As personagens de felizmente há luar caracterização

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Escola Secundária Sá de Miranda Português 12º ano Luís de Sttau Monteiro Felizmente há Luar As Personagens: Caracterização Gomes Freire: homem instruído, letrado ("um estrangeirado"), um militar que sempre lutou em prol da honestidade e da justiça. É também o símbolo da modernidade e do progresso, adepto das novas ideias liberais e, por isso, considerado subversivo e perigoso para o poder instituído. Assim, quando é necessário encontrar uma vítima que simbolize uma situação de revolta que se adivinha, Gomes Freire é a personagem ideal. Ele é o símbolo da luta pela liberdade, da defesa intransigente dos ideais, daí que a sua presença se torne incómoda não só para os "reis do Rossio", mas também para os senhores do regime fascizante dos anos 60. A sua morte, duplamente aviltante para um militar (ele é enforcado e depois queimado, quando a sentença para um militar seria o fuzilamento), servirá de lição a todos aqueles que ousem afrontar o poder político e também, de certa forma, económico, representado pela tença que Beresford recebe (16.000$00 anuais, uma fortuna para a época!) e que se arriscaria a perder se Gomes Freire chegasse ao poder. Matilde de Sousa: companheira de todas as horas de Gomes Freire, é ela que dá voz à injustiça sofrida pelo seu homem. As suas falas, imbuídas de dor e revolta, constituem também uma denúncia da falsidade e da hipocrisia do Estado e da Igreja. Todas as tiradas de Matilde revelam uma clara lucidez e uma verdadeira coragem na análise que faz de toda a teia que envolve a prisão e condenação de Gomes Freire. No entanto, a consciência da inevitabilidade do martírio do seu homem (e daí o carácter épico da personagem de Gomes Freire) arrasta-a para um delírio final em que, envergando a saia verde que o general lhe oferecera em Paris (símbolo de esperança num futuro diferente?), Matilde dialoga com Gomes Freire vivendo momentos de alucinação intensa e dramática. Estes momentos finais, pelo carácter surreal que transmitem, são também a denúncia do absurdo a que a intolerância e a violência dos homens conduzem. Sousa Falcão: é o amigo de todas as horas, é o amigo fiel em quem se pode confiar e que está sempre pronto a exprimir a sua solidariedade e amizade. No entanto, ele próprio tem consciência de que, muitas vezes, não actuou de forma consentânea com os seus ideais, faltando-lhe coragem para passar à acção. Vicente, o traidor: elemento do povo, trai os seus iguais, chegando mesmo a provocá-los, apenas lhe interessando a sua ascensão político-social. Apesar da repulsa/antipatia que as atitudes de Vicente possam provocar ao público/leitor, o que é facto é que não se lhe pode negar nem lucidez nem acuidade na análise que faz da sua situação de origem e da força corruptora do poder. Vicente é uma personagem incómoda, talvez porque nos faça olhar para dentro de nós próprios, acordando más consciências adormecidas. Manuel, Rita: símbolos do povo oprimido e esmagado, têm consciência da injustiça em que vivem, sabem que são simples joguetes nas mãos dos poderosos, mas sentem-se impotentes para alterar a situação. Vêem em Gomes Freire uma espécie de Messias e daí, talvez, a sua agressividade em relação a Matilde, após a prisão do general, quando ela lhes pede que se revoltem e que a ajudem a libertar o seu homem. A prisão de Gomes Freire é uma espécie de traição à esperança que o povo nele depositava. Podem também simbolizar a desesperança, a desilusão, a frustração de toda uma legião de miseráveis face à quase impossibilidade de mudança da situação opressiva em que vivem. Beresford: personagem cínica e controversa, aparece como alguém que, desassombradamente, assume o processo de Gomes Freire, não como um imperativo nacional ou militar, mas apenas

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Português 12º ano Luís de Sttau Monteiro – Felizmente há Luar

As Personagens: Caracterização Gomes Freire: homem instruído, letrado ("um estrangeirado"), um militar que sempre lutou em prol da honestidade e da justiça. É também o símbolo da modernidade e do progresso, adepto das novas ideias liberais e, por isso, considerado subversivo e perigoso para o poder instituído. Assim, quando é necessário encontrar uma vítima que simbolize uma situação de revolta que se adivinha, Gomes Freire é a personagem ideal. Ele é o símbolo da luta pela liberdade, da defesa intransigente dos ideais, daí que a sua presença se torne incómoda não só para os "reis do Rossio", mas também para os senhores do regime fascizante dos anos 60. A sua morte, duplamente aviltante para um militar (ele é enforcado e depois queimado, quando a sentença para um militar seria o fuzilamento), servirá de lição a todos aqueles que ousem afrontar o poder político e também, de certa forma, económico, representado pela tença que Beresford recebe (16.000$00 anuais, uma fortuna para a época!) e que se arriscaria a perder se Gomes Freire chegasse ao poder.

Matilde de Sousa: companheira de todas as horas de Gomes Freire, é ela que dá voz à injustiça sofrida pelo seu homem. As suas falas, imbuídas de dor e revolta, constituem também uma denúncia da falsidade e da hipocrisia do Estado e da Igreja. Todas as tiradas de Matilde revelam uma clara lucidez e uma verdadeira coragem na análise que faz de toda a teia que envolve a prisão e condenação de Gomes Freire. No entanto, a consciência da inevitabilidade do martírio do seu homem (e daí o carácter épico da personagem de Gomes Freire) arrasta-a para um delírio final em que, envergando a saia verde que o general lhe oferecera em Paris (símbolo de esperança num futuro diferente?), Matilde dialoga com Gomes Freire vivendo momentos de alucinação intensa e dramática. Estes momentos finais, pelo carácter surreal que

transmitem, são também a denúncia do absurdo a que a intolerância e a violência dos homens conduzem.

Sousa Falcão: é o amigo de todas as horas, é o amigo fiel em quem se pode confiar e que está sempre pronto a exprimir a sua solidariedade e amizade. No entanto, ele próprio tem consciência de que, muitas vezes, não actuou de forma consentânea com os seus ideais, faltando-lhe coragem para passar à acção.

Vicente, o traidor: elemento do povo, trai os seus iguais, chegando mesmo a provocá-los, apenas lhe interessando a sua ascensão político-social. Apesar da repulsa/antipatia que as atitudes de Vicente possam provocar ao público/leitor, o que é facto é que não se lhe pode negar nem lucidez nem acuidade na análise que faz da sua situação de origem e da força corruptora do poder. Vicente é uma personagem incómoda, talvez porque nos faça olhar para dentro de nós próprios, acordando más consciências adormecidas.

Manuel, Rita: símbolos do povo oprimido e esmagado, têm consciência da injustiça em que vivem, sabem que são simples joguetes nas mãos dos poderosos, mas sentem-se impotentes para alterar a situação. Vêem em Gomes Freire uma espécie de Messias e daí, talvez, a sua agressividade em relação a Matilde, após a prisão do general, quando ela lhes pede que se revoltem e que a ajudem a libertar o seu homem. A prisão de Gomes Freire é uma espécie de traição à esperança que o povo nele depositava. Podem também simbolizar a desesperança, a desilusão, a frustração de toda uma legião de miseráveis face à quase impossibilidade de mudança da situação opressiva em que vivem.

Beresford: personagem cínica e controversa, aparece como alguém que, desassombradamente, assume o processo de Gomes Freire, não como um imperativo nacional ou militar, mas apenas

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motivado por interesses individuais: a manutenção do seu posto e da sua tença anual. A sua posição face a toda a trama que envolve Gomes Freire é nitidamente de distanciamento crítico e irónico, acabando por revelar a sua antipatia face ao catolicismo caduco e ao exercício incompetente do poder, que marcam a realidade portuguesa.

D. Miguel: é o protótipo do pequeno tirano, inseguro e prepotente, avesso ao progresso, insensível à injustiça e à miséria. Todo o seu discurso gira em torno de uma lógica oca e demagógica, construindo verdades falsas em que talvez acabe mesmo por acreditar. Os argumentos do "ardor patriótico", da construção de "um Portugal próspero e feliz, com um povo simples, bom e confiante, que viva lavrando e defendendo a terra, com os olhos postos no Senhor", são o eco fiel do discurso político dos anos 60. D. Miguel e o Principal Sousa são talvez as duas personagens mais execráveis de todo o texto pela falsidade e hipocrisia que veiculam.

Principal Sousa: para além da hipocrisia e da falta de valores éticos que esta personagem transmite, o Principal Sousa simboliza também o conluio entre a igreja, enquanto instituição, e o poder e a demissão da primeira em relação à denúncia das verdadeiras injustiças. Nas palavras do Principal Sousa é igualmente possível detectar os fundamentos da política do "orgulhosamente sós" dos anos 60.

Andrade Corvo e Morais Sarmento: são os delatores por excelência, aqueles a quem não repugna trair ou abdicar dos ideais, para servirem obscuros "propósitos patrióticos".

Carácter Apoteótico Carácter excepcional das personagens:

Gomes Freire, pela coragem, determinação e defesa

intransigente dos ideais de liberdade;

Matilde de Melo, pela nobreza moral, pelo conflito que vive

entre os seus "humanos" sentimentos e a progressiva

consciencialização do seu dever de verdadeira patriota.

A simplicidade da acção e o despojamento cénico. O desenlace final: o martírio e a morte de Gomes Freire.

Aspectos simbólicos

A moeda de cinco réis: a moeda que Matilde pede a Rita assume, assim, um valor simbólico, teatralmente simbólico. Assinala o reencontro de personagens em busca da História, por um lado, e, por outro, é o penhor de honra que Matilde, emblematicamente, usará ao peito, como "uma medalha". A fogueira não era destinada à execução de militares. No entanto, Gomes Freire, após ser enforcado, foi queimado. Contudo, aquilo que inicialmente é aviltante acaba por assumir um carácter redentor. Na verdade, o fogo simboliza também a purificação, a morte da "velha ordem" e o ponto de partida para um mundo novo e diferente. O título: a frase "Felizmente há luar" é proferida por duas personagens de "mundos" diferentes: por D. Miguel, símbolo do Poder (Acto II, pág. 131), e por Matilde, símbolo da resistência (no final do Acto II, pág. 140). Assim, e tendo em conta a estrutura dual que organiza o texto, será fácil detectar a importância do luar para cada uma das personagens. Para D. Miguel, o luar permitirá que o clarão da fogueira atemorize todos aqueles que queiram lutar pela liberdade; para Matilde, o luar sublinhará a intensidade do fogo que simboliza a coragem e a força de um homem, que morreu para defender a liberdade.

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Paralelismo passado/condições históricas dos anos 60 Tempo da História (século XIX - 1817)

Agitação social que levou à revolta liberal de 1820 -

conspirações internas; revolta contra a presença da Corte

no Brasil e influência do exército britânico;

Regime absolutista e tirânico

Classes sociais fortemente hierarquizadas;

Classes dominantes com medo de perder privilégios;

Povo oprimido e resignado;

A "miséria, o medo e a ignorância";

Obscurantismo, mas "felizmente há luar";

Luta contra a opressão do regime absolutista;

Manuel, "o mais consciente dos populares", denuncia a

opressão e a miséria;

Perseguições dos agentes de Beresford;

As denúncias de Vicente, Andrade Corvo e Morais

Sarmento que, hipócritas e sem escrúpulos, denunciam;

Censura;

Severa repressão dos conspiradores;

Processos sumários e pena de morte;

Execução do General Gomes Freire.

Tempo da escrita (século XX - 1961) Agitação social dos anos 60 - conspirações internas;

principal irrupção da guerra colonial;

Regime ditatorial de Salazar;

Maior desigualdade entre abastados e pobres;

Classes exploradas, com reforço do seu poder;

Povo reprimido e explorado;

Miséria, medo e analfabetismo;

Obscurantismo, mas crença nas mudanças;

Luta contra o regime totalitário e ditatorial;

Agitação social e política com militares antifascistas a

protestarem;

Perseguições da PIDE;

Denúncias dos chamados "bufos", que surgem na sombra e

se disfarçam, para colher informações e denunciar;

Censura à imprensa;

Prisão e duras medidas de repressão e de tortura;

Condenação em processos sem provas.

Tempo Tempo histórico: século XIX.

Tempo da escrita: 1961, época dos conflitos entre a oposição e o

regime salazarista.

Tempo da representação: 1h30m/2h.

Tempo da acção dramática: a acção está concentrada em 2 dias.

Tempo da narração: informações respeitantes a eventos não

dramatizados, ocorridos no passado, mas importantes para o

desenrolar da acção.

Espaço Espaço físico: a acção desenrola-se em diversos locais, exteriores e interiores, mas não há nas indicações cénicas referentes a cenários diferentes.

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Espaço social: meio social em que estão inseridas as personagens, havendo vários espaços sociais, distinguindo-se uns dos outros pelo vestuário e pela linguagem das várias personagens.

O título O título da peça aparece duas vezes ao longo da peça, ora inserido nas falas de um dos elementos do poder - D. Miguel - ora inserido na fala final de Matilde. Em primeiro lugar é curioso e simbólico o facto de o título coincidir com as palavras finais da obra, o que desde logo lhe confere circularidade.

Página 131 - D. Miguel: salientando o efeito dissuasor das execuções, querendo que o castigo de Gomes Freire se torne num exemplo;

Página 140 - Matilde: na altura da execução são proferidas palavras de coragem e estímulo, para que o povo se revolte contra a tirania.

Num primeiro momento, o título representa as trevas e o obscurantismo; num segundo momento, representa a caminhada da sociedade em busca da liberdade. Como facilmente se constata a mesma frase é proferida por personagens pertencentes a mundos completamente opostos: D. Miguel, símbolo do poder, e Matilde, símbolo da resistência e do anti-poder. Porém o sentido veiculado pelas mesmas palavras altera-se em virtude de uma afirmação dar lugar a uma eufórica exclamação. Para D. Miguel, o luar permitiria que as pessoas vissem mais facilmente o clarão da fogueira, isso faria com que elas ficassem atemorizadas e percebessem que aquele é o fim último de quem afronta o regime. A fogueira teria um efeito dissuasor.

Para Matilde, estas palavras são fruto de um sofrimento interiorizado reflectido, são a esperança e o não conformismo nascidos após a revolta, a luz que vence as trevas, a vida que triunfa da morte. A luz do luar (liberdade) vencerá a escuridão da noite (opressão) e todos poderão contemplar, enfim, a injustiça que está a ser praticada e tirar dela ilação. Há que imperiosamente lutar no presente pelo futuro e dizer não à opressão e falta de liberdade, há que seguir a luz redentora e trilhar um caminho novo.

Elementos simbólicos Saia verde: encontra-se associada à felicidade e foi comprada numa terra de liberdade: Paris, no Inverno, com o dinheiro da venda de duas medalhas. "Alegria no reencontro"; a saia é uma peça eminentemente feminina e o verde encontra-se destinado à esperança de que um dia se reponha a justiça. Sinal do amor verdadeiro e transformador, pois Matilde, vencendo aparentemente a dor e revolta iniciais, comunica aos outros esperança através desta simples peça de vestuário. O verde é a cor predominante na natureza e dos campos na Primavera, associando-se à força, à fertilidade e à esperança. Título: duas vezes mencionado, inserido nas falas das personagens (por D.Miguel, que salienta o efeito dissuador das execuções e por Matilde, cujas palavras remetem para um estímulo para que o povo se revolte). A luz: como metáfora do conhecimento dos valores do futuro (igualdade, fraternidade e liberdade), que possibilita o progresso do mundo, vencendo a escuridão da noite (opressão, falta de liberdade e de esclarecimento), advém quer da fogueira quer do luar. Ambas são a certeza de que o bem e a justiça triunfarão, não obstante todo o sofrimento inerente a eles. Se a luz se encontra

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associada à vida, à saúde e à felicidade, a noite e as trevas relacionam-se com o mal, a infelicidade, o castigo, a perdição e a morte. A luz representa a esperança num momento trágico. Noite: mal, castigo, morte, símbolo do obscurantismo. Lua: simbolicamente, por estar privada de luz própria, na dependência do Sol e por atravessar fases, mudando de forma, representa: dependência, periodicidade. A luz da lua, devido aos ciclos lunares, também se associa à renovação. A luz do luar é a força extraordinária que permite o conhecimento e a lua poderá simbolizar a passagem da vida para a morte e vice-versa, o que aliás, se relaciona com a crença na vida para além da morte. Luar: duas conotações: para os opressores, mais pessoas ficarão avisadas e para os oprimidos, mais pessoas poderão um dia seguir essa luz e lutar pela liberdade. Fogueira: D. Miguel Forjaz - ensinamento ao povo; Matilde - a chama mantém-se viva e a liberdade há-de chegar. O fogo é um elemento destruidor e ao mesmo tempo purificador e regenerador, sendo a purificação pela água complementada pela do fogo. Se no presente a fogueira se relaciona com a tristeza e escuridão, no futuro relacionar-se-á com esperança e liberdade. Moeda de cinco reis: símbolo do desrespeito que os mais poderosos mantinham para com o próximo, contrariando os mandamentos de Deus. Tambores: símbolo da repressão sempre presente.