Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012...

57
N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM DA Escola da Defensoria Pública do Estado

Transcript of Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012...

Page 1: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

1Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

DEFENSORIA PÚBLICABOLETIM DA

Escola da Defensoria Pública do Estado

Page 2: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

2 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Expediente

Índice

Escola da Defensoria Pública do Estado de São PauloRua Boa Vista, 103 - 13º- andar - 01014-001 - São Paulo - SPTel. 11-3101-8455e-mail: [email protected]

Boletim da Escola da Defensoria PúblicaN. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Diretora da Escola da Defensoria Pública do Estado:CRISTINA GUELFI GONÇALVES

Defensoras Públicas Assistentes de Direção da EDEPEANDREA PERENCIN DE ARRUDA RIBEIRO RIOSMÔNICA DE MELO

EDITORIAL .....................................................................................3

ARTIGOSCONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTADO, NORMAS JURÍDICAS E JUSTIÇA João Antonio .........................................................................................5

DIREITO AO ESPORTE E LAZER DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES Danielle Rinaldi Barbosa e Thiago Santos de Souza........................ 7

MEDIAÇÃO FAMILIAR: A IMPORTÂNCIA DA INTERDISCIPLINARIDADE NA BUSCA DA EFETIVA RESOLUÇÃO DE CONFLITOSFlávio de Almeida Pontinha e Henata Mariana de Oliveira...........10

OS DIREITOS DOS ADOLESCENTES E DOS JOVENS INFRATORES PORTADORES DE TRANSTORNOS MENTAIS Vívian Monsef de Castro....................................................................11

A IMPLEMENTAÇÃO DAS DECISÕES E RECOMENDAÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS EM MATÉRIA DE TORTURA: A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA Carlos Weis .........................................................................................22

EM BUSCA DA EFETIVIDADE SOCIAL DO PROCESSO – A NECESSÁRIA RELATIVIZAÇÃO DAS NORMAS PROCESSUAIS SOB O VIÉS DA HIPOSSUFICIÊNCIA E DO ACESSO À JUSTIÇA E O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA Laís Rabello Zaros .............................................................................30

A NOVA ESTRUTURA TÍPICA DO CRIME DE ESTUPRO E OS EFEITOS PRÁTICOS DESSA MUDANÇA Alexandre Orsi Netto .........................................................................41

REFLEXÕES ACERCA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PARENTAL POR ABANDONO AFETIVO Samir Nicolau Nassralla.................................................................... 43

Conselho Editorial:ALESSANDRO FOLADORCRISTINA SONDANILO KAZUOFABIO ESPOSTOGENIVAL TORRESJULIANA BELLOQUE

LEANDRO GOMESLUIS RASCOVISKISILVIA FIGUEIREDOVOLNEI SANTOSELIZABETE CIRILOPAULA DANTAS NASCIMENTO

Page 3: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

3Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Editorial

Editorial

Ao ingressar na faculdade, o estudante de Direito tem seu primeiro contato com um mundo que se acredita autossuficiente para solucionar os problemas sociais. O ensino jurídico atual, que é dominado por uma cultura técnico-burocrático, como já alertado por Boaventura de Sousa Santos, parte do pressuposto de que o conhecimento do sistema jurídico é suficiente para a obtenção de êxito no processo de ensino-aprendizagem. Imerso nesse universo técnico--dogmático, o outrora estudante, já agora profissional, acaba reproduzindo na prática, ainda que com a melhor das intenções, as informações passadas por seus professores e arquivadas em sua memória.

Os problemas sociais, contudo, não são resolvidos com a simples aplicação da letra da lei no caso concreto, até mesmo porque o Direito, ou melhor, o legislador, não é capaz de prever todas as possíveis e intrincadas situações que as relações humanas podem criar. Na verdade, justamente por lidar com as relações entre os homens, o Direito deve – ou ao menos deveria – trabalhar em conjunto a outras disciplinas.

Nisso consiste a multidisciplinaridade e interdisciplinaridade: o diálogo entre as di-versas áreas do conhecimento, que contribuem, com informações próprias de seu campo de estudo, para a solução de um problema.

Atenta a essa necessária mudança de paradigma técnico-dogmática construída pela tradicional forma de ensino jurídico oferecido pelas faculdades de Direito, a Lei Complemen-tar Estadual n° 988/06 estabeleceu como atribuições institucionais da Defensoria Pública de São Paulo, dentre outras, a prestação de atendimento interdisciplinar e a promoção de orien-tação jurídica e informação sobre direitos humanos e cidadania de forma integrada e multidis-ciplinar.

Nessa esteira, a própria Lei Complementar criou o CAM, o Centro de Atendimento Multidisciplinar, “visando ao assessoramento técnico e interdisciplinar para o desempenho das atribuições da instituição” (artigo 48). Na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o CAM está presente em todas as suas Regionais. Ele é composto por Agentes de Defensoria, com formação em Psicologia ou Serviço Social, e um Defensor Público Coordenador. Dentre as atribuições desenvolvidas pelos Agentes está o apoio ao serviço de atendimento especiali-zado, com a prestação de suporte psicossocial às demandas jurídicas atendidas, e a atuação enquanto facilitadores de acordos, fomentando a resolução dos conflitos por meio de métodos alternativos, ou seja, a mediação e a conciliação.

Page 4: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Índice

4 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Editorial

A implementação dos CAMs criou um espaço institucional de diálogo e intersecção de saberes, reunindo profissionais do Direito, da Psicologia e do Serviço Social e inaugurando uma nova perspectiva de trabalho, voltada para a concretização dos princípios da integralida-de e efetividade na prestação da assistência jurídica.

A atuação em uma equipe multidisciplinar não é tarefa fácil; pelo contrário, exige en-volvimento e comprometimento por parte de todos os profissionais. Almeja-se um ponto de equilíbrio entre limites e possibilidades inerentes às ciências, que passam a enxergar as de-mandas sob diversos olhares. O objetivo na ação interdisciplinar, que, destaque-se, tem como desafio justamente o planejamento e a execução das ações de forma integrada, é dar àqueles que procuram a Defensoria Pública um atendimento pleno.

Nesse sentido, o Boletim da EDEPE configura um meio de comunicação capaz de con-tribuir para a divulgação de produções textuais que abordem temas além do interesse estrita-mente jurídico, como forma de prestigiar e incentivar a multidisciplinaridade.

O Conselho Editorial do Boletim tem procurado ampliar a chamada para a publicação de escritos, incentivando não somente a criação intelectual dos membros e servidores da insti-tuição, mas também a de todos que pactuem com a importância de um trabalho interdisciplinar junto à sociedade. Neste plano de abertura para além dos muros da Defensoria, as chamadas de artigos se destinam a docentes, discentes e profissionais que atuam, especialmente, na área das ciências sociais. Ressalte-se: das ciências sociais, e não somente da ciência jurídica.

O convite, portanto, está lançado: envie seu trabalho para o Boletim e contribua, assim, no fomento e na difusão do diálogo entre os diversos saberes. A mudança está em suas mãos.

Boa leitura!

O Conselho.

Page 5: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

5Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

1 Artigo convidado pela Direção da EDEPE.

Considerações sobre o Estado, Normas Jurídicas e Justiça1

Deputado Estadual, advogado e mestrando em Filosofia do Direito.

João Antonio

Partido de um conceito clássico de Estado, que é a união de um povo em um determinado território, regido por normas jurídicas que busca o bem comum, tecer considerações sobre Estado e normas jurídicas é falar de instrumentos para busca da justiça. Há um consenso da subjetividade do conceito justiça. Cada in-divíduo tem a sua formulação, é variável no tempo e no espaço, se tomarmos como referencial a expectativa individual de cada integrante de uma determinada so-ciedade se chegará a conclusões diversas. Não é a ideia individualizada de justiça que interessa a esse artigo, e sim a representação do que se convencionou chamar de justiça social - uma sociedade harmoniosa, solidária, igualitária e com ampla liberdade democrática.

Em outros termos, sem desprezar as razões sub-jetivas que levam cada indivíduo membro de um co-letivo formular seu próprio conceito de justiça, o que interessa aqui é falar da intersubjetividade das relações, pois individualizar o conceito de justiça e, a partir daí, buscar um critério adequado para se chegar a um con-ceito de justiça para o todo social é complexo demais para encaixá-la, com precisão, em uma ordem jurídica com pretensões normativas gerais.

A sociedade é composta de interesses diversifica-dos e contraditórios. Sua harmonia depende da capaci-dade dela própria formular pactos sociais que legitimam e alimentam o poder do Estado para, se necessário, uti-lizar seu poder coercitivo para impor comportamentos adequados a um bom convívio social.

Na história da humanidade registramos a umbi-lical relação entre regras gerais do direito e sua instru-mentalização com a busca por justiça. Na clássica obra aristotélica, Ética a Nicômaco – em seu livro V –, por exemplo, percebe-se uma clara preocupação em asso-ciar a justiça à ideia do bem para o todo social. Partin-do do conceito de lei geral com efeitos para todos e da associação da lei ao bem comum, Aristóteles susten-

ta que o “ ‘justo’ significa aquilo que é legal e aquilo que é igual ou equitativo, e o ‘injusto’ o que é ilegal e aquilo que é desigual ou não equitativo”. E Aristóteles acrescenta: “É na justiça que se encontra toda a virtude somada”. Ora! Percebe-se que já no pensamento anti-go havia a clareza da impossibilidade de se chegar a conceito de justiça individualizando as ações de Esta-do. Em Aristóteles, é impossível dissociar o universo humano da convivência nas polis. Era nas polis que o indivíduo realizava seus sentimentos de pertencimen-to e não havia como viver nas cidades sem reconhecer as regras de convivência coletiva. É exatamente aí que consiste o despertar grego para o direito e a política.

Em uma visão contemporânea deste conceito de justiça, John Rawls, em sua obra Uma teoria da Justi-ça, sem confundir equidade e justiça como sinônimos apresenta a equidade como sendo sua ideia central de justiça, e afirma: “uma teoria de justiça que generaliza e eleva a um nível mais alto de abstração a concepção tradicional do contrato social”. Mais ainda, sustenta que “a justiça é a virtude primeira das instituições so-ciais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensa-mento”. Em que pese a enorme distância temporal que separa os dois (Rawls, 1971 e Aristóteles, 384 a.C.), notam-se muitas semelhanças conceituais na relação, coletividade/justiça, entre os autores citados.

Para esse artigo, o fundamental é absorver destes conceitos a relação direta existente entre ordenamento jurídico, Estado e a ideia de justiça social. Quando se fala de lei geral com o fim de alcançar o bem comum, ou então, do resgate do contrato social (teoria sustentada por Hobbes, Locke e Rousseau, em que pese haver diferença entre eles), estamos sustentando que os seres humanos se juntam e formulam termos cooperativos que visam objetivos mútuos. Estes são resultantes da composição de interesses de indivíduos e do interesse geral comum. Em outras palavras, o que leva as pessoas associar-se é a percepção de que a cooperação pode propiciar uma vida

Page 6: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

6 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

melhor para todos mais do que qualquer um, individual-mente, conseguiria com seu próprio esforço.

Seguindo minhas alusões históricas, socorro--me do pensador que escreveu O Espírito das Leis, ao relacioná-lo a uma visão atual de Constituição, que é o que norteia os ordenamentos jurídicos contemporâ-neos. Montesquieu já considerava que esta lei maior (Constituição) busca a solução dos problemas levando em conta as condições históricas de um povo, seus cos-tumes, sua situação geográfica, as boas e más qualida-des de uma nação, que a partir desta realidade buscam as leis que lhe convêm. Para o direito contemporâneo, a Constituição de um de Estado é o esteio de todo um sistema de normas que asseguram os direitos funda-mentais, que por sua vez são parte de um sistema dinâ-mico, que se constitui nas suas próprias contradições e busca sua legitimidade no mundo exterior como forma de justificar-se.

Isso não elimina os conflitos de interesses exis-tentes em uma determinada sociedade. Pelo contrário, eles continuam latentes em qualquer organização hu-mana, e é exatamente por isso que seus integrantes atri-buem a uma instituição “independente” – o Estado – o papel de dirimir tais conflitos, e este o faz por meio de normas jurídicas gerais com efeitos para todos.

Seja na visão de constituição do Estado dos na-turalistas ou dos contratualistas ou nas divergências que opõem no mundo do direito os positivistas e os jus na-turalistas, as normas que autorizam o Estado a agir são um construído humano que visa organizar e humanizar o convívio social, para que não ocorra aquilo que Thomas Hobbes classificou de “guerra de todos contra todos”.

Portanto, o Estado é uma necessidade humana; “Ninguém basta a si mesmo, mas todos precisam de muitas coisas”, já dizia Platão em sua clássica obra A República. Em qualquer outro tipo de organização hu-mana – igreja, sindicato e associações diversas – o ho-mem nela ingressa voluntariamente e dela se retira sem precisar dar satisfação a ninguém, mas do Estado, como escreveu Darcy Azambuja, “o homem não se liberta ja-mais”. Veja que não há escapatória, qualquer que seja a menção teórica recorrida; Estado e ordem jurídica são destacados instrumentos para se buscar a justiça social.

Por todos os ângulos que analisarmos a conclu-são que se chega é que não há caminho para construção da harmonia, da paz, da liberdade, das ações solidárias e de maior igualdade social sem um sistema de normas jurídicas pactuadas pela sociedade e um Estado forte

respeitado por todos os seus membros. Isto implica, cada vez mais, sistemas de normas jurídicas integradas positivadas nos mais genuínos moldes kelsenianos. No mundo contemporâneo, conquistas sociais viraram uma espécie de positivação de direitos e, direito positivo de segurança jurídica.

Vale destacar que a ordem jurídica brasileira se-gue neste mesmo diapasão: estamos sob a égide de um enraizado modelo jus positivista nos moldes da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen - que busca isolar o sistema de normas e sua validade das questões ideoló-gicas, em uma separação estanque entre direito e moral, de onde a força coercitiva do Estado instrumentaliza o medo para tornar eficaz uma norma válida.

A melhor expressão disso pode ser verificada no chamado superprincípio constitucional pátrio que reza: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer al-guma coisa senão em virtude da Lei” (art. 5º, inciso II, da Constituição Federal (CF)/ 1988). Eis o badalado princípio da legalidade, regra motriz dos direitos e de-veres do ordenamento brasileiro, que se por um lado impõe regras de conduta a todos, por outro estabelece os parâmetros legais para uma “liberdade” pactuada na qual ao indivíduo tudo é permitido, desde que sua atitu-de não prejudique a outrem.

Veja que não há como separar a questão da justi-ça social das normas jurídicas. Diria mais: não há como corrigir os desvios individuais de conduta, asseguran-do a todos isonomia de tratamento sem que haja regras de direito claras, entendidas e aceitas por todos. Por-tanto, não há como fugir: se a justiça se expressa no tratamento isonômico entre as pessoas, na paz social e por que não dizer no bem-estar social que, para além da igualdade formal, implica maior igualdade material (maior distribuição de bens material e imaterial) entre as pessoas, é porque ela é uma resultante, não somen-te das razões subjetivas dos indivíduos possuídos por um sentimento de relações solidárias entre os humanos, mas, essencialmente, de ações coletivas, e quem orga-niza tais ações é o Estado – autorizado por um ordena-mento jurídico.

Portanto, há de se concluir que na era da posi-tivação de direitos fazer a justiça social acontecer é ampliar o Estado democrático social de direito. Positi-vando conquistas sociais e tornando a ordem jurídica a expressão dos anseios da sociedade, em um equilíbrio de forças capazes de assegurar a todos não só oportuni-dades iguais, mas a tão sonhada equidade na complexa intersubjetividade nas sociedades de massa modernas.

Page 7: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

7Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Todas as crianças e adolescentes têm direito ao esporte e ao lazer, nos termos dos artigos 217 da CF e artigos 53 a 59 do Estatuto da Criança e do Adolescen-te. Ao poder público compete assegurar esses direitos imprescindíveis ao pleno desenvolvimento sadio, digno e adequado desses indivíduos, seres humanos em pro-cesso de socialização.

Assim, o direito ao esporte e ao lazer, ao mesmo tempo em que é direito fundamental de crianças e ado-lescentes, é para o Estado um dever, que será cumprido quando asseguradas, de forma ampla e irrestrita, to-das as garantias previstas na Lei Maior e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Com efeito, dispõe o artigo 217 da Constituição Federal que:

É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como o direito de cada um, observados: II- a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos especí-ficos, para a do desporto de alto rendimento; Parágrafo 3º: o Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social. (grifei)

Assim, cabe ao Poder Público incentivar o lazer como forma de promoção social (parágrafo 3º do arti-go 217 da CF/88), inclusive com a destinação de recur-sos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional (inciso II do artigo 217 da CF).

No mesmo sentido, nos termos do artigo 59 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o poder público municipal tem o dever principal: “de estimu-lar e facilitar a destinação de recursos e espaços para as programações culturais, esportivas e de lazer volta-das para a infância e juventude” (grifos nossos).

O poder público, em especial o Município, tem o de-ver de oferecer todas as possibilidades de acesso ao esporte e ao lazer, sendo importante ressaltar que é diretriz da política de atendimento dos direitos das crianças e adolescente a Municipalização do atendi-mento (ECA, artigo 88, inciso I).

Nesse sentido, os direitos fundamentais ao espor-te e ao lazer possuem eficácia plena e imediata, sendo crianças e adolescentes credoras de prestações positivas do Estado, exigíveis na Justiça no caso de violação desse direito, quer por ação, quer por omissão.

Vê-se que o direito ao esporte e ao lazer, longe de ser norma meramente programática, que estabele-ce apenas uma recomendação aos governantes, é, de fato, direito público subjetivo, cuja violação ou ame-aça de lesão não pode ser afastada do conhecimento e apreciação do Poder Judiciário, sob pena, inclusive, de desrespeito a outro direito fundamental, qual seja o da inafastabilidade da jurisdição.

Nesse passo, em sendo o esporte direito público subjetivo, incumbe ao Judiciário o dever de satisfazê--lo quando patente a omissão dos demais Poderes, em especial do Executivo, a quem, tipicamente, incumbe a aplicação da lei de ofício, tornando-se possível, por conseguinte, o exercício pleno da jurisdição constitu-cional: a omissão dos demais poderes, no que toca à sa-tisfação de direitos fundamentais, autoriza o Judiciário a atuar de forma efetiva, visando à concretização dos ditames constitucionais, não representando infração ao princípio da separação dos Poderes, mas sim respeito absoluto e inconteste ao princípio da dignidade da pes-soa humana, consagrado no artigo 1º, inciso III, da CF na condição de fundamento da República Federativa do Brasil, que se organiza como Estado Social Democrá-tico de Direito.

Direito ao Esporte e Lazerde Crianças e Adolescentes

Defensora Pública (Empossada em Janeiro de 2013), mestre em Adolescente em Conflito com a Leina Universidade Bandeirantes - UNIBAN e professora universitaria do curso de Direito da Unisantos

Defensor Público da Infância em Santos e mestre em Adolescente em Conflito com a Lei na Universidade Bandeirantes - UNIBAN

Danielle Rinaldi Barbosa

Thiago Santos de Souza

Page 8: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

8 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Vale a pena destacar ainda que, na omissão dos demais poderes, a atuação do Judiciário não implica indevida intromissão na esfera administrativa, pois, muito embora exista discricionariedade em abstrato, estamos falando de um direito fundamental conferido às crianças e aos adolescentes, não havendo discri-cionariedade em concreto, na medida em que, uma vez vinculado à melhor solução, o administrador tem o DEVER de conceder-lhe o transporte, se necessário – somente assim, a finalidade das normas constitucio-nais e ordinárias, qual seja a de inserir e garantir toda e qualquer criança o acesso ao esporte e ao lazer, em condições dignas e justas, será de fato cumprida.

Deve o Judiciário atuar concretamente, fazen-do valer cada palavra constante não só do texto cons-titucional, como de toda e qualquer norma definidora de direitos humanos/fundamentais, interpretando a lei conforme sua finalidade abstrata, quando for o caso.

Nesse sentido, destaca-se recente decisão do Tri-bunal de Justiça paulista que determinou que o Muni-cípio de Santos concedesse vales-transportes, semanal-mente, à criança pertencente de família de baixa renda para que continuasse a praticar esporte elitizado (ginás-tica artística) em clube particular distante há mais de 10 km de sua residência.

Apelação – Ação de Obrigação de Fazer – Forneci-mento de transporte gratuito à criança – Pretensão posta como corolário lógico da garantia constitucio-nal de acesso ao esporte e ao lazer – Necessidade da Tutela Jurisdicional evidenciada – Afastamento da ex-tinção do feito sem resolução de mérito – Julgamento de Plano na forma do artigo 515, 3º do CPC – Vio-lação do Princípio da independência dos poderes não configurada – Recurso Provido – Constitui corolário lógico da garantia constitucional de acesso ao espor-te e lazer assegurados em caráter prioritário à criança e ao adolescente a obrigação de o poder público dis-ponibilizar transporte gratuito a tanto necessário en-quanto instrumental indispensável à fruição do direito fundamental em questão. (Apelação Cível 0041524-94.2.011.8.26.0000)

O vale-transporte foi considerado pelo Tribunal Paulista como inerente aos direitos fundamentais ao la-zer e ao esporte, sendo direito instrumental ao acesso da prática esportiva, por ser a criança pessoa de família hipossuficiente econômica e socialmente, ressaltando que o poder público também tem o dever de promover socialmente essas famílias por meio do esporte.

Sobre o dever do Estado de contribuir para a mi-noração das profundas desigualdades sociais e econô-micas historicamente arraigadas, afirma Henry Atique:

dentre essas ações, o incentivo e fomento a práticas espor-tivas é uma das que, efetivamente, se realizada de maneira séria e correta levará a excelentes resultados a curto, médio e longo prazo, o que faz com que cresça, cada vez mais, a importância do esporte como ferramenta de inclusão social {...} Assim, inserido no rol de direitos sociais, o desporto foi incluído entre os direitos que têm por finalidade a formação do ser humano integral e o resgate da dignidade pára todas as pessoas [...] Nesse prisma, esporte é educação, é prática pedagógica e é inclusão social. (Constituição, Minorias e In-clusão Social, editora Rideel, páginas 76/77 e 80)

E continua o supracitado autor:

Cada vez mais, cresce a importância do esporte como ferra-menta de inclusão social. Tanto é assim que no ano de 2005 foi escolhido pela ONU como o ano do Esporte para a Paz e o Desenvolvimento [...] É preciso apoio dos governos, em todos os níveis, para que políticas de inclusão social por meio do esporte tragam resultados no futuro. (p. 78)

Ainda, no mesmo contexto, Atique cita os ensi-namentos de José Maria Cagigal que afirma:

ninguém pode ignorar o caráter comunicativo, a dimensão participativa do esporte. Desta característica, nasce sua ca-pacidade associativa (sociável, socializante). Ele cria a so-ciedade, cria sua própria sociedade. (CAGIGAL, apud ATI-QUE, ano, p. 81)

Nesse contexto, o direito ao esporte e ao lazer é direito fundamental de crianças e adolescentes, sendo o seu devido atendimento imprescindível no processo de formação do indivíduo.

Toda criança e adolescente tem direito ao lazer, a praticar esportes e divertir-se. Tais atividades, muito além de proporcionarem situação de prazer ao indiví-duo, auxiliam no seu desenvolvimento físico e psicoló-gico, garantindo o natural e saudável desenvolvimento de sua personalidade1. Martha de Toledo Machado ex-plicita que o direito de brincar prende-se, em boa me-dida, “ao desenvolvimento cognitivo da criança e do adolescente, como assentado por Piaget, mas também a aspectos do desenvolvimento psicológico e social” (MACHADO, 2003, p. 195).

Veja-se, inclusive, que um dos fundamentos do direito constitucional ao não trabalho se alicerça no fato de que o indivíduo em desenvolvimento não pode ocu-par todo o seu tempo – ou grande parte dele – com ta-refas monótonas, repetitivas e desprovidas de qualquer fator útil ao seu saudável desenvolvimento.

1 Valéria Duran aponta que “Sigmund Freud hizo um desarrollo teórico explicitando la función del juego para la evolutión psíquica del niño. Es la forma em la que el niño procesa sus conflictos, los elabora, le hace a su muñeco lo que sus padres le hacen a el, lo reta, lo manda a dormir etc” (DURAN, 2010, p. 134).

Page 9: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

9Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Infância não combina com trabalho, mas sim com aprendizado. A socialização do ser humano tem sua etapa mais importante na infância, e o esporte/lazer, nesse sentido, colabora, e muito, na formação da iden-tidade pessoal e social do indivíduo.

Paulo Freire, citando o autor A. S. Neill, faz a seguinte colocação:

O “temor” pelo futuro da criança leva os adultos a privarem os filhos do direito de brincar, sem atinar que a atividade lúdica da criança e do adolescente é imprescindível à sadia formação da personalidade do homem de amanhã (FREIRE apud CURY, 2006, p. 85).

Em suma, esportes e atividades lúdicas ajudam no aprendizado e incentivam a interação de pessoas que possuem raça, cor, origem, idade e pensamentos dife-rentes. São verdadeiros direitos fundamentais, normas de eficácia plena, exigibilidade cogente e imediata. To-dos, especialmente crianças e adolescentes, tem direito a praticar esportes e ao lazer.

REFERÊNCIAS

ATIQUE, Henry. Constituição, Minorias e Inclusão So-cial.

BRASIL. Apelação Cível 0041524-94.2.011.8.26.0000.

Constituição, Minorias e Inclusão Social, Editora Ri-deel, p.76-80.

CAGIGAL, José Maria

DURAN, Valeria. In: LLOVERAS, Nora. Los derechos de lãs niñas, niños y adolescentes. Córdoba: Alveroni ediciones, 2010.

FREIRE, Paulo. In: CURY, Munir (Org.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Comentários Jurídicos e Sociais. 8ª edição. São Paulo: Malheiros, 2006.

MACHADO, Martha de Toledo. A Proteção Constitu-cional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Huma-nos. Barueri: Manole, 2003.

Page 10: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

10 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

RESUMO: O presente artigo se propõe a analisar, por meio de uma apreciação crítica, baseada em pesquisa bibliográfica, a importância da interdisciplinaridade na mediação familiar. A mediação familiar dá a oportuni-dade de um casal em processo de divórcio decidir de forma consensual e conjunta pela melhor situação para si e para os filhos após o fim do relacionamento. O pa-pel do mediador é levar as partes a refletir, dialogar e se responsabilizar pelas suas decisões. A união da Psico-logia com o Direito no processo de mediação traz uma visão mais completa acerca do problema, possibilitan-do às partes, auxiliadas pelos profissionais de ambas as áreas, chegar a uma solução favorável sob os pontos de vista psicológico e jurídico.

PALAVRAS-CHAVE: Mediação. Família. Interdisci-plinaridade

ABSTRACT: The present article aims to analyze, through a critical appraisal, based on literature, the im-portance of interdisciplinarity in family mediation. The family mediation provides the opportunity of a couple in divorce proceedings to decide by consensus and combined the best situation for themselves and their children after the relationship. The mediator’s role is to bring the parties to reflect, discuss and take responsibi-lity for their decisions. The union of Psychology and the Law in the mediation process provides a more complete picture of the problem, enabling the parties, assisted by professionals from both areas, reaching a favorable so-lution in the views of psychological and legal.

KEYWORDS: Mediation, Family, Interdisciplinarity

INTRODUÇÃO

Nas ultimas décadas houve uma mudança muito grande no conceito e organização da entidade familiar. Antes, na maioria dos casos, o que unia as pessoas ma-trimonialmente era a conveniência, principalmente a de caráter patrimonial. Hoje, prima-se pela busca da feli-

MEDIAÇÃO FAMILIAR: A IMPORTÂNCIA DA INTERDISCIPLINARIDADE NA BUSCA DA EFETIVA

RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

Defensor Público do Estado de São Paulo

Possui graduação em Direito e Psicologia. Especialização em Didática e Metodologia do Ensino Superior e Psicologia Jurídica . Professora do curso de Direito da Faculdade Anhanguera de Bauru.

Agente de Defensoria - Psicóloga - na Defensoria Pública do Estado de São Paulo

Flávio de Almeida Pontinha

Henata Mariana de Oliveira

cidade. Poucos mantêm uma união que não seja pelo objetivo de ser feliz.

Neste sentido, apesar do fim de um relaciona-mento normalmente atingir de forma severa os filhos do casal, o fato não deve condená-los à infelicidade. Pelo contrário, apesar do término do convívio, ambos os genitores continuarão desempenhando seus papéis parentais por toda a vida. Desta forma, devem os pais amenizar o máximo possível o sofrimento de seus fi-lhos, advindo da separação.

Uma das formas de amenizar o sofrimento dos filhos com o fim do relacionamento é por meio do exer-cício, principalmente de forma qualitativa, do direito de convivência com os genitores. Levar a questão da estipulação de guarda e visitas ao juiz torna-se, por ve-zes, cômodo, pois tal conduta isenta os pais de refletir e se responsabilizar pelas decisões que dizem respeito principalmente ao bem-estar da prole.

Para evitar esse comodismo e ajudar as partes a decidirem elas mesmas o futuro, surge a mediação, que é uma modalidade de acordo no qual, na presença de terceiros (geralmente mediador e comediador), as par-tes podem refletir, dialogar e decidir com total respon-sabilidade sobre o futuro de sua prole.

A mediação, como as demais formas consensuais de solução de conflitos, apresenta-se como alternativa vantajosa à solução judicial por sentença, tendo em vista que fomenta a pacificação social de modo mais eficiente, eliminando e evitando conflitos, melhorando, assim, a qualidade de vida das pessoas e diminuindo a sobrecarga de processos no Poder Judiciário.

Referidos aspectos foram reconhecidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da edi-ção da Resolução n.º 125, que “dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos con-

Page 11: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

11Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

flitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário”, prevendo métodos alternativos de solução de conflitos, entre eles a mediação.

Diante da nova orientação do CNJ e tendo em vista a mudança na família, com o consequente surgi-mento de novos modelos familiares, o Direito de Fa-mília necessita de um olhar interdisciplinar para obter melhor solução dos litígios. As questões familiares atu-ais trazem à tona a necessidade cada vez maior da par-ticipação dos profissionais psicossociais para auxiliar os juristas. É esse um dos principais aspectos em que a psicologia vem contribuir para a melhor aplicação do Direito.

Nos últimos tempos observou-se uma profunda e importante comunicação entre a psicologia e o Direito. Esse fenômeno deriva de uma necessidade cada vez crescente, de se redi-mensionar a compreensão do agir humano, à luz dos aspec-tos legais e afetivos comportamentais. (SILVA, 2003, p. 7)

Nesse diapasão, o presente artigo tem o objetivo de analisar a importância da união da Psicologia com o Direito aplicada nos casos de mediação familiar.

A MEDIAÇÃO COMO MEIO ALTERNATIVO DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS

O conflito está presente em todas as relações humanas, ocasionado por diferentes modos de pensar, diferentes interesses. O que determina o desenrolar do conflito é a capacidade de interação entre as pessoas, ou seja, a comunicação.

A dificuldade ou a falta de comunicação é hoje um dos principais obstáculos para uma salutar convi-vência em sociedade.

Sabe-se que o conflito não acarreta somente pre-juízos para as pessoas e a sociedade em geral. Depen-dendo do modo como ele se desenvolve, pode trazer também melhora nas relações de convivência social.

A mediação surge para facilitar o processo de co-municação entre as partes envolvidas em um conflito, possibilitando que, mediadas por uma terceira pessoa, consigam, elas mesmas, chegar a um acordo mutua-mente aceitável. A mediação é

um método de condução de conflitos, aplicado por um ter-ceiro, neutro, e especialmente treinado, cujo objetivo é res-tabelecer a comunicação produtiva entre as pessoas que se encontram em um impasse, ajudando-as a chegar a um acor-do. (NAZARETH, 2009, p. 21)

Reconhecido como um princípio que orienta a mediação, a autonomia da vontade das partes surge no sentido de impedir a imposição da mediação para solu-ção de conflitos, pois, não estando as partes dispostas ao diálogo, dispostas a ceder, a olhar o outro e suas mo-tivações, a mediação jamais resultará frutífera.

O Direito de família enfrenta questões comple-xas, pois, além das recentes mudanças no paradigma da família, essa área da Justiça lida com emoções, afetos e sentimentos. Nesse contexto, a mediação, quando pos-sível, aparece como a forma mais adequada à resolução das contendas familiares.

Outrossim, a variada carga de conflitos humanos (afetivos, sexuais, emocionais...) que marca, particularmente, o Di-reito de Família e, ao mesmo tempo, a proteção constitu-cional da privacidade de cada uma das pessoas envolvidas, são argumentos fortes para o uso da mediação familiar. Em determinados conflitos (como relativos à guarda e visita-ção de filhos, v.g), a mediação familiar se apresenta com resultados amplamente favoráveis às partes e ao Judiciário, uma vez que ao indicar um perito para ter contato com as partes o magistrado sairá da rigidez da ciência jurídica e considerará ‘as partes como seres em conflito, esvaziando a disputa inesgotável do perde/ganha. (FARIAS; ROSEN-VALD, 2008, p. 23)

Um acordo mediado em que os pais resolvem as contendas buscando o mútuo consentimento é mais benéfico para os filhos do que levar a questão aos tribu-nais, passando por todo desgastante processo judicial, deixando a solução para suas vidas nas mãos do Poder Judiciário.

Quando os pais resolvem as controvérsias no tribunal, a as-pereza, a amargura e a desconfiança entre eles são sempre exacerbadas pelo processo de litígio judicial. Na maioria dos casos, o ódio resultante perdura por décadas. Os filhos sofrem imensamente quando vêem seus pais brigando no tribunal, e ficam magoados com a hostilidade entre eles. Além desses benefícios emocionais para pais e filhos igual-mente, os acordos mediados são muito menos caros que as lutas judiciais. E, em geral, os acordos mediados são mais flexíveis que as soluções ditadas pelo juiz, porque podem ser alterados por mútuo consentimento, em vez de terem um encaminhamento legal. Assim, recomenda-se enfaticamente aos pais divorciados fazer esforços sinceros para resolver suas controvérsias via mediação, antes de partir para o pro-cesso judicial, altamente perturbador e litigioso. (TEYBER, 1995, p. 137)

Além disso, segundo Breitman e Porto (2001), o objetivo da mediação não é reconciliar um casal em crise, mas estabelecer uma via de comunicação que evi-te uma batalha judicial. É uma maneira de auxiliar as partes, para que possam negociar suas contendas, pen-

Page 12: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

12 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

sando sempre em seus filhos, pois mesmo com o fim do relacionamento conjugal a relação parental jamais deixará de existir.

A mediação no direito de família é essencial, pois auxilia as partes, em um momento de dor e angústia, a separar as questões materiais dos envolvimentos emo-cionais, visando desta forma proteger todos os envolvi-dos no processo. Isso, o Judiciário, por meio do proces-so judicial tradicional, não poderia atender de maneira tão individual e particularizada (LAGO, 2002).

Assumindo suas vidas e decisões, as partes po-dem se comprometer a cumprir o que foi acordado, mais do que obedecer a uma ordem imposta pelo juiz. Esse aspecto, além de não gerar revolta em alguns dos en-volvidos, notadamente os que teriam que suportar uma decisão desfavorável, também é benéfico para aqueles que obteriam a procedência de suas demandas judiciais, tendo em visa que acelera a solução da controvérsia, ao evitar todo o processo judicial, repleto de possibi-lidades de recursos e suprimir fase de cumprimento de sentença, muitas vezes ineficaz.

É inegável que a proposta trazida pela mediação de fazer as partes pensarem por si mesmas para che-garem a um acordo é muito bem-vinda. Contudo, não devemos aplicar a mediação em todos os casos, sem critérios. Cuevas (1990) afirma que “há fatores que fa-zem a mediação fracassar. Dentre eles coloca as per-sonalidades paranóicas e psicopatas e/ou separações traumáticas” (apud CASTRO, 2003, p. 29).

O diálogo, a comunicação entre as partes, é pre-missa da mediação. O mediador é apenas um facilita-dor. Portanto, casais que ainda sofrem mágoas muito exacerbadas terão extrema dificuldade em participar do processo de mediação.

Sales (2007) apresenta alguns princípios que re-gem a mediação:

Princípio da liberdade das partes: significa que as partes envolvidas no litígio devem ser livres. Não de-vem se sentir ameaçadas ou coagidas para aceitar um acordo que não julguem eficaz.

Princípio da não competitividade: deve-se buscar uma solução que seja satisfatória para ambas as partes. Não se incentiva a competição, mas a cooperação.

Princípio do poder de decisão das partes: a decisão sempre cabe às partes. O mediador apenas facilita a co-

municação, não podendo tomar qualquer decisão em nome das partes.

Princípio da participação de terceiro imparcial: o mediador não deve desenvolver suas atividades de modo a beneficiar uma das partes.

Princípio da competência: o mediador deve ser apto para desempenhar suas funções. Deve possuir, dentre outras características, a diligência, a prudência e o cuidado.

Princípio da informalidade do processo: na media-ção não há uma formalidade no sentido de procedimentos a serem rigidamente seguidos, como no processo judicial, apresentando assim diversas formas de ser conduzida.

Princípio da confidencialidade no processo: o me-diador deve guardar sigilo em relação ao que se discute na mediação.

A mediação é uma forma de evitar a solução do conflito pela sentença do Juiz, levando as próprias par-tes a serem responsáveis por suas decisões na condução de suas vidas. O mediador apenas ajuda na reflexão, na busca de alternativas, no diálogo, mas a decisão final cabe sempre às partes.

ASPECTOS JURÍDICOS DO INSTITUTO

Não temos ainda legislação para regulamentar a mediação, mas está em tramitação no Congresso Na-cional o Projeto de Lei da Mediação de n.º 4.827-B, de 1998. Referido projeto de lei, após aprovação pela Câmara dos Deputados, foi aprovado com alterações pelo Senado Federal, tendo, em razão das alterações, sido remetido novamente à Câmara, onde aguarda apre-ciação pela Comissão de Constituição, Justiça e Cida-dania. O referido projeto traz a definição de mediação: “A atividade técnica exercida por terceira pessoa, que escolhida ou aceita pelas partes interessadas, as escu-ta e orienta com o propósito de lhes permitir que, de modo consensual, previnam ou solucionem conflitos”. O projeto propõe duas formas de mediação: a mediação prévia, antes de iniciar o processo e incidental, depois de iniciado, sendo ambas facultativas (CÂMARA DOS DEPUTADOS, on-line).

Preocupado com o tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, bem como com o excessivo número de demandas colocadas ao Poder Judiciário, e interpretando o inciso XXV do

Page 13: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

13Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

art. 5º da Constituição Federal no sentido de que ele implica não somente acesso aos órgãos judiciários, mas sim acesso à ordem jurídica justa, que significaria acesso a meios adequados à solução de controvérsias, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução n.º 125, de 29 de novembro de 2010, que “dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciá-rio e dá outras providências”.

Tal norma basicamente determina que os tribu-nais de justiça instituam órgãos incumbidos de tentar solucionar consensualmente conflitos de interesses. A importância da referida resolução é ressaltada por Ka-zuo Watanabe:

A incorporação dos meios alternativos de resolução de conflitos, em especial dos consensuais, ao instrumental à disposição do Judiciário para o desempenho de sua função de dar tratamento adequado aos conflitos que ocorrem na sociedade, não somente reduziria a quantidade de senten-ças, de recursos e de execuções, como também, o que é de fundamental importância para a transformação social com mudança de mentalidade, propiciaria uma solução mais adequada aos conflitos, com a consideração das peculiari-dades e especificidades dos conflitos e das particularidades das pessoas neles envolvidas.

O princípio de acesso à justiça, inscrito no n.º XXXV do art. 5º da Constituição Federal, não assegura apenas o acesso formal aos órgãos judiciários, e, sim, um acesso qualificado que propicie aos indivíduos o acesso à ordem jurídica justa, no sentido de que cabe a todos que tenham qualquer proble-ma jurídico, não necessariamente um conflito de interesses, uma atenção por parte do Poder Público, em especial do Po-der Judiciário (...) Mas é, certamente, na solução dos confli-tos de interesses que reside a sua função primordial, e para desempenhá-la cabe-lhe organizar não apenas os serviços processuais como também, e com grande ênfase, os servi-ços de solução dos conflitos pelos mecanismos alternativos à solução adjudicada por meio de sentença, em especial dos meios consensuais, isto é, da mediação e da conciliação.

O objetivo primordial que se busca com a instituição de semelhante política pública é a solução mais adequada dos conflitos de interesses, pela participação decisiva de ambas as partes na busca do resultado que satisfaça seus interes-ses, o que preservará o relacionamento delas, propiciando a justiça coexistencial. A redução do volume de serviços do Judiciário é uma conseqüência importante desse resultado social, mas não seu escopo fundamental. (WATANABE, 2001, p. 4)

Para Ferraz (on-line), o CNJ ao lançar o progra-ma pela conciliação contribui para que a comunidade e os órgãos judiciários possam rever alguns conceitos ba-seados na ideia de que a conciliação não só traz maio-res benefícios às partes e ao próprio judiciário com a

diminuição das demandas judiciais, conforme preceitua a Constituição Federal.

Uma disputa judicial acarreta sempre um desgas-te emocional muito grande. As partes muitas vezes não têm condições de visualizar situações além daquelas que ditam o seu interesse. Veem o lado oposto como um adversário, um inimigo. A disputa judicial é finalizada com um vencedor e um perdedor. A mediação traz mu-dança de mentalidade em que o outro não é um inimigo, mas sim uma pessoa que também tem seus interesses, por meio do diálogo, as partes podem perceber o lado oposto, buscando uma solução que seja favorável, em que não haja vencedor e perdedor.

Tal mudança de mentalidade proporciona maior pacificação social, melhorando o convívio entre as pes-soas, reduzindo a litigiosidade e proporcionando solu-ções mais rápidas e eficazes para os conflitos de inte-resses.

Com o objetivo de auxiliar as pessoas a resol-verem seus conflitos, a mediação tem inspiração no Direito norteando-se pela solução justa sem ferir a le-gislação, desta forma, a revisão do que foi acordado, conforme a legislação, vem a ser uma norma ética da mediação (ALMEIDA, on-line).

A Resolução n.º 125 do CNJ é um importante marco na implementação de sistemas organizados de solução consensual dos conflitos. Trata-se de instru-mento normativo que garante o acesso das pessoas à denominada ordem jurídica justa, de forma célere, di-minuindo a demanda do Poder Judiciário, e, o que é mais relevante, proporcionando maior pacificação so-cial.

O PAPEL DO MEDIADOR: A IMPORTÂNCIA DA INTERDISCIPLINARIEDADE NAS MEDIA-ÇÕES FAMILIARES

A mediação familiar se apresenta mais benéfica do que o processo judicial, porque na mediação as par-tes têm a possibilidade de refletir e dialogar, buscando, eles mesmos, o melhor interesse para ambos e princi-palmente para seus filhos, especialmente no sentido da convivência saudável com ambos os genitores.

O divórcio de um casal traz inúmeras mudanças e consequências, principalmente para os filhos desta união. No processo de divórcio, os genitores, tomados pela raiva, mágoa e ressentimentos, muitas vezes aca-

Page 14: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

14 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

bam negligenciando o bem-estar da criança, buscando apenas seu próprio interesse, ou a mera satisfação de um desejo, consciente ou não, de vingança.

Aguilar (2008) considera que os filhos de pais em processo de divórcio precisam de proteção, pois estão sujeitos a terem direitos violados e a mediação familiar. Nesses casos, pode ajudar os filhos a serem vistos como pessoas sujeitas de direitos.

Um dos objetivos da mediação familiar é levar o ex-casal a refletir sobre a situação dos filhos e buscar a melhor medida, a solução que seja menos prejudicial ao bem-estar da prole comum.

Na mediação familiar algumas definições já se apresentam: nos casos de divórcio, a mediação geral-mente é feita com o casal. Contudo pode estender-se também ao grupo familiar. O acordo dependerá tanto da habilidade do mediador como da disposição das partes em evitar a conduta litigiosa. O mediador deve contar com ajuda de outro profissional, de outra área de atu-ação, que será supervisor ou comediador. O mediador tem como foco a relação familiar e não aspectos indi-viduais. Deve-se buscar o consenso, visando o melhor interesse dos filhos (ROSA; SPENGLER, 2009).

Um dos benefícios que a mediação familiar traz para as partes é protegê-los de expor em demasia suas vidas privadas. No Direito de Família os processos correm sem segredo de justiça. Contudo, ainda haverá testemunhas a serem ouvidas, além dos peritos, advo-gados e o promotor de justiça. Desta forma, na media-ção, busca-se proteção maior da vida dos envolvidos na contenda.

Algumas características são essenciais para quem desenvolve o papel de mediador. Segundo Sam-paio e Neto (2007), o mediador deve manter a credi-bilidade, ou seja, as partes ao eleger a mediação como meio de solução de conflito, fazem-no pela confiança na modalidade. Cabe ao mediador manter essa credibi-lidade, principalmente por meio da postura ética. Deve também, o mediador, ser competente, participando apenas dos casos relacionados com sua capacidade técnica. Diante de qualquer dificuldade, cabe a ele declinar sua atuação no processo. Outra característica muito importante para o mediador é a confidencialida-de, ou seja, deve o profissional primar pelo sigilo de todas as informações que tiver contato durante o pro-cesso. Por fim, o mediador deve ser diligente, desen-volvendo seu trabalho de maneira prudente e eficaz, buscando sempre atualizar-se.

A função do mediador além de levar as partes à reflexão é ajudá-las a se comunicar de forma precisa a fim de evitar mal-entendidos, facilitando a comunica-ção entre elas e minimizando prejuízos posteriores.

Sabemos que a emoção afeta a percepção. Desta forma, na mediação, quando trazemos as percepções de cada parte acerca do conflito podemos obter maior êxi-to na celebração de um acordo satisfatório (FIORELLI; MANGINI, 2011). Isto porque o entendimento de um dos envolvidos acerca da percepção que o outro tem so-bre o problema em pauta facilita o diálogo, eliminando a suspeita de má-fé da outra parte.

O mediador é um terceiro que, após escolhido ou aceito pelas partes intervém no conflito. Deve ser neu-tro, especialista na matéria a ser tratada, ser ético e guar-dar sigilo. Deve estar atento, neutralizando emoções. Quando estiver diante de sentimentos exacerbados, ou sequelas psicológicas ou morais, precisará primeira-mente ouvir, depois intervir no sentido de levar as partes a entender as razões um do outro. Isso tudo sem interfe-rir diretamente na questão (LAGRASTA NETO, 2000).

Na mediação, a resolução do conflito não é im-posta por um juiz ou um árbitro, mas tem as partes au-tonomia para elegerem a melhor solução para sua con-tenda.

O mediador, utilizando técnicas específicas de escuta, de análise e definição de interesses, auxilia a comunicação das partes, objetivando a flexibilização de posições rumo a opções e soluções eficazes (ZAPPA-ROLLI, 2003).

O mediador deve ser imparcial, neutro. Dife-rentemente do Juiz ou árbitro, ele não decide, apenas auxilia as partes no diálogo e apresenta sugestões hi-potéticas, na intenção de clarear as ideias, emoções e pensamentos dos envolvidos no conflito.

O mediador, portanto, não impõe uma solução para o con-flito. Seu papel consiste em promover o diálogo amigável, auxiliando as partes a encontrar um acordo que a ambas satisfaça, fomentando o surgimento de uma nova realidade, a partir da relação continuada existente entre os mediados. (SALES; VASCONCELOS, 2006, p. 72)

Além de não ser árbitro ou juiz, o mediador não é psicoterapeuta, ou seja, não faz psicoterapia, não explo-ra os conflitos intrapessoais nem os temas emocionais. Quando preciso for, encaminha-se a parte ou as partes à terapia. O mediador também não atua na mediação como advogado, não defende uma parte ou outra, mas

Page 15: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

15Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

preocupa-se com ambas, mantendo sempre a imparcia-lidade (SAMPAIO; NETO, 2007).

Na conciliação, segundo alguns autores, o conci-liador pode apresentar uma sugestão ou recomendação ao caso em tela. Ao contrário do árbitro ou conciliador, o mediador tem um papel de facilitador do processo. Ele não propõe alternativas. Apenas auxilia as partes a tomar suas decisões de forma a se responsabilizarem por elas.

Sendo o mediador puramente um facilitador do processo, não poderá expressar qualquer opinião sobre o mérito.

Para Zapparolli (2003), o ideal é que dentro do possível, o mediador saia íntegro do procedimento. Isto quer dizer que ele deve intervir o menos possível, ape-nas conduzindo, uma vez que sua visão pode acarretar a indução, ocorrendo então um resultado não satisfatório.

A mediação sempre que possível deve ser rea-lizada por dois profissionais, ou seja, um mediador e outro comediador. O ideal é que seja um profissional com formação em Psicologia ou Serviço Social e outro com formação em Direito. Desta forma, em uma visão interdisciplinar, um profissional complementa o outro no olhar acerca do conflito bem como na atuação no processo de mediação. São visões diferentes acerca da demanda, mas que por fim se complementam.

Maron e Breitmam (2005) destacam a importân-cia da mediação interdisciplinar ao afirmarem que a interdisciplinaridade é primordial não só para promo-ver a saúde mental das partes, mas também como for-ma de enriquecer o trabalho dos profissionais atuantes no sistema legal. Essa integração entre a Psicologia e o Direito possibilita que o ser humano mais bem desen-volva suas potencialidades.

O mediador que atua em mediação familiar deve ter conhecimentos de relações interpessoais, de Direi-to de Família e habilidade em negociação e manejo de conflitos. Isso se consegue com o trabalho em conjun-to do psicólogo e o profissional do Direito unindo os conhecimentos específicos de cada área às técnicas da mediação, permitindo assim um maior sucesso na apli-cação do instituto (BREITMANN; PORTO, 2011).

A mediação familiar como um meio alternativo de solução de conflitos se diferencia dos demais jus-tamente pela possibilidade da atuação multidisciplinar, ou seja, com profissionais de diferentes áreas olhando

sob diferentes enfoques para o mesmo problema, con-tribuindo assim para uma abordagem mais ampla acer-ca do conflito bem como um acordo mais satisfatório.

A mediação revela um outro modelo de prática profissional, em que a responsabilidade da decisão é dividida entre os en-volvidos no processo, e os operadores do Direito assumem uma postura menos onipotente, transformando a justiça em algo possível, humano, célere e acessível a todos. A sensibi-lização psicológica, realizada pelo psicólogo jurídico antes do litígio propriamente dito (ou, se preferível em lugar dele), contribui para o aumento das conciliações nos processos ju-diciais. (SILVA, 2003, p.48)

Vemos que a atualidade traz uma maior inter-ferência dos profissionais psicossociais nas questões familiares, pois o Direito de Família é permeado pela afetividade humana e todo o complexo de relações e situações.

Essa peculiaridade do direito de família torna imprescindível a participação de profissionais do Direi-to e da Psicologia no processo de mediação.

Utilizando-se de conhecimentos jurídicos e psi-cológicos para realizar uma mediação estaremos respei-tando a dignidade das pessoas, enxergando-as sempre como um todo e não um ser fragmentado. Desta forma, estaremos não somente buscando a resolução da ques-tão pontual colocada aos mediadores, mas alcançando a plena pacificação no seio da entidade familiar, o que, além de extremamente relevante para a qualidade de vida dos integrantes da família, se revestirá em benefí-cios para toda a sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mediação familiar oferece a oportunidade de reflexão e diálogo por parte dos envolvidos. É prefe-rível a uma lide judicial, pois evita a exposição dos problemas familiares, a morosidade de um processo judicial, reduz os custos e facilita a cooperação para o cumprimento do que foi acordado pelas próprias partes. Além disso, é mais eficaz no concernente à pacificação social.

Como um caminho alternativo para a solução de um conflito a mediação traz a oportunidade de ganho para todas as partes envolvidas.

O mediador deve ser capacitado, neutro, impar-cial, saber ouvir e conduzir as partes ao diálogo e ao entendimento colocando fim ao conflito.

Page 16: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

16 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

A interdisciplinaridade no processo de mediação é benéfica, porque possibilita diferentes visões sobre o mesmo problema e a busca da solução de forma integral.

A mediação proporciona oportunidade de comu-nicação não violenta entre as pessoas em conflito, a cul-tura de paz e o empoderamento do cidadão ao assumir a responsabilidade por suas escolhas.

O profissional do Direito tem a função de fazer o eventual acordo obedecer aos requisitos formais de elaboração e esteja em acordo com o ordenamento ju-rídico vigente.

Por seu turno, os conflitos familiares, conforme já mencionado, são permeados por sentimentos que in-terferem na busca por uma solução para contenda. Re-feridos sentimentos somente podem ser identificados por profissionais da área da Psicologia.

A consideração dos sentimentos que permeiam a mediação é imprescindível para uma solução satisfató-ria ao conflito objeto da mediação, principalmente em questões familiares, cuja solução demanda análise da complexa rede de inter-relações pessoais de parentes ou conviventes. Em outras palavras, para a pacificação das pessoas e da família, não basta apenas que se solucio-ne o problema imediatamente colocado ao mediador. É preciso trabalhar os demais aspectos envolvidos na relação entre as partes.

Assim, somente com a identificação dos aspec-tos psicológicos que afetam as partes, se poderá efetuar uma mediação satisfatória, pacificando de forma ade-quada as pessoas envolvidas no conflito.

O fim dos atritos envolvendo pessoas integrantes da mesma entidade familiar reveste-se de especial im-portância no contexto social como um todo. Isto porque os conflitos familiares afetam severamente as pessoas neles envolvidas. Além disso, levam com frequência à desintegração familiar, o que tem implicações sérias para toda a sociedade.

REFERÊNCIAS

AGUILAR, José Manuel. Síndrome de alienação pa-rental: filhos manipulados por um cônjuge para odiar o outro. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2008.

ALMEIDA T. Mediação de conflitos: um meio de prevenção e resolução de controvérsias em sintonia

com a atualidade. Disponível em: http://www.me-diare.com.br/08artigos_13mediacaodeconflitos.html. Acesso em: 08 nov. 2011.

ALMEIDA, M.R.; PELUSO, A.C. Conciliação e me-diação: estruturação da política judiciária nacional. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

BREITMAN, S.; PORTO, A.C. Mediação familiar: uma intervenção em busca da paz. Porto Alegre: Cria-ção Humana, 2001.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projetos de leis e ou-tras proposições. Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=21158. Acesso em: 05 mar.2012.

CASTRO, L.R. Disputa de guarda e visitas: no inte-resse dos pais ou dos filhos? São Paulo: Casa do Psicó-logo, 2003.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Resolução n.º 125, de 29 de novembro de 2010. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da--presidencia/323-resolucoes/12243-resolucao-no-125--de-29-de-novembro-de-2010. Acesso em: 16 ago. 2011

FARIAS, C. C.; ROSENVALD, n.º Direito das famí-lias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

FERRAZ, Taís Schilling A conciliação e sua efetivida-de na solução dos conflitos. Disponível em: portal.tjpr.jus.br/c/document_library/get_file?folderId=328895...doc. Acesso em: 01 ago. 2011.

FIORELLI, J.O.; MANGINIR, R.C.R. Psicologia jurí-dica. São Paulo: Atlas, 2011.

LAGO, C.A.V.; LAGO, A.M.R.V. Mediação no direi-to de família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

LAGRASTA NETO, Caetano. Direito de família: a fa-mília brasileira no final do século XX. São Paulo: Ma-lheiros, 2000, p. 102.

MARON; BREITMAM. O trabalho do psicólogo no campo jurídico. In: RAMIREZ e MELLO, 1 edição. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.

NAZARETH, E.R. Guia de mediação familiar: aspec-tos psicológicos. In: NAZARETH, E.R.; VILELA, S.R.; GUEDES-PINTO, A.C.R. Mediação familiar. São Paulo: Equilibrio, 2009.

Page 17: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

17Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

ROSA, Conrado Paulino da; SPENGLER, Fabria-na Marion. A mediação como Política Pública de tra-tamento dos conflitos familiares. In: RODRIGUES, Hugo Thamir; COSTA, Marli M. M. da. (Org.). Direito e Políticas Públicas III. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2009, v. III, p. 155-178.

SALES, L. M. M.; VASCONCELOS, M. C.. Media-ção familiar: um estudo histórico-social das relações de conflitos nas famílias contemporâneas. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2006.

SILVA, D. M. P. Psicologia Jurídica no Processo Ci-vil brasileiro. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

TEYBER E. Ajudando crianças a conviver com o di-vórcio. São Paulo: Nobel, 1995.

WATANABE, K. Política Pública do Poder Judici-ário Nacional para tratamento adequado dos con-flitos de interesse. In: ALMEIDA, M.R.; PELUSO, A.C. Conciliação e mediação: estruturação da po-lítica judiciária nacional. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

ZAPPAROLLI, C. R. A experiência pacificadora da mediação: uma alternativa contemporânea para a im-plementação da cidadania e da justiça. In: MUSZKAT, Malvina Ester. Mediação de conflitos: pacificando e prevenindo a violência. São Paulo: Summus, 2003.

Page 18: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

18 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

INTRODUÇÃO

Os direitos dos portadores de transtornos men-tais possuem base constitucional e são disciplinados por alguns diplomas legais, especialmente pela Lei n.º 10.216/01 e pela Lei n.º 8.069/90.

No entanto, apesar de possuírem previsão consti-tucional e infraconstitucional, tais direitos não têm sido respeitados, especialmente no âmbito da infância e ju-ventude.

Um dos pontos críticos do assunto gira em torno da questão relativa à finalidade e o momento mais opor-tuno para se requerer a realização de avaliação psiqui-átrica dos adolescentes e jovens que cumprem medida socioeducativa em meio fechado.

Em uma análise objetiva, constata-se que tal pe-dido pode e deve ser feito nos casos de adolescentes e jovens que, no curso da medida, forneçam indícios de que são portadores de doença ou deficiência mental.

Isso porque somente por meio da perícia médica o magistrado chegará a um juízo de certeza quanto à existência da patologia ou deficiência, o que possibi-litará a individualização e a adequação da medida às condições particulares de cada interno.

Contudo, o que se verifica na prática é que o pedido de avaliação não é realizado em prol dos ado-lescentes e dos jovens, consoante será explicado mais adiante.

OS DIREITOS DOS ADOLESCENTES E DOS JOVENS INFRATORES PORTADORES DE TRANSTORNOS

MENTAIS: Uma abordagem crítica sobre as avaliações psiquiátricas realizadas no âmbito das

Varas de Infância e Juventude

Defensora Pública do Estado de São Paulo

Vívian Monsef de Castro

PREVISÃO CONSTITUCIONAL E LEGAL

Com efeito, determina a Constituição da Repú-blica, em seu artigo 227, caput, que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao ado-lescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à saúde e à dignidade.

Após, o inciso II do parágrafo 1º do dispositi-vo acima mencionado coloca que o Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, mediante a criação de pro-gramas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência mental, bem como de programas de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, regu-lamentando as referidas previsões constitucionais, dis-põe, em seu artigo 7º, que a criança e o adolescente têm direito à saúde, e, no parágrafo 1º de tal artigo, assegu-ra atendimento especializado caso sejam portadores de deficiência.

No caso de adolescentes infratores, o artigo 112 do Estatuto elenca as medidas socioeducativas que podem ser aplicadas, no entanto, no seu parágrafo 3º, ressalva que os portadores de doença ou de deficiência mental deverão receber tratamento individual e espe-cializado, em local adequado às suas condições.

Tal dispositivo está em absoluta consonância com a Lei n.º 10.216/01, a qual estabelece, em seu ar-

Page 19: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

19Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

tigo 2º, parágrafo único, que são direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais:

I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, con-sentâneo às suas necessidades;

II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua re-cuperação pela inserção na família, no trabalho e na comu-nidade;

III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e explo-ração;

IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;

V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização invo-luntária;

VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;

VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;

VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios me-nos invasivos possíveis;

IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitá-rios de saúde mental.

Já o artigo 4o do diploma legal em questão pre-ceitua que a internação somente será cabível, quando os recursos extra-hospitalares mostrarem-se insuficien-tes. Seguindo a mesma linha, o parágrafo 1º, rompendo com a cultura de institucionalização do doente mental, determina que o tratamento aplicado a ele sempre visa-rá à sua reinserção social.

Além disso, o parágrafo 2º preceitua que o trata-mento em regime de internação deverá oferecer assis-tência integral e multidisciplinar à pessoa portadora de transtornos mentais, o que inclui serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, dentre outros.

Por fim, parágrafo 3º veda a internação de pa-cientes portadores de transtornos mentais em institui-ções que não assegurem aos pacientes os direitos enu-merados no parágrafo único do artigo segundo.

ANÁLISE CRÍTICA DO PEDIDO DE AVALIA-ÇÃO PSIQUIÁTRICA NO CURSO DA EXECU-ÇÃO DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

Na atualidade, tem sido comum o pedido de rea-lização de avaliação psiquiátrica em adolescentes e jo-vens que cumprem medida em meio fechado.

Todavia, consoante anteriormente mencionado, na prática, o que se verifica é que, em regra, tal pleito não tem por finalidade a apuração, com detalhes, da si-tuação de cada adolescente e de cada jovem que ingres-sa em uma das unidades da Fundação CASA, a fim de possibilitar a individualização da medida socioeducati-va a eles imposta.

Na verdade, por meio da conjugação de diversos fatores que serão abaixo elencados, chega-se à conclu-são de que o referido pedido visa tão somente a pos-tergar a progressão para medida em meio aberto ou até mesmo a evitar a sua extinção.

Em primeiro lugar, cumpre ponderar que, se o requerimento fosse realizado no intuito de garantir ao adolescente ou ao jovem o direito de receber tratamen-to especializado, ele certamente seria feito no início da execução da medida, no exato momento em que surgem indícios de que o interno é portador de algum transtor-no ou retardo mental.

Contudo, não é isso que acontece. Em muitos ca-sos, senão na maioria deles, o pedido é formulado so-mente ao final, quando dos autos já consta relatório con-clusivo, indicando a possibilidade de progressão ou até mesmo de extinção da medida inicialmente aplicada.

Ora, a realização de avaliação psiquiátrica nessa ocasião é temerária e contraria o que determina a Lei n.º 10216/01.

De fato, tal diploma legal expressamente deter-mina que o portador de transtornos mentais somente poderá ser internado em último caso, quando os recur-sos extra-hospitalares mostrarem-se insuficientes.

Isso ocorre porque a internação é o mais invasivo meio existente para se tratar uma pessoa e, dessa ma-neira, deve ficar reservado somente para os pacientes que, em razão de se encontrarem em surto, ofereçam perigo a si mesmos ou àqueles com quem convivam.

No entanto, mesmo nesse caso, a internação pre-cisa ser breve, durando apenas pelo período necessário

Page 20: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

20 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

à contenção do surto, porquanto manter o paciente ins-titucionalizado por longo período poderá ocasionar não somente uma regressão em seu quadro, mas também uma grave dependência institucional.

Diante disso, conclui-se que, se os técnicos da Fundação CASA indicam que o adolescente, mesmo “comprovadamente” portador de algum transtorno mental, já está pronto para ser reinserido no convívio social, deverá ser liberado e imediatamente encaminha-do a um centro de apoio psicossocial (CAPS), a fim de que possa continuar o tratamento de sua patologia em meio aberto.

Todavia, na prática, o que acontece é que, re-querida a avaliação, que, diga-se de passagem, demora meses até ser efetivada, aguarda-se a chegada do res-pectivo laudo e, caso ele aponte a existência de algum transtorno, o relatório conclusivo fica esvaziado, na medida em que a patologia passa a ser argumento mais do que suficiente para que se mantenha o adolescente ou jovem na Fundação CASA por mais uma temporada.

Em segundo lugar, da análise da legislação perti-nente, depreende-se que, caso se constate, por meio da avaliação, que o adolescente ostenta alguma patologia, deve ser ele imediatamente encaminhado a um estabe-lecimento de saúde mental, com o objetivo de que pos-sa usufruir de tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições, nos termos da Cons-tituição da República e de todos os diplomas legais que disciplinam a questão.

Contudo, o que se observa na prática é que, mes-mo depois de comprovada, por meio de perícia, a exis-tência de algum transtorno mental, o adolescente con-tinua na Fundação CASA, recebendo atendimento que em nada ou quase nada se diferencia daquele oferecido aos demais internos da unidade.

Em terceiro lugar, em que pese o respeito que se tem pelos profissionais que militam na área de saúde mental, é notório que os laudos elaborados no âmbito da Infância e Juventude são deficientes.

Na verdade, muitos deles consistem em reprodu-ções fiéis de um modelo e, além disso, quase sempre afirmam que o adolescente é portador de “transtorno de conduta”. Por óbvio, tal diagnóstico é demasiadamente genérico e quase nada define.

Em quarto e último lugar, é comum que a ava-liação seja realizada rapidamente pelo psiquiatra, não

raras vezes por meio de um exame superficial que dura apenas alguns minutos, fato que lança sérias dúvidas sobre a higidez do laudo produzido, uma vez que, ao menos do ponto de vista teórico, para que se faça uma avaliação completa, é imprescindível que o médico conheça, com minúcias, o histórico do paciente e que, além disso, estabeleça com ele um contato próximo e constante, já que somente assim poderá dar um diag-nóstico mais preciso e seguro.

Como se não bastasse, alguns transtornos de per-sonalidade só podem ser diagnosticados com precisão, caso o adolescente ou o jovem manifeste os seus sinto-mas pelo período de um ano. Assim, não se pode aceitar que o laudo de uma perícia que foi feita à toque de caixa seja admitido como uma verdade absoluta e, mais ain-da, que seja utilizado como argumento suficiente para indeferir pedidos de progressão ou de extinção de me-didas socioeducativas.

Diante de tantos fatores negativos, é forçoso reconhecer que o pedido de avaliação psiquiátrica, na maioria das vezes, contraria o que dispõem a Constitui-ção, a Lei n.º 10.216/01 e a Lei n.º 8.69/90, e, além dis-so, na prática, somente se presta a atrasar a caminhada do adolescente rumo à liberdade.

UNIDADE EXPERIMENTAL DE SAÚDE

Conforme já explicado, o adolescente e o jovem infrator portadores de transtornos mentais têm assegu-rado o direito de receber tratamento especializado em estabelecimento de saúde mental, nos termos dos arti-gos 2° e 4º da Lei n.º 10.216/01, e artigo 112, parágrafo 3º, da Lei n.º 8.069/90.

Todavia, o que se observa é que, mesmo depois de diagnosticada a patologia por meio do exame pe-ricial, eles continuam na Fundação CASA, recebendo praticamente o mesmo tratamento.

Somente nos casos de atos infracionais graves e que tenham gerado grande clamor social é que existe a preocupação de se transferir o jovem para um estabe-lecimento de saúde, depois determinada a sua interna-ção compulsória em processo de interdição movido em uma vara de família.

E, como se sabe, tal preocupação apenas acon-tece em razão da iminente necessidade de liberação do jovem, já que ele completará vinte e um anos ou três anos de internação, fator que, nos termos dos parágra-fos quarto e quinto do artigo 121 do ECA, leva, ne-

Page 21: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

21Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

cessariamente, à liberação compulsória ou à progressão para medida mais branda.

Ocorre que, mesmo nessas hipóteses, apesar de o jovem deixar a Fundação CASA, não é efetivado o seu direito de receber tratamento especializado digno e em local adequado.

Isso porque esses jovens são internados na Uni-dade Experimental de Saúde (UES), localizada na zona norte de São Paulo, criada em 2006 por determinação do Poder Judiciário para, em tese, oferecer atendimento especializado aos jovens com transtornos mentais que cumpriam de medida socioeducativa.

Contudo, desde a sua gênese, a Unidade andou na contramão do que determina o ECA e, especialmen-te, a Lei n.º 10.216/01, pois não disponibiliza aos in-ternos atividades pedagógicas e laborais que visem a propiciar o seu retorno ao convívio social.

Além disso, os jovens também não recebem acompanhamento psiquiátrico e psicológico. O único médico psiquiatra que atua no local é o seu diretor, o qual, justamente por integrar a parte administrativa da unidade, não atende os internos.

A segurança da unidade fica a cargo de agentes penitenciários, fato que, somado às circunstâncias aci-ma colocadas, confere ao local a feição de um verda-deiro presídio onde se cumpre pena de prisão perpétua.

Em suma, claro está que a UES não preenche os requisitos necessários para o adequado tratamento de pessoas com transtornos mentais e, por essa razão, deve ser alvo de uma intensa reforma, a fim de que possa se adequar aos padrões exigidos pela Lei n.º 10261/01.

CONCLUSÃO

Diante de todos os aspectos abordados, verifica--se que a questão das avaliações psiquiátricas, bem como do local destinado a acolher jovens cuja interna-ção compulsória tenha sido decretada, precisa ser ob-jeto de uma nova leitura, à luz do que dispõe a Lei n.º 10.216/01.

Com efeito, é chegada a hora de se efetivar os direitos dos adolescentes e dos jovens infratores porta-dores de transtorno mental, especialmente o direito de receber atendimento especializado, integral e multidis-ciplinar, pois somente dessa maneira poderão retornar ao convívio social de maneira segura e digna.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Solange. Prisão perpé-tua à brasileira. Disponível em: < http://w w w. i s t o e . c o m . b r / r e p o r t a g e n s / 1 3 5 1 1 8 _PRISAO+PERPETUA+A+BRASILEIRA>. Acesso em: 13 fev. 2012.

HASHIMOTO, Érica Akie. Unidade Experimental de Saúde. Disponível em <http://ibccrim.jusbrasil.com.br/noticias/2707362/unidade-experimental-de-saude>. Acesso em: 13 fev. 2012.

MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de Direito da Criança e do Adolescente. 4ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

Page 22: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

22 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

DO DIREITO À DEFESA AO DIREITO DE ACES-SO À JUSTIÇA: A EVOLUÇÃO DO DIREITO IN-TERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS.

O tema do acesso à justiça, inerente ao da imple-mentação das decisões e recomendações internacionais de direitos humanos, talvez seja um dos que mais se transformou na rápida evolução do Direito Internacio-nal dos Direitos Humanos e da interpretação que os ór-gãos internacionais de monitoramento vêm dando ao tema.

Observa-se a transição entre a simples previsão do direito à defesa no campo criminal, própria da fase liberal dos direitos humanos, ao estabelecimento de um verdadeiro direito humano de prestação, voltado à efetiva garantia de acesso à Justiça, como expressão de uma obrigação estatal de natureza econômica e social, cuja raiz pode ser encontrada já no preâmbulo da De-claração Universal dos Direitos Humanos2, ao afirmar a necessidade de que os direitos da pessoa sejam protegi-dos pelo “império da lei”.

Combinando jus naturalismo e positivismo (ou normativismo jurídico), a Declaração percebeu que os direitos humanos somente poderiam obter efetiva proteção caso fossem inseridos nos sistemas estatais de justiça, obedecendo à forma das leis do Estado, de modo a permitir o acesso das pessoas aos tribunais, onde pudessem fazer valer seus direitos humanos, de modo a que fossem eles realmente reconhecidos, prote-gidos e realizados.

No entanto, quando da construção da Carta In-ternacional dos Direitos Humanos, com a edição dos Pactos de 1966, a noção ampliada do direito à Justi-

2 Adotada e proclamada pela Resolução n.º 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948 e assinada pelo Brasil na mesma data.

A IMPLEMENTAÇÃO DAS DECISÕES E RECOMENDAÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS

HUMANOS EM MATÉRIA DE TORTURA: A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA

Carlos WeisMestre em Direito. Defensor Público Coordenador do

Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos

ça acabou novamente reduzida à sua vertente liberal, relacionada ao direito de defesa no processo penal, na forma do artigo 14.3.d3, do Pacto Internacional dos Di-reitos Civis e Políticos4, que o relaciona ao estabeleci-mento do due process of law e suas garantias inerentes, destinadas a proteger o indivíduo do abuso do poder estatal de privá-lo de suas liberdades.

Assim, estatuiu-se uma nova liberdade indivi-dual, a de constituir defensor, com a finalidade de se preservar outra liberdade, a de locomoção. Se o Estado pode privar a pessoa de sua liberdade, o ser humano deve ter garantidos meios e procedimentos que asse-gurem um julgamento justo, entre eles o de constituir defensor, dada a natureza técnica do processo. Vale ob-servar, no entanto, que na previsão do Pacto já estava implícito o dever estatal de fornecer os meios de defesa, direta ou indiretamente, na medida em que o Direito In-ternacional dos Direitos Humanos, voltado à proteção da dignidade do ser humano, tem no Estado o obrigado primário de respeitar e dar cumprimento aos direitos ali consagrados.

Caminhando na mesma senda, a Convenção Americana de Direitos Humanos5 estabeleceu a garan-tia judicial e irrenunciável de o acusado de crime “ser assistido por defensor proporcionado pelo Estado, re-munerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear de-fensor dentro do prazo estabelecido pela lei”6.

3 “Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, às seguintes ga-rantias mínimas: (...) a ser informada, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça assim exija, a ter um defensor designado ex officio gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo”.

4 Adotado pela Resolução n.º 2.200-A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 16.12.66 e ratificado pelo Brasil em 24.01.92.

5 Assinada em San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos Ratificada pelo Brasil em 9 de julho de 1992.

6 Artigo 8º, 2, “d”.

Page 23: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

23Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Como ressalta o texto em questão, tal garantia situa-se, ao menos, no âmbito da proteção máxima da liberdade de locomoção do indivíduo em matéria crimi-nal, sendo irrenunciável o dever estatal de prover defen-sor ao réu, como expressão do direito à ampla defesa.

Além disso, outra inovação significativa foi a re-dação da parte final do inciso 1º desse mesmo artigo 8º, ao estabelecer que

toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garan-tias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido ante-riormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus di-reitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (grifei).

Isso porque a Convenção estendeu as garantias do devido processo legal a todos os campos do direito, ampliando significativamente sua abrangência e per-mitindo que os órgãos de interpretação e proteção do tratado, a Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos, consolidassem a noção do direito de acesso à Justiça, inclusive quanto à prestação estatal de um ser-viço público e gratuito de assistência jurídica.

O primeiro desenvolvimento importante ao tema foi dado pela Corte IDH no bojo da Opinião Consulti-va n.º 11, de 10 de agosto de 19907, sobre as exceções ao esgotamento dos recursos internos, que cuidava de saber se a Comissão poderia apreciar uma denúncia for-mulada por pessoa indigente, na medida em que não tinha recursos para acessar os órgãos da Justiça de seu país.

Nesse importante parecer, a Corte começou a de-linear a obrigação de os Estados proverem um serviço de assistência legal, conectando esse direito humano ao dever estatal de respeitar e garantir os direitos huma-nos, assim como o de adotar as medidas de direito in-terno necessárias à realização dos direitos previstos no tratado, em conformidade com o que dispõe os artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana8. Disse a Corte:

7 A Corte, além da função jurisdicional, atua como órgão de consulta dos Estados in-tegrantes da OEA e alguns dos órgãos desta organização, a teor do que prevê o arti-go 64 da Convenção Americana de Direitos Humanos: “1. Os Estados membros da Organização poderão consultar a Corte sobre a interpretação desta Convenção ou de outros tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos. Também poderão consultá-la, no que lhes compete, os órgãos enumerados no capítulo X da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Bue-nos Aires. 2. A Corte, a pedido de um Estado membro da Organização, poderá emitir pareceres sobre a compatibilidade entre qualquer de suas leis internas e os mencionados instrumentos internacionais”.

8 Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos: 1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discrimi-nação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de

23. La protección de la ley la constituyen, básicamente, los recursos que ésta dispone para la protección de los derechos garantizados por la Convención, los cuales, a la luz de la obligación positiva que el artículo 1.1 contempla para los Estados de respetarlos y garantizarlos, implica, como ya lo dijo la Corte el deber de los Estados Partes de organizar todo el aparato gubernamental y, en general, todas las es-tructuras a través de las cuales se manifiesta el ejercicio del poder público, de manera tal que sean capaces de asegu-rar jurídicamente el libre y pleno ejercicio de los derechos humanos (Caso Velásquez Rodríguez, Sentencia de 29 de julio de 1988. Serie C No. 4, párr. 166; Caso Godínez Cruz, Sentencia de 20 de enero de 1989. Serie C No. 5, párr. 175).

24. Ese deber de organizar el aparato gubernamental y de crear las estructuras necesarias para la garantía de los dere-chos está relacionado, en lo que a asistencia legal se refiere, con lo dispuesto en el artículo 8 de la Convención. Este artí-culo distingue entre acusación[es] penal[es] y procedimien-tos de orden civil, laboral, fiscal o de cualquier otro carác-ter. Aun cuando ordena que toda persona tiene derecho a ser oída, con las debidas garantías... por un juez o tribunal en ambas circunstancias, estipula adicionalmente, en los casos de delitos, unas garantías mínimas. El concepto del debido proceso en casos penales incluye, entonces, por lo menos, esas garantías mínimas. Al denominarlas mínimas la Convención presume que, en circunstancias específicas, otras garantías adicionales pueden ser necesarias si se trata de un debido proceso legal.

A ideia de que o Estado-parte na Convenção Americana tem o dever de organizar o aparato gover-namental e de criar as estruturas necessárias para a ga-rantia dos direitos foi retomada, poucos anos depois, pela Opinião Consultiva n.º 18, de 17 de setembro de 2003, na qual, ao analisar a situação dos migrantes in-documentados, fixou que estes, seres humanos que são, têm o direito ao devido processo legal, o que engloba a prestação de um serviço público gratuito de defesa legal a seu favor, para que se façam valer os direitos em juízo. A respeito, pontuou o tribunal que o Estado deve garantir que o acesso à justiça seja não apenas formal, mas real.

É interessante destacar que na OC 18/03, a Corte sintetiza diversos conceitos que vinham sendo amadu-recidos em outros pareceres e mesmo em decisões con-tenciosas, como a obrigação de respeitar e garantir os direitos, a noção de devido processo legal, a violação do direito à não discriminação de grupos vulneráveis e, como resultado, o direito de acesso à Justiça, o que se vê das seguintes passagens:

qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno: Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.

Page 24: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

24 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

los Estados están obligados a adoptar medidas positivas para revertir o cambiar situaciones discriminatorias existentes en sus sociedades, en perjuicio de determinado grupo de per-sonas.

(…) los Estados deben asegurar, en su ordenamiento jurí-dico interno, que toda persona tenga acceso, sin restricción alguna, a un recurso sencillo y efectivo que la ampare en la determinación de sus derechos, independientemente de su estatus migratorio.

(…) la mencionada obligación alcanza la totalidad de los de-rechos contemplados por la convención americana y el pac-to internacional de derechos civiles y políticos, inclusive el derecho a las garantías judiciales. De ese modo, se preserva el derecho de acceso de todos a la justicia, entendido como el derecho a la tutela jurisdiccional efectiva.

(…) el debido proceso legal se refiere al conjunto de requi-sitos que deben observarse en las instancias procesales a efectos de que las personas estén en condiciones de defen-der adecuadamente sus derechos ante cualquier […] acto del Estado que pueda afectarlos. Es decir, cualquier actuación u omisión de los órganos estatales dentro de un proceso, sea administrativo sancionatorio o jurisdiccional, debe respetar el debido proceso legal.

(…) la Corte ha indicado que el elenco de garantías mínimas del debido proceso legal se aplica en la determinación de derechos y obligaciones de orden “civil, laboral, fiscal o de cualquier otro carácter”. Esto revela que el debido proceso incide sobre todos estos órdenes y no sólo sobre el penal.

(…) Se vulnera el derecho a las garantías y a la protecci-ón judicial por varios motivos: por el riesgo de la persona cuando acude a las instancias administrativas o judiciales de ser deportada, expulsada o privada de su libertad, y por la negativa de la prestación de un servicio público gratuito de defensa legal a su favor, lo cual impide que se hagan valer los derechos en juicio. Al respecto, el Estado debe garantizar que el acceso a la justicia sea no solo formal sino real. (grifei)

Indo muito além do original direito (liberal) de o indivíduo constituir defensor para a defesa penal, no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Huma-nos fixou-se a noção de que o devido processo legal exige do Estado prestações positivas, dando à luz a um verdadeiro direito de acesso à Justiça, de natureza prestamental próprio da segunda dimensão dos direitos humanos, a saber, os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Mais do que isso, a Corte avançou para delinear que tipo de prestação está sujeito o Estado para garantir efetivamente o acesso à Justiça às pessoas desprovidas de recursos, desde logo entendendo que se trata da pres-tação de um serviço público e gratuito de defesa legal,

não o mero pagamento de advogados privados em favor dos despossuídos, como resta claro no texto transcrito.

Aderindo à noção de que a assistência jurídica, prevista no artigo 8º da Convenção Americana de Di-reitos Humanos deve ser estruturada com base em um serviço público e gratuito, organizado pelo Estado, a Assembleia Geral da mesma Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou, em 7 de junho de 2011, a Resolução n.º 2656, intitulada Garantias de acesso à justiça: o papel dos defensores públicos oficiais, na qual decidiu “afirmar a importância fundamental do serviço de assistência jurídica gratuita para a promo-ção e a proteção do direito ao acesso à justiça de todas as pessoas, em especial daquelas que se encontram em situação especial de vulnerabilidade” e “que o acesso à justiça, como direito humano fundamental, é, ao mes-mo tempo, o meio que possibilita que se restabeleça o exercício dos direitos que tenham sido ignorados ou violados”9.

Bem por isso, a Assembleia Geral deliberou “Incentivar os Estados membros que ainda não dispo-nham da instituição da defensoria pública que conside-rem a possibilidade de criá-la em seus ordenamentos jurídicos” e “recomendar aos Estados membros que já disponham do serviço de assistência jurídica gratuita que adotem medidas que garantam que os defensores públicos oficiais gozem de independência e autonomia funcional”.

A DEFENSORIA PÚBLICA NO BRASIL COMO ÓRGÃO DE GARANTIA DOS DIREITOS HUMA-NOS

Como muitos países da América Latina, o Brasil atravessou um período difícil de sua história entre os anos de 1960 e 1980, em que foi governado por mem-bros das Forças Armadas, com grave comprometimen-to das liberdades civis. No entanto, superado esse mo-mento, a democracia ressurgiu em nosso país de forma vigorosa, marcada pela convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte cujos trabalhos mobilizaram muitos grupos sociais, resultando na Constituição Ci-dadã de 198810.

Uma das mais significativas inovações da nova Constituição brasileira foi a criação da Defensoria Pú-

9 Disponível em: http://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/11698/AG_RES_2656_pt.pdf. Acesso em: 14 nov. 2011.

10 Como a apelidou o Deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacio-nal Constituinte, ao declará-la promulgada, em 5 de outubro de 1988.

Page 25: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

25Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

blica, como órgão estatal encarregado da efetivação do direito à assistência jurídica, garantida a todas as pes-soas que “comprovarem insuficiência de recursos”11, avançando significativamente da mera previsão da con-cessão de assistência judiciária ou jurídica aos necessi-tados, à criação de um órgão estatal incumbido de pres-tar tal serviço, o que se assemelha ao que ocorreu no plano do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Assim, antes mesmo de a OEA, pela Corte e As-sembleia Geral, ter fixado a noção de que os Estados devem desenvolver serviços públicos e gratuitos de as-sistência legal, o Brasil cuidou de estabelecer uma ins-tituição pública com a finalidade de garantir o acesso à justiça dos mais vulneráveis, de certa maneira aprimo-rando o que já fora estabelecido em Cartas anteriores.

Assim, a Constituição brasileira de 1946 previa que “o Poder Público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados” (ar-tigo 141, § 35), enquanto que a de 1967, promulgada já sob o Regime Militar, estabelecia: “Será concedida assistência Judiciária aos necessitados, na forma da lei” (artigo 150, § 32). Por fim, em 1969, a mesma Consti-tuição foi emendada por ato da junta militar de gover-no (uma vez que o Congresso fora fechado), dando ao tema a seguinte redação: “Será concedida assistência jurídica aos necessitados, na forma da lei” (artigo 153 § 32), aqui valendo notar o emprego do adjetivo “jurí-dica”, ao invés de “judiciária”, ampliando a natureza da assistência a ser prestada, ainda que o texto não se determinasse de quem era a obrigação de fazê-lo.

Nos três casos citados, a assistência legal aos necessitados estava incluída no capítulo relativo aos direitos e garantias constitucionais, o que pode ser con-siderado um avanço para a época, embora seja impor-tante salientar que a falta de previsão do órgão público encarregado de concretizar tal direito possibilitou que, durante muitos anos, as pessoas pobres não tivessem meios efetivos de levar suas causas à Justiça.

O fato é que a criação da Defensoria Pública no Brasil só pode ser realmente compreendida como um órgão público destinado à realização dos direitos huma-nos, e não só a oferecer profissionais destinados a subs-tituir o advogado particular para atuação em casos de litígios interindividuais de baixa complexidade e sem qualquer conteúdo político.

Isso porque a própria Constituição estabelece, logo em seu início, que a República Federativa do Bra-11 Artigo 5º, inciso LXXIV.

sil tem, como um de seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana12. Logo adiante, prevê que são objetivos nacionais

construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação13.

Se assim é, tais normas devem servir como dire-trizes para o funcionamento de todas as instâncias do Estado, indicando que a formulação das políticas pú-blicas de cada um dos entes estatais deve ter como me-tas aquelas estabelecidas na Constituição, de modo que não existe opção ao administrador público senão a de promover a (re)estruturação de modo a alcançar o que a lei maior lhe ordena.

No caso da Defensoria Pública, isso é evidente e se manifesta justamente pela necessidade da cria-ção de órgãos e programas voltados à realização dos direitos humanos e ao empoderamento da população socialmente vulnerável, para o fim de que esta passe a conhecer os seus direitos e a exigir sua realização pe-los órgãos estatais, com o auxílio da Defensoria Pública sempre que necessário.

Para tanto, a Constituição andou bem ao dotar a Defensoria Pública de atributos e prerrogativas que, ao menos em tese, servem para garantir aos Defenso-res Públicos a possibilidade de atuação independente e sem que se sintam ameaçados pelos atos que pratica-rem, mesmo que contrários aos interesses e opiniões do Governo, o que se deu a partir de 2004, ocasião em que foi dada nova redação ao artigo que trata da Defensoria Pública, da seguinte forma:

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à fun-ção jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.

§ 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advo-cacia fora das atribuições institucionais. (Renumerado pela Emenda Constitucional n.º 45, de 2004)

§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas

12 Artigo 1º, III.

13 Artigo 3º.

Page 26: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

26 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.14

Como se pode ver, a inovação reside no fato de ter sido assegurada aos integrantes da Defensoria Pú-blica a inamovibilidade, ao tempo em que para às De-fensorias Públicas Estaduais asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária15.

No caso da inamovibilidade, ela indica a impos-sibilidade de remoção de um membro da instituição de um cargo a outro, contra a sua vontade, de modo a que possa atuar livremente sem ter medo de que seja afastado de suas funções por estar eventualmente inco-modando pessoas poderosas por seus atos. Da mesma forma, a inamovibilidade implica que um determinado caso não pode ser retirado arbitrariamente de um mem-bro da Instituição, o que geraria o mesmo resultado prá-tico da remoção do Defensor Público para outro cargo.

O segundo bloco de garantias para a livre atua-ção da Defensoria Pública são as autonomias funcional e administrativa da, ou seja,

o exercício de suas funções livre de ingerências de qualquer outro órgão do Estado. É predicativo institucional, tanto que se poderia falar – e às vezes se fala – em autonomia institucional, mas ela se comunica aos membros da institui-ção, porque suas atividades-fim se realizam por meio deles. Assim, eles compartilham dessa autonomia institucional, porque não tem que aceitar interferência de autoridades ou órgãos de outro Poder no exercício de suas funções institu-cionais16.

Esse ponto merece especial destaque, pois se re-laciona de maneira muito próxima com a atuação da De-fensoria Pública como órgão de realização dos direitos humanos, em especial, dos direitos econômicos, sociais e culturais, consolidados em tratados internacionais ra-tificados pelo Brasil, notadamente, o Pacto Internacio-nal de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU,

14 A redação anterior do artigo era a seguinte: “Art. 134. A Defensoria Pública é insti-tuição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV. Parágrafo único. Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Fed-eral e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exer-cício da advocacia fora das atribuições institucionais”.

15 No Brasil foram previstas Defensorias Públicas Estaduais, para atuar no âmbito de cada um dos 26 Estados da Federação, a Defensoria Pública da União, para atuar perante a Justiça Federal e a Defensoria Pública do Distrito Federal que deve atuar neste âmbito.

16SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 615.

1966) e o Protocolo de San Salvador, que complementa a Convenção Americana de Direitos Humanos da OEA.

A positivação das pretensões relativas à elabo-ração de políticas públicas de intervenção estatal con-feriu a grupos sociais a posição de sujeito de direitos, fazendo do Estado o correspondente obrigado a lhes dar cumprimento.

Verificando o campo das obrigações geradas pe-los direitos econômicos, sociais e culturais, observa Louis Henkin que a redação dos Pactos Internacionais não deve induzir o leitor a somente ver direitos no de Direitos Civis e Políticos, eis que o de Direitos Econô-micos, Sociais e Culturais, ao invés de falar dos direitos que a pessoa possui, refere-se a obrigações estatais. Em ambos os casos – e especialmente no segundo – não se trata de uma mera aspiração, pois o tratado cria uma clear and firm obligation, devendo o Estado prosseguir na implantação dos direitos econômicos, sociais e cul-turais progressivamente – isto é, sem interrupção ou retrocesso – até o limite de sua capacidade técnica e financeira17. Desta forma, as normas citadas possuem plena eficácia, pois os Estados têm a capacidade de cumpri-las – e muitas vezes o fazem – sem necessidade de coerção judicial ou, no caso preciso dos direitos hu-manos, de recurso aos organismos internacionais desti-nados ao seu monitoramento e aplicação.

A respeito, muito se avançou na interpretação que as Nações Unidas vêm dando às obrigações esta-tais em matéria de direitos econômicos, sociais e cul-turais, notadamente a partir da atividade do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, cujo Comentário Geral n.º 3 (de 14.12.1990) discorre sobre “A natureza das obrigações dos Estados-partes (artigo 2º, parágrafo 1º, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais)”.

Decorre que o Pacto é interpretado como encer-rando “obrigações de conduta” e “obrigações de resul-tado”, especialmente porque impõe várias obrigações de efeito imediato, em especial a de estabelecer as me-tas e as etapas concretas pelas quais os direitos previs-tos serão, progressivamente, alcançados.

Assim, em contraposição à noção de que a “re-alização progressiva” dos direitos econômicos, sociais e culturais afasta sua exigibilidade, a interpretação do Pacto é no sentido de que a primeira obrigação estatal é a de “adotar medidas”, isto é, planejar apropriadamente

17 The age of rights, ob. cit., p. 33.

Page 27: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

27Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

as políticas públicas tendentes à realização daqueles,18 de modo que o Comitê tem dado atenção à justiciabili-dade dos direitos econômicos, sociais e culturais, bus-cando informações dos Estados-partes quanto à introje-ção dos direitos derivados do Pacto em sua legislação interna e à existência de mecanismos judiciais capazes de ordenar seu cumprimento perante a Administração.

No plano regional americano, cumpre destacar o artigo 1º do Protocolo de San Salvador, que comple-menta a Convenção Americana de Direitos Humanos da OEA, já traz uma distinção entre direitos econômi-cos, sociais e culturais de aplicação imediata e aqueles de realização progressiva, contribuindo para o refina-mento deste universo de direitos, a fim de que se per-ceba com mais acuidade a natureza específica de cada obrigação estatal e do modo mais eficaz de se exigir seu cumprimento.

Em tal contexto, mostra-se evidente que a “orien-tação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos neces-sitados”, incumbência da Defensoria Pública segundo previsão constitucional, coloca a instituição ao lado dos grupos sociais vulneráveis para os quais o Estado tem a obrigação jurídica de dotar todos os esforços possí-veis, inclusive fazendo a Defensoria Pública interpelar os administradores públicos ou mesmo ingresse com ações judiciais para o fim de ver realizados direitos de natureza coletiva ou difusa19.

De outro lado, a defesa das liberdades individu-ais muitas vezes coloca o Defensor Público em situação de antagonismo com agentes públicos, como é o caso da segurança pública, o que retomaremos ao falar das obrigações da Defensoria Pública quanto à implemen-tação da Convenção Contra a Tortura e Outros Trata-mentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

18 É o que esclarece o item 9 do Comentário Geral: “O conceito de realização pro-gressiva constitui o reconhecimento do fato de que a realização plena de todos os di-reitos econômicos, sociais e culturais geralmente não será possível de ser alcançada em curto prazo. Neste sentido, a obrigação difere significativamente daquela contida no artigo 2º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que incorpora uma obrigação imediata de respeitar a assegurar todos os direitos relevantes. No entanto, a realização paulatina, ou ,em outras palavras, progressiva, é prevista pelo Pacto In-ternacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e não deve ser interpretada como supressora do caráter obrigatório de todo conteúdo significativo. De um lado é necessário um mecanismo de flexibilização, refletindo as realidades do mundo real e as dificuldades envolvidas por qualquer país no assecuramento da realização plena dos direitos econômicos, sociais e culturais. De outro, a frase deve ser lida à luz do objetivo geral, com certeza a raison d’être do Pacto, que é estabelecer claras obrigações para os Estados-partes com respeito à plena realização dos direitos em questão. Assim, impõe-se uma obrigação de mover-se da forma mais expedita e efetiva possível rumo àquele objetivo. Ademais, qualquer medida deliberadamente retrocessiva em tal sentido iria requerer a mais cuidadosa consideração e precisaria ser completamente justificada em referência à totalidade dos direitos estipulada pelo Pacto e no contexto do pleno uso do máximo de seus recursos disponíveis”.

19 No Brasil, os interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos podem ser exigidos judicialmente com base na chamada Ação Civil Pública, regulamentada pela Lei federal n.º 7.347, de 24 de julho de 1985, sendo que a Defensoria Pública é uma das entidades autorizadas a atuar com base nesta norma.

Em decorrência, as autonomias introduzidas pela Emenda Constitucional n.º 45, de 2004, revestem-se da natureza de garantias normativas para o exercício pleno das atribuições institucionais da Defensoria Pública e para a realização, em grau de máxima efetividade, do direito fundamental à prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, tal como previsto, pela mesma Constitui-ção, em seu artigo 5º, inciso LXXIV.

Estabelecidas essas garantias à atividade do De-fensor Público no âmbito constitucional, pode-se ver que a legislação que organizou a Defensoria Pública no Brasil também incorporou significativos avanços no sentido de vincular a Instituição à realização dos direi-tos humanos.

Assim, com a reformulação da lei orgânica da Defensoria Pública20 em 200921 foram inseridas impor-tantes alterações que redirecionaram a instituição de modo a que se tornasse, efetivamente, um órgão volta-do à defesa dos direitos humanos, ao dispor o artigo 3º, a que são objetivos da Defensoria Pública a prevalência e efetividade dos direitos humanos.

Além disso, a mesma lei passou a prever que dentre as funções institucionais da Defensoria Públi-ca se inclui “promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico” e “representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, postulando perante seus órgãos”.

E, para dar efetividade a esse comando legal, muitas Defensorias Públicas Estaduais têm criado ór-gãos internos voltados à promoção dos direitos huma-nos, geralmente denominados Núcleos, que são escritó-rios especializados no tema.

No caso da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, além do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos, existem outros sete núcleos temá-ticos, ligados infância e juventude; direitos do con-sumidor; habitação e urbanismo; situação carcerária; direitos da mulher, direitos do idoso e da pessoa com deficiência; e combate à discriminação.

Desta maneira, procura-se criar grupos de atua-ção que sejam especializados no tema e que sejam ca-pazes de utilizar o direito interno e o Direito Internacio-

20 Lei Complementar n.º 80, de 12 de janeiro de 1994.

21 Lei Complementar Federal n.º 132, de 7 de outubro de 2009.

Page 28: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

28 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

nal dos Direitos Humanos de modo a dar efetividade à dignidade humana.

O ENFRENTAMENTO DA TORTURA PELA DEFENSORIA PÚBLICA

No caso específico do enfrentamento da tortura, é necessário, primeiramente, que a Defensoria Pública compreenda que a criação de uma política institucional nesta área decorre, não só dos vínculos de que falamos no item anterior, mas da obrigação internacional esta-belecida na Convenção Contra a Tortura e Outros Tra-tamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradan-tes de “tomar medidas eficazes de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a prática de atos de tortura”.

Se a Defensoria Pública é um órgão de Estado (embora não seja um órgão ligado ao Governo), é certo que a obrigação estabelecida no artigo 2º da Convenção também gera efeitos para si, na medida em que deve se organizar internamente para prestar assistência legal especializada às vítimas (potenciais ou efetivas) de atos de tortura.

Tal obrigação igualmente decorre da obrigação geral de respeitar e cumprir os direitos humanos pre-vista no artigo 1.1 da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, que também estabelece o dever de adotar disposições de direito interno para dar efetivida-de aos direitos humanos (artigo 2º).

E, ainda, importa relembrar que a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, estabelece no arti-go 26: “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”, de modo que cabe à Defensoria Pública, observadas suas atribuições, zelar para que as pessoas tenham conhecimento de seus di-reitos relativos à sua integridade física e psíquica, as-sim como garantir meios para que aquelas possam fazer valer seu direito de não ser tratado de forma desumana.

Além de entender suas obrigações quanto aos esforços estatais para a erradicação da tortura, é im-portante destacar que a Defensoria Pública ocupa um lugar de destaque nessa atividade, justamente porque a tortura ocorre, em geral, contra as pessoas que inte-gram grupos sociais vulneráveis, aquelas que, em razão dos desenvolvimentos histórico, econômico e cultural do Brasil, foram relegados às situações de mais desi-gualdade e degradação, bastando visitar uma peniten-ciária para verificar que os que ali se encontram presos (e que certamente sofreram maus tratos e torturas), são “filhos” da discriminação e da exclusão social.

Portanto, ao se organizar pelo fim da tortura, a Defensoria Pública realiza o objetivo nacional já acima citado, de erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais.

A fim de avançar no tema, importa notar que a própria Convenção contra a Tortura indica a obrigação de dar treinamento à pessoa civil que venha a lidar com a custódia, o interrogatório ou o tratamento de qualquer pessoa submetida a qualquer forma de prisão, detenção ou reclusão (artigo 10.1), de modo que a Defensoria Pública deve promover cursos para seus integrantes so-bre o Direito Internacional dos Direitos Humanos, com ênfase na questão da tortura, seja em relação à própria Convenção, seja no que diz respeito à jurisprudência internacional e ao chamado soft law.

No caso da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, várias iniciativas têm sido adotadas nesta área, importando dizer que ela exige a disciplina “direitos humanos” em seus concursos de ingresso à carreira, em absoluta igualdade com as demais disciplinas, tais como direito penal, direito civil, etc.

Tal diretiva tem sido adotada desde o primeiro concurso e tem em vista forçar os candidatos a tomarem conhecimento do Direito Internacional dos Direitos Hu-manos, na medida em que, por incrível que ainda possa parecer, raríssimos são os cursos jurídicos brasileiros que oferecem essa matéria em seus cursos de graduação.

Malgrado o fato de os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil integrarem a ordenamento jurídico interno, por força do que dis-põem os §§ 2º e 3º do artigo 5º da Constituição, até hoje pouco se avançou no tema, de modo que se pode afirmar, sem dúvida, que o sistema de justiça brasileiro praticamente desconhece o Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Além de tal providência, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo tem buscado a realização de ativi-dades complementares de formação de seus membros, como a recente oficina de capacitação para o monito-ramento de locais de detenção, realizada em junho de 2011 em conjunto com a Associação de Prevenção à Tortura, ou a recente parceira com a International Bar Association para a edição de cinco mil exemplares do livro Protegendo os Brasileiros contra a tortura: Um manual para Juízes, Promotores, Defensores Públicos e Advogados. Está prevista a realização de seminários de capacitação no ano de 2012 para familiarizar os De-fensores Públicos com os Standards sobre a matéria.

Page 29: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

29Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Indo além do treinamento, várias outras medidas vem sendo tomadas pela Defensoria para que ela cum-pra seu dever de atuar decisivamente contra a tortura.

Assim, desde a edição da Lei n.º 12.403/2011, as comunicações de prisão em flagrante são encaminha-das, em vinte e quatro horas, para um Defensor Público. No entanto, considerando que a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos determinam que é direito da pessoa presa ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exer-cer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, o Nú-cleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos formulou minuta de projeto de lei para alterar o artigo 306 do Código de Processo Penal, de modo a que no Brasil seja criada a chamada “audiência de custódia”, já existente em muitos países do mundo. Segundo tal projeto, o preso deve ser levado à presença de um juiz no prazo máximo de vinte e quatro horas de sua deten-ção, para que seja avaliada a legalidade da privação da liberdade e as condições em que isso está ocorrendo.

Outras medidas de prevenção à tortura incluem criar um serviço de atendimento para familiares de pes-soas presas de modo a que seja possível receber notí-cias em pouco tempo e agir para evitar a tortura; visitar regularmente estabelecimentos penais; requisitar o pre-so para ser ouvido em juízo e demandar de juízes e pro-motores que apurem as denúncias de tortura, ao mesmo tempo em que não aceitem como prova as confissões obtidas em delegacias policiais.

Neste último ponto, cabe chamar a atenção para o fato de ser comum no Brasil que tais confissões sejam aceitas, mesmo quando o preso, na audiência judicial, afirma ter sofrido violência ou ameaça, especialmen-te se a “confissão” vier acompanhada do testemunho dos policiais que fizeram a prisão. Na verdade, acaba--se produzindo um sistema pelo qual é possível que os mesmos policiais que agrediram a pessoa para que ela confessasse sirvam de testemunha do crime, em substi-tuição a terceiros isentos que poderiam relatar os fatos sem qualquer interesse na condenação do réu. Trata-se de jurisprudência consolidada no Brasil e que muito impede que os métodos policiais abandonem o medie-valismo e a barbárie e caminhem no sentido de fornecer provas seguras quanto ao cometimento de crimes.

Por fim, deve a Defensoria Pública atuar em con-junto com parceiros sociais para o fim de desenvolver outras medidas de enfrentamento da tortura e realização

dos direitos humanos no Brasil, dando concretude ao papel que a Constituição de 1988 lhe reservou e cum-prindo o que dela espera a sociedade civilizada.

Page 30: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

30 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

RESUMO: O presente trabalho aborda a instrumenta-lidade do processo e traz fundamentos para a flexibili-zação das normas processuais civis, a fim de garantir a efetividade prática da tutela jurisdicional e o acesso à justiça dos hipossuficientes. Aborda, ainda, o papel da Defensoria Pública na aplicação prática do que se defende, em busca da efetividade social do processo.

PALAVRAS-CHAVE: Efetividade Social. Flexibili-zação. Hipossuficiência. Acesso à justiça e Defensoria Pública.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa trazer à discussão posi-ção que relativiza o peso que se vem dando às normas processuais, principalmente as relativas ao procedi-mento, em benefício da efetividade social do processo.

Para tanto, tentar-se-á dar uma definição ao que se pretende como efetividade social do processo, bem como quais os argumentos utilizados para se conferir relatividade às normas de procedimento, principalmen-te analisando-se a hipossuficiência da parte interessada e do acesso à justiça.

A abordagem do tema passa pela análise do pa-pel constitucional e social da Defensoria Pública, ins-tituição criada neste Estado em 2006 e que tem como missão constitucional a prestação de assistência jurídi-ca integral e gratuita aos necessitados.

Tentar-se-á apresentar, ainda, a ausência de preju-ízo na adaptação de certas normas de procedimento para os casos em que são partes pessoas com dificuldade de

EM BUSCA DA EFETIVIDADE SOCIAL DO PROCESSO: a necessária relativização das

normas processuais sob o viés da hipossuficiência e do acesso à justiça e o papel da Defensoria Pública

Laís Rabello ZarosDefensora Pública do Estado de São Paulo, especialista em

Direito Processual Civil e Mestranda em Direito Civil.

obtenção de documentos formais e, com isso, atenção irrestrita aos procedimentos legais, muitas vezes desar-razoados. Acentuar-se-á o papel da Defensoria Pública no reconhecimento da possibilidade da defendida flexi-bilização das normas e a ausência de violação ao devido processo legal e à segurança jurídica com tal proceder.

O tema tem curial importância principalmente no âmbito de atuação da Defensoria Pública, uma vez que diariamente atua-se em favor de pessoas que, por se encontrarem à margem da sociedade, não conseguem obter o substrato formal necessário para todos os pas-sos dos procedimentos, muitas vezes burocráticos, do processo civil.

A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO E SUA FUNÇÃO ATUAL

A ideia de processo, bem como sua conceitua-ção, vem sofrendo modificações ao longo do tempo, conforme a evolução da sociedade.

Primeiramente vigorava o entendimento absolu-tamente sincretista, pelo qual não havia diferenciação entre o processo e o direito material envolvido. Pos-teriormente, com a evolução da ciência processual, passou-se a considerar existente o processo de forma autônoma do direito material.

A postura autonomista vigorou por longo perío-do, com os estudiosos debruçando-se sobre temas ex-clusivos do processo, buscando diferenciá-los ao má-ximo dos temas de direito material de forma a conferir suficiente autonomia. Tal postura teve como causa e, ao final, consequência, a afirmação sem questionamentos do direito processual como ciência autônoma, dando seriedade e existência própria às suas regras.

Page 31: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

31Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Contudo, a autonomia cega acabou por gerar dis-torções que acabaram por gerar a necessidade de sua reavaliação, chegando-se ao terceiro momento do direi-to processual: o reconhecimento de sua instrumentali-dade. Ainda que não se negue que a ciência processual é autônoma em relação ao direito material, possuindo institutos e regramento próprios, não se pode deixar de considerar que ela tem como finalidade precípua a rea-lização do direito material.

Assim, não se justifica conferir-lhe absoluto ca-ráter autonomista, afastando-a completamente das re-gras de direito material. Há que se lhe conferir a ins-trumentalidade necessária: o processo é instrumento de realização do direito material e como tal deve ser visto.

O interessante a se apontar é que tais noções de instrumentalidade, que geraram a inexorável conclusão de que a flexibilização das normas processuais não só é possível como recomendável, nasceu e se desenvolveu ainda antes do advento da atual Constituição Federal, na década de 1980.

A década foi pródiga em gestar doutrinadores e juristas que apoiavam a visão instrumentalista e a me-nor formalidade do processo civil, de modo a aproxi-má-lo dos anseios da sociedade.

Contudo, a prática e uma breve pesquisa nas dé-cadas que se seguiram nos mostram que os conceitos da instrumentalidade, apesar de ainda encontrarem eco em alguns pensadores, não reverberaram por completo na sociedade, que ainda se apega a formalismos e os asso-cia de maneira indissolúvel às garantias tão duramente conquistadas.

Aparentemente, a ditadura militar, com seus atos arbitrários e violadores de garantias, resultou na criação da ditadura das normas rígidas, que são necessariamen-te associadas à observância dos direitos fundamentais.

Com a entrada em vigor da Constituição cidadã, em 1988, passou-se a defender com veemência a ideia de que a tutela jurisdicional só será efetiva e consentâ-nea com as normas vigentes se elas forem totalmente previstas e o processo absolutamente formal, sem espa-ço para manejos dos seus sujeitos e do julgador. A ideia de flexibilização das normas é vinculada com a ideia de arbitrariedade, sendo, portanto, inadmissível.

O que se vê, porém, é que o apego excessivo ao formalismo é o que, na prática, impede o acesso à jus-tiça e dá condições para a manutenção da desigualdade

social e jurídica em nosso país. Sob o argumento de respeito absoluto ao devido processo legal impede-se o acesso material à justiça, impedindo que o processo produza o seu tão buscado resultado socialmente efe-tivo.

ANÁLISE DOS ESCOPOS DO PROCESSO

O estudo do direito processual deve sempre ter como mote a análise dos seus escopos. Somente faz sentido estudar de forma autônoma as regras processu-ais tendo-se em vista suas finalidades perante a socieda-de, uma vez que o processo não é um fim em si mesmo, mas meio de realização do direito material. Assim, “a forma do ato serve como meio para a consecução de seu escopo; as regras que dispõem sobre a forma dos atos processuais não têm um fim em si mesmas”22.

Como se viu, hoje se concebe a ideia do processo não mais como um fim em si mesmo, mas como instru-mento a serviço do direito material. Nessa medida, o processo é instrumento a serviço da paz social23.

A instrumentalidade tem, para a doutrina, dois aspectos: um positivo e um negativo.

Pelo viés positivo significa dizer que o processo tem escopos, ou seja, finalidades que a sociedade per-segue e que devem ser cumpridas – sociais, políticas e jurídicas. Nessa medida, processo como instrumento da vontade social é processo efetivo, que cumpre com a sua finalidade social (pacificação), política (partici-pação) e jurídica (aplicação da lei ao caso concreto). Esses são os objetivos a atingir do processo, como ca-minho à ordem jurídica justa.

De outra parte, o aspecto negativo da instrumen-talidade leva à visão do processo não como um fim em si mesmo, com regras e princípios destinados para sua aplicação endoprocessual apenas, mas um instrumento dos desígnios do direito material. Nessa medida surge a visão, a seguir aprofundada, da instrumentalidade das formas, pela qual se conclui que não faz sentido, em um sistema instrumental, a existência de regras formais de procedimento que não tragam em si consequências e justificativas no direito material. Sendo instrumento, o processo não deve conter regras dissonantes com o direito material ou não tendentes a atender aos seus es-

22 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Nulidade processual e instrumentalidade do processo (a não intervenção do Ministério Público e a nulidade do processo. Justitia, São Paulo, n° 52 (150), abr/jun 1990, p. 56.

23 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 25ª Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2009, p. 47.

Page 32: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

32 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

copos, sendo qualquer formalidade nesse sentido des-necessária, inútil e extirpável do sistema.

Assim, o que se vê hoje, ao menos dentre os dou-trinadores e estudiosos do direito processual (já que ainda há infundada resistência na aplicação prática do que ora se estuda e apresenta), é que a maior sensibili-dade do processo civil aos influxos privatistas, fruto da própria relação de instrumentalidade ao direito privado, é neutralizada e a tendência, hoje, é a tomada de cons-ciência para os objetivos estatais a serem realizados através dele”24.

É necessário, nesse caminho, abandonar a visão absolutamente privatista ainda reinante, na qual o juiz intervém o mínimo possível (negando-se até mesmo a aplicar as normas já flexibilizadoras do procedimento e que visam à efetividade prática e social, como as que trazem os poderes instrutórios do juiz – art. 130 do Có-digo de Processo Civil), mas também não se aproximar perigosamente dos procedimentos inquisitórios e auto-ritários de outrora.

Nessa medida, narra a doutrina que a superva-lorização do procedimento, à moda tradicional e sem destaques para a relação jurídica processual e para o contraditório, constitui postura metodológica favorável a uma cegueira ética que não condiz com as fecundas descobertas da ciência processual nas últimas déca-das25. Seria preciso que se criasse, dentre os operadores do direito e, principalmente, dos juízes, um novo “mé-todo de pensamento”, rompendo definitivamente com as velhas posturas introspectivas do sistema e abrindo os olhos para a realidade da vida que passa fora do pro-cesso.

Dessa forma, caminha o processo civil para con-siderar que a sua importância está em seus resultados. As palavras-chave para a solução das controvérsias postas em juízo seriam segurança, celeridade e efeti-vidade.

ACESSO À JUSTIÇA

O acesso à justiça vem sendo objeto de estudo de juristas há tempos, mas foi com o Projeto Florença, em meados de 1970, que ganhou corpo a sua discussão, principalmente com a publicação da obra Acesso à Jus-tiça, de Mauro Cappelleti e Briant Garth.

24 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2009, p. 61.

25 DINAMARCO, Cândido Rangel, Op. cit., p. 267.

O estudo em questão, que se baseou na análise de dados de diversos países à época, acabou por concluir que existiam diversos fatores tidos como obstáculos ao acesso à justiça e apontou o que se chamou de “ondas renovatórias”, para viabilizar a ultrapassagem de tais obstáculos e o acesso pleno das pessoas ao que se con-vencionou chamar de justiça.

Observou-se, ainda, que os estudos tendentes a analisar o modo de acesso à justiça eram indiferentes às realidades práticas existentes, como as diferenças en-tre os litigantes no sentido de acesso prático ao sistema judiciário ou em recursos para enfrentar as demandas judiciais.

Os obstáculos apontados, bem como as possíveis soluções, foram os seguintes: as custas judiciais, sen-do que se elegeu a assistência judiciária para os pobres como meio para superá-la; a dificuldade organizacional para o acesso aos direitos, sendo que a tutela coleti-va foi vislumbrada como solução para esse problema, propiciando representação para os interesses difusos e individuais homogêneos (tratamento coletivo para di-reitos antes apenas defensáveis de maneira individual); e uma terceira onda engloba uma visão geral da dificul-dade de acesso à justiça, sendo que a solução apontada seria a flexibilização dos procedimentos e a adoção de novas formas de discussão dos litígios, como os meios alternativos de resolução de conflitos.

Tendo em vista que a assistência jurídica aos po-bres já é, de certa forma, desenvolvida no país (ainda que a Defensoria Pública, órgão estatal encarregado de prestar tal serviço, não esteja suficientemente dotada de profissionais e estrutura adequada para a relevante função, ao menos na maioria das cidades brasileiras), o que interessa para o enfoque dado a este trabalho é a terceira onda renovatória, no que tange à adoção de procedimentos mais simplificados.

Durante tal estudo verificou-se que o acesso à justiça vinha sendo analisado apenas sob o viés for-mal, ou seja, considerando-se que se as leis garantiam o acesso igualitário aos mecanismos de justiça, então estariam assegurados os direitos previstos no ordena-mento a todas as pessoas.

Contudo, como se sabe, na prática isto não é o que ocorre, havendo desigualdades no plano material que repercutem na esfera processual e impedem que o acesso à ordem jurídica justa seja efetivo. Assim, sabe--se hoje que não basta que se garanta o serviço de assis-tência para que a parte representada seja efetivamente

Page 33: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

33Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

protegida, é preciso que as diferenças sejam considera-das e sirvam como mote para a adaptação dos procedi-mentos a esta realidade fática.

A preocupação fundamental passa a ser, cada vez mais, com a justiça social, com a busca de procedimen-tos que conduzam à proteção dos direitos dessas pesso-as comuns – hipossuficientes jurídicos.

Assim, um sistema destinado a servir às pessoas comuns, tanto como autores, quanto como réus, deve ser caracterizado pelos baixos custos, informalidade e rapidez, por julgadores ativos e pela utilização de co-nhecimentos técnicos, bem como jurídicos26.

A reforma no pensar o direito deveria passar por quatro fases distintas: a promoção da acessibilidade ge-ral ao sistema (o que se pode obter com a assistência jurídica gratuita estruturada e adequada); a tentativa de igualar as partes dentro do processo, com acesso às mesmas formas de garantir a efetividade de seus direi-tos (também com Defensorias Públicas estruturadas, com profissionais concursados e com estrutura para acesso ao melhor do Direito podem-se minimizar essas diferenças processuais); alteração no estilo de tomada de decisão (o chamado ativismo judicial ou gerencia-mento dos processos, com postura mais ativa do juiz e adoção de poderes instrutórios); a simplificação do direito aplicado.

A simplificação dos procedimentos, com espaço para a tomada de decisões mais com base na equidade do que propriamente com a aplicação cega da letra da lei, seria uma forma de facilitação do acesso aos hipos-suficientes.

Isso porque a obtenção dos elementos materiais sobre os quais se fundamenta o processo e se debru-ça o juiz quando da tomada de decisão nem sempre é simples, e não há medidas processuais expressamente previstas, hoje, aptas a minorar esta dificuldade.

Nesse aspecto os juizados de pequenas causas, ou juizados especiais na justiça brasileira, podem ser considerados um grande avanço, pois permitem a pro-dução de provas mais simplificada e a tomada de deci-sões com base na equidade, nas impressões que o julga-dor colheu no decorrer do processo.

O ativismo judicial, nessa medida, com a apro-ximação do juiz do processo, colhendo as provas ne-

26 CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Briant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio An-tonio Fabris Editor, 2002, p. 94.

cessárias e dirigindo o feito para a tomada de decisões mais consentâneas com a situação de direito e com a realidade das partes, aplicando formas alternativas de análise de prova, como ônus diferenciado e aplicação do sistema de carga dinâmica da prova, bem como com a utilização de formas de tomada de decisão não necessariamente subsumidas à lei, tende a minimizar o abismo existente entre o acesso formal à justiça e a socialmente efetiva tutela jurisdicional.

Com relação à carga dinâmica da prova, cabe sa-lientar que ela se consubstancia na flexibilização das regras de ônus da prova, já admitida pela doutrina e jurisprudência27, para atribuir o encargo a quem reúne melhores condições de trazer aos autos o objeto da pro-va, o que vai ao encontro do que ora se defende.

Caberia ao juiz distribuir o ônus dessa forma sempre que se deparasse com desequilíbrio na produ-ção de provas, quando uma das partes detém maiores condições de proceder à instrução necessária. A desi-gualdade processual pode decorrer de diversos fatores, mas se imagina que dentre eles o principal é o aspecto financeiro – quem tem menos recursos para a sua vida em geral certamente detém menos possibilidades de produzir provas de maneira eficiente28.

Essa visão, de adaptação de sistema e facilitação de acesso, considerando-se as necessidades das par-tes em litígio, foi levada em consideração quando da edição do Código de Defesa do Consumidor. À época, eram comuns decisões desfavoráveis aos consumidores pela falta de acesso aos meios de prova e pela hipossufi-ciência em relação aos fornecedores, o que gerava inú-meras injustiças, favorecendo o polo mais forte, com mais condições de litigar na plenitude do termo.

Da análise e discussão de tais injustiças práticas, nasceu a norma consumerista que temos hoje, avançada e atenta para as diferenças materiais entre consumidor, o polo fraco, e fornecedor, o polo forte. As adaptações do sistema vão desde o reconhecimento da nulidade de contratos firmados entre estas partes, abusivos por se-rem impostos pelo polo forte ao polo fraco, passando pela flexibilização das normas de competência, inver-são do ônus da prova, dentre outras.27 “Consumidor – relação de consumo identificada pela destinação final do produto – Inversão dos ônus – Perícia requerida pela requerente agravada – Aplicação da regra do art. 333 do Código de Processo Civil – Aplicação da teoria da carga dinâmica da prova – A teoria baseia-se na idéia de que se pode incumbir a carga probatória a quem, pelas circunstâncias do caso e sem interessar se é autor ou réu na ação, se encontre EME melhor condição para produzi-la – Responsabilidade da requerente agravada pelo custo da perícia – Recurso provido em parte” (TJSP – Agravo de Instrumento 6207304700 SP – j. em 17-02-2009 – Relator Beretta da Silva).

28 CAMARGO, Marcelo Novelino. A distribuição do ônus da prova na perspectiva dos direitos fundamentais. Leituras complementares de direito constitucional: direitos fundamentais. Salvador: Editora JusPodivm, 2006.

Page 34: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

34 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Por conta das notáveis diferenças de direito ma-terial e de organização entre os litigantes, pareceu claro à comunidade que as normas específicas, longe de gerar desigualdades processuais, eram capazes de garantir o acesso efetivo à justiça e à tutela adequada dos direitos dessas partes hipossuficientes.

É exatamente esse pensamento que pretendemos transpor para os demais litígios de processo civil, inclu-sive na área do direito de família.

Não há como negar que existem casos específicos em que as pessoas, por serem pobres e com dificuldade de acesso a todos os serviços, se encontram em situa-ção de desigualdade material em relação ao outro polo. As dificuldades apontadas vão desde a consciência da existência de seus direitos até o acesso aos elementos capazes de garantir que os seus direitos sejam obser-vados em juízo, culminando em uma decisão que falha em analisar esses pormenores da relação. Tal proceder é socialmente ineficaz e a sentença proferida nessas con-dições tem grandes chances de não ser cumprida ou não cumprida a contento pelas partes envolvidas.

Repisa-se a necessidade atual de analisar o pro-cesso não apenas como meio formal de acesso à justiça, mas como modo de acesso à ordem jurídica justa, con-substanciada no modo adaptável do procedimento de acordo com as particularidades do caso concreto.

Mostra-se imprescindível, para tanto, a abertura da mente dos operadores do direito, propiciando aos li-tigantes um processo sem óbices econômicos e sociais ao pleno acesso à justiça29.

FLEXIBILIZAÇÃO DAS NORMAS PROCEDIMENTAIS E A SEGURANÇA PELO CONTRADITÓRIO EFETIVO

As regras que trazem nulidades processuais já há tempos vêm sendo objeto de flexibilização e aplica-ção irrestrita da teoria do prejuízo. É nesse campo que floresceram as ideias de instrumentalidade com maior força, de modo que hoje se admite sem questionamen-tos que somente se reconheça uma nulidade, ainda que absoluta, se dela decorrer prejuízo para quem alega.

É a aplicação do princípio da instrumentalidade das formas na acepção do termo, somente se anulando ou considerando nulos atos praticados se houver efeti-vo prejuízo e, ainda, se não se puder aproveitar o pro-cesso em favor de quem a nulidade aproveita.

29 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p. 50.

As normas processuais que regulamentam a nuli-dade no Código de Processo Civil já trazem disposições expressas a respeito da instrumentalidade nessa seara:

Art. 243. Quando a lei prescrever determinada forma, sob pena de nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa.

Art. 244. Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.

Dessa forma, pode-se admitir que o próprio direi-to processual já prevê a adoção da visão instrumentalis-ta, considerando válido o ato se atingido o seu escopo.

Dentro do sistema, toda vez que um ato seja praticado sem observância do modelo legal, mas sem que haja prejuízo para quem quer que seja e tendo o ato atingido a sua finalidade, a nulidade não deve ser declarada. Isso porque se entende que as normas que previram as nulidades não são garantias em si mesmas.

Nesta esteira, se o resultado útil foi observado, cumprindo-se os escopos do processo e conferindo--se efetividade à tutela, não se justifica a declaração de qualquer nulidade, pois a finalidade do processo foi cumprida.

Existem, ainda, outros exemplos no ordenamen-to em que se consideram as desigualdades naturais da parte para a previsão específica de normas diferencia-das. São os casos, já mencionados, do Código de Defe-sa do Consumidor e da Lei dos Juizados Especiais.

Discute-se, ainda, na atualidade, a aplicação das regras de ônus da prova (já se mencionou a carga dinâ-mica) e a adoção dos poderes instrutórios do juiz.

Como já anotado, o art. 130 do Código Civil pre-vê a possibilidade de o juiz exercer atividade instrutó-ria, sempre que entender necessário para chegar à ver-dade real e tomar a decisão mais próxima da verdade real e consentânea com a realidade das partes, de modo a se tornar a mais efetiva possível no caso concreto.

Porém, como se sabe, a norma encontra grande resistência na aplicação prática por parte dos magistra-dos e, da mesma forma, por parte da doutrina pátria, sob o fundamento de ser perigosa ameaça à imparciali-dade, gerar o atraso no deslinde da demanda e violar a regra que determina a iniciativa das partes no andamen-to do processo, principalmente no que diz respeito aos direitos disponíveis.

Page 35: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

35Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Contudo, os doutrinadores que se debruçaram a sério como tema, tendo como mote os princípios e diretrizes analisados no presente trabalho, acabam por concluir que a aplicação dos poderes instrutórios do juiz somente vem a reafirmar o caráter instrumental do processo e sua finalidade de obter a paz social.

Justifica-se na apuração da verdade real e na ob-tenção do resultado útil do processo a iniciativa pro-batória oficial. Quanto melhores os fatos estiverem representados nos autos, maior a probabilidade de um provimento justo, que expresse perfeitamente a regra jurídica do caso concreto. Somente um resultado como esse possibilitaria a verdadeira paz social.

Compete ao juiz manter o equilíbrio necessário ao bom funcionamento da relação processual, uma vez que as partes defendem suas pretensões mediante ação e defesa. Se ele verifica que, por qualquer motivo, pro-vas importantes, necessárias ao esclarecimento dos fa-tos, não foram apresentadas, deve, de ofício, determinar sua produção.

Dessa forma, a não intervenção jurisdicional sob o argumento de garantir a imparcialidade e a isonomia leva, na verdade, justamente a situações de desigualda-de prática. Sabe-se que a realidade dos fatos, principal-mente em um país desigual como o nosso, com grande parte da população carente de educação e recursos e extremamente dependente dos serviços estatais de as-sistência para o alcance de seus direitos, acaba por per-mitir que receba o provimento jurisdicional aquele que melhor teve acesso às formas de representação proces-sual dos seus direitos.

Assim, a cada dia aumenta o número de defenso-res da ideia de que somente um comportamento ativo do juiz possibilita a igualdade real entre as partes seja res-peitada. A utilização dos poderes instrutórios seria, en-tão, poderoso instrumento que o magistrado tem em suas mãos e que lhe possibilita corrigir ou, ao menos, ame-nizar as desigualdades presentes na relação processual.

De outra parte, o contraditório efetivo e equilibra-do exige que os litigantes combatam com paridade de armas. Contudo, a eventual omissão da parte pode de-correr exatamente da inexistência de uma paridade real. Não basta, portanto, a mera oferta de oportunidade, sen-do preciso garantir também o aproveitamento delas por todos, independentemente das desigualdades econômi-cas ou sociais. Indisponível ou não o direito, deve o juiz participar ativamente da instrução, pois somente assim garantirá um contraditório efetivamente equilibrado.

E, segundo a lição de Bedaque, não se pode es-quecer que a visão do processo evoluiu: hoje, pensa-se mais em justiça e menos em técnica ou ciência proces-sual, de modo que nenhum valor é absoluto30.

Assim, não obstante ainda ser exigível a indubi-tável imparcialidade, não pode ser ela alçada a caráter absoluto em detrimento da visão publicista do processo, que se compromete com a ordem pública e com os seus escopos, dando-se peso excessivo à inércia judicial. Ademais, pode-se considerar, com razoável segurança, que a formação do juiz, bem como a existência de me-canismos externos e internos para coibir os excessos, pode colocá-lo a salvo de interferências indevidas no decorrer do processo, de modo que não se presume o seu comprometimento com a adoção de posição mais ativa e gerencial31.

Não se pode impedir a mais alargada atuação ju-dicial com receio de deslizes comprometedores. A ex-ceção deve ser assim tratada, já existindo no sistema meios suficientes de coerção e punição para atitudes de favorecimento. A legitimação pelo procedimento, com a observância irrestrita do princípio do contraditório e a garantia mínima dos princípios constitucionais que conferem segurança aos litigantes, propiciam o campo necessário para a salutar adoção de uma posição mais ativa do julgador.

Nesse sentido, há necessidade de o juiz aplicar a técnica processual de modo a atender aos objetivos do processo, competindo-lhe até mesmo flexibilizá-la, desconsiderando formas inúteis e incompatíveis com a natureza instrumental desse método de trabalho32.

Sabe-se que a absoluta falta de regramento a res-peito da ordem do procedimento e das regras processuais gera insegurança jurídica e remete as partes ao arbítrio estatal, tão temido e evitado. Contudo, o apego desen-freado ao formalismo gera, na mesma medida, impossi-bilidade de cumprimento dos escopos processuais, com ausência de efetividade e negação do acesso à justiça. Assim, a doutrina se manifesta no sentido de que

a liberalização das formas, dentro de limites razoáveis, e o aumento do poder do magistrado na avaliação dos objetivos do ato, assegurando às partes, sempre, a efetividade do con-

30 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutóri-os do juiz. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2001. (As ideias defendidas nestes parágrafos têm por base tal obra.)31 DINAMARCO, Cândido Rangel, Op. cit., p. 194/195.

32 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: influência do Direito Material sobre o processo. Ed. Malheiros: São Paulo. 5ª Edição, 2009, p. 61.

Page 36: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

36 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

traditório, constituem o caminho mais idôneo para se ade-quar as regras procedimentais à postura instrumentalista da moderna doutrina processual33.

Trata-se da aplicação do princípio da elasticida-de processual, ou da adaptabilidade do procedimento às necessidades da causa, desenvolvido pelos modernos processualistas e que tem como finalidade exatamente destruir o apego exagerado às formas desnecessárias e permitir que se adapte o procedimento – sob a condu-ção ativista do juiz – de modo a propiciar a maior efeti-vidade e observância dos escopos processuais.

Não se admite mais o procedimento único, rígido, sem pos-sibilidade de adequação às exigências do caso concreto. Muitas vezes a maior ou menor complexidade do litígio exi-ge sejam tomadas providências diferentes, a fim de se obter o resultado do processo34.

Há quem sustente, com base nos conceitos aqui trazidos, que poderia o juiz, por exemplo, proferir pro-vimento de mérito mesmo se ausente um pressuposto processual. A conclusão se fundamenta no fato de que os pressupostos processuais, longe de serem fins em si mesmos, têm como função salvaguardar os interesses das partes no processo – são formas pré-concebidas de se evitar prejuízo. Contudo, por essa mesma razão, se não se vislumbrar prejuízo prático para a parte a quem beneficia a declaração da ausência de pressuposto, não se deve reconhecê-lo, dando plena efetividade e instru-mentalidade ao processo como meio de buscar o resul-tado previsto pelo direito material35.

Deve-se ter sempre em mente a noção do que se pretende hoje como atividade do magistrado: sempre com visão voltada ao instrumental, social e efetivo, mas não totalitária e geradora de insegurança e violação de garantias. É preciso um meio termo, flexibilizando-se as regras que, na prática, impedem o acesso amplo à justiça no caso concreto, com maior ativismo judicial e atividade instrutória, igualando as partes e proferindo decisão socialmente adequada e geradora de paz.

Com tal atitude ativista e atenta à realidade do processo, espera-se, ainda, maior utilização de meios alternativos de solução de controvérsias, inclusive du-rante o procedimento (já existe previsão legal, não utili-zada na prática, no sentido de que ao magistrado caberá sempre a tentativa de conciliar as partes, em qualquer fase do procedimento – art. 125, IV, do Código de Pro-cesso Civil).

33 BEDAQUE, José Roberto dos Santos, op.cit., 2009, p. 59.

34 BEDAQUE, José Roberto dos Santos, op.cit., 2009, p. 69.

35 BEDAQUE, José Roberto dos Santos, op. cit., 2009, p.72.

Tais formas de resolução de conflitos, apesar de ainda encontrarem, também, resistência na população e nos operadores do direito, são capazes de trazer solu-ção mais consentânea com a vontade das partes, porque produzida com a sua participação, e mais pacificadora do que uma decisão judicial adjudicada.

Não se está aqui a dizer que a forma sempre pre-judica o ato e que o processo deve se desenrolar sem nenhum apego às formas pré-existentes ou ao procedi-mento. Isso tornaria o processo uma fonte inesgotável de insegurança jurídica e faltaria razoabilidade na sua duração.

O procedimento, em si, visa garantir a segurança jurídica e até mesmo a razoável duração dos processos, pois há uma previsão de atos concatenados a serem pra-ticados em determinado período, até uma decisão final. Não se justifica refutar todo e qualquer ato procedimen-tal. Assim, a base do que é o procedimento deve sim ser aplicada, para um mínimo de segurança e tempo médio de fim do processo.

Porém, para cada caso concreto podem ser fei-tas adaptações tendentes a tornar mais efetivo o direito material e propiciar o cumprimento dos escopos do pro-cesso, tudo legitimado pelo uso do contraditório amplo e irrestrito.

Esta adaptabilidade, vista sob o viés da igualda-de material, é o que garante que as partes receberão a tutela adequada à satisfação dos seus direitos e à paci-ficação social.

Em litígios entre pessoas com parcos recursos financeiros, incapazes de cumprir as exageradas exi-gências das normas, por conta das limitações materiais, acaba-se por ter negada a tutela jurisdicional para a ga-rantia de seus direitos. Dessa forma, a formulação de conceitos e regras de processo deve atender à realidade social e às necessidades dos consumidores de serviços jurisdicionais36.

Assim, por exemplo, pode-se citar como desar-razoada a exigência de apresentação de cópias auten-ticadas de documentos, quando a autenticação pode ser dada pelo advogado ou Defensor Público atuante no feito; a realização de exames periciais/médicos na sede do juízo ou do setor de perícias médicas, quando poderiam ser realizadas na residência dos interessados; a observância cega de regras de competência sem que

36 BEDAQUE, José Roberto dos Santos, op. cit., 1990, p. 59.

Page 37: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

37Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

haja prejuízo para quem quer que seja, impedindo, por exemplo, que um alvará para levantamento de pequena quantia prossiga no local em que a família do falecido reside, e não em seu último domicílio.

Aqui cabe uma digressão a respeito da ideia da legitimação pelo procedimento, defendida pela doutri-na que afirma que a garantia do devido processo legal, nascida da tentativa de vedação da abertura ao arbítrio experimentada nos governos autoritários, estaria obser-vada a contento apenas se todos os atos do procedimen-to estivessem previstos na lei e não houvesse qualquer margem para a atuação do magistrado.

Para estes, o procedimento estrito seria a garan-tia da legalidade do exercício do poder pelo Estado. Quaisquer desvios ou omissões em relação a este pro-cedimento pré-estabelecido se configurariam em viola-ções à garantia do devido processo legal.

Contudo, na atualidade tal posição evoluiu, para não mais se considerar que a garantia do devido pro-cesso legal se resuma em legalidade estrita. Sabe-se que regimes totalitários também tendem a utilizar a lei como baliza para a atuação, mas ela é produzida de for-ma autoritária e sem participação da população. Dessa forma, a legalidade restrita não é garantia de observân-cia ao devido processo, nem de adequação do procedi-mento com a finalidade social do processo.

O que se considera importante é a estrutura de oportunidade de manifestação e de observância ao nú-cleo de faculdades e poderes processuais fundamentais das partes em litígio. Constitui-se a garantia do devido processo legal, então, em um sistema de limitação ao exercício arbitrário do poder, mas também uma garan-tia de justiça e de direito ao processo37.

Nessa medida, o que se considera limitador da liberdade judicial na atuação, balizando a flexibiliza-ção dos procedimentos é, basicamente, a observância irrestrita do contraditório. Seria o contraditório, e não o procedimento formal, o que legitimaria o exercício do poder e evitaria o arbítrio e os abusos, permitindo que a atuação judicial se desse de forma mais maleável e adaptável ao caso concreto, sem descurar das garantias fundamentais do indivíduo.

Não é enrijecendo as exigências formais, em um fetichismo à forma, que se asseguram direitos; ao contrário, o forma-lismo obcecado e irracional é fator de empobrecimento do processo e cegueira para seus fins.38

37 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Ed-itora Malheiros, 14ª Edição, 2009.

38 DINAMARCO, Cândido Rangel, op. cit., p. 152.

Parece chegada a hora de garantir o efetivo aces-so à justiça e dar-se aplicação prática à tão estudada ins-trumentalidade processual, fomentando a atuação judi-cial desprendida das formalidades inúteis e propiciando às partes a máxima efetividade na tutela pretendida. Já existem mecanismos no sistema aptos o suficiente a coibir os tão temidos abusos, não se justificando o temor desmedido a tal proceder.

Em vista do exposto, então, deve-se compreender a regra do devido processo legal não como engessadora, determinante de um procedimento formal e excessiva-mente rígido, mas como garantia de um processo com contraditório, atento à realidade social e consentâneo com a relação de direito material subjacente39.

EFETIVIDADE SOCIAL DO PROCESSO

Não se pode mais admitir que o julgador e o le-gislador ignorem as diferenças sociais e econômicas que constituem óbices sérios à efetividade do processo. O acesso à justiça, como já visto, não envolve apenas a facilitação de ingresso no Judiciário, mas também, e principalmente, a possibilidade de participação do jul-gamento em paridade de armas com a parte contrária e a garantia da efetividade prática, resultado útil, de uma decisão judicial. Nisso consiste o acesso real à Justiça, enquanto valor40.

Nesse sentido, as técnicas processuais servem a funções sociais41.

Somente se pode falar em efetividade do proces-so se o seu resultado for socialmente útil, de forma que o seu titular tenha tido acesso não apenas à justiça, mas à ordem jurídica justa. A adequada proteção jurídica é um dos direitos fundamentais inalienáveis da pessoa humana42.

Dentro da análise que se pretende no presente tra-balho, será socialmente efetivo o processo que permitir aos membros menos abastados da sociedade a persecu-ção judicial de seus interesses em pé de igualdade com os membros dotados de maiores forças – econômicas, políticas e culturais43.

39 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit., p. 88.

40 BEDAQUE, José Roberto dos Santos, op. cit., 1990, p. 57.

41 BEDAQUE, José Roberto dos Santos, op. cit., 2009, p. 66.

42 BEDAQUE, José Roberto dos Santos, op. cit., 2009, p. 74.

43 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Por um processo socialmente efetivo. In www.iobonlinejuridico.com.br. Acesso em: 18 nov. 2009.

Page 38: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

38 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Não se pretende dar ao processo o poder de transformar, sozinho, a realidade social, mas não se pode negar-lhe a força de conferir justiça e igualdade a algumas situações postas sob sua análise e que denotem desigualdades materiais latentes.

No que diz respeito à representação processual igualitária das partes as desigualdades são, em grande medida, superadas pela existência de órgãos criados para a defesa processual das pessoas nessas condições, como o caso das Defensorias Públicas, objeto de dis-cussão apartada em outro tópico.

Com relação às demais regras de procedimento, é nesse campo que se insere com mais profundidade a ideia do juiz gerenciador e ativo, capaz de vislumbrar estas situações práticas de desigualdade e tomar as me-didas cabíveis para afastá-la.

As normas que trazem a exigência de caução po-dem ser afastadas em alguns casos; normas que exigem a apresentação de séries de documentos de difícil ob-tenção na prática e que tem altos custos; aplicação da teoria da carga dinâmica da prova, admitindo que certas provas sejam feitas por aquele que mais tem condições para tanto; o exercício dos poderes instrutórios do juiz, inclusive com a requisição de documentos necessários para os órgãos públicos correspondentes; aceitação de prova testemunhal para alguns contratos e atos; realiza-ção de inspeções judiciais, dentre outras.

A ideia é a realização de uma ponderação de inte-resses em cada caso concreto. Se na análise da situação posta em juízo o magistrado verificar que os valores supostamente atingidos pelo afastamento/relativização da norma são de relevância menor do que o resultado útil do processo, com a efetividade material e social da tutela, então nada justifica o apego formal à técnica.

Ademais, com base no fundamento aristotélico do princípio da igualdade – tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida da sua desi-gualdade – tal proceder está justamente conferindo aplicação prática ao valor constitucional, propiciando às partes carentes o acesso à mesma solução jurisdicio-nal que obtém a parte em melhores condições.

O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA

Nesse ponto dá-se destaque à relevante missão institucional da Defensoria Pública na atuação que ora se defende.

A Constituição Federal de 1988 trouxe, no art. 134, a previsão da Defensoria Pública como Instituição essencial à função jurisdicional do Estado, tendo como missão a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados.

Dessa forma, a Defensoria é a instituição estatal criada para obedecer ao disposto no art. 5º, LXXIV, que determina que o Estado prestará assistência jurídica in-tegral e gratuita àqueles necessitados financeiramente.

No Estado de São Paulo, com um atraso de de-zoito anos, em 2006 foi criada a Defensoria Pública, por meio da Lei Complementar Estadual n.º 988/2006. As normas gerais das Defensorias Públicas de todos os Estados, bem como a Federal, vêm regulamentadas pela Lei Complementar Federal n.º 80/94, recentemen-te alterada pela Lei Complementar Federal n.º 132/09.

Destarte, cabe aos Defensores Públicos a atuação em favor das pessoas pobres, que não têm condições de pagar pelos serviços de um advogado sem retirar do necessário para o seu próprio sustento.

A atuação da Defensoria Pública não se resume à representação processual, mas também a engloba. E é quando da atuação processual dos Defensores Públi-cos em favor dos economicamente hipossuficientes que tem cabimento pleno a aplicação da tese ora defendida.

Isso porque diariamente, na prática processual dos Defensores Públicos, depara-se com casos em que se faz necessária e urgente a flexibilização normativa para que a parte tenha os seus direitos garantidos. A gama de situações a autorizar e, mais ainda, a indicar a necessidade de atuação diferenciada em favor de tais pessoas é enorme.

São pessoas que não têm consciência de seus di-reitos, têm dificuldades até para chegar aos locais de atendimento e de audiência, não conseguem obter se-quer os documentos considerados imprescindíveis ao ajuizamento das demandas, não têm acesso aos bens de consumo mais básicos, muitas vezes sequer a moradia digna, dependendo, em vários casos, apenas do Estado para a sobrevivência de toda uma família.

Não obstante, tais pessoas possuem demandas jurídicas e necessidades que somente podem ser satis-feitas por meio do processo, sendo, portanto, consumi-doras do serviço estatal de distribuição de justiça.

Page 39: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

39Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Contudo, assim como os consumidores em re-lação aos fornecedores, são hipossuficientes dentro do próprio sistema, ainda quando não litiguem com parte mais abastada.

Se a tese que ora se defende é passível de ser apli-cada também para os não carentes, pelos fundamentos acima expostos, é com muito mais razão que também se deve autorizar a sua aplicação para os processos em que são partes pessoas carentes, principalmente quando representadas pela Defensoria Pública.

Dessa forma, é na atuação diária dos Defensores Públicos que se verifica a maior necessidade de adoção da elasticidade procedimental e que se pode vislumbrar o maior beneficio com tal proceder. Só assim, em uma visão social da jurisdição, serão verificadas mudanças reais na aplicação do direito em favor de tais pessoas já tão injustiçadas pela sociedade.

CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, este trabalho visou dar uma contribuição modesta para a doutrina que vem de-fendendo, sem conseguir com sucesso aplicação prática relevante, que a instrumentalidade do processo é modo de se obter efetividade social e acesso à justiça, princi-palmente dos hipossuficientes.

Por meio do procedimento com contraditório evi-tam-se abusos que poderiam surgir de tal flexibilização, mas somente a adaptabilidade de certos procedimentos, com o afastamento de formalidades desnecessárias para a finalidade do ato pode-se chegar à máxima efetivida-de tão pretendida. É assim que se dará cumprimento ao postulado de Chiovenda: dar à parte tudo aquilo e somente aquilo que deseja.

A atuação prática da Defensoria Pública trouxe a percepção da necessidade urgente de tal tomada de posição para viabilizar alguma modificação social por meio do processo, garantindo aos carentes o acesso a uma justiça real, menos formal e mais consentânea com as suas realidades.

Espera-se ter contribuído com a discussão a res-peito do acesso à ordem jurídica justa para os pobres nesse país, que passa, necessariamente, pela alteração da visão apegada aos formalismos – com abertura de mentes, ideias e procedimentos para o novo, gerando inclusão.

REFERÊNCIAS

ARENHART, Sérgio Cruz. Ônus da prova e sua modi-ficação no Processo Civil Brasileiro. Revista jurídica: Órgão Nacional de Doutrina, Jurisprudência, Legisla-ção e Crítica Judiciária (343): p. 49. Porto Alegre: Edi-tora Notadez, 2006.

ASSIS, Araken de. Fungibilidade das medidas inomi-nadas cautelares e satisfativas. Revista de Processo (100): p. 33-60. São Paulo, 2000.

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Nulidade pro-cessual e instrumentalidade do processo: a não inter-venção do Ministério Público e a nulidade do processo. Justitia, São Paulo, n° 52 (150), abr/jun 1990, p. 56.

______. Poderes instrutórios do juiz. 3ª ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2001.

______. Direito e Processo: Influência do Direito Ma-terial sobre o Processo. edição. Malheiros: São Paulo. 5ª Edição, 2009.

______. Efetividade do processo e técnica processual. 2ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2007.

CAMARGO, Marcelo Novelino. A distribuição do ônus da prova na perspectiva dos direitos fundamentais. Lei-turas complementares de direito constitucional: direi-tos fundamentais. Salvador: Editora JusPodivm, 2006.

CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Briant. Acesso à Jus-tiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002.

CHAYES. Adam. The role of the judge in public litiga-tion. In: CAPPELLETI, M.; GARTH, B. Acesso à Jus-tiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teo-ria Geral do Processo. 25ª Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2009.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14ª Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2009, p. 61.

______. Instituições de Direito Processual Civil. 2ª Edição. São Paulo: Malheiros, v.2, 2002.

GRINOVER, Ada Pellegrini. Deformalização do pro-cesso e deformalização das controvérsias. Revista de Processo (46): p. 60-83. São Paulo, abr/jun 1987.

Page 40: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

40 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento: a tutela jurisdicional através do processo de conhecimento. 2ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

MONNERAT, Carlos Fonseca. Momento da ciência dos sujeitos da relação processual que de que a inver-são do ônus da prova pode ocorrer. Revista de Processo (113): p. 84. Editora RT: São Paulo, jan/fev 2004.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Por um processo so-cialmente efetivo. Disponível em: www.iobonlinejuri-dico.com.br. Acesso em: 18 nov. 2009.

_______. A efetividade do processo de conhecimento. Revista de Processo, (74). São Paulo: 1994.

_______. Efetividade do processo e técnica processual. Revista de Processo (77). São Paulo: 1995.

OLIVEIRA, C.A.A. O formalismo-valorativo em con-fronto com o formalismo excessivo. Revista de Proces-so (137): p. 19. São Paulo, 2006.

SALLES, Carlos Alberto de. Processo Civil de Inte-resse Público. In: SALLES, Carlos Alberto de (Org.). Processo Civil e Interesse Público: o processo como instrumento de defesa social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

Page 41: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

41Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Como cediço, em 10 de agosto de 2009 entrou em vigência a Lei n.º 12.015/2009 que alterou a sis-temática pertinente aos crimes previstos no Título VI do Código Penal, inclusive no que pertine à nomencla-tura de aludido gênero de delitos, ora tutelados como Crimes Contra a Dignidade Sexual, o que neste ponto, diga-se, por oportuno, atendeu às críticas da doutrina penal moderna.

Outra significativa mudança se deu em relação ao artigo 213 do Código Penal que doravante passou a prever como delito de estupro a conduta de “constran-ger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Com isso, o legislador revogou o artigo 214 do estatuto penal, não existindo mais, por via de consequência, o crime autônomo de atentado violento ao pudor.

A alteração mencionada em uma primeira leitu-ra pode aparentar pouco efeito, uma vez que a conduta outrora designada por atentado violento ao pudor, como visto há pouco, continua tipificada penalmente, não ha-vendo que se falar em abolitio criminis.

Todavia, essa leitura preliminar e precária se mostra incorreta, haja vista que a consequência direta dessa alteração é a impossibilidade de ocorrência dos concursos de crimes (material, formal e continuidade delitiva) entre os núcleos do artigo 213 do Código Pe-nal, quando praticado contra a mesma vítima e em cir-cunstâncias iguais de tempo e espaço.

Com efeito, a nova estrutura típica do crime de estupro, outrora considerado pela doutrina como crime próprio, exigindo para a sua consecução como autor apenas o homem e como vítima somente a mulher, do-ravante passou a prever a possibilidade de o autor e a vítima serem qualquer pessoa, até mesmo para a condu-ta de constranger alguém voltada à conjunção carnal. In

A NOVA ESTRUTURA TÍPICA DO CRIME DE ESTUPRO E OS EFEITOS PRÁTICOS DESSA MUDANÇA

Alexandre Orsi NettoDefensor Público do Estado de Sâo Paulo-

Coordenador de Execução Penal-Regional de Sorocaba

casu, porém, é indispensável que autor e vítima sejam de sexos opostos, por uma exigência natural e lógica da anatomia humana.

Neste contexto, observa-se que o objeto jurídico do delito, tanto na 1ª figura (conjunção carnal) como na 2ª figura (ato libidinoso diverso da conjunção carnal) é o mesmo, isto é, genericamente, a dignidade sexual e, especificamente, a liberdade sexual do ser humano. Ou-trossim, o resultado naturalístico é o mesmo em qual-quer dos dois núcleos, ou seja, o tolhimento da liberda-de sexual da vítima.

Forçoso reconhecer, portanto, que o delito em comento passou a ser de conteúdo variado, previsto em um tipo misto alternativo. Vale dizer, então, que tanto faz o sujeito praticar uma ou outra das condutas pre-vistas no tipo que o crime será o mesmo; e, conquanto pratique as duas formas de execução, praticará um úni-co delito.

Não há que se falar aqui na criação de um tipo misto cumulativo, pois existe óbvia fungibilidade entre as condutas previstas no dispositivo em comento, so-bretudo por ser a conjunção carnal espécie do gênero ato libidinoso.

Em que pese já existirem vozes afirmando que essa interpretação vai de encontro à intenção do legis-lador em aumentar a punição aos delitos sexuais com a edição da novel lei, esta fala subverte o arcabouço penal, pois, como brilhantemente mencionado por Za-ffaroni e Pierangeli,

a norma é filha da decisão política, leva sua bagagem gené-tica, mas o cordão umbilical entre a decisão político-penal e a norma, é cortado pelo princípio da legalidade, ao menos no que concerne a extensão punitiva.

Vale dizer que, muito embora a decisão política sirva de diretriz interpretativa para a aplicação das nor-

Page 42: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

42 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

mas penais, é inconcebível que, a pretexto de se respei-tar a ideologia orientadora do legislador, o hermeneuta esvazie o conteúdo da legalidade penal.

Em outra vertente, também não se sustenta a afir-mação de que a consideração do novo tipo do estupro como misto alternativo criaria uma iniquidade na hipó-tese de o agente constranger alguém à prática da con-junção carnal e também ao ato libidinoso diverso, na medida em que este seria apenado da mesma forma que o sujeito que praticasse apenas um dos núcleos, pois ao magistrado cabe dosar a pena, atendendo as exigências de justiça na perscrutação do caso concreto, conforme as disposições do artigo 59 do Código Penal, sem que, para tanto, amesquinhe a tipicidade do artigo 213 do Código Penal.

Assim, a exegese do direito penal concebido den-tro de um Estado Democrático de Direito deve repelir a doutrina do medo, notadamente se esta vilipendia os direitos fundamentais do ser humano, pois a dignidade da pessoa humana, pilar axiológico da democracia mo-derna, “impõe ao Estado a afirmação das integridades física e moral do ser humano, pressupondo, portanto, a autonomia deste em relação ao corpo social”.

Como se vê, a análise típica do novo artigo 213 do Código Penal, com a redação dada pela Lei n.º 12.015/2009, balizada pelos princípios garantistas ado-tados pela Constituição de 1988 leva inquestionavel-mente à conclusão de que o crime de estupro tornou-se de conteúdo variado, dada a fungibilidade entre as con-dutas ali descritas.

Page 43: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

43Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

RESUMO: O presente estudo visa traçar, em síntese, os principais argumentos contrários à tese da possibi-lidade de fixação de indenização por dano moral em consequência do abandono afetivo na relação parental, à luz dos pressupostos gerais da responsabilidade civil. Aponta-se, como consequência jurídica, no âmbito do direito de família, a destituição do poder familiar em decorrência do abandono moral, com base no princípio da dignidade da pessoa humana.

PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade Civil. Aban-dono Afetivo. Impropriedade. Ausência dos pressu-postos gerais de responsabilidade civil. Consequência jurídica do abandono afetivo. Destituição do poder fa-miliar.

ABSTRACT: This study aims to outline, in sum-mary, the main arguments against the thesis of the possibility of setting compensation for moral dam-age as a result of emotional neglect on the parental relationship, in light of the general assumptions of liability. Suggest that the main settlement within the family law, the removal of family power due to moral abandonment, based on the principle of human dignity. KEYWORDS: Liability. Early affective. Impropri-ety. Absence of general assumptions of liability. Legal consequences of emotional neglect. Dismis-sal of family power.

INTRODUÇÃO

Historicamente, desde a vigência da Constituição Italiana de 1948, o Código Civil daquele país, apesar de ainda funcionar como eixo do sistema privado, estabe-lecendo as principais normas de índole eminentemente privadas que disciplinam as relações jurídicas entre os indivíduos, passou a ser interpretado e ressignificado por normas constitucionais. Tal fenômeno, posterior-mente denominado de constitucionalização do direito civil, ocorreu na Itália, pelo fato de que o Código Civil

REFLEXÕES ACERCA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PARENTAL POR ABANDONO AFETIVO

Samir Nicolau NassrallaDefensor Público do Estado de São Paulo

lá editado em 1942 o foi sob a égide de governo autori-tário ou fascista que suprimia os direitos dos indivíduos em face do Estado, frontalmente oposto ao espírito de-mocrático da nova ordem constitucional e dos direitos fundamentais.

Sobre o tema, explica Timm:

Na Itália, o fenômeno em tela tem a data de 1º de janeiro de 1948, com a entrada em vigor da sua nova Constituição e pode ser caracterizado como segue. Primeiro, o Código Ci-vil deixou de constituir o centro geométrico de toda ordem jurídica constituída. O primado da legislação passou para a Constituição, ao lançar as bases de uma nova sociedade ideologicamente comprometida. A Constituição passou a regular não só a organização do Estado e a tutelar as liberda-des públicas e os direitos políticos, mas também imiscuiu-se em institutos basilares da sociedade burguesa liberal, antes tratados exclusivamente nos Códigos, como o casamento, a propriedade, a liberdade econômica, etc., dando poderes a grupos intermediários, ou seja, que ficam entre a pessoa humana e o Estado e se constituem em organizações sociais onde o indivíduo exerce a sua personalidade. (2008, p.16)

A Constituição Federal do Brasil de 1988 elevou ao seu texto diversas relações de direito privado, como, por exemplo, a disciplina da propriedade privada que passa a ter função social (artigo 170, inciso III), prote-ção à imagem e indenização por dano moral (artigo 5º, inciso V), além de vários temas de direito de família (artigo 226).

Assim, surge no Brasil a chamada Escola de Di-reito Civil-Constitucional, conforme anota Sampaio Júnior:

Para os teóricos dessa escola, a Constituição da República de 1988 teria instaurado novos parâmetros hermenêuticos, que exigiriam da imediata adequação das normas vigentes à ordem constitucional. Entretanto, não se tratava apenas de uma análise do instituto da recepção das normas anteriores pelo novo regramento constitucional. Tratava-se, sim, de aplicar o Direito conforme o espírito da Constituição e com amparo na sua principiologia, centrada na dignidade da pes-soa humana. Isto é, a validade do ordenamento infracons-

Page 44: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

44 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

titucional é condicionada à sua adequação aos princípios constitucionais, sendo juridicamente reconhecidas e tutela-das apenas aquelas normas que com ele guardem sintonia. (2009, p.71)

Escrevendo sobre o tema da Constitucionaliza-ção do direito civil, menciona Dias:

Grande parte do direito civil está na Constituição, que aca-bou enlaçando os temas sociais juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade. A intervenção do Estado nas relações de direito privado permite o revigoramento das instituições de direito civil e, diante do novo texto constitu-cional, forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do direito civil à luz da nova Constituição. Essa é uma característica do chamado estado social, que intervém em setores da vida pri-vada como forma de proteger o cidadão, postura impensável em um estado liberal que prestigia, antes e acima de tudo, a liberdade. O direito civil constitucionalizou-se, afastando--se da concepção individualista, tradicional e conservadora--elitista da época das codificações do século passado. Ago-ra, qualquer norma jurídica de direito das famílias exige a presença de fundamento de validade constitucional. (2007, p. 36)

Em harmonia com o pensamento da citada dou-trina brasileira civil-constitucional, liderada por autores como Gustavo Tepedino, alguns estudiosos do direito de família brasileiro, como Maria Berenice Dias (2008) e Ana Carolina Brochado Teixeira (2008), partem da ideia de que o estudo e interpretação das normas infra-constitucionais relativas ao direito de família contidos no Código Civil e legislação esparsa devam ser ope-racionalizados pela aplicação de vários subprincípios (afetos às relações de direito de família) derivados da dignidade da pessoa humana, que se expressa em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, III, da Constituição Federal).

Essa doutrina cita, dentre outros, o princípio da não intervenção ou da liberdade do planejamento fami-liar, da igualdade dos filhos havidos ou não na constân-cia do casamento, da igualdade entre cônjuges e com-panheiros, da igualdade no exercício do poder familiar, da solidariedade familiar, do melhor interesse da crian-ça, da função social da família, e, finalmente, o princí-pio da afetividade (TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008).

Sob o fundamento de que a afetividade é princí-pio de direito de família, como derivação implícita do princípio da solidariedade (artigo 3º, inciso I, da Cons-tituição Federal) e da dignidade da pessoa humana, co-meçaram a surgir provocações ao Poder Judiciário plei-teando indenizações por dano moral em casos em que há abandono afetivo de pais em relação aos seus filhos, diante do presumido dano moral e psíquico sofrido em

decorrência da ausência ou desprezo do ascendente, sob o argumento que a obrigação daquele não se esgotaria no dever de sustento material, mas também no dever de afeto, conforme anota Gonçalves:

Algumas decisões de São Paulo, Minas Gerais e Rio Gran-de do Sul têm acolhido a pretensão de filhos que se dizem abandonados ou rejeitados pelos pais, sofrendo transtornos psíquicos em razão da falta de carinho e de afeto na infância e juventude. Não basta pagar a pensão alimentícia e forne-cer os meios de subsistência dos filhos. Queixam-se estes do descaso, da indiferença e da rejeição dos pais, tendo alguns obtido o reconhecimento judicial do direito à indenização como compensação pelos danos morais, ao fundamento de que a educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, o amor, o carinho, devendo o descaso entre pais e filhos ser punido severamen-te por constituir abandono moral grave. (2007, p. 699)

No Rio Grande do Sul, na cidade de Capão da Canoa, há registro de sentença oriunda do processo n.º 1.030.012.032-0, que reconheceu o direito à indeniza-ção de uma filha abandonada afetivamente pelo pai, fixando-se o valor do abandono em duzentos salários mínimos, conforme cita Castro:

A história é de uma jovem, fruto de um relacionamento sem sucesso, que desde seus primeiros anos relacionou-se com o genitor apenas em audiências. Apesar do comprometimento, inclusive em juízo, de estar presente durante a criação da fi-lha, o pai jamais demonstrou qualquer afetividade pela crian-ça, pouco se importando com a sua existência, dando-se sa-tisfeito com a condenação à obrigação material. (2010, p. 01)

Caso emblemático foi dirimido pelo Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial n.º 757.411-MG, j. 29-11-2005, que reformou decisão Tri-bunal de Justiça de Minas Gerais da 7ª Câmara Cível, na Apelação n.º 408.550-5-BH, que havia fixado indeniza-ção de 200 salários mínimos ao pai, com fundamento de que a responsabilidade (pelo filho) não se pauta tão somente no dever de alimentar, mas se insere no dever de possibilitar o desenvolvimento humano dos filhos, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana.

O Superior Tribunal de Justiça reformou o acór-dão, que dividiu as opiniões dos ministros. Ressaltan-do-se que apenas um ministro (Barros Monteiro), en-tendeu que o genitor tem o dever de assistir moral e afetivamente o filho, e só estaria desobrigado de pagar a indenização se comprovasse a ocorrência de motivo de força maior. Os outros ministros assim não entenderam, afirmando que o que a lei prevê como punição pelo abandono afetivo é a perda do poder familiar, devendo ser afastada a responsabilidade patrimonial (GONÇAL-VES, 2007).

Page 45: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

45Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Em resumo, a decisão citada foi no sentido da inexistência de ato ilícito a ser indenizável em virtude do abandono afetivo, nos moldes do artigo 159 do Có-digo Civil de 1916. Em suma, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o abandono afetivo não configura dano moral, conforme ementa do julgado:

RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDA-DE. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do artigo 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial co-nhecido e provido”, STJ, REsp n.º 757411, 4ª T, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005. Votou venci-do o Ministro Barros Monteiro, que dele não conhecia. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro relator. (TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008, p. 40-41)

Recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo inovou em relação ao mencionado entendimen-to do Superior Tribunal de Justiça, relativo ao tema do abandono afetivo, ao reconhecer o direito à indenização ao filho, em virtude da alegação de que seu pai o teria desprezado desde criança em virtude de uma deformida-de física em sua orelha, o que teria lhe gerado angústia e dano psíquico. A decisão da 4ª Câmara de Direito Pri-vado teve como base o entendimento do Desembarga-dor Ênio Zuliani, relator do recurso, e a divergência do Desembargador Maia da Cunha. Segundo Zuliani, o pai não teria sido solidário com o drama do filho, restringin-do-se a cumprir a sentença da ação de alimentos, nada tendo feito para amenizar o drama pessoal vivido pelo filho em decorrência da má-formação da sua orelha.

Somando-se à importância da análise da jurispru-dência nacional que já enfrentou o tema, há notícia de que tramita na Câmara o Projeto de Lei n.º 4294/08, de autoria do deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT), que sujeita pais que abandonarem afetivamente seus filhos a pagamento de indenização por dano moral, propondo alteração no Código Civil.

Com efeito, coloca-se como relevante a reflexão sobre a possibilidade ou não da atribuição de indeniza-ção civil pelo abandono afetivo parental.

Primeiramente, deve-se enfrentar a questão da natureza jurídica do afeto. Há de fato um dever jurídico de afeto dos pais em relação aos filhos? Trata-se de um ônus? Trata-se de mera obrigação moral?

Em um segundo aspecto, deve-se enfrentar a possibilidade em tese do preenchimento dos pressupos-

tos gerais da responsabilidade civil, já que a matéria relativa ao direito de família avançaria sob os pilares do sistema geral do Código Civil, que permanece íntegro no sistema normativo. Logo, deve-se indagar: 1) Qual o tipo de responsabilidade atribuída ao agente: sub-jetiva ou objetiva?; 2) O abandono afetivo configura dano moral por omissão?; 3) Pode ser provado o dano psíquico sofrido pelo abandonado?; 4) Como provar o nexo de causalidade entre o abandono e o suposto dano psíquico?

Por último, ressalta-se o perigo da patrimonia-lização de questões de família e a crítica da utilização da responsabilidade civil punitiva, bem como a inutili-dade de fixação dessa indenização do ponto de vista do restabelecimento ou surgimento do bom convívio entre aqueles ligados pelo vínculo de sangue, mas separados por fatores íntimos. Nesse aspecto, deve-se analisar a conveniência e oportunidade sociais da adoção da tese da reparabilidade civil por ausência de afeto nas rela-ções parentais, inclusive levando-se em conta, em caso de menor, a doutrina da proteção integral e do melhor interesse da criança.

REFLEXÕES SOBRE O TEMA DA AFETIVIDADE

Pode-se afirmar que, segundo significativa cor-rente doutrinária, a afetividade, ou seja, o liame psico-lógico-emocional que une os indivíduos de um núcleo, seria o vínculo central e definidor da família contem-porânea.

Tecendo considerações sobre o tema, Tartuce preleciona:

No que tange a relações familiares, a valorização do afeto remonta ao brilhante trabalho de João Batista Vilella, escrito no início da década de 1980, tratando da desbiologização da paternidade. Na essência, o trabalho procurava dizer que o vínculo familiar seria mais um vínculo de afeto do que um vínculo biológico. Assim, surgiria uma nova forma de parentesco civil – a parentalidade socioafetiva – baseada na posse de estado de filho. (TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008, p. 48)

Para esse pensamento, a afetividade estaria ca-racterizada como verdadeiro princípio ou fundamento do direito de família moderno por ser o elemento prin-cipal na identificação dos laços familiares não forma-lizados pela estrutura tradicional do casamento, ou na caracterização dos vínculos de filiação, conforme pre-leciona umas das principais vozes sobre o tema, Maria Berenice Dias:

Page 46: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

46 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

O novo modelo da família funda-se sobre os pilares da re-personalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemo-nismo, impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família. Agora, a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar. A família--instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da per-sonalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado. (2007, p. 41)

Acrescenta, ainda, a mesma autora:

Ao serem reconhecidas como entidade familiar merecedora da tutela jurídica as uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento, tal significa que o afeto, que une e enlaça duas pessoas, adquiriu reconhecimento e inserção no siste-ma jurídico. Houve constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário, com maior espaço para o afeto e a realização individual. (2007, p. 67)

Ganharia, assim, mais importância na caracteri-zação da família o laço de união e amor do que propria-mente o fator meramente genético.

Essa interpretação parte da ideia que a Consti-tuição Federal do Brasil, ao prever a liberdade do pla-nejamento familiar, em seu artigo 226, §7º, bem como a igualdade entre os filhos havidos ou não dentro da estrutura do casamento, no artigo 227, §6º, teria demo-cratizado o conceito de família.

O que uniria primordialmente os indivíduos em uma relação familiar deixaria de ser a estrutura formal e passaria a ser primordialmente o vínculo psicológico--afetivo. Tal afirmação parte da constatação princípio da igualdade e da liberdade, entre os diversos tipos de entidade familiar, seja a união estável, seja o casamen-to propriamente dito, seja a entidade monoparental, ou entidade homoafetiva, as quais devem merecer a mes-ma proteção jurídica estatal, o que se fundamentaria no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal).

Partindo-se desta premissa, lançada por parte da doutrina familiarista brasileira, na jurisprudência na-cional a relação de afeto passou a ser utilizada como critério preponderante para solução de conflitos versan-do sobre filiação, invocando-se, mais uma vez, o prin-cípio da dignidade da pessoa humana.

É o que se extrai, por exemplo, da seguinte de-cisão:

NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ADOÇÃO À BRA-SILEIRA. CONFRONTO ENTRE A VERDADE BIOLÓ-

GICA E A SOCIOAFETIVA. TUTELA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PROCEDÊNCIA. DECISÃO REFORMADA. 1. A ação negatória de paternidade é im-prescritível, na esteira do entendimento consagrado na Sú-mula 149/STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é a emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade socioafetiva, decorrente da adoção à bra-sileira (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase 40 anos, há de prevalecer à solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade so-cioafetiva, estando baseada na tendência da personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de as-pectos formais inerentes à irregular adoção à brasileira, não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso con-creto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-iam as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado. (TJPR, Apela-ção Cível 0108417-9, Rel. Des. Accácio Cambi, publicado em DJ 04/02/2002)

Neste sentido, explica Queiroz:

É devido a tal mutabilidade conceitual que a filiação não pode ser entendida como fenômeno biogenético (biológico pelo parto e genético pela transmissão do código genético), mas, sim, como fenômeno cultural e prescrição jurídica. Nesse diapasão, os termos pai e genitor não redundam mais em sinônimos. Genitor é aquele que fornece o material ge-nético e pai é aquele que detém o liame da filiação. As re-feridas figuras não podem ser confundidas pela ordem nor-mativa, dada a distância que as separa no estágio atual da biotecnologia de reprodução humana e da configuração da paternidade. (TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008, p. 199)

Entretanto, muito embora haja afirmação por parte da doutrina que o princípio da afetividade seja extraído dos já mencionados princípios constitucionais, não há referência expressa a ele na legislação infra-constitucional brasileira.

É o que pondera a mesma doutrinadora acima referida:

O Código Civil também não utiliza a palavra afeto, ainda que, em alguns dispositivos, se possa entrever esse elemento para caracterizar situação merecedora de tutela. Invoca so-mente o laço de afetividade como elemento indicativo para a definição de guarda do filho quando da separação dos pais (CC 1584 parágrafo único). Ainda que com grande esforço se consiga visualizar na lei a elevação do afeto a valor jurídi-co, mister é reconhecer que tímido mostrou-se o legislador. (DIAS, 2007, p. 68)

Há, inclusive, entre os estudiosos do direito de família brasileiro, quem teça críticas ao conceito de fa-mília fundado no afeto, conforme expõe Rocha:

Page 47: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

47Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Como se não bastasse o modo inapropriado com que o afeto tem sido invocado por parte da doutrina brasileira, o “afeto” não é um dado da realidade capaz de identificar a família nem mesmo em sentido filosófico-científico. Há realidades afetivas que extrapolam os limites da família e realidades não afetivas que se incluem no conceito de família. Exorbi-tam do conceito de família a mera amizade e o namoro. Fal-tam-lhes outros elementos que comparecem com freqüência na formação da família: estabilidade, intuito de formação de família, coabitação e dependência econômica. Há outras si-tuações em que a socioafetividade se contrapõe ao sistema jurídico. O casamento gera família, independentemente da situação socioafetiva, por força do que dispõe a Constituição nos §§ 1º e 2º do artigo 226. (2009, p. 61)

E acrescenta o mesmo autor:

A constatação de que a ordem jurídica sobre a famí-lia e sua proteção não estão atreladas necessariamente aos fenômenos psíquicos, notadamente à existência de afeto, induz que este constitui apenas um dos elemen-tos (um dos mais importantes) para a construção cons-titucionalmente adequada do conceito de “família”. O conceito de “família”, no entanto, é sociológico, como anotou Popper: A psicologia é uma ciência social visto depender, grandemente, nossos pensamentos e ações, de nossas condições sociais. Idéias como (a) imitação, (b) a linguagem, (c) a família, são obviamente idéias sociais; e está claro que a psicologia da aprendizagem e do pensamento e também, por exemplo, a psica-nálise, não podem existir sem utilizar uma ou outra dessas idéias sociais. Portanto, a psicologia pressupõe idéias sociais, o que demonstra ser impossível explicar a sociedade exclusivamente em termos psicológicos ou reduzi-las à psicologia. Logo, não podemos con-siderar a psicologia como a base das ciências sociais. (2009, p. 64)

Ainda, sobre o tema do afeto, arremata Lisboa:

Afeição é um sentimento que se tem em relação a determi-nada pessoa ou algum bem. Afeiçoar-se significa identificar--se, ter afeto, amizade ou amor. Os membros de uma família, em sua maioria, possuem laços de afeição uns pelos outros. Entretanto, isso não é realidade absoluta. Há entidades fa-miliares desgraçadas por inimizades capitais e por relacio-namentos praticamente nulos. Ora, nenhuma pessoa pode ser compelida a afeiçoar-se a outra, pouco importando se há entre elas algum parentesco ou não. Bom seria se todos tivessem afeto uns pelos outros, cumprindo o mandamento bíblico e de outras religiões não cristãs. Todavia, a comple-xidade das relações interpessoais muitas vezes leva a situ-ações que impedem ou mesmo enfraquecem esse nível de relacionamento. E não há qualquer poder temporal capaz de modificar esse quadro, compelindo uma pessoa a se afeiçoar a outra. (2008, p. 25)

Pondera-se que a elevação da afetividade como verdadeiro princípio de direito de família, que encontra respaldo em grande parte da moderna doutrina familia-rista nacional, não é tema pacífico, havendo críticas por

ser o afeto tema relacionado à psicologia, não poden-do ser o único critério para identificação dos modelos familiares, sendo abstrata tal tese unicamente baseada no princípio da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil, mas que se constitui em cláusula aberta, de difícil conceitu-ação, conforme expõe Tavares:

não se alcançará, no entanto, o que “efetivamente” é o âm-bito de proteção da dignidade. Isso porque, segundo INGO WOLFANG SARLET, uma das principais dificuldades, to-davia – e aqui recolhemos a lição de MICHAEL SACHS – reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, di-versamente do que ocorre com as demais normas jus funda-mentais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc), mas, sim, de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade – como já restou evidenciado – passou a ser ha-bitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal. (2008, p. 537)

CONCEITO E PRESSUPOSTOS DE RESPON-SABILIDADE CIVIL EM CONFRONTO COM A TESE DA RESPONSABILIDADE CIVIL PAREN-TAL POR ABANDONO AFETIVO

Antes de se enfrentar propriamente o problema proposto, qual seja a possibilidade de reparação civil por abandono afetivo parental, necessário se faz a con-ceituação de responsabilidade civil e suas hipóteses.

Eis a redação do artigo 927 do Código Civil brasileiro: “Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Considera-se como ato ilícito “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusiva-mente moral”, bem como “o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impos-tos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, conforme artigos 186 e 187 do mesmo diploma legal.

Em resumo, a responsabilidade civil consiste na obrigação imposta àquele que praticou o ato ilícito de reparar o prejuízo sofrido por outrem. É o dever jurí-dico atribuído ao causador do dano de reparar a lesão suportada por terceiro, conforme ensina Gonçalves:

O instituto da responsabilidade civil é parte integrante do direito obrigacional, pois a principal consequência de um ato ilícito é a obrigação que acarreta, para o seu autor, de reparar um dano, obrigação esta de natureza pessoal, que se resol-ve em perdas e danos. Costuma-se conceituar “obrigação” como o vínculo jurídico que confere ao credor o direito de

Page 48: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

48 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

exigir do devedor o cumprimento de determinada prestação. A característica principal da obrigação consiste no direito conferido ao credor de exigir o adimplemento da prestação. É o patrimônio do devedor que responde por suas obriga-ções. As obrigações derivadas dos “atos ilícitos” são as que se constituem por meio de ações ou omissões culposas ou dolosas do agente, praticadas com infração a um dever de conduta e das quais resultam um dano a outrem. A obrigação que, em consequência, surge é a de indenizar ou ressarcir o prejuízo causado. (2007, p. 2)

Sérgio Cavalieri Filho define o responsável como:

A pessoa que deve ressarcir o prejuízo decorrente da vio-lação de um precedente dever jurídico. E assim é porque a responsabilidade pressupõe um dever jurídico preexistente, uma obrigação descumprida. Daí ser possível dizer que toda conduta humana que, violando dever jurídico originário, causa prejuízo a outrem é fonte geradora de responsabilida-de civil. (2009, p. 2)

Acerca dos fundamentos éticos da responsabili-dade civil, Sampaio Júnior pondera:

Pode-se afirmar que a responsabilidade civil, tal como hoje desenvolvida, assenta-se sobre dois distintos fundamentos éticos: a sanção a uma conduta lesiva culposa, tratando-se da responsabilidade subjetiva, e no tocante à responsabilidade objetiva, a assunção dos riscos decorrentes de uma atividade que cria, para a coletividade, riscos superiores aos que nor-malmente seriam de se esperar de uma atividade cotidiana-mente exercida. (2009, p. 23)

Portanto, a responsabilidade civil pode ser divi-dida em duas espécies: subjetiva e objetiva. A primeira espécie ocorre quando há necessidade de ser provada a culpa do agente causador do dano. Assim, para que se caracterize a subjetividade deverá haver necessaria-mente um dano, a comprovação de dolo ou culpa e o nexo causal entre o dano e a ação que o provocou.

Por seu turno, a responsabilidade será objetiva demonstrando-se apenas a causalidade entre o ato e o prejuízo causado, não havendo a necessidade de se comprovar a culpa ou dolo do agente. É também cha-mada de responsabilidade pelo risco, na qual “o exer-cício de uma atividade que possa representar um risco obriga por si só a indenizar os danos causados por ela”, segundo Sílvio de Salvo Venosa (2008, p. 15).

Depreendem-se, assim, os pressupostos da res-ponsabilidade civil extracontratual subjetiva: 1) ato ilícito; 2) conduta culposa; 3) dano; 4) nexo de Cau-salidade.

O tema da ilicitude será analisado mais a frente. Por conduta culposa entende-se a inexecução de um de-ver que o agente podia conhecer e observar. O terceiro requisito diz respeito ao dano ou lesão sofrida, já que sem a prova do dano ninguém pode ser responsabiliza-do. Segundo a melhor doutrina, o dano pode ser mate-rial ou simplesmente moral, ou seja, sem repercussão na órbita financeira do ofendido (GONÇALVES, 2007).

O quarto pressuposto, o nexo de causalidade, é explicado como “a vinculação entre determinada ação ou omissão e o dano experimentado” (PELUSO, 2009).

Um pai que ostensivamente humilha seu filho, ex-teriorizando qualquer tipo de conduta vexatória, ao pra-ticar uma conduta ativa, inegavelmente, em tese, come-teria ato ilícito passível de indenização por dano moral, assim como qualquer outra pessoa poderia ser responsa-bilizada. A questão que se coloca é outra. Da conduta me-ramente negligente do pai ou mãe em dar afeto ao filho, mesmo suprindo todas as suas necessidades materiais e intelectuais, por meio de conduta meramente omissiva, acarretaria um dano moral passível de ser indenizado?

O artigo 186 do Código Civil menciona o termo “ação ou omissão voluntária”. E, em seguida, aponta as modalidades de culpa: imprudência e negligência.

A questão da possibilidade da reparação civil por abandono afetivo se baseia, em síntese, no argumento de que o dano psíquico sofrido pela prole desprezada pela conduta negligente do pai ou mãe configura, de fato, espécie de dano moral e ofensa a direito de perso-nalidade do ofendido.

A questão é polêmica e divide opiniões na dou-trina.

Sobre o tema vale transcrever a opinião do De-sembargador Luiz Felipe Brasil Santos, citado por Cas-tro, que anota:

A matéria (abandono afetivo) é polêmica e alcançar-se uma solução não prescinde do enfrentamento de um dos proble-mas mais instigantes da responsabilidade civil, qual seja, determinar quais danos extrapatrimoniais, dentre aqueles que ocorrem ordinariamente, são passíveis de reparação pe-cuniária. Isso porque a noção do que seja dano se altera com a dinâmica social, sendo ampliado a cada dia o conjunto dos eventos cuja repercussão é tirada daquilo que se considera inerente à existência humana e transferida ao autor do fato. Assim, situações anteriormente tidas como “fatos da vida”, hoje são tratadas como danos que merecem atenção do Po-der Judiciário, a exemplo do dano à imagem e à intimidade da pessoa. (2010, p. 2)

Page 49: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

49Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

Magdaleno (2006, p. 159) é adepto da possibi-lidade da responsabilização, expressando que o direito de dano é aplicável sim ao direito de família, tendo por fundamento o abuso de direito que prevê o artigo 187 do Código Civil e não o ato ilícito.

Defendendo a conveniência de responsabilização civil por abandono afetivo, Giselda Maria Fernandes de Novaes Hironaka sustenta que:

a indenização por abandono afetivo, se for utilizada com parcimônia e bom senso, sem ser transformada em verda-deiro altar de vaidades e vinganças ou em fonte de lucro fácil, poderá converter-se em instrumento de extrema im-portância para um direito de família mais consentâneo com a contemporaneidade, podendo desempenhar, inclusive, um importante papel pedagógico no seio das relações familia-res. (2007, p. 16)

Sobre o tema, posiciona-se, ainda, Gonçalves:

A questão é delicada, devendo os juízes ser cautelosos na análise de cada caso, para evitar que o Poder Judiciário seja usado, por mágoa ou por outro sentimento menos nobre, como instrumento de vingança contra pais ausentes ou ne-gligentes no trato com os filhos. Somente casos especiais, em que fique cabalmente demonstrada a influência negativa do descaso dos pais na formação e no desenvolvimento dos filhos, com rejeição pública e humilhante, justifica o pedido de indenização por danos morais. Simples desamor e falta de afeto não bastam. (2007, p. 700)

Posicionando-se pela impossibilidade é Lopes (2006, p. 54):

Filio-me ao entendimento que a violação aos deveres fami-liares gera apenas as sanções no âmbito do direito de família, refletindo, evidentemente, no íntimo afetivo e psicológico da relação.

Percebe-se, de plano, que mesmo a doutrina fa-vorável à tese da reparabilidade do dano afetivo prega cautela e análise minuciosa dos casos levados à Justi-ça, a fim de evitar uma espécie de patrimonialização da falta do sentimento no seio das famílias, banalizando-se esse tipo de demanda.

Tais considerações doutrinárias a respeito da conveniência ou não de adoção da tese do dano afetivo abordam o tema no contexto da repercussão social da medida, preocupando-se com a questão já notória da industrialização do dano moral, bem como ressaltam a duvidosa função pedagógica de fixação de indenização ao causador do dano afetivo.

Além das pertinentes objeções de índole socioló-gica, levantadas em relação à tese da reparabilidade do

dano em razão do abandono afetivo, considerada em si uma conduta eticamente reprovável, deve-se enfrentar a problemática da presença dos requisitos de responsa-bilização civil.

DO ABANDONO AFETIVO PARENTAL E ILICITUDE

A primeira questão é saber se a conduta do pai que simplesmente despreza seu filho afetivamente, mesmo que o amparando com alimentos e necessidades materiais, contribuindo inclusive para seu estudo, con-figura ato ilícito.

Nos termos da legislação vigente, cabe aos pais o dever de sustento, educação e formação moral dos fi-lhos menores. É o que dispõe o artigo 1634, inciso I, do Código Civil, segundo o qual “compete aos pais, quan-to a pessoa dos filhos menores: I – Dirigir-lhes a criação e educação”. Já o Código Penal brasileiro reprime taxa-tivamente a conduta do abandono material (artigo 244), bem como o abandono intelectual (artigo 246).

Portanto, é expressa na lei a obrigação de sus-tento material e suporte moral e intelectual dos pais em relação aos filhos. A questão é saber se o abandono ou inexistência de afeto na relação parental constitui em obrigação jurídica, cujo descumprimento acarreta um ato ilícito.

Acerca da conceituação de ato ilícito ensina Ve-nosa:

Por ato ilícito, entende-se aquele que promanam direta ou indiretamente da vontade e ocasionam efeitos jurídicos, mas contrários ao ordenamento. O ato de vontade, contudo, no campo da responsabilidade deve revestir-se de ilicitude. Me-lhor diremos que na ilicitude há, geralmente, uma cadeia ou sucessão de atos ilícitos, uma conduta culposa. Raramente, a ilicitude ocorrerá com um único ato. O ato ilícito traduz-se em um comportamento voluntário que transgride um dever. Como já analisamos, ontologicamente, o ilícito civil não difere do ilícito penal; a principal diferença reside na tipi-ficação estrita deste último. Na responsabilidade subjetiva, o centro do exame é o ato ilícito. O dever de indenizar vai repousar justamente no exame de transgressão ao dever de conduta que constitui o ato ilícito. Como vimos, sua concei-tuação vem exposta no art. 186. (2008, p. 23)

Neste ponto, incide o princípio constitucional da legalidade, previsto no artigo 5º, inciso II, da Constitui-ção Federal, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei”. Logo, se o ato ilícito passível de reparação é aquele contrário ao direito, não havendo previsão nor-

Page 50: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

50 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

mativa do alcance e conteúdo mínimo da obrigação de dar afeto nem na Constituição Federal, nem na legisla-ção infraconstitucional, não há como impor a responsa-bilidade civil parental por essa conduta, deixando-se ao arbítrio judicial a imposição de verdadeira pena civil a uma conduta não tipificada no sistema normativo, o que afrontaria os princípios democráticos e da separação dos poderes (respectivamente nos artigos 1º, caput, e 2º da Constituição Federal). É o que explica José Afonso da Silva:

O princípio da legalidade é nota essencial do Estado de Di-reito. É também, por conseguinte, um princípio basilar do Estado Democrático de Direito, como vimos, porquanto da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. [...] É nesse sentido que se deve entender a assertiva de que o Estado, ou o Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção, nem mandar tampou-co proibir nada aos administrados, senão em virtude de lei. 2008, p. 420)

Com efeito, refletindo sobre o abandono afetivo, ao que parece, tal conduta negativa por parte dos pais viola um dever moral com consequências jurídicas do que propriamente dever jurídico passível de ilicitude pelo descumprimento. Por esses motivos há extrema di-ficuldade no preenchimento dos pressupostos gerais de responsabilidade civil e patrimonialização da questão.

Caio Mário da Silva Pereira exprime bem a coin-cidência entre o preceito moral e a norma jurídica, nos seguintes termos:

Sendo ambos – moral e direito – normas de conduta, evi-dentemente, têm um momento de incidência comum. Mas, analisados intrinsecamente, os respectivos princípios se di-ferenciam, quer em razão do campo de ação, quer no tocante à intensidade da sanção que acompanha a norma, quer no al-cance ou efeitos desta. Moral e direito distinguem-se em que a primeira atua no foro íntimo e o segundo no foro exterior. Se a conduta do agente ofende apenas a regra moral, encon-tra reprovação na sua consciência, e pode atrair o desapreço dos seus concidadãos. Se a ação implica inobservância da norma jurídica, autoriza a mobilização do aparelho estatal, para recondução do infrator à linha de observância do pre-ceito, ou para sua punição. Encarada do ângulo da intensi-dade, a norma jurídica é dotada de coercibilidade, que não está presente na regra moral, representando esta um estado subjetivo do agente, que pode ser adotado, ou que deve ser adotado voluntariamente, enquanto que a obediência ao pre-ceito de direito é imposta coercitivamente pelo ordenamento jurídico. (2009, p. 9)

Na esteira desses argumentos está a opinião de Rodrigo da Cunha Pereira, que ao prefaciar a obra que analisa o Estatuto das Famílias, Projeto de Lei n.º 2.285/2007, comenta com propriedade:

É preciso que as pessoas adultas, por elas mesmas, se res-ponsabilizem pelas suas escolhas e desilusões amorosas, suas uniões e desuniões e o Estado intervenha menos na vida privada das pessoas. Poderia o Estado, através do Po-der Judiciário, dizer quem é o culpado pelo fim de um ca-samento, por exemplo? Poderia o Estado, através do Poder Legislativo estabelecer regras para as uniões estáveis, e com isto aproximando-se cada vez mais do casamento e afastan-do conseqüentemente a possibilidade de uniões livres? Es-tas intervenções, embora bem intencionadas, perdem, cada vez mais terreno no Direito de Família. Todas estas questões estão, de certa forma, relacionadas com a essência do ser humano e as velhas reivindicações de liberdade, agora re-encarnadas pela liberdade dos afetos, da solidariedade, da dignidade humana, enfim ao Desejo. (ALVES, 2010, p. 23)

Percebe-se, ainda, que o espírito da legislação re-lativa ao direito de família segue caminho inverso à ex-cessiva intromissão do Estado na seara familiar, como ocorre pelo abandono do critério da culpa na separação judicial ou divórcio. Não pode o direito obrigar os côn-juges a prestar afeto na relação conjugal. A ausência deste implica a falência de fato da união, podendo ense-jar a iniciativa da propositura da ação de separação ou divórcio com a consequência jurídica pertinente.

A ausência ou abandono afetivo na relação con-jugal, analogicamente, não poderia ensejar direito à indenização por dano moral do cônjuge desprezado, já esse é um risco inerente das relações humanas. Não parece interesse do Estado perquirir sobre assunto tão íntimo da relação familiar, assim como é culpar alguém pela falta de amor nas relações de parentesco.

É em harmonia com tal pensamento que anota Pinto:

Controvertida na doutrina é a questão relativa à possibili-dade de reparação por dano moral no Direito de Família, especialmente nas hipóteses de separação judicial por des-cumprimento de alguns dos deveres do casamento. Regina Beatriz Tavares da Silva sustenta ser cabível a indenização quando houver dano ao consorte em razão de tal descum-primento, não se enquadrando nessa hipótese o simples desamor, pois falta de amor, por si só, não pode acarretar qualquer consequência jurídica, já que amar não é dever ju-rídico, inexistindo ato ilícito na falta de amor. (PELUSO, 2009, p. 1645)

Deve-se advertir que a patrimonialização da questão referente ao tema proposto, por indeterminação da ilicitude da conduta, corre o risco de gerar insegu-rança jurídica, ao atribuir indevida discricionariedade e sentimentalismo às decisões judiciais sobre a questão. Acerca do perigo da jurisprudência sentimental, citan-do o caso histórico de um tribuno francês, denominado de O bom juiz Magnaud (1889-1904), explica de forma

Page 51: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

51Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

brilhante Carlos Maximiliano, em sua lapidar obra Her-menêutica e Aplicação do Direito:

Imbuído de idéias humanitárias avançadas, o magis-trado francês redigiu sentenças em estilo escorreito, lapidar, porém afastadas dos moldes comuns. Mostra-va-se clemente e atencioso para os fracos e humildes, enérgico e severo com opulentos e poderosos. Nas suas mãos a lei variava segundo a classe, mentalidade religiosa ou inclinações políticas das pessoas subme-tidas à sua jurisdição. [...] O fenômeno Magnaud foi apenas retumbante manifestação de ideologia pessoal, atravessou o firmamento jurídico da Europa como um meteoro, da sua trajetória curta e brilhante não ficaram vestígios. Quando o magistrado se deixa guiar pelo sentimento, a lide degenera em loteria, ninguém sabe como cumprir a lei a coberto de condenações forenses. (2007, p. 68)

DA CONDUTA CULPOSA

Como explicado, para configuração do dever de indenizar, primeiramente há de estar presente um dever jurídico, violado por uma conduta culposa. Isto porque o Código Civil é expresso no sentido de que a respon-sabilidade objetiva só é cabível nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvi-da pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (artigo 927, parágrafo único, do Código Civil).

Deduz-se que a conduta de quem não dá afeto ao filho é omissiva. Acerca da relevância jurídica da omissão para responsabilidade civil, Cavalieri Filho preleciona:

A omissão, todavia, como pura atividade negativa, a rigor não pode gerar, física ou materialmente, o dano sofrido pelo lesado, porquanto do nada nada provém. Mas tem-se en-tendido que a omissão adquire relevância jurídica, e torna o omitente responsável, quando este tem o dever jurídico de agir, para praticar um ato para impedir o resultado, dever esse que pode advir da lei, do negócio jurídico ou de uma conduta anterior do próprio omitente, criando risco da ocor-rência do resultado, devendo, por isso, agir para impedi-lo. (2009, p. 24)

Ora, se a conduta omissiva configuradora do dano afetivo deve ser culposa, na modalidade de ne-gligência, torna-se ademais subjetiva a sua configura-ção, já que a falta de afeto pode em tese ser justificada por inúmeros fatores íntimos e até pela provocação da outra parte que detém a guarda do menor. Mostra-se temerária a atribuição de culpa exclusiva a alguém pela falta de amor. A prova da conduta culposa configura-se de difícil ou impossível verificação, quase diabólica, já que mesmo no direito ou na ciência não há definição do

que seja afeto, cujo conceito e amplitude apenas pode-riam ser dirimidos pela psicologia.

É o que explica Rocha, criticando o conceito de família fundado no afeto:

Um dado da bibliografia jurídica ligada à “teoria do afeto” surpreende: a ausência de considerações sobre o conceito de “afeto”. Uma maior ênfase no conteúdo teórico do “afeto” era de se esperar numa doutrina que pretende tê-lo como núcleo do direito de família. A necessidade de estudar o sig-nificado de “afeto” torna-se ainda maior se se tem em con-ta a ambivalência do termo: na linguagem comum, afeto é sinônimo de carinho, simpatia, amizade, ternura, amor; na Filosofia e na Psicologia, contudo, possui significado bem diferente: é sinônimo de sentimento, emoção, paixão. A essa última acepção é a que corresponde à etimologia da palavra: “afeto” provém do latim affectus e se formou da preposição ad (para) mais o verbo facere (fazer). Ou seja, “fazer para”, “influenciar”, “afetar”. “Afeto” designa, pois, algo que sofre influência de outro ser. (2009, p. 61)

E arremata o mesmo autor:

Enquanto o “afeto” da linguagem natural tem conotação positiva, referindo-se aos mais nobres sentimentos huma-nos, o “afeto” da linguagem filosófico-científica designa todas as afeições, todos os sentimentos, os mais elevados e os mais baixos. Incluem-se na noção de “afeto”, no sen-tido filosófico-científico, o ódio, a inveja, o rancor e todos os sentimentos moralmente repudiados (...) Uma vez que no sentido filosófico-científico “afeto” tem consonância com “sentimento”, o Direito não pode ser chamado a protegê-lo incondicionalmente, uma vez que muitas de suas manifesta-ções contrariam os valores fundamentais da ordem jurídica. Além disso, o Direito somente regula a conduta humana ex-teriorizada. (2009, p. 61)

Portanto, pode-se inferir que o direito não pode por meio da fixação de uma indenização punir uma conduta que nem mesmo se exteriorizou, no caso da simples omissão de afeto, considerando-a ilícita, já que ostenta grau de incerteza e subjetividade, já que não há conceituação jurídica da obrigação ou dever de afeto, passível de gerar indenização pelo descumprimento.

DO ABANDONO AFETIVO E DO DANO MORAL

O terceiro ponto a ser enfrentado é a existência de dano. Como se expôs, o principal fundamento da tese da possibilidade de reparação pelo abandono afe-tivo parental é que tal conduta espelha espécie de dano moral.

A possibilidade de reparação do dano moral é prevista tanto na Constituição (art. 5º, incisos V e X), como no artigo 186 do Código Civil. Por dano moral,

Page 52: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

52 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

entende-se toda ofensa a direito de personalidade ou à dignidade humana. Não se confunde com o dano patri-monial, mas diz respeito à lesão de outros aspectos do direito da pessoa, não aferíveis economicamente, como, por exemplo, a honra, a imagem, seu nome, enfim todos os caracteres que se refiram ao aspecto personalíssimo do indivíduo. No dizer de uma das maiores autoridades sobre o tema, Sérgio Cavalieri Filho, o dano pode ser a direitos da personalidade que não estão diretamente vinculados à sua dignidade, possuindo, portanto, duplo aspecto:

À luz da Constituição vigente, podemos conceituar o dano moral por dois aspectos distintos. Em sentido estrito, dano moral é violação do direito à dignidade. E foi justamen-te por considerar a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem corolário da dignidade que a Constituição inseriu em seu artigo 5º, V e X, a plena re-paração do dano moral. Este, pois, o novo enfoque consti-tucional pelo qual deve ser examinado o dano moral, que já começou a ser assimilado pelo Judiciário, conforme se constata do aresto a seguir transcrito: “Qualquer agressão à dignidade pessoal lesiona a honra, constitui dano moral e é por isso indenizável. Valores como a liberdade, a in-teligência, o trabalho, a honestidade, aceitos pelo homem comum, formam a realidade axiológica a que todos esta-mos sujeitos. Ofensa a tais postulados exige compensação indenizatória - Ap. Cível 40.541, rel. Des. Xavier Vieira, ins ADCOAS 144.719”. (2009, p. 80)

A aceitação da possibilidade de reparação do dano moral foi inicialmente muito controvertida, pas-sando por fases: inicialmente pela da irreparabilidade, sob o argumento de que era impossível se aferir a dor, e, atualmente, pacificamente pela possibilidade de cumu-lação com a indenização por danos materiais.

Depreende-se dos ensinamentos sobre a confi-guração do dano moral que este decorre de um ato ou conduta que provoca um ato ilícito ofensivo a direito da personalidade da vítima ou à sua própria dignidade, tendo a indenização função de trazer satisfação ou paz de espírito ao ofendido, pelo reconhecimento judicial da ilicitude, e de certa forma punindo o ofensor.

Sabe-se que para configuração do dano moral, conforme a mais moderna e pacífica doutrina, É dispen-sável a prova do sofrimento, já que o dano se presume de uma conduta ilícita ofensiva à dignidade ou aos di-reitos de personalidade do ofendido. Ou seja, se há uma conduta ofensiva ao nome de um indivíduo, como sua inclusão indevida nos cadastros de inadimplentes, com publicidade, não é preciso ao ofendido provar seu sofri-mento, basta apontar a conduta, que presumivelmente lhe acarretou prejuízo moral.

A fixação da indenização para reprimir a conduta lesiva atinge sua finalidade que é dar ao ofendido não a restituição material da ofensa dirigida, o que seria im-possível no mundo dos fatos, mas a satisfação de que foi reconhecido o ato como ilícito e retribuído ao ofensor o mal causado, conforme preleciona Sampaio Júnior:

Diante dessas considerações, talvez se possa realmente con-firmar que o pretium Dolores deixou de ser o fundamento da responsabilidade por danos morais. Não mais se paga o pre-ço da dor, pois sequer importa que de fato exista essa dor. O que releva é sancionar uma conduta antiética. E, se possível, coibir aquela conduta. (2009, p. 99)

Percebe-se que a reparação por dano moral de-corre de condutas ilícitas que ofendem bens jurídicos tutelados pelo Estado, em que pode ser exigido respeito a esses bens.

O amor e o afeto, ao contrário, são sentimentos humanos, que não podem ser exigidos, de forma que seu inadimplemento gere direito à indenização. Na verda-de, ontologicamente, não são obrigações, mas deveres morais e éticos a que a lei comina pelo descumprimento também a mesma reprimenda, qual seja o afastamento do vínculo jurídico parental. Na verdade, o abandono afetivo não pode ser indenizado por não ter cunho obri-gacional, por constituir o afeto um sentimento humano.

Pereira (2009), ao traz o conceito de obrigação como “o vínculo jurídico em virtude do qual uma pes-soa pode exigir de outra prestação economicamente apreciável”. Assinala, ainda, o mesmo autor que um dos elementos de toda obrigação é que o objeto, isto é, a prestação exigível pelo credor, seja determinada ou determinável:

O que não é possível, sob pena de equiparar-se à falta de objeto e, pois, de ineficácia da obrigação, é a inde-terminação definitiva, que importa na própria negação do vínculo, por ausência de objetivação. Quando o ob-jeto é indeterminável, ou pela sua natureza, ou porque circunstâncias especiais obstam à determinação, não há obrigação válida. (2009, p. 21)

Em relação aos direitos de personalidade, a lei comina sanção pelo descumprimento da obrigação ge-ral de respeito (artigo 12 do Código Civil), passíveis de reparação pecuniária em decorrência do dano mo-ral. Pode-se exigir, por exemplo, o respeito à imagem, à honra, ao nome. Na maioria das vezes o direito im-põe um non facere, isto é, uma abstenção de conduta para que não sejam violados esses bens jurídicos, que se desrespeitados geram o direito a uma indenização para compensar o prejuízo moral suportado pela vítima.

Page 53: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

53Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

A tese da indenizabilidade do dano afetivo sus-tenta a possibilidade de que o Estado exija uma obri-gação de fazer ou entregar um sentimento por parte do indivíduo, cujo conceito é indeterminado, fluído e im-preciso. Parece pertencer à seara da psicologia o estu-do do desenvolvimento da personalidade do indivíduo, bem como da repercussão da boa ou má criação dos filhos, razão pela qual suposto dano por abandono afe-tivo não pode ser presumido.

No caso em tela existiria um comportamento omissivo, com reprovação ética e moral, com outras re-percussões jurídicas, como a definição de guarda, cau-sa de suspensão ou destituição de poder familiar, mas que não constitui isoladamente uma ofensa passível de reparação por meio de indenização. A sutileza da dife-renciação repousa no fato que se trata de omissão de afeto, um comportamento contínuo de índole íntima e negativa.

Para certa parcela da doutrina a responsabilidade civil teria como função precípua restabelecer uma situ-ação da vida abalada. No dizer de Venosa:

Os princípios da responsabilidade civil buscam restaurar um equilíbrio patrimonial e moral violado. Um prejuízo ou dano não reparado é um fator de inquietação social. Os or-denamentos contemporâneos buscam alargar cada vez mais o dever de indenizar, alcançando novos horizontes, a fim de cada vez menos restem danos irressarcidos. É claro que esse é um desiderato ideal que a complexidade da vida contem-porânea coloca sempre em xeque. Os danos que devem ser reparados são aqueles de índole jurídica, embora possam ter conteúdo também de cunho moral, religioso, social, ético, etc., somente merecendo reparação do dano as transgressões dentro dos princípios obrigacionais. (2008, p. 1-2)

Ao se fixar indenização por abandono afetivo, isto é, pela conduta omissiva de um pai ou mãe que não dá amor a seu filho, o direito, por meio do Poder Judiciário, reprimiria um comportamento reprovável do ponto de vista moral, mas, questionável, se tal inge-rência estatal atenderia ao melhor interesse da família, qual seja a estimulação da própria retomada do vínculo afetivo, já que para condutas personalíssimas atinentes a um fazer, dado seu caráter de infungibilidade e tendo em vista a liberdade individual, a única solução seria conversão em perdas e danos.

Destaque-se que existe parcela significativa da doutrina criticando a responsabilidade civil punitiva ou do punitive damage, segundo explica Sampaio Júnior:

Há forte rejeição da doutrina pátria à indenização punitiva, por vezes denominada pedagógica, sendo que o dispositivo

do Projeto do Código de Defesa do Consumidor prevendo a sua introdução no âmbito das relações de consumo foi ve-tado por inadequado à nossa sistemática jurídica. Objeta-se que o Direito Civil não tem a função de punir o ofensor. A responsabilidade civil se assenta na ideia de amparar a vítima, ressarcindo-lhe o dano sofrido. Assim, a punição a uma conduta não ética ficaria a cargo do Direito Penal ou do Direito Administrativo, sem o que se subverteria a regra de que não há crime sem prévia lei que o defina. Sacrificar-se-ia a segurança em nome de uma conduta ética pouco palpável (2009, p. 100).

Questionável, ainda, do ponto de vista constitu-cional (artigo 227 da Constituição Federal), seguindo a doutrina da proteção integral, prevista no artigo 1º do ECA, no caso de abandono afetivo de menores, se a fixação de pena pecuniária ao pai, atenderia ao melhor interesse da criança e do adolescente, dado que o pro-cesso que visa à indenização poderá ser palco de dis-cussões e maior abalo psíquico à criança e ao adoles-cente que se lembrará do conflito por toda a vida.

Desnecessário mencionar que não há como se adotar o regime de cumprimento forçado (executivo) das obrigações de fazer, previsto no Código de Proces-so Civil em seu artigo 632 e seguintes, já que não se po-deria aferir o cumprimento ou não da obrigação de dar amor, devido à fluidez do conceito e indeterminação probatória, assim como seria a fixação de multa diária pelo descumprimento da obrigação de dar amor.

A doutrina e jurisprudência da responsabilida-de civil evoluíram, portanto, da irresponsabilidade por dano imaterial ou moral para aceitação incontroversa, nos dias atuais, dessa modalidade de reparação, com previsão expressa na Constituição Federal e no Códi-go Civil. No entanto, razoável que não pode a teoria da responsabilidade civil ir ao outro extremo de tentar reparar condutas não exteriorizadas, como o sentimen-to ou o pensamento, sob o fundamento de ofensa ao princípio aberto da dignidade da pessoa humana, que se tornou panaceia para todos os apetites ideológicos não satisfeitos (ROCHA, 2009).

DO NEXO DE CAUSALIDADE

O quarto aspecto diz respeito ao nexo de causa-lidade entre a conduta do pai ou mãe que nega afeto ao filho e o dano causado. Segundo Neves, o nexo de causalidade pode ser conceituado como:

a relação que se estabelece entre o ato (por ação ou omissão) do devedor e o dano experimentado pelo credor. Evidente-mente, para que se verifique o dever de indenizar, deve estar presente essa relação de causa e efeito – o nexo de causalida-de – entre o fato gerador e o dano. (2009, p. 335)

Page 54: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

54 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

A conduta de não prestar afeto na relação paren-tal configuraria apenas uma omissão. Sobre a questão da causalidade da omissão, ensina Cavalieri Filho que:

a omissão adquire relevância causal porque a norma lhe em-presta esse sopro vital, impondo ao sujeito um determinado comportamento. Quando não houver esse dever jurídico de agir, a omissão não terá relevância causal e, conseqüente-mente, nem jurídica. (2009, p. 63)

No caso do abandono afetivo, mesmo que, em tese, se admita o abalo psíquico, o nexo de causalidade entre a conduta do ofensor e o dano mostrar-se-ia de improvável constatação já que outros fatores poderiam ter concorrido para a ofensa, dentre os quais pode ser citada a denominada síndrome da alienação parental, conforme explicação de sítio da internet específico so-bre o assunto:

Síndrome de Alienação Parental (SAP), também conhecida pela sigla em inglês PAS, é o termo proposto por Richard Gardner [3] em 1985 para a situação em que a mãe ou o pai de uma criança a treina para romper os laços afetivos com o outro genitor, criando fortes sentimentos de ansiedade e temor em relação ao outro genitor. Os casos mais fre-qüentes da Síndrome da Alienação Parental estão associados a situações onde a ruptura da vida conjugal gera, em um dos genitores, uma tendência vingativa muito grande. Quando este não consegue elaborar adequadamente o luto da sepa-ração, desencadeia um processo de destruição, vingança, desmoralização e descrédito do ex-cônjuge. Neste processo vingativo, o filho é utilizado como instrumento da agressi-vidade direcionada ao parceiro. (grifei)

Ainda, acerca do nexo de causalidade, Venosa explica que:

Na identificação do nexo causal, há duas questões a serem analisadas. Primeiramente, existe a dificuldade em sua pro-va; a seguir, apresenta-se a problemática da identificação do fato que constitui a verdadeira causa do dano, principalmen-te quando este decorre de causas múltiplas. Nem sempre há condições de estabelecer da causa direta do fato, sua causa eficiente. (2008, p. 48)

E cabe ao demandante o ônus da prova no que diz respeito ao nexo de causalidade, conforme ensina o mesmo autor, citando Pereira:

é estabelecer, em face do direito positivo, que houve uma violação de direito alheio e um dano, e que existe um nexo causal, ainda que presumido, entre uma e outro. Ao juiz cumpre decidir com base nas provas que ao demandante in-cumbe produzir. (2008, p. 49)

Infere-se, assim, que prova do nexo de causa-lidade entre a conduta do suposto ofensor no caso do

abandono afetivo parental e o alegado dano, na maioria das vezes, será controvertida, pela oposição de outros fatores, o que levaria ao magistrado a apenas um juízo de probabilidade da real causa do abalo psíquico, o que poderia gerar insegurança jurídica, conforme assevera Neves:

A verdade é que não existe uma uniformidade no tratamento dos Tribunais acerca do nexo causal. Muitas vezes não será possível ter a certeza absoluta do liame causal, sendo neces-sário, nestes casos, recorrer-se à experiência e à probabilida-de. (2009, p. 339)

REPERCUSSÃO JURÍDICA DO ABANDONO AFETIVO PARENTAL: POSSILIDADE DE DES-TITUIÇÃO DO PODER FAMÍLIAR

Deduz-se do sistema normativo que o abando-no ou a inexistência de sentimento dos pais em relação aos filhos constitui conduta contrária aos valores éticos prestigiados pelo direito, tanto é verdade que o Código Civil, ainda que em poucas ocasiões aborde as hipóte-ses em que a afetividade influencia, como na fixação de guarda dos filhos, ou no caso da destituição ou sus-pensão do poder familiar. É o que dispõe o artigo 1638, II, do Código Civil, que expressamente diz que perderá o poder familiar o pai ou mãe que deixar o filho em abandono. Também é o que prescreve o artigo 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Neste diapasão, já decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

Direito de Família. Destituição do poder familiar. Abandono do filho. Demonstração nos autos. Recur-so improvido. O poder familiar dos pais é ônus que a sociedade organizada a eles atribui, em virtude da circunstância da parentalidade, no interesse dos filhos. O exercício do múnus não é livre, mas necessário no interesse de outrem. A perda do poder familiar é definitiva, devendo ser observado para sua decreta-ção, por sua gravidade que o fato que a ensejar seja de tal magnitude que ponha em perigo permanente a segurança e a dignidade do filho. (TJMG, Ap. cível n.º 1.0132.06.003134-2/001, rel. Carreira Machado, j. 11.11.2008, DJ 26.11.2008)

Assim, a interpretação teleológica, ou seja, de acordo com a finalidade da expressão abandono, pre-vista no mencionado artigo 1638, II, do Código Civil, faz crer que a cessação do carinho ou ausência total deste dos pais em relação aos filhos não pode dar ensejo à reprimenda pecuniária, mas a outra solução jurídica, de natureza diversa, atentando-se ao princípio do me-lhor interesse da criança e do adolescente (artigo 227, caput, da Constituição Federal e artigo 1º do Estatuto

Page 55: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

55Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

da Criança e do Adolescente), que é a destituição do poder familiar dentro da seara do direito de família, no caso da questão envolver a ausência de afeto em rela-ção a menores.

O princípio do melhor interesse da criança pode ser reconhecido implicitamente tanto no artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), como nos artigos 1583 e 1584 do Código Civil brasilei-ro, que dispõem que nos casos de separação ou divórcio a guarda dos filhos menores será atribuída a quem tiver melhor condições de exercê-la. Independentemente de quem tenha tido culpa na separação, atenta-se primor-dialmente para o melhor interesse do menor envolvido e sua proteção integral.

Neste sentido, encontra-se a já mencionada de-cisão exarada no Recurso Especial n.º 757.411/MG, do Superior Tribunal de Justiça:

No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Ado-lescente, art. 24, quanto no Código Civil, art. 1638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a determinação da per-da do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmen-te, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo abandono moral. Por outro lado, é preciso levar em conta que, muitas vezes, aquele que fica com a guarda isolada da criança trans-fere a ela os sentimentos de ódio e vingança nutridos contra o ex-companheiro, sem olvidar ainda a questão de que a indenização pode não atender exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi preterido no relacionamento amoroso.

Portanto, pode-se deduzir que o abandono afeti-vo configura uma conduta moralmente reprovável, com repercussão jurídica prevista, aferível pela realização de estudos sociais dentro de eventual e adequada de-manda de destituição do poder familiar.

Esse é, inclusive, o entendimento da Ministra Ellen Gracie do Supremo Tribunal Federal (STF) que, enfrentando a questão aqui proposta, não conheceu de recurso extraordinário n.º 567.164, que versava sobre a responsabilidade civil por abandono afetivo, no qual se alegava ofensa aos artigos 1º e 5º, incisos V e X, e arti-go 229 da Constituição Federal. O recurso combatia a decisão do Superior Tribunal de Justiça que deu provi-mento a recurso especial pela inviabilidade do reconhe-cimento de indenização por danos morais decorrente de

abandono afetivo, com fundamento no artigo 159 do Código Civil de 1916.

Em seu parecer, asseverou a Ministra:

O apelo extremo é inviável, pois esta Corte fixou o entendi-mento segundo o qual a análise sobre a indenização por da-nos morais limita-se ao âmbito de interpretação de matéria infraconstitucional, inatacável por recurso extraordinário. Conforme o ato contestado, a legislação pertinente prevê punição específica, ou seja, perda do poder familiar, nos ca-sos de abandono do dever de guarda e educação dos filhos.

O arquivamento do Recurso Extraordinário se deu com fundamento na impossibilidade de análise dos fatos e das provas contidas nos autos do pedido de re-paração pecuniária por abandono moral, bem como da legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (Código Civil e Estatuto da Criança e do Adolescen-te). Para a Ministra, “o caso não tem lugar nesta via recursal considerados, respectivamente, o óbice da Sú-mula 279, do STF, e a natureza reflexa ou indireta de eventual ofensa ao texto constitucional”. Cita ainda a relatora o parecer da Procuradoria Geral da República, que segundo o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, eventual lesão à Constituição Federal, se existente, ocorreria de forma reflexa e demandaria a reavaliação do contexto fático, o que, também, seria incompatível com a via eleita.

CONCLUSÃO

No Estado Democrático de direito vigora o prin-cípio da legalidade (artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal). Logo, cabe à lei proibir as condutas contrárias ao direito, aplicando sanção anteriormente prevista. No que tange ao abandono afetivo, que diz respeito a um comportamento moralmente reprovável, o legislador se limitou a estabelecer consequências afetas às questões familiares, não trazendo, mesmo implicitamente, ne-nhum dispositivo que possibilitasse a interpretação de que se deve patrimonializar tal situação.

A grande dificuldade de aceitação da tese da re-parabilidade do dano afetivo repousa no enfrentamento dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, cuja configuração mostra-se comprometida pela dificuldade em se demonstrar juridicamente a ilicitude da conduta de não dar afeto, apenas omissiva, além de se provar o dano psíquico e o nexo de causalidade entre a conduta e tal lesão.

Quando há apenas uma conduta não exteriori-zada, consistente em simples omissão de amor, não se

Page 56: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

56 Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 –jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

pode configurar ato ilícito merecedor de indenização ci-vil, por ausência do conteúdo e alcance normativo des-sa conduta. Também, de plano, encontra-se dificuldade no preenchimento do segundo pressuposto de respon-sabilização, qual seja a existência de uma conduta cul-posa, pois a falta de afeto é conduta não exteriorizada, não podendo o direito regular ou intervir na ausência de sentimento, como não pode fazê-lo no pensamento. Ademais, para toda responsabilidade deve haver a pro-va de dano. Mesmo considerando-se que o dano moral é presumido, a ausência de afeto é conceito extrema-mente impreciso para embasar a responsabilidade civil, já que não figura como expressa violação a direito da personalidade expresso no sistema jurídico. Por fim, não há como se provar o nexo de causalidade entre a conduta do parente e o dano sofrido.

Daí, concluir-se que a fixação de indenização pelo abandono afetivo caracteriza ingerência indevida do Estado, ainda que com boas intenções, em assun-to delicado, mas afeto somente à seara e contexto das relações familiares, que pode apenas atribuir solução jurídica pertinente a esse ramo, como a destituição do poder familiar, atentando-se não para o desvalor da conduta praticada, mas para o critério do melhor inte-resse da criança e do adolescente, em caso de menores, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

ALVES, Leonardo Barreto Moreira (Coord.). Código das Famílias Comentado. 1ª edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 01-27.

BRASIL. Presidência da República. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 5 fev. 2010.

______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://ww.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituição/Constituição.htm>. Acesso em: 5 fev. 2010.

______. Presidência da República. Lei 8.069/90. Dis-ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>. Acesso em: 5 fev. 2010.

______. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. Re-curso Especial n.º 757.411-MG. Relator: Ministro Fernando Gonçalves. Decisão por maioria. Brasília, 29.11.2005. DJ de 27.03.2006, p. 299.

______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extra-

ordinário 567164. Relatora Ministra Ellen Gracie. Decisão monocrática negando seguimento. Brasília, 14.05.2009. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/por-tal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=108739&caixaBusca=N.> Acesso em: 5 fev. 2010.

CASTRO, Leonardo. Precedente perigoso. O preço do abandono afetivo. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10696>. Acesso em: 6 jan. 2010.

DEL-CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara; OLIVEI-RA, Thales César de. Estatuto da Criança e do Ado-lescente. Série Provas e Concursos. São Paulo: Atlas, 2008, p.03-09.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famí-lias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 36-69.

FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Responsabili-dade Civil. São Paulo: Atlas, 2009, p. 01-224.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasilei-ro. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 01-120.

______. Responsabilidade Civil. 10ª edição. São Pau-lo: Saraiva, 2007, p. 9-705.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes de Novaes. Pressupostos, elementos e limites do dever de inde-nizar por abandono afetivo. Instituto Brasileiro de Direito de Família, 2007, p. 16. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos&artigo=288. Acesso em: 6 nov. 2009.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematiza-do. 12ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008.

LOPES, Renan Kfuri. Panorama da responsabilidade civil. Adv Advocacia Dinâmica: Seleções Jurídicas. São Paulo: COAD, nov. 2006, p. 49-58.

LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p.03-42

MADALENO, Rolf. O preço do afeto. In: PEREIRA, Tânia da Silva; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coor-ds.). A ética da convivência familiar. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 151-169.

NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 5ª ed. São Pau-lo: Revista dos Tribunais, 2001.

Page 57: Artigos DEFENSORIA PÚBLICA · Artigos Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 jandez 2012 ISSN 1984-4875 1 N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875 DEFENSORIA PÚBLICA BOLETIM

Artigos

57Boletim da Escola da Defensoria Pública, N. 4 – jan/dez 2012 ISSN 1984-4875

NEVES, José Roberto de Castro. Direito das Obriga-ções. 1ª edição. Rio de Janeiro: GZ editora, 2009.

PELUSO, Cezar (Coords.) Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. 3ª edição. Barueri: Manole, 2009, p.1570-1754.

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direi-to Civil. Introdução ao Direito Civil e Teoria Geral do Direito Civil. Vol. I. 23ª edição. Rio de Janeiro: Foren-se, 2009, p.9-10.

______ Instituições de Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações. Vol. II. 22ª edição. Rio de Janeiro: Foren-se, 2009, p. 3-128.

ROCHA, Marco Túlio de Carvalho. O Conceito de Fa-mília e suas implicações jurídicas. Teoria sociojurídi-ca do Direito de Família. 2ª edição. São Paulo: Campus Jurídico, 2009, p. 9-75.

SAMPAIO JÚNIOR, Rodolpho Barreto. Da Liber-dade ao Controle: os riscos do Novo Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Puc Minas Virtual, 2009, p. 71-100.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucio-nal Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 420-440.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitu-cional. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 536-546.

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gus-tavo Pereira Leite (Coords.). Manual de direito das famílias e das sucessões. Belo Horizonte: Mandamen-tos, 2008, p. 35-50.

TIMM, Luciano Benetti. “Descodificação”, consti-tucionalização, reprivatização no direito privado: O Código Civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Jornal of Legal Studies, Vol. 3, 2008, p. 16. Disponível em: <www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/Timm.pdf.> Acesso em: 6 jan. 2009

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. 7ª Câmara Cível. Apelação Cível n.º 408.550-5-BH. Re-lator: Unias Silva. Decisão unânime. Belo Horizonte, 01.04.2004. Data de publicação de 29.04.2004.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de fa-mília. 8ª edição. São Paulo: Atlas: 2008, p. 01-19.

______. Direito Civil. Responsabilidade civil. 8ª edi-ção. São Paulo: Atlas, 2008, p. 01-102.