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AS REPRESENTAÇOES SOCIAIS DO
SANGUE
ESTUDO COM MÉDICOS
E FAMILIARES DE
PACIENTES PEDIÁTRICOS
DO INSTITUTO
FERNANDES FIGUEIRA
Maria Cristina Pessoa dos Santos
I
MINISTÉRIO DA SAÚDE
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ
INSTITUTO FERNANDES FIGUEIRA
Dissertação de Mestrado apresentada como requisito parcial à Comissão de Pós-Graduação em Saúde da Criança – Nível Mestrado do Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz, para obtenção do Título de Mestre em Saúde da Criança.
Rio de Janeiro, 15 de maio de 1992
Maria Cristina Pessoa dos Santos
II
ORIENTADOR:
Roberto Kant de Lima
CO-ORIENTADORA:
Magali Alonso de Lima
III
A meus pais, com carinho e gratidão.
Ao Álvaro, pela compreensão e amor.
Ao Eduardo, por encher de risos e cores a minha vida.
IV
Agradecimentos
A realização de um trabalho é sempre um somatório de forças e idéias de várias pessoas.
Uma dissertação de mestrado não foge à regra, mas à ela é reservado o privilégio de poder explicitar as
diversas colaborações recebidas.
Aos colegas da Direção do Instituto Fernandes Figueira - Dr. Paulo Roberto, Dr. Gilberto, Dr.
Carlos Maciel e Dra. Virgínia - por acreditarem que o crescimento individual do funcionário faz parte da
melhoria das condições de assistência à comunidade.
Aos colegas do Serviço de Hemoterapia do Instituto Fernandes Figueira - Rose, Antonio
Marcos e Antonio Celso - por terem possibilitado, com solidariedade e profissionalismo, que eu pudesse
freqüentar o curso de Mestrado.
Aos colegas de turma do Mestrado pelo companheirismo e troca de experiências, aos
professores pela dedicação e pela insistência, apesar das dificuldades. Um agradecimento especial ao
Prof. Nildo, pelo apoio nos momentos de crise durante a pesquisa, e à Márcia pela torcida e gentilezas.
Aos amigos da Biblioteca do Instituto Fernandes Figueira pela ajuda na organização da
Bibliografia.
À Magali por ter acreditado que a idéia podia virar projeto e o projeto virar uma dissertação,
me acompanhando e orientando nas várias etapas desse processo.
Ao Kant pela sua orientação e brilhante contribuição, que foram fundamentais na
estruturação deste trabalho.
Aos colegas e familiares entrevistados sem os quais esse trabalho não teria sido realizado.
À equipe do Instituto Estadual de Hematologia, em especial ao Dr. Luis Franco, Dra.
Margarida Pêcego e Sra. Adarlete Neira pela colaboração e confiança.
Agradeço aos meus pais o incentivo e apoio que sempre me dedicaram e as heranças que
foram fundamentais para este trabalho: o gosto pela Medicina, do Dr. Pessoa, o espírito de desafio e
perseverança, da D. Pina.
À minha irmã Ana por sua ajuda fundamental em vários momentos, e de diversas maneiras,
reafirmando nossa parceria uni vitelínica • Ao Fausto e demais membros do clã Pessoa-Fieury pelo
carinho e apoio.
Ao Álvaro por sua colaboração cotidiana e sistemática neste e em outros projetas da minha
vida.
À Ligia Bahia e sua turma: Lia, Bê, Rita e Rosa - pela iniciação na informática e acolhida
carinhosa.
À Vania pela disponibilidade de pombo-correio entre Niterói e Rio, e a cumplicidade
irrestrita. Às amigas Marlene e Virgínia por terem me estimulado a cursar este Mestrado. Ao Alexandre e
Ney pela generosidade e capricho nos acabamentos. Ao Charles pela ajuda no preparo da apresentação
pública permeada pela sua costumeira solidariedade. Aos amigos que colaboraram emprestando livros e
artigos, dando dicas e demonstrando carinho e torcida incondicional.
Muito obrigado.
Santos, Maria Cristina Pessoa dos Representações sociais do sangue: estudo
com médicos e pacientes pediátricos do Instituto Fernandes Figueira/ Maria Cristina Pessoa dos Santos - Rio de Janeiro 1992. 45p, 33cm
Dissertação de Mestrado -- Saúde da Criança -- Instituto Fernandes Figueira/Fundação Oswaldo Cruz.
1. Antropologia Cultural. 2. Bancos de Sangue. 3. Transfusão de Sangue. 4. Doadores de sangue.
1
"O bebê sorria, rosado e bonito. A exsanguineo- transfusão havia sido um sucesso. Os resultados dos exames estavam ótimos.
A mãe do bebê tinha o rosto tenso e o olhar triste. Permaneceu calada enquanto examinávamos seu filho. Confirmei a opinião do médico-residente de que o bebê estava bem, podendo ter alta em poucas horas. Ela continuou triste. Perguntei o que a estava incomodando. Ela balançou negativamente a cabeça e continuou calada. Voltei a insistir na pergunta. Ela por fim desabafou: - "Pois é doutora, mas ele agora não tem mais o meu sangue."
1. INTRODUÇÃO
Esta dissertação de mestrado é o resultado do meu estudo sobre as representações coletivas do
sangue, e de sua circulação social, elaborada a partir de entrevistas com médicos e familiares de pacientes
pediátricos do Instituto Fernandes Figueira, unidade materno-infantil da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de
Janeiro.
Como médica do hospital, chefe do Banco de Sangue e hemoterapeuta há dez anos, eu me deparava
cotidianamente com a dificuldade de lidar de uma forma "racional" com as questões que envolviam os
significados do "sangue" nos vários momentos da atividade hemoterápica.
Por um lado, os colegas médicos e as prescrições de hemocomponentes, que revelavam muitas das
vezes expectativas "milagrosas" em relação à transfusão. O Banco de Sangue sendo visto como um lugar que
"tem que se virar" para ter sangue. Os familiares dos pacientes internados, que tinham comportamentos os
mais variados em relação à transfusão. A epígrafe ilustra um desses momentos.
A oportunidade de cursar o Mestrado de Saúde da Criança do Instituto Fernandes
Figueira/FIOCRUZ permitiu que este "problema" pudesse ser transformado em objeto de estudo. Perceber os
significados que produzem e são produzidos pela forma particular que a circulação social do sangue ocorre no
Brasil.
1.1. O sangue como um bem simbólico
Para construir um problema e tentar compreender o "sangue", escolhi estudar as representações
sociais produzidas por ele. Pois todo elemento do real é um objeto que suscita representação, logo uma
explicação integral deste deve considerar simultaneamente a sua estrutura própria e as representações através
das quais apreendemos suas propriedades. (LÉVI-STRAUSS, 1974:16). Estas são formas de conhecimento do
mundo cuja natureza e conteúdo são sociais e que supõem um sistema próprio de classificação.
''Apenas porque a sociedade existe, também existe, fora das sensações e das imagens
individuais, todo um sistema de representações coletivas que gozam de propriedades maravilhosas. Por
elas os homens se compreendem e as inteligências penetram umas nas outras. Elas têm, em si, um tipo
de força, de ascendência moral em virtude da qual se impõem aos espíritos particulares. "(DURKHEIM,
1983: 237).
2
O "sangue" aqui considerado como uma "categoria", entendendo-se categorias como princípios
de julgamento e de raciocínio, sem os quais estes não seriam viáveis. Estas "categorias" estão presentes na
linguagem, sem que estejam necessariamente explícitas, existindo comumente sob a forma de hábitos diretores
da consciência, eles próprios inconscientes (MAUSS, 1968:138).
O estudo da categoria sangue é de difícil análise, pois, talvez seja, antes, "uma idéia dessas
idéias", do que uma categoria possível de ser apreendida racionalmente. É, portanto necessário construir os
limites de sua mediação, estabelecendo o modo como seu estudo pode oferecer recursos de organização e
compreensão de uma realidade específica.
Estes limites foram estabelecidos optando por apreender os significados produzidos nos espaços
onde são realizadas as práticas de coletar, conservar e infundir sangue. Não como espaços isolados, mas
como partes de uma "circulação" que o "sangue" percorre como um bem simbólico.
Utilizei os conceitos de Maurice Godelier, sobre Antropologia Econômica, para organizar e
analisar as operações que regulam a circulação deste "bem". Para este autor o econômico é um domínio ao
mesmo tempo exterior e interior às outras estruturas da vida social, um campo autônomo, e não apenas um
atributo da lógica capitalista industrial. Assim ele define as atividades econômicas:
"Como o conjunto de operações pelas quais seus membros obtêm, repartem e consomem os meios
materiais capazes de satisfazer suas necessidades individuais e coletivas, um sistema econômico é a
combinação de três estruturas - da produção, da repartição e do consumo.” (GODELIER, s.d.:327).
A apreensão dos diversos significados do sangue nos momentos de produção, repartição e
consumo organizam um mercado simbólico. Estes valores são múltiplos, às vezes semelhantes, às vezes
contrastantes, e encontram seu significado em uma categoria mais ampla: "o sangue".
Este "mercado" é socialmente determinado, isto é submetido às normas que regulam as relações
dos homens entre si, e marcado por emoções culturalmente construídas. Nele o "sangue" naturalmente dado
é culturalmente interpretado.
A cultura não devendo ser entendida aqui como mera série de costumes, usos, tradições, mas sendo
entendida como um conjunto de mecanismos de controle, planos, receitas, regras e instruções, "programas"
para governar o comportamento dos seres humanos. (GEERTZ, 1973:56)
Estes mecanismos ordenam um conjunto e ações inventadas pelo homem e que ele é capaz de
reproduzir e projetar em tudo aquilo que fabrica, estabelecendo uma relação dialética e reflexiva com a
natureza. O ser humano é o animal que mais desesperadamente depende de mecanismos para ordenar seu
comportamento. Dotado intrinsecamente de equipamento natural para viver milhares de espécie de vidas, ele
termina por viver apenas uma delas, criada pela especificidade de suas reais realizações. A cultura é a
principal base dessa especificidade. (GEERTZ, 1973:56, DA MATIA, 1987:33)
3
“Foi respondendo a natureza que o homem modificou-se e assim, inventou um plano onde pôde
simultaneamente reformular-se, reformulando a própria natureza”. (DAMATTA, 1987:33)
Logo, a cultura não é apenas uma construção para fazer em face de certos desafios naturais, ela é
uma especulação que permite aos homens sobreviverem, e que o façam de uma certa maneira (GEERTZ,
1973:57, DA MATTA, 1987:32, LIMA e KANT DE LIMA, 1991:6)
1.2. Metodologia
A escolha da Antropologia Social foi conseqüência da vontade de perceber os fenômenos sociais
como resultado das interações cotidianas. E procurar estabelecer tramas, redes de fatos que não são apenas o
que a "visibilidade" inicial indica (NEVES, 1988:36), através do estudo comparativo das diferenças entre as
respostas específicas dos membros do grupo estudado.
Os métodos de pesquisa ditos qualitativos usados foram: a observação participante, a entrevista
aberta, e o contato direto e pessoal com o universo investigado.
A observação participante foi organizada a partir do estudo do conjunto das regras, formuladas
ou implícitas, que guiam as atividades dos componentes do grupo social; depois, da observação da forma
como essas regras são efetivamente praticadas e por último, do registro dos comentários e sentimentos
verbalizados pelos membros do grupo (MALINOWSKI,1975:12, MINAY0,1989:189).
O levantamento bibliográfico abrangeu áreas distintas onde "o sangue" aparecia: sociologia,
antropologia social, história da religião, medicina, revistas, legislação federal e estadual, relatórios técnicos
de órgãos do governo estadual.
No roteiro das entrevistas tentei apreender que sentimentos, imagens, concepções e valores os
informantes atribuíam ao "sangue". Este mesmo conteúdo foi procurado em momentos particulares da
"circulação" do sangue percebidos pelo informante: na doação, na transfusão, ao pedir para alguém doar ou
como familiar de alguém que precisasse de uma transfusão.
As entrevistas foram realizadas com o auxílio de um gravador, com a concordância do
entrevistado, pois "ao se expressar, o locutor projeta seus conflitos básicos através de palavras, silêncios,
lacunas, dentro de processos, na sua maioria, inconscientes" (MINAYO, 1989:284). Todas foram realizadas
no próprio Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ.
O grupo de entrevistados foi de doze pessoas. Entre elas, seis médicos "de criança" do Instituto
Fernandes Figueira e seis familiares de crianças internadas neste hospital. A escolha da amostra não seguiu um
critério probabilístico nem a constituição de uma representatividade no sentido estatístico. Cada indivíduo foi
considerado representativo por deter uma imagem, particular é verdade, da cultura à qual pertence.
4
(MICHEl.AT, 1987:199, GEERTZ, 1973)
5
O grupo de médicos constou de quatro pediatras e dois cirurgiões pediátricos; três homens e três
mulheres; dois com mais de quinze anos de formados, um com dez anos de formado e três com menos de
cinco anos de formados; dois ocupavam cargos institucionais de chefia, três eram "residentes" (alunos de pós-
graduação) e um plantonista.
O grupo de familiares foi de cinco mulheres e um homem; dois acompanhavam crianças no setor
de Cirurgia Pediátrica e quatro na Pediatria. Com exceção do "pai", todos permaneceram muito tempo nas
dependências do hospital. O "pai" não tinha uma experiência de dormir no hospital, mas visitava
regularmente o filho, que se internara por uma segunda vez, portanto também tinha uma "vivência" do
cotidiano da enfermaria.
Três crianças haviam sido transfundidas e três não. As idades variaram de 4 meses a 13 anos.
Nenhuma apresentava "risco de vida", duas haviam sido operadas e uma apresentava doença crônica.
Nenhuma delas apresentava doença hematológica, aguda ou crônica.
Este estudo foi complementado com material colhido no Instituto Estadual de Hematologia, órgão
da Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Rio de Janeiro responsável pela coordenação, supervisão e
controle das atividades hemoterápicas em nível estadual.
A análise das entrevistas foi realizada através da transcrição das fitas gravadas e da leitura
exaustiva e repetida deste material. A partir da identificação das idéias centrais e relevantes dos informantes
foram levantadas as categorias através das quais eles constroem o seu conhecimento. Estas foram analisadas
no contexto de cada entrevista, comparando as entrevistas dos dois grupos, médicos e familiares, e no conjunto
todo.
Como se sabe, o estudo antropológico é um estudo que se sabe relativizado, onde o autor existe
como um intérprete da realidade em questão resultado é uma interpretação de caráter aproximativo e não
definitivo. (GEERTZ, 1973).
Quando o hospital virou "campo":
Para estudar o meu próprio local de trabalho foi necessário um longo processo de
"estranhamento", a partir do uso concreto de teorias e reflexões das "ciências sociais", ou seja, de "realizar a
transformação do familiar em exótico e do exótico em familiar" (DA MATTA, 1987: 14). Isto é, tirar "o
jaleco branco" de membro de uma classe e de um grupo social específico para poder "estranhar" alguma regra
social familiar e assim descobrir o novo naquilo que está petrificado dentro de mim pelos mecanismos de
legitimação. (VELH0,1978:29).
O trabalho de campo foi marcado pela emoção e a solidão. Ao deixar de ser a "médica" e passar a
ser a "observadora", eu deixava para trás todos os referenciais que tornavam os lugares e as pessoas tão
confortavelmente "familiares".
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Durante vários dias eu pegava e largava o gravador diversas vezes antes de conseguir me dirigir
às enfermarias do 4º andar. Em busca de uma "objetividade" eu tentava lembrar sempre que o que
encontrava poderia parecer familiar, mas não me era realmente conhecido. O ponto de vista e a visão de
mundo dos diferentes atores devendo ser revelados por eles e não interpretados por mim. Isto exigiu uma
humildade e relativização às vezes dolorosa. Um dos informantes expressou o incômodo que o gravador lhe
causava, mal sabendo ela o incômodo que ele causava a mim.
Os dados surgiam à medida que a empatia aumentava. A relação com os médicos era
afetivamente mais fácil. Eles eram meus colegas e com alguns inclusive eu tenho vários anos de
convivência. Contudo, intelectualmente era mais difícil. O "estranhamento" às vezes me parecia "ridículo"
- perguntar o que é "sanguinho", por exemplo, coisa que "todo o mundo sabe". As entrevistas com os
familiares foram mais difíceis afetivamente, pois eram estranhos. Elas eram sempre cercadas de uma
cerimônia inicial, a qual eu percebia ter que "dissolver" para poder chegar a conteúdos mais simbólicos.
7
“ O que é que pode determinar às sociedades primitivas emprestar ao líquido sanguíneo tão estranhas propriedades?” DURKHEIM, 1969:83)
2. O SANGUE COMO SÍMBOLO EM UMA PERSPECTIVA COMPARADA
O valor simbólico do sangue pode ser encontrado em outros grupos através de vários relatos
etnográficos. Eles expressam costumes que parecem familiares, embora despertem sentimentos
contraditórios de identificação e estranhamento.
Frazer, em O ramo de ouro, estudou vários tabus envolvendo o sangue em sociedades
primitivas. Estas se baseavam na crença de que neste estava à alma do seu possuidor, portanto tudo que fosse
tocado por ele se tornava tabu também. A carne crua, pessoas cujas mãos estivessem cortadas e o próprio
sangue não deveriam ser vistos em certas ocasiões. O sangue real não poderia ser derramado ao solo, e caso
caísse uma gota deste em algum lugar, o local se tornava sagrado. Os tabus serviam para conservar a força
espiritual de que estavam carregadas estas pessoas ou objetos e evitar que sofressem ou infligissem dano ao
contato.
Já Emile Durkheim em La prohibition de I’inceste et ses origines credita ao medo de certas
tribos primitivas ao sangue menstrual um valor "totalizante" . Segundo ele, essas tribos teriam medo do
sangue em geral, portanto este teria um valor sagrado que constituiria a origem mágico-simbólica que unia
um mesmo clã (DURKHEIM, 1969).
Esta concepção foi contraposta por Lévi-Strauss, que observou que em diversas culturas, como
por exemplo, a winnebago, o horror ao sangue menstrual não ocorria. (LÉVI-STRAUSS, 1976:19).
Em Le sacré et la violation des interdits, Lévi-Makarius diz:
"Da maneira mágica e simbólica que lhe é própria, os homens crêem se premunir
contra os perigos e as doenças que eles apreendem evitando o contato e a visão do sangue, banindo
aquilo que pode evocar sua idéia e afastando as pessoas que estão manchadas por ele ou sangrando".
(apud CROS, 1980:18).
O pensamento dos "selvagens", como o nosso, exprime-se simbolicamente, e seria errado
interpretá-los como governados por suas necessidades orgânicas ou econômicas. Estes povos são movidos
por uma necessidade de compreender o mundo que os envolve, a sua natureza e a sociedade em que vivem.
Para isso agem por meios intelectuais, exatamente como faz um filósofo ou até, em certa medida, como pode
fazer e fará um cientista (LÉVI-STRAUSS, 1978:31). É próprio da natureza da sociedade exprimir-se
simbolicamente em seus costumes e em suas instituições.
"O significado do sangue prá mim é muito amplo. Dentro da profissão significa a
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possibilidade de salvar vidas. (...) Agora, no sentido geral ele é cercado de mitos...” (médico3)
"Na minha infância, machucado, dor. Ai! Fez dodói. Ta doendo. Mas eu nunca ligava muito. Eu tenho uma irmã que não pode ver sangue. Mas eu nunca ligava. Não sei se de repente era o espírito de médica." (médica4)
A fala dos informantes revela que atribuir ao sangue uma variedade de significados também ocorre
na nossa sociedade. “Significar” é exatamente a possibilidade de uma informação ser traduzida numa linguagem diferente. (LÉVI-STRAUSS, 1978:24). O sangue tem um valor indeterminado de significação que o torna suscetível de receber vários sentidos dependendo da circunstância, da ocasião ou da manifestação específica. Portanto, estudar esses significados é estudar a maneira específica com que uma determinada cultura se manifesta em relação a este elemento.
2.1. A construção da circulação social do sangue
A distinção entre o sangue voluntariamente derramado daquele que sai naturalmente do corpo
do homem ocorre em várias sociedades. A transformação do "sangue" naturalmente concebido em um
instrumento de cura construiu um campo inteiramente novo para as práticas de retirar e infundir sangue. A
circulação "fora do corpo", enquanto um estágio entre os outros dois momentos foi regulado pelas
possibilidades técnicas e normas sociais. Portanto, seu uso instrumental, criou uma série de novos
significados para o "sangue" e uma "circulação" socialmente determinada.
O costume de retirar sangue do corpo para fins terapêuticos era exercido por Galeno, no século
II, como a melhor maneira de tratar das doenças. Ele a via como um substituto artificial da menstruação
nas mulheres e das hemorróidas nos homens segundo Peter Brain em Galen on bloodletting .(apud
CARTER, 1986:117-1178).
No mesmo livro o autor descreve a grande influência que as sangrias tiveram em vários
sistemas de Medicina. Na China e na Índia eram bastante praticados, assim como também entre os astecas,
os incas e os samoas. Na Medicina Ocidental tiveram utilização disseminada na Europa e Estados Unidos
até 1880, indicadas para tratamento de mais de dois terços de doenças indexadas no The cyclopaedia of
medicine (apud CARTER, 1986: 1177-1178)
Entretanto, entre os Bantos, na África do Sul, a retirada de sangue de uma pessoa era vista como
uma prática de enfraquecimento. Acreditavam que o sangue não seria reposto, e poderia levar o paciente à
impotência ou à cegueira. A retirada de sangue pelo homem branco seria uma forma de garantir a sua
dominação sobre o homem negro. (TITMUSS, 1972:16)
A circulação do sangue não estava presente no modelo médico de Hipócrates. Ele explicava o
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surgimento das doenças como um desequilíbrio entre os quatro humores (sangue, linfa, bile amarela e bile
negra) e os quatro elementos (ar, ferro, fogo e água). As veias serviriam para transportar o ar pelo organismo.
(BINET, 1988:26)
Foi Galeno o primeiro a formular uma teoria explicativa sobre a circulação do sangue. Ao
estudar as feridas dos gladiadores romanos, localizou no fígado a sua formação. Neste órgão o sangue
receberia o espírito natural (ou pneuma), ao chegar ao coração ele receberia o espírito vital e o espírito
animal ao chegar ao cérebro. O caminho entre os vários órgãos seria percorrido pelas veias e as artérias. O
sangue venoso seria diferente do sangue arterial, o primeiro concentrado e "nebuloso", e o segundo puro e
"sutil" (BINET, 1988:27).
Durante quinze séculos foi esta a explicação dominante sobre os caminhos do sangue. Os
anatomistas do século XVI, entre eles Versalius, encontraram outra realidade durante os seus estudos, mas
"não ousavam discordar de Galeno" (BINET, 1988:28).
Em 1628, um médico inglês, William Harvey, publica um estudo discordando do modelo de
Galeno. Era o "Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animabilus". Harvey defendia que o
sangue das artérias era o mesmo das veias; a contração cardíaca coincidia com o pulso cujas ondas eram
determinadas pelo sangue que fluía nas artérias; e que o sangue percorria um circuito fechado. Baseado nos
métodos de observação, experimentação e dedução, ele foi um dos precursores do raciocínio fisiológico
moderno.
O modelo de Harvey ainda mantinha o sangue como um motor da comunicação interna da
pessoa, um mediador entre os planos físico e o moral: "ele varia com o temperamento, a idade, as
influências externas ou internas, as causas naturais ou não, o descanso, o exercício, a nutrição, as agitações
da alma e outras condições da alma" (BINET, 1988:29).
As tentativas de infusão do sangue ocorreram, sem sucesso, durante vários séculos. Em 1665,
Richard Lower realiza com sucesso a transferência de sangue de um cachorro para outro. Jean Baptiste
Denis tenta várias vezes a transferência de sangue animal para seres humanos. Os fracassos redundavam na
morte dos pacientes. A repercussão leva a proibição das tentativas por decreto papal em 1678. (TITMUSS,
1972:18).
O fracasso destas experiências só foi superado em 1818 por Blundell, obstetra inglês. Durante
um episódio de hemorragia aguda de uma paciente, ele retirou sangue de um homem e infundiu nela. A
paciente salvou-se e a prática de transferir sangue de um ser humano para outro ficou provada ser possível.
Ao ato de se deixar sangrar com o intuito de ceder o sangue derramado para outra pessoa denominou-se
DOAÇÃO (PETZ, 1981:16).
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No início, colhia-se o sangue da veia do braço do doador e infundia-se imediatamente no braço
do paciente. Geralmente, este procedimento era realizado por cirurgiões em situações de emergência.
Vários aparelhos foram desenvolvidos para realizar a técnica com maior rapidez e aproveitamento. A
coagulação do sangue era um dos grandes desafios. Além disso, alguns dos pacientes apresentavam reações
graves após o procedimento, alguns até morriam.
Em 1900, Landsteiner postula que o sangue humano podia pertencer a "grupos diferentes".
Através da observação de que ao misturar amostras de diferentes pessoas, algumas combinações
formavam grumos - aglutinavam - e outras não, ele classificou-as em grupos A, B e O (PETZ,
1981:21).Esta descoberta submeteu a doação de sangue à possibilidade biológica de uma pessoa poder doar
para outra: sendo necessário haver"compatibilidade" entre elas.
O primeiro Serviço de Transfusão de Sangue foi organizado em Londres pela Cruz Vermelha
Britânica em 1921. A descoberta de substâncias que evitavam a coagulação e conservavam as hemácias por
alguns dias após colhidas provocou mudanças importantes na prática transfusional. O doador e o receptor
foram separados. Entre eles foi criado um aparato médico tecnológico: o Centro de Transfusão de Sangue.
Na década de 30, os serviços especializados proliferaram. Nos Estados Unidos, Fantus
organizou um serviço no Cook County Hospital de Chicago, e denominou-o Banco de Sangue. Este
funcionava como um sistema bancário, cada paciente tinha uma conta onde anotava-se débito em caso de
transfusões, e créditos em caso de doações realizadas por parentes e amigos (JUNQUEIRA, 1979:20).
Os serviços organizaram "corpos de doadores de sangue", para os quais era oferecida uma
pequena quantia em dinheiro. A Cruz Vermelha combatia esta prática, e pregava que os doadores
deveriam fazê-lo por "altruísmo", por "dever social". A guerra de 1940 fortaleceu a visão de que a doação
deveria ser feita como "um dever cívico". Por outro lado, o desenvolvimento da indústria de derivados
plasmáticos do sangue incentivou a doação remunerada. (JUNQUEIRA, 1979:.42). Tanto em uma situação
como na outra, o ato era denominado "doação".
2.2. A circulação social do sangue no Brasil
A importância dos produtos plasmáticos no período de guerra impulsionou a organização de
serviços que praticassem a coleta e o fracionamento do sangue de forma regular no Brasil. O doador de
sangue passa a ter um papel reconhecido socialmente. Esta atividade se desenvolveu principalmente através
de serviços particulares, e sem a fiscalização governamental. A partir de 1980, em face de uma série de
denúncias de contaminação de pacientes através da transfusão o governo assume um papel efetivo no setor
hemoterápico. O surgimento da AIDS veio trazer maior relevância ao controle da "qualidade do sangue" e
do seu papel na Saúde Pública.
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O primeiro Banco de Sangue no Brasil foi organizado como um esforço de guerra, pois tinha
como objetivo coletar plasma para enviá-lo à Europa em 1942. Este foi inaugurado no Instituto Nacional
de Puericultura (hoje Instituto Fernandes Figueira) no Rio de Janeiro.
A polêmica entre doação voluntária versus doação remunerada também estava presente no
Brasil. Em 1949 é organizada a Associação de Doadores Voluntários de Sangue cuja principal bandeira era
incentivar a doação voluntária e combater a doação remunerada.
Através da lei 1075 de 27/3/1950, o doador voluntário de sangue passa a ter um abono no dia da
doação. Esta, "consignava com louvor em folha de serviço militar, do funcionário público ou de servidor de
autarquia a doação voluntária de sangue" (CASTRO SANTOS, 1991:162)
A hemoterapia só será novamente objeto de regulamentação governamental em 1964. O
governo militar estabelece o Dia Nacional do Doador Voluntário de Sangue e o estoque de sangue passa a
ser tratado
como assunto de interesse da segurança nacional.
A lei 4.701 de 28/6/1965 foi criada para "garantir reservas hemoterápicas à disposição do
Estado", "disciplinar o setor", "incentivar a doação voluntária de sangue" e, "adotar medidas que evitem o
abuso econômico-financeiro dos que se dispõe a doar sangue em troca de remuneração" (BRASIL, Lei
4.701). Em termos práticos, o governo omitiu uma posição oficial sobre a polêmica doação paga versus
doação voluntária.
O desenvolvimento do setor hemoterápico no Brasil ocorreu de maneira anárquica. Os padrões
técnicos não eram aplicados por todos. A aplicação das leis que regulamentavam o setor não era fiscalizada.
A ocorrência de transmissão de doenças infecto-contagiosas através da transfusão alcançava índices elevados.
A seleção de doadores de sangue era realizada sem rigor e a remuneração atraía candidatos sem condições
apropriadas para doar.
A doação voluntária e "sangue de boa qualidade" passam a ser sinônimos. A Organização
Mundial de Saúde na sua 28a Assembléia Mundial pronuncia que "um serviço baseado na doação voluntária
de sangue, motivado por princípios humanitários, constitui o meio mais seguro e eficaz de prover as
necessidades do sangue" (JUNQUEIRA, 1979:42).
A partir de 1980, o governo começa a atuar diretamente no setor hemoterápico. Ele cria o
Programa Nacional de Sangue (Pró-Sangue) e estimula a criação e o desenvolvimento da hemoterapia nos
hospitais públicos. Este plano foi visto por alguns setores como indício de uma política "estatizante".
A doação remunerada é desestimulada. A Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia
12
assume oficialmente uma posição contrária à sua prática. Em vários estados brasileiros ela é proibida através
de legislação local. O Rio de Janeiro é um dos últimos a fazê-lo em 1985.
A "situação do sangue no Brasil" passa a ser tema obrigatório nas discussões sobre saúde. O
aparecimento da AIDS como uma doença fatal e transmissível pelo sangue aumenta muito a
responsabilidade sobre a qualidade do sangue a ser transfundido. A descoberta, nos E.U.A., de um teste
capaz de detectar a grande maioria dos possíveis transmissores em 1984/1985 diminuiu um pouco as
dimensões do desastre. No Brasil, o teste só se torna obrigatório em 1987.
A VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em março de 1986, propõe "a estatização dos
setores estratégicos na área de produção de imunopatológicos e na produção e comercialização de sangue e
hemoderivados". Esta era um aspecto particular de uma discussão geral sobre "saúde como um dever do
Estado e um direito do cidadão".
Durante o processo de discussão e votação da Constituição Brasileira, em 1988, um dos temas
mais polêmicos é a regulamentação do setor hemoterápico, se ele deveria ser "estatizado" ou não. Finalmente
se aprova a "não comercialização do sangue".
Estes são aspectos políticos gerais que participam da formação dos significados relacionados à
circulação social do sangue no Brasil. O seu valor é amplamente reconhecido e o seu "controle" disputado
politicamente. A presença de conteúdos claramente simbólicos é revelada inclusive nas leis.
3. O MERCADO: PRODUÇÃO, REPARTIÇÃO E CONSUMO DO SANGUE
O ato da retirada de sangue só atinge plenamente o seu significado quando ele é recebido pelo
outro. Quem doa sangue só o faz para que alguém o receba, realizando-se desta maneira uma transferência
de tecido líquido para o outro, transfundido, e estabelecendo uma relação entre duas pessoas. Esta
circulação é realizada através da sua produção, repartição e consumo, fenômenos que ocorrem em um
determinado local, um "mercado" socialmente determinado.
A circulação do sangue no Brasil envolve contratos não monetariamente retribuídos, já que a
doação "paga" está legalmente proibida. Portanto, o "valor" que tramita é de caráter simbólico,
estabelecido pela rede de significados que envolvem as relações entre os membros da nossa sociedade entre
si.
Em Ensaio sobre a dádiva, Marcel Mauss descreve formas de troca, obrigatórias, e contratos em
sociedades antes da invenção da moeda e dos mercadores. As trocas de bens e riquezas não são simples
intercâmbios entre indivíduos, são realizadas através de clãs, tribos e famílias. O que trocam não são
exclusivamente coisas economicamente úteis; trocam gentilezas, banquetes, ritos, mulheres, danças, feiras,
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festas. Estas prestações e contra-prestações são realizadas voluntariamente, embora no fundo, fossem
rigorosamente obrigatórias, constituindo um conjunto de manobras conscientes ou inconscientes de selar
alianças e evitar guerras. O valor das trocas não se reduz ao valor material das coisas trocadas, seu valor
simbólico supera muitas vezes o da matéria-prima em questão.
Para os Maori, as coisas dadas não são inertes, elas tem um espírito hau, "o espírito das coisas,
em particular, da floresta, ou de caça que ela contém..." (MAUSS,1974:53). É a força que explica a
necessidade de retribuição de um presente, a criadora das relações de reciprocidade. "...animada, amiúde
individualizada, tende a regressar àquilo que Hertz chamava de seu "lar de origem", ou a produzir, para o clã
e o solo de onde saiu, um equivalente que a substitua". A doação de um bem iniciando um processo de
reciprocidades. (MAUSS, 1974:56)
Mauss também relata que Malinoswski nos seus estudos sobre os trobriandeses, em
Argonautas do Pacífico, mostra que naquela sociedade a troca de presentes é um dos principais
instrumentos de organização social. Esta constituí uma função do rei, através da qual ele impõe o seu poder
sobre seus súditos. (MAUSS, 1974:57)
Os tlinkit e os haida, duas tribos do noroeste americano, passam o inverno em festa organizam
banquetes, feiras e mercados, que são ao mesmo tempo a assembléia solene da tribo. Nesses espaços se
realizam prestações jurídicas e econômicas.
"... o que é notável nessas tribos é o princípio de rivalidade e do antagonismo que domina
todas essas práticas. Vai-se até à batalha, até a destruição puramente suntuária de riquezas
acumuladas para eclipsar o chefe rival, ao mesmo tempo associado (de ordinário avô, sogro ou
genro). A esta instituição típica chama-se potlatch."(Mauss,1974:46)
Durante o potlach, destroem-se riquezas acumuladas por muito tempo e cuidadosamente
adquiridas e guardadas, como placas preciosas de cobre e mantas de lã. (MAUSS, 1974:101) Marcel Mauss
denominou a esses fenômenos que envolvem uma gama complexa de sentimentos e valores envolvidos
nas relações de doação e retribuição de "fatos sociais totais". Estes exprimem ao mesmo tempo e de uma só
vez toda espécie de instituições: religiosas, jurídicas e morais- estas políticas e familiares ao mesmo tempo,
econômicas - supondo formas particulares de produção e de consumo, ou antes, de prestação e de
distribuição, sem contar os fenômenos morfológicos que se manifestam nessas instituições (MAUSS,
1974:41)
Em As estruturas elementares do parentesco, Lévi-Strauss analisa uma série de sociedades com
diferentes culturas e discute a relevância dessas regras nas sociedades modernas ocidentais.
"Na sociedade americana, que parece que muitas vezes procura reintegrar na civilização
moderna atitudes e procedimentos muito gerais das culturas primitivas, estas ocasiões tomam uma
amplitude inteiramente excepcional. A troca de presentes de Natal, a que, durante um mês de cada ano, todas
as classes sociais se dedicam com uma espécie de furor sagrado, não é outra coisa senão um gigantesco
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potlatch envolvendo milhões de indivíduos, no final do qual os orçamentos familiares defrontam-se com
duráveis desequilíbrios.
Os Christmas cards ricamente decorados não atingem, sem dúvida, o valor dos "cobres",
mas o requinte de sua escolha, a singularidade e o preço (que, mesmo modesto, não deixa de se multiplicar
por motivo de quantidade), o número deles, enviado ou recebido, são a prova, ritualmente exibida na
chaminé do recebedor durante a semana fatídica, da riqueza de suas ligações sociais e do grau do seu
prestígio." (LÉVI-STRAUSS, 1976:96)
Em algumas sociedades modernas, presentear tem o objetivo de comprar paz, expressar afeto,
unificar um grupo, ligar gerações. Em todos esses momentos, a necessidade de retribuir surge como uma
obrigação moral, que a torna um ato compulsório. Dar é receber, seja através de um presente material
similar, ou diferente, ou na expressão de sentimentos- "muito obrigado"
Essas observações sobre troca de presentes em outras sociedades podem nos ajudar a pensar as
relações sociais que constrõem o circuito hemoterápico no Instituto Fernandes Figueira por ser um "circuito
de trocas", já que a remuneração, seja do ato de doar sangue, seja do produto hemoterápico em si, não
acontece.
Uma análise puramente econômica de um "modelo capitalista" não forneceria as variáveis
específicas a partir das quais ele se desenvolve na nossa realidade cultural, articulando valores e ideologias
sociais e sistemas econômicos e políticos. O estudo da interpretação específica da relação indivíduo e
sociedade se apresenta como um bom caminho para esta compreensão.
A civilização ocidental apropriou a idéia de individuo como centro e foco do universo social.
Esta idéia, no entanto pode receber duas elaborações distintas.
Uma das vertentes, por exemplo, é mais individualizante, enfatizando o "eu individual",
depositário de sentimentos, emoções, e pretendente da liberdade e da igualdade. A igualdade como respeito
à diferença. Ele se concebe como uma unidade política que têm direitos e deveres, os quais devem ser
iguais para todos. (DA MATIA, 1983:172). Um exemplo de sociedade onde esta vertente é predominante é a
norte-americana.
A outra vertente é a da complementariedade. Cada elemento da sociedade faz parte de um todo,
que só se constitui quando se tem todas as partes. Essa vertente corresponde à noção de pessoa como a
entidade capaz de remeter ao todo e de estabelecer relações essenciais. A igualdade existe entre semelhantes.
Os direitos e obrigações de uma pessoa são os detidos por seu grupo - clã, casta, linhagem ou metade. (DA
MATIA, 1983:173). Um exemplo ilustrativo de sociedade onde a hierarquização é o aspecto dominante é a
Índia.
No Brasil, como em outras sociedades semi-tradicionais - Itália, Portugal, Espanha e os demais
países latino-americanos - os sistemas globais, de caráter universal, são permeados pelos sistemas de
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relações pessoais. Assistimos a complexa convivência de uma sociedade que tem sua estrutura social
moldada em uma hierarquia e seu aparato jurídico instituído com caráter universalizante.
As leis que supostamente deveriam servir para corrigir as desigualdades acabam por legitimá-las.
Estas tornam o sistema de relações pessoais um esquema importante na superação das dificuldades colocadas
pela autoridade impessoal da regra. Por termos leis impossíveis de serem rigorosamente cumpridas
acabamos por não cumpri-las, “ damos um jeitinho” . (DA MATTA,1983:184).
Por outro lado, a desconfiança nos decretos e leis universalizantes gera sua própria antítese, que é
a esperança de que um dia isso mude. Julgamos que a sociedade poderá melhorar com o uso de boas leis
que um dia um "bom" Governo estabeleça e faça cumprir. A lei raramente é vista como um instrumento
imparcial, ela serve a "nosso favor" ou "contra nós". Por confiarmos tanto na força fria da lei criamos tantas
leis e as tornamos inoperantes. Um sistema acaba alimentando o outro. (DA MATTA, 1983:185).
Portanto, na nossa sociedade para compreendermos o “ mercado” onde se realiza a circulação
social do sangue temos que considerar essas duas concepções. Elas se manifestam de forma particular e
específica na produção, na repartição e no consumo do sangue.
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3.1. A Produção
Juramento dos Doadores Voluntários de Sangue
"Nós, doadores voluntários de sangue, compreendendo que sangue é
vida, e vida não se vende, doar sangue é dever humano, dever cívico, doar
sangue ao desconhecido é transformar em esperança e vida seu sofrimento, a
doação de sangue desconhece raça, religião ou fronteira, a doação de sangue é
caminho para a Paz Mundial.
Juramos "de braço abaixado e mão aberta, no gesto bom de quem
semeia", dar nosso sangue pronta e graciosamente e só quando solicitado para a
finalidade de benemerência, "dar à outra veia a gota de vida, a gota devida" ,
para que, com sangue que pulsa em nossas veias façamos pulsar outra vida."
Leonora Carlota Osório
Presidente da Associação de Doadores Voluntários de Sangue (cartaz do
Hemo-Par afixado no salão de espera do Instituto Estadual de Hematologia)
A produção do sangue, considerada como o conjunto de operações destinadas a fornecer os
meios materiais de existência a um grupo social, também está subordinada a certas regras técnicas,
recursos, equipamentos e homens para obter seu resultado. (GODELIER, s.d. 327-328)
No Instituto Fernandes Figueira durante o ano de 1991 não realizamos coleta de sangue, o
hospital "solicita" doadores de sangue. Estes são encaminhados para outro estabelecimento para realizar a
doação, o Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti, o qual, em contra partida, nos
envia as unidades hemoterápicas necessárias para o atendimento dos pacientes do Fernandes Figueira.
No caso, o fato das instituições serem mantidas com dinheiro público estabelece uma relação
também específica com o paciente e seus familiares. Na rede pública só há dois "tipos" de doação, a "de
reposição" e a "espontânea". Na rede privada há, além dessas duas modalidades, a "dirigida" ou
"personalizada" (o sangue doado vai para um paciente específico) e a "autóloga" (o doador retira seu
próprio sangue previamente e o recebe durante a cirurgia).
Durante o ano de 1991, 172.800 doações de sangue foram realizadas no Estado do Rio de
Janeiro. (RIO DE JANEIRO, Secretaria Estadual de Saúde, 1992). Os dados internacionais de doadores
potenciais de sangue apontam para o percentual de 5% da população como o índice ideal para garantir um
estoque adequado de hemoderivados para atendimento desta população, considerando tanto o uso
terapêutico de componentes quanto o de derivados industrializados (albumina, fatores da coagulação).
Sendo a população do município do Rio de Janeiro de aproximadamente 6 milhões de pessoas,
precisaríamos ter realizado 300.000 doações só no município para alcançar esta meta.
No Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti, o HEMORIO,
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compareceram 60.837 pessoas, mas apenas 47.124 (77,5%) foram consideradas aptas para doar. Entre
18
os candidatos, 54.631 (89,8%) eram homens. A maioria doou pela primeira vez (55%).
A classificação sócio-econômica seguiu a seguinte distribuição: 33,2% - não especificados
(donas de casa, estudantes, autônomos, aposentados), 34,3%- 1 a 2 salários mínimos, 27,2% - 2 a 3
salários mínimos, 19% acima de 3 salários mínimos. Embora a renda seja um dado sujeito a várias
imprecisões, a tabela acima demonstra a diminuição do percentual de doadores na medida em que aumenta
a renda declarada.
Entre os candidatos que compareceram ao Instituto de Hematologia para doar sangue, durante
1991, 82,5% foram doadores de "reposição" e 17,5 "espontâneos". Os de "reposição" estão doando "para
alguém" especificamente, não visando uma reposição do sangue diretamente, mas o cumprimento de uma
obrigação social. O comprovante da doação é entregue ao paciente como um certificado de "dever
cumprido"
Estes dados ilustram a relevância social do "sangue" no modelo assistencial brasileiro.
Milhares de pessoas estão envolvidas em uma série de acontecimentos em torno dele. Estes
acontecimentos compõem uma complexa rede social que se organiza a partir das especificidades da
sociedade brasileira.
3.1.1. O dia da doação de sangue
A preparação para o ato de doar sangue começa na véspera. O "candidato'' tem que repousar
pelo menos 6 horas, se abster de bebidas alcoólicas por 24 horas e de alimentos gordurosos por 4 horas
antes de doar.
Várias emoções precedem o ato:
"(...) se eu tiver, for doar, me cria uma expectativa. Dá quase eu não diria perigo, mas algo
que cria uma ansiedade. Eu não defino bem, não é tão nítido assim (...)"(médicos)
"No dia da doação eu me sinto feliz, é emocionante." (médico3) "Me senti útil”
(mãe)
O local da doação é no primeiro andar do Instituto Estadual de Hematologia, no Centro da
cidade do Rio de Janeiro. O atendimento ocorre todos os dias da semana, das 7 às 16 horas, e aos sábados
das 7 às 12hs. A legislação estadual estabelece (RIO DE JANEIRO, 1980):
"Desde o momento em que o candidato a doador entra em um órgão executor da
atividade hemoterápica deve ser tratado com toda a estima e consideração"
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O candidato tem que passar por quatro estágios: Identificação, Triagem, Coleta e
Recuperação. As duas primeiras ocorrem em um grande salão. Entre o local de identificação na frente, e de
triagem atrás, há vários bancos de madeira e uma televisão presa no teto.
A entrada é à direita, diferente daquela que leva ao hospital. Ao entrar, o candidato se
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apresenta a um funcionário situado em um balcão à esquerda. Este solicita um documento de identidade,
confirma se a idade é compatível com a doação - entre 18 e 60 anos - e o encaminha para a Secretaria, para
realizar a identificação.
Na secretaria, vários funcionários trabalham junto a terminais de computador. Um deles copia os
dados sobre a identidade do candidato em uma ficha, uma folha de papel branca com o símbolo do Instituto
em vermelho no centro.
O candidato é então encaminhado para um conjunto de bancos que se situam entre a área de
identificações e a da triagem.
A triagem é realizada em três etapas: a primeira, no balcão à esquerda, é a hematológica. A
segunda e a terceira nas salas, separadas do salão por divisórias, que ficam à direita, são as etapas clínicas.
Após alguns minutos de espera o candidato é chamado por uma funcionária, que atende atrás de
um balcão à direita no fundo do salão. Este limpa um dos dedos medianos da mão do doador e faz uma
perfuração profunda com o auxílio de uma lanceta. As primeiras gotas são desprezadas, depois retira-se gotas
para os exames.
A primeira gota de sangue que cai mergulha em um líquido azul, sulfato de cobre, dentro de um
pote de vidro. Se ela afunda significa que a taxa da hemoglobina está dentro dos limites para a doação. A
segunda gota é depositada em uma placa branca. Esta é misturada com duas gotas de cores diferentes
(amarela e azul) para classificação do grupo sanguíneo do doador.
Caso a primeira gota não afunde, a segunda é introduzida em um pequeno e fino tubo de vidro, o
qual é colocado em um aparelho que gira muito rápido - a centrífuga. Enquanto isso se retira uma terceira
gota para realizar a mistura entre com o líquido azul e o amarelo.
Quando o aparelho pára, e o tubo é retirado, o sangue não está mais homogêneo. Ele se distribui
em duas partes, uma vermelha e outra amarela. Os limites de cada parte são marcados com o auxílio de uma
régua. O resultado é anotado na ficha. Este dado indica se a taxa de hemácias do doador é suficiente para ele
poder doá-las, é o hematócrito.
O candidato é pesado e sua altura medida. O peso mínimo para a "aprovação" é de 50 kg.
A segunda etapa é realizada por uma auxiliar de enfermagem. Ela mede a temperatura axilar com
um termômetro e afere a pressão arterial e a freqüência do pulso. Estes dados também são anotados na
ficha.
A terceira etapa é a decisiva. Ela é realizada na sala contígua à da enfermeira, por aquele que
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"aprovará" ou não o candidato: o médico. Ele o aguarda sentado junto a uma mesa. Recolhe a ficha com os
dados e faz uma verificação rápida.
Várias perguntas são formuladas - uma anamnese. Elas abrangem aspectos gerais da saúde do
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candidato e hábitos e costumes da sua vida particular. A veracidade destas informações é um dos pilares da
"qualidade do sangue" doado. (ANEXO).
Ao final é dado o resultado: "apto" ou "inapto". O primeiro recebe um copo de líquido açucarado
no balcão que antecede a porta da sala de coleta. O segundo é esclarecido do motivo porque não pode doar.
Este pode ser "temporário" ou "definitivo".
O momento mais importante da doação, a coleta, acontece em uma sala grande, com vinte cadeiras
altas e um balcão ao longo da parede do fundo. À direita há um pequeno consultório com uma maca.
O candidato é orientado a se sentar na cadeira. Um dos braços é inspecionado na parte interna, na
altura do cotovelo. Um funcionário apalpa o trajeto da veia mais calibrosa. Ele limpa a área com um algodão
embebido em álcool.
Uma bolsa plástica conectada a uma agulha é preparada. Ela recebe o número de identificação
do doador, a data e a rubrica do técnico. Todo o material é descartável. A agulha é desencapada. Ela é uma
agulha grande.
A introdução da agulha na veia do doador é o momento mais dramático. O sangue flui pela
conexão de plástico até a bolsa e tinge de vermelho o líquido transparente contido nela. Um pequeno aparelho
é acionado. Ele movimenta a bolsa lentamente, em movimentos regulares, homogeneizando a mistura. A
quantidade de sangue a ser coletada é ajustada, através de um pino, para o volume adequado. Este é
calculado em função do peso do doador.
O aparelho emite um sinal sonoro quando o volume estipulado é alcançado. O aparelho pára e o
tubo de plástico é selado automaticamente. Acabou a coleta. A agulha é retirada da veia. Uma "cola" é
aplicada no local de punção.
O doador, após ter cumprido o seu "sacrifício" é encaminhado para a cantina, para a recuperação.
Uma sala com seis mesas e quatro cadeiras ao redor de cada uma. Um balcão separa o local de preparo do
lanche desta pequena sala. Uma bandeja aguarda no balcão. Ela contém um copo de café-com-leite, um pão
com requeijão e uma pequena quantidade de manteiga.
O ambiente é descontraído. Os doadores conversam entre si. Eles são observados de longe por um
funcionário para o caso de alguém não se sentir bem.
O doador recebe um atestado para levar para o emprego e abonar sua falta. O resultado dos exames
será entregue pelo correio, em 15 dias. A doação de sangue é uma possibilidade de "check-up” e os resultados
dos exames sorológicos- para hepatite, sífilis, AIDS, Chagas - aguardados ansiosamente.
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Após três doações é possível ganhar uma "carteirinha" de "doador do Instituto de Hematologia".
Finalmente, nos casos observados, o doador se dirige para a saída movendo o braço "ferido" com
cuidado. Sua expressão é de satisfação.
3.1.2. As representações dos informantes sobre a doação
O ato de doar separa aquele que é "doador" daquele que não o é.
"Tive que doar sangue de uma hora prá outra, nunca fui doador. "(pai) "(...) já estão
acostumados também, já são adoador mesmo" (mãe )
O "doador voluntário" é reconhecido socialmente através de um Dia Nacional em sua
homenagem. O Instituto de Hematologia organiza uma festa em homenagem aos seus doadores anualmente.
Aqueles que tiverem o maior número de doações recebem uma medalha, com o símbolo do Instituto, o pássaro
"Tiê-sangue". O vencedor do ano passado havia realizado 130 doações durante a sua vida.
As exigências sobre a "limpeza" se misturam com as de "segurança". Pois o "medo de pegar AIDS"
na doação de sangue é muito citado. A ligação de pureza/limpeza/segurança, e sua contrapartida,
impureza/sujeira/insegurança pode ser percebida na fala desse informante:
"O problema mais sério de ouvir é a AIDS, onde o pessoal tem a maior preocupação de doar
sangue. Fica temeroso de doar o sangue porque pode se contaminar. (...). As mesas onde as pessoas se
apóiam não tem as mínimas condições de higiene, entende. O enfermeiro e o médico vem com a maior
coisa, mas a mesa onde prepara está toda enferrujada, suja de ferrugem. E ferrugem é uma coisa
danada. " (pai)
O resultado dos exames sorológicos são muito valorizados:
"Meu primo foi doar sangue na Marinha, (...) mas deu no sangue dele sífilis. Não sabem se
trocaram o sangue dele, o que fizeram, sei que ficou maluco o cara, foi fazer outro exame e não deu
nada, entende. "(pai)
"Me sinto privilegiada porque até agora não tem nenhum exame que me sinalize que eu não
deva doar sangue, que o meu sangue faz mal. "(médica 1)
"Eu já fiz o HIV na faculdade, como experiência, mas sei lá, será que vai dar alguma coisa?"
(médica4)
O surgimento da AIDS teve repercussões drásticas na doação de sangue. A observação do
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informante de que "ninguém quer doar por causa da AIDS" coincide com o relatado pela equipe técnica do
Instituto de Hematologia. Além disso, os testes para detecção do vírus não são totalmente capazes de excluir
todos os portadores. Isto torna a triagem clínica um local importante de exclusão de "suspeitos". Há relatos de
pessoas que vão doar sangue, "só para fazer o teste, "disfarçados" em doadores altruístas
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A anamnese é realizada em um curto espaço de tempo, e tem que identificar trinta e seis itens (ver
folha anexa). Seus aspectos mais complexos são os relacionados com as diferenças entre os modelos populares
e os médico-científicos sobre saúde/doença e sexualidade. Sobre as categorias homossexualidade ou
heterossexualidade, por exemplo, muitas vezes elas estão popularmente mais relacionadas à passividade ou
atividade do que ao objeto sexual escolhido. (PARKER,198:162).
Portanto um candidato responde as perguntas sobre seus hábitos, inclusive os sexuais, baseados no
que estes “representam” para ele e não de acordo com a classificação biomédico.
3.1.3. A doação de sangue como uma produção social
A comparação entre os sistemas de doação de sangue de vários países apresentam semelhanças e
diferenças. As semelhanças estão nas misturas de generosidade e auto-interesse, espontaneidade e compulsão.
As diferenças são devidas a aspectos particulares que o objeto a ser doado -o sangue- e o sistema de saúde como
um todo ocupa em cada realidade econômica e cultural.
Em relação a isto, Titmuss ressaltou certas
características dentro do contexto inglês.(TITMUSS,l971:74). Naquela
sociedade, o sistema de doação de sangue é baseado no doador altruísta, portanto o doador e o receptor não se
conhecem. A doação não é uma exigência do sistema de assistência à saúde, mas um ato espontâneo do cidadão.
Outras características são semelhantes: 1 - A doação ocorre em ambiente impessoal e é uma experiência dolorosa; 2 - Apenas determinados grupos de pessoas podem doar. A seleção é realizada através de critérios racionais por
pessoas externas à relação doador-receptor; 3 - Não existem punições previsíveis para a não doação; 4 - Para o doador não há certeza de recompensa; 5 - O presente será um benefício ou não dependendo da veracidade das informações prestadas; 6- O objeto doado é perecível e sua utilização depende de pessoas externas à relação;
Portanto, para "pensarmos" a produção do sangue no Brasil, temos que considerar de que forma as
relações entre as pessoas ocorrem entre si e entre elas e a sociedade como um todo.
A doação de "reposição" é a que mantém o sistema hemoterápico público funcionando. O aspecto
aparentemente coercitivo desde tipo de doação é um tema polêmico na Hemoterapia, Tanto nas instituições de
saúde em si como nos setores de planejamento de saúde. Uma das informantes expressou assim o seu
sentimento em relação ao assunto:
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"Quando a gente fala que o hospital tem pouco sangue ela já fica assim mais ou menos, tem que pedir sangue para pelo menos ter um estoque, se aquele não precisar uma outra talvez precise. Então você está fazendo uma chantagem". (médica4)
Mais do que julgar se este é ou não o "modelo ideal" da doação de sangue, procurei entender
melhor porque ela assume esta característica na realidade brasileira. Como um fato social ela é produzida
pela rede de relações que unem os indivíduos da nossa sociedade.
"Só quando um parente precisa é que vai lá doar” (médica4) ''Acho importante a gente participar dessas coisas, super importante, é uma forma de
participação enquanto cidadão, enquanto exercício de cidadania." (médica2)
O doador de "reposição" é uma "pessoa". Ele comparece e se submete a doação de sangue para
cumprir uma obrigação ou um favor moralmente estabelecido. Ele faz parte de um grupo onde o familiar da
criança também atua - família, escola, igreja, trabalho, bairro. Ao entregar o comprovante da doação, ele
conclui o atendimento do pedido e se identifica como tal. O papel de "adulto-saudável" complementa o da
"criança-doente''. O comportamento é baseado em um código de valores onde a bondade e a caridade
ocupam papéis de destaque. A doação de sangue representa a perenização física e moral do grupo.
Já o doador "espontâneo" é o "indivíduo-fora-do-mundo". Ele deixa de lado seus interesses
egoístas, não age como complementar ao mundo social, renuncia a ele.
O modelo básico na sociedade ocidental de "renunciador" é Jesus Cristo. Nos ensinamentos
cristãos, a alma individual recebe valor eterno de sua relação filial com Deus e nessa relação se funda
igualmente a fraternidade humana, num plano que transcende o mundo dos homens e das instituições
sociais. (DUMONT,1989:43).
O anonimato corrobora o sentimento de igualdade, não doando para "alguém" em particular ele
o está fazendo para "todos", para a nação, ele o faz livremente, sem pressões externas, movido pela escolha
e consciência individual. A representação do que "é público" permeia o conjunto das práticas estudadas. O
"público" na nossa sociedade é o espaço da vertente individualizante, enquanto de "todos", não é de
nenhuma pessoa, portanto, dominado pela impessoalidade da regra, indiferente às necessidades individuais.
(DA MATIA, 1983:183)
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"A circulação das riquezas mantém a vida do corpo político, do mesmo modo que a circulação do sangue mantém a vida do corpo animal" A.R.JACQUES TURGOT(1727-1781)
3.2. A REPARTIÇÃO
Segundo Godelier, as operações de repartição
"são aquelas que determinam dentro de uma sociedade as formas de apropriação e
uso das condições da produção e de seu resultado - o produto social" (GODELIER,s.d.:334)
As regras que estabelecem os mecanismos de repartição do sangue estão estabelecidas pela
legislação estadual. (RIO DE JANEIRO, res.n0587). Ela determina as condições de funcionamento e as
atribuições dos vários órgãos executores da atividade hemoterápica da Rede Estadual Pública de
Hemoterapia: posto de suprimento, unidade transfusional, posto de coleta, serviço de Hemoterapia ou
Hemocentro.
A apropriação do "sangue doado" é coletiva, este é fracionado no Instituto de Hematologia em
vários produtos, os quais são distribuídos aos trinta e três hospitais da rede de acordo com as necessidades
de cada um. Os produtos são: concentrado de hemácias, plasma congelado, crio precipitado e concentrado
de plaquetas. Desta maneira um doador servirá a vários pacientes.
3.2.1. O "Banco de Sangue" do Instituto Fernandes Figueira
O espaço observado no presente estudo é a Unidade Transfusional do Instituto Fernandes
Figueira. Esta se localiza no 2° andar do hospital, dentro do Departamento de Patologia Clínica. Este é um
órgão licenciado junto a Secretaria de Estado de Saúde, submetido às normas e regras ditadas por ela.
A Unidade Transfusional é conhecida como Banco de Sangue. Como já citado, esta
denominação foi cunhada em Chicago na década de 30. Ao observarmos detalhadamente a rotina deste
serviço, podemos apreender o que este tem de comum com um banco destinado a operações financeiras.
Este "banco" também guarda uma "mercadoria" valiosa e a faz "render". É uma "mercadoria" escassa,
perecível e insubstituível.
O espaço é dividido em três ambientes, o primeiro para recepção e coleta, o seguinte para
armazenamento e conservação e o terceiro para realização de exames e fracionamentos do sangue. O
ambiente é mantido refrigerado durante as 24 horas.
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No primeiro há uma mesa e duas cadeiras ao lado de uma "cadeira de coleta". As coletas de
sangue só ocorrem neste ambiente por motivos excepcionais.
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Este é separado do segundo ambiente por uma divisória, na qual há uma porta. No segundo
ambiente ficam duas geladeiras, um congelador e vários outros equipamentos - microscópio, girador
elíptico, extrator de plasma- sobre um balcão de fórmica junto à parede ao fundo.
O terceiro ambiente fica à direita. É uma sala onde uma bancada cobre dois terços das paredes.
Sobre elas ficam as centrífugas, os banhos-maria, a balança, os livros de registro e os vidros de despejo.
Completando a bancada há uma pia e uma torneira.
3.2.2. As atividades de repartição
A apropriação das bolsas de sangue mantém em um primeiro momento seu caráter coletivo, elas
são para "os pacientes do hospital". As condições de uso são determinadas pela equipe técnica do serviço,
seguindo as normas estabelecidas pela Secretaria de Estado de Saúde e pelo Ministério da Saúde. (BRASIL,
PT.No 721)
Os produtos são guardados em condições que garantam sua qualidade até serem
"consumidos". As hemácias na geladeira, o plasma no congelador e as plaquetas no girador elíptico, em
temperatura de ar condicionado (220C).
As hemácias, ao serem separadas do plasma, se transformam em "concentrados de hemácias", ou
"papa de hemácias". Cada bolsa é fracionada para o maior número possível de pacientes, dando vários
"filhotes". Os do grupo sanguíneo "O" oferecem maior "rentabilidade\ pois todos os outros grupos são
passíveis de recebê-lo. Os Rh negativos são os mais "raros", apenas 15% da população, e pacientes desde
grupo só podem receber sangue de outro igual a ele.
Todos os produtos são identificados por um número que lhes foi atribuído no ato da coleta. O
nome do doador não aparece neste sistema de classificação. A ausência de outros dados de identificação
expressa em si uma forma particular da nossa sociedade tratar a "mistura" de "sangue".
Os nomes dos "consumidores" são anotados em um livro, assim como o número da bolsa
transfundida, o nome do setor e do médico requisitante. Formalmente, quem deve "pagar" pela bolsa é o setor
do hospital onde o paciente está internado. A "moeda" é o comprovante de doação. Todo final de mês há
uma contabilização de "entradas" e "saídas", "créditos" e "dívidas".
A entrada de um nome no "livro de transfusão" é um sinal de perigo. Ele está recebendo
"sangue", logo está grave. O desaparecimento do seu nome pode significar melhora ou morte.
A quantidade de bolsas disponíveis também é um dado importante. Há um "estoque mínimo"
estabelecido como o número de bolsas suficientes para atender o consumo cotidiano e uma quantidade para
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as situações de emergência. Estar "abaixo" deste número cria uma insegurança no Banco. Ele pode não ter
"liquidez" para suprir toda a demanda.
Este fenômeno pode ocorrer por várias razões. Nas épocas de feriados prolongados - Natal,
Carnaval, Semana Santa - porque o número total de doadores costuma diminuir drasticamente. Ou durante
os períodos de greve na rede pública, quando os serviços de rotina estão parados e o envio de doadores de
‘‘reposição” também pára.
O valor do “Sangue” se manifesta também quando ele não é utilizado, mas fica na “ reserva” .
Muitos procedimentos cirúrgicos apresentam “risco” de provocar grandes perdas de sangue. “Para estes, os
médicos solicitam uma “reserva”: a separação e preparo de unidades de componentes sanguíneos que
permanecem na geladeira do Banco como uma “garantia” de ”segurança”, um “Saldo” . O paciente tem sobre
ela um “direito temporário”.
Portanto, mesmo antes de ser consumido o Sangue explicita o seu valor como elemento de cura.
Nos casos em que ele não for transfundido, poderá ser utilizado para outro paciente, até expirar o seu prazo
de validade.
3.2.3. A preparação para o consumo
O preparo de uma transfusão se realiza a partir de uma pequena quantidade de sangue do
paciente - uma amostra - e do “pedido”• Este é um formulário impresso onde o médico que assiste ao
paciente o identifica, expõe os motivos por que está indicando a transfusão, o tipo de componente que este
necessita, o volume adequado e assina seu nome e número de registro no Conselho Regional de Medicina.
Através da amostra, o funcionário do Banco irá classificá-lo - A, B,O ou A,B - e Rh positivo ou
negativo. A partir destes dados será escolhido o componente adequado. No caso das hemácias, estas serão
“cruzadas” antes, através da mistura do soro do paciente com uma amostra da unidade de concentrado de
hemácias escolhida. Faz-se in vitro a “mistura” de sangues previamente, para garantir que nenhuma “reação”
ocorrerá depois.
Após a “prova cruzada” o produto é etiquetado com o nome completo do paciente, nome do setor,
número do leito e grupo sanguíneo. A partir deste momento ele é “apropriado” pelo paciente, passa a ser
dele, e assim será identificado tanto pela equipe do Banco quanto pela da enfermaria. O “sangue” que
biologicamente é do doador simbolicamente é do paciente, antes mesmo da transfusão.
Este espaço também é detalhadamente normatizado, por “normas técnicas” que foram instituídas
oficialmente, através da Portaria 721 do Ministério da Saúde, padronizando os serviços de todo o território
31
nacional.
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"What are we to make of the red symbolism which, in its archetypal form in initiation rites, is represented by the intersection of two "rivers of blood"? This duality, this ambivalence, this simultaneous possession of two contrary values or qualities, is quite_ characteristic of redness in the Ndembu view. As they say, "redness acts both for good and ill”.
Victor Turner, The forest of symbols
3.3. O CONSUMO
Realizar uma transfusão de sangue é a forma de "consumir" sangue humano aceita pela nossa
sociedade. Ela está relacionada com "transferir" o sangue de uma pessoa para outra. Os significados do
"sangue" relacionados com esta prática também são ambíguos. Eles estão ligados à força, salvação, vida,
assim como à contaminação, perigo e morte.
Este estudo foi realizado no 4º andar do Instituto Fernandes Figueira, onde fica o setor
pediátrico do hospital. Há duas enfermarias de Pediatria, uma de Cirurgia Pediátrica, uma de Neurocirurgia
Pediátrica e a Unidade de Pacientes Graves. Como já foi citado, no início, os informantes foram seis médicos
- dois cirurgiões pediátricos e quatro pediatras - e seis familiares de pacientes internados- cinco mulheres e
um homem . A inclusão deste "pai" se deu de forma imprevista. Eu já tinha combinado com a esposa dele
realizar a "entrevista", mas no momento ela se disse muito cansada. Ele estava ao seu lado e se ofereceu para
substituí-la. Diante de alguém tão interessado em "informar" ele foi incluído no trabalho.
As enfermarias da Pediatria têm 12 leitos. Estes são arrumados em grupos de três, na sua
maioria berços, delimitados por divisórias. Ao lado de cada berço há uma cadeira para um acompanhante.
As divisórias têm a parte superior de vidro, permitindo a visão do conjunto da enfermaria, e por outro lado,
permitindo que as enfermeiras no "posto de enfermagem" observem todos os pacientes.
O posto de enfermagem é organizado por uma bancada em forma de quadrado, onde as
medicações e os formulários são mantidos.
A "rotina" da enfermaria constitui-se em uma "visita" médica pela manhã - realizada pelo médico
chefe da enfermaria e os médicos-residentes. Durante este período o paciente é examinado fisicamente, os
resultados dos seus exames conferidos, o relatório da enfermagem e do médico plantonista averiguados.
Geralmente o acompanhante da criança - sua mãe na grande maioria das vezes também é escutada.
Após esta coleta de dados o estado de saúde da criança é avaliado. De acordo com as
conclusões medidas são tomadas, ou seja, é traçada uma "conduta". Prescrevem-se medicações, indicam-se
exames ou é recomendada a alta hospitalar do paciente.
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A indicação de uma transfusão de componentes do sangue também ocorre durante a "visita” a não
ser em situações de urgência, quando quem toma a decisão é o médico plantonista. Segundo os informantes
médicos os acompanhantes são informados de todos esses procedimentos.
A transfusão é instalada pela enfermeira. Ela punciona a veia da criança com uma agulha, a qual
está conectada à bolsa de "sangue" por um equipamento plástico, o equipo.
3.3.1. As representações dos informantes durante o consumo.
O "produto" para ser consumido tem que preencher certos requisitos de "qualidade", ele tem que
ser bom e seguro. Ele é visto como sede e sinal de uma qualidade vital positiva. Esta tem várias articulações
simbólicas e é reforçada pelo contato com o aparelho médico e o núcleo do "exame de sangue" e da
“anemia". (DUARTE, 1986, 147).
"Só que aí tem uma Junção no sangue que fica mais fraca, né. Os glóbulos
vermelhos, os glóbulos brancos. Acho que ficam mais fracos os anticorpos que tem no sangue.” (mãe)
A transfusão do sangue como um elemento de "fortalecimento" do paciente se articula com as
idéias do senso comum de que se ele está "doente", está "fraco". Do mesmo modo que a indicação de
vitaminas e ferro é para "fortalecer" o sangue, e, portanto, o corpo. O sangue do doente está "fraco" ou
"ralo".
O tema alimentação também se articula com força/fraqueza. Através da comida o sangue se
"fortalece" assim como através de uma "papinha" (de hemácias), ou após "tomar" uma transfusão.
"Sanguinho para ficar mais forte, para melhorar, para ir para casa rápido, ficar
mais cheinho. (...) é a sensação que vai dar um bem-estar imediato."(médica4)
O sangue "bom" é o de uma pessoa saudável, avaliado através de um "exame". O resultado do
exame também será “ bom" ou "ruim", dependendo da sua variação dentro de uma "normalidade". O sangue
"ruim" é o que está dominado pela doença, "contaminado”. O "ruim" pode ser do ponto de vista da
"normalidade" física ou moral. O paradigma do sangue "ruim" é o contaminado pela AIDS.
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A AIDS foi a maior preocupação sobre a qualidade do sangue entre os informantes. Do ponto de
vista dos médicos esta apareceu como causa principal de "risco" transfusional e de preocupação de adquirir
a doença através do paciente. Aqueles formados há mais tempo identificaram uma mudança de atitude em
relação à indicação de transfusão com o surgimento da doença. Esta passou a ser cercada de maior cautela.
"No meu tempo de R3 tinha aquela coisa de um ficar tirando sangue do outro,
achando que o sangue ia ser meio milagroso. Acho que tinha essa coisa sim, um sanguinho vai ser
ótimo. "(médica2)
“Logo no início eu não esquentava muito, até fazia sutura sem
luva"(médico3)
"Eu acho que isto trouxe um cuidado bem maior do ponto de vista da indicação, mas
eu acho que ainda está muito aquém ou, pelo menos, um pouco aquém do que deveria ser. "(médico1)
Os familiares também temiam o risco da criança contrair a doença através da transfusão, para
esse grupo o "teste de AIDS" representava a garantia de "não ter perigo".
O sangue estar "ruim” é também relacionado a outras doenças, principalmente aquelas que
apresentam manifestações "de pele". Estas são vistas como manifestações de "botar para fora" algo que é
"interno", que "está no sangue".
A sífilis e a AIDS, doenças de transmissão venérea, e a segunda também "doença de
homossexual e viciado em droga" estão ligadas a pessoas de comportamento "ruim". A principal
reclamação apresentada foi "não se poder escolher um conhecido para doar o sangue direto para o filho", o
doador de hábitos morais "conhecidos" sendo o mais "seguro".
O sangue é visto como um líquido que tem uma determinada quantidade ideal circulando pelo
corpo. A alteração deste volume, deste equilíbrio, pode acarretar vários tipos de distúrbio.
A "perda de sangue deve ser reposta preferencialmente pela transfusão de sangue" é um
conceito bastante difundido. As hemorragias causam muitos sentimentos negativos. Segundo Mary
Douglas, a perda dos líquidos corporais é vivida como perigo por representar a ultrapassagem dos limites
do corpo. A saída do que é "interno" para o "exterior" é vivida como um deslocamento, uma agressão à
ordem. (DOUGlAS, l976)
O fluxo do sangue é visto como distribuído por todo o corpo, através de movimentos
internos de "subir e descer", o coração sendo o coordenador destes movimentos. A interrupção destes
movimentos podendo causar "bloqueios" e o seu aumento causando aumento do fluxo menstrual.
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O sangue também expressa dimensões morais ligado a temperamento ou gênio "de nascença”,
além de uma descendência física. Expressões como "é porque é do mesmo sangue", "puxou ao...", ou "saiu
ao..." podem certamente referir-se a características físicas como a associações morais com membros da
família.(DUARTE, 1986:204).
Eu acho que por duas coisas, uma pela coisa da transmissão de doença e outra que é
que tem uma coisa de afetividade no meio, vou dar um tanto de mim para o meu filho".(médica2)
"A gente tem aquela afinidade com as pessoas, a gente pode até se enganar, mas agente conhece o risco de cada um. "(pai)
A possibilidade de doar sangue para o próprio filho foi um tema bastante presente, não só pela
relação com o "perigo" do sangue do "desconhecido" mas também pelo forte simbolismo da família e da
consanguinidade.
Em uma sociedade hierarquizada como a brasileira, o "conhecido", "a quem se tem afinidade" é
o "igual a mim", portanto a "mistura" ocorreria entre sangues de "iguais". O "perigo" está na "mistura" de
"sangues" "diferentes", porque este será "melhor" ou "pior" do que o "meu".
"Naquele momento teve essa coisa de doar sangue para o meu filho que foi uma coisa
muito forte, (...) eu doei sangue no momento em que ele estava operando e aquilo foi uma coisa boa.
(...) (médica2).
A literatura médica não recomenda a transfusão de parentes diretos - pai, mãe, - em crianças
recém-nascidas por oferecem riscos de causar reações tipo antígeno-anticorpo ou enxerto-versus-hospedeiro.
Em relação às vantagens da doação "dirigida" os estudos se mostram inconclusivos. Centros
médicos de Milwaukee, São Francisco e Washington, apresentaram maior número de exames sorológicos
positivos entre os doadores "conhecidos". Por outro lado, os estudos de centros de Atlanta e Boston
apresentaram resultados opostos. (STRAUSS,l989:10) Um estudo prospectivo comparando pacientes
transfundidos por "conhecidos" e outro por "desconhecidos" ainda não foi realizado.
Uma das razões alegadas para uma maior incidência de sorologia positiva entre doadores
"conhecidos" é a "coerção familiar" ser tão grande que leva os candidatos a mentirem sobre seus hábitos.
A legitimidade do procedimento transfusional é comum aos médicos e aos familiares. Ambos
acreditam que a transfusão de sangue é uma alternativa de tratamento favorável ao paciente.
"Tem uma coisa do comportamento das mães, pelo tipo de população que a gente
atende, muitas delas aceitam o que a gente faz sem questionar. Eu particularmente tenho a
preocupação de explicar tudo.” (médico3)
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"Se Deus deu essa inteligência para o Homem deve ser usada sim" (mãe3)
"Se for preciso é bom, para salvar uma vida. "(mãe2)
As entrevistas dos médicos revelam que a transfusão de sangue é "bem aceita" pela família. Os
familiares são comunicados que o procedimento será realizado e às vezes perguntam se o sangue foi
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"testado". Em outros países, como nos E.U.A., o consentimento tem que ser escrito.
Os familiares revelam um grande temor em relação à transfusão, alívio quando o procedimento
não ocorreu - "por causa da AIDS" - e uma grande preocupação posterior com as conseqüências a AIDS outra
vez.
"O que preocupa são essas doenças pela transfusão, que eu fico meio preocupado, também fiquei
preocupado com o garoto, que já tem três transfusões de sangue. Graças a Deus, já fizemos teste e não deu
nada, tudo bom, entende. "(pai)
Entretanto a legitimidade da terapêutica em si não foi questionada, pois ela é consequência da
legitimidade de quem a prescreveu "se o médico disse que precisa...”.
Em uma sociedade hierarquizada, como a nossa, um grupo de "superiores" é aquele que "sabe o
que é bom'' para os "inferiores". Tudo o que vem de cima é sagrado e puro, sua legitimidade indiscutível e
deve ser "levada a sério". (DA MATTA, 1983:181).
Isto é reforçado pelo reconhecimento das classes populares da sua própria ignorância a respeito do
saber científico. Este é patrimônio legítimo dos médicos e lhe foi transmitido "pela faculdade". Os termos
médicos são amplamente difundidos e reinterpretados, mas a sua utilização oficial é da competência do
especialista. (BOLTANSKI,1989: 29).
Por outro lado, todos os médicos entrevistados revelaram não ter "apreendido nada sobre sangue"
na faculdade. Os conhecimentos foram adquiridos empíricamente e de forma não sistemática.
"Parece que eu estou administrando alguma coisa que eu acho boa para
o doente, como eu administro um antibiótico",(..) apesar de tentar evitar ao máximo".(médico1)
A resistência ao procedimento só costuma ser explicitada por membros do grupo religioso
"Testemunha de Jeová". Esses se baseiam em textos bíblicos para justificar o "não consumo de sangue".
"Todo homem da casa de Israel, ou algum dos estrangeiros que moram com ele, que
comer do sangue de um animal qualquer, terá minha face voltada contra ele e eu o eliminarei do meio
do seu povo, porque a vida da carne está no sangue" Levíticius, 17 versiculo 12 (BIBLIA 220)
As experiências dos médicos com esta atitude é conflitada:
"O caso até de um menino que é falcêmico, e que os pais são Testemunhas de Jeová, e
a criança é transfundida durante a noite. Embora a gente saiba que isso é um procedimento não muito
ético, nem muito correto, a gente sabe que está garantido pelo risco à vida, por que este hematócrito
baixo pode complicar a criança.”(médico2)
''Acho um absurdo a pessoa deixar a outra morrer, eu não admito uma
convicção religiosa nesse nível".(médico1)
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Este conflito envolve aspectos religiosos, jurídicos e éticos, revelando concepções diferentes de
"vida e morte" e de "direitos individuais" . Essa discussão tem perpassado com frequência a prática médica.
O Conselho Regional de Medicina estabelece no seu Código de Ética Médica que:
"É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a
execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida".(Cap. V-
art.56)
Os membros da seita "Testemunhas de Jeová" acreditam que "por mais preciosa que seja a Vida,
nosso Dador da Vida jamais disse que suas normas poderiam ser desconsideradas em caso de emergência"
(WTBS, 1990:4). O surgimento da AIDS serviu de confirmação do acerto da restrição.
A publicação Como pode o sangue salvar a sua vida? da Watch Tower Bible and Tract Society of
Pennsylvania divulga as justificativas da restrição e esclarece que outras terapias alternativas podem ser
utilizadas, tais como: uso de reaproveitamento intraoperatório, equipamento de diálise, Haemacel (e outros
expansores plasmáticos) e uso de componentes (a albumina, as imunoglobulinas e os concentrados de fatores
da coagulação). (WTBS, 1990: 27)
De acordo com a doutrina "mesmo nos melhores cuidados médicos e nos melhores hospitais, chega
a hora em que as pessoas morrem. (...) Morrer é uma realidade da vida" (WBTS, 1990:23). A perda da vida
presente não é tão importante diante da perspectiva de uma "vida duradoura”. Segundo êles, Jeová Deus deu
garantia de que, por meio de Cristo haverá a restauração da terra em paraíso.
"Daí, a humanidade crente não mais será afligida pela doença, pelo envelhecimento ou
até mesmo pela morte; usufruirá bênçãos que excederão em muito a ajuda temporária que as equipes
médicas podem oferecer-nos agora”. (WTBS, 1990:26)
As disputas legais envolvem valores como o direito individual do paciente em decidir sobre o
tratamento que considere adequado em qualquer circunstância, e enquanto "pais" decidir "o que é melhor para
os filhos".
O antropólogo americano Richard Singelenberg analisa a restrição ao uso da transfusão de sangue
como a criação de uma fronteira entre os "crentes e não crentes", criando uma "pureza" intra-grupo e
demarcando o sentimento de não participação nas instituições seculares. (SINGELENBERG, 1990).
As Testemunhas de Jeová não aceitam nenhuma "mistura" de sangue, nem entre os membros da
própria seita. Esta forma particular de lidar com esse valor os torna "diferentes". Portanto, na perspectiva
holística da sociedade brasileira, eles só podem estar querendo ser "melhores" do que os "outros", e são vistos
como "piores", "malucos".
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3.3.2. O "pedido de doador de sangue"
O hospital "pede" para os familiares das crianças internadas encaminharem doadores de sangue
para o Instituto Estadual de Hematologia. Isto é realizado através de um impresso onde consta o endereço, o
horário de funcionamento, e algumas das principais condições que impedem a doação de sangue. Alguns dias
depois, os comprovantes da doação são "cobrados", como constatação oficial de que a doação se realizou.
O pedido de doador é uma das instâncias onde a relação instituição/família se manisfesta
claramente complementar. A instituição ''precisa" da família para poder "pagar" a sua quota de doadores, e
esta "precisa" da instituição para o tratamento de saúde. Portanto, o que é estabelecido é uma contrato de trocas
de serviços.
As pessoas que eu arrumei para doar sangue já tinham doado antes, foi rapidinho". (mãe2)
"Eu doei sangue, meu irmão doou, meus colegas doaram prá vir prá cá com o garoto"(pai)
"Tem gente aqui que você sabe que não dá prá pedir” (médica4)
"É assim, a princípio aparenta que este problema não é da nossa competência (...)que é de órgão
que está acima da gente e aí em função de um processo de conscientização (...)você começa a
enxergar que você também é participante, direta ou indiretamente, desse processo de doação de
sangue. "(médica1).
"Aqui no hospital não acontece muito a resistência quando a gente pede doador. Poderia haver uma
resistência, uma má vontade. "(médico3)
A maioria dos pacientes internados nas enfermarias não traz os comprovantes. Em muitas das vezes
porque o "pedido" não foi entregue, em outras porque o "doador" não entregou o comprovante, outras por
"esquecimento", por "falta de tempo" ou "por não conhecer nenhum doador"
O "pedido" é entregue geralmente à acompanhante da criança, a "mãe”. A "mãe" concentra um feixe
de significados - lar, privado, afeto, cuidado das crianças. Ao participar da internação do "filho" ela transporta
para o hospital -"a rua" - um pouco do "lar". Ela está aí como uma representante, a mais legítima, do grupo
social de origem da criança. É com ela que a intermediação do privado (doméstico, familiar) se dará com o
público (a instituição hospitalar e os seus representantes).
Uma distinção importante é entre a mãe biológica e o "papel de mãe".
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"Eu fico dividida, moro perto de Saquarema, e deixo as outras duas e o meu marido. Eu sei que ela é
bem tratada aqui, sempre que chego ela está sequinha, no colo de alguma enfermeira, mas eu tenho que
fazer meu papel de mãe"(mãe 5)
“Mas aquela mãe que mora longe, não vem todo dia, só vem uma vez por semana ou em dia de visita, não
tem aquele clima assim de pedir. "(médica4)
Assim como entre “o que é dito” e “o que é feito",
"Eu acho que a resposta de momento, quando você está com um filho doente precisando ser tratado e
qualquer coisa é pedida, sempre diz que se vai conseguir. "(médica2).
Na nossa sociedade onde a família é a instituição lapidar esta não restringe sua ação de
representação e de determinação de comportamentos sociais ao privado ou ao doméstico, ela se expande e
atinge o plano político-cívico-social.(ARAGÃO, 1983:”5). A "mãe" para conseguir os doadores atuará no seu
círculo social, expandindo a rede de “colaboradores” do hospital.
A determinação de quem pode ou não "conseguir” doadores não está dada apriorísticamente, nem é
uma decorrência direta do nível sócio-econômico ou intelectual. Haja visto o perfil econômico dos doadores
de sangue do Instituto Estadual de Hematologia (81% ganham menos do que três salários mínimos).
A entrega do “pedido "não pode se dar apenas como o cumprimento de uma “norma” : pedir dois
doadores para cada criança. Primeiro, porque esta norma não tem possibilidade de sanção se não for cumprida,
ou seja, a criança será tratada independentemente da vinda ou não dos comprovantes dos doadores. Segundo,
porque esta supõe que toda criança tem uma família, no sentido de uma unidade social articulada socialmente,
o que não é verdadeiro.
Portanto, o “pedido” deve refletir uma proposta de colaboração entre a família e o hospital. Esta se
dará através de pessoas, as quais oferecem inserções sociais diferentes. Estas são parte da realidade específica
de cada uma delas, e, portanto, não pode ser verdadeiramente avaliada por alguém "de fora", ou "antes” da
proposta ser realizada.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A possibilidade do homem transformar um tecido “naturalmente” concebido em um instrumento de
cura possibilitou a ampliação e desenvolvimento da Medicina em larga escala. O uso instrumental do “Sangue”
já está tão incorporado na prática médica, que ele só se destaca quando “ falta”ou, quando traindo a expectativa
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de tratamento, “contamina” alguém. Por outro lado, nenhum outro produto terapêutico trás em si a mesma
vocação simbólica do sangue, uma parte "viva" de um ser humano que é transferida para outro.
Entre o momento que o “Sangue" é coletado até o momento em que ele é "transfundido" ele realiza
uma circulação que é socialmente determinada. No caso da nossa sociedade, o que pode ser apreendido pelos
casos estudados, é a existência de dois caminhos de circulação.
Estes não são formados a partir da contraposição “médico” versus "leigo", como indicaria o senso
comum. Estes dois grupos apresentam representações semelhantes em relação aos momentos da
42
produção, repartição e consumo do sangue. Este é um elemento de "salvar vidas”, e as práticas envolvidas
na sua circulação são amplamente legitimadas.
Os contrates ocorrem ao compararmos a maneira como as etapas desta circulação são
planejadas e a maneira pela qual são realizadas. Em um primeiro momento a segunda aparece como uma
"falha" da primeira, um erro casual. Ao observarmos melhor o cotidiano onde elas acontecem, notamos
que isto não é assim. Elas são na verdade duas concepções diferentes de pensar e organizar as práticas
sociais.
Uma delas segue o modelo "individualista". Este é regido por leis gerais, universais e
impessoais, que se destinam a um foco abstrato, o individuo. É este o circuito "escrito" no papel. Onde o
"doador altruísta" é o principal ator. Nele espera-se que a motivação para a doação seja uma consciência
social, realizada por indivíduos saudáveis e responsáveis, que permanecerão anônimos e sua recompensa será
apenas a satisfação pessoal.
Neste modelo, o pessoal técnico é "bem formado”, e capaz de realizar técnicas e controles
determinados por padrões internacionais. Portanto, a "qualidade" do sangue brasileiro poderia ser tão boa
quanto à de qualquer outro país com igual capacidade técnica.
No circuito "individualista" a apropriação do sangue é coerentemente coletiva, é patrimônio da
nação. Cada cidadão tem o direito de receber transfusão caso necessite, não dependendo das suas relações
sociais para "repor" o produto. As unidades coletadas em um sistema centralizado serão distribuídas
anonimamente para os diversos hospitais.
O outro caminho é o da "hierarquia". O código da relação é a moralidade pessoal, tomando a
vertente da solidariedade como eixo de ação. As relações se estabelecem entre pessoas que merecem
tratamento diferenciado, hierarquizado. É este o quadro do doador de "reposição", o qual doa "para alguém"
do seu círculo de relações, por obrigação moral ou afetiva. Na medida em que o comprovante de doação é
um "passe" para a internação ou cirurgia, ele adquire um "valor" para o paciente e seu grupo social.
Para este circuito a apropriação coletiva é uma incoerência, pois rompe com as distinções entre
os vários grupos sociais. O doador tem a expectativa de que o "seu sangue" será recebido por uma pessoa
determinada. Esta também é a expectativa do familiar da criança a ser transfundida, ele deseja um sangue
"familiar", portanto semelhante ao seu.
A observação das normas técnicas é decorrência de um aprendizado empírico e informal, pois elas
são recebidas em formas de "leis", sem discussão ou aprofundamento.
A experiência do Serviço de Hemoterapia do Instituto Fernandes Figueira em relação à
circulação social do sangue tem características específicas e limitadas à sua realidade. Uma pesquisa
43
empírica não pode construir um quadro completo e acabado da realidade da Hemoterapia no Rio de Janeiro.
Entretanto, ela ajuda a
construir campos "bons para pensar" esta realidade.
O sistema público hemoterápico, onde o Instituto Fernandes Figueira se insere, apresenta uma
combinação destes dois circuitos. A sua sobrevivência depende da doação de "reposição", mas a distribuição
segue o modelo individualista" que orienta a organização de prestação de serviços na área da saúde pública.
Isto frustra a expectativa de uma transfusão "personalizada". É uma pessoa que arregimenta os doadores, mas
um individuo que recebe a transfusão.
A relação do Instituto de Hematologia com os demais hospitais da rede também é permeada por
esta contradição. Há o compromisso de enviar os doadores de um lado e de enviar os hemoderivados do
outro. No entanto, este processo não é acompanhado regularmente, com balanços de "créditos” e "débitos".
Primeiro, porque os próprios recursos do Instituto de Hematologia são limitados, pouco pessoal especializado,
o sistema de informatização ainda sendo implantado e a ausência de uma definição explícita da
responsabilidade de cada hospital da rede. Segundo, porque não há mecanismos dessa "cobrança" ser
realizada formalmente. Sob a ótica de que "somos todos públicos", os compromissos não são cumpridos e
fica tudo por isso mesmo.
A doação de "reposição” é vista como um "mal necessário". Isto inibe que se desenvolva
mecanismos para aperfeiçoar a relação entre "sangue transfundido "e "sangue doado", deixando de ser
realizada como uma "chantagem", mas um "compromisso" entre as partes.
A contrapartida também existe. Em algumas ocasiões o Instituto de Hematologia não pode
atender aos pedidos, seja na quantidade, seja na especificidade - unidades de hemácias Rh negativas,
concentrados de plaquetas. E aí, saímos do espaço "formal" e damos um "jeitinho", ligando para os outros
hospitais e "pedindo", na base do "por favor". O atendimento ou não da solicitação ocorrendo de acordo com a
disposição do plantonista ou do chefe do Serviço.
O sistema público de saúde é traçado para indivíduos, e esta concepção perpassa todo o conjunto
de relações da instituição com o paciente. Ele é submetido inclusive a terapias com as quais não concordam
em caso de risco de vida". Entretanto, ao "pedir" o doador de sangue, a instituição tem que se relacionar com
uma pessoa, sobre a qual fica sem possibilidades de impor uma norma universalizante.
Portanto, as contribuições da circulação social do sangue na nossa sociedade correspondem a
características do sistema social brasileiro, onde é básica a distinção entre indivíduo e pessoa como formas
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de conceber o universo social e de nele agir. As oposições entre o pessoal e o impessoal, o anônimo e o
conhecido, o universal e o biográfico definem os limites entre a universalidade legal e o mundo das relações
concretas.
Esta compreensão trouxe perspectivas diferentes para o desenvolvimento da atividade de
encaminhamento de doadores de sangue para o Instituto Estadual de Hematologia. Primeiro, a
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importância dos doadores de “ reposição” no contexto da circulação social do sangue na cidade do Rio de Janeiro.
Segundo, a necessidade de reafirmar a solicitação de doadores como uma possibilidade de colaboração entre
familiares e profissionais de saúde para a viabilidade do tratamento do paciente pediátrico. Terceiro, a
compreensão de que a possibilidade de arregimentar os doadores é uma variável do grau de inserção social da
família do paciente e não é apenas uma conseqüência do padrão sócio- econômico ou da afetividade da família.
Em relação ao ensino de Hemoterapia, foi importante perceber que o “Sangue” enquanto produto
terapêutico, cientificamente controlado não está presente na formação da grande maioria dos médicos. A
construção dos conceitos e regras que regulam o seu uso é aprendida empíricamente e de forma segmentada.
Cada especialista procura os conhecimentos que mais diretamente interferem no seu cotidiano. Portanto, o
estabelecimento de “rotinas” no hospital em relação à prática transfusional deve passar pela divulgação dos
conhecimentos atuais sobre o metabolismo dos componentes sangüíneos e seu uso adequado.
Outro aspecto a ressaltar é a importância do Banco de Sangue divulgar amplamente o seu
movimento – saldos e dividas - de hemoderivados em relação à rede estadual de saúde. A noção de
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que “o Banco sempre tem sangue” demonstra uma visão parcial da circulação deste “ bem “ , onde a sua
produção fica ignorada. Além disso, o processo de preparação da transfusão fica subestimado em relação à
conservação do estoque.
Do ponto de vista do Serviço de Hemoterapia do Instituto Fernandes Figueira, e no papel
particular de responsável por este setor, este trabalho serviu para combater uma visão “etnocêntrica” na qual
quem entende de sangue somos nós, os especialistas. O estudo da dimensão social do sangue me permitiu
pensá-lo através da ótica de “outros” , portanto, relativizar a minha própria visão sobre ele.
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RESUMO
Este é um estudo sobre a diversidade de significados que a substância "sangue" adquire na
realidade de um hospital materno-infantil no Rio de Janeiro.
A partir da "fala" de médicos e familiares de crianças internadas é traçado o circuito que este
sangue realiza, na transformação de um tecido naturalmente dado em um produto terapêutico socialmente
consumido.
Esta transformação apresenta momentos de produção, repartição e consumo. E cada um desses
momentos produz e é produzido por significados particulares do sangue.
O conjunto de valores expressos não representa apenas sentimentos e concepções individuais.
Este revela a articulação entre o caminho formal e o informal que este sangue percorre, que correspondem a
características básicas do sistema social brasileiro.
Na nossa sociedade a concepção da relação indivíduo/sociedade assume duas vertentes. Uma
individualizante, outra hierarquizante. Esta dualidade também está presente na circulação social do "sangue".
A partir desta compreensão a complexa rede de valores expressos se organiza e adquire um
contorno mais nítido, revelando de que forma particular esta circulação ocorre na realidade estudada.
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SUMMARY
This is a study about the many meanings the substance "blood" gets at a hospital for children and women in
Rio de Janeiro.
From the doctors and children's relatives "speech" is traced the circuit this "blood" makes, changing from a
natural tissue into a therapeutic product socially consumed.
This change has different moments: production, distribution and consuming. At each of this moments its
makes and is made of particular meanings of "blood".
The set of values expressed do not mean only individual feelings and concepts. This shows the jointing
between the formal and the informal ways this "blood" make. These correspond to Brazilian social structure
important aspects.
ln our society the concept about individual/society has two forms.. One is individualistic, the other is
hierarchic. This duality is also present in the "blood" social circulation.
From this understanding is possible to organize the complex net of the expressed values and give them a
well defined bound. This shows us how this circulation happens in the studied reality.