AS VIDAS DE FARIS MICHAELE: PPGH/DEHIS UEPG · AS VIDAS DE FARIS MICHAELE: reflexões acerca de...

13
AS VIDAS DE FARIS MICHAELE: reflexões acerca de trajetórias de vida, biografias e escritas da história Erivan Cassiano Karvat PPGH/DEHIS UEPG Resumo: A presente discussão seguindo a sugestão do Simpósio Temático Trajetórias no Paraná: reflexões, dinâmicas e perspectivas na História em envolver análises e reflexões (...) que se utilizem das trajetórias de vida como método de pesquisa históricaobjetiva levantar questões acerca das possibilidades do estudo de trajetórias individuais e da construção biográfica e de suas relações com trajetórias de instituições. Para tanto, parte-se da trajetória de Faris Antonio Salomão Michaele (1911-1977), personagem ligado à fundação do Centro Cultural Euclides da Cunha, criado em 1948, em Ponta Grossa, e nome atuante no cenário intelectual dos Campos Gerais ao longo das décadas de 1940-1970, principalmente. Através da leitura de diferentes abordagens biográficas/historiográficas acerca da trajetória de Faris Michaele (DITZEL, 1998 e WANKE, 1999 ou CAMPOS; MARCHESE, 2010 e MOLAR, 2014, entre outras), pretende-se pensar a própria produção biográfica, seus problemas e contextos de produção, bem como a relação entre a trajetória do autor e as leituras acerca das instituições culturais e o papel do intelectual em regiões periféricas. Voltando-se sobre o lugar ocupado por estes intelectuais, seus perfis e características, busca-se refletir sobre as possibilidades de uma História Intelectual voltada à produção cultural de/em círculos periféricos, bem como acerca de questões caras à própria produção do conhecimento histórico e seus vínculos com biografias e trajetórias, como, por exemplo, a relação memória X esquecimento, a produção das narrativas encomiásticas e os mecanismos de canonização no campo da historiografia. Palavras-chave: trajetórias, intelectuais, biografia. Suponhamos que eu me encontre junto á janela do vagão de um trem que viaja uniformemente e que deixe cair uma pedra sobre o leito da estrada, sem lhe conferir nenhum impulso inicial. Então (abstraindo do efeito da resistência do ar) eu vejo a pedra cair em linha reta. Um pedestre que esteja observando minha ação a partir do solo observa que a pedra cai à terra percorrendo um arco de parábola. Pergunto-me, então: as posiçõesseguidas pela pedra estão situadas, na realidade, sobre uma reta ou sobre uma parábola? (...) vemos claramente que não existe uma trajetória em si, mas apenas uma trajetória em relação a um determinado corpo de referência. (Albert Einstein, A teoria da relatividade especial e geral, 1916). A citação de Einstein, na epígrafe apresentada acima, tem somente o objetivo de nos lembrar que, originalmente, o termo designa a curva ao longo da qual um corpo se move no espaço. Portanto, ainda que vejamos a recorrência dos estudos acerca de trajetórias nas Ciências Sociais, cabe-nos observar, que um primeiro emprego trata de um problema da Mecânica ou da Física (mais notadamente

Transcript of AS VIDAS DE FARIS MICHAELE: PPGH/DEHIS UEPG · AS VIDAS DE FARIS MICHAELE: reflexões acerca de...

AS VIDAS DE FARIS MICHAELE: reflexões acerca de trajetórias de vida, biografias e escritas da história

Erivan Cassiano Karvat

PPGH/DEHIS UEPG

Resumo: A presente discussão – seguindo a sugestão do Simpósio Temático Trajetórias no Paraná: reflexões, dinâmicas e perspectivas na História em “envolver análises e reflexões (...) que se utilizem das trajetórias de vida como método de pesquisa histórica” – objetiva levantar questões acerca das possibilidades do estudo de trajetórias individuais e da construção biográfica e de suas relações com trajetórias de instituições. Para tanto, parte-se da trajetória de Faris Antonio Salomão Michaele (1911-1977), personagem ligado à fundação do Centro Cultural Euclides da Cunha, criado em 1948, em Ponta Grossa, e nome atuante no cenário intelectual dos Campos Gerais ao longo das décadas de 1940-1970, principalmente. Através da leitura de diferentes abordagens biográficas/historiográficas acerca da trajetória de Faris Michaele (DITZEL, 1998 e WANKE, 1999 ou CAMPOS; MARCHESE, 2010 e MOLAR, 2014, entre outras), pretende-se pensar a própria produção biográfica, seus problemas e contextos de produção, bem como a relação entre a trajetória do autor e as leituras acerca das instituições culturais e o papel do intelectual em regiões periféricas. Voltando-se sobre o lugar ocupado por estes intelectuais, seus perfis e características, busca-se refletir sobre as possibilidades de uma História Intelectual voltada à produção cultural de/em círculos periféricos, bem como acerca de questões caras à própria produção do conhecimento histórico e seus vínculos com biografias e trajetórias, como, por exemplo, a relação memória X esquecimento, a produção das narrativas encomiásticas e os mecanismos de canonização no campo da historiografia. Palavras-chave: trajetórias, intelectuais, biografia.

Suponhamos que eu me encontre junto á janela do vagão de um trem que viaja uniformemente e que deixe cair uma pedra sobre o leito da estrada, sem lhe conferir nenhum impulso inicial. Então (abstraindo do efeito da resistência do ar) eu vejo a pedra cair em linha reta. Um pedestre que esteja observando minha ação a partir do solo observa que a pedra cai à terra percorrendo um arco de parábola. Pergunto-me, então: as “posições” seguidas pela pedra estão situadas, na “realidade”, sobre uma reta ou sobre uma parábola? (...) vemos claramente que não existe uma trajetória em si, mas apenas uma trajetória em relação a um determinado corpo de referência. (Albert Einstein, A teoria da relatividade especial e geral, 1916).

A citação de Einstein, na epígrafe apresentada acima, tem somente o objetivo

de nos lembrar que, originalmente, o termo designa a curva ao longo da qual um

corpo se move no espaço. Portanto, ainda que vejamos a recorrência dos estudos

acerca de trajetórias nas Ciências Sociais, cabe-nos observar, que um primeiro

emprego trata de um problema da Mecânica – ou da Física (mais notadamente

derivando do chamado Espaço de Fase) (ISAACS, 1996:159) – a trajetória supõe

movimento (e variação no tempo) e que, portanto, é sempre relativa a determinado

referencial; observando-se que, do ponto de vista do estudo do movimento, não há

sentido se falar em movimento sem se especificar o referencial que está sendo

adotado. Portanto, mais do que meramente trajeto ou espaço percorrido para se ir

de um lugar a outro – mais que o sentido de meramente passagem derivado do

latim Trajectoria – a trajetória supõe a descrição das posições sucessivamente

ocupadas por um corpo em seu deslocamento de uma posição á outra no espaço,

num sistema que muda com o tempo.

Disto – ou dito isto – e amparando-nos nas observações da Mecânica, lugar

primeiro da problematização sobre as Trajetórias – podemos observar duas

questões que nos tocam quanto à sua presença, seu uso e recorrência, nas próprias

Ciências Sociais: o lugar do chamado referencial (ou do observador) e, por

conseguinte, a ausência de um sentido quando não referido tal observador. Em

outros termos, pura ilusão (ou, ilusão biográfica?) acreditar na possibilidade de uma

perspectiva de trajetória pura (ou próxima) acerca de um efetivo real vivido. O

sentido, desse modo, emana da observação que, como tal, descreve (ou organiza) o

movimento. O observador atribui propriamente sentido à trajetória; trajetória que

nada mais é que fundamentadora de sentido/sentidos à uma dada experiência,

principalmente no que se refere à relação individual X social . Neste sentido, é

fundamental anunciar que o aspecto mais caro ao elemento relacional no trato de

uma dada trajetória de vida toca a questão da relação de um determinado

sujeito/ator/personagem em relação às posições – e deslocamentos – que assume

em um determinado campo (ou campos)

Ainda em relação à observação de Einstein - da relação trajetória X corpo de

referência, talvez seja interessante recuperar-se os sentidos que a expressão

assumiu historicamente nas Ciências Sociais. Para tanto, transcreva-se uma breve

observação de um dos seus mais destacados defensores, Pierre Bourdieu:

Diferentemente das biografias correntes, a trajectória descreve a série das posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo escritor nos estados sucessivos do campo literário, dando-se por entendido que é apenas na

estrutura de um campo, quer dizer, uma vez mais, relacionalmente, que se define o sentido dessas posições sucessivas, publicação nesta ou naquela revista ou por este ou aquele editor, participação neste ou naquele grupo, etc. (BOURDIEU, 1997:50).

A citação de Bourdieu é quase que um manifesto em oposição à utilização

das chamadas Histórias de Vida, adotadas nas Ciências Sociais principalmente por

orientação da obra de Daniel Bertaux, entendidas como carecedoras de uma

problematização entre a trajetória estudada e suas relações com os

circunstaciamentos sociais ou com as “condições concretas de existência a ela(s)

subjacentes” (GUÉRIOS, 2011:12). Neste sentido é fundamental, portanto, situar o

sujeito/agente social em seu grupo social e em seu tempo. Do enfrentamento da

construção das trajetórias – ou da “trajetória construída”, segundo Bourdieu

(1996:292) – deve resultar a biografia e, desse modo, diferente das tentativas de

apreensão teleológicas e /ou reducionistas e que buscam estabelecer uma

sequencia lógica/cronológica dos eventos da vida de uma pessoa, como se tal vida

pudesse supor um conjunto coeso, “coerente e orientado” (BOURDIEU, 1997:53).

Assim, para Bourdieu, a ilusão biográfica advém de uma ideia de biografia

(“corrente“) na qual

a vida organizada como uma história (no sentido da narrativa) desenrola-se, segundo uma ordem cronológica, que é também uma ordem lógica, a partir de um começo, uma origem, no duplo sentido de ponto de partida, de início, mas também de princípio, de razão de ser, de causa primeira, até ao termo que é também um alvo, um cumprimento (telos). A narrativa (...) propõe acontecimentos que (...) tendem a, ou pretendem, organizar-se em sequencias ordenadas segundo relações inteligíveis (1997:54).

Ao contrário, a construção da noção de trajetória suporá a “série das posições

sucessivas ocupadas por um mesmo agente ou por um mesmo grupo de agentes

em espaços sucessivos” (BOURDIEU, 1996:292) e também “num espaço ele próprio

em devir e submetido a transformações incessantes” (BOURDIEU, 1997:58).

Portanto, noções como agentes, estrutura do campo (simbólico, político,

cultural) e suas “forças”, habitus, disposições, estratégias, colocações e

deslocamentos passam a compor a intriga biográfica, sendo a trajetória a própria

objetivação da relação entre os agentes – e seus habitus – e as “forças do campo”,

lembrando que “para que um campo funcione, é necessário que haja paradas em

jogo [objetos de disputas1] e pessoas prontas a jogar esse o jogo, dotadas de

habitus que implique o conhecimento e o reconhecimento das leis imanentes ao

jogo, das paradas em jogo, etc.” (BOURDIEU, 2003:120).

Assim:

É com relação aos estados correspondentes da estrutura do campo que se determinam em cada momento o sentido e o valor social dos acontecimentos biográficos, entendidos como colocações e deslocamentos nesse espaço (...). Toda trajetória social deve ser compreendida como uma maneira singular de percorrer o espaço social, onde se exprimem as disposições do habitus (...). (BOURDIEU, 1996:292).

Diferentemente das biografias que impõe um senso de coerência, no entanto,

esvaziadas de tensão entre sujeitos e circunstâncias sociais (entendendo-se, aí,

pertencimento e posição num dado campo, deslocamentos, etc) – e para as quais

Bourdieu sugere como o “absurdo” de uma suposta tentativa de em se “explicar um

trajeto de metrô sem se levar em conta a estrutura da rede” (BOURDIEU, 1996:292

e 1997:58) – temos no exercício das trajetórias sociais exercícios que intentam

alocar o agente em tensão ao seu tempo, sua geração ou a um dado campo,

possibilitando-se enfrentar, assim, o lugar e posições que o agentes assumem

(negam ou reivindicam) e que, por vezes, sugerem contradições (ou outras

dinâmicas) quanto aos próprios papéis assumidos e/ou ideias enunciadas por estes

mesmos agentes. Contradições e/ou dinâmicas, estas, não subsumidas às biografias

que comumente transformam vidas em espécies de curriculum vitae ou cartões de

apresentação, nos quais uma carreira ou uma vida é enredada “como uma série

única e em si suficiente de acontecimentos sucessivos sem outro elo que não a

associação a um “sujeito” cuja constância não pode ser mais que a de um nome

próprio socialmente reconhecido” (BOURDIEU, 1996:292).

O interesse sobre o problema das trajetórias abre possibilidades para um

campo de investigação sobre o qual temos nos voltado nos últimos anos: a atenção

1 Na obra original – Questions de sociologie – o termo que aparece é enjeux (questões). A tradução brasileira, de

1983, toma o termo, muito convenientemente em nosso entendimento, como objetos de disputa, diferente da

tradução portuguesa, na qual nos guiamos, que adota “paradas em jogo”. Cf. BOURDIEU, P. Questions de

sociologie. Paris: Minuit, 2009. p. 114 e Questões de sociologia. Rio de janeiro: Marco Zero, 1983.

sobre grupos/círculos/ sociabilidades intelectuais em regiões periféricas, sobre a

produção intelectual destes grupos ou sobre as possíveis caracterizações destes

intelectuais (provincianos(?), produtores culturais(?), mediadores(?), etc.) buscando

melhor compreende-los e às sua produção, bem como quanto ao seu papel na

circulação, divulgação e/ou rotinização das ideias (KARVAT ; CHAVES, 2013.

MACHADO ; KARVAT, 2013. KARVAT ; GUEBERT, 2013).

Voltando-nos mais especificamente ao Centro Cultural Euclides da Cunha

(CCEC) – criado na cidade de Ponta Grossa (Pr) em 06 de maio de 1948,

permanecendo em atividade até 1985, tendo tido seu período de maior relevância na

década de 1950 – (KARVAT, 2015), vemos um grupo de “intelectuais”, inspirados na

figura de Euclides da Cunha e sua obra, dedicados a “debater” questões referentes

(poderíamos dizer) à identidade nacional e ao pertencimento regional. Tais questões

foram veiculadas principalmente através do jornal do CCEC, significativamente

intitulado Tapejara2 – que circulou de 1950 a 1976, totalizando 24 edições.

Dentre o conjunto de agentes que compõem o Centro, destaca-se (ou é

destacado) o seu fundador o professor Faris Antonio Salomão Michaele (1911-

1977).

O interesse sobre a História Intelectual e o foco sobre uma instituição cultural,

como o caso do CCEC, localizada numa cidade do interior do país, constituída por

homens de letras, envolvidos em debater a identidade nacional/regional num

momento de tensão em função de mudanças estruturais que por que passava o

estado do Paraná, mais suscita-nos indagações do que aferir colocações

conclusivas.

Dentre estas indagações se coloca, por exemplo, o problema da dimensão

regional da História Intelectual (PASOLINI, 2013). Em certo sentido, podemos fazer

as mesmas questões que Ricardo Pasolini reivindica pensando no cenário argentino:

o que significa ser um "intelectual" na "província", ou na "periferia" dos centros urbanos, ou nos mundos culturais "locais"? E a partir disso, que imagem da vida cultural nacional pode resultar da redução da escala de

2 Segundo Eno Wanke, na abertura da sua biografia de Faris Michaele, tapejara [do tupi tape‘yara, ‘aquele que

toma o caminho‘]– de acordo com o Dicionário Eletrônico Aurélio – significa conhecedor de caminhos ou de

uma região, bem como pessoa hábil e entendida. (WANKE, 1999). Os integrantes do CCEC aludem a si mesmos

como tapejaras.

observação? Finalmente, que tipo de estatuto epistemológico tem então a própria noção mesma de região? (PASOLINI, 2013:190).

Perceba-se que uma agenda de investigação voltada para o objeto (ou

objetos) que nos interessam, parece exigir um foco renovado sobre temas já

bastante tocados, exigindo, mesmo, uma nova perspectivação:

– A noção de região/regional/local deve ser redimensionada e não tomada no

sentido de uma certa tradição que supõe sua existência como algo dado ou prévio

aos textos que a conformam, perdendo justamente o caráter da sua construção,

resultante de diferentes possibilidades e sentidos. Ou em outros termos, esta

tradição historiográfica parte da constatação que a região é um dado “em si”, com

uma existência independente dos discursos que a definem, constituída não

conceitual mas espacialmente (ALBUQUERQUE JR., 2008). Desse modo, um ponto

de partida é buscar perceber a elaboração de diferentes representações, usos e

apropriações do termo a partir da própria articulação conferida pelos agentes em seu

círculo intelectual. Perspectiva, esta, que parece animar a própria existência do

CCEC e dos auto-aclamados tapejaras.

– Como pensar a produção intelectual regional, periférica ou provinciana?

Qual estatuto cabe ao homem de letras que enuncia sua fala e dirige seu olhar a

partir de uma mirada que se quer e se vê “do interior” ou de província?

Fundamentalmente, para além das autocaracterizações que estes grupos inflijam à

sua própria existência, cabe pensar no uso retórico de determinadas expressões, (de

modéstia, por exemplo), buscando delimitar seu lugar e sua relação com outros

intelectuais ( LOPES; DENIPOTI, 2010), ao mesmo tempo que imprescindível o trato

histórico a estas designações, que contextualize suas recorrências Neste sentido, o

uso do termo Intelectual Regional, conforme sugere Luis Rodolfo Vilhena parece

bastante sugestivo ao período de maior atividade do CCEC. Vilhena (1996) traz para

o debate um grupo que ele considera “um participante do complexo panorama

intelectual dos anos 50”, o chamado Movimento Folclórico. Ainda que não possamos

atribuir relação direta dos integrantes do CCEC a tal movimento, com sua análise

Vilhena chama atenção para a constituição de um network entre diferentes

intelectuais, de diferentes locais – principalmente de fora do eixo Rio-São Paulo – e

que a partir de congressos trocavam experiências e chamavam atenção para sua

própria existência. Em nosso entendimento, Vilhena chama atenção do para os anos

1950, década ainda pouco observada pelos interesses de uma História Intelectual (e

– conforme assinala o próprio Vilhena – “essencial para a compreensão da história

das Ciências Sociais no Brasil”) na qual convivem diferentes projetos de sociedade e

que aponta, mais enfaticamente, para a convivência de diferentes clivagens

intelectuais, tensionando, por exemplo, aquilo – que na falta de uma melhor

denominação – poderíamos chamar de embate entre conservantistas e

modernos/modernizadores e que se agonizaria ainda mais na década seguinte. De

mesma forma, a observação de uma rede (network), naquela década, nos faz

lembrar a articulação do CCEC ao chamado movimento euclidiano, responsável pela

invenção de uma tradição euclidiana no país e o que faz supor acerca do

intercâmbio entre os seus integrantes/freqüentadores, animados em torno de

problemas comuns.

– Acerca da relação centro X periferia de um ponto de vista

histórico/historiográfico3, lembramos com Carlo Ginzburg e Enrico Castelnuovo, que

além de congregar diferentes sentidos, tal relação não pode ser avaliada como

passiva, numa dimensão de termos que são mais complementares que antitéticos.

Conforme diz o historiador italiano, referindo-se ao campo da história da arte italiana:

Se o centro é por definição o lugar da criação artística e periferia significa simplesmente afastamento do centro, não resta senão considerar a periferia como sinônimo de atraso artístico, e o jogo está feito. Trata-se, bem vistas as coisas, de esquema subtilmente tautológico que elimina as dificuldades em vez de tentar resolvê-las. Experimente aceitar os termos “centro” e “periferia” (e as respectivas relações) na sua complexidade: geográfica, política, econômica, religiosa – e artística (GINZBURG ; CASTELNUOVO, 1991:6).

Neste sentido, o olhar sobre o local, o regional ou o periférico pode ser bastante

significativo no plano de uma História Intelectual, pois pode projetar interesse em aspectos

nem sempre percebidos quando se parte de um olhar que tende a homogeneízar ou

universalizar determinadas leituras ou interpretações, não reconhecendo possibilidades

postas pela circulação de idéias e textos, por suas apropriações e usos – usos que

emanam de interesses e possibilidades postas justamente por isto que podemos chamar

de uma mudança de cenário. Neste sentido, determinadas idéias e autores tendem a

serem lidos conforme disposições de questões locais/regionais/periféricas ou, ainda,

determinadas idéias e autores tendem a permanecer no campo de interesse deste cenário

mesmo quando já – do ponto de vista do centro – terem sua “credibilidade”

enfraquecida.

Ginzburg e Castelnuovo, mais do que apontar uma reificação ao uso da

oposição centro X periferia, assinalam, através do estudo da história da produção da

arte italiana, para a constituição histórica desta oposição, observando que tomar

toda forma de “atraso” como periférico ou toda periferia com “retardatária” implicaria

em adotar uma visão linear da história dessa forma de produção:

Deste modo acaba-se por procurar na arte da periferia aqueles elementos, aqueles cânones, aqueles valores que são estabelecidos tendo precisamente como base os caracteres das obras produzidas no centro; e no caso de se reconhecer a existência de cânones diferentes, esses são examinados só em relação ao paradigma dominante, com um procedimento que leva facilmente a juízos de decadência, de corrupção, de baixa de qualidade, de rudeza, etc. (GINZBURG: 1991, 53).

Ainda que os historiadores italianos falem em uma certa “autonomia da

periferia”, para nós interessa ainda mais o reconhecimento daquilo que podemos

chamar de dinâmica da produção da periferia, menos preocupados com o caráter de

autonomia. Tal reconhecimento ao se voltar sobre intelectuais alocados fora dos

centros de reconhecida de nobilidade intelectual persegue a complexidade no

campo de produção das ideias e, desse modo, sobre intelectuais e textos,

reconhecendo a própria complexidade da relação entre ideias X intelectuais X textos

alocados em centros de produção e ideias X intelectuais X textos situados na

periferia destes centros. Se “identificar pura e simplesmente a periferia com o atraso

significa, em última análise, resignar-se a escrever eternamente a história do ponto

de vista do vencedor de round”, conforme se referem Ginzburg e Castelnuovo, mais

necessário ainda é romper com a resignação de uma escrita de história que vivifica

as leituras feitas a partir de cânones estabelecidos historiograficamente, resignação

que é construída e, portanto, interessada. E mais que isto, portadora de sentidos

3 A presente observação – com breves modificações – foi extraída de KARVAT, 2015.

que justificam determinados modos de compreensão e de autoridade (intelectual) e,

com isto, promotoras de seleções e silenciamentos. Adotar a relação do periférico

correspondendo ao atrasado, justifica resignadamente, por exemplo, o desinteresse,

até pouco recente, em torno de idéias, intelectuais e textos compreendidos como

periféricos, o que lhes conferia a pecha de pouco pertinentes. Relação e

entendimento que, no campo da História Intelectual, não se pode validar.

Poderíamos neste caso, em especial, também falar em complexidade intelectual ou

da produção intelectual, entendo nesta a dimensão da circulação, apropriação e

usos dessa produção pelos atores acima referidos (mediadores/portadores, etc...)?

Complexificar tal entendimento supõe – a partir da tensão centro X periferia –

buscar, na expressão de María Del Mar Carnicer e Rebeca Camaño Semprini,

características particulares e lógicas diversas que “contradizem a tradicional imagem de

homogeneidade (...) contribuindo para a complexificação do conhecimento histórico”

(CARNICER ; SEMPRINI, 2014:92).

– Por fim, cremos, neste sentido, que tal complexificação passa pela chamada

redução ou jogos de escalas, uma vez que tal abordagem revela uma versão diferente

acerca do social, evitando generalizações, sendo que a variação de escala “significa

modificar sua forma e sua trama” (REVEL, 1998:20), revelando aspectos sutis e talvez mais

sugestivos quando se trata de espaços periféricos e regionais e suas relações e

identidades e intentando estabelecer articulações (e não apenas generalizações) entre o

local/periférico e o nacional/centro.

Assim, voltando ao problema das trajetórias, entendemos que a recorrência a tal

possibilidade permite um olhar renovado acerca do objeto apresentado acima. Ou seja,

com recurso ao foco na dinâmica das trajetórias, se pode refletir em torno das questões

formuladas por Pasolini e apresentadas anteriormente como, a relação entre centro e

periferia, constituição de campos, definição de região e do próprio estatuto de intelectual. O

estudo de trajetórias, vinculado ao jogo de escalas, deve propiciar um melhor entendimento

acerca da existência e presença de intelectuais, suas ideias e posições frente a outros

intelectuais e seu tempo, evitando-se atrelar tais experiências a um contexto dado, que as

justificaria, ou buscando-se regularizá-las a partir de generalizações. Da mesma forma,

evita a compreensão equivocada das biografias, como já comentadas nas páginas

anteriores, isto é, como uma sequência lógica e cronológica que atrela acontecimentos tal

unicamente a vida individual de um dado agente/personagem, alijando-o das circunstâncias

sociais e históricas.

O caso das abordagens em torno da vida do professor Faris Michaele, personagem

associada à própria existência do CCEC, é significativa para pensarmos os aspectos

comentados acima e que possibilitam a abertura para futuras indagações, sugerindo que

falemos em As Vidas de Faris Michaele.

Sem a menor preocupação em mapear todos os textos que se voltam aos

elementos biográficos de tal personagem (como jornais, notas e discursos solenes), para

fins desta apresentação, podemos citar Faris A. Michaele, publicado em 1957 pelo general

Murillo Teixeira Barros, vice-presidente do CCEC e a referencial biografia do já citado

WANKE, (1999), Faris Michaele, o tapejara. Além destas, podemos lembrar a dissertação

de Carmencita Ditzel, O Arraial e o fogo da cultura: os euclidianos pontagrossenses (1998),

o artigo de Névio Campos e Elisa Marchese, Faris Michaele: trajetória de um intelectual

moderno, de 2010 e a tese de Jonathan Molar, Faris Michaele: cultura e modernidade no

Centro Cultural Euclides da Cunha de Ponta Grossa – CCEC (1930-1983), defendida em

2014.

Podemos, assim, pensar dois conjuntos: aquele das chamadas “biografias

ordinárias”, representado pelos textos de Barros e de Wanke e, outro, englobando as

demais apresentações, de orientação e caráter acadêmicos.

As biografias citadas, dentro de uma perspectiva que particulariza o regional,

promovem uma “exaltação localista”, pondo em relevo o chamado espaço regional

(PASOLINI, 2013:191). Podemos, também, pensar a orientação destes textos em relação

à ilusão biográfica, remetendo à vida como uma espécie de projeto original, dotado de

sentido e coerência, no qual abundam as expressões “já”, a partir de” e os “desde muito

jovem” (BOURDIEU, 1997; 53). Na relação entre o relevo local e a exaltação da

personagem, Wanke, por exemplo, sugere uma divisão para a “História Cultural’” de Ponta

Grossa, em duas fases: “a. F e d. F – antes de Faris e depois de Faris”. Neste sentido,

parece reverberar as observações de Pasolini, para o caso argentino: há uma

“autocelebração da comunidade local”, sendo que os universos locais se convertem em

regiões que se explicam a si mesmas fora de toda influência, empréstimos o

ressignificação” (PASOLINI, idem). Curiosamente, enquanto o opúsculo do general não

aparece citado, o trabalho de Wanke se tornou base de informação cronológica e biográfica

para as abordagens acadêmicas, presente em todas as discussões sobre a trajetória de

Michaele e do CCEC. Neste sentido, ainda que o conjunto de trabalhos de verve

acadêmica, cada uma à sua maneira, venham (ou tenham) discutido o problema da

produção e circulação cultural regional e revelado aspectos da vida intelectual local, ainda

carece-se de uma melhor problematização, principalmente no que se refere a própria

constituição da região por estes intelectuais, questão-chave para o entendimento, cremos,

da própria criação do CCEC. Por exemplo, mais do que a ênfase num certo sentido de

modernidade (em relação à Faris e ao CCEC) – presente no conjunto da produção

acadêmica – talvez coube-se um “passo atrás” e ao invés da ânsia da caracterizações,

pudéssemos ver um sentido de permanência (e tudo que esta ideia implica) de diferentes

preceitos e, mesmo, de diferentes concepções de tempo/temporalidades e que seriam

manuseados segundo necessidades impostas pela própria contingência do período no qual

personagem e instituição se inscrevem (no caso, os anos 1950). Neste sentido, por vezes

(e não poucas vezes), o que se vê nos enunciados do CCEC é um discurso que, lido à luz

da produção do período, se apresenta mais como algo antimoderno, reclamando a

permanência de preceitos e orientações que se esvaiam, revelando, portanto, seu caráter

conservador, de manutenção de determinados visões de mundo e valores – e, por quê

não?, de dada concepção de ordem temporal.

Ampliar o conhecimento acerca deste conjunto, principalmente o de textos “de

exaltação”, problematizando-os, reconhecendo os pontos de sua urdidura no que se refere

às posições ocupadas por seus autores no campo local, abre-se como um que próximo

passo necessário, sendo esta apresentação uma prévia e primeira (auto)provocação para

pensar possibilidades vindouras de investigação.

Referências

ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. Receitas regionais: a noção de região como um ingrediente da historiografia brasileira ou o regionalismo como modo de preparo historiográfico. XIII Encontro de História Anpuh-Rio. Rio de Janeiro, 2008. BARROS, Murillo T. Faris A. Michaele. Ponta Grossa: Centro Cultural Euclides da Cunha, 1957.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da acção. Oeiras: Celta, 1997.

CAMPOS, Névio ; MARCHESE, Elisa. Faris Michaele: trajetória de um intelectual moderno. Olhar do professor, Ponta Grossa, v. 13, n.1, p. 185-199, 2010. CARNICER, María del Mar ; SEMPRINI, Rebeca Camaño. El peronismo a escala local y regional: balances historiográficos y avances empíricos. Coordenadas: revista de história local y regional. Lugar: Rio Cuarto, 2014. P. 89-93.

DITZEL, Carmencita de H. M. O Arraial e o fogo da cultura: os euclidianos pontagrossenses. Ponta Grossa, 1998, 214p f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 1998. GINZBURG, C. ; CATELNUOVO, E. História da arte italiana. In. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991. p. 5-93. GUÉRIOS, Paulo Renato. O estudo de trajetórias de vida nas ciências sociais: trabalhando com diferenças de escalas. Campos, Curitiba, v. 12, n. 1, p. 9-29, 2011. ISAACS, Alan (dir.). Dicionário breve de física. Lisboa: Presença, 1996. KARVAT, E. C. Intelectuais, centro e periferia: reflexões sobre a História Intelectual a partir do Centro Cultural Euclides da Cunha, Ponta Grossa (PR), anos 1950. Anais do VII Congresso Internacional de História. Maringá: UEM, 2015. KARVAT, E. C. CHAVES, Niltonci B. Intelectuais, discursos e instituições: as relações entre a História Intelectual (e/ou de Intelectuais) e a História Local (reflexões sobre possibilidades de pesquisa). Anais do VI Congresso Internacional de História. Maringá; UEM, 2013. KARVAT, E. C. ; GUEBERT, C. A. Intelectuais, idéias e instituições em cenário periférico: o Centro Euclides da Cunha, Ponta Grossa, 1948-1985 (notas de leitura). In. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História. ANPUH: Natal, 2013. LOPES, Itamar; DENIPOTI, C. L. Entusiastas da cultura: o universo do livro e suas representações nas cartas do Centro Cultural Euclides da Cunha. História: Franca, v. 29, n.1, p. 368-393, 2010. MACHADO, Valeria F. ; KARVAT, E. C. Sobre as (dificultosas) relações entre intelectuais, ideias e periferias ou o que se quer dizer quando falamos em produção intelectual e/ou circulação de ideias em espaços não consagrados. In. Anais do I Congresso Internacional de História Unicentro/UEPG: Irati:Unicentro, 2013.

MOLAR, Jonathan de O. Faris Michaele: cultura e modernidade no Centro Cultural Euclides da Cunha de Ponta Grossa – CCEC (1930-1983). Curitiba, 2014, 257 f. Tese

(Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014. PASOLINI, Ricardo. La historia intelectual desde su dimensión regional: algumas reflexiones. Prismas, Bernal, n. 17, p. 187-192, 2013. REVEL, J. Micro análise e construção do social. In. REVEL, J. (org). Jogos de escalas: a experiência da micro análise. Rio de janeiro: FGV, 1998. p. 15-38. VILHENA, L. R. Os intelectuais regionais: os estudos de folclore e o campo das ciências sociais nos anos 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, n. 32, out. 1996. WANKE, Eno Theodoro. Faris Michaele, o tapejara: uma biografia Rio de Janeiro: Edições Plaquette, 1999.