AS ROSAS DE MINHA MÃE E OUTROS CONTOS

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Contos de terror do escritor brasileiro Cretchu, AS ROSAS DE MINHA MÃE e outros contos.

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Cretchu

AS ROSAS DE MINHA MÃE e outros contos

2008

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AS ROSAS DE MINHA MÃE

Quando a primeira rosa nasceu no assoalho da casa de Ivan Bongiorno,

pensou-se tratar de algo dentro da normalidade, inclusive porque o proprietário era um homem que se destacava por seu pensamento analítico e eivado de quaisquer interferências mágicas ou transcendentais. Todas as explicações para todos os fenômenos estavam no interior daquela brilhante cabeça emoldurada por alinhados cabelos brancos. Não era muito prudente desafiar a visão de mundo do respeitado promotor público Ivan Bongiorno. Quem ousasse cometer tal iniqüidade, perante tão grave personagem, seria rotulado logo de provinciano, o que não era um adjetivo muito apreciado naquela cidade do interior de Minas Gerais, com seus dez mil habitantes. Porém, ninguém levou em consideração que uma rosa rompera o assoalho, uma rosa vermelha com seu talo verde repleto de acúleos e com folhas também verdes, exibindo-se no centro do salão de festas da casa que recebia tantas personalidades ilustres deste Brasil afora.

A primeira atitude de Ivan Bongiorno, que impediu que se fotografasse o fenômeno, foi mandar cortar a rosa. Um pedreiro de poucas letras, enquanto bebia uma cachaça com o jardineiro encarregado da honrosa missão, argumentou, com aquele profissional, se não seria melhor quebrar todo o assoalho e verificar o que havia no solo para provocar o brotar da rosa. O jardineiro ouviu as ponderações do pedreiro e, no dia seguinte, compareceu ao gabinete da promotoria, no Fórum local, para contar o ocorrido a Ivan Bongiorno. O pedreiro foi chamado, incontinenti, à presença do ofendido promotor, onde foi obrigado a se desculpar por sua intromissão em assuntos que não lhe diziam o menor respeito, e do qual não deveria opinar com sua compreensão estúpida de analfabeto ignorante.

Pois a rosa foi cortada e jogada no lixo, e naquele dia ninguém mais se atreveu a fazer coro com as afirmações do infeliz pedreiro. No entanto, novos acontecimentos se juntariam àquele estranho fenômeno, e o comportamento de Ivan Bongiorno, este grande jurista de mente científica, iria ficar cada vez mais estranho. Tão estranho quanto aquele, o de mandar apenas cortar uma rosa que irrompeu no assoalho de sua casa, sem investigar a fundo o que provocara o fenômeno.

Estou vendo que você, meu velho amigo... Sim, devo chamar você de velho amigo, porque nós nem bem nos conhecemos, e você acolheu meu humilde pedido de me pagar uma pinga. Por acaso eu sou o único a pedir um negócio destes a você? Você paga uma pinga a qualquer um que lhe pede? Claro que não. Se você aceitou me pagar uma pinga, é porque nós somos velhos amigos, embora não saibamos como. Mas pode ficar sossegado que já estou lhe devolvendo a gentileza, contando esta história absolutamente verídica.

Pois bem, vejo que você concorda que Ivan Bongiorno deveria investigar o que causara aquele fenômeno estranho. Uma rosa brotou no assoalho de sua casa. Já imaginou a grossura do assoalho? Nem o pedreiro que questionou a atitude do promotor deve ter pensado o quanto o assoalho era firme e grosso. Pois uma rosa irrompeu pelo

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assoalho. Segundo o jardineiro, não fez qualquer estrago. Esquisito, não? Se ainda fosse uma mangueira... Pois isto não foi mais esquisito que o comportamento de Ivan Bongiorno. Ele deveria, sim, mandar apurar os fatos. Mas não fez isto porque, no fundo, sabia o que provocou o nascimento daquela rosa. O homem mais tecnicista de todo o Universo começava a ser importunado por fantasmas. E vou contar o porquê.

De início, aquela casa enorme de Ivan Bongiorno não existia. No lugar, estava um grande terreno que ocupávamos eu e minha mãe, desde a época em que eu nasci e que meu pai desaparecera no mundo. Tínhamos um barraco no fundo do terreno, feito de taipa e amianto, que era muito quente no verão e muito frio no inverno, e dentro do barraco o ar não circulava muito. Na frente do barraco ficava o quintal, dando para a rua. O quintal era todo tomado por rosas vermelhas, ficando uma réstia de caminho por onde passávamos da rua ao barraco. Estas rosas eram cultivadas por minha mãe, com todo o carinho, desde que mudamos para lá, e minha mãe as vendia na cidade e para pessoas de outra localidade. Delas tirávamos nosso sustento, que era pouco, mas o suficiente para não morrermos de fome, ainda mais porque não tínhamos outros parentes naquela cidade.

Ninguém da cidade bulia com as rosas de minha mãe, mesmo à noite e apesar da cerca de bambu que não agüentava nada. Nas cidades do interior de Minas há um certo respeito que nunca deixa de existir, mas que se omite para ceder seu lugar ao temor. Assim, a solidariedade comum nos povos do interior fica prejudicada com a arbitrariedade cometida por autoridades constituídas pelo próprio povo. Desculpe tirar do bolso o meu sociologismo de botequim, mas foi assim que eu vi o que aconteceu comigo e com minha mãe, quando Ivan Bongiorno chegou na cidade. Porque parece que aquele respeito todo deixou de existir, quando o promotor começou a agir contra nós. Bom, na verdade ele continuou existindo, pois as pessoas ficaram consternadas, mas mesmo assim acataram as determinações de Ivan Bongiorno, seja para nos tirar daquele lugar, seja para não reagirem quando nos tiravam daquele lugar.

Pois eu estava com onze anos na época, e estudava na quarta série, sendo que nas horas vagas eu ficava ajudando minha mãe a cuidar das rosas e a vendê-las. Como eu disse, morávamos num barraco, ou seja, pobremente, tirando nosso sustento da venda das rosas. Ninguém nos incomodava, e nós não incomodávamos ninguém. Eu sabia que havia uma vida financeira melhor, se me aliasse ao crime, visto ser menor de idade e ter pouca instrução, seja em nossa cidade, seja em cidades maiores. Mas preferia levar minha vida pobre, estudando e trabalhando, acreditando que no futuro eu poderia ter uma vida mais digna com honestidade. Foi nesta época que Ivan Bongiorno chegou na cidade, tomando posse no lugar do antigo promotor de Justiça, que foi para uma cidade maior.

Em nossa cidade, havia uma regra seguida por todos os prefeitos, de que a municipalidade deveria pagar os aluguéis do juiz, do promotor e do delegado, pois os mesmos eram pessoas de fora que não tinham imóveis na cidade. Bom, claro que os vencimentos destas personalidades era suficiente para pagar um aluguel, e até para comprar casa. Acontece que nenhum deles tinha interesse em comprar casa em nossa cidade, onde os imóveis se valorizavam muito pouco, ou até nada. Quanto aos aluguéis, os prefeitos argumentavam, ao longo de seus mandatos, que ficariam sob responsabilidade da prefeitura porque estas pessoas eram indispensáveis à vida de nossa cidade. Tinham toda razão quanto à indispensabilidade destas autoridades. Entretanto, as casas ocupadas pelos juízes, promotores e delegados que se sucediam em nossa cidade, eram sempre as mesmas e pertenciam a pessoas poderosas que investiam pesado nas campanhas dos políticos que se candidatavam em nosso município. Com a regra do

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pagamento de aluguéis por parte da prefeitura, estes proprietários tinham assegurado sua renda.

O atual prefeito mantinha a regra, e Ivan Bongiorno, antes mesmo de conhecer nossa cidade, já sabia desta benesse. Quando aportou em nossa cidade, foi recebido como herói por pessoas que nunca o viram antes, e se acomodou na casa que fora ocupada pelo promotor que o antecedera. Ele impressionava por seu porte atlético, homem muito alto e que, apesar de jovem, já possuía a cabeleira toda branca, mantendo bem alinhados todos os fios de cabelos. Mas Ivan Bongiorno começou a questionar a extensão desta regra, alegando que ela poderia se tornar mais flexível. Argumentava Ivan Bongiorno que a casa onde morava era simples demais, que ele era um homem da sociedade, que conhecia e recebia tudo quanto era Vip do Brasil e do mundo, que tinha uma grande biblioteca, e por aí afora. Assim, necessitava de uma casa melhor e mais espaçosa.

A primeira reação do proprietário da casa onde estava morando Ivan Bongiorno foi de irritação. Ele alugava a casa para promotores há mais de vinte anos, tendo uma renda garantida pela prefeitura, e perderia esta renda por causa dos caprichos do novo promotor. Mas o prefeito tratou de tranqüilizá-lo, prometendo que, assim que o promotor se mudasse, a prefeitura alugaria sua casa para nela instalar um posto de saúde, aumentando, também, o valor do aluguel. O proprietário ficou satisfeito com a solução, e até ajudou os funcionários da prefeitura a buscarem uma nova residência para Ivan Bongiorno, preferencialmente dentre os imóveis de propriedade das pessoas que investiam nas campanhas políticas dos candidatos da cidade.

Procuraram durante vários dias, mostrando o resultado para Ivan Bongiorno. O promotor vistoriava o imóvel encontrado e, com um raciocínio que buscava ser cientificamente neutro, reprovava a residência. Várias eram as teses levantadas pelo promotor. Até as crianças das escolas municipais eram convocadas a procurar casa para o promotor, com promessa de que a turma que conseguisse encontrar uma residência ideal poderia visitar o Fórum. Ora, qualquer pessoa devidamente trajada pode visitar o Fórum, mas vai explicar isto para as pessoas humildes do interior de Minas. Logo, visitar o Fórum era um prêmio que enchia de satisfação a todas as crianças e a seus orgulhosos pais. Fique sabendo que a minha turma se engajou nessa missão, e eu participei ativamente. Mas Ivan Bongiorno continuava a reprovar todos os imóveis encontrados, sempre com seu raciocínio lógico.

Até que num domingo de muito calor, Ivan Bongiorno vinha de carro com sua mulher, voltando de um almoço na churrascaria de um hotel fazenda perto de nossa cidade, quando passou em frente à nossa casa. A primeira reação de Ivan Bongiorno foi de prazer, ao ver rosas tão bem cuidadas. Parou seu carro, enquanto sua mulher lhe dizia que daquelas rosas saiu o ramalhete com que foram presenteados quando de sua chegada. Ali morava a mais famosa vendedora de rosas de toda a região. Mas Ivan Bongiorno viu mais que a beleza do quintal. Também viu mais que o barraco onde morávamos. Enquanto problemas e hipóteses vinham à mente de Ivan Bongiorno, minha mãe saiu no quintal, ficando a postos, acreditando que eram compradores de rosas. De fato, Ivan Bongiorno se aproximou mais um pouco e, para concluir as ponderações que faziam para si próprio, encomendou um buquê de rosas para sua mulher. Minha mãe escolheu as melhores rosas do jardim, impressionada pela estampa do comprador, principalmente por seus belos cabelos brancos. Entregou-as a Ivan Bongiorno, que logo as repassou para sua mulher. Esta cena romântica se desenrolou no tempo exato para que o promotor concluísse que, se não encontrara a casa certa para residir, encontrou o lugar preciso para construí-la.

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Naquele domingo mesmo, Ivan Bongiorno telefonou para o prefeito, solicitando informações sobre o local. O prefeito replicou que lá residia uma pobre mulher, com seu filho menor, e que ambos viviam pobremente, mas com dignidade, vendendo as rosas que a mulher cultivava. Ivan Bongiorno foi claro, dizendo que os dois deveriam ser desalojados, e que naquele lugar deveria ser construída a sua residência. O prefeito ainda tentou resistir, mas o promotor começou a discorrer sobre irregularidades administrativas que poderiam vir à tona numa provável ação civil pública. Mesmo não sabendo quais irregularidades eram estas, o prefeito acatou a vontade de Ivan Bongiorno.

No dia seguinte, ainda de manhã, minha mãe recebeu uma notificação da prefeitura para que deixássemos o local onde residíamos. Dizia a notificação que aquele terreno pertencia ao município, e que sua ocupação era ilegal. Tínhamos trinta dias para nos retirarmos dali. Minha mãe procurou um advogado e conseguiu ganhar tempo com uma ação que anulou a notificação da prefeitura, mas logo chegou uma outra, desta vez judicial, determinando o mesmo prazo para nos retirarmos do local onde residíamos. Afirmava o juiz, mediante requerimento do município, que a posse era precária, sem justo título. Nosso advogado tentou transformar a ocupação em usucapião, mas sua petição foi indeferida por haver sido distribuída após a notificação. Diante da atitude do advogado, Ivan Bongiorno em pessoa compareceu ao seu escritório e, após arrumar seus cabelos brancos, ameaçou processá-lo por litigância de má-fé. Minha mãe e eu não sabíamos o que era isto, mas o advogado sabia e não voltou mais a defender nossos interesses.

Apesar da notificação, e do prazo que já estava correndo, minha mãe resistiu, permanecendo no lugar onde morávamos. Vendia cada vez menos rosas para as pessoas de nossa cidade, que evitavam até passar pelo local. Mas Ivan Bongiorno costumava aparecer por lá, a fim de pressionar minha mãe. Uma vez, ele foi com sua mulher e um engenheiro, e passaram pela cerca de bambu, sem se anunciarem, olhando todo o terreno e determinando onde seria construída a casa. Minha mãe os enxotou, e pela primeira vez eu vi os cabelos brancos de Ivan Bongiorno ficarem desalinhados. Da calçada em frente à nossa casa, Ivan Bongiorno ajeitou os cabelos brancos e sorriu malicioso. Ele, sua mulher e o engenheiro entraram no carro e partiram.

Passaram-se os trinta dias, e ninguém nos incomodou. Minha mãe e eu achamos que Ivan Bongiorno havia mudado de idéia, e ficamos mais tranqüilos. Só que alguns dias depois, chegou um oficial de justiça, com um papel, dizendo que era uma liminar para que desocupássemos o terreno. Corremos até o advogado, e ele disse que não poderíamos desobedecer à ordem judicial, mas que iria contestar a ação. Voltamos para casa desolados e começamos a arrumar nossos objetos pessoais. Coloquei nossa televisão dentro de uma caixa de papelão. Logo apareceu um caminhão da prefeitura, que levou nossas coisas para um terreno abandonado, na saída da cidade. Neste terreno não havia sequer um barraco, e para morarmos lá teríamos que ficar debaixo de uma árvore, quando fizesse sol ou quando chovesse, e à noite teríamos que estender uma lona sobre nossa cama.

Minha mãe foi até a prefeitura, enquanto eu fiquei esperando no nosso barraco, ponderar com o prefeito de que não tínhamos condições de morar naquele lugar. O prefeito respondeu que o novo terreno era igual ao outro. Minha mãe, então, pediu um prazo para replantar as rosas no novo terreno, já que elas eram nosso sustento. Mais uma vez o prefeito se negou a atender seu pedido, dizendo que iria arrancar as rosas em mais alguns minutos. Aí sim, minha mãe ficou arrasada. É porque, na verdade, ela tinha apreço pelas rosas não só porque estas rosas eram nosso sustento, mas também porque as cultivava desde muito jovem, antes mesmo de meu pai nos abandonar. Havia uma

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profunda relação entre o interesse econômico e o apego sentimental, e minha mãe não suportaria ver a destruição de suas rosas.

Quando minha mãe chegou em casa, os funcionários da prefeitura, encarregados de fazer a limpeza do terreno, já estavam a postos. Minha mãe foi até o chefe e pediu para esperar um pouco mais, até resolver a ação judicial. O chefe dos funcionários concordou, e os homens foram embora. Minha mãe entrou no nosso barraco, sentou-se no chão e começou a chorar. Ficava, hora e meia, balbuciando �minhas rosas�, enquanto as lágrimas corriam por sua face. Eu a tranqüilizava, dizendo que as rosas não seriam destruídas, porque, no final, nós ganharíamos a ação. Foi quando ouvimos o caminhão da prefeitura voltando. Chegamos até a porta. De fato, eram os mesmos funcionários que estiveram no local. Só que Ivan Bongiorno acabava de estacionar seu carro atrás do caminhão da prefeitura. Ivan Bongiorno desceu, irritado, acompanhado de dois policiais militares. O chefe dos funcionários veio até minha mãe e explicou que, quando relatou ao prefeito que não limpara o terreno, o prefeito ligou para o promotor. Pois Ivan Bongiorno ameaçou botar todo mundo na cadeia, caso a limpeza do terreno não fosse efetuada. Os funcionários entraram com suas ferramentas e máquinas, derrubando nossa cerca de bambu. As primeiras rosas foram sendo esmagadas, para depois serem retiradas pela raiz e jogadas no caminhão de lixo, que também chegara. Minha mãe tentou segurar um dos funcionários, mas foi impedida pelos dois policiais militares que acompanhavam Ivan Bongiorno. Eles a algemaram e a arrastaram até o caminhão da prefeitura. Jogaram minha mãe dentro do caminhão. Eu também fui forçado a entrar no caminhão. Enquanto nos levávamos para o terreno onde deveríamos morar, eu pude ver as últimas rosas de minha mãe serem destruídas.

Aquele dia foi muito duro para nós. Fazia um calor terrível, e não conseguíamos nos refrescar mesmo debaixo de uma árvore. Minha mãe só ficava chorando. Parecia até que não se incomodava com o calor. Deixei de ir à escola, aquele dia, para lhe fazer companhia. Quando caiu a noite, minha mãe caminhou para fora do terreno, em direção à cidade. Parecia sonâmbula, mas eu sabia que não era, pois sequer havia adormecido. Eu a acompanhei. Chegamos até o local onde havíamos morado. Não havia nem uma pétala de rosa. Nosso barraco também fora derrubado, tendo seus destroços sido removidos. Minha mãe olhou em volta e disse apenas �minhas rosas�, caindo no chão. Estava morta.

A prefeitura cuidou do enterro de minha mãe. O mais estranho era que até então fizera um calor insuportável, não chovia há meses, mas na hora do enterro de minha mãe, caiu uma chuva fina. Fiquei alguns minutos diante da sepultura de minha mãe, que estava sendo regada pela chuva fina. No dia seguinte, tornei a encontrar Ivan Bongiorno, desta vez em seu gabinete. Sem me olhar, mas fazendo um comentário de que sua casa estava começando a ser construída, o promotor ajeitou seus cabelos brancos e determinou que, como eu não tinha parentes na cidade, fosse mandado para uma creche. Vivi nessa creche até o desenrolar final dessa história, que passo a contar.

Em poucos meses a casa de Ivan Bongiorno ficou pronta. A prefeitura arcou com as despesas, o que deixou muita gente indignada, mas nada foi feito para impedir. Para inaugurar sua nova residência, Ivan Bongiorno convidou todas as pessoas ilustres da cidade, bem como juristas, políticos e empresários de todo o país. Foi a maior festa de recepção ocorrida em nossa pequena cidade. Nesta noite eu passei por lá, e pude ver, pelo lado de fora, a suntuosidade da casa. Ela estava construída no meio do terreno, ficando a parte dos fundos como área para um churrasco ou uma recepção importante. O que também chamava a atenção, é que não tinha uma flor, nem gramado, nem nada.

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Comentou-se, inclusive, que Ivan Bongiorno proibia sua mulher de ter até flores em vasos.

E assim, o tempo passou. Um ano após a morte de minha mãe, surgiu a notícia da rosa que brotara na sala da casa de Ivan Bongiorno. Várias pessoas associaram este fato à minha mãe, mas não falaram às claras com medo de serem vistas como supersticiosas. O jardineiro contou que não tivera dificuldade nenhuma em cortar aquela rosa, o que era mais estranho ainda, pois deveria ser uma rosa muito forte para irromper pelo assoalho. Mas Ivan Bongiorno colocou uma pedra no assunto, e todos se calaram. Ele vinha demonstrando como era rigoroso e eficiente em sua profissão, e ninguém queria desafiá-lo.

Ocorre que, numa noite, poucos dias após o incidente, Ivan Bongiorno se preparava para dormir, quando teve uma surpresa. Ao entrar no banheiro, viu uma rosa brotando do chão. Sem pensar duas vezes, pegou uma tesoura e ele mesmo cortou a rosa. Então percebeu que, no chão embaixo do chuveiro, estava um caroço. Bateu no caroço com a tesoura, e o piso cedeu como se estivesse podre, revelando um botão de rosa. Neste momento, ouviu sua mulher gritar do quarto. Correu até lá, já assustado e, para seu horror, pode ver várias rosas brotando do chão do quarto.

Desta vez, Ivan Bongiorno não quis chamar o jardineiro. Resolveu ignorar o assunto, enquanto várias rosas irrompiam pela sua casa. O sereno jurista de mente científica começou a se alterar. Seus cabelos brancos já não estavam tão alinhados como antes. Era muito comum vê-lo em bares, durante a noite, bebendo. Já se comentavam suas gafes no Fórum, que irritavam a todos os que lá trabalhavam. Criminosos confessos eram postos em liberdade por falta de ação do promotor. A população já estava inquieta. De várias partes do país chegavam fugitivos da justiça, pois eles sabiam que nossa cidade não tinha um promotor capaz de enfrentá-los. O delegado e o juiz bem que tentavam mantê-los na cadeia, mas advogados astutos obtinham a liberdade dos criminosos, pois o promotor sequer se dignara a pedir a prisão preventiva.

Com o passar do tempo a situação foi piorando. A casa de Ivan Bongiorno já estava toda tomada por rosas. Funcionários da secretaria de obras da prefeitura vistoriaram o local e perceberam rachaduras profundas. Logo, a construção foi condenada, porque oferecia riscos imediatos de desabamento. Ivan Bongiorno foi avisado, mas se recusou a sair de sua casa. Agora, ele só ficava lá. Um novo promotor até já chegara para substituí-lo. Durante a noite, era comum ver Ivan Bongiorno com uma tesoura tentando cortar as rosas. Ele chamou o jardineiro, que se recusou a entrar na casa. Ivan Bongiorno ameaçou prendê-lo, mas o jardineiro manteve sua posição. O jardineiro foi até um botequim, onde encontrou o pedreiro que aconselhara um exame mais profundo, e ambos beberam cachaça enquanto riam da loucura do promotor.

Quando minha mãe ainda era viva, ela cuidava das rosas que se mantinham em perfeito estado. Mas as rosas que nasciam pela casa de Ivan Bongiorno não tinham a mesma aparência. Elas cresciam selvagens, enroscando-se umas às outras. Já ocupavam toda a área, destruindo a churrasqueira de tijolos. Dos cômodos da casa, poucos eram transitáveis. Ivan Bongiorno e sua mulher dormiam num canto da sala, entre as rosas, espetando-se constantemente. Esta situação tornou-se intolerável, e a mulher de Ivan Bongiorno, por fim, o abandonou, voltando para sua cidade natal. O promotor, mesmo assim, recusou-se a sair de sua casa. Do que restava da varanda de sua casa, sob uma espécie de caramanchão feito de rosas, gritava impropérios contra todos, esquecendo-se até de alinhar seus cabelos brancos que agora caíam por sua testa como uma cachoeira.

Finalmente, uma noite, eu estava deitado em minha cama, na creche para onde Ivan Bongiorno me enviara, quando ouvi gritos e correria. Levantei-me e acompanhei as pessoas que corriam. Cheguei até a casa de Ivan Bongiorno. As rosas cresciam numa

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rapidez impressionante, enroscando-se como sempre. Ivan Bongiorno estava parado, como sempre acontecia, na varanda de sua casa, gritando contra todo mundo. Ameaçava prender a todos que ficassem ali por perto, mas ninguém arredou pé. Em poucos minutos as rosas cresceram ainda mais, derrubando completamente a casa de Ivan Bongiorno, que ficou completamente encoberto. As rosas foram tomando todo o terreno onde haviam crescido sob os cuidados de minha mãe. Eu ainda pude chegar perto a tempo suficiente para ver alguns fios de cabelos brancos desaparecerem num emaranhado de folhas e acúleos.

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UMA NOITE SEM LUA

Eu morava e trabalhava com meus pais numa fazenda na Zona da Mata de

Minas Gerais. Naquele dia, terminei meu serviço no curral e fui para minha casa de empregado, como sempre fazia. Tomei banho, me vesti e, depois de jantar, quando o sol estava se escondendo no morro lá atrás, saí para ver minha noiva. Ela morava numa fazenda vizinha, e para chegar até lá eu tinha que atravessar uma estrada de asfalto para o outro lado e cruzar uma capoeira fechada. Abri a porteira que ficava uns vinte metros de distância da minha casa, fechando com cuidado para não bater. Fiz todo o percurso normalmente, até a casa de minha namorada, ainda ajudado pela luz do final de tarde.

Quando cheguei na fazenda onde morava minha namorada, já estava escuro, porque era noite sem luar. Novamente abri outra porteira. Depois de fechar a porteira, com todo cuidado para não deixar bater, venci o quilômetro de distância da porteira até a casa de minha namorada. Ao chegar ao quintal, Bronco, um dos cachorros, latiu. Pude perceber a fumaça saindo da chaminé. Chamei e fui atendido por minha namorada em pessoa. Entrei pela porta da sala e sentei no sofá, no momento em que a mãe de minha namorada chegou na porta da sala, me cumprimentando. Minha namorada e eu fomos para a cozinha, onde a comida ainda esquentava nas panelas de pedra sobre o fogão a lenha. A mãe de minha namorada perguntou se eu já havia jantado. Respondi afirmativamente, e passamos a conversar sobre assuntos triviais.

Alguns minutos depois, ouvimos passos em volta da casa. Eram o pai de minha namorada e os outros cães que lhe pertenciam. O pai de minha namorada trabalhava no curral, mas naquele dia havia saído numa caçada com o dono da fazenda e outros empregados. O motivo desta caçada me foi contado por minha namorada, que havia ficado apreensiva com a chegada do pai. Quando minha namorada começava o relato, sua mãe foi até uma imagem de São Jorge, que ficava no canto da cozinha, fazendo a genuflexão diante da imagem.

�Hoje, depois da meia noite, os cachorros começaram a latir sem parar em todos os cantos da fazenda�, disse minha namorada. �Meu pai saiu para fora e não viu nada. Mandou os cachorros ficarem quietos, mas eles não paravam. Nisso, chegaram mais três empregados. Eles foram com meu pai até o galinheiro, depois até o curral, mas não viram nada. Nisso o patrão chegou, porque também estava incomodado com o barulho. Eles vasculharam a fazenda todinha, mas não viram nada. Quando estavam voltando cada um para sua casa, viram um vulto branco passar a toda velocidade. Meu pai gritou para o vulto parar, mas ele desapareceu ao longe, lá atrás do pasto. Nesse momento, os cachorros pararam de latir. Eles combinaram que iam atrás do vulto, quando amanhecesse. Hoje, assim que amanheceu, eles saíram para caçar aquilo que fez essa confusão. Mas antes, voltaram ao galinheiro, ao curral, foram até o chiqueiro, na roça, e não viram nada de diferente. Nenhuma criação desapareceu. E não tinha nenhuma pegada nova na fazenda�.

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A porta se abriu, entrando o pai de minha namorada com uma garrucha na mão. Havia tomado banho no banheiro que ficava do lado de fora da casa. O pai de minha namorada me cumprimentou, colocou a garrucha no canto da cozinha, embaixo da imagem de São Jorge, e veio sentar-se à mesa. A mãe de minha namorada trouxe café, leite e broa de milho para todos nós. Enquanto nos servíamos, o pai de minha namorada, após ser perguntado por sua mulher sobre o que havia resultado da caçada, contou o ocorrido numa voz que indicava medo.

�Nós saímos bem de madrugada�, contou o pai de minha namorada. �Cada um levou sua arma. Eu levei minha garrucha que é uma beleza para caçar. Levamos também todos os cachorros, a não ser o Bronco, que já está velho. Fomos lá para o pasto, onde o vulto tinha ido. Olhamos tudo, mas não achamos nada. Fomos até a fazenda do Newton para saber se ele havia visto alguma coisa, mas lá ninguém viu nada, nem tinha acontecido nada de estranho. Nas outras fazendas vizinhas também. Assim que escureceu, quando estávamos voltando, os cães perceberam alguma coisa e ficaram inquietos. Seguimos os cães até a floresta que fica antes de chegar no nosso pasto, já perto do rio que separa esta fazenda com a do Newton. Os cães havia cercado alguma coisa branca. Na hora que a gente ia chegar perto, essa coisa rompeu o cerco e subiu numa árvore. Os cães cercaram a árvore. Lá de baixo dava para a gente ver um vulto branco pendurado na árvore. Eu fiz mira com minha garrucha. Apertei o gatilho e nada. Nenhum tiro. Tentei de novo, e nada. E assim foi mais uma vez. Minha garrucha tão boa não disparava um tiro, apesar de estar carregada. Um dos nossos companheiros chegou para tentar, mas a coisa pulou da árvore pelo outro lado e saiu correndo mata afora. E os cachorros ficaram quietos. A gente ficou se olhando. Eu fiquei intrigado com minha garrucha. Então, apontei para uma árvore e atirei. Ela disparou normalmente. Atirei para cima e para baixo. Minha garrucha funcionava perfeitamente. O patrão chegou e disse: �Vamos juntar os cachorros e recolher nossas coisas, porque a gente está procurando aquilo que não perdeu�. Nós olhamos para o lugar em volta da árvore onde a coisa havia pulado, e também no lugar onde ela havia sido cercada pelos cães, e não havia nenhuma marca do bicho. Concordamos com nosso patrão e voltamos para casa�.

Terminamos nosso lanche. O pai de minha namorada pediu licença e foi deitar, porque estava muito cansado. Não tinha dormido nada naquela noite. Eu e minha namorada fomos para a sala. Ficamos juntos no sofá, com a mãe de minha namorada na poltrona ao lado. Por volta das oito horas, levantei-me para partir, porque amanhã tinha que trabalhar cedo. Despedi-me de minha namorada e de sua mãe, saindo da casa. Assobiei para os cães, para não ser atacado.

Afastava-me da casa de minha namorada, numa noite sem lua. Podia ver alguma claridade em outra casa de empregado, lá atrás, por causa do fogão a lenha ainda aceso, mas tudo foi ficando escuro à medida que eu me distanciava. Passei pela porteira, que fechei sem deixar bater. Depois que saí da fazenda onde morava minha namorada, subi uma pequena elevação e entrei na capoeira, quando ficou tudo ainda mais escuro. Eu me guiava mais pelas sombras das árvores e por minha experiência naquele caminho. Foi aí que, de repente, percebi que alguma coisa estava me seguindo. Podia ouvir os passos e perceber que estava perto. Virei-me para ver o que era, mas não pude perceber nada. No momento em que parei, o som de passos cessou. Continuei meu caminho, e novamente o barulho de passos na capoeira. Apressei meus passos, tropeçando em alguns galhos caídos no chão, mas algo estava ainda me seguindo. Quando eu parava, ele também parava. Ao prosseguir, ele me seguia.

Cruzei a capoeira, podendo ainda ouvir o som dos passos me seguindo. Vi a estrada lá na frente. Lá no alto da estrada, bem no final, à direita, vinha um carro. Pela luz dos faróis percebi que o carro estava fazendo a curva. Então me apressei e atravessei

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a estrada. Fique parado do outro lado da estrada, esperando o carro passar. Eu acreditava que, quando o carro passasse por mim, os faróis iluminariam a saída da capoeira e eu poderia ver o que estava me seguindo. O carro se aproximava, e percebi que era um jipe. O jipe estava cheio de gente, porque dava para ouvir o som da conversa entre os ocupantes, que pareciam estar bem alegres. Quando os faróis do jipe iluminaram a saída da capoeira, não mostraram nada. O jipe passou por mim, quando pude ver as silhuetas de seus vários ocupantes que tagarelavam, e seguiu seu caminho. Mais na frente, antes de fazer a curva, os ocupantes do jipe gritaram: �Bicho! Diabo!�, e o jipe seguiu pela estrada, fazendo a curva.

Continuei a andar em direção à fazenda onde eu morava. O caminho era um descampado, mas estava muito escuro por causa da lua nova. Naquele percurso, eu voltei a ouvir os passos atrás de mim. Tornei a parar, tentando ver o que era. Os passos cessaram, e eu não vi nada. Segui, e fui seguido. Passei perto de uma touceira de bambu e parei para pegar um. Não ouvia os passos de meu perseguidor, quando tirei um bambu e fiquei parado, esperando. Cansei de esperar e fui em frente, segurando o bambu. Ouvia os passos me seguindo. Cheguei na porteira da fazenda onde eu morava. Abri a porteira e tornei a fechá-la, sem deixar bater. Joguei o bambu num canto. Encostei-me na porteira, com os braços sobre ela, atento. Quem quer que fosse que vinha em meu encalço, tinha que passar por ali. Esperei por meia hora, em vão. Nada passou por ali. Fui andando para minha casa, desta vez sem ouvir passos me seguindo. Abri a porta e entrei em minha casa sem fazer nenhum barulho e sem acender nenhuma luz.

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A REZA FORTE

Obrigado por me ouvir, meu caro amigo. Eu preciso contar para alguém o que

aconteceu naquela noite. Você é a primeira pessoa que conto isso, desde que saí do hospício. Mas, antes me paga uma pinga. Não tenho um tostão. Aliás, não tenho mais nada. Nem honra. Dei sorte por me internarem no hospício. Pelo menos posso procurar um advogado e ver se consigo uma pensão do INSS. No mais, estou desonrado, expulso da polícia. Não posso mais fazer um concurso. Eles me culpam por aquela chacina. Falam que foi uma operação desastrosa. Obrigado pela pinga. Vou te contar minha história, da qual sou o único sobrevivente.

Eu era tenente da PM e nunca vi os meus subordinados atirarem a esmo como naquela noite que foi minha queda. Quando invadimos o morro, a noite estava muito densa e chovia muito. O que mais nos intrigava era que a denúncia havia partido do chefe do narcotráfico do local, P., e ele parecia apavorado. Pensamos tratar-se de uma guerra pelo controle do tráfico no morro, mas o que encontramos é uma coisa que fez da minha vida essa desgraça toda.

A chuva forte atrapalhava nossa visibilidade. Não era nada prudente aquela operação e naquelas condições, mas P. deve ter sido muito convincente quando acionou o 190, porque o comando da PM nos mandou para lá com ordens expressas para agir com todo o rigor. Sinceramente, eu não queria por toda a tropa em risco, mas era novo na corporação, tinha a confiança dos chefes e de meus subordinados, não gostava de desobedecer ordens. A única coisa que não tínhamos era equipamentos para operações como aquela, e em circunstâncias como aquela. Mas, fazer o quê? Invadimos o morro, armas na mão, homens para todo lado.

Uma outra coisa que nos intrigava eram o silêncio e a passividade dos bandidos. Tratava-se mesmo de uma guerra pelo controle do morro? Então, por que não ouvíamos tiros? Por que ninguém avisou de nossa presença? Por que ninguém reagiu quando entramos? E por que aquela velha fez o sinal da cruz quando nos viu? Perguntas que não tinham respostas naquele momento... Naquele momento! Mas elas viriam a seguir.

Galgamos as escadas com dificuldade, pois a água da chuva descia em profusão pelos degraus cheios de musgo, e que levava ao barraco de P, no alto do morro de onde ele controlava todo movimento local. Ainda assim não houve nenhuma reação do grupo de traficantes ligados a P. e, aliás, não víamos qualquer deles à medida que avançávamos sem dificuldade. Poderia ter sido uma chamada falsa. Um trote. Ou uma armadilha. Logo estávamos em frente ao barraco de P., que aliás era bem melhor que a casa de muitos de nossos homens. Tomamos posição para invadir, mas não havia reação. Fiz sinal para um dos nossos, que se aproximou. Mandei arrombar a porta. Com

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toda a energia, ele meteu o pé na porta, que desabou para trás enquanto assumíamos nossas posições de defesa. Mas também neste momento não houve nenhuma reação.

Fiz sinal para que nos mantivéssemos na mesma posição, e ao homem que derrubou a porta sinalizei para entrar. Foi isto mesmo que ele fez. Entrou no barraco de P., com toda a cautela. Andou alguns passos, atento. Nada. Nosso homem voltou para a porta, nos chamando com gestos. Entramos devagar. O homem que derrubou a porta, e foi o primeiro a entrar, caminhava na frente. Neste momento, alguma coisa pulou em cima dele.

Por sorte, e até aquele momento, tínhamos autocontrole. Nenhum de nós atirou a esmo. Havia sido P. quem saltara sobre nosso PM, que por sua vez tentava se livrar do ataque. Nós o ajudamos e, após libertar nosso colega, levamos P. até o canto da sala onde nos encontrávamos e o sentamos no chão, encostado à parede. Ele estava em pânico.

- Onde está seu pessoal? perguntei a P., que estava de olhos arregalados e histérico. Um dos nossos, que era fã de um filme que não assisti e não gostei, esbofeteou P., que então se acalmou. � Onde está seu pessoal? repeti.

- Ali na outra sala. fez P., apontando uma porta. � Mas, cuidado. Abram a porta com cuidado.

Eu e mais alguns homens, sempre atentos e armados, nos aproximamos da porta. Desta vez fui eu quem deu o chute que jogou a porta para o chão. Entramos alertas. A cena que vimos horrorizou até mesmo os mais experientes de nós. Na sala que P. usava para empacotar os entorpecentes, estavam os corpos de vários dos seus camaradas. Os corpos estavam irreconhecíveis, crivados de balas. Haviam sido metralhados por várias vezes seguidas.

Voltamos para a outra sala onde estava P., já mais calmo. - Quem fez isso? perguntei, acreditando tratar-se de uma guerra de traficantes. - Foi J. que provocou tudo isto. balbuciou P., tremendo. Meneei a cabeça, olhei para os outros policiais, que pareciam confusos. - Mas J. foi dado como morto. retruquei. � E você é o principal suspeito. - Tem razão. concordou P., nervoso. � Mas foi ele quem fez isso. insistiu. Perdi a paciência. - Vamos parar com essa historinha. falei. � Foi você quem eliminou esses

homens? - E eu lá tinha motivo para fazer isso? replicou P., tentando se levantar.

Empurrei-o para que voltasse a se sentar. � Eu já disse que quem fez isso foi J., cara. Acredite em mim. Por isso chamei a polícia. Ainda bem que vocês vieram. Ah, se o comandante não tivesse uma obrigação comigo, ele não deixaria vocês virem com esse tempo.

Com esta explicação de P., entendi porque o comando da PM insistiu para que fizéssemos a operação naquela noite e debaixo de toda a chuva que caía insistentemente. Havia uma relação duvidosa entre P. e nosso comandante!

- Agora, me levem daqui! tornou a implorar P., erguendo as mãos para que o algemássemos. � Por favor...

- Pára com isso! gritei. � Vamos contar direito essa história. Tem alguma coisa errada. Você está aprontando com a gente. É emboscada, não é? A gente sai daqui e chove bala, igual você fez com aqueles ali na sala.

- Eu não fiz isso. protestou P., enfático. � Já falei que foi J., aquele menino. - J. está morto. tornei. P. suspirou profundamente e falou:

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- É verdade. Ele está morto e fomos nós que o matamos. Fomos eu e mais quatro daqueles que estão mortos ali.

- Como eu imaginava. repliquei, sem pensar. De repente, concatenei as idéias. � Espera aí! Você disse que você e mais quatro daqueles ali? E que J. os matou?

- Vou te contar o que aconteceu. disse P., trêmulo. � Esse J. é o mesmo garoto de 17 anos que foi dado por morto, apesar de não terem encontrado o cadáver. Aquele moleque tinha que morrer. Não respeitava a família dele. Andava roubando para comprar droga. Ficou me devendo uma grana. E ainda por cima, estava me roubando também. Como vocês sabem, os vendedores da minha droga não a carregam consigo, mas a deixam em um matagal próximo. Quando aparece um cliente, eles pegam o dinheiro e o cliente vai até o matagal pegar a droga, sempre sob o olhar do vendedor. Pois J. aproveitava enquanto o vendedor estava atendendo o cliente, e ia até o matagal pegar parte da droga para poder usar. Não merecia morrer?

�Merecia sim!�, continuou P., respondendo sua própria pergunta. � Ele abusou muito da sorte. Na quarta-feira da semana passada, mandamos um recado para ele: �Deus te abençoe, J.!�, que é o sinal que a gente manda para quem vai morrer. Ele tremeu nas bases. Ficou mais borrado que tudo, mas não tanto quanto eu estou agora.

�Na noite em que fomos pega-lo, ele foi até a casa de Dona S., que mora no terceiro barraco antes de chegar na escada.�

P. estava se referindo à senhora idosa que fez o sinal da cruz quando chegamos.

- Eu respeito muito a Dona S., que é benzedeira. continuou P., suspirando. � Aqui a gente não tem médico, então ela reza todo mundo que tem alguma doença e algum problema. Por isso não entramos no barraco dela atrás de J., e só ficamos do lado de fora esperando ele sair. Do lado de fora ouvimos J. dizer a ela para fazer uma reza de proteção. Ele estava com medo da gente. Nós rimos muito. Dona S. mandou ele ficar tranqüilo e disse que ia fechar o corpo dele, para que ninguém o matasse. Rimos muito daquilo, porque nem a reza de Dona S. ia livrar J. de nossas mãos.

�Dona S. fez uma reza diferente�, prosseguiu P., enxugando o suor. �Falava numa língua diferente. Olhamos pela janela. Ela estava fazendo uns gestos muito esquisitos. Depois que terminou, disse que J. estava a salvo, que ele nunca mais ia morrer pelas mãos de homem nenhum.

�Não demos atenção a essa advertência e, quando J. saiu do barraco de Dona S., agarramos ele. Enfiamos uma bucha de pano na boca dele, para não gritar. Nós o levamos até aquele ponto ali�, P. apontou uma parte mais alta do morro. �Lá nós fizemos o serviço. Primeiro, demos uma surra nele, depois colocamos ele em forma de cruz. Eu ainda ri dele, dizendo que desta vez a reza de Dona S. não ia adiantar. Corpo fechado! Não ia adiantar nada.

�C. estava com a machadinha. Me passou a machadinha e comecei o serviço. Cortei primeiro as mãos, depois os braços, depois os pés. A bucha de pano impedia J. de gritar. Cortei o tornozelo, a perna. Com uma faca, castrei o desgraçado. Aí então voltei a pegar a machadinha e cortei as orelhas, o nariz. E por fim cortei a cabeça. Nem sei se ele já estava morto nesse momento. Separei o pescoço do corpo. Ficou tudo muito bem picadinho�. Nesse momento, e pela primeira vez, P. sorriu. � Enfiamos os pedaços na sacola do Supermercado W., aliás, enfiamos em duas sacolas. Jogamos areia no sangue. Dois dos meus levaram a sacola no carro e jogaram lá no aterro sanitário. No dia seguinte, mandamos um moleque até o pai de J. dar os pêsames. Era outro sinal. Engraçado que até hoje os pais dele acreditam que ele está vivo. E têm razão.

- Como ele pode estar vivo depois de tudo isto que você fez? indaguei, entre indignado e surpreso.

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- Levou uma semana para sabermos que a reza de Dona S. deu certo. explicou P., quase em prantos. � Nenhum homem conseguiria matar J. depois da reza. J. deve ter demorado uma semana para chegar até aqui porque estava em pedaços.

P. começou a rir histericamente. Levou outra bofetada e ficou quieto. Eu não gostava desses métodos no sentido de se torturar alguém para obter confissão, mas para acalmar alguém dando chilique não tinha problema.

- Hoje à tarde estávamos empacotando a droga quando ouvimos forçar aquela porta que você derrubou. continuou P., apontando a porta que derrubei com pontapé e atrás da qual estavam os cadáveres dos traficantes. � Nós ficamos de prontidão. R. foi até a porta, com um revólver na mão. Quando abriu a porta, não vimos ninguém. Então, algo pulou no rosto de R., algo que não identificamos de início. Pegamos nossas metralhadoras e apontamos para a porta. Nesse momento, quando R. voltava para nosso lado, gritando, vimos que era uma mão que estava segurando seu rosto, impedindo-o de respirar. Uma mão podre, com sangue coagulado nas extremidades. Apavorados, ouvimos um toc toc no chão, e olhamos para baixo. Lá estavam os pedaços de J.: pernas, tornozelos, braços, mãos... a cabeça sem nariz... o nariz...

P. começou a chorar. Eu já estava louco para dar um soco nele, contrariando meus princípios, mas sentia raiva por aquela mentira toda. P. prosseguiu:

- Os pedaços de J. foram entrando pela sala e se jogando sobre nós. Ficamos desesperados e começamos a atirar para todo lado. Atirar a esmo, entende? Só que atingíamos um aos outros. Por sorte não fui atingido. Corri para cá e tranquei aquela porta. Aí liguei de meu celular para o comandante, que mandou eu ligar para o 190 para disfarçar, enquanto ele acionava vocês. � Neste momento, P. ergueu novamente os braços, como se quisesse ser algemado, e implorou: - Pelo amor de Deus, me prendam! Me levem daqui!

- A gente vai levar você sim, - falei, - mas depois de solucionarmos essa questão toda.

- Você não entende? gritou P., nervoso. � A reza de Dona S. deu certo. Nenhum homem conseguiu matar J. por causa da reza dela. Ele tinha o corpo fechado. Só que nós mutilamos ele, e os pedaços vieram aqui fazer a vingança. Acredite em mim... - P. começou a chorar. � Os pedaços dele estavam ali na sala.

- Devem ter saído para jantar. replicou um dos nossos, arrancando gargalhadas. P. não riu.

- Eu fiquei segurando a porta, - continuou P., sem dar atenção à pilhéria. � Os pedaços do J. estavam tentando vir para aqui. Falei pelo celular apoiando os ombros na porta. Mas depois ficou tudo em silêncio. � P. olhou para os lados, com os olhos arregalados. � Eles estão à espreita!

Dirigi-me a um de meus subordinados: - Algema ele e fica de olho. ordenei. � Os outros vêm comigo. Vamos

vasculhar o local. Deixamos nosso colega com P. e saímos atrás dos responsáveis pelo massacre

que fizeram contra os traficantes. Ainda acreditava que era uma guerra de traficantes pelo controle do morro, ou alguma ação de P. para se livrar de seus cúmplices que devem ter se tornado arquivos incômodos. Quando estávamos nos afastando, ouvimos tiros vindo do barraco de P., e gritos.

Voltamos correndo e entramos na sala onde havíamos deixado P. e nosso colega. O que vimos foi aquilo que me levou ao hospício, quando contei para o médico. P. estava crivado pelas balas disparadas por nosso colega. E nosso colega se contorcia no chão agarrado por uma mão que já estava em decomposição. No chão da sala

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estavam vários pedaços de um corpo. Pedaços putrefatos, com sangue coagulado... Aqueles pedaços voaram sobre nós. Foi quando todos nós atiramos a esmo.

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RECADOS LIDOS, RESPONDIDOS E APAGADOS

Havia um grande tumulto em frente à casa de M., quando cheguei. Desci do

carro, acompanhado pelo fotógrafo e fui abrindo caminho pela multidão. O policial militar que estava à porta me reconheceu e permitiu minha entrada. Sempre seguido pelo fotógrafo, fui até a cozinha, onde estavam um perito e dois detetives. No chão da cozinha, sendo examinado pelo perito, o corpo de M., estendido com os braços em cruz. O cadáver estava totalmente desidratado, apenas a pele ressecada cobria seus ossos. A boca aberta e olhos secos esbugalhados mostravam que ele deve ter sentido muito medo quando morreu daquela forma.

- Já sabem quem fez isso? perguntei aos detetives, enquanto o fotógrafo, após receber autorização, tirava as fotos.

- Ainda não. respondeu L., um dos detetives. Naquele momento, repórteres de outras cidades chegavam à cozinha. � Mas, já fomos informados que esta é a vítima de número 2201. Existem outras vítimas no mundo inteiro. E todos foram encontrados mortos da mesma maneira.

- O quê? fiz, surpreso. � Então a conta está aumentando rapidamente. Você disse 2201?

- E errou a conta. cortou um outro repórter, estendo-nos a mão, que apertamos. � Nossa redação recebeu a notícia de mais 15 vítimas hoje.

L., o detetive que me dera a notícia, coçou a cabeça. Virou-se para mim e disse:

- Nossa cidade é pequena. Aqui o M. é a primeira vítima. Só que, como você sabe, e toda a imprensa vem noticiando, centenas e milhares de pessoas estão sendo encontrados mortos deste modo.

Entraram, na cozinha, vários policiais de outros municípios, e também policiais federais, que foram se acercando do corpo. L. continuou:

- De início pensamos tratar-se de um maníaco, quando o número de vítimas era pequeno. Deveria ser um maníaco muito esperto e rápido. Mas quando o número de vítimas foi crescendo, e descobrimos que haviam morrido praticamente no mesmo horário, ficamos convencidos tratar-se de uma quadrilha. Talvez fanáticos religiosos.

Após terminar sua fala, e enquanto o cadáver era levado sob a luz de flashes, L. me chamou até o lado de fora da casa. Pediu que eu entrasse com ele na viatura, e me segredou:

- O delegado gostaria que você acompanhasse essas investigações. Nós temos uma linha de investigação que pode levar ao culpado. E como você é o melhor repórter do único jornal de nossa cidade, pode nos ajudar no aspecto da publicidade. Se formos os primeiros a resolver o enigma, poderemos ser muito recompensados em vários aspectos, principalmente no plano político. O delegado se aposenta no final do ano e pretende se lançar a prefeito. Vai ser um grande ponto para ele.

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Balancei afirmativamente a cabeça. Estava disposto a ajudar nas investigações, mas não por causa dos projetos políticos do delegado. Eu tinha outros objetivos. Despedi-me do detetive e saí da viatura. Voltei para meu carro, com o fotógrafo, e fomos até a redação do jornal preparar a matéria.

No dia seguinte, pela manhã, compareci na Delegacia de Polícia e fui até a sala do delegado, que já estava em companhia dos dois detetives da véspera. O delegado se sentou atrás de sua mesa, enquanto eu me sentei entre L. e o outro detetive, diante do delegado.

- Já temos várias pistas. começou o delegado, apontando para o computador que estava ao seu lado. � Cada vítima tem uma característica própria, ou seja, não há entre eles um pensamento comum que possa conduzir à hipótese de se tratar de uma seita religiosa, ou algo do gênero. Há só uma coisa comum entre as vítimas e o suposto assassino, que descobri por acaso.

- E o que é? perguntei, surpreso. O delegado acessou a Internet e respondeu: - Todas as vítimas faziam parte de um site de relacionamentos, e eram amigas

em comum de alguns usuários. Ajeitei-me na cadeira, curioso. O delegado continuou, após acessar a página

do site de relacionamentos: - Como eu disse, descobri por acaso. Meu filho faz parte deste site de

relacionamentos. Ao contrário de vários pais neste mundo, eu acompanho as peripécias de meu filho na Internet. Vigio mesmo. Observando seus amigos virtuais neste site, vi que alguns eram as vítimas que foram encontradas da mesma forma que M. foi encontrado.

- E o que isso tem a ver? perguntei, mais curioso ainda. - Eu usei o perfil de meu filho e visitei cada um dos perfis das vítimas.

continuou o delegado. � Todas têm alguns amigos em comum. - Sim. falei. � O senhor já disse isto. - Exatamente. atalhou o delegado. � Acredito que isto seja a parte central da

história, e que ainda não foi desvendada porque ninguém dá muita importância a estes sites e a outros que seus filhos acessam. Veja aqui. � fez o delegado, virando o monitor do computador para meu lado. � Os amigos comuns são estes. Deles, apenas três estão vivos. O mais intrigante é este aqui.

O delegado me mostrou, então, o perfil de um certo Lord Shadow. Ao que parece, era um fake e utilizava uma foto de Lon Chaney devidamente caracterizado como vampiro no filme London After Midnight. Clicando em várias abas do perfil de Lord Shadow, mostrou seu álbum onde estavam fotos de atores que desempenharam papéis de vampiros no cinema e na televisão: Max Schreck, Lon Chaney na foto que deu origem ao perfil, Bela Lugosi, Carlos Villarias, Christopher Lee, Klaus Kinski, Frank Langella, Gary Oldman... Lá estava também William Marshall e seu Blácula...

- Me parece um apreciador de vampiros e essas coisas. repliquei. - Tudo bem. fez o delegado. � Mas eu visitei o perfil das vítimas, e acessei a

caixa de mensagens de cada um deles, exceto daqueles que mantinham privados o acesso a todos. Os amigos deste Lord Shadow receberam uma mensagem dele no mesmo dia e hora em que foram mortos. Veja.

Clicando no perfil de uma das vítimas, o delegado me mostrou uma mensagem delicada de Lord Shadow.

- Mas qualquer usuário faz isso. protestei.

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- Espere um pouco. tornou o delegado, me interrompendo. � Na caixa de recados do Lord Shadow, encontrei algumas mensagens de amigos recentes. E esta, que precedia às mensagens recentes.

Li a mensagem na caixa de Lord Shadow. Ela dizia: RECADOS LIDOS, RESPONDIDOS E APAGADOS.

- E??? fiz. - Não deu para saber o que as vítimas escreveram para Lord Shadow. explicou

o delegado. � Ele apaga as mensagens que recebeu das vítimas. - Mas várias pessoas fazem isto. insisti. � Ainda mais fakes. - A coincidência é o horário que Lord Shadow apagou as mensagens. tornou o

delegado, me olhando. � Considerando o fuso horário, é o mesmo momento em que as perícias em todo o mundo atestam como horário em que as vítimas morreram. � Balancei a cabeça, num sinal de aprovação. O delegado continuou: - Apenas os amigos de Lord Shadow que não receberam esta mensagem �recados lidos, respondidos e apagados� estão vivos. Parece que o apagamento das mensagens é uma senha. � O delegado apoiou os cotovelos na mesa e me olhou fixamente, dizendo: - É impossível que um único matador em série tenha cometido estes crimes, porque ocorreram à mesma hora e dia. Segundo minha tese, vários são os assassinos. Aliás, este é um nome muito condizente. Já ouviu falar na seita dos hachichim? � Sacudi a cabeça afirmativamente. O delegado prosseguiu, sem ligar para minha resposta: � É uma seita que existiu no período medieval, no Oriente Médio, composta por muçulmanos fumadores de haxixe que cometiam uma série de assassinatos mediante uma senha que, para os não membros da seita, era incompreensível. A senha dizia de forma cifrada ou simbólica que tal e tal pessoa deveria morrer, e os hachichim a assassinavam. A palavra assassino provém desta seita. Presume-se que tenha entrado em contato com os cruzados, e influenciou Jacques De Molay e a Ordem dos Templários. Diz-se que as últimas palavras de Jacques De Molay, imolado na fogueira com seu companheiro Geoffroy De Charnay foi uma senha para o assassinato daquele que ordenou sua execução, o rei Felipe, o Belo. As palavras foram colhidas por Templários que se valiam de métodos dos hachichim, e seguindo a ordem obscura de seu líder, procederam ao assassinato do rei francês.

- Qual a relação entre esta história e os crimes atuais? perguntei, como se não desconfiasse da conclusão que veio a seguir.

- Desconfio que os assassinatos estejam sendo cometidos desta forma. disse o delegado. � Este fake denominado Lord Shadow envia uma resposta aos recados de suas vítimas, que é a senha para que sejam mortas pelos criminosos que fazem parte desta organização semelhante aos hachichim. Em contrapartida, após o crime, os recados das vítimas são apagados e vem esta mensagem de �recados lidos, respondidos e apagados�, que é a contra senha informando o sucesso da operação.

- Esta parte eu não entendi. falei. - Os membros do grupo atuam no mesmo horário e dia. explicou o delegado,

recostando em sua cadeira. � A ordem para matar parte de um dos membros. Defendo a idéia de que o fake denominado Lord Shadow é um perfil compartilhado entre os membros do grupo. Todos têm a senha que dá acesso ao perfil. Acessam-no no mesmo horário, de várias partes do mundo, vêem quem mandou recados a Lord Shadow, lêem os recados respondidos, percebem que é hora de agir, matam e depois um deles posta na caixa de recados de Lord Shadow: �recados lidos, respondidos e apagados�, que é o post que eu denomino contra senha informando que a missão foi cumprida.

- Sim. fiz. � E como eles realizam aquele tipo de crime? As vítimas são encontradas totalmente desidratadas, em pele e osso literalmente.

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- Vamos descobrir como eles fazem, se eu estiver certo. respondeu o delegado. � Sabe como acessei agora esta página do site? É que o L. criou um perfil neste site. Veja só. � O delegado me mostrou o perfil de uma mulher, que era o fake de L. a fim de armar uma cilada para o fake Lord Shadow. � Eu utilizei a senha criada por L., que vai ser compartilhada entre eu e ele. L. mandou um convite para Lord Shadow se tornar seu amigo. Se Lord Shadow aceitar, L. manda um recado para ele. Aí veremos o que acontece. Descobriremos também a motivação dos autores do crime.

- E quanto à segurança de L.? indaguei. - Cuidaremos dela. disse o delegado. � A PM ficará acompanhando L. em

todos os lugares onde for. O delegado se levantou, e eu fiz o mesmo. Apertamos as mãos. - Espero que eu esteja certo. disse o delegado. � Teremos desvendado o crime,

e eu vou obter maior visibilidade. Sabe que pretendo ser prefeito desta cidade. - O L. me falou. respondi. - Já me filiei ao partido. continuou o delegado. � Final do ano me aposento.

Pretendo desvendar este mistério bem antes, e prender os responsáveis por esta série de crimes. Nossa cidade é pequena, não tem muita importância para o resto do país. Mas vai ser nela que estes crimes vão ser desvendados. E quando eu for eleito prefeito, quero você na minha equipe.

- Obrigado. agradeci. - Você é especial para todos nós. disse o delegado, me lisonjeando. � Apesar

de muito jovem e forasteiro, se inseriu bem na cidade. E se sacrifica muito ganhando tão pouco no jornal. O interessante é que você parece saber de tudo. Usa seus conhecimentos para ajudar as pessoas. Já vi você fazendo tantas coisas.

Sorri diante do elogio do delegado. Despedi-me dos policiais e saí da delegacia. Trabalhei durante todo aquele dia. O delegado me ligou para o celular dizendo que L. havia sido incluído na lista de amigos de Lord Shadow, e lhe mandara uma mensagem: uma fadinha em poses sensuais e cercada de glitter.

Por volta de nove horas da noite, fui chamado às pressas na porta de minha casa. Atendi, e encontrei na viatura da polícia civil o delegado em pessoa e o detetive que acompanhava L. no dia em que encontramos o corpo de M. e que também ouvira a conversa sobre o site de relacionamentos.

- L. está morto. disse o delegado. A coisa toda foi muito rápida, como fiquei sabendo. L. estava num bar quando

começou a gritar de forma lancinante. Os presentes ficaram horrorizados quando viram L. secar totalmente e cair no chão, morto. Apenas a pele ressecada cobria seus ossos. O mais impressionante foi o que aconteceu depois, na delegacia. Policiais federais informaram ao delegado que tais fatos haviam sido observados por outras pessoas que estavam diante de algumas vítimas nas mortes anteriores. Estes fatos foram mantidos em sigilo para não atrapalharem a investigação. Ao que parece, o delegado estava errado em sua tese sobre o grupo semelhante aos hachichim. Mas havia uma relação entre os crimes e o site de relacionamentos porque, como me disse o delegado, na caixa de mensagens de L. estava a mensagem �recados lidos, respondidos e apagados�. O delegado estava muito confuso. Foi informado, também que outros cadáveres estavam sendo encontrados, mortos no mesmo momento em que L. havia morrido. Isto o levava a reformular sua tese apenas em parte. Para ele, o responsável era Lord Shadow.

Somente na noite seguinte voltei para casa. Fiquei acompanhando as investigações, que não avançaram muito, mas foram cheias de peripécias que interessavam ao público leitor do jornal onde eu trabalhava. Entrei em minha casa e tomei um banho. Depois, fui até o computador em meu quarto. Liguei o computador.

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Na Internet, acessei o endereço do site de relacionamentos que o delegado associava aos crimes. Digitei meu nome de usuário e minha senha. O site de relacionamentos me redirecionou para minha caixa de entrada. No monitor li a mensagem: BEM VINDO, LORD SHADOW.

Ao lado esquerdo da tela, a foto de Lon Chaney. Ao centro, pedidos para adicionar amigos, que prontamente adicionei. Abri a caixa de mensagens. �Ora, hoje tenho muitas mensagens�, pensei comigo mesmo. Prontamente, respondi a todas, cada uma com um jeito que julgava adequado ao perfil dos usuários que eu adicionara como amigos em meu último acesso ao site, e também àqueles que não eram amigos mas me mandavam mensagens. Estes o delegado ainda não considerara, pois seria mais difícil rastreá-los. Após receber no monitor a mensagem de confirmação do envio da última resposta, posicionei a seta do mouse na caixa que seleciona todas as mensagens.

Recostei-me na cadeira, com as mãos cruzadas na nuca. Em breve o delegado reverá suas hipóteses, e poderá chegar a Lord Shadow através da descoberta de seu IP ou algo assim. Então, chegará até mim. Neste caso, mais uma vez vou ter que mudar de cidade, ou de país. Isto não tinha importância, pois era o que eu vinha fazendo há milhares de anos. Sempre que alguém começava a ter uma pista que poderia conduzir a mim, eu mudava de região e adotava identidade falsa. Tinha dinheiro para isto, acumulado ao longo de minha existência e guardado em paraísos fiscais na conta de uma outra identidade que eu tinha. Esta identidade era a de um bom vivant que herdou fortuna de seu pai, que por sua vez herdou de seu avô, e assim por diante. Todos estes antepassados de mim era eu mesmo, em cada época vivida naquela geração.

Embora tenha passado tanto tempo, eu me lembro bem de como tudo começou. Vivia na Pérsia, como soldado. Após um ataque, encontrei, numa caverna que eu entrara atrás de fugitivos, uma pedra estranha que nunca tinha visto antes. Quando a encontrei, ela era fosca, mas ao pega-la surgiu um brilho mais ofuscante que o do maior diamante. O brilho durou alguns segundos, e quando terminou, a pedra havia desaparecido. Saí da caverna ofuscado e me sentindo muito fraco. No instante em que olhei para meus companheiros do exército persa, desejei ter o vigor de todos eles, pois estava mesmo muito fraco. Neste exato momento senti como um vendaval mexendo meu corpo, e me fortaleci. Tornei a olhar para meus colegas, mas estavam todos mortos. Haviam se desidratado, apenas a pele ressecada cobria seus ossos. Compreendi, naquele instante, que havia sugado a energia de cada um deles. Outra coisa curiosa é que aprendi aquilo que eles sabiam. Ou seja, além da energia vital, sugava também seus conhecimentos.

Tive que fugir da Pérsia, pois magos de Zaratustra descobririam facilmente sobre mim, e eles sabiam como me destruir. Esta revelação eu tive porque uma das minhas vítimas, naquela tropa, era exatamente um dos magos que acompanhava o exército. Enterrei meus colegas mortos. Vivi em vários lugares, por todas estas épocas. Poderia sugar a energia de todos, sem tocá-los, e com isto eu me fortalecia e me mantinha vivo, adquirindo também seus conhecimentos. Sugava a energia e o conhecimento de todos que eu podia, e os enterrava. Este século me favoreceu ainda mais, como percebi através do conhecimento de informática que adquiri ao sugar a energia de um especialista em ciência da computação. Da mesma forma que aprendi a falsificar documentos após sugar a energia e o conhecimento de um falsário.

Foi aí que encontrei este site de relacionamentos. Criei o perfil do vampiro da forma que foi imaginada uma vez, pelo cinema, no filme de Tod Browning. Através da Internet eu me conectava às pessoas em várias partes do mundo. Utilizando a conexão, recebia os recados mais estranhos e mais interessantes, vídeos bons e ruins, imagens dos mais diversos gostos. Estas pessoas, de certa forma, criavam um elo entre elas e eu por

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onde passava meu poder que se aperfeiçoou ao longo dos milênios. Este elo era mantido pela conexão com a rede mundial de computadores, usando-se este site de relacionamentos que eu considerava o melhor para este tipo de coisa. Respondia suas mensagens, pois aprendera a ser muito gentil. Depois selecionava todas e as apagava. Era neste momento que as energias dos usuários que me mandaram recados era sugada. Sentia um alento quando isto acontecia, pois eram muitos por dia. Bem melhor que no passado, quando eu precisava sair à caça. E eu colocava em minha caixa de mensagens a frase �recados lidos, respondidos e apagados� para todos aqueles que a acessassem poderem ficar curiosos e me mandarem recados. Gentileza gera gentileza. O único problema era que eu não podia mais enterrar as vítimas, e assim elas eram encontradas privadas de sua energia, o que levava a cogitações que poderiam levar até mim.

Mas, vamos ao que interessa. Olhei pela última vez os recados. Com um toque no mouse, selecionei todos eles. E os apaguei.

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A SOGRA

A maioria de nós considera o momento presente como algo imóvel, que não

vai se modificar. Acreditamos que vivemos para sempre mantendo nossa atual situação, e assim não agimos com cautela suficiente para prever as possíveis perdas no futuro. Somente quando estas perdas vêem, nós damos o devido valor àquilo que perdemos. Tentamos até reverter a situação. Mas pode ser muito tarde.

Foi isto que descobri no dia em que fui enterrar minha sogra. Aquela mulher me atormentou desde que conheci a filha dela, mas foram tantos tormentos a ponto de me parecer que suas maldições vinham de período bem anterior. Estava cansado dela, e por isso fiquei muito feliz em ir enterrá-la. Achava graça, ainda, no fato de que ela pertencia a uma religião que dizia que ninguém morre, mas renasce, e apesar dessas suas crenças, estava indo para o túmulo. Mas hoje me arrependo de toda esta felicidade. No momento em que o enterro estava sendo feito, eu me sentia muito feliz. Confesso. Estava muito feliz, mesmo diante da resistência de minha sogra que relutava em ser enterrada.

De nada adiantou a resistência de minha sogra. Ao conseguir se libertar das cordas com que a amarramos, ela se segurou em minha camisa, tentando me puxar e sair da cova. Mas, por sorte, Eliseu, um dos meus cúmplices, estava segurando a pá e acertou a cabeça de minha sogra com este equipamento. Minha sogra caiu desacordada no fundo da cova, motivo pelo qual suspiramos aliviados. Antônio, meu outro cúmplice e irmão de Eliseu, entrou na cova e recolocou a mordaça na boca de minha sogra, apertando também as cordas para que ela não voltasse a se soltar. Quando Antônio saiu da cova, olhei para meus cúmplices, tirando meu revólver da cintura. Parece que meus cúmplices entenderam, pois também sacaram seus revólveres.

Descarregamos nossas armas no corpo de minha sogra, sem pensarmos no que estávamos fazendo. A noite estava adiantada, o cemitério, silencioso. A lua cheia iluminava nós três. Todos nas proximidades poderiam ouvir os disparos. Recolocamos nossas armas na cintura e fechamos o caixão, jogando terra por cima. Eliseu depositou a cruz rude na extremidade da cova. Afastamo-nos devagar, deixando para trás aquele lugar onde minha sogra foi por nós enterrada entre os indigentes, no alto do cemitério.

No dia seguinte, enquanto trabalhava na minha imobiliária, diverti-me muito com o assunto que ganhou as ruas: contava-se que o fantasma de um pistoleiro enterrado no cemitério andava assombrando o local, dando tiros durante a noite de lua cheia. Também achava graça quando minha mulher reclamava que não conseguia falar com minha sogra, que acreditava ter viajado. Mal sabia que eu, encarregado de levar minha sogra até a rodoviária em meu carro, mudei o roteiro e a levei para o cemitério, onde meus dois cúmplices nos esperavam.

Com o passar dos dias, pensei em mandar rezar uma missa pela alma de minha sogra, mas obviamente não poderia fazer isto por dois motivos: em primeiro lugar, não poderia dizer que ela estava morta; e em segundo, ela pertencia a uma outra religião que

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acreditava na ressurreição do corpo após a morte. Mas me consolei com a idéia de que a fanática estava morta e esta lembrança me bastava.

Um mês após os fatos eu estava deitado na rede de minha varanda, depois de assistir o noticiário na TV, fumando um cigarro de palha e observando a lua cheia. Meu relógio de pulso emitiu um som agudo, como faz a cada hora do dia. Era meia-noite. O cigarro de palha terminara e eu o atirei sobre o portão de minha casa, na rua. Os olhos começaram a pesar, e vi minha sogra vindo até mim com um ar ameaçador. Despertei assustado, percebendo que cochilara. Um sonho. Então, alguém no portão me chamou.

- Quem está aí? perguntei, erguendo-me da rede. - Sou eu. sussurrou uma voz conhecida. Aproximei-me do portão, após reconhecer a voz de Antônio. Mesmo sem ver

se ele estava sozinho ou não, tirei as chaves do bolso e abri o portão. Antônio pulou sobre mim, me derrubando. Empurrei-o para um lado e me ergui, furioso. Meu cúmplice ficou no chão, tremendo e gemendo assustado. Puxei-o pelo braço e o obriguei a ficar cara a cara comigo. Antônio agarrou minha camisa e começou a gritar entre um forte bafo de cachaça e uma nuvem de perdigotos:

-Eliseu! Meu irmão! Foi ela! - Cala a boca! murmurei, imperativo. � Vai acordar todo mundo. Levei Antônio até a garagem, longe de olhares curiosos que poderiam estar

espreitando pela janela. Antônio respirou fundo várias vezes, tentando se controlar. - Foi ela. continuou. � Foi sua sogra. - O que aquela bruxa arrumou? perguntei, sem entender. � Até depois de morta

ela fica assombrando? tornei, reclamando da situação e acreditando tratar-se de alguma pista que deixamos para trás.

- É verdade. disse Antônio, passando a mão pela boca que babava. � Até depois de morta... � Antônio olhou para os lados, olhos arregalados. � Ela voltou.

Recostei-me no meu carro na garagem, levando a mão ao bolso da camisa. Havia esquecido os cigarros na varanda.

- A bruxa conseguiu se soltar. comentei. À minha frente, Antônio estremecia. Lamentei ter esquecido os cigarros. � E onde você viu minha sogra?

- Lá em casa! balbuciou Antônio. � Eliseu! Meu irmão! Empurrei Antônio contra a parede da garagem, para acalmá-lo. Fui até a

varanda, peguei o maço de cigarros e voltei. Dei um cigarro a Antônio e peguei um para mim. Coloquei o maço sobre o carro. Acendi os dois cigarros, começando pelo de Antônio, que começou a fumar afoitamente.

- Ela foi com a polícia? perguntei. Antônio olhou para mim, com o canto dos olhos. Segurando o cigarro entre os

dedos, começou a rir nervosamente. - Você não entendeu. disse Antônio. � Sua sogra voltou dos mortos! Quase engoli o cigarro. Não fosse minha cumplicidade com aquele homem, e

eu o esmurraria. - Você bebe e fica dando pití aqui na minha casa! exclamei. � Vai pôr tudo a

perder. Daqui há pouco todo mundo fica sabendo. - Não tem nada a ver com a bebida. disse Antônio, encostando-se na parede da

garagem. Tentava ficar o mais ereto possível, mas o nervosismo e o álcool não deixavam. � Eu também pensei que tinha bebido demais. Mas não. � continuou Antônio. Deu outro trago no cigarro. � Eu estava com Eliseu no barraco dele. A gente pensava em ir na zona. Eliseu foi tomar banho e eu fiquei na sala tomando um gole de cachaça. Aí eu senti um cheiro horrível. Pensei que era vazamento de gás, mas era um cheiro de carniça. Deviam ter jogado cachorro morto ali perto. Então, Eliseu começou a

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gritar. Fui ver o que era. A parte elétrica do barraco tem muita gambiarra, as lâmpadas são acesas encostando os fios desencapados um no outro, e Eliseu podia ter tomado um choque. Arrombei a porta e entrei no banheiro... � Antônio pegou o maço e tirou um cigarro. Acendi para ele. � Ela... ela estava lá. � Os olhos de Antônio percorreram toda a garagem. � Sua sogra! exclamou, tremendo. Cruzei os braços, nervoso. � Eliseu gritava... e sua sogra lá.

- Tudo bem que vocês se assustaram. falei. � No lugar de vocês eu faria o mesmo. Imagino o susto. Mas era só dominar a velha e dar um sumiço nela... Por que você não fez isso?

- Não era ela. tornou Antônio. � Aliás, era e não era. � Diante de minha expressão espantada, continuou. � A velha cheirava mal. Estava esverdeada. Podre... Ela me olhou... Minhas pernas tremeram. Eliseu tentou fugir mas ela o empurrou de volta para debaixo do chuveiro. E passou a mangueira pelo pescoço de Eliseu e em volta do cano do chuveiro. Meu irmão ficou pendurado. Aí eu corri para cá.

- Vocês não ficaram só na cachaça. concluí, irritado. � Deixa eu te levar embora.

Entrei em minha casa, correndo. Fui ao quarto. Minha mulher dormia. Toquei em seus braços e ela acordou.

- Vou levar um cliente para ver um terreno aqui perto. menti. Fui de volta à garagem. Antônio me esperava encostado no carro. Entramos no

carro e, após chegarmos até a rua, desci do carro para fechar o portão. Nesse momento, senti um cheiro insuportável de carniça. Fechei o portão rapidamente e voltei para o carro, partindo em direção ao barraco de Antônio e Eliseu, na periferia da cidade. Lá chegando, descemos do carro. Ainda vi a lua cheia no céu. Entramos no barraco. Antônio me levou até o banheiro. A luz estava acesa. Vi os dois fios desencapados que acionavam a luz no banheiro. Sob o chuveiro, Eliseu estava nu, pendurado pelo pescoço. A mangueira do chuveiro estava em volta de seu pescoço, enquanto a extremidade estava enroscada no cano. A água do chuveiro ainda caía sobre o corpo de Eliseu. Nesse momento, virei-me e dei um soco forte em Antônio, que caiu no chão do banheiro.

- Então é isso! gritei, sem me importar se os vizinhos ouviriam. � Você matou seu irmão e me trouxe aqui para me matar também. Quer acabar com as provas... não é? - Antônio tentou se levantar, mas eu chutei seu rosto, obrigando-o a continuar deitado. Senti mais uma vez o cheiro de carniça. � O que significa isso? perguntei.

Nesse momento, olhei para a porta do banheiro. Uma sombra vinha crescendo em nossa direção. Fiquei em guarda, preparando-me para receber o cúmplice de Antônio, que o ajudara a matar Eliseu. A sombra veio crescendo, mas o cheiro de carniça também ficava mais insuportável. Um vestido rasgado, pés descalços e lívidos surgiram na porta do banheiro. Arremeti contra o vulto, mas parei horrorizado. Lá estava minha sogra, em pé na porta. Suas carnes estavam podres, como o vestido com que a enterramos. A mordaça rasgada e úmida jazia em seu pescoço. Os cabelos desgrenhados, os olhos sem brilho. Um cheiro de carne podre no corpo inchado. Ela sorriu de forma tosca e falou:

- Não disse que ia voltar, meu genro? Deus não falha! Recuei apavorado, tropeçando em Antônio e caindo no chão. Antônio se

levantou trêmulo, enquanto minha sogra entrava no banheiro. Andava arrastando os pés. Vi quando ela estendeu as mãos para Antônio, que correu em direção ao chuveiro e se chocou contra o corpo de Eliseu, que balançou. Antônio se molhou com a água do banho. Conseguiu sair de baixo do chuveiro, mas foi agarrado pela camisa por minha sogra, que o jogou contra a parede. As luzes começaram a piscar, pois Antônio caíra de

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encontro aos fios desencapados que forneciam eletricidade para o banheiro. Os fios começaram a estalar, soltando fagulhas, e Antônio foi violentamente sacudido pelo choque elétrico.

Saltei pela pequena janela do banheiro, caindo no terreno acidentado fora do barraco. Várias pessoas já se aglomeravam no local, atraídas pelo barulho. Alguns me seguraram, mas me desvencilhei. Cheguei até meu carro, entrando apressadamente. O céu estava sendo cortado por relâmpagos. Trovões faziam coro ao grito da multidão. Eu não conseguia dar a partida. Olhei pelo retrovisor. O barraco estava em chamas e acabou por explodir. Finalmente dei a partida no carro e saí do local. Neste instante nuvens cobriram a lua cheia e começou a chover torrencialmente. Ainda olhei pelo retrovisor, vendo o barraco em chamas, as pessoas correndo para todos os lados. O carro deslizou pela encosta das ruas encharcadas e sem calçamento, as rodas batendo nos buracos e nas pedras.

A luz dos faróis dava um aspecto lúgubre à noite chuvosa. Ao fazer uma manobra para não me chocar contra um muro, vi um vulto à minha frente. Era minha sogra. Desviei dela e segui em frente, pedindo a Deus que me desse forças. Ouvi um baque sobre o carro. Braços inchados desceram pelo vidro do carro, e o rosto de minha sogra apareceu ao meu lado, por fora do carro. Freei bruscamente, minha sogra caiu na rua. Saí do carro e tentei correr, mas as ruas enlameadas me fizeram escorregar e cair. Levantei-me, tornei a cair. A chuva forte atrapalhava minha visão. Refugiei-me num matagal. Tirei o maço de cigarros do bolso, mas estavam todos molhados. Nem o isqueiro conseguia acender. Eu não conseguia ver direito. Só sentia o cheiro de carniça, que me alertava do perigo. Levantei-me e voltei a correr. Foi o bastante para minha sogra surgir do meio do matagal, gesticulando de forma ameaçadora, com gritos entrecortados por gargalhadas:

- Vem cá, meu genro! Corri, tropeçando, caindo, levantando, tornando a cair, me arranhando nos

galhos de árvores e nos espinhos. Havia um muro em minha frente. A chuva se tornou mais fraca. Pulei o muro e caí do outro lado. Estava nos fundos do cemitério, na parte reservada para indigentes. Meus pés se atolavam no barro. Andei com dificuldade, esgueirando-me pelas covas rasas. Ainda sentia o cheiro de carniça. Parei na extremidade da cova onde havia enterrado minha sogra. A cova estava aberta, a terra removida. No fundo, o caixão também aberto. Olhei para trás. Minha sogra vinha andando lentamente em minha direção. Chegou bem perto, quase encostando seu rosto inchado no meu.

- Eu voltei, meu genro! ela falou. � Bem que eu te avisei. Estendeu as mãos para o meu pescoço. Perdi o equilíbrio e caí de bruços no

fundo da cova, dentro do caixão. Quando consegui me virar, vi que minha sogra descera até o fundo da cova. Rapidamente, ela fechou a tampa do caixão, prendendo-me lá dentro. Ouvi os ferrolhos se apertando, lacrando o caixão. Um baque surdo sobre o caixão me fez perceber que ela jogara terra sobre a cova, me enterrando.

Por isso, hoje eu sei que não precisamos ficar ansiosos com o momento presente. Ele passa. Nada tem importância, nada é tão difícil nem fácil quanto parece. Obstáculos que hoje podem parecer intransponíveis, em poucas horas são superados. Muros que não podem ser escalados caem por terra. No mesmo sentido, o que é belo se degenera. Tudo isto aprendi quando quis me antecipar ao tempo, enterrando minha sogra. Bem poderia ter esperado o tempo dar conta disto. Como fui muito ansioso, tenho esta contrapartida: estou aqui, enterrado vivo, totalmente tolhido, sem capacidade para agir, enquanto minha sogra está lá fora, fazendo aquilo que eu nem quero pensar.

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SOBRE O AUTOR CRETCHU (Lua Crescente em idioma tupi) é o pseudônimo de André Luiz

da Rocha Cândido, nascido em Bicas aos 19 de Janeiro de 1964. Formado em Direito e em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Outras obras do Autor: DEZ POEMAS, 1987 DEZ POEMAS: 2ª PARTE, 1989 O RELÓGIO DE CATÂNIA, 1997 CONTOS, 1998 O PÃO, 1998 Site: http://www.cretchu.net