OR=2,11 95%IC:1,46 - 3,06 e OR=2,50 95%IC:1,72 3,62 respectivamente), porm

aps regresso logstica mltipla essas associaes no foram estatisticamente

significantes, apesar de serem bem prximos da significncia estatstica no caso da

internao (p = 0,079). Portanto, as demais variveis passaram a constituir fatores

de confundimento. Crianas mais velhas, com dieta cariognica e sem acesso a

dentista tiveram maior associao com a ocorrncia de crie, assim como tambm

crianas cujas mes tinham segundo grau incompleto ou mais e renda familiar maior

ou igual a um salrio mnimo apresentaram menos chances de ocorrncia de crie,

como visto de modo unnime na literatura. (Freire et al, 2009; Tomita et al, 1996;

Leite e Ribeiro, 2000; Barros et al, 2001; Moura et al, 2006; Souza et al, 2006; Lopes

et al, 2009; Azevedo et al 2012; Harris et al, 2004; Fraiz e Walter, 2001; Grindefjord

et al, 1995; Oliveira et al, 2008; Peres et al, 2003; Traebert et al, 2001; Freire et al,

58

2007; Meneghim et al, 2007; Fadel et al, 2008; Catani et al, 2009; Galindo et al,

2005; Peres et al, 2000; Rihs et al, 2005).

A condio de sade bucal mostrou um ceo-d de 0,89 (DP = 2,22) e uma

prevalncia de crie de 21,72%. A prevalncia de crie encontrada no presente

estudo foi baixa se comparada aos resultados encontrados por Luna et al (2012) em

seu estudo realizado em crianas com anemia falciforme na cidade de Recife, onde

foi encontrada alta prevalncia de crie (55% de crianas com cries no tratadas).

Essa divergncia ocorreu possivelmente devido s diferenas dos fatores de risco

para aquisio da crie nas diferentes localidades. Porm, deve-se ressaltar

tambm que a faixa etria utilizada foi mais ampla, envolvendo crianas de 3 a 12

anos de idade, o que pode justificar a diferena.

Fukuda (2005) tambm observou prevalncia reduzida de dentes cariados ao

comparar 60 crianas com anemia falciforme a indivduos sem a doena. Apesar do

pareamento com o grupo controle se restringir a raa e gnero, nesse estudo foi

investigado como fator de interferncia o uso prolongado de penicilina, que mostrou

reduzir significativamente o nmero de Streptococcus mutans na cavidade oral,

justificando assim os resultados encontrados. Dentre os fatores de interferncia

controlados nessa pesquisa, o histrico prvio do uso de antibiticos por tempo

prolongado em alguma poca da vida no foi registrado, sendo, portanto uma

limitao a ser considerada em outros estudos posteriores.

Comparando com o SB Brasil 2003 na faixa etria de at 36 meses, a condio de

sade bucal das crianas desse estudo se mostrou melhor, apresentando um ceo-d

59

de 0,31 e prevalncia de crie de 9,09% enquanto os dados do SB Brasil mostraram

valores de 1,1 e 27%.

Com relao aos outros estudos realizados, inclusive no estado da Bahia, os valores

encontrados nesse estudo tiveram resultados mais positivos, com exceo dos

dados obtidos por Scavuzzi et al (2007), que relataram uma prevalncia de crie de

5,9%. Porm, a faixa etria das crianas utilizadas por esses autores foi um pouco

menor (at 30 meses), podendo explicar essa pequena diferena na ocorrncia da

crie.

J as crianas com mais de 36 meses desse estudo tiveram ceo-d de 1,86, e

42,80% apresentavam ao menos um dente cariado, valores semelhantes mas, ainda

assim, inferiores aos encontrados nas crianas de 5 anos no projeto SB Brasil

realizado em 2003 (2,8 e 59,37%) e 2010 (2,43 e 53,7%) respectivamente. Em geral

os valores encontrados nesse estudo foram inferiores aos de outros autores, porm,

alguns deles (Moura et al, 2006; Almeida et al, 2009; Lopes et al, 2009) encontraram

valores muito similares. Isso demonstra que h uma mudana no perfil

epidemiolgico da crie nos ltimos anos e tem-se visto seu declnio, mas que no

h grande diferena entre crianas que possuem ou no anemia falciforme.

Esse fato pode ser observado tambm no estudo de Matos (2009) onde foi avaliado

o risco de crie atravs da microbiota cariognica, capacidade tampo salivar e fluxo

salivar em pacientes com anemia falciforme e verificou-se que o risco de crie de

crianas com anemia falciforme no diferiu significativamente do grupo controle,

sendo que ambos os grupos apresentaram risco alto e muito alto. Porm, nessa

60

questo, os resultados foram controversos, j que, nesse estudo, o risco de crie

das crianas analisadas foi considerado baixo e muito baixo, atravs do ceo-d. Isso

tambm pode ser devido faixa etria avaliada chegar a uma idade maior (de 4 a 11

anos) que no presente estudo e ao fato de ter apenas 25 pacientes na amostra.

Em relao aos dados obtidos no que diz respeito s manifestaes clnicas graves

da doena, foram encontrados valores de 46,65% de prevalncia de crises de dor e

34,69% para internao. Nos estudos realizados em crianas por Miller et al (2000)

e Lanzkron et al (2010) foram encontrados valores entre 24 a 54% de prevalncia de

crises de dor, resultados similares como os observados no presente estudo, porm,

o ltimo encontrou um percentual de 43,5% para internao, valores um pouco

superiores ao estudo em questo.

Apesar da presena de crie e alterao gengival no ter relao direta com as

manifestaes sistmicas da doena falciforme, estas so influenciadas pela

qualidade e condio de vida, assim como em um paciente sistemicamente saudvel

Soares et al, 2010). Como essas manifestaes sistmicas influenciam na qualidade

de vida do paciente com a doena, ento acabam influenciando indiretamente

tambm na presena de alteraes bucais, dentre elas a crie.

Uma das caractersticas dessa doena a sua variabilidade clnica: enquanto alguns

pacientes tm um quadro de grande gravidade e esto sujeitos a inmeras

complicaes e frequentes hospitalizaes, outros apresentam uma evoluo mais

benigna, em alguns casos, quase assintomtica. Tanto fatores hereditrios como

adquiridos contribuem para esta variabilidade clnica. Entre os fatores adquiridos

61

mais importantes est o nvel scioeconmico, com as consequentes variaes nas

qualidades de alimentao, de preveno de infeces e de assistncia mdica

(Brasil, 2002).

Deste modo, foi possvel observar que a populao desse estudo era composta na

grande maioria por crianas da raa negra, com renda familiar menor que 1 salrio

mnimo, morando em locais com at 5 cmodos e boa parte no tinham acesso a

servios odontolgicos, fatores que influenciam negativamente na qualidade e

condies de vida, e, consequentemente, tambm na condio de sade bucal.

Os eventos de crise de dor e internao foram escolhidos para associao nesse

estudo como fatores relacionados gravidade da doena pelo fato de que

normalmente os pacientes com doena falciforme apresentam histrico de mltiplas

hospitalizaes e de crises dolorosas, episdios de anemia grave, mltiplas

transfuses de sangue e crises recorrentes de infeces bacterianas pulmonares

(Ramakrishna, 2007) e tambm baseado no estudo de Laurence et al (2006) onde a

gravidade clnica da anemia falciforme foi medida aps perguntar quantos episdios

de internao ocorreram.

No estudo de Loureiro e Rozenfeld (2005) observa-se que o ndice de internao

maior na faixa etria de at 9 anos, diminuindo com o avano da idade. A faixa

etria que foi analisada est inserida nesta, sendo bem similar, e desta forma seria

ento potencialmente indicada para verificar a associao da internao com

diversos eventos, inclusive a crie dentria, como foi realizado.

62

O presente estudo tem como principal limitao o seu desenho transversal por no

permitir inferncias de causa-efeito entre os fatores mediadores associados crie

dentria. Contudo, no existem na literatura estudos conclusivos relacionando a

severidade das manifestaes clnicas da anemia falciforme com a prevalncia de

crie na infncia, podendo este ser considerado um passo inicial e servir de base

para outros que necessitam ser realizados.

A anlise estatstica dos dados utilizou como indicador de associao o Odds Ratio

com base no teste estatstico de regresso logstica, ressaltando-se, porm, a

possibilidade de superestimao dos dados por se tratar de um estudo transversal.

63

7. Consideraes finais

De acordo com a metodologia empregada neste estudo, pde-se observar que

algumas caractersticas demogrficas e socioeconmicas que uma populao

possui ou est exposta podem agir como determinantes nas condies de sade,

visto que a idade da criana, grau de instruo da me, renda familiar, dieta e

acesso aos servios de sade foram fatores associados crie dentria no grupo

investigado.

Os resultados apresentados mostraram que a severidade da condio falciforme

isoladamente no foi capaz de agravar a prevalncia de crie, portanto, no h

grandes diferenas entre crianas que possuem ou no anemia falciforme. Porm,

apesar de na populao estudada a ocorrncia de crise de dor e internao devido

doena falciforme no ter apresentado associao estatisticamente significante para

a crie aps os ajustes das demais variveis, deve-se ter uma maior ateno voltada

aos pacientes com anemia falciforme, pelo fato desses estarem vulnerveis a

manifestaes clnicas graves da doena, gerando um desconforto e podendo

influenciar nas condies de sade bucal.

Diante dos resultados encontrados, sugere-se a necessidade de realizao de

outros estudos na mesma temtica, de modo a consolidar e aprofundar a discusso

desses dados, a fim de buscar melhorias nas estratgias de sade voltadas para

essa populao que encontra-se carente de servios destinados diretamente para

sua condio.

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8. Referncias*

ADORNO EV, COUTO FD, MOURA NETO JP, MENEZES JF, RGO M, REIS MG,

et al. Hemoglobinophaties in newborns from Salvador, Bahia, Northeast Brazil.

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ALMEIDA TF, COUTO MC, OLIVEIRA MS, RIBEIRO BMB, VIANNA MIP. Ocorrncia

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Odontol UNESP, Araraquara, nov./dez., 2010; 39(6):355-362.

ALMEIDA TF, VIANNA MIP, CABRAL MBBS, CANGUSSU MCT, FLORIANO FR.

Contexto familiar e incidncia de crie dentria em pr-escolares residentes em

reas do Estratgia Sade da Famlia em Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Sade

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AMARAL KC, TENRIO MDH, DANTAS AB. Condio de sade bucal de crianas

internas em hospitais da cidade de Macei-AL. Odontologia Cln. Cientf., out./dez.,

2005; 5(4):267-73.

* Referncias organizadas Segundo Normas de Vancouver

65

ASHLEY-KOCH A, YANG Q, OLNEY RS. Sickle Hemoglobin (Hb S) Allele and Sickle

Cell Disease: A HuGE Review. Am. J. Epidemiol., 2000; 151(9):839-45.

ASSOCIAO DOS PAIS E AMIGOS DOS EXCEPCIONAIS (APAE). [Acesso em

01 de maro de 2012]. Dis