AS OBRAS DA UNICAMP

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1. VIDA E OBRA DE OLAVO BILACOlavo Bilac (RJ, 1865-1918), além de poeta, foi

jornalista, contista, cronista, crítico e escritor de livrosdidáticos. Esse reconhecido poeta parnasiano tambémescreveu a letra do Hino da Bandeira Nacional.

Engajou-se em questões cívicas e políticas de seutempo, como o abolicionismo e a defesa do alistamentomilitar obrigatório, considerado por ele uma forma decombater o analfabetismo. Foi membro fundador daAcademia Brasileira de Letras. Exerceu diversos cargospúblicos: oficial da Secretaria do Interior, no Rio deJaneiro, inspetor escolar e secretário de duasConferências Pan-Americanas.

Viveu num meio incentivador de seudesenvolvimento literário, tendo conhecido váriosescritores de sua época, como Eça de Queirós, Machadode Assis, Alberto de Oliveira, Aluísio Azevedo, dentreoutros.

Teve participação intensa em jornais. Embora tenhatido dificuldades financeiras, fez viagens constantes àEuropa, principalmente para Paris. No Rio de Janeiro,frequentou cafés, acompanhado por prestigiadosintelectuais e escritores da época.

Olavo Bilac expressava suas opiniões em relação àpolítica e à literatura. Algumas delas lhe valeraminimizades, inclusive chegou a ser preso a mando doentão presidente Marechal Floriano Peixoto. A imprensacarioca da época também atesta sua rixa com o escritorRaul Pompeia.

Seu humor era sarcástico, sua memória, incrível, eraum leitor voraz, um orador fantástico. Apreciava vinhosfinos e charutos caros, tinha interesse pelo ocultismo.Admirava mulheres belas, sendo que a paixão de suavida foi Amélia de Oliveira, irmã do poeta e amigoAlberto de Oliveira. Apesar de correspondido, o noivadopretendido não se consumou, pois a família da noiva nãoaceitou Olavo Bilac, dada sua reputação de boêmio e,assim, ele permaneceu celibatário até o fim de sua vida.

São de sua autoria os seguintes livros:• Poesias (1888),• Via Láctea (1888),• Sarças de Fogo (1888),• Tarde (1919) [póstumo]

Olavo Bilac foi aclamado “o príncipe dos poetasbrasileiros”. Sua fama em vida foi muito significativa.

Hoje, depois da crítica feita ao estilo parnasiano pelosmodernistas da geração demolidora, de 22, muitoscriticam a obra de Olavo Bilac.

Conforme Ivan Teixeira, ao final do século XIX,Olavo Bilac e Machado de Assis representavam “o quehavia de melhor nas letras brasileiras” (p. 99).

A ideia de Bilac e dos autores parnasianos era a deatualizar a arte brasileira, opondo-se ao Romantismo.Para tanto, recorriam “a fórmulas e pensamentosliterários da Europa, adequadamente ajustados àrealidade brasileira” (p. 99).

Destacamos a seguir algumas características doparnasianismo, movimento a que pertence Olavo Bilac:

• Concepção de poema como peça de ourivesaria,como objeto estético harmonioso e perfeito;

• Ideal do culto da “arte pela arte”, significando queo objetivo do poeta é criar obras que expressem o Belo,criado pelo perfeito uso de recursos estilísticos;

• Busca pela perfeição estética e culto à forma, oque implica utilização de um vocabulário raro e recursoscomo a metrificação, versificação, estruturas poéticasfixas, por exemplo o soneto, rimas ricas, raras e perfeitas;

• Recusa ao mito romântico da inspiração. Aocontrário, o poema parnasiano deveria ser produzido apartir de uma técnica apurada, a partir de trabalho árduo;

• Ideia do poema como artefato tangível (pintura,escultura, edifício), com conotação neoclássica eantirromântica.

A obra de Olavo Bilac está inserida noParnasianismo, no entanto, como afirma Ivan Teixeira, éimportante reconhecer que, “vista em conjunto, a obrabilaquiana excede os limites de filiação passiva ao estiloinstaurado pelos poetas do Parnasse Contemporain(1866-76)”.

Para Ivan Teixeira, a obra de Olavo Bilaccorresponde a uma busca por “ajustar o código francês aohorizonte de expectativas do leitor do final do SegundoReinado e da Primeira República” (p. 100).

Assim, para criar uma situação poética adequada aoBrasil de seu tempo, Olavo Bilac lançou mão sobretudodo “princípio da objetividade construtiva, que implica aideia de que a poesia resulta antes do esforço decomposição do que da inspiração” (p. 100).

A noção presente na poesia de Olavo Bilac é a de queo poeta deve usar de uma técnica rigorosa para provocarefeitos de beleza artística. Esse grande poeta parnasiano

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TARDE

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PORTUGUÊS

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orienta-se claramente para essa beleza feita de artifíciosexpressivos. Para ele, no entanto, embora os poemasresultem de árduo trabalho de elaboração, devem passaraos leitores uma impressão de espontaneidade, denaturalidade.

Segundo Ivan Teixeira, trata-se aqui da retomada deum princípio clássico: “o pressuposto clássico de que, empoesia, o domínio da técnica deve sobrepor-se ao mito dosaber espontâneo, posto em moda pelo Romantismo eradicalmente combatido por Olavo Bilac e por seuscompanheiros” (p. 101).

É importante evidenciar que a objetividadebilaquiana, conforme Ivan Teixeira, tanto “pode semanifestar em textos de construção da intimidade doindivíduo, quanto em textos de figurações da realidadeexterior” (p. 108), sendo esses últimos maispropriamente pictóricos.

Conforme Ivan Teixeira, para os parnasianos, “a beleza ideal revela-se em dimensão plástica,corporificada em objetos tangíveis (escultura, joia,porcelana, edifício), a despeito de sua natureza verbal.Resultante da apropriação escravista, católica e burguesade aspectos aparentes da Grécia Antiga, o ideal de belezaparnasiano não deixa, portanto, de mimetizar o padrão deelegância da elite pensante do Rio de Janeiro, de onde sealastra por todo o Brasil letrado” (p. 101).

Assim, de acordo com o crítico, a “poética culturalresponsável por esse padrão de beleza é, em sua feiçãomais característica, a mesma que, por exemplo, nãoconseguia enxergar perversão inerente, por exemplo, naexclusão social dos negros recém-saídos da escravidão”(p. 101).

Nos textos parnasianos, o apreço à técnicamanifesta-se no fato de o poeta demonstrar grandedestreza quanto à retórica e ao domínio específico dalíngua portuguesa.

Outro aspecto a ser considerado diz respeito ao tipode erotismo presente na obra de Olavo Bilac, uma vezque, no Brasil da época, por influência de Baudelaire, desua obra Flores do Mal, havia tendência a um erotismoconsiderado mórbido. De acordo com Ivan Teixeira, oerotismo bilaquiano não segue essa linha, em lugar disso,apresenta uma face mais “elegante” ao tratar de temaseróticos. As mulheres de seus poemas são “sempresensuais e insinuantes” e “primam pela exibição dabeleza plástica” (p. 103).

Segundo Ivan Teixeira, os parnasianos, por meio dadescrição, buscavam compor um objeto, uma paisagem,uma cena, uma situação. Os opositores do movimento,para desqualificar a poesia parnasiana, por ela se afastardo estilo exaltado dos poetas do Romantismo, criticaramo modo de expressão dos parnasianos, denominando-a deimpassibilidade. Olavo Bilac reagiu a essa crítica:

Aos chamados poetas parnasianos também se deuoutro nome “impassíveis”. Quem pode conceber umpoeta que não seja suscetível de padecimento?

Ninguém e nada é impassível: nem sei se as pedraspodem viver sem alma. Uma estátua, quando éverdadeiramente bela, tem sangue e nervos. Não hábeleza morta: o que é belo vive de si e por si só(1924, p. 24-25).

Pode-se dizer que, por trás da aparente indiferença, apoesia parnasiana expressa emoção, como que deixandoo próprio objeto descrito expressar-se, diferentemente damaneira romântica, a qual enfatiza um eu que seexpressa.

2. O LIVRO TARDEA redação do livro Tarde foi concluída no ano da

morte de Bilac, teve publicação póstuma no anoseguinte, em 1919. Nos poemas desse livro, evidencia-seo domínio desse autor parnasiano sobre o verso.

O livro tem um tom nostálgico e reflexivo, de umsujeito na maturidade, na proximidade da velhice e damorte. Em Tarde, Bilac mistura motivos líricos efilosóficos, no qual é constante a preocupação com osentido da vida.

Seguindo o preceito da “objetividade construtiva”, opoeta desenvolve os temas que mais aprecia: o amor, abeleza física feminina; a pátria e os grandiososacontecimentos da história brasileira; a exaltação dotrabalho e do progresso. Há também poemas queproblematizam a existência humana.

O livro é composto de cerca de 100 sonetos italianos.Os versos são decassílabos ou dodecassílabos, tambémchamados de alexandrinos, rimados com rigor. Atendência dos sonetos é descritiva ou argumentativa,sendo a última mais frequente.

O conjunto de poemas que formam esse livro foiescrito por Olavo Bilac em sua maturidade. São sonetosreflexivos, que focalizam o envelhecimento, bem como afinitude da vida. Em muitos poemas, a presença dediálogo é evidente.

A epígrafe: trata-se de um trecho, em italiano, emque Dante Alghieri (1265-1321) afirma que a existência,como um arco, tem um movimento ascendente, seguidode um movimento de descida.

O autor diz que, contemplando a natureza, observouque há costumes e comportamentos humanos maisadequados a um determinado momento da vida. Concluique a alma nobre busca harmonizar ações e etapas daexistência. Os poemas do livro, de forma geral, tratam do“movimento de descida”, isto é, o da maturidade.

Segue uma seleção de sonetos do livro Tarde.

Hino à tarde Glória jovem do sol no berço de ouro em chamas,Alva! Natal da luz, primavera do dia,Não te amo! nem a ti, canícula bravia,Que a ti mesma te estruis no fogo que derramas!

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Amo-te, hora hesitante em que se preludiaO adágio vesperal, – tumba que te recamasDe luto e de esplendor, de crepes e auriflamas,Moribunda que ris sobre a própria agonia!

Amo-te, ó tarde triste, ó tarde augusta, que, entreOs primeiros clarões das estrelas, no ventre,Sob os véus do mistério e da sombra orvalhada,

Trazes a palpitar, como um fruto do outono,A noite, alma nutriz da volúpia e do sono,Perpetuação da vida e iniciação do nada...

(BILAC, 2020, p. 10)

Glorifica a hora próxima ao final do dia. A tardesugere a maturidade do ser humano e antecipa a finitudeda existência do eu lírico, a qual se aproxima: “Amo-te,hora hesitante em que se preludia/ O adágio vesperal. –tumba que te recamas/ De luto e de esplendor (...)”. Éimportante observar que o próprio autor, no momento daescrita do livro, vivenciava esse período da vida.

PátriaPátria, latejo em ti, no teu lenho, por ondeCirculo! e sou perfume, e sombra, e sol, e orvalho!E, em seiva, ao teu clamor a minha voz responde,E subo do teu cerne ao céu de galho em galho!

Dos teus líquens, dos teus cipós, da tua fronde,Do ninho que gorjeia em teu doce agasalho,Do fruto a amadurar que em teu seio se esconde,De ti, – rebento em luz e em cânticos me espalho!

Vivo, choro em teu pranto; e, em teus dias felizes,No alto, como uma flor, em ti, pompeio e exulto!E eu, morto, – sendo tu cheia de cicatrizes,

Tu golpeada e insultada, – eu tremerei sepulto:E os meus ossos no chão, como as tuas raízes,Se estorcerão de dor, sofrendo o golpe e o insulto!

(BILAC, 2020, p. 11)

Nesse soneto faz-se um elogio à pátria. O eu líricofunde-se com elementos da natureza e, nessa simbiose,tudo que atinge a pátria, positivamente ou não, repercutenele, que sente as alegrias e as dores da pátria como seambos tivessem um só corpo: “Pátria, latejo em ti, (...)/Tu golpeada e insultada – eu tremerei sepulto,/ E os meusossos no chão, como as tuas raízes,/ Se estorcerão de dor,sofrendo o golpe e o insulto!”.

Língua portuguesaÚltima flor do Lácio, inculta e bela,És, a um tempo, esplendor e sepultura:Ouro nativo, que na ganga impuraA bruta mina entre os cascalhos vela…

Amo-te assim, desconhecida e obscura,Tuba de alto clangor, lira singela,Que tens o trom e o silvo da procelaE o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aromaDe virgens selvas e de oceano largo!Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”E em que Camões chorou, no exílio amargo,O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

(BILAC, 2020, p. 12)

Aborda o histórico da língua portuguesa,interlocutora do eu poético. Nesse poema, a metáfora“Última flor do Lácio, inculta e bela”, refere-se ao fatode a língua portuguesa ter sido a última língua neolatinaformada a partir do latim vulgar – falado pelos soldadosda região italiana do Lácio. A língua portuguesa édescrita como suave e rude simultaneamente: “Tuba dealto clangor, lira singela”. Há menção de que a línguaportuguesa serve para variados usos. Tendo cruzado oOceano Atlântico, chegou ao Brasil e, por meio dela, háum elo entre o eu poético e Camões (c.1524-1579 ou1580), um dos maiores escritores da literatura lusófona eda tradição ocidental: “Amo-te, ó rude e dolorosoidioma,/ Em que da voz materna ouvi: ‘meu filho!’/ E emque Camões chorou, no exílio amargo/”. Esse poemainspirou “Língua”, de Gilberto Mendonça, e a letra dacanção “Língua Portuguesa”, de Caetano Veloso.

Música brasileiraTens, às vezes, o fogo soberanoDo amor: encerras na cadência, acesaEm requebros e encantos de impureza,Todo o feitiço do pecado humano.

Mas, sobre essa volúpia, erra a tristezaDos desertos, das matas e do oceano:Bárbara poracé, banzo africano,E soluços de trova portuguesa.

És samba e jongo, xiba e fado, cujosAcordes são desejos e orfandadesDe selvagens, cativos e marujos:

E em nostalgias e paixões consistes,Lasciva dor, beijo de três saudades,Flor amorosa de três raças tristes.

(BILAC, 2020, p. 12-13)

A música nacional, interlocutora do eu poético, écaracterizada como portadora de uma cadência queexpressa volúpia, mas, sobretudo, tristeza. Essesentimento nostálgico seria proveniente da herança

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musical (“samba e jongo, xiba e fado”) das “três raçastristes” formadoras de nossa nacionalidade – indígenas,africanos e portugueses: “Flor amorosa de três raçastristes”; “És samba e jongo, xiba e fado, cujos/Acordes sãodesejos e orfandades/ De selvagens, cativos marujos (...)”.

O valeSou como um vale, numa tarde fria,Quando as almas dos sinos, de uma em uma,No soluçoso adeus da ave-mariaExpiram longamente pela bruma.

É pobre a minha messe. É névoa e espumaToda a glória e o trabalho em que eu ardia...Mas a resignação doura e perfumaA tristeza do termo do meu dia.

Adormecendo, no meu sonho incertoTenho a ilusão do prêmio que ambiciono:Cai o céu sobre mim em pirilampos...

E num recolhimento a Deus ofertoO cansado labor e o inquieto sonoDas minhas povoações e dos meus campos.

(BILAC, 2020, p. 18)

Há identificação do eu poético com um vale, numatarde fria. O estado de espírito apresentado é deresignação: “Mas a resignação doura e perfuma/Atristeza do termo do meu dia”.

As ondasEntre as trêmulas mornas ardentias,A noite no alto mar anima as ondas.Sobem das fundas úmidas Golcondas,Pérolas vivas, as nereidas frias:

Entrelaçam-se, correm fugidias,Voltam, cruzando-se; e, em lascivas rondas,Vestem as formas alvas e redondasDe algas roxas e glaucas pedrarias.

Coxas de vago ônix, ventres polidosDe alabatro, quadris de argêntea espuma,Seios de dúbia opala ardem na treva;

E bocas verdes, cheias de gemidos,Que o fósforo incendeia e o âmbar perfuma,Soluçam beijos vãos que o vento leva...

(BILAC, 2020, p. 22)

As ondas apresentam-se animadas, agitadas, pelapresença de nereidas. O movimento das veneradas ninfasno mar, referidas no poema como “pérolas vivas”,expressa erotismo: “Voltam, cruzando-se; e, em lascivasrondas,/ Vestem as formas alvas e redondas/ De algas eglaucas pedrarias”.

Sonata ao crepúsculoTrompas do sol, borés do mar, tubas da mata,Esfalfai-vos, rugindo, e emudecei… Apenas,Agora, trilem no ar, como em cristal e prata,Rústicos tamborins e pastoris avenas.

Trescala o campo, e incensa o ocaso, numa oblata.Surgem da Idade de Ouro, em paisagens serenas,Os deuses; Eros sonha; e, acordando à sonata,Bailam rindo as sutis alípedes Camenas.

Depois, na sombra, à voz das cornamusas graves,Termina a pastoral num lento epitalâmio…Cala-se o vento… Expira a surdina das aves…

E a terra, noiva, a ansiar, no desejo que a enleva,Cora e desmaia, ao seio aconchegando o flâmeo,Entre o pudor da tarde e a tentação da treva.

(BILAC, 2020, p. 23)

Sonata é um tipo de composição musical feita apenasde instrumentos. Referência a sons rústicos e pastoris deinstrumentos conjugados de forma harmônica e a figurasda mitologia greco-latina (Eros e as Camenas). Tom deerotismo: “E a terra, noiva, a ansiar, no desejo que aenleva,/ (...) Entre o pudor da tarde e a tentação da treva”.

O crepúsculo da belezaVê-se no espelho; e vê, pela janela,A dolorosa angústia vespertina:Pálido, morre o sol… Mas, ai! terminaOutra tarde mais triste, dentro dela;

Outra queda mais funda lhe revelaO aço feroz, e o horror de outra ruína:Rouba-lhe a idade, pérfida e assassina,Mais do que a vida, o orgulho de ser bela!

Fios de prata… Rugas… O desgostoEnche-a de sombras, como a sufocá-laNuma noite que aí vem… E no seu rosto

Uma lágrima trêmula resvala,Trêmula, a cintilar, – como, ao sol-posto,Uma primeira estrela em céu de opala…

(BILAC, 2020, p. 24)

Uma mulher vê-se no espelho e, ao mesmo tempo, vêpela janela um angustiado entardecer. O espelho e a tardelhe revelam a proximidade da senectude: “Vê-se noespelho; e vê, pela janela,/A dolorosa angústia vespertina”.

O crepúsculo dos deusesFulge em nuvens, no poente, o Olimpo. O céu delira.Os deuses rugem. Entre incêndios de ouro e gemas,Há torrentes de sangue, hecatombes supremas,Heróis rojando ao chão, troféus ardendo em pira,

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Ilíadas, bulcões de gládios e diademas,Ossa e Pélio tombando, e Zeus em raios de ira,E Acrópoles em fogo, e Homero erguendo a liraEm reverberações de batalhas e poemas...

Mas o vento, embocando as bramidoras trompas,Clangora. Rolam no ar, de roldão, num tumulto,Os numes e os titãs, varridos à rajada:

E ódio, furor, tropel, fastígio, glória, pompas,Chamas, o Olimpo, – tudo esbate-se, sepultoEm cinza, em crepe, em fumo, em sonho, em noite, emnada.

(BILAC, 2020, p. 24-25)

Conflito de deuses e destruição do Olimpo (localonde os deuses habitam, segundo a mitologia greco-latina). Além da menção a heróis, titãs e deuses (Zeusatira “raios de ira”), há referência a Homero (poeta épicoda Grécia Antiga, ao qual tradicionalmente é atribuída aautoria das epopeias Ilíada e Odisseia), que a tudoacompanha e registra: “E Acrópoles em fogo, e Homeroerguendo a lira/ Em reverberações de batalhas epoemas...”.

MicrocosmoPensando e amando, em turbilhões fecundosÉs tudo: oceanos, rios e florestas;Vidas brotando em solidões funestas;Primaveras de invernos moribundos;

A Terra; e terras de ouro em céus profundos,Cheias de raças e cidades, estasEm luto, aquelas em raiar de festas;Outras almas vibrando em outros mundos;

E outras formas de línguas e de povos;E as nebulosas, gêneses imensas,Fervendo em sementeiras de astros novos;

E todo o cosmos em perpétuas flamas...– Homem! és o universo, porque pensas,E, pequenino e fraco, és Deus, porque amas!

(BILAC, 2020, p. 25)

Analogia entre o ser humano e o universo. O homemseria uma espécie de microcosmo, por ser possuidor dedois dons: o pensar e o amar: “– Homem! És o universo,porque pensas,/ E, pequenino e fraco, és Deus, porqueamas!”.

DualismoNão és bom, nem és mau: és triste e humano...Vives ansiando, em maldições e preces,Como se, a arder, no coração tivessesO tumulto e o clamor de um largo oceano.

Pobre, no bem como no mal, padeces;E, rolando num vórtice vesano,Oscilas entre a crença e o desengano,Entre esperanças e desinteresses.

Capaz de horrores e de ações sublimes,Não ficas das virtudes satisfeito,Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:

E, no perpétuo ideal que te devora,Residem juntamente no teu peitoUm demônio que ruge e um deus que chora.

(BILAC, 2020, p. 25-26)

O eu poético reflete sobre sua humanidade eimperfeição. É um ser angustiado, com conflitosinteriores, como alterações comportamentais e de humor.Caracteriza-se como um ser dividido, é simultaneamente“Um demônio que ruge e um deus que chora”.

BenediciteBendito o que, na terra, o fogo fez, e o tecto;E o que uniu a charrua ao boi paciente e amigo;E o que encontrou a enxada; e o que, do chão abjeto,Fez, aos beijos do sol, o ouro brotar do trigo;

E o que o ferro forjou; e o piedoso arquitetoQue ideou, depois do berço e do lar, o jazigo;E o que os fios urdiu; e o que achou o alfabeto;E o que deu uma esmola ao primeiro mendigo;

E o que soltou ao mar a quilha, e ao vento o pano;E o que inventou o canto; e o que criou a lira;E o que domou o raio; e o que alçou o aeroplano...

Mas bendito, entre os mais, o que, no dó profundo,Descobriu a Esperança, a divina mentira,Dando ao homem o dom de suportar o mundo!

(BILAC, 2020, p. 29-30)

“Benedicite” é uma palavra latina que significaabençoar, bendizer. O eu lírico bendiz a todas asdescobertas que trouxeram benefícios civilizatórios àterra, como o uso do fogo, o atrelamento de bois acarroças, o manejo da enxada, a forja do ferro, a criaçãodo berço, do lar e do jazigo, a prática da caridade, ainvenção do barco à vela e do aeroplano. Bendiz, noentanto, acima de tudo, quem descobriu a esperança:“Mas bendito, entre os mais, o que, no dó profundo,/Descobriu a Esperança, a divina mentira,/ Dando aohomem o dom de suportar o mundo!”.

Dante no paraíso... Enfim, transpondo o Inferno e o Purgatório, DanteChegara à extrema luz, pela mão de Beatriz:Triste no sumo bem, triste no excelso instante,O poeta compreendera o mal de ser feliz.

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Saudoso, ao ígneo horror do báratro distante,Ao vórtice tartáreo o olhar volvendo, quisRegressar à geena, onde a turba ululanteNos torvelins raivando arde na chama ultriz:

E fatigou-o a paz do esplendor soberano;Dos réprobos lembrando a irrevogável sorte,A estância abominou do perpétuo prazer;

Porque no coração, cheio de amor humano,Sentiu que toda a Vida, até depois da morte,Só tem uma razão e um gozo só: sofrer!

(BILAC, 2020, p. 29-30)

O autor da Divina Comédia (1265-1321), tendotransposto o inferno e o purgatório, chega ao Paraíso,acompanhado de sua adorada Beatriz. Não se sente bem,contudo, nesse lugar de bem-aventuranças: “Por que nocoração, cheio de amor humano/ Sentiu que toda a Vida,até depois da morte,/ Só tem uma razão e um gozo só:sofrer!”.

Beethoven surdoSurdo, na universal indiferença, um dia,Beethoven, levantando um desvairado apelo,Sentiu a terra e o mar num mudo pesadelo...E o seu mundo interior cantava e restrugia.

Torvo o gesto, perdido o olhar, hirto o cabelo,Viu, sobre a orquestração que no seu crânio havia,Os astros em torpor na imensidade fria,O ar e os ventos sem voz, a natureza em gelo.

Era o nada, a eversão do caos no cataclismo,A síncope do som no páramo profundo,O Silêncio, a algidez, o vácuo, o horror no abismo...

E Beethoven, no seu supremo desconforto,Velho e podre, caiu, como um deus moribundo,Lançando a maldição sobre o universo morto!

(BILAC, 2020, p. 33-34)

O extraordinário compositor alemão (1770-1827),surdo, velho, pobre, desvairado, amaldiçoa o universo nofim de sua vida, após a terrível percepção de que, alémdas orquestrações que ressoavam no seu mundo interior,ressoava o nada, o vácuo absoluto: “Era o nada, a eversãodo caos no cataclismo,/A síncope, a algidez, o vácuo, ohorror no abismo...”.

No tronco de GoaCamões sofre, na infâmia da clausura,Pária sem honra, náufrago sem nome;E rala, na saudade que o consome,O pobre peito contra a pedra dura.

O seu gênio ilumina a abjeta lura...Mas a vida das carnes se lhe some:Míngua de pão, e, outra mais negra fome,Indigência de beijos e ventura.

Do próprio fel, dos íntimos venenos,Faz a glória da pátria e a luz da raça;E chora, na ignomínia. Mas, ao menos,

Possui, na mesquinhez da terra crassaE na vergonha de homens tão pequenos,O orgulho de ser grande na desgraça.

(BILAC, 2020, p. 36)

O grande sofrimento de Camões (c. 1524-1580), emGoa, seu exílio na Índia, toda a indigência material porque passou, sua enorme desventura não o impediram decontribuir com sua genialidade para a grandeza da pátriaportuguesa: “(...) Mas ao menos,/ Possui, na mesquinhezda terra crassa/ E na vergonha de homens tão pequenos,/O orgulho de ser grande na desgraça”.

CleópatraNão! que importava a queda, e o epílogo do drama:O trono, o cetro, o povo, o exército, o tesouro,As províncias, a glória, e as naus, no sorvedouroDe Actium, e Alexandria entregue ao saque e à chama?

Não! que importava o horror da entrada em Roma: a famaDe Otávio, e o seu triunfo, entre a púrpura e o louro,E a plebe em grita, e o céu cheio das águias de ouro,E o Egito, e o seu império, e os seus troféus, na lama?

Não! Que importava o amor perdido? Que importavaO naufrágio do orgulho, a vergonha, a torturaDo ódio do vencedor ou da piedade alheia?

Mas entrar desgrenhada, envelhecida, escrava,Rota, sem o arraiar da sua formosura,Sol sem fulgor...Matou-a o medo de ser feia.

(BILAC, 2020, p. 40)

É apresentado o maior tormento por que passou arainha do Egito (69-30 a.C.) ao perder o seu império. Oque a levou à morte não foi nenhum dos aspectosaltamente trágicos de sua vida, mas sim “o medo de serfeia”, ao entrar “desgrenhada, envelhecida, escrava,/Rota, sem o arriar da sua formosura,/ Sol sem fulgor.../Matou-a o medo de ser feia”.

NatalNo ermo agreste, da noite e do presepe, um hinoDe esperança pressaga enchia o céu, com o vento...As árvores: “Serás o sol e o orvalho!” E o armento:“Terás a glória!” E o luar: “Vencerás o destino!”

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E o pão: “Darás o pão da terra e o pão divino!”E a água: “Trarás alívio ao mártir e ao sedento!”E a palha: “Dobrarás a cerviz do opulento!”E o tecto: “Elevarás do opróbrio o pequenino!”

E os reis: “Rei, no teu reino, entrarás entre palmas!”E os pastores: “Pastor, chamarás os eleitos!”E a estrela: “Brilharás, como Deus, sobre as almas!”

Muda e humilde, porém, Maria, como escrava,Tinha os olhos na terra em lágrimas desfeitos;Sendo pobre, temia; e, sendo mãe, chorava.

(BILAC, 2020, p. 43-44)

No nascimento de Jesus, presságios auspiciososeram pronunciados para o menino pelas árvores, peloluar, pelo pão, pela água, pela palha, pelos reis, pelospastores e por uma estrela. No entanto, Maria, previa osofrimento de Jesus: “Tinha os olhos na terra emlágrimas desfeitos;/ Sendo pobre, tremia; e, sendo mãe,chorava”.

A um poetaLonge do estéril turbilhão da rua,Beneditino, escreve! No aconchegoDo claustro, na paciência e no sossego,Trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o empregoDo esforço: e a trama viva se construaDe tal modo, que a imagem fique nua,Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplícioDo mestre. E natural, o efeito agradeSem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,Arte pura, inimiga do artifício,É a força e a graça na simplicidade.

(BILAC, 2020, p. 44-45)

Aconselhamento a um poeta sobre o ofício daescrita. Retoma o lema da “arte pela arte”. Apresentaçãodo processo de criação poética como trabalho árduo, que,no entanto, não deve ficar evidente no resultado final. Opoema deve parecer espontâneo, ainda que sua produçãoexija elaboração complexa: “Não se mostre na fábrica osuplício/ Do mestre. E natural, o efeito agrade,/ Semlembrar os andaimes do edifício:/ Porque a Beleza,gêmea da Verdade,/Arte pura, inimiga do artifício,/ É aforça e a graça na simplicidade”. Nesse poema, retoma-se o pressuposto clássico de que, em poesia, o domínioda técnica deve sobrepor-se ao mito do saber espontâneo.

Vila RicaO ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre;Sangram, em laivos de ouro, as minas, que ambiçãoNa torturada entranha abriu da terra nobre:E cada cicatriz brilha como um brasão.

O ângelus plange ao longe em doloroso dobre,O último ouro do sol morre na cerração.E, austero, amortalhando a urbe gloriosa e pobre,O crepúsculo cai como uma extrema-unção.

Agora, para além do cerro, o céu pareceFeito de um ouro ancião que o tempo enegreceu...A neblina, roçando o chão, cicia, em prece,

Como uma procissão espectral que se move...Dobra o sino... Soluça um verso de Dirceu...Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astros chove.

(BILAC, 2020, p. 45)

Contraste entre o passado e o presente de Vila Rica,atual Ouro Preto. Menção à ambição que deixoucicatrizes na nobre terra. Referência à poesia de Dirceu(pseudônimo pastoril do poeta árcade Tomás AntônioGonzaga (1774-1810)): “Dobra o sino... Soluça um versode Dirceu.../ Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astroschove.”.

New YorkResplandeces e ris, ardes e tumultuas;Na escalada do céu, galgando em fúria o espaço,Sobem do teu tear de praças e de ruasAtlas de ferro, Anteus de pedra e Brontes de aço.

Gloriosa! Prometeu revive em teu regaço,Delira no teu gênio, enche as artérias tuas,E combure-te a entranha arfante de cansaço,Na incessante criação de assombros em que estuas.

Mas, com as tuas Babéis, debalde o céu recortas,E pesas sobre o mar, quando o teu vulto assoma,Como a recordação da Tebas de cem portas:

Falta-te o Tempo, – o vago, o religioso aromaQue se respira no ar de Lutécia e de Roma,Sempre moço perfume ancião de idades mortas...

(BILAC, 2020, p. 45-46)

Nova Iorque é apresentada em sua grandiosidade. Noentanto, algo falta à moderna cidade se comparada aantigas: “Falta-te o Tempo, – o vago, o religioso aroma/Que se respira no ar de Lutécia e de Roma,/ Sempremoço perfume ancião de idades mortas...”.

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Último carnavalÍncola de Suburra ou de Sibaris,Nasceste em saturnal; viveste, estulto,Na folia das feiras, no tumultoDos caravançarás e dos bazares;

Morreste, em plena orgia, entre os esgaresDos arlequins, no delirante culto;E a saudade terás, depois sepulto,Herói folião, dos carnavais hílares...

Talvez, quem sabe? a cova, que te esconda,Uma noite, entre fogos-fátuos, se abra,Como uma boca escancarada em risos:

E saltarás, pinchando, numa rondaDe espectros aos tantãs, dança macabraDe esqueletos e lêmures aos guizos...

(BILAC, 2020, p. 46)

Apresenta um folião morto em plena orgia.Conforme o poema, se ele reviver, será um fantasmaenvolvido em uma dança esquisita, ridícula: “dançamacabra/ De esqueletos e lêmures aos guizos...”.

PerfeiçãoNunca entrarei jamais o teu recinto:Na sedução e no fulgor que exalas,Ficas vedada, num radiante cintoDe riquezas, de gozos e de galas.

Amo-te, cobiçando-te... – E, faminto,Adivinho o esplendor das tuas salas,E todo o aroma dos teus parques sinto,E ouço a música e o sonho em que te embalas.

Eternamente ao meu olhar pompeias,E olho-te em vão, maravilhosa e bela,Adarvada de altíssimas ameias.

E à noite, à luz dos astros, a horas mortas,Rondo-te, e arquejo, e choro, ó cidadela!Como um bárbaro uivando às tuas portas!

(BILAC, 2020, p. 49-50)

A perfeição é uma fortaleza em que o eu poéticodeseja entrar, mas reconhece que esse lugar é inatingível:“Rondo-te, e arquejo, e choro, ó cidadela!/ Como umbárbaro uivando às tuas portas”.

PalavrasAs palavras do amor expiram como os versos,Com que adoço a amargura e embalo o pensamento:Vagos clarões, vapor de perfumes dispersos,Vidas que não têm vida, existências que invento;

Esplendor cedo morto, ânsia breve, universosDe pó, que um sopro espalha ao torvelim do vento,Raios de sol, no oceano entre as águas imersos,– As palavras da fé vivem num só momento...

Mas as palavras más, as do ódio e do despeito,O “não!” que desengana, o “nunca!” que alucina,E as do aleive, em baldões, e as da mofa, em risadas,

Abrasam-nos o ouvido e entram-nos pelo peito:Ficam no coração, numa inércia assassina,Imóveis e imortais, como pedras geladas.

(BILAC, 2020, p. 58)

O eu poético distingue a existência de palavrasbenéficas, de amor e de fé, e palavras más, “as do ódio edo despeito”. Aquelas são efêmeras, estas “Ficam nocoração, numa inércia assassina,/ Imóveis e imortais,como pedras geladas”.

DiálogoO mancebo perfeito e o velho humilde e rudeViram-se. E disse ao velho o mancebo perfeito:“Glória a mim! sorvo o céu num hausto do meu peito!”E o velho: “Engana o céu... Tudo na terra ilude...”

“Rebentam roseirais do chão em que me deito!”“A alma da noite embala a minha senectude...”“Quando acordo, há um clarão de graça e de saúde!”“Pudesse ser perpétua a calma do meu leito!”

“Quero vibrar, agir, vencer a Natureza,Viver a Vida!” “A Vida é um capricho do vento...”“Vivo, e posso!” “O poder é uma ilusão da sorte...”

“Herói e deus, serei a beleza!” “A belezaÉ a paz!” “Serei a força!” “A força é o esquecimento...”“Serei a perfeição!” “A perfeição é a morte!”

(BILAC, 2020, p. 60-61)

O poema apresenta o diálogo entre um jovem e umhomem idoso. Há oposição entre dois pontos de vista: odo jovem orgulhoso de sua vitalidade, desejoso de fruirdas benesses da vida e o do ancião que tem a sabedoriade que “Tudo na terra ilude...”.

SonhoTer nascido homem outro, em outros dias,– Não hoje, nesta agitação sem glória,Em traficâncias e mesquinharias,Numa apagada vida merencória...

Ter nascido numa era de utopias,Nos áureos ciclos épicos da História,Ardendo em generosas fantasias,Em rajadas de amor e de vitória:

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Campeão e trovador da Idade Média,Herói no galanteio e na cruzada,Viver entre um idílio e uma tragédia;

E morrer em sorrisos e lampejos,Por um gesto, um olhar, um sonho, um nada,Traspassado de golpes e de beijos!

(BILAC, 2020, p. 62-63)

O eu poético afirma seu desejo de ter nascido numaoutra época, em que não houvesse a decadência moral deque se ressente no momento da enunciação. Ele afirmaseu desejo de viver em épocas utópicas: “Nos áureosciclos épicos da História” e, naquele contexto, tervivenciado ardentes “fantasias. Em rajadas de amor e devitória”.

PenetraliaFalei tanto de amor!... de galanteio,Vaidade e brinco, passatempo e graça,Ou desejo fugaz, que brilha e passaNo relâmpago breve com que veio...

O verdadeiro amor, honra ou desgraça,Gozo ou suplício, no íntimo fechei-o:Nunca o entreguei ao publico recreio,Nunca o expus indiscreto ao sol da praça.

Não proclamei os nomes, que, baixinho,Rezava... E ainda hoje, tímido, mergulhoEm funda sombra o meu melhor carinho.

Quando amo, amo e deliro sem barulho;E, quando sofro, calo-me, e definhoNa ventura infeliz do meu orgulho.

(BILAC, 2020, p. 65-66)

O eu lírico revela que, embora tenha escrito muitospoemas de amor para deleite do público, nunca revelou overdadeiro amor sentido em seu íntimo: “Quando amo,amo e deliro sem barulho;/ E, quando sofro, calo-me, edefinho/ Na ventura infeliz do meu orgulho”.

FrutidoroFruto, depois de ser semente humilde e flor,Na alta árvore nutriz da Vida amadureço.Gozei, sofri, – vivi! Tenho no mesmo apreçoO que o gozo me deu e o que me deu a dor.

Venha o inverno, depois do outono benfeitor!Feliz porque nasci, feliz porque envelheço,Hei de ter no meu fim a glória do começo:Não me verão chorar no dia em que me for.

Não me amedrontas, Morte! o teu apelo escuto,Conto sem mágoa os sóis que me acercam de ti,E sem tremer à porta ouço o teu passo astuto.

Leva-me! Após a luta, o sono me sorri:Cairei, beijando o galho em que fui flor e fruto,Bendizendo a sazão em que amadureci!

(BILAC, 2020, p. 69)

O eu lírico bendiz a maturidade e diz que aguarda amorte que se aproxima sem medo: “Venha o inverno,depois do outono benfeitor!/ (...) Não me amedrontas,Morte, o teu apelo escuto/ (...)/ Cairei, (...)/ Bendizendoa sazão em que amadureci!”.

SinfoniaMeu coração, na incerta adolescência, outrora,Delirava e sorria aos raios matutinos,Num prelúdio incolor, como o alegro da aurora,Em sistros e clarins, em pífanos e sinos.

Meu coração, depois, pela estrada sonoraColhia a cada passo os amores e os hinos,E ia de beijo a beijo, em lasciva demora,Num voluptuoso adágio em harpas e violinos.

Hoje, meu coração, num scherzo de ânsias, ardeEm flautas e oboés, na inquietação da tarde,E entre esperanças foge e entre saudades erra...

E, heroico, estalará num final, nos clamoresDos arcos, dos metais, das cordas, dos tambores,Para glorificar tudo que amou na terra!

(BILAC, 2020, p. 70)

O eu poético refere-se aos períodos da vida,comparando-os a um momento musical. A maturidade éo período de inquietação e saudades: “num scherzo deânsias, arde/ Em flautas e oboés, na inquietação da tarde,/E entre esperanças foge e entre saudades erra...”. A morteque se aproxima, segundo o eu lírico, será uma músicaheroica, “Para glorificar tudo que amou na terra!”.

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Exercícios Propostos1. Comente os seguintes sonetos do livro Tarde:

AnchietaCavaleiro da mística aventura,

Herói cristão! nas provações atrozes

Sonhas, casando a tua voz às vozes

Dos ventos e dos rios na espessura:

Entrando as brenhas, teu amor procura

Os índios, ora filhos, ora algozes,

Aves pela inocência, e onças ferozes

Pela bruteza, na floresta escura.

Semeador de esperanças e quimeras,

Bandeirante de “entradas” mais suaves,

Nos espinhos a carne dilaceras:

E, porque as almas e os sertões desbraves,

Cantas: Orfeu humanizando as feras,

São Francisco de Assis pregando às aves...

(Olavo Bilac, Tarde. Campinas, SP:

Pontes Editores, 2020, p. 13)

Resolução: Celebra José de Anchieta (1534-1597),

enfatizando seu zelo na catequização dos índios. Anchieta

é designado como “cavaleiro da mística aventura”, “Herói

cristão”, e sua atuação humanizadora é comparada à de

São Francisco de Assis. A participação importante de

Anchieta na colonização de São Paulo é sugerida em

“Bandeirante de ‘entradas’ mais suaves”. Os índios são

representados ao mesmo tempo como inocentes e brutais:

“Os índios, ora filhos, ora algozes/Aves pela inocência, e

onça ferozes/ Pela bruteza, na floresta escura”.

Sinos Plangei, sinos! A terra ao nosso amor não basta...

Cansados de ânsias vis e de ambições ferozes,

Ardemos numa louca aspiração mais casta,

Para transmigrações, para metempsicoses!

Cantai, sinos! Daqui por onde o horror se arrasta,

Campas de rebeliões, bronzes de apoteoses,

Badalai, bimbalhai, tocai à esfera vasta!

Levai os nossos ais rolando em vossas vozes!

Em repiques de febre, em dobres a finados,

Em rebates de angústia, ó carrilhões, dos cimos

Tangei! Torres da fé, vibrai os nossos brados!

Dizei, sinos da terra, em clamores supremos,

Toda a nossa tortura aos astros de onde vimos,

Toda a nossa esperança aos astros aonde iremos!

(Olavo Bilac, Tarde. Campinas, SP:

Pontes Editores, 2020, p. 69-70)

Resolução: Notam-se a presença de vocábulos do

universo musical e a percepção do mistério, com a menção

da palavra “metempsicoses”, característica dos poetas de

doutrina esotérica: “Plangei, sinos! A terra ao nosso amor

não basta.../(...)/Ardemos numa louca aspiração mais

casta,/ Para transmigrações, para metempsicoses!”.

Texto para responder ao exercício 2.

Oração à CibeleDeitado sobre a terra, em cruz, levanto o rosto

Ao céu e às tuas mãos ferozes e esmoleres.

Mata-me! Abençoarei teu coração, composto,

Ó mãe, dos corações de todas as mulheres!

Tu, que me dás amor e dor, gosto e desgosto.

Glória e vergonha, tu, que me afagas e feres,

Aniquila-me! E doura e embala o meu sol posto,

Fonte! Berço! Mistério! Ísis! Pandora! Ceres!

Que eu morra assim feliz, tudo de ti querendo:

Mal e bem, desespero e ideal, veneno e pomo,

Pecados e perdões, beijos puros e impuros!

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E os astros sobre mim caiam de ti, chovendo,

Como os teus crimes, como as tuas bênçãos, como

A doçura e o travor de teus cachos maduros!

(Olavo Bilac, Tarde. Campinas, SP:

Pontes Editores, 2020, p. 66)

2. Como é identificada a figura feminina neste poema?

Resolução: Cibele é vista no poema como divindade

destruidora, que seduz e encanta seu observador, ao

mesmo tempo que o maltrata. Há uma aproximação entre

Cibele e outras deusas da mitologia: Ísis, da mitologia

egípcia, e Pandora e Ceres, da mitologia clássica. Esse

perfil feminino evoca o arquétipo da mulher fatal.

Texto para responder aos exercícios 3 e 4.

PreceDurma, de tuas mãos nas palmas sacrossantas,

O meu remorso. Velho e pobre, como Jó,

Perdendo-te, a melhor de tantas posses, tantas,

Malsinado de Deus, perdi... Tu foste a só!

Ao céu, por teu perdão, a minha alma, que encantas,

Suba, como por uma escada de Jacó.

Perdi-te... E eras a graça, alta entre as altas santas,

A sombra, a força, o aroma, a luz... Tu foste a só!

Tu foste a só!... Não valho a poeira que levantas,

Quando passas. Não valho a esmola do teu dó!

— Mas deixa-me chorar, beijando as tuas plantas,

Mas deixa-me clamar, humilhado no pó:

Tu, que em misericórdia as Madonas suplantas,

Acolhe a contrição do mau... Tu foste a só!

(Olavo Bilac, Tarde. Campinas, SP:

Pontes Editores, 2020, pág.66)

3. Neste soneto, o eu poético lamenta um fato que lhe

ocorreu. De que se trata?

Resolução: Nesse soneto, o eu lírico lamenta a perda da

amada, considerada por ele a mulher mais sublime de

todas: “Perdi-te... E eras a graça, alta entre as altas

santas,/A sombra, a força, o aroma, a luz... Tu foste a só!”.

A expressão “só” significa a singularidade dessa mulher

inigualável.

4. No soneto “Prece”, há uma comparação entre o eu lírico e

uma personagem bíblica. O que essa comparação sugere?

Resolução: A comparação com a personagem bíblica Jó,

homem que experimentou os mais terríveis sofrimentos

que alguém poderia suportar, mantendo, no entanto, sua

fidelidade a Deus, sugere a veemência da dor sentida pelo

eu lírico com a perda da mulher amada. Também sugere

sua fidelidade, uma vez que, para ele, ela é sempre única

(“Tu foste a só!”) dentre todas as mulheres.

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3. BIBLIOGRAFIA

Bilac, Olavo. Tarde. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020.

Bilac, Olavo. Últimas conferências e discursos. São Paulo: Francisco Alves, 1924).

Teixeira, Ivan. Artifício, persuasão e sociedade em Olavo Bilac, Revista USP, São Paulo, n. 54, p. 98-111, junho/agosto2002, link https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/35224 - acesso em 15/1/2020).

“Monte sua estante com obras de Olavo Bilac”, da Livraria da Folha, Link> http://folha.com/no1022128 (acesso em15/1/2021)